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~~ acategoria politico-cutturat da Amefricanidade Lélia Gonzalez ESTE TEXTO RESULTA de uma reflexfo que vem se estruturen outros escritos que o antecederam‘e que se enraiza naret ideia de Betty Milan desenvolvida por M.D. Magno. Trata- novo e criativo no enfoque da formac&o histérico-cultural do Brasil por razdes de ordem geografica e, sobretudo, de ordem do i te, no vem a ser 0 que em geral se afirma: um pais cujas form: inconsciente sao exclusivamente europeias, brancas. Ao con’ uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, tev: pelo d para, af sim, ter seu nome assumido com todas as letras Ladina (nao é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no rac seu sintoma por exceléncia). Nesse contexto, todos os brasileiros ( apenas os “pretos” e os “pardos” do 18¢e) sao ladino-am: um bom entendimento das artimanhas do racismo aqui ca vale a pena recordar a categoria freudiana de denegacao ( “Processo pelo qual o individuo, embora formulando um de se Pensamentos ou sentimentos, até ai recalcado, continua a defender-se dele, negando que lhe pertenca.”? Como denegaciio de nossa ladino-ame- fricanidade, 0 racismo “a brasileira” se volta justamente contra aqueles que séo seu testemunho vivo (os negros), ao mesmo tempo que diz nao fazer isso (“democracia racial” brasileira). tr 344 Digitalizado com CamScanner Para entender melhor essa questi, em uma penipectiva lacaniana, ¢ Jo texto brilhante de M.D. Magno, G -ente com manifestagées culturais Negras de outros paises do continente americano, tenho tido a oporlunidade da observar certas similaridades que lembram nosso pals, No que se ref re aos falares, E certo que a presenga negra na regiao caribenha (aqui 10 apenas como a América insular, mas incluindo a costa atlintica da América Central eo norte da América do Sul) modificoy ° espanhol, o inglés eo francés falados na regiao (quanto ao holandés, por desconhecimento, nada posso dizer). Ou seja, aquilo que chamo de “pre. togués”, e que nada mais é do que a marca de africanizacao do portugues falado no Brasil (nunca esquecendo que o colonizador chamava os escra. vos africanos de “pretos” e os nascidos no Brasil de “crioulos”), é faci]. mente constatavel sobretudo no espanhol da regiao caribenha. O carater tonal e ritmico das Iinguas africanas trazidas para o Novo Mundo, além da auséncia de certas consoantes (como | ou or, por exemplo), aponta para um aspecto pouco explorado da influéncia negra na formacio his- térico-cultural do continente como um todo (e isso sem falar nos dialetos “crioulos” do Caribe). Similaridades ainda mais evidentes so constaté- veis se nosso olhar se volta para as misicas, as dancas, os sistemas de crengas etc. Desnecessario dizer o quanto tudo isso é encoberto pelo véu ideolégico do branqueamento e recalcado por classificagdes eurocén- tricas do tipo “cultura popular” e “folclore nacional”, que minimizam a importancia da contribuicao negra. Outro aspecto, e bem inconsciente, do que estamos abordando diz res- peito a outra categoria freudiana, a de objeto parcial (Partialobjekt), que é assim definida: recomendivel a leitura sa um contato cre entendida 1 Tipo de objetos visados pelas pulsées parciais, sem que tal implique que uma pessoa, em seu conjunto, seja tomada como objeto de amor. Trata-se sobretudo de partes do corpo, reais ou fantasmadas (...), ede seus equivalentes simbélicos. Até uma pessoa pode identificar-se ou ser identificada com um objeto parcial. Pois bem. Pelo menos no que se refere ao Brasil, que se atente nao apenas para toda uma literatura (Jorge Amado, por exemplo), como também para as manifestagdes das fantasias sexuais brasileiras, Elas se concentram 342 Digitalizado com CamScanner Yr sto parcial, por exceléncia, de nossa cultuy poodle Aurel 1 i. a bunda. Recorrendo , jo Aurelio, pode se constatar que sdiciondirio Av ; ' ; lar que essa palavra se inscreve no * rio de: Mi Tingua africa Soabulindo de uma lingua africans, oquimbundo (mbunda), que muito su nossos flares. Além disso, vale ress, jnfluencie altar que os bundos cons giwem vd etnia banto de Angola que, além do Supracitado quimbundo, falar outras HNUAS bunda e ambundo. tentarmos para o fato de que quanda fon dos maiores portos de expor nanda iio de escravos para a Amé ‘ lem de certos modistos (refiro-me, por exem plo. ao biquint “tio dental”) que buscam evidenciar esse objeto parcial, pote-se que o (ermo deu origem a muitos outros em nos cor essa razdo, gosto de fazer um trocadilho, a Em consequéncia, ; sso “pretogués” ae irmando que £ paitano, “nto fala nem diz bunds” (do verbo tome as ¢ muitas outras marcas que evidenciam a Presenca negra na construgio cultural do continente americano levaram ase pensar aneces- sidade da elaboracao de uma categoria que nao se restringisse apenas 20 casobrasileiro e que, efetuando uma abordagem mais ampla, levasse em, consideraco as exigéncias sobre a categoria de Amefricanidade. RACISMOS, COLONIALISMO, IMPERIALISMO E SEUS EFEITOS. Sabemos que o colonialismo europeu, nos termos com que hoje o d mos, configura-se no decorrer da segunda metade do século xix. Nesse mesmo periodo, o racismo se constituia como a “ciéncia” da superiori- dade eurocrista (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava omodelo ariano de explicagao® que viria a ser no apenas o referencial das classificagdes triddicas do evolucionismo positivista das nascentes ciéncias do homem, como ainda hoje direciona o olhar da producao aca- démica ocidental. Vale notar que tal processo se desenvolveu no terreno fértil de toda uma tradigao etnocéntrico pré-colonialista (século xv- culo xrx), que considerava absurdas, supersticiosas ow exéticas as mani- festagdes culturais dos povos “selvagens”,’ dai a “naturalidade” com quea violéncia etnocida e destruidora das forgas do pré-colonialismo europeu Sefer abater sobre esses povos. No decurso da segunda metade do sécu- lox, a Europa transformaria tudo isso em uma tarefa de explicagéo acional dos (a partir de entio) “costumes primitivos”, em uma ques- '4o de racionalidade administrativa de suas colénias. Agora, diante da 343 Digitalizado com CamScanner vio ssumird novos conte Jonizados, a violencia a TROT, ando, As vezes, a nfo parecer violéncia, tas “verdad um Frantz Fanon ou de uin Albert Mey, " . wrtn aefichcia da dominacia eo} G40 colonia yeaisténcia dos col Jos; cheg ade”, Os textos de « efeitos de alienagho que ox colonizado: mos a estratégi utilizada pelos pa! mos que o racismo desempenha um papel fina “superioridade” do colonizador pelos ¢, nos, duas faces que 86 se diferenc; sofisticad ra superiorid monstramn 6 erceria sobre se europeus Quando analis suas colénias, verific mental na internal nizados. E ele apresenta, pelo me como titicas que visam ao mesmo objetivo: exploracao/opressio Refi ro-me, no caso, ao que comumente é conhecido como racismo aberty racismo disfargado. O primeiro, caracteristico das sociedades de origem vrclo-saxdnica, germanica ou holandesa, estabelece que negra é pe soa que tenha tido antepassados negros (“sangue negro nas veias"). De geordo com essa articulagdo ideolégica, miscigenacéo é algo impen: (embora o estupro ea exploracao sexual da mulher negra sempre t ocorrido), na medida em que o grupo branco pretende manter suz “pure za” ¢ reafirmar sua “superioridade”. Em consequéncia, a tnice so! assumida de maneira explicita como a mais coerente, éa segregacko dos grupos nao brancos. A Africa do Sul, com sua doutrina do de: mento “igual” mas separado, com seu apartheid, é o modelo acabado 4 se tipo de teoria e praticas racistas. Jé no caso das sociedades de orig latina, temos o racismo disfargado ou, como eu o classifico, racismo por denegacao. Aqui, prevalecem as “teorias” da miscigenacdo, da assimils- coe da “democracia racial”. A chamada América Latina que, na verdade é muito mais amerindia e amefricana do que outra coisa, apresenta-sé como o melhor exemplo de racismo por denegacao. Sobretudo nos paises de colonizacao luso-espanhola, onde as pouquissimas excegdes (comes Nicaragua e seu Estatuto de Autonomfa para las Regiones de la Costa Atlén- tica) confirmam a regra. Por isso mesmo, creio ser importante voltar nosso olhar para a formacio historica dos paises ibéricos.® Trata-se de uma reflexo que nos permite compreender como esse tipo especifico de racismo pode se desenvolver para se constituir na forma mais eficaz de alienagio dos discriminados do que a anterior. 4 formacio histérica de Espanha e Portugal se deu no decorrer de ums Juta Plurissecular (a Reconquista), contra a presenga de invasores que diferenciavam nao apenas pela religito que professavam (Isla); afinal, 944 Digitalizado com CamScanner Yr qropas a {yoo moures para tr o e invadiram a Ibéria em 1771 nito er ram majoritariamente negras entos Avabes), como eram comandadas pelo negro general ("Gabel") Tariq ibn Ziyad (a corruptela do termo Gavel ‘Térik resultou em G braltar, palavra que passou a nomear 9 estreito alé enta conhecido como Colunas de Hércules). Por outro lado, sabemos que nao nas os soldados, como também o ouro do reino negro de Gana (Africa io dental), tiveram muito a ver com as conquistas moura da Ibéria (ou LAndulus). Vale notar, ainda, que as duas dltimas dinastias que governa- ram AL-Andulus procediam da Africa ocidental: a dos almordvidas ea dos alméadas. Foi sob o reinado destes itimos que nasceu, em Cérdova (126), omais eminente fildsofo do mundo islamico, 0 aristotélico Averrées.° Des- necessario dizer que, tanto do ponto de vista racial quanto civilizacional, a presenga moura deixou profundas marcas nas sociedades ibéricas (como, de resto, na Franga, na Itélia etc.). Daf se entende Por que o racismo de negagio tem, na América Latina, um lugar privilegiado de expressao, na medida em que a Espanha e Portugal adquiriram uma sélida experiéncia quanto aos processos mais eficazes de articulagao das relagdes raciais.”® Sabemos que as sociedades ibéricas se estruturaram a partir de um modelo rigidamente hierérquico, onde tudo e todos tinham seu lugar determinado (até mesmo o tipo de tratamento nominal obedecia 3s regras impostas pela legislac&o hierdrquica). Como grupos étnicos dife- rentes e dominados, mouros e judeus eram sujeitos a um violento con- trole social e politico. As sociedades que vieram a constituir a chamada América Latina foram as herdeiras histéricas das ideologias de classifi- cago social (racial e sexual) e das técnicas juridico-administrativas das metrépoles ibéricas. Racialmente estratificadas, dispensaram formas abertas de segregacdo, uma vez que as hierarquias garantem a superio- ridade dos brancos como grupos dominantes."'A expresso do humorista Millér Fernandes, ao afirmar que “no Brasil nfo existe racismo porque o negro reconhece seu lugar”, sintetiza o que acabamios de expor.” Por isso mesmo, a afirmagio de que todos sao iguais perante a lei assu- meum cardter nitidamente formalista em nossas sociedades. O racismo latino-americano é bastante sofisticado para manter negros e {ndios na condigéo de segmentos subordinados no interior das classes mais explo- Tadas, gracas A sua forma ideol6gica mais eficaz: a ideologia do branquea- mento, Veiculada pelos meios de comunicagao de massa e pelos aparelhos ‘deolbgicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crenga de que as clas- 345 Digitalizado com CamScanner 208 valores do Ocidente sao os tinicos verdadeiros eunive, vr apelecido, o mito da superioridade branca demonstr, - estilhagamento, de fragmentacao da identidage .sejo de embranquecer (de “limpar o ee coma simulténea negacio dates sificagde Uma vez estabe ficacia pelos efeitos de iL quie ele produ: o de iz no Brasil) 6internalizado, da propria cultura.” a spe wera forma de racismo, a segregacio explicita, cons, sobre os grupos discriminados, a0 contrério do sani reforca a identidade racial dos mesos. Na verdage pria éfacilmente percebida por qualquer crianes desses grupos. No caso das criangas negras, elas crescem sabendo que sgoesemse envergonharem disso, o que hes permite desenvolver oy formas de percepsao no interior da sociedade onde vivem (nesse sentido, literatura negro-feminina dos Estados Unidos é uma fonte de riquezs. 2 Alice Walker é um belo exemplo disso). Que se atente, no caso, pare os quadros jovens dos movimentos de liberacdo da Africa do Sul e da N bia. Ou, entZo, para o fato de o Movimento Negro dos Estados Unig ter conseguido conquistas sociais e politicas muito mais amplas do qi o MN da Colombia, do Peru ou do Brasil, por exemplo. Por af se entende também, por que Marcus Garvey, esse extraordinério jamaicano ¢ legit. mo descendente de Nanny, tenha sido um dos mais bem-sucedidos ati- vistas do pan-africanismo ou, ainda, por que o jovem guianense Wz Rodney tenha produzido uma das andlises mais contundentes contra o colonialismo-imperialismo, demonstrando Como a Europa subdesenvolveu a Africa e, por isso mesmo, tenha sido assassinado na capital de seu pais, a13 de junho de 1980." Por tudo isso, bem sabemos das razGes de outros assassinios, como o de Malcolm X ou o de Martin Luther King Jr. A producio cientifica dos negros desses paises de nosso continente tem se caracterizado pelo avango, autonomia, inovacdo, diversificacio € credibilidade nacional e internacional; o que nos remete a um espirito de profunda determinacao, em virtude dos obstdculos impostos pelo racismo dominante. Mas, como ja dissemos, é justamente a consciéncia objetiva desse racismo sem disfarces e 0 conhecimento direto de suas praticas cruéis que despertam esse empenho, no sentido de resgate e afirmacio ie lutasse, em diferentes niveis os ee - oo , contra todas as formas de opressao racist como se pria raga, Retoman se que seus efeitos mo por denegacao, a identidade racial pré 346 Digitalizado com CamScanner Yr Jem nosis sociedades de racismo por deneg; conte, como também fi dito, Aqui wr ahor forma de resist@ncia, O que mr pgam, efetuando andlises/de AGio, 0 processo é dife- forga da cultura apresenta-se comoa ‘No significa que vozes solitdrias nao 7 Alises/dentincias do sistema vigente. Foram os writas exec oassimilacionismo francés que levaram 0 psiquiatra mmartiniquenho Frantz ‘anon a produzir suas andlises magistrais sobre s relagdes socioecondmicas e psicolégicas entre o colonizador/coloni- cdo." No caso brasileiro, temos a figura do honorével (titulo recebido emconferéncia internacional do mundo negro, em 1987) Abdias do Nas- cimento, cuja rica produgaio (andlise/dentincia, teatro, poesia e pintura) nio é reconhecida por muitos de seus irmaos e absolutamente ignorada pela intelectualidade “branca’ do pais (acusam-no de sectarismo ou de avessas”; 0 que, logicamente, Pressup6e um “racismo as direi- tas”). E interessante notar que tanto um Fanon quanto um Nascimento sé foram reconhecidos e valorizados internacionalmente eno em seus paf- ses de origem. (Fanon s6 mereceu as homenagens de seu pais depois de sua morte prematura; daf ter expressado, em seu leito de morte, o desejo de ser sepultado na Argélia.) Desnecessario ressaltar a dor e a solidzo desses irmiios, desses exemplos de efetiva militancia negra. Todavia, em minha perspectiva, uma grande contradicao permanece quando se trata das formas politico-ideolégicas de luta e de resisténcia negra no Novo Mundo. Continuamos passivos diante da postura politi- co-ideol6gica da poténcia imperialista dominante da regio: os Estados Unidos. Foi também, por esse caminho, que comecei a refletir sobre a categoria de Amefricanidade. O Brasil (pais de maior populagio negra do continente) e a regio caribenha apresentam grandes similaridades no que diz respeito & afri- canizacao do continente. No entanto, quando se trata dos Estados Uni- dos, sabemos que os africanos escravizados sofreram uma durissima Tepressdo em face da tentativa de conservacao de suas manifestagdes culturais (tinham a mao amputada caso tocassem atabaque, por exem- Plo). O puritanismo do colonizador anglo-americano, preocupado com a"verdadeira £6", forcou-os A conversa e A evangelizacio, ou seja, 20 ‘squecimento de suas rafzes africanas (0 comovente texto de Alex Haley Tevela-nos todo o significado desse processo). Masa resisténcia cultural Se manteve clandestinamente, sobretudo em comunidades da Carolina doSul. Bas reinterpretagées, as recriagdes culturais dos negros daquele 347 Bia Digitalizado com CamScanner te no interior das igrejas do Protestan. istio. A Guerra de secessio trouxe-lhes a abolic&o do Escravisma tismo cristéo. sr clan, 2 segregagao €O no direito & cidadania,q, e,com ela, & ae povo discriminado culminaram com 0 Movimentg Tutas heres aa vis, que comovell 0 mundo inteiro e que inspirou negro, pelos Direitos Ci ‘também se organizarem e lutarem por seus direitos deo ee ‘adora, vitoriosa em suas principais reivindicagseg Minoria ativa e cri a ; P ca Ietividade negra dos Estados Unidos aceitou e rejeitou uma série de aco termos de autoidentificagao: “colored”, “negro”, “black”, “afro-americay?, “ sfican american’. Foram esses dois altimos dois termos que nos chama. ‘african- c ram aatencao para @ contradicao neles existente. ent pais ocorseram fundamental ACATEGORIA DE AMEFRICANIDADE fro-american (afro-americano) e african-american (africano- Os termos af i " f remetem-nos a uma primeira reflexdo: a de que sé existi- -americano) ; riam negros nos Estados Unidos e nao em todo o continente. E uma outra, que aponta para a reproducao inconsciente da posic&o imperialista dos Estados Unidos, que afirmam ser “a américa’’. Afinal, o que dizer dos paises da américa do Sul, Central, insular e do Norte? Por que considerar 0 Caribe como algo separado, se foi ali, justamente, que se iniciou a his- toria dessa América? E interessante observar alguém que sai do Brasil, por exemplo, dizer que esté indo para “a América’. E que todos nés, de qualquer regio do continente, efetuamos a mesma reproducio, perpe- tuamos o imperialismo dos Estados Unidos, chamando seus habitantes de “americanos”. E nds, o que somos, asiaticos? Quanto a nés, negros, como podemos atingir uma consciéncia efeti- va de nés mesmos, como descendentes de africanos, se permanecemos Prisioneiros, “cativos de uma linguagem racista”? Por isso mesmo, ¢m contraposicao aos termos supracitados, eu proponho o de amefricanos (“amefricans”) para designar a todos ns,” a eee es politicas e culturais da categoria de Amefricanidade ity’ 1 0, de fato, democriticas; exatamente porque o proprio termo nos permite ultrapassar as limitacdes de cardter territorial, lingus- tico e ideolégico, abrindo novas i me ta i is Perspectivas para um entendimento mal rofund. BP lo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: a AMERICA como 348 Digitalizado com CamScanner Yr atodo (Sul, Central, Norte ¢ insular) am Lodo i ge geogrdtico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um proceso ctorico de intensa dindmica cultural (adaptacao, resisténcia, isto é,refe- histé akan, seu modelo dominante; - Para além de seu carster puramen- renciada em modelos Como: a Jamaica e o o Brasil e seus modelos joruba, banto e ewe-fon, Em consequéncia, ela pos encamitha no sentido da construgio de toda uma identidade étnica. pesnecessirio dizer que a categoria de Amefricanidade esté intimamente relacionada Aquelas de pan-africanismo, negritude, seu valor metodoldgico, a meu ver, est afrocentricidade etc. 4 no fato de permitir a possi- bilidade de resgatar uma unidade especifica, historicamente forjada no interior de diferentes sociedades que se formaram em uma determinada parte do mundo, Portanto, a Améfrica, como sistema etnogeografico de referéncia, ¢ uma criagao nossa e de nossos antepassados do continen- teem que vivemos, inspirados em modelos afticanos. Por conseguinte, o termo amefricanas/amefricanos designa toda uma descendéncia: nao apenas a dos afticanos trazidos pelo tréfico negreiro, como a daqueles que chegaram 4 América muito antes de Colombo, Tanto ontem como hoje, amefricanos oriundos dos mais diferentes paises tém desempenhado um papel crucial na elaboracao dessa Amefricanidade que identifica, na diaspora, uma experiéncia histérica comum que exige ser devidamente conhecida e pesquisada com atencao. Embora pertencamos a diferen- tes sociedades do continente, sabemos que o sistema de dominac3o éo mesmo em todas elas, ou seja: 0 racismo, essa elaboracio fria e extrema em todos os niveis de pensamento, assim com parte e parcela das mais diferentes instituigdes dessas sociedades, Como jé foi visto no inicio deste trabalho, o racismo estabelece uma hierarquia racial e cultural que opée a “superioridade” branco-ociden- tal a “inferioridade” negro-africana. A Africa é 0 continente “obscuro”, sem uma histéria prépria (Hegel); por isso, a raz&o é branca, enquanto # emocao é negra. Assim, dada sua “natureza sub-humana’, a explora- S40 socioeconémica dos amefricanos por todo o continente é considera- da “natural”. Mas, gracas aos trabalhos de autores africanos e americanos ~ Cheikh Anta Diop, Théophile Obenga, Amilcar Cabral, Kwame Nkrumah, WE.B, Dubois, Chancellor Williams, George James, Yosef Ben-Jochannan, Ivan Van Sertima, Frantz Fanon, Walter Rodney, Abdias do Nascimen- ‘oe tantos outros -, sabemos 0 quanto a violéncia do racismo e de suas Praticas despojaram-nos de nosso legado histérico, de nossa dignidade, 349 Digitalizado com CamScanner contribuigao para 0 avango da human, o, artistico ¢ religioso; 0 quanto a hj a historia ¢ de nos: dade is filoséfico, cientifie | toe tos povosaficanos sofrew uma mudanga ial i a violenta invest, ia, que nio cessou de subdesenvolver a Africa (Rodney); ¢ coms, rrafce negreiro trouxe milhses deafricanos para o Novo Mund, partindo de uma perspectiva histérica e cultural, € importante rece, hecer que a experiencia amefricana diferenciou-se daquela dos afc nos que permaneceram em seu proprio continente. Ao adotarem auto. designacao de afro/africano-americanos, nossos irmfos dos Estados Unidos também caracterizam a denegagao de toda essa rica experiéncj, vivida no Novo Mundo e da consequente criagao da Améfrica. Além disso, existe o fato concreto dos nossos irmaos da Africa nao os considerarem como verdadeiros africanos. O esquecimento ativo de uma histéria pon. tuada pelo sofrimento, pela humilhacio, pela exploracao e pelo etnocidig aponta para uma perda de identidade propria, logo reafirmada alhures (o que é compreensivel, em face das press6es raciais no préprio pals). Mas acontece que nao se pode deixar de levar em conta a heroica resisténciz ea criatividade na luta contra a escravizacao, o exterminio, a explora- do, a opressio e a humilhagHo. Justamente porque, como descendentes de africanos, tivemos na heranga africana sempre a grande fonte retifi- cadora de nossas forcas. Por tudo isso, como americanos, temos nossas contribuiges especificas para o mundo pan-africano. Assumindo nossa Amefricanidade, podemos ultrapassar uma visdo idealizada, imaginéria ou mitificada da Africa e, ao mesmo tempo, voltar nosso olhar para 2 realidade em que vivem todos os amefricanos do continente. “Toda linguagem é epistémica. Nossa linguagem deve contribuir para o entendimento de nossa realidade. Uma linguagem revolucionéria nao deve embriagar, nao pode levar & confusao”, ensina Molefi Kete Asan- te, criador da perspectiva afrocentrada. Entio, quando ocorre a autode- signagGo de afro/africano-americano, o real dé lugar ao imaginarioe@ confusio se estabelece (afro/africano-americanos, afro/africano-colom- bianos, afro/africano-peruanos e por af afora); assim como uma espéci€ de hierarquia: os afro/africano-americanos ocupando o primeiro plano, ao passo que os garifunas da América Central ou os “indios” da Repitblica Dominicana, por exemplo, situam-se no tiltimo (afinal, eles nem sabe que sao afro/africanos...) E fica a pergunta: 0 que pensam 0s afro/afti- cano-africanos? de nos nos nivel europe 350 Digitalizado com CamScanner _ vale notar que, em sua ansiedade de ver a Africa em tudo, muito de nossos irmaos dos Estados Unidos que agora descobrem a riqueza da cria- tividade cultural baiana (como muitos latinos de nosso pais) acorrem em massa para Salvador, buscando descobrir “sobrevivéncias” de culturas africanas. E o engano se dé em um duplo aspecto: a visdo evolucionista (eeurocéntrica) com relacéo s “sobrevivéncias” e a cegueira diante da explosdo criadora de algo desconhecido, nossa Amefricanidade, Por tudo isso, e muito mais, acredito que politicamente é muito mais democratico, culturalmente muito mais realista e logicamente muito mais coerente jgentificar-nos a partir da categoria de Amefricanidade e nos designarmos amefricanos: de Cuba, do Haiti, do Brasil, da Repiiblica Dominicana, dos Estados Unidos e de todos os outros pafses do continente. “Uma ideologia de libertagao deve encontrar sua experiéncia em nés mesmos; ela nao pode ser externa a nés e imposta por outros que nao ns proprios; deve ser derivada de nossa experiéncia histérica e cultu- ral particular.” Entao, por que nao abandonar as reproducdes de um imperialismo que massacra nao apenas os povos do continente, mas de muitas outras partes do mundo, e reafirmar a particularidade de nossa experiéncia na América como um todo, sem nunca perder a consciéncia de nossa divida e dos profundos lacos que temos com a Africa? Num momento em que se estreitam as relacdes entre os descendentes de afticanos em todo o continente, em que nés, amefricanos, mais do que nunca, constatamos as grandes similaridades que nos unem, a proposta de M.K. Asante me parece da maior atualidade. Sobretudo se pensarmos naqueles que, em um passado mais ou menos recente, deram seu teste- munho de luta e de sacrificio, abrindo caminhos e perspectivas para que, hoje, possamos levar adiante o que eles iniciaram. Daf minha insisténcia em relagao a categoria de Amefricanidade, que floresceu e se estruturou no decorrer dos séculos que marcam nossa presenca no continente. Jéna época escravista, ela se manifestava nas revoltas, na elabora- Sao de estratégias de resisténcia cultural, no desenvolvimento de for- mas alternativas de organizacao social livre, cuja expressdo concreta Se encontra nos quilombos, cimarrones, cumbes, palenques, marronages e Maroon societies, espraiadas pelas mais diferentes paragens de todo o Continente."® E mesmo antes, na chamada América pré-colombiana, ela Jse manifestava, marcando decisivamente a cultura dos olmecas, por ®xemplo° Reconhecé-la é, em iltima insténcia, reconhecer um gigan- 354 Digitalizado com CamScanner tesco trabalho de dindimica cultural que nfo nos Jeva para ony - : p ¥ La do Atlntico, mas que nos traz de lie nos transforma no We somone do Atlintico, i amefricanos.”" oONALAMENE PUDLIOADO EM REVISTA TEMPO HMAGILEINO, WO OF JANEIRO, 899/059 5 Texto orien P09 NOTAS smo na cultura brasileira’, in Movimentossocias 1 Verllia Gonralez, “Racism le v ran as eticas e outros estos, Hrasflia: Anpocs, 1983 (Ciéncias Socias Hoje, m2); 14. “poe Revista is, jul 1986; 1d, "Nanny; pilar da Amefricanaae femninismo afte latino-amer Revista Mumanidades,w* 17, Brasflia: Editora da UnB, 1988; 1d, "A Socio-Historic Study opsee, American Christianity: The Brazilian Case”, First Pan-African Christian Churches Conferenes Atlanta: International Theological Center, 17-23 jul 1988. M.D. Magno, America Ladina:introdugio a uma abertura, Rio de Janeiro: Colégio Freudian dy Rio de Janeiro, 1981. Ver jean-Bertrand Pontalis e Jean Laplanche, Vocabulério da psicandlise, Santos: Livasia Martins Fontes, 1970. Ver M.D. Magno, op. cit. Ver Jean-Bertrand Pontalis e Jean Laplanche, op. cit. ‘Ver Martin Bernal, Black Athena, New Brunswick: Rutgers University Press, 1987. Ver Gérard Leclerc, Anthropologie et colonialisme, Paris: Fayard, 1972. Ver Lélis Gonzalez, "Nanny: pilar da Amefricanidade”, op. ct. ‘Wayne B. Chandler, "The Moor: Light of Europe's Dark Age’, in Ivan Van Sertima (o: Presence in Early Europe, 3rd ed, New Brunswick-Oxford: Transaction Books, 1987 10 Ver Lélia Gonzalez, “Nanny, pilar da Amefricanidade”, op. cit. Ver Roberto DaMatta, Relativizando: uma introdugao a antropologia, ¢* ed., Petrépolis: Vozes, 12 Ver Lélia Gonzalez, “Nanny, pilar da Amefricanidade”, op. cit. 25 Ver Lélia Gonzalez, "Por um feminismo afrolatinoamericano’, op. cit. 44 Ver Walter Rodney, How Europe Underdeveloped Africa, and ed., Washington: Howard University Press, 1974, 35, Tive a honra de conhecé-lo e receber seu estfmulo, em um seminério promovido pela. Universidade da Califérnia em Los Angeles, em 1979. 16 Ver Frantz Fanon, Os condenados da terra, 2° ed., Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1979: Pele negra, méscaras brancas, Salvador: Fator, 1983, colegio Outra gente. ” i Lélia Gonzalez, “A Socio-Historic Study of South American Christianity: The Brazilian ase", op. cit. 1 Yer Molefi K. Asante, Afrocentricity, Trenton: Africa World Press, 1988, p.31- 19 Ver Elisa Larkin Nascimento, Pan-africanismo na América do Sul: emergéncia de wma rebeliso negra, Petropolis: Vozes, 1981. 20 Ver Ivan Van Sertima, They Came Before Columbus: The African Presence in Ancient America, No" York: Random House, 1976, 21 Este trabalho é dedicado a Marie-Claude e Shawna, irmis e inheiras amefricanas, que snuito me incentivaram no desenvolvimento da ideia em unga E também uma homenages 0 honorével Abidias do Nascimento, 352 Digitalizado com CamScanner

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