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3 COMPETENCIA: Definicdo, Implicagées e Dificuldades Neste Capitulo 3, arriscamo-nos a propor uma defini¢ao da competén- cia, defini¢io fundamentalmente centrada na mudanca de comportamento social dos seres humanos em relagao ao trabalho e sua organizacao. Mostra- remos, em seguida, as dificuldades, mas também as oportunidades que essa mudanga profunda gera. QUE DEFINIGAO DAR A COMPETENCIA? Definigdo do Medef: alcance e limites Medef, ex-CNPF, deu, quando das jornadas internacionais de Deauville, em outubro de 1998, a seguinte defini¢&o de competéncia: “A competéncia profissional é uma combinagéo de conhecimentos, de saber-fazer, de experiéncias e comportamentos que se exerce em um contexto preciso. Ela é constatada quando de sua utilizagdo em situagdo profissional, a partir da qual é passivel de vatidacdo. Compete entéo & empresa identifi- cd-la, avalid-la, validd-la e fazé-la evoluir.”! 1, Ver CNPE, Jornadas Internacionais de Deauville, 1998: objetivo competéncias, t. 1, outubro de 1998. De outro lado, retomamos no préximo capitulo, ainda que com modificagées, 0 essencial do contetido de nosso relatério de avaliacdo publicado no t. 8 das mesmas jornadas. COMPETENCIA: DEFINIGAO, IMPLICACOES E DIFICULDADES 670 Essa defini¢ao possui um mérito considerdvel: indica claramente a mudanga radical que é preciso operar no tocante ao modelo do posto de trabalho. A compe- téncia é realmente a competéncia de um individuo (e nao a qualificacio de um emprego) e se manifesta e ¢ avaliada quando de sua utilizagdo em situacdo profis- sional (na relac&o pratica do individuo com a situagao profissional, logo, a manei- ra como ele enfrenta essa situa¢ao esté no 4mago da competéncia). Por outro lado, a competéncia sé se revela nas agdes em que ela tem 0 co- mando destas tiltimas. £ nessas agdes que podemos percebé-la, mesmo tendo que correr o risco de precisar inferir, dessas agdes, as competéncias que permitiram realiz4-las com sucesso. Em outras palavras, a competéncia sé se manifesta na \atividade prética, é dessa atividade que poder decorrer a avaliagao das compe- téncias nela utilizadas. Com essa definig&o reata-se com as preocupacées iniciais em meados dos anos 80, e nos afastamos dos sistemas tecnocrdticos que haviam tentado “captar” a competéncia independentemente de suas condicdes concretas de utilizacdo, No entanto, essa definicao possui muitas limitaces: 1. Nao informa nada sobre implicagées de mutagées do trabalho e de sua or- ganizacao. Tal definicdo pode ser aplicada a qualquer periodo histérico e a qual- quer organizagao do trabalho. Observemos que é, por exemplo, perfeitamente aplicével em uma organizacao taylorista. A ado do operario taylorista pode per- feitamente ser descrita nos termos dessa definigéio, mesmo quando a referéncia ao posto de trabalho esta ausente. Como oculta as implicacdes do que esté em jogo, sua neutralidade deixa o caminho aberto a todas as composicées possiveis. 2. Implicitamente, essa definicdo comporta um flanco neo-artesanal. O exem- plo mais perfeito que se poderia dar para ilustré-lo seria o do padeiro fazendo seu pao pessoalmente. Poder-se-ia constatar, no momento da preparacdo e do cozi- mento do pao, no resultado obtido (0 “bom” pao), a competéncia do padeiro, e validé-la in situ. muito provavel que seja possivel inferir a combinagao de co- nhecimento, de saber-fazer, de experiéncias e de comportamento que precisaria ser empregada em um contexto preciso (diante do forno), combinacao que expli- caria o éxito do cozimento. Essa visio neo-artesanal deixa inteiramente de levar em conta as condicdes de uma produc&o moderna, particularmente nas redes de trabalho, que contri- buem para preparar, cuidar, sustentar a atividade profissional; na dimensio cole- tiva da incorporacdo dos efeitos dessa contribuicio; na avaliacéo de uma forma de organizacio via seu desempenho econémico. Isolar um individuo em “sua” si- tuagdo de trabalho é, ao mesmo tempo: — apontar um problema real (a responsabilidade pessoal assumida por um trabalhador, o reconhecimento da individualidade); OBJETIVO COMPETENCIA — em termos falsos (a falta de referéncia ao cardter altamente socializado da atividade). 3. Finalmente, constatemos que a énfase dada a validagao das competéncias pelos atores da empresa esquece que essas competéncias apdiam-se em conheci- mentos (em corpos de saberes) que nutrem sua dinamica de renovacao. Ora, esses conhecimentos formam-se socialmente e, se quisermos escapar de uma validacio absolutamente momentanea (tal individuo é competente tal dia diante de tal situa- Go), 0 éxito das agdes deve remeter a uma dialética de interdependéncia forte en- tre competéncias e conhecimentos, mobilizada por fontes e atores diferentes (por mais que a empresa seja 0 local em que se utiliza competéncia ela nao é, de longe, 0 tinico local de sua produgao). Ao assentar a produgao da competéncia em sua utili- zacao in situ, suprime-se 0 efeito de suas condigdes de producao. Ora, a avaliacto da competéncia é igualmente a avaliacdo do processo que permite seu desenvolvi- mento vitorioso (e nao apenas a avaliagdo do individuo que a exerce). Proposta de definicéo Pretendemos propor uma definig&o que integre varias dimensées e, logo, retina varias formulacées. ‘A competéncia é “o tomar iniciativa” e “o assumir responsabilidade” do indivt- duo diante de situagSes profissionais com as quais se depara. Essa primeira formulagio enfatiza o que muda fundamentalmente na orga- nizagio do trabalho: o recuo da prescrigao, a abertura de espaco para a autono- mia e a automobilizacio do individuo. Cada uma dessas palavras tem importancia em si mesma: ¢ Assumir: a competéncia “é assumida’, resulta de um procedimento pes- soal doing cope aceita assumir uma situac4o de trabalho e ser responsavel por ela. Na Vérdade, a competéncia pode ser delegada no sentido de que uma estrutura hierdrquica confia uma responsabilidade a um agente. Entretanto, do ponto de-vista do ser humano diretamente em causa, esta competéncia “se assu- me”, ou nio se assume. Ninguém pode decidir no lugar do agente implicado. E um procedimento estimulante, de automobilizagao. Nao trataremos, no momen- to, de saber em que medida ele é ou nao livre, nao trataremos de saber se 0 indivi- duo tem alternativa. Apontamos, no entanto, um aspecto essencial nessa questao: mesmo forcado, o envolvimento pessoal do individuo (do individuo enquanto sujeito de suas agdes) é essencial e inevitavel. A mobilizagio da competéncia nio 2. Devemos muito, nessa primeira formulacéo, as reflexdes e trabalhos realizados por Yves Lichtenberger no Latts. Sua reflexdo est resumida no Caderno 9 das jornadas internacionais da formagao da ex-CNPF. COMPETENCIA: DEFINICAO, IMPLICAGOES E DIFICULDADES. om pode ser levada a efeito em um modelo de retraimento ou de fuga, no género do empregado por George Friedmann quando afirmava que as operdrias “pensavam em outra coisa” enquanto executavam suas tarefas nas linhas de montagem tayloristas. E indiscutivel que a exigéncia de competéncia significa passar a um novo pa- tamar em materia de envolvimento do individuo em seu trabalho. Veremos os problemas que isso acarreta. No entanto, podemos enunciar esse envolvimento de modo positivo: o individuo pode reencontrar plenamente o interesse por um tra- balho no qual se envolve. ¢ Tomar iniciativa: a palavra iniciativa, como todos sabem, vem do verbo iniciar, quer dizer, comecar alguma coisa no mundo. Tomar iniciativa é uma acéo “que modifica algo que existe; que introduz algo novo, que comeca alguma coisa, Sem dtivida, existem graus nesse tomar iniciativa, Parece-nos que se pode distinguir duas situacées principais. A primeira consiste em, dado repertério de normas de acao, escolher a mais adequada. A iniciativa consiste ent&o na selecio ena escolha da norma “boa”. Por exemplo, devo enfrentar um problema-qualida- de ja identificado. Tomo a iniciativa de aplicar tal procedimento, em vez de outro, em funciio da experiéncia que tenho desse tipo de situacdo, e do conhecimento de procedimentos possiveis que posso mobilizar. Ou, devo enfrentar um cliente insa- tisfeito. Escolho, a partir de uma avaliagdo do comportamento desse cliente, apli- car uma estratégia bem definida de desarmamento de sua insatisfagao, em func’o de normas definidas nesse campo. Nos dias de hoje, porém, a segunda situagiio é, claramente, mais importante: 0 indivfduo deve tomar iniciativas em face de eventos que excedem, por sua singularidade e/ou por sua imprevisibilidade, o repertério existente de normas. Tomar iniciativa significa, nesse caso, inventar uma resposta adequada para enfrentar com éxito esse evento. Essa invengao nao é nunca absoluta. Mobiliza, sempre, conhecimentos preexistentes. Contudo, ela (a inveng&o) acontece. Quando um vendedor trata o “caso” de um cliente, ou quando um técnico intervém em uma pane especifica, é preciso que iniciem um processo de entendimento do evento e articulem uma estratégia de acdo que lhes € peculiar, que excede o repertério existente de normas. O “tomar iniciativa” tem um sentido profundo. Significa que o ser humano no é um robé aplicativo, que possui capacidades de imaginacao e de invencdo que Ihe permitem abordar o singular e o imprevisto, que o dotam da liberdade de iniciar alguma coisa nova, nem que de forma modesta. Alguma coisa da qual se sabe que ele 0 inventor e, logo, que pode permitir que dé valor a seu préprio tra- sbalho. Quanto mais a probabilidade de eventos aumenta, tanto mais essa capaci- dade de tomar iniciativa é requerida e importante. * Assumir responsabilidade: a palavra responsabilidade vem do latim spondere, responder por. E um termo empregado de longa data no campo juridico: $70 OBJETIVO COMPETENCIA um criminoso responde por seu crime e é julgado em conseqiiéncia. No cam- po profissional, significa que o assalariado responde pelas iniciativas que toma e por seus efeitos, nao apenas em razio das avaliacées sociais de que ser objeto, mas também em virtude de sua “disposigéo para assumir responsabilidade” pela situacao. A’responsabilidade 6, sem dtivida, a contrapartida da autonomia e da des- centralizagdo das tomadas de decisdo. Nao se trata mais de executar ordens (de cuja pertinéncia nao nos sentimos responsdveis), mas de assumir em pessoa a res- ponsabilidade pela avaliacao da situacdo, pela iniciativa que pode exigir e pelos efeitos que vio decorrer dessa situacao. O problema que se coloca é: responsabilidade “por alguma coisa” e “em rela- co a alguma coisa”. Essa responsabilidade pode, por exemplo, recair em um objetivo: a confiabilidade de uma maquina, a seguranca de um equipamento. Entretanto, pode igualmente ter por objeto seres humanos: a satide dos doentes, a aprendizagem dos alunos etc. ‘Toda relagdo de responsabilidade é uma relacio forte; se somos respons4- veis é porque as coisas dependem de nds. E essa responsabilidade é particular- mente importante na medida em que toca outros humanos. Se depende de nos que alunos tenham éxito em seus estudos, a implicagao disso nao é de pouca monta, e nossa responsabilidade é grande. Ou, pelo menos, deveria ser, em uma légica de competéncia. “Em relac&o a alguma coisa” nfo é um atributo menos importante da respon- sabilidade, pois contribui, simultaneamente, para o sentido subjetivo que o indivi- duo pode dar a seu envolvimento e para a fundamentacdo da avaliacdo social que sera feita do éxito desse envolvimento. Essa responsabilidade esta, freqiientemente, presa a objetivos de desempe- nho: prazo, qualidade, confiabilidade, satisfagao do cliente. Ja mostramos que os préprios objetivos tornam-se claros quando relacionados com as implicacées que tém. Qualidade sim, mas qual é a implicacio dessa qualidade? Um passo adicio- nal pode ser dado nessa analise da responsabilidade: “responder por” é, também, assumir valores de envolvimento pessoal. E muito dificil sentir-se profundamente responsdvel por uma situagao quando nao se pode, intimamente, dar-lhe um valor significativo. Certas atividades profissionais veiculam valores evidentes: pode-se entender que se dé valor ao ato de curar um paciente ou de ajudar um ex- cluido a se inserir na sociedade. Esses valores acham-se menos manifestos nas ati- vidades mais banais, menos marcadas pela generosidade. Eé possivel que 0 fato de uma pessoa assumir responsabilidade mobilize implicitamente um sentido egocéntrico de sua carreira pessoal (aceito tomar responsabilidades para ser no- tado e subir na hierarquia do poder) ou um sentido ético de sua prépria utilidade social. Pelo menos é dessa maneira que se pode interpretar a importancia do con- ceito de servico, que j4 mencionamos varias vezes. ee COMPETENCIA: DEFINICAO, IMPLICACOES E DIFICULDADES wa © Sobre situagées: 0 conceito de situagdo nao é idéntico ao conceito de emprego, e é importante saber distingui-lo com clareza. Uma situagé0 comporta simultaneamente: — um conjunto de elementos objetivos (logo, descritiveis, objetivaveis), que sao os dados da situagao; — implicacdes, que fornecem a orientagiio das aces potenciais que essa situac4o pode exigir (implicag6es que remetem diretamente as implica- cdes da tomada de responsabilidade); — eamaneira subjetiva que o individuo tem de aprender a situacdo, de se situar em relag&o a ela, de enfrentd-la e determinar suas agdes em conseqiiéncia dela. E por isso que o comportamento em uma situacao nao é, nunca, efetivamen- te prescritfvel: nao se pode prescrever 0 comportamento que o individuo deve adotar porque este comportamento faz intrinsecamente parte da situagdo. Da mesma maneira que né nao s se pode separar o trabalho da pessoa que 0 realiza, nao se pode separar a situacdo do sujeito que a enfrenta. Esse conceito de “situagao” jd é, de longa data, utilizado em algumas ocupa- cées. Assim, em certas profissdes o recrutamento é feito quando da colocacio do candidato em uma situacdo real de trabalho, ou pedindo-se a ele que imagine uma situacao. A admissao de um jovem na policia, por exemplo, é feita diante de um juri que lhe pede para imaginar que conduta adotaria em tal situag3o: “um la- drao foge por uma rua mal iluminada, que faria vocé nessa situacao?”, “um supe- rior hierdrquico Ihe ordena que atire em uma pessoa que ameaga vocé com um revélver, 0 que vocé faria?” Tem-se, simultaneamente, elementos que permitem descrever, de maneira mais ou menos detalhada, as caracteristicas da situag&o (0 ladrao que foge por uma rua mal iluminada, a pessoa que ameaca com um revélver), o comportamen- to possivel do sujeito ante essa situacio (freqiientemente ilustrado por dilemas que evidenciam a necessidade de uma escolha: atirar ou nao atirar), tendo como pano de fundo uma implicacio expl{cita ou implfcita (no caso, manter a ordem publica respeitando a vida humana e os direitos dos individuos). Poder-se-ia igualmente ilustrar 0 conceito de situacao por meio da situagao de um professor diante de uma classe. Trata-se entao de um conceito ja emprega- _do nas avaliacées profissionais e que nada tem de misterioso ou dificil. © E perfeitamente possivel construir referenciais de competéncias tendo por base categorias de situagoes. E verdade que essas situacdes nao poderdo dar intei- ramente conta da dimensdo de evento das situag6es. Isso significa que existe, na competéncia, uma parte que nao ser4 nunca apreensivel com antecedéncia e, logo, que os referenciais nao poderao nunca apreender inteiramente. Isto signifi- ca que a competéncia (no singular) ultrapassar4 sempre as competéncias (no plu- pres OBJETIVO COMPETENCIA ral), tal como elas poderao ter sido inscritas nos referenciais. Esse descompasso faz parte da dindmica da Iégica, o que faz com que se possa falar de competéncia-acao. A competéncia é um entendimento prdtico de situacdes que se apdia em conheci- mentos adquiridos e os transforma na medida em que aumenta a diversidade das si- tuagées. Essa segunda abordagem enfatiza a dinamica de aprendizagem, que é essen- cial no procedimento competéncia. e Entendimento pratico: o termo entendimento nao remete apenas a di- mens&o cognitiva, mas também & dimensdo compreensiva. A dimensao cognitiva impée-se por si mesma: para intervir de maneira pertinente em uma pane ¢ preci- so conhecer o funcionamento da maquina. Para responder de maneira pertinente a um cliente que telefona para o 1014 da France Telecom é preciso conhecer os produtos e servicos que essa empresa oferece. Para dizer a verdade, nio se trata de empregar um conhecimento prévio, mas de saber mobilizé-lo judiciosamente em fungao da situagio. # por esse motivo que a dimens4o puramente cognitiva deve ser associada a dimensao compreensiva. Essa ultima é mais sutil, é mais difi- cil formaliza-la. Entender uma situagao é saber avalid-la levando em conta “com- Pportamentos” de seus constituintes, sejam eles materiais (mAquinas) ou humanos. Essa dimens&o compreensiva adquire todo seu alcance na interagao social, quan- do 0 sujeito deve interpretar comportamentos humanos a luz da compreensdo, mes- mo parcial, das razées que os motivam. Esse entendimento € pratico, no sentido de que est orientado para a acdo. E o entendimento das razées do outro permite compreender “inteligentemente” seu préprio comportamento, permite ajustd-lo. Essa necessidade aparece com clareza na relacio de servico. No entanto, é evidente que o entendimento de uma situagfio profissional continua sendo sempre orientado pelo éxito a obter e, portanto, pelas implicages que d&o fundamento a essa situag4o. O entendimento das implicagées da situagdo é tdo importante quanto o entendimento do comportamento dos componentes dessa situacao, e ele nao é alcancado automaticamente, é preciso poder recolocar a situacaéo em um contexto mais amplo. Por exemplo: para entender por que a forte redugao do prazo de montagem de um motor é importante, e como esse objetivo informa a situagao de trabalho do montador, é preciso que esse ultimo compreen- da também a implicacdo que tem a manutencao das encomendas da Boeing, dado que foi esta que solicitou tal redugao dos prazos a Snecma. « Que se apdia em conhecimentos adquiridos! hao ha exercicio da competéncia sem um lastro de conhecimentos que poderao ser mobilizados em si- tuacao de trabalho. A analogia entre esses conhecimentos e a situacao de trabalho dependem do grau das situacdes de evento e da singularidade da situaco que a pessoa tem que enfrentar. Quanto maiores as dimensées de evento e a singulari- dade da situacao, mais os esquemas de conhecimento e de agao que 0 individuo ja tiver incorporado deverao ser mobilizados de maneira reflexiva, ou seja, questio- COMPETENCIA: DEFINIGAO, IMPLICAGOES E DIFICULDADES arse nando-se sua validade e o fato de serem insuficientes diante da situac4o. Como ja mencionado, “apoiar-se” em aquisiges cognitivas nao equivale a “aplicar” conhe- cimentos. Estes tltimos nao sao aplicdveis. Devem ser mobilizados, utilizados, questionados em fungao do entendimento que o assalariado tiver da situacio. E preciso entao admitir uma dimensdo de incerteza constante nos conhecimentos possuidos, e permanecer sempre aberto a contestagdes e a novas aprendizagens. Essa postura é essencial para a manutenc4o da competéncia, para que nao seja transformada em pura rotina. « Eos transforma: a dialética que se instaura entre competéncia e conhe- cimentos faz precisamente com que estes tltimos modifiquem-se ao contato com problemas e implicacées da situacdo real de trabalho, em funcdo de iniciativas to- madas pelo assalariado, das responsabilidades efetivamente exercidas, das anéli- ses para explicagao ¢ entendimento dos problemas que tiverem sido desenvolvidos para apreender plenamente o motivo dessas ocorréncias, ou dos casos de que terd sido preciso tratar nessa situacao. Do ponto de vista cognitivo, o pés-evento nao pode ser idéntico ao pré-evento. Nem sempre, porém, isso é compreendido nas empresas, e é mesmo, freqiientemente, muito subestimado. Com efeito, para que a bagagem de conhecimentos do individuo se transforme e aumente é preciso que a situagéio com que ele se defronta tenha sido plenamente explorada do ponto de vista do que hd a aprender com ela. Quando se trata de uma pane, ser4 preciso ir o mais longe poss{- vel na andlise de suas causas. Quando se trata do caso de um cliente de que é preciso se ocupar, sera preciso ir o mais longe possivel no entendimento de necessi- dades e de expectativas desse cliente. Na falta disso, a aprendizagem sera muito escassa e empirica. Essa é uma questo que se coloca A organizagio do trabalho. ‘A formalizacao dos novos conhecimentos adquiridos pode revelar-se um po- »deroso meio de incentivar o entendimento das situa¢Ges e, ao mesmo tempo, sis- » tematizé-lo e difundi-lo. * Quanto maior for a diversidade das situagdes, mais intensa- mente serao modificados os conhecimentos: aqui fazemos mencdo a uma descoberta importante da psicologia cognitiva. O individuo aprende melhor »e mais répido na medida em que deve fazer em face de situacées variadas. A repe- \ ticdo da desestabilizagao de esquemas cognitivos adquiridos (acomodados) per- mite-lhe estar aberto 4 aprendizagem do novo. Contudo, é preciso que um equilibrio seja mantido entre o tempo e o apro- »fundamento indispensdveis ao alcance pleno do entendimento de uma situacdo, / para que se organizem os novos conhecimentos e o confronto com situagées novas, para que o individuo possa evitar os efeitos do embrutecimento e possa exercer suas faculdades de aprendizagem do novo. Esse equilfbrio nao é unica- mente pessoal, coloca-se, além disso, como um problema para a organizacéo do trabalho, e pode servir para inspirar estratégias de gest&io das mobilidades pro- fissionais. 74a OBJETIVO COMPETENCIA A competéncia é a faculdade de mobilizar de atores em torno das mesmas situagées, é a faculdade de fazer com que esses atores compartilhem as implicagdes de suas agées, é fazé-los assumir dreas de co-responsabilidade. ° Mobilizar redes de atores: qualquer situacdo um pouco mais comple- xa excede as competéncias de um tinico individuo. Exige que cada individuo apren- da, quer dizer, que precise de competéncias que nao possui ¢ de auxilios que se baseiam na solidariedade da aco, auxilios que corroboraréio eticamente suas to- madas de iniciativa. Ao mesmo tempo, essa situacéio mais complexa exige que as competéncias de uma rede possam, da maneira mais livre poss{vel, convergir e as- sociar-se em fungdo dela. Reencontramos aqui o sentido do desenvolvimento da organizacao do trabalho transversal, ou por projeto. caracteristicas es- senciais deste ultimo é tornar coletivas situag6es de (por definicao, a conducio de um projeto é uma trama de situacées coletivas que se encadeiam, do come¢o ao fim do projeto). ° Compartilhar as implicagées de uma situagao: por simples que esta formulacao parega é, talvez, a mais delicada. De fato, os assalariados sé se comunicarao entre si e sé disponibilizaréo suas competéncias se experimentarem o sentimento de participar das mesmas implicagdes de uma situac4o, e se forem avaliados pela chefia & base dessas implicagées. Isto ndo é algo evidente: as seg- mentagoes dos campos de responsabilidades e a fixacéio de objetivos distintos, que marcam as organizacées tradicionais (a cada funco e a cada servico “seu” objeti- vo), tornam dificil esse compartilhar. E é raro que uma geréncia procure saber o que constitui “implicaciio” para os assalariados. E possfvel que, qualquer que seja 0 esforco desenvolvido para sai desse tipo de organizacio, o compartilhar conti- nue sendo sempre parcial. Convém prestar mais atengao ao movimento que faz com que implicagGes e objetivos sejam cada vez mais compartilhados do que pres- tar atengao ao estado das coisas em dado momento. E, provavelmente, sera pre- ciso contar com a “forca” das situagées, que podem demonstrar, por si, a neces- sidade de avancar nesse compartilhar, para alcancar o sucesso esperado. Aconstatag&o de que grande ntimero de disfungées, de desperdicio de recur- sos, de maus desempenhos nas empresas deve-se 4 md qualidade da cooperacao entre atores esté amplamente comprovada. E um ponto de apoio para se progredir. Participar das implicacdes de uma situacao profissional possibilita dar um sentido coletivo as agdes, scat omaccparranramete a um futuro comum. Participar das implicagées significa igualmente saber o que se pode partilhar e o que deverd seguir no campo de interesses antagénicos, Falar de parti¢ao (parcial) das implicagdes das situagdes profissionais é fazer uma afirmacdo forte e fragil ao mesmo tempo. Forte: esta afirmacao pressupde que os assalariados reconhegam implicacées comuns e estejam dispostos a empenhar-se em conjunto em torno delas. Isto nao 6 evidente para a geréncia da empresa e para os assalariados da base da organiza- Ao. Parece-nos que é preciso distinguir duas situacées: COMPETENCIA: DEFINIGAO, IMPLICAGOES E DIFICULDADES wet — implicagées de situagdes profissionais nao serfio compartilhadas na me- dida em que remetem a oposicdes de interesse. Por exemplo, é iluséo esperar que uma implicacao que toca a rentabilizac&o do capital de uma empresa possa ser compartilhada, ainda que os assalariados possuissem ages dessa empresa. Nesse caso 0 antagonismo manifestar-se-4 em uma série de ingredientes: nivel do emprego, massa salarial, riscos de expor- tagdo de uma parte das atividades etc. A alta dos niveis de rentabilidade exigidos pelos acionistas de um ntimero crescente de empresas acentua essa tensdo; ~ implicagées que se apdiam, particularmente, na eficiéncia produtiva da empresa e na relacéo com categorias especificas da clientela ou dos usudrios podem ser compartilhadas. Alias, de facto e de longa data, tais implicagdes comuns foram aceitas. Quando um operdrio qualificado faz cuidadosamente a usinagem de uma peca em uma empresa aeronduti- ca, participa da implicagiio qualidade e seguranca do produto (o aviao). O que a logica competéncia acrescenta € 0 fato de tornar essas implica- oes visiveis (desenvolveremos essa questo no Capitulo 4), logo, a 1é- gica competéncia permite refletir sobre elas, discuti-las, trabalhar com conhecimento de causa, determinar os nticleos de cooperacao que tém sentido em relaco a essas implicacées. Frdgil: compartilhar implicagées é uma formulacdo que contém um cunho de incerteza, Nao é um “casamento religioso”, é um acordo inscrito na racionali- dade pratica. E perfeitamente possivel compartilhar as implicacées de atividades profissionais sem compartilhar os mesmos valores. E 0 que acontece, quase sempre, entre a direcio geral de uma empresa e os assalariados da base da orga- nizagao. Nesse caso, trata-se de uma situaca4o comum, encontrada em um ntimero considerdvel de praticas sociais. Por exemplo, os membros de uma associacko de co-proprietarios de um imével podem ter como objetivo comum que o aqueci- mento do imével funcione bem, por um custo limitado, e podem trabalhar nesse sentido ainda que, por outro lado, nao partilhem os mesmos valores e conviccdes fntimas quanto a sua visio de mundo. Nao existe nada mais comum. Voltaremos, no préximo capitulo, & questdo da comunhio de valores, mas notemos aqui a importancia de nao confundir o compartilhar implicagdes com o compartilhar valores. Nossa posicao é que a questo da comunhao de valores sO se coloca objetivamente para pessoas que esto envolvidas em relacées sélidas de cooperacao, logo, no seio de uma mesma prética profissional. Nesse nivel, como JA assinalamos, é realmente indispensével compartilhar valores ético-praticos, mas apenas nesse nivel. « Assumir campos de co-responsabilidade: jé insistimos na impor- tancia do “assumir responsabilidade” para definir a competéncia. Em certo senti- do, nao existe responsabilidade grande que nao seja pessoal. Visto que a tespon- 76 OBJETIVO COMPETENCIA sabilidade nao é compartilhada (sob risco de se enfraquecer) e todas as situagdes nas quais apenas uma pessoa enfrenta um evento exigem necessariamente que a responsabilidade seja assumida individualmente. Apesar disso, as exigéncias das redes de ajuda mtitua e as intervengées cole- tivas em torno de situagdes de evento, assim como a participaco nas implicacées de atividades profissionais, colocam a questéo da co-responsabilidade. Uma das caracteristicas mais interessantes e inovadoras da légica competéncia reside, jus- tamente, no fato de ela associar responsabilidade pessoal e co-responsabilidade. Por exemplo: uma equipe de trabalho semi-auténoma trabalharé melhor na me- dida em que souber definir os objetivos que deve, coletivamente, alcancar e, a0 mesmo tempo, souber personalizar explicita ou implicitamente os compromissos de cada integrante da equipe no que concerne a esses objetivos. f isto, alids, o que constitui a dimensao ético-moral desse funcionamento social. E aqui, e nesse ni- vel, entre assalariados cotidianamente engajados em uma mesma pratica profis- sional que intervém objetivamente 0 problema do compartilhar certos valores, pois sé se pode associar responsabilidade pessoal e responsabilidade coletiva se cada sujeito aceita desenvolver certa moral de comportamento. E nessa moral que se evidencia o respeito que esse sujeito tem por seus compromissos em telagao ao coletivo. Caso contrario, ser4 considerado “traidor”, uma pessoa capaz de dar uma “punhalada nas costas”... Pensamos que é com base na combinacdo dessas trés abordagens da compe- téncia, de que mostramos a estreita complementaridade, que poderemos chegara apreendé-la e, logo, mobilizar conscientemente. QUE IMPLICAGOES SOCIAIS E DIFICULDADES ESTAO EM JOGO? Partir das dificuldades que representam o cair na légica competéncia pare- ce-nos uma maneira pratica de ilustrar as implicacdes sociais dessa légica. Mudanga profunda do comportamento social dos operadores Para um operador (ou uma equipe) assumir responsabilidades é aceitar assu- mir suas responsabilidades, logo, € aceitar ser julgado e avaliado pelos resultados obtidos no campo dos desempenhos pelos quais é responsdvel. Logo, é compro- meter-se. E tornar-se explicitamente devedor dos resultados de sua atividade. Falando claramente: é correr riscos. Ora, os assalariados da base da estrutura organizacional podem ter muitos motivos para hesitar, e mesmo recusar correr tais riscos (ou corré-los forcados e pressionados). Poderfamos citar exemplos de oficinas em que foram os préprios operadores que recusaram envolver-se nas COMPETENCIA: DEFINIGAO, IMPLICAGOES E DIFICULDADES 7 organizacdes mais auténomas, que recusaram envolver-se explicitamente nos de- sempenhos (em qualidade, no rendimento total das instalagées, no prazo de en- trega etc.), preferindo claramente que as responsabilidades permanecessem em poder da chefia. Ou, quando assumiram “responsabilidades”, fizeram-no “torcen- doo nariz”. Isto ficou claro nas experiéncias desenvolvidas no grupo Danone, tan- to em Danone Franca (produtos frescos) quanto em Kronenbourg. Poderfamos também apontar as dificuldades encontradas quando do langamento de uma pri- meira equipe auténoma na Snecma, no inicio dos anos 90, equipe formada por voluntarios, que se defrontou com a inequtvoca hostilidade das organizacées sin- dicais e da maioria dos operarios da oficina em questo. Esse retraimento dos operadores surge certamente no caso de organizagdes tayloristas em que, apesar do car4ter muito opressor do trabalho, o operador pode procurar envolver-se minimamente em seu trabalho, mantendo uma postura de exterioridade, como pode deixar de assumir responsabilidades que poderiam expé-lo a riscos de fracasso e a més avaliacbes dos encarregados. E, certamente, também nas organizacoes profissionais por ocupac¢ao em que a autonomia do pro- fissional em seu posto de trabalho lhe garante certa seguranca e opacidade diante da estrutura organizacional, opacidade da qual relutaré em sair. Nao desejara “expor-se”. Isso nao significa certamente que assumir responsabilidade, e a autonomia de ac&o que a acompanha, ndo seja “atrativo” para essas pessoas. Isto quer dizer que hesitarao em “lancar-se”, caso a propria estrutura organizacional néo mude sua atitude e meios e garantias minimos no lhes forem dados. Poder-se-ia formular o problema de maneira simples: que interesse os assa- lariados teriam em adotar um comportamento social comprometido com os de- sempenhos da unidade ou da empresa onde trabalham? E em expor “publicamente” suias préprias competéncias, ¢ em revelar eventuais fraquezas ou caréncias? As experiéncias cobertas de éxito, mas também os fracassos, levam-nos a pen- sar que é preciso, para que a responsabilidade seja assumida com sucesso, que: — a tomada de responsabilidade dos operadores seja acompanhada de uma verdadeira delegagéo de confianga por parte da chefia. Delegar responsabilidades é ter confianga. Caso contrario, o jogo revela-se, rapi- damente, uma trapaca: afirmando que tem confianga, a estrutura orga- nizacional desenvolve controles laterais (como os de boa execugao de procedimentos) e reforca o peso da exigéncia de resultado para, de al- guma forma, precaver-se contra qualquer ampliacdo real da autonomia dos assalariados da base da organizacao; — atomada de responsabilidade seja acompanhada de meios (a comecar por meios de formacdo e de apoio) que permitam ao operador “assumir suas responsabilidades”, com a possibilidade efetiva de exercé-las sem se expor, no mesmo instante, a sérios fracassos; 78 OBJETIVO COMPETENCIA — um reconhecimento simbédlico, eventualmente também pecuniério, deve acompanhar em tempo real essa mudanga de atitude. Saber questionar-se e mudar o modo de encarat as vantagens proporcionadas pela experiéncia Aceitar assumir responsabilidade por desempenhos é, se for 0 caso, aceitar questionar seus métodos de trabalho, é defrontar-se com problemas novos; logo, é desenvolver uma atitude de reflexdo ante sua prépria atividade profissio. nal. Tal distanciamento e tal reflexao sao dificeis para pessoas que foram marca. das pelo taylorismo, ou que aprenderam “macetes” ocupacionais, e que tendem naturalmente a reproduzir e defender. So mais fAceis e espontéineos no caso dos jovens. E preciso salientar que estamos diante de uma mutagdo muito profunda no que se refere d avaliagdo da experiéncia (voltaremos a esse assunto no Capitulo 5). Nas organizac6es tradicionais (tayloristas ou por ocupagio), a experiéncia estd diretamente associada a antigiiidade adquirida na empresa e no posto de traba- Iho. Considera-se que a repeticao dos mesmos gestos e dos mesmos esquemas de acdo, em face de situacdes que se repetem, permite adquirir boas rotinas, per- mite acumular, entre seus recursos cognitivos, categorias de respostas para ca- tegorias de situagdes. O antigo tem experiéncia. O jovem nao a tem. Ora, em situacao de autonomia, e quando a situacdo profissional torna-se muito sujeita a eventos e evolucées, as rotinas nao bastam. Podem mesmo revelar-se contrapro- ducentes. De ora em diante a aprendizagem e a aquisicao de experiéncia vio depen- der, simultaneamente, da diversidade de eventos e de problemas encontrados, do entendimento que os operadores conseguirem construir desses eventos e proble- mas, e do sucesso das iniciativas tomadas. Tal procedimento reflexivo pode tor- nar-se muito rapidamente rico e muito interessante para o individuo envolvido e Permitir que pessoas que esto, relativamente, hd pouco tempo na empresa adqui- ram experiéncia muito depressa. Foi isto o que comprovamos e formalizamos com © conceito “organizacéo qualificante” 3 Entretanto, tal aprendizagem sé pode ocorrer apés uma etapa inicial dificil e delicada, na qual o individuo corre o risco de parecer incompetente. f fundamen- tal que 0 questionamento que um assalariado pode fazer da atividade que desen- volve na empresa nao seja sentido como uma critica, que a chefia nao confunda “questionamento” com “contestacao”. A qualidade do acompanhamento tempo- rario do assalariado, feito pela chefia, é freqiientemente decisivo, 3. Ver a esse respeito Liorganisation qualifiante. Revista Education Permanente, n. 112, out bro de 1992,

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