You are on page 1of 364
i ee, | ciéncia e arte com integridade ALISTER MCGRATH ©1992, de Alister McGrath “Titulodo original: Bridge- Building Exdigio publicada por Inrer-Vanstrr PRESS. (Leicester, England) Teds os diveits deta tradusio om lingua portuguesa reservados por Eprrora Vinw Rua Jilio de Castilhos, 280 Belenzinho CEP 03059-000. So Paulo, SP ‘Tel: 0 xx 11 6618 7000 Fax: 0 xx 11 6618 7050 ‘www.editoravida.com br www,vidaacademica.net FC PRotmibA A REPRODUGAO POR QUAISQUER MEOS, SAINO EM BREVES CITAGOES, COM INDICAGAO DA FONTE. ‘Todas as citagbes biblicas foram extraidas da ‘Nova Verio Internacional (NVD, ‘©2001, publicads por Bdicora Vida, salyo indicagio em contritio. Editor responsivel: Assistente editorial: Ester Tarrone Revisio de tradusio: Daniel Yoshimoco Revisio de provas Josemar de Souza Pinto Diagramscio: Efanet Design Capa: Are Peniel Dados Internacionais de Catalogacio na Publicacao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) McGrath, Alister(1953— “Apologética cristé no século XXI: céncia ¢ arte'com integridade / Alister McGrath; tradugio Emirson Justino e Antivan Guimaries — Sio Paulo: Editora Vida, 2008, Tilo original: Bridge-building ISBN 978-85-383-0016-8 1. Apologética. 2. Teologia -Estudo eensino, 1. Titulo. I. Série, 07-8548 con 239 Indice para catilogo sistematico: 1. Apologética : Defesa da f& : Cristianismo 239 Sumario TIN URODUGA Gy citrine asia ae meme 9 PARTE I — CRIANDO ABERTURAS PARA A FE 1. O ponto de contato: As bases teoldgicas da apologética eficaz : 1D 1. A apologética fundamenta-se nas doutrinas dacriagdoe da redenede sscascccvctbiisssssitiv sacressaieanatiee 20 2. A apologética é baseada na capacidade de Deus comunicar sobre si mesmo em linguagem humana ........ 31 3. O ponto de contato no pensamento evangélico cldssico: Joao Calvino 4, Nenhum ponto de contato? Uma critica 4 apologética pressuposicionalista 5. Constituigao teolégica da apologética .. 6. A apologética dirige-se a priblicos espectficos ......-...-00+- 59 2. Pontos de contato: Sua identidade e potencial 1. Uma sensagao de desejo nao satisfeito. 2. Racionalidade humana ..... 3. O ordenamento do mund 4. Moralidade humana 5. Angtstia existencial ¢ alienagao 6. Consciéncia de finitude e de mortalidade ..... 7. O ponto de contato na pregacao evangelistica . 3. O passo de fé: Do assentimento ao compromisso ...... 102 1, A natureza da fé 2. Aapologética nao cria a fé 3. As limitagdes da apologética 4. O ponto de contato como ponto de partida 5. A decisao de crer PARTE Il - VENCENDO BARREIRAS A FE 4. O que impede as pessoas de se tornarem cristas? Identificando barreiras 3 fé 125 1. Barreiras intelectuais a fé .. . 126 2. As associagées histéricas do cristianismo - 130 3. O problema da pertinéncia...... - 141 4. Equivocos sobre a natureza do cristianismo . . 146 5 Pomeredccreaateclat 148 6. Comprometimento anterior com outro sistema de fé .. 155 7. O problema da integridade pessoal... es 166 8. Um sentimento de culpa ou de inadequacio .............. 172 5. Barreiras intelectuais 4 fé 1, Seria Deus mera esperanga? 2. O sofrimento.. pve - 185 - 198 - 21D, azal 237 3. Pluralismo religioso 4. Aressurreicao .. 5. A divindade de C 6. Pecado ¢ salvagao.... to 6. O choque de cosmovisdes: Os rivais modernos do cristianismo 253 - 258 2 ee 1. O racionalismo iluminista 2. Marxismo 6 3. Materialismo cientifico 4. Feminismo 5. O pés-modernismo 6. A Nova Era (New Age) CONCLUSAO Apologética em acao: Da teoria & pratica ......secseeseeeee 325, 1. A apologética como didlogo 2. Apologética e pregacio .... 3. Oapelo 4 imaginagio...... 4. A apologética ¢ as formas literdrias: desyendando TEAS ssssenassvensescousssbbucsnontetsnedes 5. Oapelo a cultura 6. Temos tempo para algumas perguntas. 7. Comentarios finais .... Bibliografia complementaar ........sssssssesscsssssesssisessesiessenseteee 361 Introduc¢ao O que é apologética crista? Em seu sentido primordial, é uma apologia da fé crista,' uma apresentacao e defesa de suas reivin- dicages de verdade e importancia no grande mercado das idéias. A medida que a importincia da evangelizagao cresce dentro da comunidade crista em nossos dias, a necessidade de uma justifica- tiva séria e responsavel dos principais temas da fé crista reveste-se de importancia cada vez maior. O objetivo da apologética con- siste em conferir integridade e profundidade intelectuais & evan- gelizacao, assegurando assim que a fé permanega arraigada na mente e no coracao. A fé crista nao lida apenas com sentimen- tos ou emogées; lida com crengas. Crer em Jesus Cristo nao significa apenas amé-lo, adord-lo ou confiar-se a ele. E crer em certas coisas bem definidas a seu respeito, as quais fundamen- tam e justificam esse amor, adoracao e confianca nele. A crenga em Deus acha-se inseparavelmente associada a crengas sobre Deus. "© termo grego € usado nesse sentido em 1 Pedro 3.15. O apéstolo convida aqui seus leitores a apresentar uma defesa racional da esperanga que tém em Cristo. O objetivo principal da apologética crista é criar um clima inte- lectual e imaginativo que conduza ao nascimento e ao cultivo da fé em toda a sua plenitude e riqueza. No entanto, como isso deve ser feito? A apologética tradi nal sempre se apoiou no elogio a racionalidade das declaragdes crists quanto & verdade.? Ela sempre se lancou firmemente em meio as grandes disputas intelectuais que cada época tem apresen- tado como obstaculos a fé em Deus, tais como 0 enigma do softi- mento humano ou as dificuldades encontradas para provar a real existéncia de Deus. Com a sofisticagao de seus argumentos e com distingdes e sutilezas cada vez mais refinadas, a apologética tem procurado assegurar que a voz dos cristaos nao deixe de ser ouvida em um mundo intelectual crescentemente secularizado. A apologética tradicional tem um histérico honrado dentro da tradicao crist. Ela tem servido bem a igreja ao longo dos sécu- los e continuard a servi-la no futuro. Todavia, nem tudo esta bem. A apologética tradicional parece muitas vezes radicada em um mundo moribundo, um mundo em que as reivindicagées de ver- dade do cristianismo eram testadas sobretudo nas salas de semi- ndrio de velhas universidades, onde a racionalidade era vista como critério maximo de justificagao.’ Acreditava-se que as estratégias apologéticas nao dependiam de tempo ou lugar. Os mesmos prin- cipios gerais poderiam ser usados vezes sem conta, como se fossem permanentemente recicldveis. As perguntas eram sempre as mesmas, quer na Universidade de Paris do século XIII, quer na Universidade de Oxford, no século XVIII, quer na Universidade V. 0 excelente estudo de R. C. Sprout, John Gerster ¢ Arthur LINDSLEY, Classical Apologetics: A Rational Defense of the Christian Faith and a Critique of Presuppositional Apologetics (Grand Rapids: Zondervan, 1984). Apologética é ali definida como “defesa racional da religiao crista” (v. p. 13 ¢ 16). Hialguns comentérios importantes sobre as limitag6es da racionalidade em Francis ScHaterer, Trilogy (Leicester: Inter-Varsity Press, 1990), p. 123-5. de Princeton, no século XIX. Perguntas de ordem geral recebiam respostas também gerais. Para as mesmas perguntas, respostas iguais. As respostas podiam se tornar cada vez mais refinadas e sofisticadas; nao obstante, permaneciam praticamente as mesmas, recorrendo basicamente aos mesmos recursos filoséficos classicos. E neste ponto que se torna possfvel discernir uma séria debili- dade em determinados raciocinios apologeéticos. Freqiientemente, tais racioc{nios parecem depender do senso comum ou da tradi- sao filoséfica ocidental, negligenciando os recursos filosdficos & sua disposi¢ao. Para citar apenas um exemplo, o imenso poten- cial teolégico das doutrinas cristas da criacao e da redengio foi muito pouco explorado, resultando em um empobrecimento qualitativo da apologética crista, tanto na substancia quanto na forma. Depender exclusivamente dos recursos da razao é desper- digar recursos vitais que se acham a disposicao, uma vez que eles foram concedidos para serem usados. A idéia de “ponto de con- tato”, rigorosamente fundamentada nas doutrinas da criagao e da redengio, revela a importancia da questao. O presente livro, por- tanto, pretende ser teoldgico em sua perspectiva, salvaguardando assim os preciosos insights que o evangelho tem a oferecer por si mesmo Aqueles que o defendem e o proclamam, nao se fiando nas formas de pensamento da razio. Como toda disciplina importante, a apologética tem um pedigree, um histérico longo ¢ respeitayel. Desde os dias do Novo Testamento, os cristaos vém defendendo sua fé contra todo tipo de critica e de equfvoco.’ Trata-se de uma histéria fascinante em si mesma. A maneira pela qual Aristides, Justino Martir e Atendgoras defenderam e justificaram a fé crist no mundo greco- romano do século II ¢ fascinante ¢ langa luzes de diversos angu- los diferentes sobre coisas tais como a natureza do platonismo e * V. uma excelente pesquisa em Avery DuLtes, A History of Apologetics (Philadelphia: Westminster Press, 1971). dos equivocos populares quanto ao culto cristao desse perfodo. (Afinal, os cristaos devoravam uns aos outros ou nao? E as tais festas do amor, eram ou nao orgias?) Todavia, ¢ preciso aqui uma palavra de cautela. O contexto ao qual esses escritores se dirigiam tém hoje, em geral, pouca rele- yancia apologética, independentemente de seu apelo para os his- toriadores do pensamento. A Alexandria do século II, a Paris do século XIII e a Cambridge do século XVII (s6 para citar alguns perfodos relevantes da histéria da apologética crista) descansam no passado. O contexto delas nao tem necessariamente muita relagao com o nosso. Existe o perigo real de que um manual dedi- cado A apologética crista acabe por se perder em anilises histéricas por demais extensas simplesmente porque ¢ algo que se espera dele. A experiéncia mostra que, com freqiiéncia, essa se¢ao de tais obras geralmente passa despercebida, como se fosse algo irrelevante para aquilo que realmente importa. “Quem se importa com o que Justino Martir tinha a dizer, j4 que isso nao passa de curiosi- dade de museu? E contexto de hoje que exige atengio!” A situagao de fato mudou. O foro de discuss6es mudou radi- calmente. Hoje, elas jé nao ocorrem no ambito das universidades e dos livros-texto. E no mercado das idéias, e nao nas salas de semindrio das universidades, que o cristianismo deve pelejar por sua vida. O esttidio de televisao, a imprensa nacional, a lan- chonete das universidades e 0 shopping center local constituem os novos palcos de debates nos quais as declaragées de verdade por parte do cristianismo sao julgadas e testadas. O cristianismo deve se distinguir por sua relevancia para a vida, e nao apenas por sua racionalidade intriseca. Muito embora as grandes quest6es glo- bais, como, por exemplo, o softimento, continuem na ordem do dia nesta nova geracao, uma série de problemas locais exige respostas. As quest6es locais nos obrigam a desenvolver uma apologética de sabor local, pois sé assim o cristianismo conti- nuard a ser uma op¢ao viva para toda e qualquer localidade. 12 Acima de tudo, devemos nos conscientizar de que a apologética é mais do que um louvor a atratividade cerebral oferecida pelo cristianismo. A apologética classica sempre tratou 0 cristianismo simplesmente como um conjunto de idéias, defrontando-se com uma série de barreiras intelectuais que podem ser neutralizadas, ou até mesmo sobrepujadas, por meio de argumentos aos quais nao deve faltar sensatez. Quase sempre, a apologética tradicional buscou tecer elogios ao cristianismo sem nunca questionar por que tanta gente nao € crista.° E inécuo enaltecer 0 apelo que tem a fé crista, se isso nao se fizer acompanhar de um sério esforgo para descobrir por que tanta gente a considera tao pouco atraente. Existe uma relutancia em ouvir aqueles que se acham fora da comunidade de fé, para entender (ouvindo deles) por que nao se juntam a nds. Aqueles que ainda nao descobriram o cristianismo ¢ 0s que o rejeitam, inconsciente ou deliberadamente, geralmente 0 fazem por motivos que escapam totalmente a teia de interesses da apologética tradicional. E preciso identificar tais raz6es, bem como os expedientes a elas associados, para que se possa desafid-las. Que raz6es seriam essas? A Histéria sempre conspira contra 0 ctistianismo ao apontar para ligac6es passadas inaceitdveis entre a igreja crista e situagdes de opressio polftica ou social. A cultura sempre joga seu peso contra o evangelho, deixando implicito que ser cristao nao é algo que se possa considerar aceitavel. Ser cristao consiste, quase sempre, em aceitar um conjunto de valores que se opée ao da cultura dominante. Por conseguinte, os cristdos se véem tachados de alienados, outsiders culturais, gente que nao pertence ao mesmo ambiente de seus companheiros. Isso pode resultar na formagao de uma contracultura crista. Em certo sentido, presses desse tipo nao sao de natureza inte- lectual. Nao se trata de “argumentos” no sentido de questdes 5 Uma excegio novivel € If There is God, Why are There Atheists?, de R. C. ‘SPROUL (Minneapolis: Bethany, 1974). 13 justificadas racionalmente em sua contraposi¢io 2 fé crista. Tais pressdes existem de fato. Elas afetam as pessoas, moldam sua ati- tude em relagao 4 fé ¢ instilam nelas preconceitos.® Sao parte de uma matriz mais ampla de argumentos, atitudes e valores, os quais, coletivamente, produzem um clima cumulativo hostil 4 fé. Dei- xar de considerd-las ou de avalid-las resultard em uma apologética truncada, incapaz de satisfazer a seriedade que o desafio atual a fé nos coloca. Portanto, temos de aceitd-lo em toda a sua plenitude. Um desafio exige uma defesa, uma apologia. Por motivos como os que acabei de mencionar, a ciéncia da apologética tradicional parece ter encalhado em algum baixio, fi- cando assim & margem do real debate, ignorada pelos formadores de opiniao. E urgente que seja reavivada. A ciéncia da apologttica, grandiosa nos dias em que brilhou, parece tristemente irrelevante no debate que ora se verifica na era moderna. Hoje, quase sempre ela nao passa de um dado marginal na discussio que se trava na sociedade moderna, precisamente porque busca seu apelo em um elemento cada vez mais marginalizado no interior dessa socie- dade, o meio académico. A linha de frente da fé encontra-se hoje em outra parte, especificamente no pregador cujos sermGes tém como objetivo renovar a confianga do cristao comprometido e desafiar quem se acha do lado de fora; no executivo de empresa que compartilha sua fé com seus colegas de trabalho; ou no estu- dante que expée no campus as raz6es da sua fé. A apologética precisa de revitalizagao criativa e eficaz. Uma nova situagao sig- nifica que é preciso adaptar um expediente tradicional as suas necessidades e oportunidades. A ciéncia da apologética deve ser complementada pela arte da apologética. Uma pesquisa recente entre estudantes mostrou que as duas principais razbes para a rejeigdo do cristianismo sdo: “os cristdos sao hipécritas” ¢ “os cristZos s40 muito exclusivistas’. Nenhuma dessas duas razbes é de origem “académica” ou “intelectual”. Robert M. Kacuur, “Why I’m nota Christian’, HIS (February 1986), p. 7-10. O objetivo deste livro consiste em remodelar a apologética cris- ta, adaptando-a a essas novas necessidades e oportunidades. Nao é seu propésito descartar ou desacreditar os enfoques apologéticos tradicionais; pelo contrdrio, seu objetivo € complementé-los, tor- nar disponiveis diferentes formas de conceber a tarefa apologética e lidar com ela, formas que complementem os enfoques mais tradicionais. Este livro nao tem pretensdes académicas, embora repouse sobre fundamentos rigorosamente académicos. Ele nao se acha limitado a uma teoria apologética tinica, tampouco a um tinico enfoque ou aos escritos de um tinico apologista de maior projecao. Seu objetivo, pelo contrdrio, consiste em tornar os re- cursos substanciais da tradi¢ao apologética crista palpdveis as pes- soas € as situagdes de maior relevancia na sociedade moderna. Acima de tudo, 0 objetivo deste livro é estimular os leitores a que examinem e formulem abordagens em defesa do evange- tho, adequadas as suas necessidades e oportunidades particulares. Embora reconhega os pontos positivos da ciéncia apologética ba- seada em fatos, recomenda-se aqui a arte do enfoque orientado para pessoas. A apologética responsdvel baseia-se no conhecimento tanto do evangelho quanto do publico a quem se dirige. As pes- soas tém diferentes motivos para nao se tornarem cristas. Elas apresentam diferentes pontos de contato com o evangelho, Uma apologética insensfyel & individualidade humana e & variedade de situagGes nas quais as pessoas se encontram caird rapidamente no vazio. A apologética é um recurso, e cabe ao apologista fazer as rela- ¢Oes com a vida das pessoas, de carne e osso, do mundo atual. Sem essa ponte, as teorias nao passam de teorias, nada sao além de idéias abstratas suspensas no ar sem nenhuma fundamentacao na realidade da vida. A histéria da apologética crista, porém, mos- tra que tais relag6es podem ser feitas, assim como a histéria da Igreja mostra que devem ser feitas. Feitas as contas, conclufmos que a apologética nao tem que ver com a vitéria de uma argu- mentagao sobre outra; seu objetivo é conquistar pessoas. O apologista eficaz é aquele que ouve antes de falar e que despende todo esforgo necess4rio para vincular os recursos da tra- dicao apologética crista tanto as necessidades do individuo quan- to 4 sua capacidade de lidar com argumentos e imagens. A arte da apologética eficaz ¢ trabalhosa, uma vez que exige a um s6 tempo o dominio da tradicao crista, a capacidade de ouvir sem preconcei- tos ea disposigao de fazer 0 esforgo necessdrio para expressar idéias nesse nivel, e tudo isso de tal forma que o ptiblico possa se bene- ficiar dele. E trabalho 4rduo, mas os resultados justificam o inves- timento nesse tipo de rigor intelectual e preocupacao pastoral. A criatividade é essencial, a menos que se queira relegar a apo- logética ds paginas empoeiradas dos livros-texto ¢ as avaliagGes de dissertacdes na drea de filosofia da religiao. Isso porque a apologética éuma disciplina pratica, alimentada por fontes académicas, porém voltada para o mundo real da acao. Infelizmente, vezes sem conta, aapologética é reduzida a idéias jogadas ao redor das salas de aula dos semindrios, onde ela deveria estar preparando o terreno para mudar 0 coracao e a mente das pessoas de nossas cidades. Este livro originou-se de uma série de palestras proferidas na Universidade de Oxford, desenvolvidas posteriormente durante uma turné de palestras nos Estados Unidos e na Austrdlia. Sou grato aos alunos que delas participaram por seus preciosos co- mentarios. Sou grato a intimeras pessoas, dentre as quais devo mencionar 0 professor Gordon R. Lexis, do Semindrio de Denver, que leu este trabalho ainda digitado e fez sugestées de melhoras extremamente valiosas. Espero que esta obra sirva de instrumento para enriquecimento e animo do povo de Deus nos anos por vir. E grande a tarefa que aguarda os cristaos; por isso, precisam de todo ferramental de que possam se valer. De que modo, entao, serd possivel realizar a tarefa que nos foi proposta? De que modo a ciéncia e a arte da apologética se rela- cionam uma com a outra? Comecaremos langando sélidos fun- damentos teoldgicos sobre os quais podemos constru(-la. Parte I Criando aberturas para a fé 1 O ponto de contato: As bases teoldgicas da apologética eficaz O titulo deste livro evoca uma imagem que, por sua vez, nos oferece uma chave do método aqui utilizado. “Construindo pon- tes” implica a existéncia de uma lacuna, de um abismo entre os dois lados de uma garganta. Estes ficarao permanentemente iso- lados, a menos que a lacuna seja interligada por uma ponte. A apologttica crista eficaz € aquela que tem como objetivo localizar 0s pontos onde se daa separacao entre 0 evangelho e os individuos e as comunidades do mundo todo, e que identifica os melhores pontos para a construgao de pontes, para que o contato seja estabe- lecido. A natureza e a localizagao dessas lacunas variam de cultura para cultura e de um individuo para outro, assim como as localiza- Ges € os tipos das pontes a serem construfdas. O apologista cristio descobrird, encantado, que Deus ja langou os fundamentos dessas pontes no mundo e no coragao humano; nossa responsabilidade consiste em construir sobre esses fundamentos, fazendo as ligacgdes necessdrias. O “ponto de contato” é um desses tais fundamentos. Neste capitulo, examinaremos as bases teolégicas dessa idéia apologética central. * Bridge-building, no original {N. do E.] 1. AAPOLOGETICA FUNDAMENTA-SE NAS DOUTRINAS DA CRIAGAO E DA REDENCAO O primeiro grande insight encontrado pelo leitor das Escritu- ras é que Deus criou o mundo. Seria alguma surpresa, portanto, se essa criagéo carregasse um testemunho dele? Ou que 0 ponto alto de sua criagao, o ser humano, trouxesse consigo a marca de sua natureza?! E que essa marca tivesse um valor considerdvel como ponto de partida paraa apologética? Paulo acreditava apai- xonadamente na verdade teoldgica e na importancia apologética desse insight (Romanos 1—2). Nao deve, portanto, constituir motivo de espanto o fato de que podemos discernir “sinais de transcendéncia’ (Peter Berger) na vida humana. Se jd existe algum ponto de contato, a apologética nao precisa estabelecer os fundamentos do conhecimento cristo de Deus; ela pode se valer do ponto de partida dado por Deus no Aambito da prépria natureza da ordem criada, O testemunho de Deus em sua criagao pode agir como uma espécie de gatilho, esti- mulando as pessoas a formularem perguntas sobre o significado da vida ou sobre a realidade de Deus. Esses pontos de contato nao esto ali por acaso. Eles existem para serem usados. Por meio da graga de Deus, a criagao ¢ capaz de apontar para seu criador, Pela generosa graca divina, foi-nos deixada uma me- méria latente de Deus capaz de nos quebrantar para, entao, nos religar a cle em toda a sua plenitude. Embora exista uma ruptura entre o ideal e o empirico, entre o reino da criagao decaida eo da redimida, a meméria dessa conexao permanece viva, juntamente com a insinuagao de sua restauracao por meio da salvagao. Seu eco é perfeitamente perceptivel em escritos como os do poema Primavera, de Gerard Manley Hopkins, com seus sinais dramati- cos poderosos de lembrangas de um paraiso perdido: 1 Cf David Cairns, The Image of God in Man (London: Collins, 1973). 20 Que humores sao esses e que alegria é essa? E 0 som da terra, ser doce, nos primérdios do jardim do Eden. No entanto, como essa idéia pode ser usada? Que exemplos podem ser dados de tais pontos de contato e de seu potencial uso apologético? O presente capitulo tem como objetivo mostrar a importancia da idéia de “pontos de contato” para o apologista cristo. Antes de seguirmos adiante, devemos esclarecer um sério equi- voco em relagao a natureza e funcao desses pontos de contato. Os pontos de contato nao sao, em si mesmos, meios adequados para atrair pessoas ao Reino de Deus; eles sao pontos de partida para esse objetivo. Tampouco sao adequados em si mesmos para atrair as pessoas especificamente a fé crista@. Podem, quando muito, apon- tar para a existéncia de um ser supremo criador e benevolente. A ligacao com o “Deus ¢ Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Pedro 1.3) é algo ainda por fazer. Essa idéia foi exposta com muita lucidez pelo renomado fisico teérico John Polkinghorne. Depois de dedicar varios capitulos a um levantamento de alguns pontos de contato com o evangelho, o autor observa: Os tipos de consideracao esbogados nos capitulos anteriores me levariam, creio cu, a assumir uma visio tefsta do mundo. Por si s6, isso seria o maximo que conseguiriam de mim. A razo pela qual pertengo & comunidade crista explica-se por certos eventos que tiveram lugar na Palestina cerca de dois mil anos atrds. De certa forma, os pontos de contato criam um clima de receptividade ao tefsmo, incluindo 0 cristianismo. Contudo, nao sao suficientes. Cabe ao apologista mostrar que 0 evangelho cris- tao é coerente com esses pontos, que ele é capaz de explic4-los e, 2 John PoLkiNcHorNE, The Way the World is (London: SPCK, 1983), p. 33. 21 mais do que isso, de proporcionar tudo 0 que prometem, trans- formando esses indicios em realidade. Ponto de contato é um ponto de apoio dado por Deus para a auto-revelacao divina. E um catalisador, mas nao um substituto da revelacao divina. F como uma linha de batedores de um exér- cito, que prepara o terreno para a forga maior que a segue. E semelhante ao momento que precede o raio, em que se estabelece uma via de condugao entre a terra € 0 céu, de modo que a quan- tidade massiva de energia do relampago possa ser descarregada por completo na terra que a espera. Deus da de si mesmo no ato da revelacao e, em certo sentido, ele j4 preparou o terreno para essa doagio, nao para antecipa-la, nem para dispensé-la, mas sim- plesmente para tornd-la mais eficaz quando finalmente se der. De que modo, entao, o pecado do homem se encaixa nisso? A doutrina crista da redencao afirma que a natureza humana, como a vemos e entendemos hoje, nao é a natureza humana que Deus planejou. Isso nos obriga a demarcar uma linha divi- séria muito clara entre a natureza humana original e a decafda, entre 0 ideal ¢ o real, o protétipo ¢ 0 que hoje existe. A imagem de Deus em nés acha-se desfigurada, mas nao destrufda. Con- tinuamos a ser criaturas de Deus, mesmo em nossa condi¢ao decatda. Fomos criados para a presenga de Deus; contudo, por causa do nosso pecado, sua presenga tormou-se como que um sonho. O que deveria estar cheio do conhecimento, da gléria e da presenga de Deus encontra-se, em vez disso, vazio ¢ frustrado, como um forte em rufnas. Af reside a esséncia da dialética entre a doutrina da criagdo ea doutrina da redengao, sobre as quais repousa a apologética crista eficaz: existe uma relagéo com Deus, que foi rompida, e uma espera por Deus em nosso interior ainda insatisfeita. A criagao estabelece uma potencialidade frustrada pelo pecado; contudo, a magoa e a dor dessa frustragao persistem em nossa experiéncia. 22 E precisamente essa percepgao de insatisfacao que estd por trds da idéia de um ponto de contato. A consciéncia dessa percepgao de vazio ressoa por toda a cul- tura secular. Quem imaginaria que Boris Becker, tenista famoso, pudesse se sentir esmagado por essa sensaga4o de desesperanga e vazio e que, por isso, quase tenha tirado a prépria vida? Apesar de todo 0 seu sucesso, faltava-lhe algo. Fui campedo em Wimbledon por duas vezes, uma delas na qualidade de tenista mais jovem a vencer ali. Eu era rico. Ti- nha todos os bens materiais que desejava: dinhciro, carros, mulheres, tudo [...]. Sei que isso é cliché. E aquela velha his- t6ria sobre cinema e artistas de cinema que cometem suicidio. Eles tém tudo e, mesmo assim, sao infelizes [...]. Eu nao tinha paz interior. Sentia-me uma marionete. Lembramos também de Jack Higgins, escritor de thrillers no auge de sua carreira, autor de romances campeGes de vendas como The Eagle has Landed [A dguia pousou]. Certa vez, pergunta- ram-lhe 0 que ele sabia agora ¢ que gostaria de ter sabido quando crianga: “Que quando se chega ao topo”, teria dito o autor, “descobrimos que nao hd nada la”. Becker e Higgins sio testemu- nhas excelentes do ponto de contato que o mundo da cultura secular nos oferece. Grande parte das pessoas reconhece que falta algo em sua vida, mesmo que nao saiba que nome dar a essa coisa. E talvez se sinta incapaz de fazer algo a respeito. Todavia, o evangelho cristo ¢ capaz de interpretar essa Ansia, esse senti- mento de insatisfagao como uma consciéncia da auséncia de Deus, e assim preparar o caminho para sua reparagio. No momento em que nos damos conta de nossa finitude, que nos falta algo, come- ¢amos a nos perguntar se esse vazio espiritual pode ser preenchido de algum modo. E exatamente essa idéia que subjaz As famosas palavras de Agos- tinho: “Porque nos criastes para vés, 0 nosso coracao vive inquicto, 23 enquanto nao repousa em vés”.’ As doutrinas da criacdo e da redengao combinam-se ¢ interpreta esse sentimento de insatis- facao e falta de realizacao como perda da comunhiao com Deus, que pode ser restaurada. Vemos nelas a imagem da natureza hu- mana despedacada, mas que ainda possui a capacidade de tomar consciéncia dessa perda e, por isso, espera ser restaurada. Agosti- nho compreendeu perfeitamente essa idéia ao referir-se 4 “lem- branga amorosa” de Deus.‘ Trata-se de uma /embranga de Deus que se acha arraigada nas doutrinas da criagao e da redencao, segundo as quais perdemos parcialmente alguma coisa com 0 pecado e, de algum modo, tomamos conhecimento dessa perda por meio da graca de Deus. E uma lembranga amorosa no sen- tido de que se deixa experimentar como sensagao de nostalgia divina, de saudade espiritual. Existe uma sede por mais daquilo que sé temos em parte. O ponto de contato, portanto, é a percep¢ao ou a consciéncia da presenga passada de Deus e a atual debilidade dessa presenga, suficiente para nos comover a ponto de nos sentirmos desejosos de recobré-la em sua totalidade, por meio da graca divina. E como uma alayanca, um estimulo, um aperitivo daquilo que est4 por vir, revelando-nos também a insuficiéncia e a pobreza daquilo que agora possuimos. Tomando emprestadas as palavras de Agos- tinho, o ponto de contato é uma lembranga latente de Deus, reforgada por um encontro com sua criag4o, que possui o poten- cial de nos apontar a fonte por meio da qual a percepgao doce e amarga de sua presenga pode ser satisfeita. Acostinnio, Confissoes, Lil. V. a tradugo de J. Oliveira Santos, SJ. € ‘A. Ambrésio de Pina, §,J. (S40 Paulo: Nova Cultural, 2000). “ Confissoes VILxvii.23, wad. cit. “Nao conseryava comigo senio aquela lem- branga amorosa, desejando, se assim me posso exprimir, os aromas dos alimen- tos que ainda nao podia comer”. 24 Esse € um ponto vital para a apologética crista. E dificil para alguém de fora da fé crista conceber Deus, uma vez que a idéia de “Deus” parece abstrata e disforme. Deus, porém, optou por se tornar conhecido, ao menos em parte, por meio do mundo criado. A criagao é como uma placa de sinalizagao, que nao aponta para si mesma, mas sim para uma direcao ou sentido; no caso, para o seu Criador. Essa placa chama nossa aten¢’o, porque trata de algo que podemos ver ¢ sentir. Se nao formos além da placa no poste, devotando a ela nossa adoracio, e nao aquilo para o que ela aponta, sucumbiremos A religido da natureza; mas, se seguirmos na dire¢ao indicada pela placa, chegaremos ao conhecimento ver- dadeiro do Deus vivo, anunciado na criagao e manifesto em sua substancia plena e gloriosa na Biblia e em Jesus Cristo. Uma das declarag6es mais felizes sobre 0 apelo da criagao aparece nos escritos de Jonathan Edwards (1703-58), prova- yelmente 0 maior tedlogo jé surgido nos Estados Unidos. To- mando como fundamento teoldgico a doutrina trinitaria da criagao do mundo pelo Pai por meio do Filho, Edwards elabora uma apologética natural notavel: O Filho de Deus criou 0 mundo [...] para comunicar-se por intermédio de uma imagem que retrata sua exceléncia pes- soal [...]. Ele transmite uma espécie de sombra [...] de seus atributos mais excelentes [...] de modo que quando nos sen- timos encantados com os prados floridos e com a brisa suave [...] tomemos aquilo que vemos t40-somente como emana- go da doce benevoléncia de Jesus Cristo.’ > Jonathan Epwarns, Miscellanies, 108; citado em Robert W. Jenson, America’ Theologian: A Recommendation of Jonathan Edwards (New York: Oxford University Press, 1988), p. 19. A secao completa, das paginas 15 a 22, merece estudo cuidadoso. 25 A mente humana é como um jardim plantado por Deus, capaz de capturar, ainda que breve e inadequadamente, o puro prazer da beleza do Senhor.$ A apologética crista nao pode ultrapassar os limites dos insights biblicos relativos & revelacdo divina no Ambito de sua criagao, dentro de uma articulacao responsavel por escritores como Calvino e Edwards. Contudo, ela deve se sentir capaz de pressionar os limites plenos autorizados pelas Escrituras. E algo a ser feito com cautela, sabendo-se dos perigos que espreitam a trajetéria de um apelo acritico a criacdo. Entre esses perigos, podemos apontar os seguintes como especialmente significativos: a. Existe um limite para 0 que a razao humana possa saber a respeito de Deus ao apelar para a natureza. Essa consideracao encontra aplicacéo em uma historia ilustre no seio da wadi¢ao crista. A andlise cuidadosa que Agostinho fez do tema da “mente enevoada” € sobremodo importante nesse contexto, j4 que mos- tra que o autor estava ciente das limitag6es potenciais do nosso conhecimento natural de Deus em decorréncia do pecado hu- mano.’ Calvino e Lutero expressaram reservas do mesmo tipo. Existe o perigo, diziam eles, de que aquilo que pode ser conhe- cido de Deus por meio da natureza, por causa do pecado humano, seja tomado como tudo o que dele se pode conhecer. Dessa for- ma, a natureza poderia facilmente ser idolatrada, adorando-se a criagao no lugar do Criador. A resposta de Calvino a essa dificul- dade foi uma estrutura teoldégica sofisticada, por meio da qual o valor da criagao seria afirmado, sem que se confundisse de alguma forma com o Deus que a trouxe a luz. 5 V, oexcelente estudo de Diana BUTLER, “God’ Visible Glory: The Beauty of Nature in the Thought of John Calvin and Jonathan Edwards”, Westminster Theological Journal 52.(1990), p. 13-26. Ha um excelente estudo em G. R. Evans, Augustine on Evil (Cambridge: Cambridge University Press, 1982), p. 29-90. 26 O pecado traz consigo a tendéncia a distorgio, ¢ com isso a revelacéo de Deus na criagao transforma-se facilmente em um idolo feito por nossas préprias maos. Numa critica enérgica a0 racionalismo ingénuo de muitos autores do final do século XVIII, Samuel Coleridge Taylor enfatizou como o pecado afetava a von- tade humana: Em oposigdo a seus princfpios formidaveis, porém ilusdrios, professo uma profunda conviccao de que o homem era e é uma criatura decafda, nao em decorréncia de algum acidente ou de sua constitui¢ao fisica, ou de qualquer outra causa que a sabedoria humana, com o passar dos séculos, venha a ser capaz de remover; nao, ele se acha enfermo em sua vontade.® Aegocentricidade do pecado humano, radicado na vontade humana decaida, expressa-se no desejo fatal da humanidade de- caida de criar Deus 4 imagem ¢ semelhanga dela mesma, em vez de responder de maneira obediente 4 auto-revelacao divina. Tal desobediéncia é indesculpavel (Romanos 1.18—2.16). Toda- via, esse abuso flagrante da revelacao divina em nome da natu- reza nao tira o crédito de um apelo cauteloso e responsdvel a essa mesma natureza como algo que aponta na diregao daquele que a criou e que um dia haverd de se regozijar nela em gloria, isto é, na direcao do préprio Deus. Existe, portanto, uma ruptura no cerne da criagao. A natureza humana decafda é obrigada a refletir a respeito de uma criago também decafda. Temos, assim, uma dupla distorgao onde a pre- senga de Deus busca a conciliagao tanto daquele que contempla quanto do que é contemplado, 0 espectador e 0 objeto. Isso nao significa, de forma alguma, que seja impossivel obter algum co- nhecimento de Deus, ou que nao se possa obter a percepgao da presenga divina. Significa dar-se conta de que esse conhecimento ® Samuel Coleridge Tavior, Aids to Reflection (London: Bohn, 1930), p.92. 27 éimperfeito, fragmentado, confuso e obscuro. A semelhanga de um espelho partido ou de uma janela com vista para uma paisa- gem enevoada, ele nos apresenta uma imagem distorcida. Um “conhecimento natural de Deus” significa, portanto, um conhe- cimento distorcido da divindade, pois, se temos diante de nés um quadro incompleto, tal representa¢ao muito provavelmente nos oferece uma imagem distorcida. Contudo, como ponto de partida, seu potencial é verdadeiro ¢ tem valor. Uma apologética crista responsdvel nao pedird nada além do seguinte: que a per- cep¢ao que temos de Deus, com base na natureza, na criagao, possa ser considerada e transfigurada pela revelagao crista, em Cristo ¢ por intermédio das Escrituras. 6. A criagao, incluindo os seres humanos, é finita, ao passo que Deus ¢ infinito. Como pode o infinito se dar a conhecer pelo finito? Trata-se de um ponto importante e digno de andlise cui- dadosa. Como pode Deus, que é muito maior do que a natureza, revelar-se nela ou por meio dela? Muitos dos primeiros autores crist2os gostavam de fazer a seguinte comparacao: tentar compre- ender Deus é 0 mesmo que tentar olhar diretamente para o Sol ao meio-dia. A mente humana é incapaz de lidar com a divin- dade, assim como 0 olho humano nao pode fitar 0 clarao intenso do Sol, tampouco suportar o calor que emana dele. Como pode, entao, uma criatura finita e frégil chegar um dia a compreender seu Criador? A resposta mais completa a essa indagacao remete ao principio da analogia, uma idéia profundamente arraigada na Biblia, e que foi tratada com argumentos teolégicos sofisticados nos escritos de homens como Tomas de Aquino e Joao Calvino. A iddia ba- sica, denominada freqiientemente de “principio da analogia”, pode ser expressa da seguinte forma: ao criar 0 mundo, Deus deixou nele marcas de sua presenga. Assim como o artista assina scus quadros no intuito de chamar a atenco para o fato de que se trata 28 de criacao sua, Deus também deixou a marca de sua natureza na ordem criada. Isso nao foi nenhum acidente histérico, mas sim a auto-expressao de Deus em seu mundo. Tal como nds lidamos com o brilho do Sol olhando-o com o auxilio de éculos escuros, também Deus se dard a conhecer a nés, de modo pratico, por meio de sua criagao. Como diz Calvino a esse respeito: A maneira mais adequada de buscar Deus nao consiste em tentar, movido por curiosidade arrogante, investigar sua essén- cia (a qual devemos adorar, nao avaliar analiticamente), € sim contempld-lo em suas obras, por meio das quais ele vem a nds € se torna mais prdximo e, assim, de algum modo, co- munica-se conosco.” Isso nado é 0 mesmo que dizer que a natureza é Deus. Nao significa dizer que 0 criador e a criag4o sao uma tnica coisa. Nao estamos nos referindo aqui & totalidade de Deus. Falamos de indicadores, pistas, sinais e placas — coisas que apontam para Deus, mas que, em si mesmas, nao se confundem com cle. c. Entendida de forma equivocada, a teologia natural pode ser vista como uma tentativa humana de encontrar Deus. Existe afa implicacao de que a iniciativa cabe & humanidade decafda, e no ao Deus que se revela e que é seu redentor. Essa preocupacio permeia os escritos do grande tedlogo sufco Karl Barth e deve ser levada extremamente a sério. Em uma famosa palestra sobre “A justiga de Deus”, Barth rejeita com severidade aqueles que cons- troem torres de Babel teoldgicas na tentativa de granjearem reco- nhecimento para si mesmos. Sao iniciativas fadadas ao fracasso, porque nao lhes cabe tomar tal iniciativa. Na Epéstola aos Roma- nos, o autor desfila uma imagem apés outra (“crise”, “distingdo qualitativa infinita”, “fenda glacial”) para enfatizar o fato de que ° Camino, As /nstitutas, Lv.9. 29 existe um abismo entre ndés e Deus, 0 qual jamais, em tempo algum, poderd ser transposto por iniciativa nossa. Trata-se de um tema recorrente também nos escritos de Cornelius Van Til, ao qual retornaremos mais adiante (v. p. 46-53). O mesmo tema recebe novo tratamento em Church Dogmatics [Dogmatica da igreja], de Karl Barth, e encontra expresso furiosa em sua res- posta sucinta & modesta proposta de Emil Brunner para uma teologia natural: Nein! [Nao!]. Até mesmo em suas obras mais conciliadoras, pode-se ouvir a mesma nota estridente: Deus nao se dé a conhecer pelos poderes do conhecimento humano; sé se pode apreendé-lo, ¢ ele s6 se deixa apreender, por causa de sua prépria liberdade, decisio e agao. O que o homem pode conhecer por seu préprio poder, segundo a medida de suas forgas, compreensao ¢ percepgio, sera, no maximo, uma natureza absoluta, a idéia de um poder com- pletamente livre, ou um ser elevado que domina sobre todas as coisas. Esse ser absoluto ¢ supremo, perfeito e mais pro- fundo, essa “coisa em si mesma’, nada tem que ver com Deus." “Nada”? Isso, sem diivida alguma, é um exagero retérico. O principio do ponto de contato permite-nos afirmar que tais idéias sao pistas de algo melhor, insinuagées de alguém que ainda esta por penetrar em nosso pensamento. Barth pode ter exagerado em sua afirmativa; a experiéncia, porém, infelizmente indica que os exageros s4o por vezes necessd- rios para que outros escutem o que temos a dizer. Imaginar que podemos evocar tudo 0 que deve ser dito sobre Deus bastando para isso olhar para a natureza ou para nds mesmos é totalmente irreal. A idéia ultrapassada da “busca humana por Deus” esta equi- vocada: 0 cristianismo diz respeito 4 procura de Deus pelo homem: ‘0 Karl Baxrit, Dogmaties in Outline (London: SCM Press, 1949), p. 23. 30 o Filho de Deus fez uma longa jornada para levar os pecadores de volta ao lar.'* “O verdadeiro conhecimento de Deus” (Calvino) sé pode ser decorréncia da revelagao; Deus, contudo, por sua misericérdia, providenciou antecipagoes e pistas de tal conhecimento salvador no mundo. O conhecimento natural de Deus realiza plenamente seu propésito no momento em que sugere tanto a necessidade quanto a possibilidade de um conhecimento mais completo de Deus do que aquele insinuado pela ordem natural. Tal conheci- mento, porém, trai a si mesmo quando se deixa perceber como um conhecimento completo em si mesmo. 2. AAPOLOGETICA E BASEADA NA CAPACIDADE DE DEUS COMUNICAR SOBRE SI MESMO EM LINGUAGEM HUMANA Deus é capaz de se comunicar com os seres humanos por meio da linguagem humana. Essa crenga é fundamental para a apolo- gética crista, a ponto de se tornar axiomética. Muito embora as palavras humanas sejam inadequadas para fazer justiga 4 mara- vilha e majestade divinas, podem, nao obstante, apontar para ele. Insuficiéncia nao implica falta de confiabilidade. Por mais frag- mentadas e falhas que sejam as palavras, ainda assim prestam-se como meio pelo qual Deus se revela e produz um encontro trans- formador entre o Cristo ressurreto e 0 cristo. A idéia biblica da “palavra de Deus” atesta 0 cardter criativo e transformador das palavras. Ao comentar a importancia da lin- guagem para a auto-revelacao divina no ambito da tradicao bi- blica, um eminente estudioso do Antigo Testamento observou que “a palavra’: "Tema de uma segao de grande impacto na obra de Barth, Church Dogmatics (8 ys: Edinburgh: T.&T. Clark, 1956-75), IV/I, p. 157-210. 31 .. € uma realidade distinta, carregada de poder. Ela tem poder porque emerge de uma fonte de poder que, ao ser liberado, deve, de algum modo, liberar-se a si mesmo [...]. Ninguém fala sem se revelar a si mesmo; a realidade comu- nicada identifica-se com o falante. Portanto, a palavra [...] confere inteligibilidade a coisa ¢ revela o cardter da pessoa que a enuncia.'? A palavra de Deus é poderosa e dinamica e tem a capacidade de comunicar a realidade daquele que a proclama aqueles que a ouvem, Nao é meramente uma “manifestacao verbal escrita, decla- ra¢ao, conjunto de palavras, frase, capacidade de exprimir idéias por meio de sons articulados” (Diciondrio Howaiss); aqui esta a rea- lidade viva de Deus que se torna dispontvel a nds em, por meio de ea que displicentemente chamamos “palavras”. Um dos expoentes mais destacados dessa habilidade de Deus acomodar sua majestade ¢ gléria & pobreza da linguagem hu- mana é Joao Calvino. A ascenséo do movimento humanista no século XVI (vale ressaltar que esse humanismo nao apresenta nenhum sinal do secularismo tao caracteristico do movimento atual de mesmo nome) trouxe em seu bojo um novo interesse por como as palayras € os textos sao capazes de mediar € trans- formar a experiéncia humana. Calvino buscou inspiracao nessas idégias ao formular suas opinides sobre a “palavra de Deus” e sua incorporagao ao texto das Escrituras. O autor expée esse conhe- cimento com tal moderagao que pode até mesmo passar total- mente despercebido. Apesar disso, insights da ciéncia retérica ecoam por seus escritos; de maneira mais superficial no comen- tdrio sobre Séneca (1532), em alguma profundidade na sutil sofisticagao do comentario de Romanos (1540), e talvez de forma 1 John L. McKenzie, “The Word of God in the Old Testament”, Theological Studies 21 (1960), p. 205.

You might also like