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Duca OAD, ~~ AEMERGENCIA DE UM SABER PSICOLOGICO E AS POLITICAS DE INDIVIDUALIZAGAO Henrique Caetano Nardi e Rosane Neves da Silva RESUMO-A emergéncla de um saber psicoligico eas poitcas de indiidualizaséo. Nest artigo, buscs-se problematizararelago entre a eiergéncia de wn saber pricologico ‘na modernidade~ eo implemento de uma tecnologia especifiea de poder que Foucault cama “diseiplina”- ede que undo essa relagio acaba contribuindo ua propria “ab de uma lgicaindividunzante que prepara otereno paras sociedades de controle naatualidade. Em fngao de sua forte tendénciaadaptacionista, consdera-se que um dos ‘principals efeitos politicos da invengto da psicologia cientifica€ ode contribuir para © aperfeigoamento das téenieas de investimento do poder, a pasts da modelizagto da experigncia subjetiva em termos do que ¢ consderado norma ou desvio, Palavras-chave: saber psicoligico, dsciplna, sociedade de control indviduaticagao. pelt ds ABSTRACT - The emergence of « psychological knowledge and the polities of Indisldualization. This atcle aims at analy2ing the selationship berween the emergence ofa paychological knowledge in modemity and the implementation ofa specific power technology that Foucault nominates “dssipline”, as well as diseus in whieh way this relationship ends up contributing to the “fabrication” ofa individvaizing logic that sets up the consitions forthe emergence of consol societies in contemporary tines. Due to the strong adaptive tendencies, we consider that one of the main politcal effect ofthe invention of scientific paychology is to contribute to improve power technologies ‘modeling the subjeotive experiance in terms of whet is considered norm or deviation Keywords: prychological biowledge discipline, crrolsociery politics of ndvidualzaion Este artigo! busca problematizar a relagio entre a emergéncia de um saber psicoldgico na modernidade eo implemento de wma tecnologia politica que, 20 utilizar uma estratégia de controle mais imaterial na modelagem dos processos de subjetivacto, prepara o terreno para o advento das atuais sociedades de controle. ‘As anilses efetuadas por Foucault (1999 ¢ 1991) permitem entender como se produz esse deslocamento na diregao de uma imaterialidade das t8enicas de investimemo do poder. Foucault considera trés “modelos” de soviedade para analisar como se produz essa modelagem dos processos de subjetivacao: as sociedades de soberania, as sociedades disciplinares e as sociedades de con- trole, Cada uma delas expressa diferentes formas de atualizagdo das estratégias de exercicio do padre das técnicas de subjetivagi. Nas sociedades de sobe- rani, por exemplo, produz-se o que Foucault chama de “individualizayao ascen- dente”, on seja, uma individualizacao maxima nas regides superiores do poder: “quanto mais homem é detentor poder ou de privilégio, tanto mais ¢ marca- do come individuo, porrituas, discursos ou represeatades plisticas” (1999, p. 160), Nas sociedades diseiplinares, a individualizagao, ao contrério, é“descen- dente”: (.) d medida que o poder se torna mais anénimo e mais furcional, aqueles sobre os quais se exerce tndem a ser mais fortemente individualicados; epor ‘fscalizagoes mais que por ceriménias, por observagdes mais que por relazas ‘comemoratvos, por medidas comparativas que tém a “norma como referén- cia, endo por genealogias que dao os ancestrais como pontos de referéncia; ‘Por “desvios” mais que por proezas(ibidem, p. 160-161), ‘Nas soviedades de controle, por sua vez, tornan-se mais explicitos os obje- tivos de um poder individualizante através do “desenvolvimento de téenicas de poder orientadas para os individuos e destinadas a govemé-los de maneira ‘continua e permanente” (Foucault, 1991, p.98). Segundo Foucault, éjustamente nessa mudanga histética dos processos de individvalizagao — que se produzem a0 longo das sociedades diseiplinares € anunciam a passagem para as sociedades de controle — que encontraremos os elementos para explicara inven¢ao de um saber psicoldgico, Em suma, éneces- saio que individualizagdo se tome descendentee se espalle por tod 0 tecido social, para que as “ciéncias, anilises ou priticas com radical ‘psi™ (1999, p. 161) possam vira se eonstitur, (Omomento em que passamas de mecanismos histérco.riuais de formagde da individualidade a mecanismos cienifico-disciplinares,em que onormal tomou lugar do ancestral, ea medida o lugar do status, substtuindo assim indi. vidualidade do hiomem memordvel pela do homem ealeuldvel, esse momento em que as ciéncias do homem se tornaram possiveis, éaguele em que foram 188 _postas em funcionanento wna nova tenologia do poder e uma outraanatonia politica do corpo (Foucault, 1999. p. 161) Interessa-nos entender como se produz essa relacio entre a emer; uum saber psicol6gico na modernidade e o implemento de uma tecnologia espe- cifica de poder que Foucault chama “diseiplina” -,e de que modo essa relagao acaba contribuindo na propria “fabricagao” de uma logica individualizante, que prepara o terreno para as sociedades ce controle na atualidade. Podemos dizer «que, no conjunto das cincias hnmanas, aparecem alguns elementos que anu ciama transigdo das tecnologias disciplinares para uma dimensio mais imaterial que Foucault (1999) chama de “sociedades de controle”, cuja caracteristica é, fundamentalmente, estender a Zégica disciplinar para além dos muros das ins- titnigdes de confinamento, a fim de submeter as relagbes sociais as novas exi- séucias do poder capitalist. Podemos dizer que os desenvolvimentos iniiais de ums psicologia cientifi- a, na virada do séeulo XIX para o século XX, estariam jé relacionados a criagdo de um conjunto de téenicas voltadas para o individuo, visando “adapti-lo” socialmente, on seja,a problematic inicial que atravessa o campo de investiga- Gf da psicologia moderna aparece relacionada a uma série de questbes de orcem social. Por exemplo, # adaptagio da crianga ao mniverso escolar ea adap- tag das pessoas ao mundo do trabalho através da selegdo e orientacdo profis- sional. Desse modo, os prineipios que norteiam a producdo de conhecimento dessa nova ciéncia encontrar-se-iam fundamentados numa “ética da ‘normatividade” Badiou, 1993, . 3) que procuraria adapiarosujeito ds normase a valores definidos pela sociedade na qual ele estéinserido. Por esse motivo, Badiou considera que a psicologia ¢ uma “téenica de adaptacao e de orientagd0 social que visa & particularidade individual, © que a singulariza em relagio & sociologiae em relagdo a outs ciéncias socials” ibidem. p. 3). ‘Sendo assim, poderiamos falar de uma complementaridade entre um regime de verdade —que caracteriza 0 que Foucault (1999) chama de sociedade diseipli- har ~ ¢ 0 cariter normativo intrinseco a0 desenvolvimento do conjunto das cigneias Immanas, dentro das quais se inscreve o desenvolvimento da propria psicologia moderna, Essa complementaridade manifestar-e-ia justamente na produgdo de uma subjetividade privatizada ancorada na idéia de individuo que, por sua vez, €sustentada pela divisdo entre o dentro e o fora, Sezundo Foucault (1999), essa divisto € a principal caracteristica das sociedades diseiplinares, cuja operacionalidade encontra-se apoiada fandamentalmente sobre o modelo das instituigdes de confinamento. A produgio de uma subjetividade privatizada est, portanto,diretamente relacionada 20 desenvolvimento de uma tecnologia specifica do poder, denominada por Foucault de isciplinae cuja caracteristi- ca é justamente esta separacdo entre o “dentro” e 0 “fora”, que se encontra na base da propria dicotomia entre individuo e sociedade. 189 ‘Um dos recursos fiandamentais do modelo disciplinar era a visibilidade ja «que ela permitia evitar 0 “contigio” produzido pelo encontro dos corpos nos espagos de confinamento, Para Foueault, o panidptico de Bentham representa a figura arquitetural desse modelo, pois “organiza unidades espaciais que per- mmitem ver sem parare reconhecer imediatamente” (1999, p. 166). ‘© “esquema panéptico”, segundo Foucault, teria por “vocagio” tomnar-se ‘uma “Fangio generalizada”, difundindo-se por todo © corpo social. Aparente- mente, 0 panoptico nfo passaria de uma solugdo am problema téenico, mas, na verdade, ele é bem mais do qe isso, pois a formula de Bentham faz com que a Logica disciplinar se constitua no funcionamento de base de toda a sociedade, ‘uma vez que seu dispositive “automatiza e desindividualiza o poder’, tormando- se assim “o dingrama de um mecanismo de poder levado a sua forma ideal” (Foucault, 1999, p. 167-171). ‘Ao analisar a definicao de panoptismo formulada por Foucault, Deleuze (1986) mostra que essa nogao, enquanto tecnologia disciplinar, opera em duas diregGes: nfo apenas como méiquina concreta que permite “ver sem ser visto” (Segundo 0 modelo arquitetOnico eriado por Bentham), mas fundamentalmente como midguina abstrata que se dissemina por todo o corpo social coma finali- dade de “impor uma conduta qualquer a uma multiplicidade fmmana qualquer” (4. Essa disseminagio dos mecanismos disciplinares por todo o corpo social marearia de certo modo o apogeu do modelo diseipinar, « anuaciaria 0 surgime:to ‘de um novo tipo de sociedad néo mais caractcrizada exctusivamente pelo con- trole dentro dos espacos de confinamento, mas por uma forma de controle muito mais sutil que se produziria “a céu aberto”. Crir celas individuais em todas as, insttuigdes de confinamento a fim de assegurara ordenago das nmultplicidades ‘numanas seria uma tarefa custosae talvez ineficaz. O melhor seria difuadir os procedimentos diseiplinares ndo apenas através dos espacos de confinamento, mas, sobretudo, através da decomposigto de tais procedimentos em “proces- sos flexiveis de controle” (Foucauit, 1999, p. 174), cuja disseminagio na socieda- de seria capaz de produziro efeito buscado pelo esquema pandptico. ( dispositivo panéptico anuncia assim o apogeu da sociedade disciplinar e ‘aurora das sociedades de controle, cujo funcionamento continua sendo atra- vvessado por uma tecnologia disciplinar de um novo tipo. Evarto queentramor em sociedades de “controle” que ndo do exatamente diseiplinares. Foucault & com freqiéncia considerado como o pensador das sociedades de dtsciplina ede sua técnica principal, 0 confinamento(ndo 56.0 hospital ea prsdo, mas a escola, aféibrica, acaserna). Porém, de ato, ol 6 dos primeiros a dizer que as sociedades disciplines sd0 aquilo que estamos ddesxando para tris, o que ja ndo somos. Estamos entrando nas sociedades de ‘controle que faneionam, no mais por confinamenta, maz por controle conti- uo comunicagae instantinea (Deleuze, 1990, p. 236). 190 ‘A emergéncia de um saber psicolégico cumpre, portanto, uma importante fangio dentro da légica disciplinar, imposta pelas novas regras da sociedade capitalist O prineipal objetivo do modelo diseiplinaré, segundo Foucault (1999), jjustamente 0 de forjara idéia de individuo: aparentemente,tratava-se de “prote- get” um individuo que corteria 6 risco de perder sua “identidade” dentro de um processo de massificagio proprio do capitalismo. Por isso, era importante de- imarcar com precisioo lugar ocupado pelo sueito no sistema produtivo, através do esquadrinhamento constante de sua localizagéo no tecido social, explican- do-se assim o importante papel das insituicdes de confinamento nesse modelo. "No entanto, nfo ¢ propriamente o individvo que sera destruido nesse processo: 6 20 contritio, esse processo enquanto tal que vai criar a idéia de uma “subje- tividade privatizada”, modelada de acordo com as novas exigéncias do poder capitalise través dos diferentes meios de confinamento, a lbgica disciplinar procura- ‘va onganizar as miltiplas formas de estratificagdo da sociedade: tratava-se de distribuiros individuos no espago “segundo o principio da localizagdo imediata ouido quadriculamento” (Foucault, 1999, p. 123), tornando assim possivel clas- sificar cada individuo em seu respectivo lugar. No entanto, com 0 desenvol mento da sociedade industrial, tornava-se necessério aprimorar as teenicas de controle sobre as aglomeracdes que compunham estes diferentes estratos: “a medida que se concentra as forgas de produgdo, o importante é tirar delas © maximo de vantagens e neutralizar seus inconvenientes (roubos,interrupgto do trabalho, agitagdes, ‘cabalas’ de proteger 0s matcraise ferramentas ede domi- bar as foreas de trabalho” (ibidem, p. 122). 0 meto controle dos corpos distribu sno espaco e ordenados no tempo nio se revelava mais suficiente para atender 4 demanda de um aumento na produtividade. Era preciso que este con- trole passasse a ser exercido de uma forma mais imaterial, nfo permanecendo cireunserito apenas ao visivel; era preciso atingiro proprio modo de existéncia dos individuos, modelando seus desejos mais intimos, torando-os inofensi- ‘vos e submissos és novas regras do capital. © exervicio do poder no modelo disciplinar, através de diferentes técnicas de classificagdo e de enquadramento, vai gradualmente adquirindo uma certa invisibilidade. O“apogeu” desse modelo pode ser expresso através daquilo que Foucault (1999) chamou de “dispostivo pandptico” (p. 166), ou seja, uma trama dde mecanismos diseiplinares que estaria em toda a parte e nao apenas em alguns locais precisos e relativamente fechados, atravessando assim o conjunto da sociedade de uma forma continua e permanente. Num extremo da sociedade disciplinar, encontra-se o que Foucault enominta de “diseipling-bloco”(ibidem, 1173), cnja caracterstica é produzir uma constante visibilidade tanto daqneles que “exercem” 0 poder como daqueles sobre os quais este poder é “exercido”” Como dispositive pandptico, no entanto,o exercicio do poder torna-se invisivel « consequentemente, se desindividualiza, Eneontraremos af aquilo que Foucault 191 ‘chama de “disciptina-mecanismo”, ou seja, “um dispositive funcional que deve :melhorar exercicio do poder tomnando-o mais répido, mais eve, mais eficaz, um desenko das coergdes sutis para una sociedade que esta por vir” (ibidem, p 173) ‘A forma descontinna com que o poder se exercia no espago estratificado das instituigSes de confinamento (aisciplina-bloco) é gradvalmente substitu’ dda por um controle difiso e permanente (disciplina-mecarismo), que percorre © conjuato da sociedade sem deixar lacunas. “O controle é, assim, uma intensifica- ‘20 e tuma generalizacao da disciplina, em que as fronteiras das instituicdes foram ultrapassadas, tomadas permedves, de forma que nao ha mais distinc’o entre 0 fora e o dentro” (Hardt, 2000, p. 369). E importante assinalar que 0 panoptismo marea nio apenas 0 apogeu da sociedade diseiplinar, através de um processo de vigilaneia generalizada, mas anuncia também aquilo que esta sociedade esta deixando de ser, on seja, annn- cia a transigao para as sociedades de controle, Como vimes, o que umida S80 basicamente as formas de atualizagio do poder através de outras estratégias dlisciplinares: dagui em diante, para exereé-Lo, do basta controlar 0s corpos por meio do seu confinamento dentro de determinados espacos fechados na tenta- tiva de domesticé-los. O controle doravante devera se exercer através de formas cada vez mais sutis de assujeitamento, moléando noss0s corpos no apenas do ‘exterior, mas, sobretudo, do interior, através de uma homogeneizagao dos nos sos miodos de pensar, agire sentir. ‘Nesta passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de con- trole,€ dificil pereeber com exatiddo 0 término de uma e o advento da outra, ainda que cada uma delas se organize em tomo de prsticas distintas. como se nnesse processso houvesse um ponto de indiscernibilidade em que elas se interpenetram ese misturam, Justamente nesse ponto, onde o apogeue o declinio dda sociedade diseiplinar parecem se indiferenciar, € que nds vamos encontrar «esta mistara entre aquilo que uma determinada formagao historica esta deixando de sere aquilo qneela ainda nio & (ou que ela apenas potencialmente). F ai que encontraremos também as contligdes de emergéncia de novas produgdes de sentido, dentre as quais podemos assinalar o advento das ciéncias humanas mais especificamente, da psicologia modem: & como se, ao final do século XIX, ‘esultassem desta mistura alguns espagas vaztos que fornam possivel a inven- ‘lo de novos campos de saberes e de priticas Podemos igualmente dizer que é nesse ponto de indiscemibilidade que o poder disciplinar deixa de se manifestar exchisivamente no interior dos espagos fechados ¢ passa a operar a céu aberto,eriando novos modos de subjetivacao. ‘© modelo disciplinar, que foncionavano quacro dos dispositivesintrocuzi- dos pelasinsttuigdes de confinamento, vai revelar-se insuficiente para contro- laras novas relagbes de produgdo na sociedade industrial, surgindo a necessi- dade de capturar as foreas produtivas em novas formas de dominagio. Esse 192 modelo, caleado sobre o principio do espago fechado, perde progressivamente seu impacto enquanto poder diseiplinare, com isso, torna-se inevitivel acria- «80 de novos dispositivos eapazes de perseguir seu propésito fundamental, ou Saja, deseavolver uma tecnologia voltada para o controle continuo e permanen- te dos individnos. ‘Nas sociedades de controle, cujo protétipo é o panoptismo enquanto fun- G0 generalizada, a dominagéo nao tem mais necessidade de um espaco fechado ara exercer seu poder. Ela ultrapassa os mmuros das instituigdese se espalha por toda parte. Por essa rao, podemos dizer que é mm “meio a cén aberto” (Deleuze, 1990, p.215) que as novas formas de dominacao vém A ln ‘Essas novas formas de dominagio vio caracteriza a transigao das socieda- des disciplinares para as sociedades de controle. Na verdade nio se trata de ‘uma transigdo, mas de uma sobrepasigdo, pois virios elementos da sociedade disciplinar contimam eoexistindo com 0 novo arranjo das sociedades de con- trole.A diferenca é que auma sociedade de controle nio ha mais necessidade de _muros para o exercicio do poder. O conjunte da sociedade torna-se uma grande pristo, pois o controle se exerce de forma imeteral: ele ndo se acha mais limitado ‘um espago fechado, prescindindo das instituigdes coneretas que Ihe serviam de suporte para se apoderar apenas da lozica inerente a ela. Isso quer dizer que a logica disciplinar, enquanto exercicio do poder, continua presente, mas, desta vez, de uma forma voléfil E essa volatilizacio da logicadisciplinar que Delewze (1990) se refere quando fala que as novas formas de dominagao se prodwzem ‘num meio a céu aberto. ‘Nas sociedades de controle no ha mais lugar para wm sistema fechado, caracterizado unicamente pela descontinnidade espacial dos diferentes tipos de ‘moldes (escola, fabrica,caserna ou pristo), ou sla, pela passagem sistematica de um meio a outro a fim de garantira eficécia do exercicio do poder. Trta-se agora de um sistema aberto marcado néo mais por “moldagens distinta einter- imitentes”, mas por umn sistema em “modulagdo permanente” (Deleuze, 1990, p. 240) ‘Essa mudanga implica, sobretudo, que o individuo nfo representard apenas a parte material que seri envelopada pelo poder disciplinar: ele préprio se tomna- ri uma entidade abstrata tomada como objeto de investigagdo de um novo tervtério de saber e de priticas, que buseari vinculé-Lo a uma identidade bem determinada e de acordio com as novas exigncias do poder capitalsta. Nao se trata apenas de disciplinar os corpos, mas principalmente os investimentos do desejo no campo social. A légica disciplinar ser, no entanto, preservade, ainda aque desta vez ela nfo se apresente mais restrta a umn espago fechado, A fim de perseguirsen objetivo normative ediseiplinador, ela tratara de encerraro desejo em representagbes estereotipadas, vinculando-o a um modo de existéncia que deseacadeia, por sua vez, um processo crescente de individvalizacdo da subje- tividade (forjando a idsia de uma subjetividade privatizada), produzindo, a0 193 ‘mesmo tempo, uma progressiva modelizagto e homogensizagdo de toda experiéu- cia subjetiva. Essa passagem para as sociedades de controle nio se dé de forma stibita e ‘tepentina. Ela ndo pode ser explicada por uma relagdo meramente causal, mas portuna (J muliplictdade de processos muitas veces minimos, de origens diferentes, de localizagses esparsas, que se recortam, se repetem, ou se iam, apsiam- -seuns sobre os outros, dstinguem-se segundo seu campo de aplicagao,entram ‘em camergénciaeesbosam: aoe poucar a fachada deum métada geral Foucsul, 1999, p. 119) ‘Consideramos que a invengdo da psicologia cientifica, na modernidade, em fanglo de sua forte tendéncia adaptacionista, é um dentre os miltiplos proves- sos que vio contribuir para o aperfeicoamento das tEenicas de investimento do poder como dispositives proprios as sociedades de controle os quais se cous- tituem, especificamente, em téonicas de modelizagdo da experiéncia subjetiva em termos do que ¢ eonsiderado norma ou desvio. ‘Neste sentido, poderiamos dizer que a invengo de um saber psicologico amuncia a passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de contro- le exatamente porque, através dese principio normalizador,alogica disciplinar nio ficaré restita ao controle dos individuos no interior dos espagos fechados; cla se expande ¢ passa a se interessar por suas motivagdes, dissolvendo as fronteiras entre o espaco piiblico © o espaco privado, modelando assim tais, _mptivagdes de acordo com os interesses do sistema capitalista ‘O modelo disciplinararticulava-se em tomo de téenicas de individualizagao do poder, de vigilancia e de controle da conduta, do comportamento € das atitudes. Na sociedade de controle, o exervicio do poder dispensa as relagdes de visibilidade proprias 20 esquadrinhamento do espaco disciplinar para se apro- priar unicamente da logica que lhe € inerente. A parti deste momento, a logica disciplinar nfo tem mais necessidade de producir uma visibilidade permanente daqueles que exercem © poder ou daqueles sobre os quais esse poder serd exereido, O poder passa a ser exercido de um modo muito mais sutileimateral: ale se torna mais instantineo, finido, levee eficaz. Podemos dizer qe o controle produz uma espécie de intensificagio e de generalizagdo da logica disciplinar, construindo formas de dominagdo que, por serem consttuintes da isto de interioridade do sujeito adquirem invisibilidade e permeiam todas as esferas da vida. O controle, assim como a disciplina, nao deve ser compreendido somente ‘como restricdo, como interdicZo, mas sim como um processo de maximizacio da produtividade centrado na (auto)consttuigio dos sujeitos pelo desenvolvi- meato de determinadas tecnologias de si. Com o modelo diseiplinar foi possivel intensificar as performances, multiplicar as eapacidades, ecolocar cada indivi- ‘duo no lugar onde ele seria mais itil. Com o advento da sociedade de controle, 194 trata-se de intensificar a interiorizagdo ea invisibilidade da norma na trama da propria vida Consideramos que a invengao da psicologia modema, como campo especi- fico de saberese prticas, antecipa esta forma difusa e permanente de exercicio do poder que vai caracterizar as sociedades de controle contemporaneas nas quais se busca produzir um novo tipo de assujeitamento: nio se trata mais de um. rmolde forjado a partir do exterior, mas de uma modelagem que se produz do interior a partir de um processo de normalizagao e adaptagao, cuja finalidade & criaruma homogeneizagao dos modos de existéncia Esse processo de normalizacio eadaptaclo se proctza partir do implemento de determinadas tecuologias de si que, por sua vez, nio podem ser dissociadas do que Foucault (1985) chama de “cuidado de si” enquanto um conjunto de téenicas eexperiéneias que participam do processo de (auto)eonstituigao trans formacio do sujeito. Quando Foncanlt (1994) analisa as ecnologias associadas a0 cuidado desi dos aregos,eleassinala que tai téenias desi eram indissociadas do cuidado dos outros e construidas no sentido da busca da boa vida, da transtormagdo da vida numa obra de arte, da busca de una estética da existén- cia. Hoje, ao contrério, os us0s das préticas e saberes psicolbgicos construiram ‘um jogo de individualizacao que invisbilizaeisenta o compromisso do sujeito 1 lage social. E 0 thes do cuidado que se transforma na atualidade, enfatizando 0 cardter individualizante e totalizador das tecaologias de si. Hoje em dia, 0 dispositive de controle age sobre 0 sujeito obrendo como efeito a ilusdo da diferenga, no sentido que a suportamos ea toleramos, mas nio estamos implica- das no jogo da alteridade e do respeito ao outro. Podemos dizer que o saber psicolégica toma o cuidado de si como um dispositive privilegiado de normalizacao e de adaptacio, cujo mecanismo marca 0s jogos de poder do capitalisme moderno. Dispositivo como mecanismo de dominagdo, como operadores materiais do poder, ist &,técnicas, estratégias € formas de sujeigdo que se apbiam em diseursos e prétieas. Trata-se de um con {junto heterogéneo de discursos, instituigdes, formas arquitetonicas, egras, pro- posigdes floséficas e moras, o dito assim como o nao-

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