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Copyright © 2003 dos autores Todos os direitos desta edigdo reservados & Funpagao Oswatpo Cruz / Eprrora ISBN: 85-7541-024-5 1° edigao: 2003 ¥ reimpressao: 2003 2* reimpressao: 2004 3* reimpressao: 2005 4 reimpressio: 2008 Capa, projeto grafico e editoragao eletranica Guilherme Ashton Imagem da capa Produzida a partir do quadro Troncos Ul, de Sandra Felzen. Nossos agradecimentos a artista pela cessio de direitos de uso das imagens para elaboragao da capa Preparacdo de originais, copidesque e revisdo Janaina S. Silva e Maria Cecilia G. B. Moreira Catalogacao na fonte Centro de Informacao Cientifica e Tecnol6gica Biblioteca Lincoln de Freitas Filho C998p —Czeresnia, Dina (org) Promogao da satide: conceitos, reflexdes, tendéncia. / organizado por Dina Czeresnia. — Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003 176 p 1. Promocao da Satide - tendéncias. 2. Vigilancia da Populagao. 3. Politica Social. I. Freitas, Carlos Machado de (org). Il. Titulo. oe eZ CDD - 20.ed. - 613 2008 TORI, Eprrora Fiocruz ~ Zo, Av. Brasil, 4036 ~ 18 andar ~ sala 112 ~ Manguinhos 21040-361 - Rio de Janeiro - RJ Tel: (21) 3882-9007 / Telefax: (21) 3882-9006 e-mail: editora@fiocruz.br 7 http://www. fiocruz.br roma PREPELEPPPPPPPREEEETERTTTTTTETETITTITAAAOSCOAAAe( SFRVIFFIFFIFFFFFIFIIFIFFFFIFGIFFIFFDIFFFFFIFIHFIIFDIDIFIIBAIBIIS Sumério Apresentacio .. - Uma Tnlrodugio ao Conceito de Promogio da Saitde Paulo Marchiori Buss we 1S 2-O Coneeilo de Saiide ¢ a Diferenca entre Prevengio e Promoio Dina Czeresnia . 3- A Saiide como Abertura ao Risco Sandra Caponi 4- Dédalo ¢ os Dédalos: identidade cultural, subjetividade e os riscos & saiide Luis David Castiel . a 5 - Holopatogénese: esboro de uma teoria geral de satide ~ doenga como base para a promogio da Saside Naomar de Almeida Filho & Roberto Fernandes Silva Andrade ..... 97 6 - O Conceito de Uulnerabilidade ¢ as Préticas de Sattde: novas perspectivas e desafios José Ricardo de Caroalho Mesquita Ayres, loan Franga Jitnior, Gabriela Junqueira Calazans & Haraldo César Saletti Filho ... OF 7- A Vigilancia da Saide para a Promogio da Saide Carlos Machado de Freitas ...... 8 - Vigilancia da Satide: tendéncias de reorientagio de modelos assistenciais para a promogao da saide Jairnilson Silva Paim.... A Satide como Abertura ao Risco Q Sandra Caponi JI ntroducéo Hoje, mais do que nunca, tudo parece nos levar a afirmar que uma compreensdo do conceito de satide depende de parametros cientifica e claramente estabelecidos Os recentes estudos genéticos parecem estar abrindo um horizonte ilimitado de possibilidades terapéuticas e de prevengio de enfermidades. Por trés do impacto provocado por estudos como o projeto genoma humano, a satide perfeita parece ter deixado de fazer parte da utopia para entrar no horizonte do possivel.O mapeamento dos genes, que predisporiam nosso organismo a determinadas enfermidades, e a possibilidade de intervir na prevencdo de certos riscos nos permitem imaginar um futuro promissor. Nao somente as intromiss6es no interior do organismo de cada individuo parecem trazer novas esperancas, mas também multiplicaram-se os conhecimentos e a identificaco dos riscos que ameacam a satide das populacdes. A bioestatistica e a aplicagio da tecnologia de informatica na aco sanitéria nos permitem mapear 0s riscos mais freqiientes nas diferentes populac6es ¢ criar estra- tégias de prevencao das enfermidades e de promocao da satide a partir de campa- nhas sanitdrias bem direcionadas. Se, por um lado, podemos definir claramente os cédigos genéticos ‘defeituosos’, demodo a poder evitar o aparecimento de anomalias genéticas, ¢ se, por outro, podemos definir condutas e aces de risco para controlar as enfermidades, 6 porque temos muito claro que é isto © que deve ser alcangado com estas intervengées. No primeiro caso, trata-se de nos aproximarmos do que seria um cédigo genético normal; no segundo, trata-se de estimular a prevengio de atos e condutas visando a garantir a existéncia de populacées saudaveis. Porém, se nos interrogarmos sobre este cédigo genético normal ou, de um modo mais amplo, se nos perguntarmos qual é 0 estado saudavel que se quer alcancar com essas agbes, veremos que, quase inevitavelmente, os conceitos de satide e de normalidade tendem a se confundir com 0 conceito de ‘freqiiéncia’. 55 FHFFFFFFFFFFFFFFFFSFFFFFEFFFFEFESFSFIFIFFDIIIITIIFBIGEGIS sore eee TTT TOA IAAF PSSZIFBAIFZDIFDIIAIGFIFIZIAIIDE Promogdo da Saide O saudavel se define pela busca de um cédigo genético normal, sem alteracdes ou anomalias, ¢ essa normalidade se define em termos de freqiiéncia estatistica: 0 que se encontra em maior quantidade na média da populacio. E entdo que comecgam a aparecer as dificuldades dessas tentativas de definir em termos ‘cientificos’ 0 conceito de satide. Se nos restringirmos aos valores que devem ser considerados normais para um determinado 6rgao, veremos que “nao encontramos apenas um intervalo normal para cada funcao de um érgao: rigorosamente falando, encontramos um ntimero infinito destes intervalos” (Nordenfeld, 2000: 60). Se nos referirmos a0 cédigo genético ‘normal’, veremos que existem infinitos exemplos de variacdes ¢ desvios, de ‘anomalias’ que no podem ser, em absoluto, consideradas como de valor negativo ou patoldgicas. Reconheceremos que, assim como nao € poss{vel identificar anomalia com patologia, é impossfvel associar normalidade e satide Ainda hoje, esta associacao entre satide e normalidade parece ser a base de sustentacdo daquela que poderiamos considerar como a definicao mais corriqueira €, sem dtivida, a mais utilizada pelos profissionais da érea de satide. Pensemos, por exemplo, na definicio do conceito de satide enunciada por Christopher Boorse, teferindo-se & normalidade no cumprimento das fungées das diferentes partes do organismo: “O normal € objetiva e propriamente definide como aquele cuja fiungao esté em acordo com o seu desenho” (Boorse, 1975: 57). Nesse caso, o elemento essericial para a definicéo de desenho bioldgico é a nogéo de funcéo natural qualquer alteragao nesta funcao pode trazer ou provocar enfermidade. A savide é pensada, entéo, como auséncia de doenca e, inversamente, a doenga se define como: “o estado de um individuo que interfere nas fungdes normais (ou no funcionamento normal) de alguns érgaos ou sistema de érgios” (1975: 61) Assim sendo, quando nos interrogamos sobre a funcéo normal de um 6rgao ou um sistema de 6rgios, deveremos nos referir necessariamente funcAo estatistica- mente representativa, isto é, ao resultado encontrado na média da populacao. Como vemos, quando Boorse define seu conceito bivestatistico de satide-enfermidade, nao existe nenhum espaco para sofrimentos individuais. Existem valores padroes Gessas fungdes normais e uma alteracao nesses padrées, independentemente de qualquer vinculacao as capacidades ou ao sofrimento dos individuos, 0 que indica- nia interferéncia nestas fungdes, subnormalidade ou patologia. Quando falamos de mapa genético ¢ de cédigo normal, reproduzimos e ampliamos esta definigao bioestatistica dada Por Boorse, e reiteramos também seus limites e circularidades: a freqiiéncia aparece, as vezes, como parametro de normalidade e a identificagao entre satide e normalidade se apresenta como inquestionavel. O presente trabalho, pretende analisar os conceitos de satide, doenga, normali- dade e patologia tentando fugir de uma modalidade de estudos que limita a discus- Sdo a questdes tais como freqiiéncia estatistica, desvio, normas etc, \A Satide como Abertura ao Risco A Problematizacaio Filoséfica da Satde Embora a definigao estatistica dada por Boorse seja posterior aos estudos sobre normalidade, patologia, satide e doenca desenvolvidos por George Canguilhem, quase 30 anos antes, podemos tentar compreender os argumentos explicitados em O Normal e 0 Patolégico (1990a) como uma resposta a definicéo de satide- enfermidade enunciada por Boorse. Para Canguilhem, nao é poss{vel reduzir 0 conceito de satide a um termo ‘cien- tifico’. Considerando que é impossfvel associar normalidade e satide, ou anomalia e patologia, o recurso as medidas estatisticas, aos valores freqiientes e aos célculos nada nos esclarece a respeito deste conceito. Nao é possivel imaginar que a vida se desenvolva na solidao do organismo individual, nem que possamos alcangar um conhecimento dela pela comparacio entre organismos. “O ser vivo e o meio no podem ser chamados de normais se forem considerados em separado” (Canguilhem, 1990a: 145); s6 se pode afirmar que um ser vivo é normal se o vincularmos ao seu meio, se considerarmos as solugdes morfoldgicas, funcionais, vitais, a partir das quais ele responde as demandas que seu meio Ihe imp6e. “O normal é poder viver em um meio em que flutuacdes e novos acontecimentos so possfveis” (Canguilhem, 1990a: 146). Dito de outro modo, n&o so as médias estatisticas, nem a fuga dos intervalos assim chamados normais que nos indicam 0 momento em que se inicia uma doenga, mas sim as dificuldades que o organismo encontra para dar respostas as demandas que seu meio lhe impée. E é justamente a consideracio deste sofrimen- to e deste sentimento de impoténcia individual que escapa &s médias estatisticas; 0 que nos permite tentar uma definigéo menos restrita do conceito de satide, Dagognet (1996: 19-20) diré, tomando como exemplo o diabético, que nao é possivel ater-se a dose de acticar para afirmar um diagnéstico. Devemos renunciar a uma teoria puramente quantitativa da doenga. Escutemos 0 doente, Porque a verdadeira diabetes implica um ‘conjunto’ que ultrapassa a pura e simples glicemia. Nao somente diz respeito ao pancreas, mas também afeta a circulacdo. A doenca sempre se irradia como se 0 organismo todo estivesse afetado, como se ele estivesse limitado em suas iniciativas. Estar doente €, ento, perder a liberdade, é viver na restricao e na dependéncit Mirko Grmek formularé a seguinte pergunta: “Quando 0 médico, o doente e 0 entorno do doente falam de doenca, sera que eles se referem verdadeiramente & mesma realidade?” (1995: 17). & por isso que, para tratar de dotar 0 conceito de doenca de uma especificidade maior, a literatura cientifica utiliza 0 termo disease para referir-se & conceitualizagio de enfermidade/doenca realizada pelo médico; 0 termo illness para designar a experiéncia subjetiva da doenca, a vivéncia ou sofrimento individual; e se reserva um terceiro termo, sickness, para designar a percepgao da doenga pelo entorno nao médico da pessoa afetada CITTTCTELCKCCELELLELTCKCEEEKCEREELELOCEE ERE CECCCOE ROCCO LEE BHRBFFFFPSPPIPPPFPIPIPFPFPIFAPIPIPIPIIPFISIPIS SP SIPIIIFPPIS SES eeeesy Promocie de Sade Um conceito operative de satide devera integrar esses aspectos sem reduzir-se a uma definicgo negativa (auséncia de desense, illness ou sickness). Acreditamos que, para construir este conceito, serd necessArio desviar o olhar, aproximar-se desta questo n&o com os instrumentos do cientista, mas sim com os argumentos do filésofo. A problematizagao da satide como uma questao filoséfica parece ter, a0 menos, duas justificativas plausiveis. A primeira é que a satide foi um tema filoséfico freqiiente na época classica; dela ocuparam-se, entre outros autores, Leibniz, Diderot, Descartes, Kant e, posteriormente, Nietzsche. Porém, quando falamos de satide, parece ter sido Descartes quem se converteu em referéncia obrigatéria, e isto desde © momento em que Ihe é atribuida a “invengo de uma concep¢&o mecanicista das fungdes organicas” (Canguilhem: 1990b: 20). Para ele, é essencial respeitar a distingao, entre um mecanismo e um corpo humano, conforme o que se indica na “VI meditacao”; nao é possivel estabelecer uma identidade, por exemplo, entre um “reldgio desregulado” e um “homem hidrépico” (Descartes, 1981: 73). Esta distincdo, que difere daquela que podemos fazer entre um relégio regulado e um desregulado, indica a diversidade existente entre a regulagem das méquinas e as funcées organicas de um homem. Tal como afirma Maurice Merlea -Ponty (apud Canguilhem, 1990b), seré também Descartes quem reconhecerd a existéncia de uma parte do corpo humano vivo, inacessivel aos outros, que 6 pura e exclusivamente ‘acessivel a sew titular’. Serd justamente a partir desta indicacdo de Descartes que Canguilhem construird sua argumentacdo referente A satide como um conceit vulgar € como uma questo filos6fica — ainda que insista na necessidade de no se levar a sério 0 mecanismo cartesiano, pois, conforme dir, é impossfvel falar de satide de um mecanismo. A segunda justificativa para a problematizacdo da satide como questao filoséfica serd enunciada por Canguilhem em La Santé: concept oulgaire & question philosophique (1990b). Neste livro, o autor nos lembrar4, acompanhando Melreau-Ponty, que “a filosofia é o conjunto de questdes onde aquele que questiona é, ele préprio, questio- nado” (Canguilhem, 1990b: 36). Na medida em que todos nés compartilhamos esses fatos prdprios da condicéo humana, que so o padecimento da dor e do sofri- mento, e na medida em que todos vivemos silenciosamente este fendmeno ao qual damos 0 nome de satide, parece que todos, sendo ou nao, profissionais da satide, devemos nos deparar, inevitavelmente, com esta questao. _Como afirma Nordenfeld (2000), a satide nao tem sido um fenémeno alheio & teflexao filoséfica, ainda que muitas vezes tenha ocupado um lugar marginal entre outras questes mais valorizadas pelos filésofos, como a ética ou a politica. De fato, no foi $6 a filosofia cléssica que se ocupou da satide, basta para isso que lembremos de Nietzsche, Maurice Merleau-Ponty e Georges Canguilhem; eles consideraram a satide como objeto de problematizacao filoséfica. O primeiro, em suas preocupacdes com o sofrimento individual; o segundo, centralizando-se na tematica da 58 A Saiide como Abertura ao Risco corporeidade, ¢ Canguilhem, ao interrogar-se sobre a oposico normal-patolégico ¢ sobre a hist6ria das ciéncias biomédicas, Tanto na primeira edi¢ao de O Normal e o Patolégico, que data de 1943, como nos ensaios que depois de vinte anos dardo lugar A verso revisada desta obra, Canguilhem tomara como ponto de partida, para analisar 0 conceito de satide, 2 terceira parte do livro Conflito das Faculdades (1967), de Kant: Podemos nos sentir bem, isto quer dizer, julgar segundo nossa impressio de bem- estar vital, porém nunca podemos saber se estamos bem. A auséncia da impresséo (de estar doente) nao permite ao homem expressar que ele esta bem sendo aparentemente, 86 pode dizer que ele esté aparentemente bem (Kant apud Canguilhem, 1990b: 13 - Grifos do autor). Kant sugere, nestas linhas, que a satide é um objeto alheio ao campo do saber objetivo, e é a partir deste enunciado que Canguilhem péde sustentar stia tese de que ‘nao ha ciéncia da satide’. A satide, dird ele, “niio é um conceito cientifico, 6 um conceito vulgar. Isto ndo quer dizer trivial, mas simplesmente comum, ao alcance de todos” (1990b: 14). Digamos 0 mesmo de outro modo: a satice no pertence a ordem dos célculos, nao € o resultado de tabelas comparativas, leis ou médias estatfsticas , portanto, seu estudo nao é exclusivo das investigacées biomédicas, sejam elas quantitativas ou nao. Canguilhem mostraré que fisiologistas e bidlogos preferem prescindir da exigéncia de enunciar um conceito de satide. Este € 0 caso de Stariling, fisiologista inglés, inventor do termo ‘horménio’, em cujo tratado nao aparece em nenhum momento indexada a palavra health. Claude Bernard, por sua vez, parece associar satide com divagacées metafisicas, afirmando que: "Somente existem em fisiologia condig6es préprias para cada fendmeno que devemos determinar exatamente, sem nos perdermos em divagagées sobre a vida, a morte, a satide, a doenca e outras entidades da mesma espécie” (Bernard apud Canguilhem, 1990b: 19), Esta exclusao explicita do conceito de satide do ambito do discurso cientifico aparece a partir do momento em que nos negamos a aceitar esta antiga e arraigada associacao pela qual se veicula a satide do corpo com a eficiéncia de um mecanismo. Se ndo aceitarmos a associagéo corpo-mecanismo e pensarmos que para uma maquina seu estado de funcionamento nao é a sua satide e © seu desarranjo nada fema ver com a doenca, deveremos, entdo, excluir do conceito de satide as exigéncias de célculo (de contabilidade) que pouco a pouco absorveram o seu sentido individual esubjetivo. A partir do momento em que falamos da satide como um fendmeno “no contabilizado, nao condicionado, nao medido por aparelhos”, parece que ela deixa de ser um objeto exclusivo “daquele que se diz ou se imagina especialista em satide” (Canguilhem, 1990b: 24). Lembrando Dagognet, Paul Rabinow (1999: 127) afirma que “Canguilhem deslanchou um ataque frontal aquele edificio da normalizacdo tao essencial aos ile ab aie TUTERTARRATAERERET EERE ORCC ERE O connor | Promoio de Saide procedimentos da ciéncia e da medicina positivistas. E 0 sofrimento, e nao as medi- acdes normativas ou os desvios-padrao, que estabelece o estado de doenga”. Quan- do falamos de satide, nao podemos evitar as referéncias & dor ou ao prazer e, desse modo, estamos introduzindo, sutilmente, algo que escapa as medicdes, algo que Canguilhem chamou de ‘corpo subjetivo’. Se considerarmos este elemento, nao po- deremos deixar de falar na primeira pessoa, ali, onde 0 discurso médico teima em falar na terceira. A trajetoria de Canguilhem como epistemologista ¢ historiador das ciéncias nos impede de pensar que estas afirmagées pretendam defender uma volta natu- reza selvagem ou a um individualismo radical. Canguilhem cuidaré de manter distancia entre 0 conceito de corpo subjetivo, ‘satide em estado livre’, dessas moda- lidades de pensamento que so 0 naturalismo ¢ 0 anti-racionalismo. Ele é conscien- te de que “a defesa da satide selvagem, privada, por desconsideracao da satide cientificamente condicionada adotou todas as formas possiveis, inclusive as mais ridiculas” (Canguilhem, 1990b: 34). O corpo subjetivo nao é 0 oposto do saber cientffico, um no representa a alteridade radical do outro. Pelo contrério, o corpo subjetivo precisa destes saberes que Ihe indicam e sugerem uma série de artificios titeis & sua sustentagao, pois uma coisa é preocupar-se com 0 corpo subjetivo e outra é pensar que temos a obrigacao de nos liberarmos da tutela, julgada repressiva, da medicina (...). O reconhecimento da satide como verdade do corpo, no sentido ontolégico, ndo sé pode, mas também deve admitir a presenga, como margem e como barreira da verdade no sentido ldgico, ou seja, da ciéncia. Certamente, o corpo vivido nao éum objeto, mas para o homem viver é também conhecer. (Canguilhem, 1990b: 36-37) Assim, estes conhecimentos que consideram o corpo como objeto sao aliados e nao inimigos de uma compreensao mais ampla do conceito de satide. Esta satide sem ‘idéia’, ‘presente e opaca’ é, de todos os modos, o que valida e da suporte as intervengées que o saber médico pode ‘sugerir’ como artificios para sustenté-la. E se falamos em sugerir é porque é preciso que o saber médico se disponha a aceitar que cada um de nés o instrua sobre o que ‘somente eu estou capacitado a dizé-lo’. Um bom médico serd, ento, aquele que possa auxiliar na tarefa de dar o sentido que para cada um no é evidente, a este conjunto de sinto- mas, que, de maneira solitéria, nao se consegue decifrar. Um verdadeiro médico, diré Canguilhem, ser4 aquele que aceitar ser um exegeta, um tradutor, mais do que um conhecedor. O certo é que aceitar um determinado conceito ou idéia de satide implica escolher certas intervencées efetivas sobre 0 corpo e a vida dos sujeitos Canguilhem far uma referéncia importante sobre este ponto, dizendo que “o mesmo homem que militou para uma sociedade sem escolas apelou para uma insurreigéo contra o que chamou de expropriagio da saride” (1990b: 34 ~ grifos do autor), fazendo, assim, uma clara alusio a Némesis de la Medicina, de Ivan Ilich (1975). PUVVSSESEELEREESEEEEEEEEEEEEFEEFIIFIFEELELEL 60 S¥¥¥ 1A Suiide como Aberiura ao Risco individuais e implica, a0 mesmo tempo, uma redefinicao deste espaco onde se exer- ceo controle administrativo da satide dos individuos, entendidos como grupo hu- mano, como populacao. cA Satide como Margem de Seguranca O conceito vulgar de satide, que escapa de qualquer calculo, tanto de médias estatisticas como de medicao por aparelhos; esta satide ndo condicionada é pensada por Canguilhem em termos de ‘margem de seguranca’. Por isso, ele dird que, a0 falar de uma satide deficiente, estamos falando da “restricao da margem de seguranca, da limitacéo do poder de tolerancia e de compensacéo As agressdes do meio ambiente” (1990b: 35). Como vemos, 50 anos depois, Canguilhem permaneceré fiel aquilo que chamou de um esboco de definigio de satide no ano de 1943: a satide era entendida, entao, em relacao A possibilidade de enfrentar situages novas, pela margem de tolerancia (ou de seguranga) que cada um possui para enfrentar e superar as infidelidades do seu meio. Talvez a maior riqueza da andlise de Canguilhem consista na sua insisténcia em tomar como ponto de partida as infidelidades, os erros. O Normal 0 Patalégico (1990a) introduz uma importante inversao nos estudos referentes a satide; uma inversao em que se privilegia o estudo das anomalias, das variacdes, dos erros, das monstruosidades, clas infracOes e das infidelidades para assim compreender e tentar demarcar 0 alcance ¢ os limites dos conceitos de normalidade, média, tipo e satide Canguilhem enfrenta, desse modo, toda esta tradic3o médica que privilegia o normal e que imagina e reduz qualquer tratamento a um restabelecimento da normalidade perdida. Para esta tradicao, “A pratica médica estava direcionada a estabelecer cientificamente estas normas e ~ a pratica seguindo a teoria — ao retorno do paciente a satide, restabelecendo a norma da qual o paciente se desviara” (Rabinow, 1999: 127), Como o proprio Canguilhem diré, 20 anos da primeira edicéo: “hoje insistiria na possibilidade e ainda na obrigagio de esclarecer as formagées normais pelo conhecimento das formas monstruosas. Afirmaria ainda com maior conviccéo, que nao ha diferenca entre uma forma viva perfeita e uma forma viva malograda” (Canguilhem, 1990a: 13). Este privilégio concedido ao erro nos fala claramente de um conceito de satide, que ¢ alheio a qualquer padronizacao e a qualquer determinagio fixa e preestabelecida. © conceito de satide, que seré enunciado a Parlir daf, devera considerar e integrar as variagdes e as anomalias, devera poder atender as particularidades daquilo que para uns e outros esté implicado em sua Percepcao do que é ‘satide’ e ‘doenca’. 61 [ERECT E EEOC OOOO OOOO ewanamanae [PPVVPVTOFEFFIFSRSPESSOS SORE EDEEEEHBEHEEHEFDHBASSEEEEEES Promocio da Satide Seguindo esta mesma linha de argumentacdo, Christophe Dejours afirmaré, referindo-se especificamente a0 mundo do trabalho, que: “E a variedade, Gio, as trocas, 0 que resulta de mais favorével A satide” (Dejours, 1986: 8). @ Varia- Pensar a satide a partir de variagdes e de anomalias implica negar-se a aceitar um conceito que se pretenda de valor universal e, conseqiientemente, implica ne- gar-se a considerar a doenca em termos de desvalor ou contravalor. Ao contrario de certos médicos sempre dispostos a considerar as doengas como crimes, porque os interessados sio de certa forma responséveis, por excesso ou omissao, acreditamos que o poder e a tentacéo de tornar-se doente é uma caracteristica essencial da fisiologia humana. Transpondo uma frase de Valéry, pode-se dizer que a possibilidade de abusar da satide faz parte da sade (Canguilhem, 1990a: 162) A partir dessa perspectiva, a satide pode ser pensada como a possibilidade de “ficar doente ¢ de poder recuperar-se, como um guia regulador das possibilidades de acao” (Canguilhem, 1990a: 146). Esta possibilidade de abusar da satide pode ser compreendida a partir das atuais polémicas referentes & necessidade de que as estruturas organicas satisfacam 0 requisito de Symorphosis (Weibel, 1998: 2). Com isto, quer-se designar este ajuste, ao qual se refere Boorse, entre desenho estrutural € requerimento funcional ou organico. Esta tese supée que o desenho dos organismos tende a ser dtimo, quer dizer, que nao existe estrutura além daquela necesséria para cumprir uma fungao” (Weibel, 1998: 3). Pelo contrario, para Canguilhem, o que caracteriza os organismos é a sua prodigalidade, um certo excesso de cada um dos nossos 6rgdos, que nos permite garantir uma certa margem de seguranga acima do desempenho normal. “Pulmao demais, rins demais, pancreas demais, ainda cérebro demais se limitassemos a vida a vida vegetativa. O homem se sente portador de uma super abundancia de meios, dos quais € normal abusar” (Canguilhem, 1990: 133). Porém, se por um lado o conceito de satide se refere as fungdes organicas; por Outro, deve referir-se também ao ‘corpo subjetivo’. £ a partir desta singularidade que deve ser pensado o ser vivo: “este existente singular cuja satide exprime os Poderes que 0 constituem, a partir do momento em que deve viver sob a imposigao de’ tarefas, isto é em relacéo de exposico a um meio que ele proprio escolheu” (Canguilhem, 1990b: 22). £ esta polaridade dinamica com o meio que define um ser vivo. Trata-se, simultaneamente, de uma atividade polarizada, os dois pélos so satide e enfermidade; a0 mesmo tempo, trata-se de uma atividade normativa, na qual se indica que um desses pélos é o desejével enquanto o outro deve ser evitado. Esta polaridade dinamica difere em cada um de nés e esta diferenca torna-se radical no modo como representamos 0 conjunto de capacidades ou poderes que possuimos Para enfrentar as agressoes a que estamos inevitavelmente expostos. Sendo assim, este corpo nao é uma esséncia presente para sempre sem que suponha uma certa duplicidade. Por um lado, é aquele que nos é dado, seu genstipo; Por outro, é algo que pertence a ordem do efeito, é um produto, seu fendtipo. E no 62 \A Saiide como Abertura ao Risco jogo desta duplicidade que se recortam as singularidades e que se definem as capacidades para enfrentar as infidelidades. No Primeiro caso, e ao falar das composigées peculiares do patriménio genético que existe em cada um de nés, Canguilhem ressaltard que os erros de codificagio genética podem ou no determina a existéncia de patologias conforme as demandas impostas pelo meio aos sujeitos, Ele insiste em afirmar que uma anomalia, seja ou nao genética, ndo pode ser associada imediatamente a uma patologia. As anomalias Ppossuem valor neutro enquanto as patologias, valor negativo. Assim, uma anomalia s6 poderd ser considerada patoldgica se estiver vinculada a um sentimento direto e concreto de sofrimento, ‘um sentimento de vida contrariada’. Neste caso, e somente neste caso, estarao justificadas as intervencdes na cédigo genético com sentido terapéutico. Porém, 0 corpo no 6 86 0 resultado de seu patriménio genético, tese elementar que 08 novos estudos parecem teimar em esquecer (Dagognet, 1996: 55), 0 corpo deve ser compreendido como 0 efeito, como 0 produto, e é entéo que surgem questdes teGricas e politicas, que merecem ser analisadas detidamente. “O corpo é um produto na medida em que sua atividade de insercdo em um meio caracteristico, seu modo de vida escolhido ou imposto, desporto e trabalho contribuem para mo- delar seu fendtipo, isto é, para modificar sua estrutura morfolégica, levando a sin- gularizar suas capacidades” (Canguilhem, 1990b: 24). Diversas sao as questdes a serem consideradas com relaco ao vinculo satide- sociedade. Existem condigdes de vida impostas, convivéncia em um meio com determinadas caracteristicas que nao séo nem poderiam ser escolhidas: alimentagio deficiente, analfabetismo ou escolaridade precéria, distribuicdo perversa da riqueza, condigdes de trabalho desfavoraveis, condicdes sanitérias deficientes. Todas essas caracterfsticas constituem um conjunto de elementos que precisa ser considerado na hora de programar politicas ptiblicas e intervengdes com tendéncia a criar formas de transformacao dessas desigualdades que reconhecemos como causas de Predisposicao para diferentes enfermidades. Até aqui a etiologia social da doenca Ros remete ao ambito do puiblico, e é nesse Ambito que deveriam delinear-se as estratégias de intervencao. Porém, existem estilos de vida escolhidos, eleicdes condutas individuais pertencentes ao Ambito do privado que também consideramos como dados a serem explicitados quando falamos de ‘etiologia social’. E preciso lembrar que a normalizacao das condutas e dos estilos de vida faz Parte do préprio nascimento da medicina social. Desde 0 seu inicio, 0 Ambito do Publico e o ambito do privado comecaram a misturar suas fronteiras, fazendo com que as politicas de satide se convertessem em intervenes, muitas vezes coercitivas, sobre a vida privada de sujeitos considerados ‘prom{scuos’, ‘alienados’, ou simplesmente ‘irrespons4veis’. Ao falar do corpo como um produto, devemos considerar a complexidade dessa distinc’ aparentemente trivial - basta pensar nas politicas de vacinacdo ~, pois até hoje parece existir uma falta de simetria entre (PERERA EEAREERERETEREHELEREEEREREEEEEOEE OE OOOOEDOS VUFHVVHFHODIFDIVHOVO DIDO OSV DIVAS II IIFDIVIIIIEEDS Promocéo de Saide as intervencdes que privilegiam um ou outro desses ambitos. Tudo parece indicar que é mais simples normalizar condutas do que transformar condigdes perversas de existéncia. Giovanni Berlinguer (1996) diferenciard estes dois espacos de intervengdo ao referir-se a0 conceito de iniqitidade. Acompanhando Margaret, ele considera que devem ser pensadas como diferencas injustas, como iniqiiidades, aquelas derivadas de comportamentos insalubres, quando a escolha do individuo é claramente limitada; a exposicao a condicées de vida estressantes ¢ insalubres e 0 acesso inadequado a servicos de satide essenciais. Pelo contrério, nao podem ser consideradas injustas as diferencas derivadas de condigées naturais, patriménio genético, por exemplo, nem os comportamentos prejudiciais satide que foram livremente escolhidos Para Berlinguer, é preciso dirigir as politicas ptiblicas para controlar as desigualdades do primeiro grupo, evitando intromissoes indesejaveis em condutas que os individuos tenham escolhido livremente. As intervencées que tendem a diminuir a exposicao a condigdes de vida insalubres resultam essenciais se compreendermos que a satide sé pode ser pensada esta polaridade dinamica, vinculada ao individuo e ao meio. E no interior de um meio capaz de garantir uma existéncia saudével que o individuo pode constituir-se como um sujeito capaz de rio, a diminuicao da satide supde limites a essas compensacdes contra as agressdes do meio; eda mesma maneira que certas doencas contribuem para diminuir esta margem de tolerancia, existe todo um conjunto de condigdes desfavordveis de existéncia que deve ser considerado como sendo causa de predisposic’o para doengas futuras: tolerar as infragdes e as infidelidades a que estamos expostos. |Pelo con falta de alimentagao adequada, trabalho infantil, desnutrigao ou exposigao a incleméncias ambientais. A satide nao pode ser reduzida a mero equilibrio ou capacidade de adaptacao, pode definir-se como “o conjunto de segurancas no presente e de seguros para 0 futuro” (Canguilhem, 1990b: 30 - Grifos nossos), como a possibilidade de ficar doente e de se recuperar. A satide é algo assim como ‘um luxo bioldgico’ que nada tem a ver com equilibrio, adaptacao ou conformidade com o meio ambiente. Poderfamos dizer que a definigao de satide dada por Canguilhem supde uma certa capacidade da adaptacao, porém que a excede. E que a explicac&o organica de ajuste ou adaptacao corresponde, desde a sua perspectiva tedrica, nao ao conceito de satide, mas sim ao conceito de ‘normalidade’. A capacidade de ajuste nos fala de um organismo normal que podemos ou nao considerar como saudavel. Pensemos, por exemplo, em uma pessoa que, por algu- ma razio, possufsse somente um rim; suponhamos também que esta pessoa conse- guisse cumprir as exigéncias impostas por seu meio, conseguisse levar uma vida livre de obstaculos e dar respostas ativas de modo a conquistar um ajuste e uma 4 A Saide como Abertura a0 Risco inter-relagao de forma e de funcdo com seu meio ambiente. Diremos, neste caso, que esta pessoa é normal no sentido restrito da compatibilidade com a vida, mesmo que no possa ser considerada ‘saudével’, ¢ isto se baseia na incapacidade, que carac- teriza esta pessoa, para viver em um meio diferente, em um meio que nao seja restritivo e controlado, em relago ao qual jé se tenha obtido um estado de equilibrio. Neste caso, pensemos em certas malformac&es ou afecqdes: uma pessoa pode ser normal em um determinado meio ¢ nao sé-lo diante de qualquer variacdo ou infracio do mesmo. Por ‘normal’, devemos entender algo além de ‘compattvel com a vida’; como vimos, 0 conceito de normal est indissoluvelmente ligado ao de média esta- tistica ou tipo. Sabemos que esses conceitos, longe de serem estritamente biolégicos, respondem a parametros ou médias considerados como ‘normas’ de adaptacio de equilfbrio com o meio ambiente. Canguilhem estabelece, a este respeito, um debate com aqueles teéricos que supdem existir uma identificacéo entre norma e média pela qual os valores considerados como médias estattsticas nos daria as medidas certas daquilo que deve ser considerado como normal para um organismo. Em O Normal e o Patolégico, 0 autor inverterd essa suposic&o e afirmard que, num sentido estrito, néo 6 a média al, mas, pelo contrario, “as constantes funcionais exprimem que estabelece 0 nor normas de vida que no s&o o resultado de h sociais e itos individuais e sim de valores légicos” (Canguilhem, 1990a: 146). Ele afirma que devemos considerar as medidas (constantes) fisioldgicas como expresso de normas coletivas de vida, hist6rica e socialmente mutantes. Isto implica afirmar que quando o homem inventa formas de vida, inventa também modos de ser fisiolégicos, e que é através da variacdo das normas sociais e vitais que se produzem variagées nas médias estatisticas que consideramos constantes funcionais. “O normal nao tem a tigidez de um determinante que vale para todas as espécies, mas somente a flexibilidade de uma norma que se transforma em relagio as condigées individuais, entio é claro que o limite entre o normal e 0 patoldgico se apresenta impreciso” (Canguilhem, 1990a: 145). Esta imprecisdo que se refere as fronteiras estatisticas que separam varios individuos considerados simultaneamente 6, em compensacio, “perfeitamente precisa para um tnico e mesmo individuo considerado sucessivamente” (1990a: 145). Como Canguilhem insistiré, a distingao entre o normal ¢ 0 patolégico é algo muito diferente de uma simples variagéo quantitativa, como supuseram Claude Bernard, Auguste Comte ou Emile Durkheim; existe, pelo contrério, uma diferenga qualitati- va substancial entre um e outro estado que nao pode reduzir-se a célculos, médias ou constantes. “O patolégico implica em um sentimento direto e concreto de sofri- mento e de impoténcia, sentimento de vida contrariada” (Canguilhem, 1976: 187). A satide, por sua vez, implica muito mais do que a possibilidade de viver em confor- midade com o meio externo, implica a capacidade de ‘instituir novas normas em situagdes novas’ 6 SRPFIFISLFAFIFIFIFPIBPIPIOVIVPIOIOVIDIIS DDS SDD IPP I PIIIPIBPOeE ‘Promocito da Saiide Norma e Valor Insistimos até aqui nas dificuldades inerentes a uma associaco entre os concer tos de normalidade, satide e.freqiiéncia. Porém, 0 conceito de ‘normal’ é duplo - de uum lado nos remete, como jé vimos, & nogio de média estatistica, constantes e tipos; de outro, trata-se de um conceito valorativo que se refere Aquilo que é considerado como desejavel em um determinado momento e em uma determinada sociedade. O primeiro sentido é solidario ao conceito de satide enunciado por Boorse. © segundo vincula 0 normal com valores sociais ou vitais: diz-nos como uma fungéo ou processo “deveria ser (Nordenfeld, 2000: 64). Tal como afirma Michel Foucault (1992: 181), “60 elemento que circula do disciplinério ao regulador, que se aplica 20 corpo e as populagées, € que permite controlar a ordem do corpo e os fatos de uma multiplicidade humana, é a norma”, Acreditamos que este sentido valorativo do normal pode nos permitir uma melhor compreensao do conceito de satide enunciado pela Organizacso Nacional da Satide (OMS): “A satide é um completo estado de bem-estar fisico, mental e social nao a mera auséncia de moléstia ou doenca” (Moura, 1989: 43}. Esta definigio é freqiientemente objeto de criticas, diz-se, por exemplo, que é um conceito utépico porque este estado é inatingivel; diz-se que é imposstvel medir 0 nivel de satide de uma populacao a partir deste conceito porque as pessoas nao permanecem constantemente em estado de bem: x; € afirma-se, na maioria das vezes, tratar-se de uma definicao que carece de objetividade porque est baseada em um conceito subjetivo, 0 conceito de bem-estar. Madel Luz, por exemplo, dir que “no € preciso, nem possivel adotar a poética definigéio da OMS porque nao terfamos como medir, pela subjetividade implicita na definigao, a extensio da auséncia de satide na populacao brasileira, ao longo de sua histéria” (Luz, 1979: 165). Parece que a maior dificuldade desta definicao estd no caréter ‘mutante’, ‘mével’ e‘subjetivo’ que acredita-se inerente ao conceito de bem-estar. Acteditamos, contudo, que o cardter subjetivo parece ser um elemento inerente A oposigio enfermidade- doenca. E necessario pensar que, ainda que se restrinja o fendmeno satide ao Ambito do puramente biolégico, existe um elemento, caracterizado e categorizado como sintoma, que nao pode jamais ser liberado totalmente de seu cardter subjetivo, referimo-nos a ‘dor’. Na medida em que toda dor é uma sensacdo, ela variaré necessariamente de acordo com aquele que a sente e nem sempre poder ser enunciada do mesmo modo por diferentes sujeitos, ainda que possa ser reduzida a um ‘padrao constante’, Sendo assim, sera preciso afirmar que, inclusive 0 mais Tigoroso ¢ estrito mecanismo biologicista, na medida em que nao pode prescindir de referéncias a ‘sintomas’ e, conseqiientemente, a estados subjetivos de ‘dor’, nao pode escapar desta critica. Isto 6, 0 carter subjetivo € inseparvel do conceito de satide, e esta associacao permanecerd restrita ou ampliada, nao importa a definigéio que dermos da mesma. 6

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