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© 2001 by EDITORA ATLAS S.A. 1. ed. 2001; 2* tiragem ‘Traduzido para o portugués da edi¢ao em lingua francesa de: Objectif compétence, de Philippe Zarifian © 1999 Editions Liaisons, Rueil-Malmaison — France Capa: Leonardo Hermano Composiciio: DIAGRAN - Assessoria Editorial e Produgio Grafica Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Zasifian, Philippe Objetivo competéncia: por uma nova légica/Philippe Zarifian; traduco Maria Helena C. V. Trylinski. - Sao Paulo: Atlas, 2001 Titulo original: Objectif compétence. Bibliografia. ISBN 85-224-2880-8 1. Administracao de pessoal 2. Empregados — Avaliacéo 3. Organizagéo do trabalho 4, Qualificacio profissional - Administracio 5. Recursos humanos I. Titulo, 01-1394 CDD-658.3 indice para catalogo sistematico: 1. Recursos humanos: Administragio de empresas 658.3 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS — g proibida a reproducao total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violagio dos direitos de autor (Lei n2 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Cédigo Penal. Depésito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n? 1.825, de 20 de dezembro de 1907. Impresso no Brasil/Printed in Brazil 2 DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA Neste segundo capitulo, mostraremos que sé se pode realmente compre- ender o que est4 em jogo com a emergéncia do modelo da competéncia fa- zendo um desvio pelas mutagdes profundas que sofrem o trabalho e sua organizacdo, mutagdes que sé podem ser compreendidas quando recoloca- das no contexto histérico. Sao elas que, decididamente, explicam o motivo da importancia adquirida pela temtica da competéncia. Para compreender plenamente o que est em jogo com a emergéncia do mo- delo da competéncia, parece-nos necessdrio fazer uma retrospectiva histérica a respeito, simultaneamente, da materialidade do trabalho (no que consiste “traba- Ihar”?) e da maneira de representé-lo e de garantir sua avaliaco (como, na em- presa, é visto o trabalho?, o que é avaliado?, o que se identifica como trabalho?). Essas quest6es s6 podem ser apreciadas levando-se em conta longos periodos de tempo, pois as proprias mutacdes do trabalho produzem efeito em escala de deze- nas de anos. Concentrar-se apenas na conjuntura é correr um risco enorme. CARACTERISTICAS DO MODELO SALARIAL INDUSTRIAL DEFINIDO NO SECULO XVIII Durante o século XVIII, nos primérdios da emergéncia do capitalismo indus- trial, um verdadeiro golpe de forca concreto e intelectual foi perpetrado contra DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA 37 duas formas de atividade enti dominantes: a atividade camponesa e a atividade das corporacées artesanais. Golpe de forca radical e violento, de tal amplitude que nao péde impor-se sem uma enorme transformagao social. N&o é incorreto afirmar que passamos de uma civilizagdo agricola rural para uma civilizagdo in- dustrial urbana, contudo, precisamos fazer uma constatacdo singular a respeito disto: todos os conceitos essenciais para prever essa transformacdo j4 estavam. formulados, no fim do século XVII, entre economistas classicos e as primeiras geragdes de i experimentos praticos j4 ocorriam nas primeiras genheiros, manufaturas, mas ser preciso esperar o fim do século XIX - e as solugées prati- cas tayloristas — para que essa transformacao imponha-se na pratica em escala_ significativa. No caso da Fran¢a, pais que permaneceu por muito tempo marcado pela ati- vidade rural, essa transformagéo nao tomard pleno impulso, e a conversao de civ _lizacéo nao se! tornara plenamente efetiva sendo. apés 1945! Essa constatacao incita a permanecer, ao mesmo tempo, atento e cauteloso no que diz respeito as escalas de tempo. Atento, no mais alto grau, porque impor- ta perceber os movimentos quando eles se iniciam, pois é nesse momento que es- colhas cruciais so feitas; e cauteloso quanto ao grau efetivo de transformacao de realidades concretas. No meio do século XVIM, dois meios intelectuais especfficos vao revolucionar ‘amaneira de ‘de conceber 0 trabalho, com uma surpreendente convergéncia de pro- postas. Esses dois meios si 1.” %os primeiros engenheiros modernos; ~ ® os fundadores da economia politica (a comecar por Adam Smith).” ncepcao do trabalho vai no verdadeiro golpe de forca jidade camponesa e artesanal. Essa concepedo retine trés caracteristi- cas essenciais. An contra a ‘)Instaura uma sepatagéo entre dois objetos e, em seguida, organiza a reu- nio desses dois objetos separados: ojtrabalho e ojtrabalhador. * O trabalho: é definido como um conjunto de operagées elementares de transformacao da matéria que se pode objetivar, descrever, analisar, ra- cionalizar, organizar e impor nas oficinas. Nessa época, as operacées so gestos do corpo humano: cortar uma barra de metal para a fabrica- cao de um alfinete, ou assentar um tijolo na construgéo de um muro. Essas operagées podem ser inteiramente descritas e organizadas de an- temAo. Sao suficientemente elementares para serem concebidas e exe- cutadas com facilidade. E a fabricacao de um produto (de um alfinete, de um muro) nao ¢ outra coisa sendo o encadeamento dessas operacdes elementares de acordo com uma seqiiéncia l6gica. 38 OBJETIVO COMPETENCIA ® Otrabalhador: é 0 conjunto de capacidades que so compradas no mer- cado de trabalho e mobilizadas para realizar uma parte das operacoes. O que importa no trabalhador nao é sua personalidade, seus sentimen- tos, seus conhecimentos pessoais, sua capacidade de iniciativa etc., mas o conjunto de capacidades para realizar operacées que a geréncia da fé- brica Ihe pede que execute, e a disciplina para executé-las tal como de- terminado. O trabalhador é um simples “portador de capacidades”, uma simples forca de trabalho, como afirmava Marx. Nessa época, as capacidades eram sobretudo fisicas: destreza manual, habilidade gestual, forga fisica, resisténcia. E preciso que esses dois objetos — o trabalho, de um lado, o trabalhador, do outro — sejam reunidos. E 0 local preciso de é 0 posto de trabalho, Ou seja, um local preciso na fabrica e, ao mesmo tempo, um conjunto de tarefas a se- rem realizadas nesse local (as tarefas nao sendo outra coisa sendo a lista de opera- Ges que o trabalhador deve realizar). vO — 2. Instaura.o. como critério central da produgao industrial. E facil defini- “lo: é medido pelo incremento da quantidade de produto saido da fabrica em de- terminado periodo de tempo (um dia, por exemplo). E, do incremento do fluxo, os empreendedores capitalistas esperam uma baixa dos custos e uma alta de seus lucros em relagdo aos concorrentes. O que significa o incremento do fluxo para 0 trabalho e para o trabalhador? + Para o trabalho, significa aceleracao da velocidade de execuco de ope- rages. Racionalizar as operagées para fabricar um alfinete tem sentido preciso: 6 fazer de modo que aumente a velocidade elementar de reali- zacao de cada operacio de trabalho, e que aumente também a rapidez do fluxo entre operacées, a velocidade de seu encadeamento. © Para o trabalhador, significa: trabalhar répido, cada vez mais répido, & medida que aumentam sua experiencia (pela aquisicao de rotinas), sua habilidade, sua aceitagao do ritmo de trabalho. Supée-se que, quanto mais o trabalhador for especializado, mais essa aquisicao ser4 rdpida e eficaz, podendo concentrar sua atengao e sua destreza em um numero restrito de operagées, que se repetem de um ciclo de produgio para outro. A velocidade de trabalho, em cada posto, ea a velocidade de ¢ coor- denagé temente, a 0 que se denomina “produtividade do trabalho”, nessa abordagem, néo é outra coisa sendo a organizactio da velocidade do trabalho, e do fluxo de produgao que dela resulta, que diminui o tempo de trabalho contido em cada unidade de mercadoria (em cada alfinete, por exemplo). DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA 39 O aumento da produtividade ¢ a aceleragao da velocidade, que se pode pre- e calcular matematicamente, conforme légica rigorosa de engenharia. Do to de vista da economia, é expressa pela baixa do custo unitdrio das mercado- , causada principalmente pelo efeito “fluxo” e pelos efeitos da rotina que a ele o associados, a prépria baixa do custo unitario permite ampliar 0 consumo e, conseguinte, as vendas. E preciso notar que, desde essa época, os seres humanos so postos em con- ncia com as maquinas. As maquinas podem ser apoios para realizar o traba- 2, mas podem ser igualmente temfveis concorrentes dos trabalhadores, pois uem velocidade e resisténcia nitidamente mais altas do que esses tiltimos bora custem caro e, sobretudo naquela época, fossem menos flexiveis em sua (¢40). JA no século XVIII, os engenheiros sonham com sistemas de producdo matizados, com alto fluxo, que pudessem substituir os operdrios... segundo princfpio de produtividade exatamente igual. A produtividade das maquinas é posigao direta da produtividade esperada das operacdes humanas. 3. Por skimo, inoblzamse.o trabalhadores no espaco no tempo, e orga- z — £3 * No espago: o trabalhador deixa de poder se deslocar (como pode deslo- ‘car-se o camponés, em seus us campo). E fixado em uma oficina, em um posto de trabalho, e nao pode, quase, deslocar-se durante toda a jorna- da de trabalho. © No tempo: o trabalhador deve casper ri igorosame lente, os horarios de ser calculado e controlado, que o afasta aioe da mudanca das estagdes, do clima, dos acontecimentos pessoais e sociais que marea- vam, de maneira flexivel, os tempos do camponés. * A co-presenca: 0 encadeamento de operacées nos diferentes postos de trabalho e o imperativo do fluxo exigem que todos operdrios estejam presentes, no mesmo local, nos mesmos hordrios. Essa exigéncia de co-presenca — que se revela nos reagrupamentos espaciais, com a cons- tituicio de grandes concentragées industriais e nos hordrios coletivos — vai transformar radicalmente nao apenas as condigées de trabalho, mas também os modos de vida. Essa ¢ a origem, por exemplo, dos transpor- tes coletivos, em hordrios estabelecidos, para encaminhar as forgas de trabalho as fabricas e trazé-las de volta, uma vez terminado o trabalho assalariado. Unicidade de espaco, de tempo,-de acao (de atividades interdependentes): le-se dizer que a invencio do trabalho industrial adota princfpios da represen- ‘do teatral... 40 OBJETIVO COMPETENCIA Essa “imobilizacao” dos trabalhadores afetard duramente os camponeses que, por muito tempo, resistirdo, de diversas maneiras, a submissio aos hordrios e ao encerramento em um local fixo e fechado, Rememoramos essas caracteristicas hist6ricas do trabalho industrial assala- riado para avangar a seguinte hipétese: essas trés caracteristicas, a saber: — aseparacdo entre trabalho e trabalhador; — apredominancia do fluxo e da produtividade de operagGes de trabalho; — anecessidade de co-presenga; encontramse, atualmente, profundamente desestabilizadas e pode-se, com justia, indagar se elas ndo sdo a origem indireta, ainda que profunda, da emergéncia da problemdtica da competéncia. Daf decorre uma implicacao considerdvel: até que ponto as caracteristicas citadas estéo perdendo terreno, talvez mesmo sendo parcialmente atenuadas? E que formas e contetidos da atividade humana produtiva podem substitut-las? MUTAGOES ATUAIS NO CONTEUDO DO TRABALHO: UMA EMERGENCIA DIFicIL, MAS VIGOROSA Resumiremos o que h de essencial nas mutagées atuais em torno de trés conceitos: — evento; ~ comunicacao; — servigo. Existem varias maneiras de mostrar a importancia que os eventos adquiri- ram no trabalho real, importancia que, muitas vezes, néo é reconhecida por seus organizadores. + Uma primeira maneira consiste em partir dos préprios sistemas de producao. E quase certo que uma parte crescente do que se chamava de operacdes de trabalho tenha sido absorvida pelos sistemas de maquina, pela automatizaco 1. ZARIFIAN, Philippe. Le travail et 'évenement, Paris: L’Harmattan, 1995. DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA. 4L dos sistemas industriais, e/ou pela difusao da informatica no tratamento de calcu- los e de todas as operagées elementares que dizem respeito a informagao. Avelocidade ¢ 0 fluxo das méquinas ganham, incontestavelmente, das ope- 10 das operacées intel intelectuais elementares (tais, Ge 56: no os cAlculos e o estabelecimento de correlacoes Iégicas simples). Por certo, essa tendéncia esta desigualmente distribufda entre setores de atividade e paises. Entretanto, seria absurdo negar sua importancia. A questao consiste ent&o em saber como se reposiciona a atividade humana. na no confronto com eventos. Entende-se, aqui, por evento, aque ocor- 7-7 aneira parcialmente imprevista, inesperada, vindo perturbar o desenrolar~ normal do sistema de produco, superando a capacidade da maquina de assegurar “2) sua autoregulagem. Esses eventos sao bem conhecidos, constituem o cotidiano na vida de uma oficina automatizada. Sao as panes, os desvios da qualidade, os mate- Tiais que faltam, ¢ as mudangas imprevistas na programacdo de fabricagdo, uma en- “comenda repentina de um cliente etc. Em resumo, tudo o que chamamos de acaso. Entdo, no que consiste trabalhar? Trabalhar é, fundamentalmente, estar em erpestaciastenta a es.cvens,é “pressenti-los” e enfrent4-los, quando ocor- ‘rem. Enfrent&-los com sucesso, dominando o evento, permitindo que a produgao seja retomada de acordo com os critérios previstos. Um evento é, entiio, alguma coisa que sobrevém de maneira parcialmente imprevista, nao programada, mas de : importanela pa ara o sucesso da atividade pi dutiva. E em torno desses eventos que se recolocam as interven jumanas mais complexas € ¢ mais importantes (pelo menos quando nao se consideram as atividades de concepedio, as quais voltaremos). 0 individuo deve confrontar o evento, deve resolver os problemas que revela ou que gera. De maneira mais ordenada, pode-se afirmar, no que toca 0 evento, que trés procedimentos podem ser distinguidos: \a cqntesdacvento: sua expectagao atenta, sua antecipacio parcial, quando 0 assalariado sabe perceber indfcios da imin€ncia de um evento, ou sabe empregar meios “preditivos”; — durante.o-cyento: a intervencdo ativa e pertinente em situac&o de even- to, muitas vezes sob forte pressio de prazo (é preciso reparar rapida- mente uma pane... | —idepois do evento: 0 debrucar-se reflexivo sobre o evento ocorrido, “com frieza”, | “para compreendé-lo, para analisar profundamente as causas e os motivos \ que fizeram com que esse evento ocorresse, para evitar que volte a ocorrer. Estes trés momentos (antes, durante, depois).podem delinear um _circuito completo de aprendizagem dinamica, podem permitir, por exemplo, que gracas a andlises sistematicas das panes, os trabalhadores aprendam muito sobre o funcio- namento das maquinas. 42 OBJETIVO COMPETENCIA / « Existe uma segunda maneira de abordar os eventos, que nao parte dos casos que ocorrem no interior de um sistema de produc&o, mas dos novos proble- mas colocados pelo ambiente, que mobilizam as atividades de inovacao. Por exem- plo, novos usos potenciais dos produtos, novas expectativas da clientela. Desse modo, em sua origem, 0 evento emerge como uma interpelacdo & empresa: vocé € capaz de corresponder a essa expectativa, de resolver tal problema novo, colocado por um cliente? O evento continua sendo, sempre, parcialmente imprevisto e surpreendente, instiga a empresa a enfrenté-lo, a encontrar uma solucdo adequada. O evento nao é um acaso negativo, insélito. Pelo contrario, faz parte da vida normal de uma or- ganizacao, desde que esta permaneca atenta a seu ambiente e A destinacéo de _ seus produtos. Enfrentar o evento é, entéo: permanecer muito atento as modificaces potenciais desse ambiente (por exemplo: detectar, 0 mais cedo possivel, novas expectativas de um / piiblico ou de uma clientela, e mesmo precedé-las); \ — organizar todas ages para “inventar” uma resposta pertinente a esse even- to (encontrar uma resposta as expectativas, langar um novo produto); |- conduszir essas agées como um processo de evento, no Ambito do qual serao analisadas diversas alternativas, serao descobertas e testadas as melhores solugdes aventadas, sem engessA-las em procedimentos ou \ respostas padronizadas a priori. Trata-se, nessa circunstancia, nao de fazer com que 0 evento nAo se repita mais, mas, pelo contrério, de demonstrar que se continua disponfvel As solicitagdes dos acontecimentos externos, que 0 trabalho humano — incomparavelmente superior ao das maquinas no que concerne esta questo — sabe inventar as respostas a serem dadas a um ambiente social complexo ¢ instdvel. (O conceito de evento tem importantes conseqiiéncias quanto a abordagem do trabalho. Realmente, desestabiliza profundamente o esquema do trabalho in- dustrial classico. Por exemplo: 1. Qevento significa que a compettiria, profissional néo pode mais ser en- clausurada em definic6es prévias de tarefas a executar em um posto de ‘trabalho. Sobretudo, ela nao pode mais ser incluida no trabalho pres- crito. A competéncia profissional consiste em fazer frente a eventos de maneira pertinente e com conhecimento de causa. E essa competéncia é propriedade particular do individuo, e nao do posto de trabalho. Seria alids absurdo falar de um posto de trabalho competente! 0 © conceito de trabalho retorna ao trabalhador. Nao se pode mais separd-los. Q trabalho é a acdo competente do individuo diante de uma situagdo de evento. Volta-se, mas em um contexto completamente dife- DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA 43 rente, a uma definigéo préxima da atividade camponesa, atividade que sempre foi sensfvel aos acasos (do clima, do comportamento das plantas e dos animais), mas que sempre foi guiada pelo saber tdcito que cada camponés possui. 2. Acompeténcia deve, diante de um evento, ser automobilizada pelo in- dividuo que se encontra na situacdo real, em seguida deve ser reconsi- “derada em uma andlise a posteriori do evento. Existe entao uma parcela indispensdvel de iniciativa que provém do préprio individuo, que nao pode provir de prescritores nem da estrutura organizacional. O trabalho recoloca-se na interioridade do trabalhador, nao apenas de “um ponto de vista cognitivo, mas também do ponto de vista da motiva- ao e do comportamento social solicitado pelas situag6es de evento. Pensemos na pane de um trem ou de um metrd, pensemos no agrava- mento do estado de um doente em um hospital: esses eventos “inspi- = ram” a. automobilizagio do condutor do trem ou da enfermeira. Além disso, no momento em que os eventos sao um pouco mais comple- ” xose importantes, ultrapassam 0 saber e a aco de um tinico individuo. Supéem a intensa mobilizagao de umaTede de atorés. E esta intensa mo- bilizagio (em torno de uma pane, em torno de um doente...) s6 pode ocorrer se jd existirem relacGes anteriores entre esses atores, s€ as_ competéncias, , as trocas verbais, as atribuicées puderem ajustar-se entre si, no seio dessa rede. O trabalho torna-se, imediatamente, coletivo. 4. Por definicdio, os eventos provocam perturbagio, agitacdo..O trabalho nao pode mais ser visto como uma seqiiéncia de operagées programa- das, “rotinizadas”, repetitiveis. Torma-se_uma seqiiéncia de eventos, de situagoes | singulares que se entrechocam, que reagem umas as outras em um regime de modificacao (e no de repeticio) da maneira de pro- dua 5. Por fim, e como jd mencionado, o conceito de evento muda muito a ma- neira de encarar as aprendizagens profissionais e de avaliar a experiéncia de um assalariado. Tradicionalmente, no modelo baseado na operacio, a experiéncia encon- tra-se associada A antiguidade na ocupacao de um posto. Supée-se que, gracas a ssa tiltima, a pessoa tenha aprendido a dominar seu posto de trabalho. Adquiriu rotinas, habilidades, registros de ago, em razo da repeticao do contetido do tra- balho. Diz-se, sempre, que os antigos tém experiéncia e que sabem mais do que os novos. _Em um universo de evento, as coisas mudam radicalmente: nao é mais possi- vel basear-se 1 na simples repeticéo eno tempo que se ocupou um posto. A aquisi io de experiéncia deve ser organizada al. E efetivamente em torno do ciclo: prgntrol : a OBJETIVO COMPETENCIA, { J), = confronto direto com os eventos; d _ andllise critica e sistemética desses eventos (de suas causas, dos suces- sos e dos fracassos de tentativas feitas para dominé-los etc.); \- antecipacao preventiva desses eventos, que um aprendizado sélido pode ser gerado, e rapidamente. Os jovens podem tornar-se mais experientes que 0s antigos, a antiguidade nao € mais um crité- rio discriminante para avaliar a qualificacao de um assalariado. Isto quer dizer gue o grau de experiéncia dos assalariados nao depende mais, primordial- mente, da duragao de sua permanéncia no posto de trabalho, mas da varieda dos eventos enfrentados e da qualidade da organizacao, que permite exam! na-los a fundo. — Entretanto, como esses questionamentos so complexos, ainda hoje 0 con- ceito de evento 6 pouco e mal compreendido nas empresas. As geréncias seguem mitito centradas nos procedimentos operatérios, nas prescrigdes de tarefas. Relu- tam em delegar a iniciativa e o poder imprescindiveis, bem como tempo para es- tudo e experimentacdo, para que os assalariados apreendam por si mesmos os eventos e os problemas que eles provocam. ‘Tomemos uum exemplo real. Na fabrica de montagem de motores de avido Snecma (Société nationale d’étude et de construction de moteurs d’avion), ocor- riam todos os dias eventos vitais para o desempenho dessa fébrica: falta de pecas. Em outras palavras, acontecia, por intimeros motivos, que componentes essenciais, que precisavam ser instalados no motor, faltassem. Resultado: a produgao corria 6 risco de parar, e isso acontecia com fréquiéncia. — (ouwich ars Para enfrentar esses eventos, decidiu-se realizar uma reunido di dria) & qual “D)y/ deviam comparecer as varias ocupagées que atuam na linha de montagem dos dujeesion motores: operarios de miontagem, representantes comerciais, gerentes respons4- sre Yeis pelos fhixos de producdo, especialistas em abastecimento e fornecedores. Nessas reunide: w \ _ as pecas que haviam faltado na véspera eram metodicamente especifi- : cadas e tentava-se, com a colaboracao de todos participantes, com- 4 preender os motivos dessa falta; — fixavam-se, coletivamente, objetivos de melhoria (diminuir o mimero {de pecas que faltavam, dando prioridade a determinada categoria de pega); — langavam-se planos de ago, que podiam levar a mudangas organizacio- nais profundas (como a entrega direta de certas pecas & linha de monta- | gem, sem passar pelo almoxarifado; como a criagéo de linhas de produtos nas quais estava programada cooperagio direta com as diferentes ocu- pages envolvidas na producao etc.). DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA = des envolvidas, instaurar uma cultura de gestao dos fluxos para os operarios da montagem e diminuir muito os tempos de parada das linhas.* 7 Esse modo de proceder permitiu coordenar as aces das diferentes ocupa- Comunicacgao A percepciio de que a comunicagao tornava-se um componente essencial do trabalho —a ponto de se poder afirmar: trabalhar é, em parte pelo menos, comuni- car-se - derivou da seguinte constatagio: a qualidade das interagdes é, de ora em diante, fundamental para melhorar o desempenho das organizac6es. Essa impor- tancia fica explicita: — em varios campos: nas interacées e comunicagao no interior de uma equipe de trabalho, entre varias oficinas, entre oficinas e servicos cone- xos, entre ocupacées diferentes, entre uma empresa e sua rede de sub- contratados etc.; — e nos diferentes registros de desempenho da organizacio: na qualidade dos produtos e servicos oferecidos, no prazo, na capacidade de inovar etc. Porém, para captar plenamente o significado dessa mutagdo - visto que an- tes enfatizava-se nao a comunicago, mas a divistio do trabalho, a separacao entre tarefas e responsabilidades — é preciso dar um passo a mais e dizer que a qualida- de das interacées nao pode ser assegurada: — nem por simples coordenagio “automética” de operacées; — nem por simples disponibilizagao de informacées. Justamente porque se trata de gerenciar interagdes—isto é, acdes rec{procas, que modificam a aco do outro ~ em torno de problemas e de eventos cuja soluco nao pode ser inteiramente prevista com antecedéncia, e que exigem novas acoes, as necessidades de comunicaco ultrapassam amplamente.as modalidades tradi- cionais de coordenagio e de disponibilizagao de informagées e colidem frontal- mente com uma tendéncia constante de re-divisio do trabalho, de re-separacdo das tarefas. — ‘égprincipalmente, construir um ent ero a do das ag6es desenvolvidas em conjunto. Comunicar-se é: 2. Para uma apresentacéo muito mais desenvolvida do conceito de evento, ver ZARIFIAN, Phi- lippe. Le travail et Vévénement, op. cit. 3. ZARIFIAN, Philippe. Travail et communication. Paris: PUF, 1996. & OBJETIVO COMPETENCIA ~ entender os problemas e as obrigagées dos outros (os outros individuos da equipe, as outras equipes de trabalfio, as ouitras formagées profissio- nais, os outros servicos...), ¢ entender a interdependéncia, a comple- mentaridade e a solidariedade das ages; — conseguir entender a si mesmo, e conseguir avaliar os efeitos de sua propria acao sobre os outros, em funcao desse entendimento; ~ chegar a um acordo referente as implicagées e aos objetivos de aco, aceitos e assumidos em conjunto, quanto As regras que vao permitir or- ganizar essas acdes; — por diltimo, é compartilhar normas minimas de justiga, que permitam acesso igualitario a informacdo e uma distribuicao eqiiitativa de seus beneficios, Evidentemente, seria ilusdo imaginar que informagées de diferentes niveis sejam unificadas e, por conseguinte, que as relacées hie- rArquicas vio desaparecer. Os assalariados nao esperam isso, e nem exi- gem. Trata-se, pelo contrario, de reconhecer o direito de cada um ter acesso a informacdo que conta para o exercicio de seu trabalho profissio- nal, porque ela condiciona a qualidade e o significado desse trabalho. i dificil satisfazer aos requisitos de uma comunicagao bem-sucedida, que ques- tiona profundamente as praticas tayloristas. Entretanto, quando essas condigées sdo reunidas, registram-se progressos sociais e econémicos considerdveis. Com efei- to, as trocas de conhecimentos, de pontos de vista sobre producao e expectativas dos piiblicos, as confrontagées de competéncias sao fonte incomparavel de dina- mismo e de riqueza para uma organizacéo complexa; isto é atestado pelo suces- so das organizacées por projeto, das organizagdes por processos transversais, pelo reconhecimento crescente da importancia das redes de trabalho. ‘A.comunicagao implica conflitos. Isto é uma boa coisa; é gragas aos conflitos que, muitas vezes, chega-se a um melhor entendimento e & obten¢ao de solidarie- dades de aco mais sélidas (contanto que a virtude do conflito seja reconhecida, que se veja 0 conflito como uma auténtica pratica de comunicagao, que leva mais a compromissos do que a consensos). ~ ‘A comimicacio, desde que a definamos como entendimento reciproco, pre- sume que se considere que os sistemas de informagao podem beneficid-la. Isto é particularmente verdadeiro no caso dos bancos de dados e dos usos da informa. fica: quer sirvam como “meméria compartilhada” por uma rede de atores (por exemplo: uma equipe de vendedores, que tem contato com diferentes categorias de clientes e compartilha um mesmo banco de dados), quer permitam a utilizagio de correios eletrénicos e de foruns de discussio, quer sirvam de local de difusao de cursos e de explicacdes sobre funcionamentos da empresa (por exemplo: utilizar a Intranet para ensinar o funcionamento de uma agéncia da France Telecom aos assalariados, ou para abrir um férum de discussio sobre 0 futuro das ocupagées dessa empresa), essas aplicagdes da informatica podem ajudar a comunicagao. DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA ae ‘A comunicacao é uma questo organizacional central. Seria absurdo redu- zi-la a uma simples “aptidao individual para comunicar-se”, ou transformé-la apenas em oportunidade para desenvolver a “politica de comunicacio” da dire- co da empresa. A comunicacao toca profundamente o cotidiano das atividades de trabalho. hoor Jt ERID Pode-se ver que a questiio da comunicacdo junta-se & do evento: muitas vezes quando ni iza q oca cessida- das. Pode-se organizar a confrontacao dos ‘eventos de maneira tal que as qualidades da comunicacéo sejam intensamente exploradas: em torno de um acaso, em torno do sucesso de uma inovacao etc. Se reina uma certa confusdo acerca do conceito de comunicagio é porque, em suuitas empresas, a comunicagdo continua identificada a “politica de comunicagao” da direcéo, que remete a esquemas de ago instrumental sobre 0 comportamento dos individuos. Procura-se provocar comportamentos adequados, propagar men- sagens, desestimular conflitos, influenciar pessoas etc. Ora, a comunicacdio a que ‘nos referimos, a comunicagaéo como procedimento de entendimento mutuo e de ‘estabelecimento de sélidos compromissos em torno de atividades profissionais, estA muito distante e, freqiientemente, mesmo em contradi¢&o com a comunica- ¢4o-mensagem que as diretorias de comunicacao privilegiam. Se o entendimento miituo coloca-se como uma das mutacées essenciais do srabalho é, ao mesmo tempo, porque: — os movimentos de socializacdo dos saberes e de organizacdo do traba- Iho induzem & abertura das ocupacées e As trocas de conhecimentos de pontos de vista sobre problemas de producdo que precisam ser en- frentados em conjunto; — surgem conflitos de comunicacio, quer porque podem surgir dtividas quanto a maneira de interpretar a realidade (de interpretar as catsas de uma pane, de interpretar a insatisfacdo de um cliente, de fazer o diag- néstico de um doente, de conhecer as expectativas de alunos etc.), quer porque as normas de aco divergem (tal individuo privilegia a qualida- de do servico e outro 0 fluxo dos pedidos), quer, enfim, porque as inten- Ges € os projetos pessoais dos assalariados envolvidos nas atividades sao muito diferentes. A comunicagao é ainda mais necessdria nos casos em que se manifestam essas cri8@s, © surge a necessidade de se falar, de se confrontar e de procurar.com- promissos para que, em meio e apesar dessas crises, as opinides possam se aproxi- mar ea cooperagio seja ativada. oe Em nossa opiniao, é quase certo que a penetragao dos atos de trabalho pelas praticas de comunicagao desestabiliza ocupacées profissionais tal como elas exis- tiam. E que se coloque a questo de redefinir as vinculagées profissionais em bases ah OBJETIVO COMPETENCIA mais amplas e mais flexiveis do que anteriormente. A légica competéncia nao é, de modo algum, a causa de tal fendmeno. Pelo contrério, diante da inadequagao notéria do modelo do posto de trabalho e da superaco das classificagées de ocu- paces, apenas ela (a logica competéncia) pode permitir tal redefinicao. Servi¢co Trabalhar ¢ um servigo, ou seja, é uma modificagdo no estado ou nas condigées de atividade de outro humano, ou de uma instituigao, que chamaremos de destinatdrios do servico (o cliente, no setor privado, 0 usudrio, no setor puiblico). Nao se trata de falar “dos servicos” no sentido de uma oposicao cldssica entre “tercid- rio” e industrial”. Trata-se de perceber que o conceito de servigo concerne ao trabalho moderno, qualquer que seja o setor de atividade (tercidrio, industria, agricultura). Afirmar que trabalhar consiste em produzir um servigo para um destinatario tem a vantagem de tornar concretos os conceitos de cliente, ou de usuario. Com efeito, a melhor maneira de falar dos clientes de um modo concreto e reflexivo é considerar produto o servico prestado a destinatarios precisos, com utilizaces claramente definidas, tendo em vista problemas dos destinatarios e usos concre- tos que esses clientes podem fazer do produto em suas proprias atividades. Tomemos um exemplo emprestado da industria pesada: na siderurgia francesa, comeca-se a dizer que é preciso produzir nao toneladas de aco, ou quan- tidades de chapas, mas “soluc&es aco” para categorias especificas de clientes. So- IugGes ago para fabricar anteparos capazes de realmente amortecer os choques dos carros ao longo das estradas, ou para resolver problemas de baixo peso espe- cifico e de resisténcia das chapas dos automéveis. A primeira coisa que precisa ser considerada, e trabalhada, é 0 problema do usudrio. 0 “produto” (no exemplo dado, produtos de aco) é simplesmente a solucdo possivel para esse problema, elaborada apés estudos € testes, e que compete com outras solugées (solugdes em cimento, para as estradas; em plastico, para as cha- pas dos automéveis). E nesse sentido que se pode falar de “servigo”, e evocar a co-producao de servicgo entre o cliente-usuario e a empresa produtora do servico. O que é verdadeiro para a industria também o é, de maneira ainda mais evi- dente, para a atividades chamadas de tercidrias. Por exemplo, trabalhar-como rofessor de universidade é, comprovadamente, produzir um servico para estu- Gree iso implica conhecer suas necessidades ¢ suas expectativas, suas manei- Tas de raciocinar, saber adequar seu ensino aos tipos particulares de estudantes que esto, em dado momento, na universidade. Um bom professor nao ensina de ada para alunos anénimos e robotizados. Ensina jovens reais, DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA wo & proposto. Ea produgdo desse servi- avalia longo do ter maneira como os estudantes em questao jrao Runmaiasmcploncon icimeaios ensinados. Como introduzir o conceito de servico no trabalho concreto de uma oficina, de um escritério, de uma universidade? Provavelmente, destacando: ~ a qualidade final do servico prestado a um cliente ou usudrio. Essa qua- lidade no se limita ao “invélucro” do produto. Nao é apenas 0 prazo de entrega ou a embalagem do produto, nem os gastos feitos com publici- dade para promové-lo, O essencial, na qualidade do servico, reside na relacéo que o produto — seja ele material ou imaterial - mantém com os usos que o cliente poderd fazer dele, na maneira como ele pode trans- formar concretamente as condigées de: de vida ou de atividade desse clien- sudrio; — amaneira como esse cliente ou usuétio pode participar da definicao do servigo que lhe é propost —— — a sucessio de acdes que permite criar, em conjunto, essa qualidade e, logo, que permite especificar a contribuicao de equipes de profissionais & producdo dessa qualidade do servico. ‘Tomemos dois exemplos: — em uma grande empresa como a France Telecom (com 160 mil empre- gados), a qualidade do servico concerne tanto aos técnicos da comuta- cdo — que supervisionam o funcionamento das centrais telefénicas — quanto aos empregados das agéncias, que tém contato direto com os clientes. Em outras palavras, a atividade do “back office” é tao impor- tante quanto a do “front office”, e a cooperacdo entre técnicos e em- pregados em fungdes comerciais revela-se decisiva para gue toda a cadeia de acdes contribua efetivamente para a qualidade. E evidente, por exemplo, que para que os servicos oferecidos por essa empresa (como a visualizacao do ntimero) funcionem bem, é preciso que os co- mutadores e a rede estejam adaptados para esse fim. Os técnicos pro- duzem servico tanto quanto os empregados em fungGes comerciais; — em uma empresa americana como a 3M, instalada na Franca, a qualida- de do servico é, em sua fAbrica de producdo de abrasivos, a maneira como essa empresa adapta a definigao de seus produtos a demandas in- dustriais diversificadas, fazendo produtos “sob medida”, desenvolvidos para atender ao uso que cada cliente fara do produto. O estudo de usos potenciais dos discos abrasivos, feito em conjunto com 0 cliente, é 0 ini- cio real da produgio da qualidade. 500 OBJETIVO COMPETENCIA No entanto, é preciso notar que, curiosamente, a questdo da producao do servigo esta, de modo geral, pouco presente nas empresas, tanto no que concerne aos empregados da drea comercial (que se interessam sobretudo pela venda e pela colocagao puramente comercial dos produtos) quanto no que concerne aos engenheiros e aos operarios da producao (que se interessam sobretudo pela con- fiabilidade das maquinas e pela qualidade técnica dos produtos). A questo do servigo, como tal, comeca apenas a surgir na pratica profissional de uma grande parcela dos assalariados, e mesmo nia pratica profissional de geréncias de empre- sas, apesar do amplo uso do termo nos discursos, redefinindo, assim, o contetido das principais funcdes da empresa. — 2 — Ainda hoje ha dificuldade de encarar a prestac&o de servigo como finalidade que une assalariados, que dé sentido unificado & comunicagio, e permite concre- tizar “aspiracées de clientes-usudrios” que sio amplamente compartilhadas no seio da empresa ou da institui¢o em que se trabalha. | No entanto, a produgao de servigo € essencial para uma produgdo moderna. E ela quem Ihe confere sentido e pertinéncia. | O servigo é, simultaneamente: — 0 que é efetivamente proporcionado a um cliente-usuério, aquilo que realmente modifica seu estado ou sua atividade e, logo, indiretamente, aquilo que transforma seu modo de vida; — 0 que justifica a sobrevivéncia de uma organizagio e, conseqiientemen- te, o emprego dos assalariados que af trabalham. Essa concep¢ao do servigo encontra-se, no momento, mascarada e recoberta por uma vis4o puramente competitiva e mercantil que, freqiientemente, impede uma reflexdo e um verdadeiro debate sobre as utilizacdes que sao feitas dos servi- 0s. Todavia, quando se avaliam as coisas no decorrer do tempo, a nogao de servi- co ganha terreno: as regulamentacées de prestacio de servico, o marketing de uso, os compromissos sobre a duracdo das relagdes entre prestador do servico e seu destinatério acabam por se impor, e isto significa que “produzir um servico” torna-se uma caracteristica essencial do proprio trabalho. LOGICAS DE COMUNICAGAO E DE SERVIGO E QUESTAO DA PRODUTIVIDADE DO TRABALHO Parece-nos necessério desenvolver ainda mais profundamente o conceito de servico para procurar saber como ele se articula, ou no, com uma renovagao do pensamento sobre a produtividade. A partir de estudos que realizamos em gran- des empresas de servico, pudemos descobrir trés grandes légicas cujo alcance, na Franca pelo menos, parece-nos bastante amplo. DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA Logica do servico publico: avaliagéo da eficdcia segundo critérios sociopoliticos ‘A légica de servico puiblico tem um papel importante na sociedade francesa, ois remete A concepcio de cidadania diretamente assoctada as conquistas repu- Dlicanas da Revolucao Francesa. O servico ptblico ¢ regido por principios, e em especial por dois entre eles: — aigualdade de acesso de todo cidadao ao servico piiblico, sem nenhum tipo de discriminacao; ~ acontinuidade do servico: continuidade territorial - 0 que quer dizer que o servico ptiblico deve ser geograficamente acessivel a todos, logo, deve estar presente nas regides longinquas do territério francés - ¢ con- tinuidade no tempo ~o que quer dizer que 0 seu acesso nao pode ser in- terrompido. Aeeficdcia do servigo piiblico estd diretamente relacionada a esses dois princt- : em que medida 40 respeitados? Como melhorar 0 respeito a eles? Por exemplo, a France Telecom fez, nos anos 70, um enorme esforco para instalacao de telefones para a poptllagao francesa, para que cada lar, onde quer que se lo- iizasse, pudesse dispor de telefone, nas mesmas condigdes, com a mesma qua- ade de servico e a mesma tarifa. Na pratica, a eficdcia depende, efetivamente, de dois parametros distintos: — de um lado, do esforgo e dos recursos investidos pela empresa de servico puiblico e, por conseguinte, se necessario, do financiamento do Estado; — de outro lado, do trabalho e do envolvimento subjetivo de cada funcio- ndrio da base das organizagées publicas, motivado, para que os princf- pios mencionados penetrem na vida real. Por exemplo, na France Telecom, funciondrios (assalariados) est4o muito atentos ao respeito 4 igualdade de acesso ao telefone e, quando pessoas tém dificuldades concretas (por exemplo, est4 desempregada e nao consegue mais pa- gar sua assinatura & France Telecom), o funcionério vai procurar uma solugdo para que essa igualdade seja mantida (vai aprovar, segundo normas da empresa, adiamento do pagamento, ou uso reduzido da li- nha para que o desempregado nao seja privado de seu telefone). Encon- traremos atitudes semelhantes na maior parte dos mais importantes servicos ptiblicos, como por exemplo as Caixas de Seguro Social, quando do tratamento de casos. A eficdcia real dessas empresas é produzida tanto pela multiplicidade do en- Ivimento dos assalariados da base da organizacao quanto pelo esforco financei- do Estado, e nao se pode compreender tal comprometimento no trabalho sem 52 OBJETIVO COMPETENCIA levar em conta o “espirito de servico ptiblico”, o apego de funcionérios a esse espi- tito, que encarna as conquistas da cidadania politica. No entanto, todos sabem que na Franga, como em outros lugares, 0 setor pré- prio do servico pitblico perde terreno. Como se sabe, no caso do telefone, a France Telecom continua obrigada a acatar o principio de “servico universal” para o aces- so 4 linha de telefone, mas todos os demais servigos entram em uma légica mer- cantil competitiva, e isso devido a abertura geral desse setor 4 concorréncia. Aconcepgao de servico puiblico sempre teve limitagées internas intrinsecas. O usuério (do servico), em especial, é visto como um ser abstrato, que possui di- reitos, que vai ao servic¢o puiblico ao invés de este vir a ele. O usuario vai a agéncia dos Correios ou 4 agéncia da France Telecom, ou ao guiché da SNCF. A iniciativa vem dele, e naéo da empresa. A contrapartida de uma aproximacao desse tipo é que a empresa publica conhece mal as situacGes reais e as expectativas desses usuarios. Cabe aos usudrios dirigir-se 4 empresa e expor seu caso. Mas no cabe A empresa adiantar-se aos usuarios e conhecer seus problemas e expectativas. O paradoxo, pois, é que as grandes empresas ptiblicas conhecem mal os usudrios de seus servicos e, até recentemente, faziam poucos esforgos para supe- rar essa situagao. Daf decorre uma critica continua 4 “burocracia” dessas empre- sas, critica em nossa opiniaio pouco justificada quando se refere ao trabalho de funciondrios da base da organizacdo, mas justa quando considera-se o funciona- mento global dessas empresas. E evidente que, nesses tiltimos anos, essa situacio ‘comegou a mudar, e poucas pessoas contestam o fato de que a qualidade do servi- co prestado por essas empresas melhorou incontestavelmente. Légica de colocagao mercantil: a produtividade da colocacéo e a permanéncia da ldgica de fluxo O conceito de Idgica de servico(s) pode ser encarado de maneira inteira- mente oposta: pode ser encarado como uma légica de colocagao (de venda) de servicos em um mercado competitivo. Nao se trata mais “do” servico ptiblico, mas “dos” servicos mercantis que so vendidos para clientes. O conceito de servico muda, a palavra nao tem mais o mesmo sentido. Para agéncias comerciais, 0 critério de eficdcia é simples: 0 que conta é a quantidade de produtos ou de servicos vendidos em tempo determinado. Dir-se-A que tal estabelecimento tem bom desempenho quando vendeu mais produtos e servigos no més em comparagao com outros estabelecimentos do mesmo género. A eficdcia é, ent&o, a venda direta aos clientes. E os assalariados podem ser, indi- vidual ou coletivamente, em parte remunerados de acordo com a quantidade de produtos e servicos vendidos no més. Essa medida da produtividade tem sua légi- ca, mas produz efeitos perversos: DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA, 53. ~ incita A quantidade, As custas de uma resposta precisa as verdadeiras necessidades do cliente; é preciso “colocar”, custe o que custar, produ- tos e servicos da empresa, em comparag4o com o que vende a concor- réncia; — avalia a produtividade no curto prazo. Isto no diz nada que seja indis- cutivel sobre a satisfacdo real do cliente e sua fidelizacdo e, por conse- guinte, sobre a maneira como esse produto ou servico efetivamente se integra as condigées de atividade ou de vida desse cliente. E possivel que cliente-usuario mostre-se insatisfeito com o funcionamento do produto ou servico vendido e se volte para um concorrente. Esse efeito nao sera captado nas medic6es diretas de produtividade; — s tem validade para vendedores ou para pessoal que faz atendimento por telefone, que tem contato direto com clientes. Esse critério de pro- dutividade, segundo a quantidade de produtos vendidos, nao é aceité- vel no caso de técnicos, que fazem funcionar o sistema técnico. No caso desses tltimos, essa abordagem de servicos nao tem nenhum sentido. E, por conseguinte, ter-se-4 na mesma empresa medidas de produtividade de todo heterogéneas: para os vendedores, serd a quantidade de produ- tos vendidos no més, e para os técnicos, o nivel de confiabilidade das instalacdes téenicas... E é quase impossfvel estabelecer uma relac&o en- tre esses dois critérios. Logo, seré muito dificil estabelecer uma solida- riedade da rede de trabalho em torno da prestacao de servico, muito dificil uma comunicacio real e consistente. Entdo, a empresa fragmenta-se em coletivos que nao trabalham segundo os mesmos critérios, com os mesmos objetivos e no mesmo sentido. E essa situagio gera grande mimero de disfungées, de perdas considerdveis de eficécia. Essa visdo exclusivamente mercantil tem os mesmos inconvenientes que a abordagem do servico piiblico ja referida: nao revela nada quanto s expectativas © 208 usos reais dos servicos, feitos pelos clientes-usurios. Vendem-se produtos servicos “as cegas”, sem se preocupar com o servico real que se pode oferecer aos diferentes puiblicos. E impressionante ver a que ponto essa Idgica meramente mercantil est pré xima do modelo industrial. Em sua esséncia, € rigorosamente igual & busca do flu- xo que foi desenvolvida pelo taylorismo. E nao é por acaso que leva a taylorizar a atividade dos vendedores ou dos telefonistas, padronizando as respostas dadas aos clientes e incitando ao incremento do fluxo. 0 modelo da operacao pode en- so continuar a se impor, e mesmo difundir-se em lugares onde antes estava, em grande parte, ausente. 54 OBJETIVO COMPETENCIA Logica de resposta aos usos: a co-avaliagao de efeitos titeis A légica de resposta aos usos que os clientes pretendem dar a produtos servigos é a légica que, por razées jé expostas, parece-nos a melhor, a tinica que incorpora inteiramente 0 conceito de servigo, ¢ que melhor corresponde & mate- rialidade do trabalho modermno. E preciso notar que esse conceito de servico (no singular: realizar uma pres- tagao de servico para um usuario real) pode-se aplicar com perfeicao ao servico puiblico, do mesmo modo que pode juntar-se a uma ldgica mercantil, e mesmo aos dois ao mesmo tempo, conforme o status e a situacéo da empresa. Na légica de resposta aos usos, o critério de produtividade reside na com- preensio dos problemas especificos do cliente, na capacidade de escutar e de entender, e no cardter adequado da solugao que a empresa propde ao cliente. A avaliacao da produtividade nao pode ser automatica, Néo pode consistir em um simples valor de investimento mensal. Deve contar, simultaneamente, com a par- ticipacao: — do préprio cliente, que deve participar da co-producéio do servico e coo- perar na avaliaco, durante a duracdo do servico, dos efeitos positivos que ele, usuario, obtém desse servico; e — da empresa, que deve trabalhar as expectativas do cliente, que deve tentar antecipar-se a elas, que deve expressar o que Ihe parece possivel oferecer a um custo razoavel, que deve acompanhar e avaliar os efeitos em toda a duragao da prestagao do servico. Essa terceira légica pressupde que uma informacao confidvel sobre clientes, e suas categorias de necessidades, seja progressivamente construfda, que quais- quer informagées sobre eles sejam capitalizadas por meio de diversos contatos concretos que os assalariados das empresas mantiveram com eles. No caso de um vendedor ou de uma telefonista, o critério mais importante nao é a quantidade de produtos vendidos ou o ntimero de chamadas telefénicas tecebidas (critério quantitativo da légica mercantil), mas a qualidade da com- preensao do problema do cliente e, portanto, a qualidade da resposta particular que Ihe é dada. Isso implica empatar muito mais tempo com cada cliente e, logo, determina o tempo de trabalho de maneira muito diferente: — na légica da colocacao mercantil dos produtos é preciso trabalhar répi- do, responder rapidamente a cada cliente, para vender a maior quanti- dade de produtos no dia; — na légica de resposta aos clientes, é preciso empatar tempo com cada cliente, para escutd-lo, para dialogar com ele e entender suas dificul- dades. DAS MUTAGOES DO TRABALHO A COMPETENCIA 55 Por certo essas duas légicas esto, freqiientemente, presentes ao mesmo tempo. Entretanto, é possivel identificar qual delas deve ter prioridade e chegar a um equilfbrio, que permita gerenciar o fluxo sem comprometer a qualidade do servigo. Entéo, uma convergéncia com os técnicos pode ser criada: esses tiltimos po- dem, por intermédio da qualidade do sistema técnico pelo qual so responsdveis (uma rede telefénica, um parque de centrais elétricas, os equipamentos de um hospital ete.), compreender como eles contribuem para garantir essa qualidade de resposta, que é, concomitantemente, uma resposta “em massa” (para todos os usuarios) e uma resposta “especifica” (para fazer face a casos em equipamentos especificos, para dar explicagées técnicas que condicionam a qualidade de uso do equipamento por dada pessoa ou, por exemplo, para intervir quando de uma pane de funcionamento). A qualidade da comunicacao é onipresente: esté presente nos didlogos e na cooperacio com 0s clientes-usudrios, nos processos de ago que as diferentes ca- tegorias de assalariados devem executar em conjunto, esta presente nas andlises a posteriori dos efeitos titeis e nas avaliagdes criticas da qualidade do servico efeti- ‘vamente oferecido, est presente nas pesquisas para melhoria e inovagio. ‘TRABALHO E COMPETENCIA Se reunirmos as mutacées profundas do trabalho que os trés conceitos: = evento; — comunicacéo; = servigo, recobrem, veremos esbocar-se plenamente o contetido do que se pode entender por “competéncia”, e poderemos compreender por que essa questo aflora com forga. Com efeito, a definicao tradicional, industrialista e taylorista da produtivida- de do trabalho, vinculada simultaneamente: — a separagdo realizada entre trabalho (uma lista predefinida de opera- es a serem executadas no posto de trabalho) e trabalhador (um con- junto de capacidades para ocupar esse posto); € ~ Arapidez da efetuagéo do trabalho, logo, ao fluxo de producao, é um conceito que persiste, mas que se revela cada vez mais desajustado e obsoleto em relacdo as formas modernas de eficiéncia. Nao apenas os sistemas de m4quinas automatizadas ou informatizadas nao param de

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