You are on page 1of 29
* Doutor em Psicologia Social pela Uni versidade de Sto Pavlo e Professor da Universidade Cidade de $80 Paulo — S. Paulo - SP nto estudo faz parte da tee de doutora do em Psicologia Social elaborada ¢ de- fendida no final de junho de 1998, com financiamento da FAPESP: BONATTO, Francisco Rogerio de Oliveira. Prdxi ‘mo-Distante: Andlive do Projeto Peque- nos Trabathadores. Um estudo na favela «do Parque Santa Madalena - Sto Paulo SP. Sio Paulo, 1998, 2 vol, - 207p. Tese (Doutorado) - Instituto de Psicologia, Universidade de Sao Paulo A época da pesquisa, o Projeto Pequenos ‘Trabalhadores atendia a 42 criangas © dolescentes (entre sete € 14 anos), mo- radores da fave, PRODUCAO DO SILENCIO E SEQUESTRO DO ESPACO PUBLICO UMA INCURSAO ETNOGRAFICA NA PERIFERIA DA CIDADE DE SAO PAULO Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto* Este artigo reporta andlises e conclusées formuladas a par- tir de observagées feitas no Parque Santa Madalena, bairro locali- zado na Zona Leste do Municipio de Sao Paulo. O cenério do estudo empreendido! foi o Projeto Pequenos ‘Trabalhadores (PPT), que é um Centro de Juventude para criangas e adolescentes carentes da favela do Parque Santa Madalena e que nasceu por influéncia do Centro de Defesa dos Direitos da Crian- ga e do Adolescente “Ménica Paido Trevisan” (CEDECA), que tem sua sede no mesmo bairro. O objeto dessa pesquisa foi o inhpacto e alcance das relacdes estabelecidas entre o grupo que mantém o referido Projeto e a populagao por ele atendida’. Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, I sem, 1999 "7 estudo parte da problematica percebida nas tentativas de comunicagdo entre educadores e educandos que terminam, muitas vezes, em siléncio. Serdo estes siléncios assentimentos, concordancia com a proposta do educador? Ou serio silencia- mentos, vozes que se calam por imposigio de argumentos abstratos, fora de seus horizontes, que nao conhecem ou nao saber como rebater? A busca de respostas para esta problemética tem como suporte as reflexes epistemolégica e metodolégica elaboradas por Boaventura de Sousa Santos*. A aproximagio das populagées ‘empobrecidas em vista de viabilizar as possibilidades de resgatar sua condicdo cidada implica no esforgo de ouvi-las, de prestar atengo as suas necessidades — isso, se se pretende superar a visio de intervengio educativa para objetos em vista de formulé-la como intervengo com sujeitos. Assim, o estudo se prope a empreender © que Santos chama de arqueologia virtual presente. Esta é uma virtual porque s6 interessa escavar 0 que nao foi feito , por que nao foi feito, ou seja, por que & que as alternativas deixaram de o ser. Neste sentido, a escavagio é orientada para os siléncios e para os silenciamentos, para tradigGes suprimidas, para as experiéncias subalternas, para a perspectiva das vitimas, para os oprimidos...”' Esta arqueologia tem como campo de explorago 0 que Santos chama de heterotopia, os lugares da margem, nao cen- trais, diferentes da ortotopia. E desses lugares que se pode fazer a arqueologia virtual presente, ou seja, “tornar possivel uma visio telescépica do centro e, ao mesmo tempo, uma visio microscépica que permita identificar aquilo que a ortotopia exclui para poder ser centro”, Esta mudanga implica na formulagdio de umi novo paradig- ‘ma epistemol6gico no qual se busca o rompimento com a pretensdo do paradigma modemo de ser a tinica forma de conhecimento vali- da, de dar explicagdes atemporais ¢ baseadas na autoridade de pro- cedimentos metodolégicos unilaterais, O novo paradigma vai pro- por que o processo de conhecimento dependa do processo argu- mentativo no interior das comunidades interpretativas. Assim, os principios reguladores do conhecimento, neste novo modelo, além Produgio dosifncio eseqiestro do espago piiblico — Uma incursao etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto * SANTOS, 1995) + SANTOS, 324 48 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6 47-75, 1 sem. 1999 Produeiio do silencio eseqiestro do espago piiblico — Uma incursao etografica na periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonato » GEERTZ, 27, da validagao cientifica, seriam, por um lado a demoeraticidade interna da comunidade interpretativa e, por outro, como valor &t cultural, o valor da dignidade humana, ‘Na busca de entender o alcance desta intervencao social especifica, uma das tarefas empreendidas foi a de procurar com- preender um dos pélos desta relagdo, ou seja, a populagio que fre~ gtienta este espago educativo em seu territ6rio préprio, a favela do Parque Santa Madalena. Fazemos nossa a pergunta de Geertz. “que tipo de homens sio esses?”, quem so os individuos da po- pulagio que se aproximam dessa atividade, desse grupo que a mantém? O que buscam? Uma das possfveis entradas para a elucidacdo dessa pro- blemética é a aproximacio do territério no qual viver e se movi- mentam estes sujeitos. Este artigo procura tragar um certo retrato desse territério e sua populagao, através da descrigao do universo em que se move. Para isso foi feito um trabalho de observacio si temitica das condigdes de vida na favela e no interior das casas dos sujeitos em estudo. Nesta descrigiio procuraremos caracterizar, por um lado, a relagiio dessa populagio com seu espaco de moradia: a distribui- Giio e relagdo das pessoas nesses espagos ¢ os aspectos das rela- Ges familiares que podem ser significativos. Por outro lado, buscaremos compreender a relagio de extensiio e/ou rompimento do espago da moradia com outros espagos, a saber: a) 0 espaco piiblico-préximo (viela/vizinhanga). b) 0 espaco puiblico-remoto (rua, praca, instituigdes) ©) © Projeto Pequenos ‘Trabalhadores. O método Consistiu 0 método de pesquisa no estudo de observagio sistematica das condigdes de vida na favela e no interior das casas dos sujeitos em estudo. Visitamos as casas das criangas ¢ adoles- Plural; Sociologia, USP, S, Paulo, 6: 47-75, 1 sem, 1999 9 centes que freqiientavam 0 Projeto Pequenos Trabalhadores ¢ que fazem parte da populagdo definida neste estudo, entre outubro de 1996 e janeiro de 1997. Descrig6es, relatos, retrospectivas sobre 0 contexto de vida dessa populagao so os dados que visdvamos obter. Foram feitas 21 visitas’, a fim de observar as condigdes gerais da habitagdo e descrevé-la, procurando indagar sobre habitos, costumes e rotina de seus moradores. Além disso, foram feitas observagdes de como se dé a relagiio com 0 espago piiblico adjacente & sua habitagdo. Aproveitamos as visitas domiciliares, que sao feitas freqiientemente pelo pessoal do Projeto as casas das criangas, para coletar os dados, acompa- nhando, assim, as visitas, ora da coordenadora do Projeto, ora das educadoras. De modo geral, nfo houve resisténcia & nossa presenga, a niio ser quando a mae da crianga estava ocupada em algum afa- zer particular, Nestas ocasides, as visitas tinham uma duragio muito breve. O registro dos dados foi realizado por meio de anotagdes em fichas de anamnese elaboradas especificamente para este fim, nas quais eram consignadas as observag6es feitas durante a visita, bem como os assuntos nela tratados. Esta coleta de dados especi- fica ocorren na segunda quinzena de agosto de 1997. O bairro O niicleo comercial do bairro se localiza no que é chamado de final do Madalena, que corresponde ao ponto final do énibus, onde termina a Av. Primavera de Caiena, principal artéria do bairro. Este niicleo comercial atende, preferencialmente, a populagio que ‘mora em seu entorno. Os habitantes do inicio da avenida se dirigem, geralmente, para niicleo comercial do Jardim Planalto, na Av. Manoel Pimentel, que € mais préximo. Para compras de maior vulto, dirigem-se ou para o centro de Sao Paulo ou para o de Santo André, geograficamente mais proximo e de fiicil acesso. Produ do silencio eseqiiestre do espace piblico — Uma incursdo etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto © De um total de 30 moradias, no nos Foi possfvel vistar 9 delas pela auséncia da mde por motivo de trabalho ow porque @ ‘rianga ou © adolescente havia Se muda- ‘do ou se retirado do Projeto 30 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, sem, 1999 Prods do silencio c sist do espago pblico — Una incursdo etnogrifica na periferia da cidade de Sao Plo Francisco Rogerio de Olivia Bonato Duas escolas municipais de primeiro grau atendem parte da populagao escolar do bairro: a Escola Brasflio Machado Neto, gue se localiza 4 Rua Almirante Otacflio Cunha e a Escola Arlin- do Caetano Filho, que se localiza & Rua Palmeira Bacabi e é con- tornada pela Rua Paulo Rosa. Outra parte da populagao escolar freqiienta as escolas estaduais: Aroldo de Azevedo, que atende parte da populagio do Pq. S. Madalena e esta situada no final da ‘Av. Anhaia Melo (no Jd. Planalto); Emir Macedo Nogueira, loca- lizada & Rua Iagapé ¢ que atende a criangas de 1* a 4* séries ¢ Li- berato Grossi, no final do Madalena, & Rua Ilha da Trindade e que acolhe alunos da 5* a 8* séries e 2° Grau. Na Rua Iagapé, ao lado da escola estadual, esta 0 posto de satide, mantido pela Prefeitura do Municipio, que vem sendo, aos poucos, desativado. A populagio, quando necesita de atendimen- to mais especializado, tem que se dirigir a0 Ambulatério da Av. Sapopemba ou ao Posto do Jardim Elba, devendo percorrer uma distancia de aproximadamente trés quilémetros para chegar a qualquer um deles. Hé no bairro uma creche municipal direta, outra convenia- da com uma Instituigdo com sede na Vila Prudente ¢ uma escola de educagiio infantil, localizadas a Av. Dr. Paulo Colombo Pereira de Queiroz, bem como o Clube Desportive Municipal (CDM). Ha uma creche municipal direta, na Av. Manoel Pimentel, que, mesmo pertencendo ao Jd, Planalto, atende igualmente & popu- ago do Pq. S. Madalena. O CDM esta aberto a toda a populagao do bairro. Hé uma diretoria, formada por moradores, que 0 admi- nistra. Nos fins de semana, acolhe equipes de futebol do bairro e visitantes, Durante a semana, alguns hordrios esto reservados para aulas de Educagao Fisica da Escola Emir Macedo Nogueira € para atividades esportivas do Projeto Pequenos Trabalhadores ¢ do Centro de Juventude Oscar Romero. Fora destes horarios, criangas e adolescentes se dirigem para I4 ¢ organizam seus proprios jogos na quadra ou no campo de futebol. Outro espago destinado A prética esportiva, principalmente aos sabados domingos, é a quadra de esportes da Escola Muncipal Brasilio Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, 1 sem, 1999 si Machado Neto, A escola cedeu alguns horarios para as atividades esportivas organizadas com criangas, adolescentes € jovens que 0 acompanhados pelo Centro de Defesa. Fora dos hordrios reservados & Escola ¢ ao Centro de Defesa, meninos e meninas se dirigem para a quadra para jogar ou assistir aos jogos organizados por criangas e adolescentes do bairro. No Jd. Planalto, ha uma grande praga que constitui um ponto de encontro para a populagao da regio, Alguns ambulantes fazem ponto ali, vendendo cachorro-quente, refrigerantes, égua de coco. Este espago é conhecido, também, como ponto de tréfico de drogas. Até setembro de 1996, nas noites de sabadé e domingo havia 0 “sambao”. Grupos se apresentavam, tocando samba e pagode e a populagao se reunia na praga para se divertir. Brigas entre grupos ou entre individuos comegaram a gerar tiroteios que culminaram em mortes durante vérios fins de semana. A partir dai, ndo ocorreu mais a concentragdo de pessoas aos domingos. Em agosto de 97 um circo de médio porte se instalou na Praga do Planalto, Os espetdculos, principalmente os de fim de semana, tornaram possivel novamente a utilizagao daquele espago. Além dos que se dirigiam ao circo, outras pessoas, 2 noite aproveitavam para circular pela praca e o sambio foi retomado no perfodo em que 6 circo esteve ali. Outra modalidade de lazer sii as rodas de samba que sio organizadas, geralmente, em algum bar da regido. Encontram-se na Ay, Manoel Pimentel, no Jd. S. Roberto, na Av. Sapopemba, na Av. Anhaia Melo, na Vila Industrial, localidades todas limitrofes do Pa, S. Madalena, Sio freqiientadas, geralmente, por adultos do sexo masculino e adolescentes do sexo feminino entre 17 € 18 anos. 0 “Juazeiro” é uma casa de forré que se localiza na Vila Alpina, nao muito distante do Pq. S. Madalena. Até um ou dois anos atrds, era freqiientado por adultos do sexo feminino que buscavam lazer ou alguma companhia masculina. Observa-se, agora, que este espago esta sendo freqiientado predominantemente por adolescentes — as filhas das primeiras freqiientadoras — que vio tomando 0 lugar das maes na preferéncia dos homens que vao a este local. Produgao dosilncto eseqiestro do espaco pblico — Uma incurséo etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto ral; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, L.sem, 1999 Produgio do silencio e seqiestro do espaco piiblico — Uma incursdo etnogrfica na periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto 7 Cf. MAGNANI, 145, * Bota informagao provém de comunieacio pessoal de ¥.(codinome para una infor ‘manie) que, por azSes profissionas, acesso a este tipo de informagao. V. vive no hair desde os quatro anos de idade. AAcompanhou de perto seu creseimento & fs problemas que dat decorreram, B agente de pastoral da comunidade cat. ‘1 iniciow o CEDECA no bairro, For- mouse em Direito ¢ hoje & advogada do Centro de Detesa. Plural; Sociologia O Grémio Recreativo Escola de Samba Combinados do Sapopemba — que, atualmente, esta no Grupo 2 das Escolas de Samba — é um outro pélo de lazer da regitio. Para la convergem grupos de diferentes bairros e pedagos. Sua sede esta na Av. Sapopemba, no Jardim Grimaldi. Todos os fins de semana ha ensaio para o carnaval ou roda de samba. Todos os anos, its crian- gas do Projeto Pequenos ‘Trabalhadores — devidamente autori- zadas pelos pais — formam uma das alas que desfilam pela Esco- la de Samba, no carnaval. ‘Trés grandes casas noturnas atraem as atengdes dos ado- lescentes do bairro: Gigantdo, a mais proximo, que esti localiza- da na Av, Sapopemba e funciona somente nos fins de semana; tem ‘uma programagdo mais voltada para 0 piiblico adulto nas sessdes noturnas e para os adolescentes is tardes, com apresentagiio de cantores e duplas de mtisicas sertanejas ou romanticas; a Extase, a mais recente, aberta praticamente todos os dias, também esta na Av. Sapopemba — muitos adolescentes, durante a semana vaio para ld, deixando de freqiientar as aulas — e 0 Club House em Santo André. Para estas casas noturnas os jovens se dirigem em grupos formados por vizinhanga ou do bairro (formados por cole- gas da escola, por exemplo) numa movimentagaio semelhante & indicada por Magnani para proteger os membros que se loco- movem fora dos seus respectivos territérios’ Pontos de encontro ¢ de pequenas compras, principal- mente nos fins de semana so as padarias. Uma rotisseria € um dos pontes tradicionais do Pg. S. Madalena e Jd. Planalto: é a Lei- diane, que patrocina com faixas as festas © quermesses da paréquia e das outras comunidades catdlicas da regitio. Aos séba- dos e domingos a noite, esta rotisseria — que esté préxima a Praga do Jd. Planalto ~ é 0 local preferido de encontro dos jovens de ambos 0s sexos, Os rapazes, muitos com motos e carros rouba- dos', estacionam em frente & Leidiane; ao redor destes carros € motos jovens casais namoram ou se encontram com amigos enquanto consomem bebidas e petiscos servidos ali. O Supermer- cado Veloso que, em 1997 inaugurou uma nova loja no bairro, USP, S, Paulo, 6 47-75, Lseim, 1999 3 também se constitui na principal casa de comércio. Leidiane Veloso estiio na Av. Manoel Pimentel. O bairro é atendido também por trés feiras livres: aos domingos, na Rua Almirante Otacflio Cunha, as sextas-feiras, no final do Madalena, na Rua Planalto dos Alcantilados e as quintas- feiras, na Rua Flavio Tambelini, no Jd. Planalto. As feiras sao locais nos quais as pessoas se encontram, se revéem, tém noticias ‘umas das outras e poem em dia as “fofocas”. As mies das gas do Projeto, geralmente, vio as feiras perto da hora de ter- minarem, pois muitos artigos so mais baratos nesse perfodo. Meninos, principalmente, aos domingos fazem ponto pelas ruas adjacentes ¢ se oferecem ou para guardar os carros ou para car- regar sacolas em troca de alguns centavos ou reais. O transporte coletivo é atendido por empresas do Munici- pio de Sao Paulo que fazem as linhas Circular (até a Praga da Sé), Almeida Jr. (Liberdade), Pq. do Ibirapuera e Pq. D. Pedro, pas- sando pelo Pq. 8. Lucas, Vila Prudente, Ipiranga, Cambuci e Sado Mateus. Duas empresas de Santo André mantém duas linhas que saem do centro de Santo André e vio uma até 0 Cj. Teoténio Vilela e outra até Artur Alvim, em Sao Paulo. Duas organizagdes ndo-governamentais (ONGs), ligadas & comunidade catdlica, atendem as familias do bairro, principalmente as da favela, Uma é a Sociedade do Cantinho da Esperanga, que é a instituigdo que abriga © Cantinho da Esperanga — trabalho com criangas e adolescentes portadores de deficiéncia —, 0 Projeto Pequenos Trabalhadores (cuja sede se encontra na Igreja Paroquial, no inicio da Av, Primavera de Caiena) e 0 Centro de Juventude da Comunidade Oscar Romero (localizado & Rua Iaque, no final do Madalena). O Nticleo Santa Angela, atualmente priorizando atendi- ‘mento a criangas abaixo de sete anos, também é uma alternativa de atendimento na regio. Outra ONG € 0 Centro de Defesa dos Direi- tos da Crianga e do Adolescente Ménica Paio Trevisan (CEDECA), cuja sede esté a Av. Dr. Paulo Colombo Pereira de Queiroz. Na Av. Primavera de Caiena, localiza-se 0 prédio do CECISPAM (Centro Civico do Parque Santa Madalena), entidade Produgai do siléncio eseqiestro do espago piiblico — Uma incurséo etnogréfica na periferia da cidade de Séo Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto st Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, sem. 1999 Produgio dosiléncio eseqiiestro do espago piiblico — Uma incursdo etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto © MAGNANI, 137-146. w 1.137. ID, 138, As esteitas elagdes baseadas no compadrio tém suas origens na cul- ‘ura nordestina, da qual provém a maio- ria da popwlagde que habita nestes ppedagos, Para uma visio mais ampla dessa questio ef. SOUZA, I., O Com- padrio: da politica ao sexo. Petrépois, Voues, 1981 Plural; Sociologia, USP, S, Paulo, 6: 47-75, organizada no bairro em 1983. Desde 1988 foi desativada, per- manecendo 0 prédio desocupado até 1996. No final desse ano, 0 CEDECA reformou o prédio e ocupou-o para montar cursos profis- sionalizantes, Estas duas entidades — Sociedade do Cantinho da Esperanga e CEDECA — surgiram a partir da organizagao da Pas- toral do Menor da Igreja Cat6lica. Assim, mantém também uma relagdo com a Paréquia da Reconciliagio € recebem apoio dos padres e seminaristas da Congregagao dos Missionérios Combonia- nos, que mantém um semindrio teolégico com sede no bairro. Os “pedagos” © Parque Santa Madalena nio constitui, contudo, uma regio homogénea, do ponto de vista antropolégico. Com José Guilherme Cantor Magnani, podemos dizer que o bairro é forma- do por “pedagos”, ou seja territérios que delimitam a locomogao ¢ influem na identificagao de seus moradores’. © que caracteriza 0 “pedago” é, antes de tudo, a necessi- dade de se “estar situado numa particular rede de relagdes que combina lagos de parentesco, vizinhanga, procedéncias”. No Pq S. Madalena, também, algumas categorias definem 0 tipo de nseredo nessa rede: “chegado” a fulano € aquele que & apenas conhecido e mantém vinculos superticiais com determinada pes- soa. Por outro lado, 0 “colega” é aquele que estabelece “uma relagiio mais conereta — firma, escola, clube de futebol — e, por conseguinte, um maior conhecimento sobre seu trabalho, suas preferéncias desportivas, habilidades, participagio em associagdes vicinais etc.”". Igualmente, ser compadre ou coma- dre estabelece uma relagdo tao forte de proximidade quanto a de parentesco". Diferindo ligeiramente da descrigao de pedago elaborada por Magnani em seu trabalho, podemos notar, entretanto, seme- Thangas nos contornos dos pedagos que constituem o Parque Santa Madalena. £ possfvel divisar estes contornos de modo especial 5 Hsem, 1999 55 pelo comportamento dos moradores de cada um desses territ6rios, principalmente as criangas. A nao circulagio por pedagos que nao 0s préprios — a nao ser quando se faz. necessdria a passagem por cles -, a rivalidade entre grupos de pedagos diferentes ~ marcada- ‘mente notados em ocasides de disputa de futebol, também reflexo da disputa entre grupos de traficantes de drogas sediados em dife- rentes territ6rios ~ so sinais desta distingaio que determina regras de comportamento, de respeito, de utilizagdo de caminhos e vielas € de identificagdo da propria posigao no bairro, Quando 0 Projeto Pequenos Trabathadores mantinha um curso de tear, pessoas da ‘comunidade encaminharam alguns adolescentes do Jd. Planalto para af se inscreverem. Apesar de a equipe do Projeto ter garanti- do as vagas para estes adolescentes, eles nao compareceram por causa da resisténcia, tanto deles quanto dos que os receberiam, em conviver com pessoas de outro pedaco. O trafego por um pedago que nio o proprio geralmente se dé a partir de um objetivo bem definido: visitar ou encontrar-se com um colega. Na maioria das vezes os encontros sio combinados em territérios neutros do bairro (avenidas e ruas distantes dos niicleos dos pedagos), Mesmo os novos educadores do Projeto, comegam a circular pelos pedagos onde habitam as criangas ¢ adolescentes ou com um membro mais antigo da equipe ou com as préprias cri- angas. Nas visitas aos pedagos, a senha que reitera a possibilidade de circulagio é a saudagio — “Oi, tio! Oi, tia!” — das criangas do Projeto ou das que jé o freqiientaram ou suas mies Assim como o pedago, descrito por Magnani em seu estu- do, tem um nticleo para o qual converge, se encontra € passa a populagio que ai mora, os pedagos do Pq. S. Madalena que inte- ressam & nossa pesquisa tém, cada qual, 0 seu nticleo que, porém, no se localiza no ponto central do pedago, mas constitui o espago que funciona como elemento de ligagdo entre 0 pedago € 0 ter- rit6rio “neutro” que é a rua. Além da Avenida Primavera de Caiena, algumas ruas constituem referéncia, principalmente para os pedagos nos quais habita a populagdo objeto do nosso estudo. Uma delas é a Rua Produgio dosiléncio eseqiestro do espago piblico — Uma incursdo etnogréfica na ‘periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto "Das respostas das criangas © adolescentes fem entrevstas pode-se constatar que so ‘mente duas (4.8%) afiemaram gue se 1o- ‘comover entre pedagos diferentes. quanto 31 sujeilos (73,8%) assinal {ue se locomavem somente dentro de seu pedago, ¢ entre a favelae os espacos rneutros do bairro ou outras locaidades, outros nove sujeitas (21,4%) se loco ‘mover somente ene favelt € 0s espa {gos neutros do airro ou em ditego a ‘outros locas %6 Phural; Sociologia, USP, $, Paulo, 6 47-75, L sem. 1999 Produgio do silencio eseqiestro do espago pablico — Uma incursdo etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto " Atualment owifico de droga nos dois pe- dagos conulado por um mesino grupo. Huns 10 ou 12 anos, predominavamn as quads que se ocupavamn com assaltos €eroubos © que ram originsias da fava, Geralinente se organizavam por pedagos. JJ¢houve, porém, num breve periodo, uma ‘grande quadrifha com membros de vétios pedagos; havia uma unio maior entre faaas de tries diferentes —ligadas por lagos de parentesco ou compadio — apesar disso, as dsputas ene os pedayos fram mais acirradas. Nessa época, pre ddominavam os assaltos @ bancos ¢ outros estabelecimentos eu roubos. O assalko a tum banco era meivo para grande festa no pedago. Quanto maior e forte fosse @ ‘quadritha, com maior cruedade se cara lerizavam as punigies. Geralmente, 2 traigdo nao era puniga com fuzitamento, ‘mas com degola, por exemplo. Havia uma relagio respeitesa e aé de protego entre ‘9s membros dessas guadtilhas & a pope: lagio do bairra, Conta-se que numa casio, uma mulher pediv ao dono de uma padaria para Ihe dar um hiro de Kite, pis nao tinha dinheiso, Como Ihe fora negado, voltou para sua moradiae, encom: teando-se com um membro de ur desses ‘arupos, contou-the 6 que havia aconteck- do. A quadritha fo ag o estabelecimenio comercial, fez pilhagem de diversas mer- cadorias ¢ distribuia-as na favela, Essa relagdo de respeito permitia até que os ceducadores da comunidade, que organi avai atividhdes com eriangas e ado: ‘cents, pudessem intervir quando a vida de algum dos menings estava em risco: procuravam os chefes das quadsithas, conheeidos no pedago, © conversavain procucanda intermediar 0 confito, bus: ceando resolver as questes sem utili de violtncia. A partir de 1986-87, hi uma rmodanga no perfil das quadrilhas mang Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, Amorepinima que da acesso a um lado da favela ‘com as vielas que af desembocam, principalmente a Mekio ¢ a das Uvas. Outra a Rua Dr. Edgar Pinto Cesar, que liga a R, Amorepinima a R. Fonseca Lessa. E pela Fonseca Lessa que se chega & Rua Rodrigues dos Santos pela qual se entra no outro lado da favela Esta rua avanga por uns 50 metros e vai se afunilando, transfor- mando-se em viela dando acesso a outras. A Rua Rodrigues da Guerra comega na Rua Fonseca Lessa e limita, a leste a favela da Rua Rodrigues dos Santos. A Rua Almirante Otacflio Cunha, paralela & Rua Dr. Edgar Pinto Cesar € outra rua referencial para a populacdo que mora nas favelas. Nessas ruas, as moradias so todas de alvenaria, umas maiores outras menores, mas com uma aparéncia de residéncia mais bem construida. Para muitos, a aspi- ragiio no que se refere a moradia melhor € a possibilidade de habitar numa dessas ruas ou até mesmo na avenida. Os dois lados da favela — 0 Pedago Amorepinima e 0 Pedaco Rodrigues — constituem a ocupagdo de uma enorme depressiio que conduz, a céu aberto, o esgoto despejado pel: casas da avenida e das ruas do Pq. S. Madalena. Este esgoto despejado no Cérrego Oratério que delimita os municipios de S. Paulo ¢ S. André. Assim, além dos moradores, a populagiio de ratos percorre constantemente, principalmente a noite, tanto viclas quanto o interior dos barracos. Atualmente os dois lados se comu- nicam por pinguelas construfdas por moradores que levantaram seus barracos no fundo dessa depressiio. O acesso, por dentro, a um dos lados, porém, raramente € feito pelos moradores. Esse fundo da favela, geralmente € freqiientado por grupos de trafi- cantes ou de drogadictos - os “néias” - que af se retinem para fumar maconha ou crack." (Os moradores saem do seu pedago pelos acessos “oficiais” (os micleos) e se dirigem ao outro pedago pela respectiva entrada. De alguma mancira, esses acessos (nticleos) condicionam a orien- tacdo e referencia espacial das pessoas que moram num determi- nado pedago, Muitos reconhecem casas, estabelecimentos e ruas préximas ao acesso do seu pedago e desconhecem outros pontos 1sem, 1999) 7 que, apesar de prdximos, nao so possiveis de se alcangar sem usar o caminho preestabelecido. No verdio de 1992, a Escola Municipal Arlindo Caetano Filho organizou uma espécie de col6- nia de férias para as criangas do bairro. Como era aberta, ndo s6 para os alunos dessa escola, € alguns dos educadores do Projeto também seriam monitores nessa col6nia, foram feitas algumas visitas no “pedago” Rodrigues para avisar as maes dessa inici va, a fim de que elas autorizassem a participagdo de seus filhos. Vairias dessas mies, quando eram informadas sobre © local onde se desenvolveriam as atividades, diziam nao saber onde ficava a Escola Arlindo, Da moradia delas era possivel ver a Escola, que estava a uns duzentos metros atrés. Mas apesar de estar ali, no ‘mesmo bairro, parecia privada de existéneia, por nao fazer parte do percurso utilizado para entrar ou sair do proprio pedago. De modo geral, mas no como uma regra rigida, as crian- gas do Pedago Rodrigues freqtientam a Escola Municipal Brasilio Machado Neto. Algumas esto matriculadas na Escola Estadual Emir Macedo Nogueira, que recebe também criangas do Pedago Amorepinima, A maioria das criangas deste segundo pedago fre- giienta a Escola Municipal Arlindo Caetano Filho que atende tam- bém as criangas e adolescentes do Pedago Paulo Rosa e do Pedago Santa Angela. ‘A Rua Amorepinima, mais adiante, d4 acesso 2 assim chamada Rua Paulo Rosa, Ela delimita um outro pedago da favela, distinto dos dois anteriores. Por fim, parte da populagdo atendida pelo Projeto habita na viela Santa Angela. Do final do Madalena chega-se a viela descendo pela Rua Curupireira e toma-se a Rua Boleadeiras até 0 fim". Esse pedago € distante dos outros trés, porém, nao sé as criangas que freqiientam 0 Projeto circulam pelo “centro” do Pq. S. Madalena como também outras que freqiientam as Escolas Municipais que af esto. Procuraremos, a seguir, focalizar um pouco mais nitida- mente os contornos destes pedagos, principalmente os relaciona- dos & populagiio atendida pelo Projeto Pequenos Trabalhadores, Produgio do silencio eseqiestro do espago pliblico — Uma incursdo etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto ‘mais do bairo, Poueo a pouco, as quae- Tas que 9 dedicavam aos asalios e rou: bos vio desaparecendo ~ seus membros ‘ho mortos ou presos ~e cedem lugar ov ‘so absorvidas por aquelas que se ocupamn ‘com tréfica de drogas. Os membros d ‘se novas grupos jé no sio predominan- temente dos pedagos do Pq, S. Madalena «inclusive, seus chefes no moram no baler, Opera-se, ent, um estranhamen: to gradativo entre a populagio € as qua- drilhas. As relagbes so marcadas pelo rmedo ¢ ninguém mais se sente seguro no seu pedago. A pé, para cortar camino, quando se vat ‘parao inicio da Av. Primavera de Caiena, dda Rua Curupieira, toma-se a Rua Pal ‘mera Bacabs subindo por uma escadaria de 50 metros. Toma-se depois, & esquer- daa Rua lag’ que termina na Av. Pri ‘mavera de Caiena, 38 Phural; Sociologia, USP, S, Paulo, 6: 47-75, sem. 1999 raduio destndoeseiedrodnenase buscando inferir ue influéncia podem exereer sobre essa popu: Porfera da cidade deSae Paulo" —lagao e como ela se relaciona nestes seus territ6rios. De cada Francisco Rogerio de Olvera Bonatio —_pedago procuraremos sintetizar informagées relacionadas ao tipo de construgdo predominante entre as moradias das familias aten- didas pelo Projeto, 4 movimentagao pelas vielas e A descrigio dos nicleos Antes de nos determos mais pormenorizadamente nos diferentes pedagos, € preciso explicitar os indicadores utilizados para a anélise das moradias'* ~ seguranga social: este indicador esta relacionado ao resguardo 1 Os indicadores paraa deserigio e andlise ‘das moradias gue utilizaremos a seguir So oF apresentados e dscalidos com da integridade fisica, moral e psiquica das pessoas Janta repeals rat RABINCY ICH, em relagao 4 moradia e seus entornos (vielas, vizi- nhanga e rua) 'e RABINOVICH, 40-41 - seguranga fisica: est relacionado a perigos fisicos, a condigoes de higiene etc.; de modo geral, a presenga de um Sinico fator comprometedor deste item foi suficiente para caracterizar a moradia como insegura. - condigées fisicas: este indicador foi classificado quanto a: — ventilagdo: presenga ou auséncia de janelas, per~ mitindo a ventilagao da casa. ~umidade: presenga ou auséncia de bolor nas pare- des e/ou qualidade timida do ar. — luminosidade: presenga ou auséncia de luz natural ~ insolagdo: presenca ou auséncia de sol incidindo nos cémodos da casa. - indice de aglomerago: relagiio do nimero de habitantes por cOmodo; “este indice, denominado “densidade’ por arquitetos e demégrafos, seria de no maximo dua pessoas por cémodo habitavel, sendo que criancas até um ano de idade nao sio computadas e eriangas, de um a um ano € meio so “meia’ pessoa, acima do qual haveria confinamento”™®. - indice de comodidade: presenga ou nio de banheiro interno - indice de privacidade: obtido a partir da relagdo cémodo-por- tas; aqui, o indice esperado € >1 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 647-75, 1-sem. 1999 9 - indice de intimidade: obtido a partir da relagdo pessoas-cama {a cama de casal é computada como duas); aqui, 0 indice esperado é Outras categorias propostas por Rabinovich foram utilizadas tam- bém para a anélise da casa: - ordenagao; é a disposigao por fungées, a separago e classifi- cago das diversas fungdes a que serve a moradia (alimentagao, repouso, socializagio, higiene, pro- criago etc.); esta separagio pode ser feita por mar- cos fixos (paredes), por marcos semifixos (cortinas), ambos nas moradias ordenadas ou méveis (nas mora- dias semi-ordenadas), wrumagio: indica ordem e limpeza. Em que medida os dados coletados a partir destes indi- cadores podem ser titeis & compreensao das possibilidades de intervengdo educativa e social junto a criangas e adolescentes do Pq. S. Madalena? Um dos pressupostos assumidos aqui — como ji foi acenado acima — é o de que intervengdes educacionais e/ou sociais em situagdo de exclusfo s6 tém sentido na medida em que buscam superar a visio diretiva de intervengdo para objetos (no nosso caso, esta especifica populagio carente) em vista de uma visio participativa de intervengao social com sujeitos. Tal pressu- posto implica na exigéncia de reconhecer nos membros da popu- lado envolvida no Projeto Pequenos Trabathadores a condigao de sujeitos nesse proceso. Elaine Rabinovich compreende a subje- tividade como uma vivéncia intersubjetiva que encontra na casa ¢ seu interior a sua estrutura, a um tempo estruturada e estruturante da casa como um espaco vivido, um ‘lugar’ € um ‘espaga- mento’, seria construida a partir do corpo simbélico. O corpo sim- bolico, por sua vez, seria construido através de um sistema de sig- nificagSes que o contextualizariam, ou seja, socioculturalmente. Portanto, através da identidade corporal, construfda nas identifi- cages do sujeito com o seu ‘entorno’, a crianga iria se consti- 60 Plural; Sociologia, USP, 8. Paulo, 6: 47-75, xleeee lencio eseqiestro do espaco ico — Uma incursdo einogrdfica na perferia da cidade de Sao Paulo Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto sem, 1999, Produgio do siléncio eseqiestrodo espace piblico — Uma incursao etnografica na periferia da cidade de Sao Paulo, Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto " RABINOVICH, 5-6, Para o conceito de corpo simbélico ef. no mesmo trabalho ‘© cap. “A Casa como Corpo”, pp. 108- 130, ™ RABINOVICH apresenta ap, 33, nota6, ‘uma distingao entre comodidade ¢ con- forte, que adotamos neste estuda: “co- rmodidade é © que é trazido pelo avango {enico, enquanto eenforto tem uma ca- racteristica psiquica de confortar, um ributo da home endo da house tuindo como sujeito cultural. Ao se conceber o desenvolvimento infantil como o proceso e o modo de a crianga apropriar-se de sua cultura, nesta medida, 0 conhecimento do contexto sociocul- tural seria um dos passos para 0 conhecimento dos processos de desenvolvimento infantil””. Passemos, entio, a caracterizagaio dos “pedacos”. 1, Pedago Amorepinima Cinco vielas desembocam na Rua Amorepinima ¢ levam as moradias que constituem esse pedago. Seguindo a orientagao geral das construgdes da favela, quanto mais préxima da rua esté a moradia, maior é a tendéncia de que seja de alvenaria, seja mais ampla, com maiores acomodagGes. As construgdes, de modo geral, (0 levantadas gradativamente, Primeiramente hé um barraco de madeira (pedagos de tébuas), depois constr6i-se as paredes com blocos e sio derrubadas as antigas e, se 0 espago permite, é feita ampliagao para o lado ou para cima, de acordo com as condigées financeiras. Da populagao atendida pelo Projeto e submetida a pesquisa, seis moradias sio construfdas em alvenaria. Dessas; duas possuem um andar superior; sendo que uma delas abriga no piso térreo a familia de um dos adolescentes € no piso superior habita uma de suas irmiis com os dois filhos (um desses freqiénta igua mente o PPT). Duas outras moradias sao de madeira. As vielas mais amplas desse pedaco so a Melo a das Uvas. A viela Melo, € a que concentra maior niimero de casas de alvenaria e com certa comodidade e, eventualmente, com certo conforto” Apesar das dificuldades de sustento em graus diferencia- dos, observa-se que as familias buscam viver em certas condigdes de comodidade, pela aquisigao de aparethos ou eletrodomésticos les didrias de manutengao da casa ou do ves tudrio (fogdo, geladeira, maquina de lavar roupa ou tanquinho elétrico) ou que proporcionem lazer (televisio, aparelho de som, USP, S. Paulo, 6: 47-75, 1sem. 1999 a ridio). As moradias tornam-se, assim, apesar da exigilidade, espagos nos quais se busca garantir as condigdes minimas de con- vivencia familiar, de brincadeiras para as criangas menores e de lazer. Nota-se uma certa preocupagao das mies da populagdo estu- dada em proporcionar condigSes para que os filhos, mesmo os adolescentes, estejam mais em casa e nao fiquem circulando pelas vielas ou pelas ruas. O terreno € rico em minas de dgua (que hoje nao se pode mais notar)”, Isso acarreta a pouca estabilidade das construgoes, principalmente as que se localizam no fundo da depressao. Fre- iientemente, por ocasiiio das chuvas de vero, muitas famflias — entre 60 ¢ 80 — acabam perdendo seus barracos ¢ tém que se abrigar na Escola Municipal Arlindo Caetano Filho, que esta no pedago Paulo Rosa Podemos dizer que ha muito pouca seguranga social neste pedago. Em 1997 duas pessoas foram assassinadas na viela Meléio, em frente & moradia de trés irmaos atendidos pelo Projeto Pequenos Trabalhadores. Nos dois casos, os corpos permanece- ram no local desde a madrugada até a tarde aguardando a vinda da policia para serem retirados. Uma das filhas, inclusive, referiu- aos tiroteios que acontecem com freqiiéncia ali, obrigando erian- ‘cas © pessoas que passam pela viela a se refugiar nas moradias. Quanto a seguranga fisica das oito casas visitadas nesse pedago, quatro apresentam algum fator de risco (precria escada de madeira externa para ter acesso ao andar superior, barranco, pedagos de madeira, ferro e lixo do lado externo & moradia, aber- turas sem portas ou janelas que isolam a moradia da viela). Cin- giienta por cento foi também o indice de condigées favoraveis de ventilago, bem como a presenga de umidade ¢ auséncia de inso- lagiio; cinco casas carecem de condigdes de luminosidade. Quanto ao indice de aglomeragao nas moradias desse pedago foi de 2,58 pessoas para 18 cémodos), portanto, acima do adequado para a satide fisica e mental. Quanto ao indice de como- didade, sete moradias possuem banheiro interno. A tinica excegao a que estd semiconstruida, Produgio do silencio eseqiestro do espago piblico — Uma incursdo einogréfica na ‘periferia da cldade de So Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto Informago colhida em comunicacao pes soal de V. Na década de 70, a populagio utlizava agua dessas minas. Mais tard, contaminadas pelo esgoto préximo- sur giram casos de doengas € diarréias -, ‘deixaram de sr uilizadas. Assim, foram ‘endo ateradas e sobre elas foram sendo cerguidas novas moradias. Phural; Sociologia, USP, S, Paulo, 6: 47-75, sem. 1999 Produgiio dostincto eseqiestro do espace piblico — Uma incursdo etnogréfica na periferia da cidade de Séio Paulo Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto 2 Banzo € 0 comportamento caracteistco dos eseravos vindos da Africa e teste: ‘munhado por varios autores. Parece-me, entretanto, que, analogamente, pode-se aplicar 0 terma a este comportamento espectfico apresentado pelos adolescentes ddo Pg. Santa Madalena, A consulta a0 Diciondrio Aurslio parece corroborar esta prctenso: “Banzar: [Do quimb. kubanza} ved. L. Espantar, pasmar, surpreender ‘Ti, cite 2. Pensar detidamente, media, cismar, matutar: “Um ou outro insane, vigta, com os olhos arregalados a banzar na vida, ouvindo os grilos e os vagos rumores do emo.’ (Afonso. Arinos, Historias e Paisagens, p. 125), Banzeiro 3, Bras, Tiste, melaneslico, nostgico: Banzol. (Dev. de Banzar] Sn. 1, Nostal gia mortal dos negros da Africa: “Lima ‘moléstia estranha, que é a saudade da patria, uma especie de loucura nostigica bu suicidio forgado, o banzo, dizima-os pela inagio ou fastio ou os tora apaticas € idiotas” (Joto Ribeiro, Historia do Brasil, p. 207) Adj. 2, Bras, ist, abut do; pensative... 4. Bras. MG. Sem jeitor sem graga, encafifado.." O indice de privacidade € de 0,72 enquanto que o de intimidade € de 1,55 pessoa por cama. Quanto ordenacdo, trés moradias se apresentam como ordenadas enquanto que cinco sao classificadas como semi-orde- nadas. Cinco moradias nao se apresentavam arrumadas em rela- eo as outras trés, As vielas, ingremes, so, geralmente utilizadas como pas- sagem. Um ou outro grupo de criangas brinea af, em frente a prépria moradia, quando a mae quer manté-las sob os olhos O local de brincadeiras, de encontros, de conversas entre vizinhos é 0 nticleo do pedago, onde desembocam as vielas na Rua Amorepinima. Criangas andam de bicicleta, de patins, jogam futebol, participam de outras brincadeiras neste espago de uns 10 metros, que compreende a distncia entre a viela Mello e a das Uvas. Adolescentes e jovens também se dirigem para esse local, ficam sentados na calgada do lado oposto as vielas. Eles, as vezes conversam ou muitas vezes permanecem simplesmente observan- do 0 movimento da rua, calados, sem muita reago, como que numa espécie de banzo”. Para quem identifica, geralmente, as reagGes juvenis em grupos como animadas, cheias de conversas risos — contando fatos ou fazendo comentirios sobre partidas de futebol ou aventuras vividas — causa impressdo ver estes adoles- centes, sentados, calados, sem emitir comentérios por varios mi- nutos. Também durante as atividades do Projeto & possivel obser- var este comportamento enquanto aguardam para 0 almogo, por exemplo, ou em algum momento de pausa, quando no esto jogando. E obvio que hé os momentos em que conversam ani- madamente. Tais momentos, porém, se contrapdem a estes outros de patético siléncio. Quase que como uma “sucursal” desse niicleo, a uns 50 metros, esté a esquina da Rua Amorepinima e Av. Primavera de Caiena, geralmente conhecida como BIMAC, por causa da pequena metaltirgica que ali se encontra com esse nome, Nessa esquina, que esté num nivel mais elevado, se retinem adoles- centes ¢ jovens do pedago para empinar pipa. Criangas, ali, prati- Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, sem, 1999 a camente s6 observam. Adolescentes e jovens (entre 18 ¢ 22 anos) passam horas nesse local, empinando suas pipas ou observando colegas a fuzé-lo. Entre os que esto sentados nas calgadas ao redor do niicleo deste pedago est, quase sempre, um adolescente ou jovem encarregado do “comércio” de droga (maconha ou crack) pelos traficantes que controlam essa “boca”. Este comércio € minu- ciosamente controlado, Papelotes (de maconha) ou trouxinhas (de crack) sio distribuidos aos “vendedores” e contabilizados. Os “donos da boca” querem recebé-los de volta (se néo foram ven dos) ou querem o dinheiro correspondente. A apropriagiio inde da de dinheiro ou droga é castigada com tiro de revélver numa das maos ou mesmo em ambas. Dividas nao pagas, geralmente sao resolvidas com a eliminagao fisica do devedor. Para isso. qualquer hora ou local do bairro sao adequados. Em varias ocasides, mem- bros do CEDECA, sabendo de alguma ameaga desses grupos, conseguiram evitar um assassinato, intermediando a “renegoci- acao” da divida ou mesmo conseguindo que fosse perdoada. Algu- mas vezes a ameaga de morte é “suspensa” enquanto a equipe do CEDECA providencia a fuga do ameagado. 2. Pedago Rodrigues Da populago que freqiienta 0 Projeto © que pertence a esse pedago, cinco moradias so de alvenaria, duas sao de madeira e uma é feita de alvenaria e madeira. Do ponto de vista da seguranga social, este pedago tam- bém se apresenta com caracterfsticas semelhantes ao Pedago Amorepinima. A ROTA, da Policia Militar faz. freqtientes incur- soes, principalmente de madrugada, nesse territério; hi troca de tiros entre policia e grupos que tém como base esse pedago da faveld, Pessoas passam armadas pelas vielas ou ha manuseio de mento adequado de seu as. Quanto & armas de fogo, sem controle ou conhec funcionamento, perto de criangas ou outras pe Produgiio dosilncio eseqiestro do espao: piblico — Uma incursdo einogréfica na eriferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto 64 Plural; Sociologia, USP, S, Paulo, 6 47-75, 1 sem, 1999 Produgio do silencio e seqiestro do espace piblico — Uma incursdo etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo, Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto seguranga fisica, das oito moradias visitadas, quatro apresentam algum risco fisico (parede umedecida, janela solta da parede, pavimento superior de pranchas de madeira, passagem da viela feita com pedagos de madeira sobre 0 esgoto que corre a céu aberto). Quanto As condigdes fisicas: seis habitagdes apresentam ventilagaio inadequada, pouca luminosidade e insolagio inadequa- da, Quatro apresentam problemas de umidade. O indice de aglomeracdo apurado nesse pedago, entre as familias visitadas, foi de 1,67. Tal indice, porém, deve ser rela- tivizado na medida em que algumas familias vivem num espago marcadamente exiguo. Quanto ao indice de comodidade, sete habitagGes tém banheiro interno. O indice de privacidade destas moradias é de 0,57 ¢ 0 de intimidade & de 1,30. Quanto a ordenagiio, trés se apresentam ordenadas e cinco sio semi-ordenadas, Trés também se apresentaram arrumadas. Neste pedago, as condigdes de comodidade das familias estudadas sio inferiores as do Pedago Amorepinima, Quase todas as familias possuem aparelho de televisio, somente uma tem outros eletrodomésticos, inclusive forno de microondas (constitu, portanto, uma excegao). As casas, porém, sao, na maioria de mate- rial precdrio ou apresentam alguma situagdo de risco fisico. Nesse pedago, as eriangas das familias visitadas tendem a passar mais tempo brincando nas vielas ou nas Ruas Rodrigues dos Santos & Fonseca Lessa. Pedago Rodrigues tem um ntimero maior de vielas que se entrecruzam, Além da Rua Rodrigues dos Santos, cinco outras vielas desembocam na Rua Fonseca Lessa ¢ quatro outras na Rua Dr. Edgar Pinto Cesar, O micleo do pedago, entretanto, € a Rua Rodrigues dos Santos, prineipalmente na esquina com a Rua Fonseca Lessa. N Rua Rodrigues dos Santos encontram-se trés botecos (pequenos cOmodos, com abertura para a rua), onde sempre ha alguns homens jogando dominé, cartas ou simplesmente conversando; além de “vendedores” de drogas que fazem seus pontos por ali. Plural; Sociologia, USP, S, Paulo, 6: 47275, 1sem, 1999 65 Na esquina dessa rua com a Fonseca Lessa, encontra-se o bar de propriedade da mae de duas das criangas atendidas pelo Projeto, onde hd uma mesa de sinuca e alguns jogos eletronicos. Ali é 0 ponto de encontro de adolescentes e jovens. Nesse espaco esto sempre criangas jogando futebol, brincando ou esto sentadas na calgada, conversando ou observando o movimento, algumas tam- bém fazendo banzo. Ao lado desse bar, na Rua Rodrigues dos Santos esté a capela da comunidade catélica, dedicada a Joflson de Jesus, meni- no de rua que foi morto hi alguns anos no centro da cidade de Sao Paulo. Alguns educadores se referem a esse pedago nao como Rodrigues mas como Joflson. Nos tiltimos trés anos, a capela foi ampliada dando lugar a uma construcdo de dois andares com saldes que deveriam abrigar uma oficina de marcenaria com curso profissionalizante de marceneiro para jovens ¢ adolescentes dali, Uma cooperativa foi criada para gerenciar tal atividade mas, por problemas internos, acabou sendo dissolvida. No momento tal espago é aberto e utilizado para as atividades da comunidade (ce- lebragSes, reunides, festas) e como sede do Projeto Qualis, da Secretaria de Satide do Estado. 3. Pedaco Paulo Rosa Paulo Rosa € 0 lider comunitério desse pedago. Foi um dos primeiros moradores do bairro e desde seu inicio lutou por benfeitorias na regiao. E ele quem se dispée a organizar os moradores em situagdes de dificuldades ou, quando é nec fazer alguma reivindicagdo. Até algum tempo atrés, as pessoas manifestavam por ele uma certa veneragdo. Também conseguiu, entre outras coisas, fundos para a construgaio de uma farmacia popular. Assim, foi levantada uma construgao de dois andares em frente & Escola Arlindo Caetano Filho, Na parte térrea funcionaria a farmdcia e no andar superior estabeleceu a sua moradia. A far- micia s6 funcionou por poucos meses. Paulo Rosa vai sempre a ‘rio, Produgii do silénci eseqiestro do espago piblico — Uma incursdo etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto 6 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, 1 sem, 1999 Produgio do sléncio eseqiiestro do espago pliblico — Uma incurséo etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo. Prancisco Rogerio de Oliveira Bonatto 20 Pa, S. Madalena conheceu até o final dda década passada uma efervescencia de ‘movimentos e mobilizagBes populares Nicleo do Partido dos Trabathadores, Movimento de Sade, Pastoral Operiria, Movimento pela Moradia organizavasn a luta politica e por methores condigdes, Muitos membros desses movimentos pertenciam também as comunidades de base da Igreja Catlica, Segundo V., © ‘movimento $-2 (cinco famiias apotavam dduas de trabalhadores desempregados, ‘em 89, surg no bairro e depois se esten: feu pela cidade © municipios do ABC). Hoje, quase nio se percebe a presenca destes grupos ou movimentos, a no ser 0 ‘Mutirto da Fazenda da Juta e © Mo. mento de Saide, Entre of fatores que ceoncorteram para a desarticulagio desses ‘movimentos podem ser menctonados @ rmudanga de residéncia de muitos dos lideres, um eerto cansago(desilusio ob: servado em muitos militantes apis a der rota de Lula para Collor, nas eleigdes presidenciais de 89, a desarticulagio dos ‘movimentes populares operada pela pol tica municipal durante a administragio “Maluf acompankada também pelas esr \egias colocadas em prética pela cupula da Igreja Catslica para reirar inluéncia ‘e poder das autoridades eclesidsticas que ddavam suporte a estes movimentos que rain impulsionades pela proposta da ‘Teologia da Libertagio, Ao par do arefe cimento da militincia politica ¢ social, ‘ruitos lideres. antes pertencentes as co- ‘nunidades de base, acabaram se afestan do da Ipreja Catica programas populares de radio apresentar as dificuldades do Pedago onde mora, propor campanhas, apresentar queixas a politi- cos ou agradecer pela ajuda concedida por algum vereador ou homem puiblico. Na medida em que alguns movimentos populares foram sendo organizados no bairro, baseados num nivel maior de participagao, sua influéneia deixou de ser tio marcante". Entre- tanto Paulo Rosa ainda é uma lideranga e referéncia, ao menos para as pessoas que moram no pedago em que ele reside. Em sua homenagem, ele propés que a rua que circunda a Escola Arlindo fosse chamada de Paulo Rosa. Quando perguntadas sobre o local onde moram, as pessoas desse pedago dizem, sem hesitagdo: “Rua Paulo Rosa”. Seguindo uma orientagiio geral, as moradias que tém sua frente voltada para a Rua Paulo Rosa so de alyenaria. Entrando por uma das cinco vielas que desembocam na referida rua, as construgdes sio ou de alvenaria ou de madeira. Duas familias atendidas pelo Projeto Pequenos Traba- Ihadores moram nesse pedaco. Na época em que realizamos as visitas as moradias, duas adolescentes, que so irmas, estavam deixando de freqiientar 0 Projeto. Visitamos a outra familia, mas a mae nao quis nos receber na sua casa, pois disse que estava muito desarrumada. Pudemos somente observar um pouco 0 inte~ rior de sua casa pela porta entreaberta. Esta moradia, em que vivem trés pessoas, esté localizada na viela que parte dos fundos da Escola Municipal. Por esta viela se desce uns 30 metros até que se chega a um barranco. Toma-se aesquerda ea uns 10 metros est a moradia da familia. E feita de madeira e constituida por um tinico cmodo, Pelo que pudemos constatar, nfo tem muita ordenagao ou arrumagao além de nao apresentar condigdes fisicas adequadas. Do ponto de vista da seguranga fisica, 0 esgoto que vem de outras moradias acima passa descoberto pelo meio desta habitagio. ‘O nticleo desse pedaco é a Escola Municipal Arlindo Cae- tano Filho, Em frente a esta escola esté a residéncia de Paulo Rosa e, ao lado, a capela chamada de Aparecidinha, da comunidade Plural, Sociologia, USP, 8. Paulo, 6: 47-75, I sem, 1999 o catélica, que se retine aos domingos para as celebragdes e em alguns dias de semana, Pequenos botecos ou bonbonniéres fun- cionam junto ao nticleo que abriga também trafico de drogas. 4, Pedaco Santa Angel Trés familias da populagdo que € objeto deste estudo habitam nesse pedago. ‘As moradias sfo todas de alvenaria, com espagos bem superiores, em tamanho, & média dos espagos ocupados pelas moradias nos pedagos anteriormente analisados, Apresentam tam- bém um certo grau de comodidade, pela presenga nas moradias de aparethos ou eletrodomésticos que facilitam os trabalhos de casa e possibilitam o lazer. Ha, porém, pouca seguranga social. Uma das mies entre- vistadas informou que a Policia Militar (ROTA), geralmente de madrugada (no dia mesmo de nossa visita, por exemplo), entra perseguindo e atirando pela viela. Nessa época, trés fugitivos da prisio estavam por Id (um tinha sido recapturado naquela madru- gada). Em setembro de 97, numa incursdo, a Policia Militar entrou em varios barracos, confiscou um aparelho de som (sob pretexto de que teria sido roubado, apesar de ter sido apresentada a nota fiscal da compra), policiais urinaram ostensivamente em frente a um grupo de adolescentes que estava na viela” Huma certa combinagio/aviso das escaramugas da Poli- cia Militar com os traficantes que agem no pedago (ha uma boca no final da viela). Quando esperam alguma ago da ROTA, o bar € a bonbonniére (que retine criangas e adolescentes da vizinhanga por causa dos jogos eletrOnicos que mantém) fecham mais cedo € a viela fica deserta (os moradores se retiram para suas casas). Hé um toque de recolher informal/oticioso. A viela, também, no seu final dé acesso a temida “Ilha”: 0 pedago da favela do Pq. S. Madalena mais mareadamente violento, onde habitam e se refu- giam traficantes ¢ assaltantes com seus grupos. Produsio do silencio e seqitestro do espace piiblico — Uma incursdo einogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto Por muito tempo, até 1993, a populagao deste pedago era intimidada e sofia vio lencia de um pistoleiro, M. Ele era “yanso', ou sea trabalhavaapoiando a polfcia ou camo informante ou executan io margins ness 6pca, a epi estava sab a jurado da 42* Delegacia de Pot cia, qu se tornou famosa no final da da dade 80, pla morte de dezenas depress trans todos numa 6 cela ~ era quase uma center ~ para sufoear une rebelio hoje €a 70" Delepacia de Policia que esti encamegada do poiciamento da reid). ‘Mo ideavs um grupo que se encaregava dos exterminios. Tina uma espécie de cara da outro lado do ebrego Ortrio, do lado oposto ao pedago Santa Angela dessa sua propria, com frequéneia, isparavatiros em diego pedago. ferindo ou matando viras pessoas. Era tua figura, sob cet aspect, follies Porque costumava destlar pela cegiao om chapéu © montado em seu cavalo branco, como um “cowboy” que devia colocar ordem naguele “farwes. Aos praoos, 0 grupo de M, fi se dsslvendo its de seus companheitos foram sssstnados, outro, pesos ~€ Macau lexan a repo por casa das ameagas de more que recebeu e pela pressao do CCEDECA que aprescatou vérias denn clas com cle um ao Ministerio Pico na CPI da Clara Municipal que inves Ligou a violencia conraexiangas (1993) io se sabe ao ezrto seu pari, Cone words que foi asasinado Ea um “arg ‘!cheto de infrmagies comprometedo ras para mula gente 6 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, Lem, 1999) Produgio do silencio eseqliestro do espaso ppablico — Uma incursdo etnogréfica na periferia da cidade de Sao Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto s visitadas, quanto A seguranga foram detectados fatores de risco. Quanto ds condigdes fisicas, em todas as moradias as condigdes de ventilagio, luminosidade ¢ solagio siio precarias, apesar de nao termos notado sinais de umidade em nenhuma delas. O indice de aglomeragiio nesse pedago € de 1,75, enquan- to a presenga de banheiro interno (que indica a comodidade) & total. O indice de privacidade € de 0,87, enquanto que o de intimi- dade € de 1,27 No que se refere & ordenagio, uma moradia se apresenta ordenada e duas semi-ordenadas. Todas se apresentaram limpas ¢ em ordem (arrumagao). O nticleo deste pedago encontra-se a uns 20 metros da entra- da da viela (pela Rua Boleadeiras) onde esté 0 bar e a bonbonniére. No bar, retinem-se os homens para beber, conversar, passar infor- magées. Na bonbonniére estdo, principalmente, meninos ¢ adoles- centes que se retinem ali para se divertirem nos jogos eletrOnicos ¢ conversar. As moradias visitadas encontram-se no nticleo do pedaco. No més de agosto de 97 foi inaugurada a radio comunitéria, gerenciada por alguns moradores do pedago. A programagao é com- posta por programas musicais conduzidos pelos préprios coorde- nadores da ridio e informagées de interesse do pedaco, Ha uma maior presenga da populagio na viela. Mulheres ¢ homens encontram-se af para conversar apés 0 almogo ou no fim da tarde. Tal proximidade permite que se encontrem também para dis- cutir e combinar agdes em vista de melhorar suas condigdes de vida. Um grupo foi organizado para reivindicar junto a Prefeitura do Municipio melhorias para 0 pedago. Contam com a ajuda de uma vereadora do PC do B que, durante a campanha eleitoral, foi até ali grupo prometeu apoio A sua candidatura contanto que durante o ‘mandato ela acompanhasse a situagaio do pedago. Cumprindo sua promessa, a vereadora envia um assessor parlamentar, que se retine freqiientemente com os moradores. Este pedago é 0 que demonstra uma maior capacidade de mobilizagao da populagio, em vista de conquistar melhores condigdes para o lugar onde mora. Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 47-75, 1sem. 1999 o ‘SINTESE: MORAR NOS PEDACOS DO PQ. S. MADAL NA territério da favela do Pq. S. Madalena, com seus pedagos, forma como que um subsistema de vida social, com uma organizagao peculiar, relacionado ao resto da populagio do bairro eda cidade, mas comportando uma certa autonomia. A observagaio in loco e as condigdes sécio-econdmicas das familias observadas e de sua vizinhanga permitem constatar que este espago ou espagos geogrificos enquadram-se no que comu- mente denominamos por favela. Cabe, entretanto, a pergunta: 0 que faz com que essa populagdo apresente uma identidade, condigdes, caracteristicas e visdes de mundo comuns? Parece-me poder afirmar que o constitutivo dessa identidade comum é a hist6ria de construgdo desta rea urbana por parte desta populagio particular. As histérias de ocupagéio, muitas vezes, a contragosto, —algumas mies o testemunham nas entrevistas —, de construgdo ¢ methoramentos graduais das moradias — executadas pelos préprios membros das familias com ajuda de parentes e vizinhos, numa espécie de mutirdo informal — vaio compondo os tragos que unem estes individuos e definem sua identidade comum. Barracos, casas, vielas, pedacos vio surgindo e se entre- lagando, compondo, assim, esta cidade constru(da por esta popu- lagao. As familias, os individuos foram, ao longo dos anos, se adaptando ¢ distribuindo esta adaptagao nesse espago que Ihes foi “assinalado” ou que se thes permitiram ocupar’. A disposigdo das moradias, as possibilidades de comunicagio nos e entre os pedagos caracterizam sua cultura (visdo de mundo concretizada no trabalho de construir suas moradias ¢ seus entornos). Essa hist6ria de ocupagdo e construgao desse espaco urbano, porém, além das dificuldades que Ihe sdo inerentes, 6 marcada por uma situagao crénica de conflito. £ possivel dizer que ha uma disputa silenciosa pela ocupagao desses territérios entre a populagao que neles moram ¢ os grupos marginais que, de certa forma, controlam e impoem regras de ocupagdo e procedi- mento nesse espago™. Produgio do siléncioeseqiestro do espaco piiblico — Uma incursdo einogréfica na eriferia da cidade de Sao Paulo, Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto 2 Estamos entendendo aqui o processo de turbanizagao como 0 processo de “aglo- rmeragao de adaptagdes do espago, ela mesma podendo ser considerada uma ‘daptagdo ou um instrument". O adjet vo “urbano”, no nosso caso, “refere-se As ocorténcias ma aglomeragio espacial de adaptagdes”. CE SERRA, 17, % Na busea de parlimetras téricos que por mitissem compreender esta realidade, ‘cacontte os conceitos de isola de ni lugar, elaborados por Mare Auge. Isola seria um “grupo éinico isolado ou um ‘grupo de seres vivendo isoladamente”. Os o-lugares, para este ator “so tanto as instalagoes necessrias citculago acele- rada das pessoas e bens... quant 0s pro Prins meios de transporte ou os grandes ‘entros comerciais, ou ainda ox campos de trinsito prolongado onde sao esta: cionados os refugiados do planeta” (gr fos meus) Cf. AUGE, 36-¥7 € 42. Se, por uum lado, afavela do Pq, S. Madalena com sua populagdo enquadra-se, de alguma ‘maneira nestes dois conceitas, por out, supera-os. Nao constituem um isolats justamente pelo aspecto da permeabil. dade existente, como aeenet aca, entre este teritrio espectfico e os ovtnis ter rilGrios urbanos, tanto as que The esto réximos quanto os mais distantes, ope ‘ada pelas populagbes destes ternitrios, Da mesma forma, a favela do Pg. S. ‘Madalena se € um territério que abriga os refugiados do planeta, portato, um nlo- lugar, &igualmente um lugar que & subs: trato de algum valor de troea; de outa forma, que sentido haveria em tomar de assalto este espago e controli-lo? 7 Plural; Sociologia, USP. S. Paulo, 6: 47-75, 1 sem. 1999 Produgio do sléncio eseqlestro do espago piiblico — Uma incurséo etnogréfica na periferia da cidade de Séo Paulo. Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto [Esta expresso € inspirada em Giddens, que fala sobre o seqUestro da experiéncia (CE. GIDDENS, 144-180), Estamos en- fendendo aqui espago piblico nio sim plesmente como teritério de dominio © trinsito de todos mas como 0 espago claborad cultural epsicologicamente por ‘uma determinada populagto, no qual ela se reconbece, deita suas rafzes © que se {orna ponto de referéncia simbéico para «essas pessoas. Tal compreensio encontra respaldo na arguta andlise das expresses Colénia, Culto ¢ Cultura elaborada por Alfredo Bosi (Cf. BOSI, 11-63). 0 verbo latino colo exprime os signifieados de rmorar e ocupar a terra, bem como 0 de ‘rabalhar ¢ cultivar 0 campo. No passado, a forma adjetiva cultus era atibuida “a0 ‘campo que jé fore arroteado e plantado por geragdes sucessivas de lavradores. (Cultus teaz em si no s6 a ago sempre reproposia de colo, 0 cultivar através dos séeulos, mas principalmente a qualidade resultante desse trabalho e ja ineorporada terra que se lavrou... Citas € sinal de ‘que a sociedade que produziu o seu ali- mento j tem meméria’ (p. 13), Pode-se dizer que se instaurou ali um ‘verdadeiro controle diseiptinar, no senti- {do que Ihe aribui Foucault. A populagao vive vigiada sob o Panopticon da organi ‘ago marginal (quadrilhas de trfico © assaltos) que controla os minimos mov rmentos no pedago, entre os pedagos, assinala em quais e em que perfodos S50 permitidas as locomoydes. A este respeito, ef. FOUCAULT, 63.42, 7° conceito de espago de movimento livre foi claborado por Kutt Lewin «Cr. LEWIN, 1970 ¢ 1973). Tal espago se presenta como conceitopsicolégico que “diz respeito as regides acessiveis & pes- Plural; Sociol Constata-se que a populagao desses pedagos foi sendo submetida a um verdadeiro seqiéestro do espaco piiblico® de que dispunha para tecer suas relagdes, estruturar simbolicamente seu enraizamento no espago do bairro, da cidade, das relagdes de tra- balho, de lazer, familiares. Este seqiiestro se apresenta, tanto num nivel macrossocial, patente no processo gradativo e inexordvel de empobrecimento dessas populagées, quanto num nivel microsso- cial, na medida em que as relagGes vicinais, familiares e de com- padrio — caracterizadas pela solidariedade — vio se degradan- do em relagGes de controle de espagos, de poder, impostos a forga de intimidagio®. A opgdo por se encerrar no espaco da prépria moradia, sem se preocupar com © que acontece aos outros para no ser perturbada (expressa por vérias mies em suas entrevis- tas), indica esta pressio pela qual passam as pessoas que habitam nestes territ6rios. Morar nos pedagos do Madalena implica aceitagao dess uagdo de constante tensio: submeter-se a um plus de controle, em vista de poder manter um espago mfnimo de movimento livre”. Sob o ponto de vista das limitacdes externas, 6 possivel dizer que os pedagos do Pg, $. Madalena so espagos onde criangas, ado- lescentes e jovens vivem sob situagao de risco social. Ou seja, praticamente, diante da crescente instauragao da situagao de desemprego estrutural, a marginalidade se thes apresenta quase como que a tinica opgao de atividade produtiva, de sustento; a possibilidade que se Ihes apresenta é a insergo marginal neste setor de “servigos” do mercado de trabalho. Fora deste setor marginal, resta 0 setor tercidrio nos quais sao comumente aceitos: faxina, servigos gerais em empresas, assim como seus pais. Naturalmente, nao thes 6 vedado de modo explicito 0 ingresso a este mercado colocado a disposigao pelas forgas hegem@nicas da sociedade, As barreiras pessoais vao se apresen- tar como meios mais eficazes de cerceamento a este acesso no mercado: ao experimentar as condigdes de concorréncia com jovens de outros segmentos sociais, as dificuldades relacionadas a0 estudo e ao percurso pelas séries escolares (alguns repetem trés a USP, 8, Paulo, 6: 47-75, I sem, 1999 n

You might also like