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A INQUSIGAO NOS AGORES SUBSIDIOS PARA A SUA HISTORIA ap por ISAIAS DA ROSA PEREIRA Continuamos com 0 mesmo titulo, juntando alguns subsidios para a historia de tio controverso tribunal e a sua incidéncia nas nossas ilhas agarianas. Nao sabemos se os leitores se enfadario (se 6 que alguns leitores se atrevem a ler estas nnotas), Honestamente, no estado actual dos nossos conheci- mentos, pouco mais se pode fazer do que o levantamento de Fontes, Sem o conhecimento delas nfo se pode fazer historia. Tentar uma sintese seria, pelo menos, imprudéncia indescul- pavel. Os casos que vamos contar so «feias cousas», como diria (0 nosso Fernio Lopes. Que nos perdoe o leitor, mas assim vem narrado nos documentos e a vida é feita de coisas boas e de coisas mas; 0 homens de ontem como 05 de hoje sio de barro quebradica como Adio e Eva. 1. Comecemos pela histiria triste de uma pobre mulher da Ilha Terceira, Maria Machada, crist4 velha, filha de Bel- chior Machado e de Cristina Marques, neta materna de Fran cisco Marques e de Tsabel Gongalves, todas cristiios velhos, 167 naturais da referida ha, onde moravam, Como velo ter a Lisboa esta mulher, nio nos diz © processo que a Inqusicio organizou contra ela (Inquisigdo de Lisboa - Processo n.° 11.860) ‘Maria Machada vivia na Rua dos Canos, era «muller piblica> e cometia o pecado de sodomia. A Inquisi¢ao ndo fora instituida para conhecer destes pro- blemas de ordem moral que caiam sob a alcada do direito & tribunais comuns, mas os bispos acharam mais eOmodo entre gar tudo a Inquisigao, tribunal bem organizado © com meios humanos mais aptos do que aqueles que dispunham as dioceses. De resto, a Inquisi¢tio serviu para muitas outras coisas, que 0 Papa nunca sonharia ao conceder as bulas de [536 e 1547, D, Jodo TIT, em 1552, ja the cometera o encargo de julgar 05 processes de contrabando de mercadorias e armas com 0 norte de Africa, e assim se foi ampliando a sua jurisdicév. Maria Machada foi presa em 12 de Novembro de 1620, determinando 0 mandado de prisio que levasse consigo «cama fe mais fato para seu uso nevessérios A ré ouviu ler a sentenca seguinte no Autodaté que se celebrou no Rossio no dia 28 de Novembro de 1621 cordam 0s inquisidores, Ordindrio e deputados da Santa Inqul sigio, ete. que vistos estes autos, culpas © contssies de Maria Machada, eristd velMa, ratural da ha Tercera, moradora nesta cidade ao tempo de sua prisie, mulher que nunca casou, é presa que presente esta. nor que se mostra que sendo cist boaptizada ¢ como tal cbrigada a viver lima e honestamente © a dar de sua vida e costumes bom exemple, la 0 fer pelo ccontriio e de certo tempo 2 esta parte, esquecida de sua obri Gao, com multo atrevimento e pouco temor de Devs. conn tia que algumas pessoas do sexo masculino comefessem com ‘la o horrendo e abominvel pecada de axdomia contra natura, fconsimandoa por algumas vezes; o que visto, © a enormidade o cime por respeto co qual a ira de Deus veio sobre as cidades de Saioma e Gomorra, ¢ visto outrossim os breves apostilicor de Sua Santidade e provisko del-rei D. Henrique ‘de boa meméria, sendo Cardeal legado a latere, Inguisidor Geral destes reinos de Portugal. ¢ com o mais que dos autos results, mandam que a ré, Macia Machada, em pena ¢ penk 168 A INQUISICAO NOS AGORES tencia de suas culpas vi ao Autoda-fé na forma costumada ‘com uma vela acesa na mio © nele oica sua sentenca, e a condenam em dez anos de degredo para a ha do Principe e fem confiseagio de todos seus bent aplisados para o fhsco & ‘edmara real, e nas mais penas em direto comim ¢ leis 40 [Reino contra os semelhanies estabelecidas. E da maior conde: hnagio a relevam kavendo rempeito a Erafiidade do sexo © a ‘mostras de arrependimento com que confessou suas culpas, € uHras consideragies que np caso se tiveram, E mandam que seja acoitada elas ruas piblicas desta cidade citra.sanguinis efucionem. Manuel Pereira — Pedro da Site —Dom Diogo Lobo Mateus Peixoto Barreto —Dom Joo Pereira — Pedro Cardoso ‘A pena de agcites era normal nestes casos, mas 0 Inqui sidor Gera! perdoou-lha, em 3 de Agosto de 1622, porque Maria Machada, apesar de ter cerca de 36 anos de idade, estava muito doente coga; corria perigo a sua vida se fosse acoitada ‘Também the foi comutado o degredo, em 23 de Fevereiro de 1623, Em vez de ir para a Tha do Principe poderia cumprir essa pena no Brasil Tgnorase 0 destino de Maria Machada, pois nada mais nos diz 0 process. Dado o seu estado de saide, & provavel que tenha terminado os seus dias em Lisboa. 2. Os processos a que vamos agora referir-nos esto rela clonados com 0 eélebre caso do Conde de Vile Franca. Dare. mos apenas um resumo de cada um porque um dia teré de ser retomado o estudo de Braamcamp Freire '. Na verdade, relemolo e verificdmes que urge tirar esse processo do pd do Arquivo. Ié-le e comenté-lo com menos romantismo. ‘Todas as pessoas que vamos referir so acusadas de actos de sodemia com 0 Conde. Anselmo Braamcamp Freire, 0 Conde de Vits Franca e & Inqusigdo, Lisboa, 189, Imprensa. Nacional 169 ISA1AS DA ROSA PEREIRA Duarte Borges da CAmara, era juiz da Alfandega de Ponta Delgada e foi preso a 5 de Julho de 1652 (Inquisi¢do de Lisboa —Processo n° i.105). A sentenca foi lida na Sala da Inqui- siglo (no foi, portanto a Auto piblico) a 20 de Dezembro de 1652, sendo o réu condenado a cinco anos de degredo para © Brasil. Esta pena fai comutada em degredo para Castro Marim e 0 réu obteve perdio de tudo em 26 de Margo de 1654. A tinica peca interessante do processo é 0 inventario de bens que é » seguinte: os vinte ¢ trés dias do més de Agosto de mil seiscentas cinquenta © ois anos, em Lisboa, nos Estaus, estando ai em audiéncia da manhs, (0 enhores inquisidores mandaram vir perante si z Duarte Borges, réu ‘prezo contetido estes autce, e sendo presente The fol mandada tomar juramesto dss santas Evangeilhos em que pis sua mio, sob cargo do qual Ihe foi mandade dizer verdade ¢ ter segredo, © que prometeu cumprir. Perguntado que bens tem de raiz, mévels, accses passivas ¢ activas, DDisse que ele declarante tem uma quinta no lugar de Rost de Co que dista uma Igua, pouco mals ou menas, da cidade de Ponta Delgada, due consta de casas, pomares e terras de pio, ¢ tudo & vinculad, ‘Que nas terras que chamam de Séo Goneale, to limite da Calheta, tem ele declarante dezasseis moios de trigo de renda, que também sto vineulados a moraado que nestas terras que caem no limite que chamam de Santa Ana junto & dita cidade de Ponta Delgada, tem tle réu propriedades que rendem doze moios de tego, que também fo de morgado E que na Vile da Ribelra Grande tem ele declarante umas terras que Ibe foram dadas em dote, as quals rendem cinco molos € tantos alqueires de trigo. E que no limite da Fal, junto a dita cidade, tem outras terran, que também the foram dotadas. des quais the page de renda em cada um ano Jorge Anes. lavrader, cinco moos ¢ tantos alqueres. F que na Vila de Agua de Pau, tinha utras terras que também lhe foram dotadas, das quais the pagavam em casa um ano seis moles € tantos alqueires de trio. E que tinha umas casas nobras ra cidade de Ponta Delgada. onde: vivia, sitas junto a0 Colégio dos Padres da Companhia, que so forciras fem mill novecentos rejs ¢ duas galinhas a Manuel de Brum de Frias. ccumhado dele declarant B por ora se no lembrava de mais bens de raiz. 170 A INQUISICHO Nos AGORES MOVERS FE aque quanto a0s méveis nio podia declarar por menor, porgue 3° ro lembrava deles, € ue a0 tompo da prislo dele declarante se fer inven trio de todos por ordem da justice E que tinha um ex¢ravo por nome Anténio, mulato, que lhe foi datado, © & soltero, Tem mais outro exeravo por nome Manuel, 0 qual servia a ele deca rante, porque era de Dona Maria da Camara, mie dele declerante. Item Apolénia € Rutina, esceavss, que também Ihe foram dotadas. E Maria, tlha da dita Rufina, que sera de quatro ou elnco ands. um filo, de cujo tome se no lembr Hem que tinha um cavalo € uma mul E que por ora no é lembrado de mais, E aque the no deviam coisa alguma, © que ele declarante devia somente a uns mereadores uma partida de cil que impoctaria em cinquenta ‘il rei, os quais se chamarn Domingos Vaz de Brito e Pedro Gadi. E al nfo disse ¢ sssinou aqul, José Cardoso que o escrevi. Pedso de Castano ‘Belchior Dias Preto Duarte Borges da Camara Como se vé, 0 réu era pessoa abastada, Além de uma . Tinha ainda dois escravos, e duas escravas, uma das quais tinha dois, hos. Possuia um cavalo e uma mula. Quanto a dividas, devia somente uma partida de cal que importaria om cinquenta mil ress, Tratase de homem filho, de boas familias, mas que nao saiu muito chonrado> desta aventura 2 ANIT — Inquisigfo de Lisboa — Processo n° 11.105 fs, Si 8. m ISAIAS DA HOSA PEREIRA Resta, no entanto, saber se tudo seria verdade. Mas ha certos problemas a que a Histéria no pode dar resposta. Joie Serrdo de Novais (Inquisicdo de Lisboa —Processo n° $82), cristéo velho, natural da cidade de Ponta Delgada, ‘onde morava, era inquiridor, teria 37 para 38 anos quando foi reso. No processo encontrase uma certidio de baptismo extraida dos livros de Santa Clara de Ponta Delgada. ‘Alexandre de Cerqueira (Unquisigéo de Lisboa — Proceso 12 1490), solteiro, tilho de Manuel Cerqueira Rebelo, era natu- ral de Cervoes, concelho de Vila Verde. Henrique Tavares (Inquisigdo de Lisboa — Processo n.° 975), solteiro, filhe de Henrique Tavares, era natural de Ponta Delgada e foi preso a 5 de Julho de 1652. José Pacheco Meireles (Inquisicto de Lisboa — Provesso ne 983), solteiro, filho do capitio Francisco Pacheco, era natural da Ribeira Grande. Do seu proceso constam culpas de André Botelho, filho de Fernando de Macedo de Botelho © de D. Barbara de Arruda. Estes quatro mancebos tisham sido pagens do Conde de Vila France ¢ so acusados de actos de sodomia com ele, ‘As sentencas foram também lidas na Sala da Inqusicao no dia 20 de Dezembro de 1652. Jodo Serrdo de Novalis e Henrique Tavares foram conde. nados a cinco anos de degredo para o Brasil. Tgnora.se se cheyaram a embarcar para este destino. ‘Alexandre de Cerqueira foi degredado por seis anos pare Angola, constando que foi entregue 20 capitdo de uma nau a fim de seguir para aquela terra. José Pacheco Meireles foi condenado a sete gredo para 0 Brasil, com penas espirituais (oragées, j ‘A 29 de Dezembro de 1652 0 capelio do Colégio da Doutrina da Fé, ou cércere da peniténcia, atesta que ele se confessara e recebera a comunfido nesse dia. m A INQUISIGAO NOS ACORES ‘Também nao consta se foi cumprir a pena de degredo ’ Como se disse atras, importa estudar de novo 0 proceso do Conde de Vila Franca e de todos os implicados nesta questo a Tim de se esclarecer melhor todos 0s factos que se passaram, Suspeitamos quo 0 estudo de Braamcamp Freire tem muitas lacunas. 3. Jodo de Freitas (Inquisicdo de fora — Moro 443, Pro cesso n.’ 4251), cristéo velho, era natural do lugar de S. Roque, Tha de S. Miguel. Foi acusado de bigamia, problema que aparece com frequéncia em relagdo a agorianos casados que vinham viver para a Metropole. ‘A condenacéo mais ou menos igual para todos estes casos: ir ao Aute-da‘Fé em corpo, com a cabeca descoberta = com uma vela acesa na mio, abjuragto de leve suspeito na £6, agoites pelas ruas e degredo. Jodo de Freitas teve ena de degredo por seis anos para as galés «para servir a0 A sentenga fol publicada no Auto-da-Fé celebrado na Praca de Evora no dia 28 de Setembro de 1597. Nada mais se conhece acerca deste obscuro acoriano, 4. Anténio Furtado de Mendonca (Inquisieao de vera — ‘Maco 1095, Proceso n.” 11.358), natural de Angra, era filho do desembargador Manuel Bicudo de Mendonca, que fora da Junta do Fisco e Deputado da Junta do Coméreio, e de Maria de Sousa, ambos naturais da Tha de S. Miguel, © réu dissera umas blasfémias contra S. Joo Evangelista Coisa de pouca monta, cortamente, pois 0s Inquisidores no se deram a0 trabalho de lavrar uma sentenca. Na capa do rocesso consta apenas: Repreendido asperamente em Mesa 1 1 de Margo de 1701 20 facto de estes réus terem ourida ler a sentenga na Sala da Inquisigin, sem ir 20 Autoda Fé nada tom do especial. Em caso te problemas morais, que padiam escandalizar o piblico, era habitual &letuea da sentenga em privado, 13 ISAIAS DA ROSA PEREIRA 5. © longo documento que se publica em apéndice teria pouca importincia se ndo fora as referéncias & presenca de ‘tropas casteihanas na Iiha Terceira, em 1585, ¢ ao Mestre de Campo Joao de Urbina, célebre pela opressio com que gover- now 05 terceirenses e pelos vexames com que os brindou ¢ Em si o documento contém uma queixa feita por soldados castethanos contra um

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