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Formagéo da razao na Etica de Espinosa, segundo Deleuze Anpré Menezes Rocna* Resumo: Este artigo & parte de um estudo mais amplo que tem como eixo a formago das nogdes comuns ea definigdo da razio na Etica de Espinosa. Neste artigo, examino a questo a partir da leitura de Gilles Deleuze em Espinosa ¢ o problema da expressiio. Palavras-chave: alegria, paixdo, ado, nogdes comuns, ra7o. Abstract: This article is part of a larger study that has it’s central point in the formation of the common notions and the definition of reason present in Spinoza’s Ethics. In the article, I shall exam the subject regarding Deleuze’s Spinoza et le probléme de I'expression. Key-words: joy, passion, action, common notions, reason. IOs dois momentos da génese da poténeia racional. A questo deste trabalho é a seguinte: como é a passagem da paixdo & aedo na Etica de Espinosa, de acordo com a interpretagio de Deleuze? Examinarei apenas 0 comentario em Espinosa eo problema da expressao. Nossa poténcia racional se produz em meio as paixGes, na pritica dos encontros. Decerto, & preciso muita paixdo alegre para * Doutorando de Departamento de Filosofia da FFLCH — USP. 89 Capznnos Esraxosanos XVI - 2007 fazer nascer atividade, ou seja, agdo alegre, Entretanto, o caminho a génese paixde: dos afetos ativos nao se esgota na repetigo dos encontros das “Nao é suficiente que nossa poténcia de agir aumente, Poderia aumentar indefinidamente, as paixdes alegres poderiam se concatenar com paixdes alegres indefinidamente sem que conseguissemos a posse formal de nossa poténcia de agir, Uma somatéria de paixdes ndo faz uma agdo. Nao é suficiente, portanto, que as paixdes alegres se acumulem, mas é preciso que, em favor desta acumulagdo, encontremos um meio de conquistar nossa poténcia de agit para experimentar enfim as afecgdes ativas de que seremos a causa adequada.” A poténcia racional se produz para ajudar as paixdes alegres contra as tristes, exercendo uma tarefa pratica que, segundo Deleuze, no cessaré nunca de exercer, qual seja, selecionar para evitar os maus © aumentar a intensidade dos bons encontros. “Em sua génese, a razio é esforgo de organizar os encontros em fungio de conveniéncias e inconveniéncias percebidas. A razdo em sua atividade é o esforgo de conceber as nogdes comuns, portanto, de compreender intelectualmente as conveniéncias e inconveniéncias.”” Na medida em que se estabelece, a poténcia racional, além de selecionar os encontros que geram paixdes alegres ¢ evitar os que geram tristezas, inicia uma formagdo de idéias adequadas que persevera sem ce ar e que inclui o conhecimento do que agrada aos corpos que se fortalecem conosco, assim favorecendo, por sua atividade teorética, 90 Fy) oe Ca Te || _|| TT “Anon Menezes Roctis 08 bons encontros, Estabelecida, a poténcia racional de cada um nao deixa de exercer a tarefa pritica que a originou, qual seja, aderir as paixdes alegres e evitar as tristes, em cada encontro ou desencontro com que cada um de nés se deparar. Com a ressalva de que, estabelecido na atividade, nosso esforgo [conatus] ¢ por selecionar os encontros no apenas em fungio de paixdes alegres quaisquer, mas precisamente em fungio daquelas que convém as alegrias ativas e que nos conduzem a raciocinar e intuir juntos. Deleuze defende que a poténcia racional de cada um de nés nasce naturalmente de acordo com estes dois grandes momentos que constituem um s6 esforgo, © primeiro momento é 0 esforgo por se deixar afetar com paixdes alegres, ou seja, por procurar, na pratica, favorecer os bons encontros ¢ evitar os maus encontros, O segundo momento é 0 esforgo por produzir idéias adequadas ¢ alegrias ativas: nasce para fortalecer as alegrias passivas, para garantir que prevalegam sobre as tristezas e, por isto, os desejos racionais nfo surgem por ruptura com as paixées alegres, mas por continuidade para secund: las. ‘A razio é essencialmente pritica e a pritica ativa é racional. Pratica racional porque nascida da intercorporeidade e da ntersubjetividade cujo lago é uma paixdo alegre produzida no bom encontro. Razio pritica porque é conhecimento teorético do que & comum a nés e aos outros corpos, do que permite e do que no permite que se estabelecam os bons encontros entre nés. Além disso, este conhecimento teorético na pritica & produgo de afetos ativos que auxiliam e fortalecem nossas paixdes alegres, na medida mesma em que inteligimos as conveniéncias e inconveniéncias entre nossos corpos. ementes, isto é, descobrindo que entre nés existem as noges comuns. 91 Fy) oe ® Capznnos Esraxosanos XVI - 2007 IO segundo momento: formagao das nogées comuns. As nogdes comuns tém graus de generalidade diversos. De acordo com a interpretagdo deleuziana, apoiada, sobretudo, em EIIP40S e TTP7, hé dois tipos de nogdes comuns: as fisicas (mais gerais) eas biologicas (menos gerais).* As nogdes comuns mais gerais so idéias adequadas de propriedades fisicas encontradas em todo e qualquer corpo, ineluindo © humano. As nogdes comuns menos gerais so idéias adequadas de propriedades biolégicas encontradas nos corpos humanos. s comuns constitui o segundo momento da génese da poténcia racional. © primeiro momento é 0 esforgo por afetare ser afetado por paixdes alegres. Como é.a transigdo do primeiro ao segundo momento? “Como chegaremos a nossa poténeia de agir? Enquanto permanecermos de um ponto de vista especulativo, esta questo fica insolivel. Dois erros de interpretagdo nos parecem perigosos para a teoria das, nogdes comuns: negligenciar seu sentido bioligico a0 privilegiar seu sentido matematico; mas, sobretudo, negligenciar sua fungdo pritica ao privilegiar sua fungdo especulativa, A dedugdo das nogdes comuns, no segundo livro da Etica, segue uma ordem demonstrativa que Deleuze chama “especulativa” por ser passagem gradual das nogdes comuns mais gerais as menos gerais, ou seja, das fisicas as biol6gicas. Porém, argumenta Deleuze, na vida pritica nés iniciamos formando as idéias adequadas das propriedades biologicas de nosso corpo e de outros corpos humanos 92 Ca Te || _|| TT “Anon Menezes Roctis 86 depois de pensé-las adequadamente ¢ que somos capazes de passar 4s nogdes comuns mais gerais. Em resumo, nas proposigdes ¢ demonstragées da Etica as nogdes comuns sao formadas por via dedutiva ou, de acordo com 0 vocabulério dos seiscentos, pela via da sintese, a0 passo que, no capitulo sétimo do TTP, texto da politica cespinosana, a histéria da natureza [historia naturae] permite formar as nogdes comuns pela via indutiva ou, de acordo com 0 vocabulirio seiscentista, pela via da anilise. Nao obstante existir reversdo entre anilise ¢ sintese uma vez que jé tenham sido formadas as nogdes comuns, em seu processo de formagio inicial, em seu fiat lux, hi uma precedéncia da andlise, isto ini la quotidiana com a mos na formagdo das nogdes comuns menos gerais. As nogdes comuns que primeiramente formamos sio de propriedades biolégicas comuns ao nosso corpo ¢ aos outros corpos humanos. Como a mente forma estas nogdes comuns bioligicas? A mente as forma partindo das idéias das afecgdes de seu corpo. © bom encontro, primeiro momento na génese da razdo, constitui uma relagio de nosso corpo com outro corpo humano em que somos passivos, mas sio as idéias das afecgdes passivas alegres de nosso corpo que nos permitirao formar as nogdes comuns. Precisamente a partir das idéias destas afecgdes passivas e alegres que a mente pode induzir a nogdo comum da propriedade comum entre nosso corpo ¢ © corpo exterior na relagdo de bom encontro com o nosso, ‘Em que sentido empregamos ‘induzir’? Trata-se de uma espécie de causa ocasional. (...) Quando encontramos um corpo que convém com 0 nosso, quando experimentamos uma afecso passiva alegrante, somos induzidos a formar uma idéia do que é comum a este corpo € a0 nosso. 93 Fy) oe a Capznnos Esraxosanos XVI - 2007 A mente & uma idéia, mais precisamente, a mente é a idéia do corpo. A mente, sendo idéia do corpo, percebe suas afecgdes, percebe as operagdes, ou seja, as propriedades de seu corpo, Mas a mente forma idéias adequadas das operagdes do corpo de que ¢ idéia, ou seja, forma idéias adequadas das propriedades comuns de seu corpo, apenas enquanto percebe que so propriedades nao apenas de seu corpo, mas, sobretudo, de todos os corpos humanos que afetam o seu, A mente, assim, forma idéias adequadas nao da esséneia de seu corpo, mas de propriedades comuns a seu corpo aos corpos humanos que afeta, Hi uma certa proporcionalidade entre as propriedades comuns (que sdo intercorporais) ¢ as noges comuns (que sio intersubjetivas ou inter-mentais). Se nossa intercorporeidade nos mostra que existem propriedades e operagées comuns a nossos corpos, as nogdes comuns nos permitem pensar estas propriedades ¢ operagdes ¢ so, as nogdes comuns elas mesmas, propriedades ¢ operagdes comuns a nossas ‘mentes. Elas estio para as mentes no pensamento como as propriedades € operagées para os corpos na extensio. ““Comum’, sem diivida, ndo significa somente alguma coisa comum a dois ou muitos corpos, mas também as mentes capazes de formar sua idéia.”* Com efeito, as outras mentes em intersubjetividade conosco nio so espiritos vagando nas nuvens ou em qualquer além, pois so também idéias de seus respectivos corpos, idéias necessariamente formadas pela poténcia do atributo pensamento. Todas as mentes humanas tém percepgdes das operagdes materiais dos corpos de que so respectivamente as idéias, mas isto ndo significa que em cada uma delas prevalegam as idéias adequadas. Pelo contrério, como observa 94 Ca Te || _|| TT “Anon Menezes Roctis Deleuze, formar as idéias adequadas exige um longo e dificil exercicio que implica no esforgo pritico para favorecer os bons encontros e no esforgo teérico que cada mente faz diante de cada afecgao que nasce dos bons ¢ maus encontros em que somos envolvidos. “Tendo conquistado nossa atividade em certos pontos, nos tornamos capazes de formar nogdes comuns, mesmo nos casos menos favordveis. Ha toda uma aprendizagem das nogées comuns, ha um se-fazer-ativo [devenir-actif]: ndo se deve negligenciar a importancia de um proceso de formagao no espinosismo, proceso de formagdo cujo sentido é partir das nogdes comuns menos, universais, as primeiras que tivermos ocasido de formar: Qual a diferenga entre esta racionalidade conereta ¢ a racionalidade abstrata da tradi¢ao? Deleuze distingue dois aspectos que, dos universais abstratos, “testemunham sua impoténcia”: (1) os universais abstratos nos fazem reter apenas, sob uma identidade abstrata, as semelhangas entre imagens que fazemos das coisas ¢ nos fazem negligenciar as diferengas; (2) quanto a esta identidade abstrata, ela & tdo varidvel quanto as disposigées do corpo dos que arbitram. com ela (um assenta que 0 “homem ¢ animal racional”, outro que & “animal que ri”, outro ainda que mt pede sem plumas A impoténeia dos universais abstratos & impedir que nosso pensamento aleance a génese tanto de suas idéias como das coisas de que so idéias, No fundo, os universais abstratos nos encerram nas idiossinerasias de uma imaginagdo abstrata, ou seja, fragmentada, Superar filosoficamente esta tradigdo da abstragdo ndo é cair no irracionalismo, mas é demonstrar qual é nosso verdadeiro poder de raciocinar e a verdade em que nos faz pensar. soa 8 in Fy) oe « Capznnos Esraxosanos XVI - 2007 III-A proporcionalidade entre nogdes ¢ propriedades comuns. A proporcionalidade entre as nogdes comuns no atributo pensamento ¢ as propriedades ou operagdes comuns no atributo extensdo ndo é um privilégio da razio, Ha proporcionalidade nos trés géneros de conhecimento. “O primeiro género de conhecimento tem como objeto somente os encontros entre as partes, segundo suas determinagées extrinsecas, O segundo género se eleva até 4 composigdo das relagGes caracteristicas [rapports]. Mas somente 0 terceiro género conceme ds esséncias eteras: conhecimento da esséncia de Deus © das esséneias particulares tais quais so em Deus e so concebidas por Deus. Assim, nos trés géneros de conhecimento, encontramos os trés aspectos da ordem da Natureza: ordem das paixdes, ordem de composigao das relagdes, ordem das esséncias elas mesmas.” Se consultarmos 0 décimo quinto capitulo, em que Deleuze apresenta as trés ordens da Natureza (que sao a estrutura triddica de expressdo ontoldgica dos atributos), notaremos que as nogdes comuns, so proporcionais a modos infinitos da extensdo, Mais precisamente, as nogdes comuns mais gerais ou fisicas so nogdes do movimento & repouso, isto &, modos infinitos mediatos do atributo extensao."” Na medida em que nosso conatus devém ativo, isto é, nossa poténcia se torna racional ou raciocinante, participamos da inteligéncia infinita, sabemos ter parte!’ no modo infinito mediato do atributo pensamento. Nao significa isto, porém, que o modo finito deixe de ser finito, que nossa natureza humana se transforme, que nos 96 Ca Te || _|| TT “Anon Menezes Roctis transformemos em titds, semi-deuses ou super-homens. Nem significa que nos transformemos numa razdo absoluta que constitui tudo 0 que pensa, 4 mancira do idealismo. Passar da passividade a atividade ¢ justamente vencer a abstragdo, a iusto de um sujeito separado dos outros. O modo finito raciocina na medida em que conhece sua prépria finitude como parte imanente da atividade do modo infinito mediato. Conhecendo sua finitude pelas propriedades que tem em comum com os outros, o modo finito passa a saber que os outros modos finitos também participam da razio (modo infinito mediato do pensamento), mesmo quando tenham sobretudo idéias inadequadas acerca de si mesmos, O exemple da gramatica pode nos ajudar. Os eseritos hebraicos nada significardo para nés se nosso corpo nao tiver, previamente, 0 conhecimento da lingua hebraica, Havia algo de comum entre os cédices hebraicos da Biblia e o corpo de Espinosa (educado desde menino no estudo da lingua hebraica): este algo comum entre o corpo de Espinosa e os cédices hebraicos da Biblia era a lingua hebraica. 0 corpo de um homem que nao foi educado na lingua hebraica nada decifrard ao passar os olhos pelos escritos hebraicos, pois nao ter’ a lingua hebraica como propriedade comum a seu corpo e a0 corpo do texto hebraico. O mesmo se pode pensar acerca de cédices do mandarim, do snscrito ou do persa antigo. As noges que formamos acerca das linguas so de uma terceira ordem de generalidade, menos comuns que as biolégicas e remetem, como outras instituigdes nos textos politicos de Espinosa, a experiéncia histérica de povos particulares. Deleuze nao as considera em seu trabalho, mas o leitor pode aprofundar seu estudo na tese de doutoramento de Homero Santiago, sobretudo através do conceito de geometria do instituido. Voltemos ao estudo de Deleuze, apés 0 exemplo da lingua. 7 soa 8 in Fy) oe * Capznnos Esraxosanos XVI - 2007 Um homem que vive na passividade s6 percebe fragmentos do sensivel e desta maneira abstrata é que interpreta a si e aos outros. Facilmente pensa a si ¢ aos outros como substincias, isto é, como substratos Giltimos de acidentes. Um homem que vive na atividade, que se formou para as nogdes comuns, conhece a sie aos outros como expresses singulares de um mesmo e tinico estofo substancial. Conhecendo as propriedades comuns a sie aos outros, conhece a “gramética” das relagdes entre os modos finitos ¢ por isto pode “escrever” sua existéncia dando sentido ativo as paixdes alegres, dando razdo aos bons encontros. As nogdes comuns, elas mesmas, so propriedades ou operagdes comuns As mentes dos que conhecem a “gramatica” e dos que a desconhecem, embora “falando” a mesma “lingua”. Ora, as nogdes comuns amaneira dos principios da analitica de Aristételes. Nao so comuns 4 nossa mente ¢ & mente dos outros porque sejam representagdes ou cépias idénticas no interior de ménadas sem janelas. As nogdes comuns sio relagdes entre nossas mentes, porquanto so o modo infinito mediato do pensamento que é proporcional 4 ordem das relagdes [rapports] de movimento e repouso que é 0 modo infinito mediato do atributo extensao. As nogdes comuns sao 0 nexo intrinseco que explica a intersubjetividade originaria entre as nossas mentes. © conhecimento da esséncia singular de cada um, a partir deste nexo, se faz com a atividade intuitiva 98 Ca Te || _|| TT ‘Axon Menezes Roctia Bibliografia Deevze, Gilles. Spinoza et le probléme de I'expression. Les Editions de Minuit, Paris: 1968. Pagina 253. ‘Caut, Marilena de Souza, Ser parte e Ter parte: Serviddo e Liberdade na Etica IV (Preficio, definigdes, axiomas). Apud: Discurso, n 22, p. 63-122, Sao Paulo, 1993. Santiaco, Homero Silveira. Ouso ea regra: ensaio sobre a gramdtica espinosana. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da USP pata a obtengao do titulo de doutor. No prelo. Notas Deleuze, Gilles. Spinoza et le probléme de Iexpression. Les Editions de Minuit, Paris: 1968. Pagina 253. ? Deleuze, Gilles. Idem. Pagina: 259. 8 Sobre esta divisto das nogdes comuns. Deleuze, Gilles. dem, p.254 © 255. * Deleuze, Gilles. dem P. 260. 5 Deleuze, Gilles. Idem P.261. * Deleuze, Gilles, dem. P.259. 7 Deleuze, Gilles. Idem. P.267 * Para a critica dos universais abstratos. Deleuze, Gilles. Idem. p.256 © 257, 9 Capznnos Esraxosanos XVI - 2007 * Idem. P.282. Vide paginas 214 e 215. ” Para aprofundar o estudo da diferenga entre a participagao imaginativa, a participago racional e a participagdo intuitiva. Chaui, Marilena de Souza. Ser parte e Ter parte: Serviddo e Liberdade na ca IV (Prefiicio, definigées, axioma). Apud: Discurso, n 22, p. 63- 122. Sao Paulo, 1993. Entretanto, o leitor deve saber que a leitura de Marilena Chaui supera a leitura de Deleuze ¢ que a diferenga se estabelece jd na interpretacao das definigdes do primeiro livro da Etica. 100

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