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Emile Faguet A ARTE P“ LER Tradugao Adriana Lisboa Casa da Palavra Digitalizado com CamScanner Sumario Introdugao 7 1. Ler devagar 10 2. Os livros de ideias 12 3. Os livros de sentimento 25 4. As pecas de teatro 43 to poetas 62 6. Osescritores obscuros 84 7. Os maus autores 93 8. Os inimigos da leitura 99 9. A leitura dos criticos 117 10. Reler 131 Eptlogo 139 Digitalizado com CamScanner 1 LER DEVAGAR PARA APRENDER A LER E£ PRECISO ler bem devagar, e em seguida é preciso ler bem devagar e, sempre, até o tiltimo livro que teré a hon- ra de ser lido por vocé, sera preciso ler bem devagar. E preciso ler de- vagar um livro tanto para desfrutar dele quanto para se instruir ou Para criticd-lo, Flaubert’ dizia: “Ah! esses homens do século XVII! Como sabiam latim! Como liam devagar!” Mesmo sem a intencio de escrever vocé mesmo, é preciso ler com lentidao 0 que quer que seja, sempre se perguntando se compreendeu corretamente e se a ideia com que acabou de se deparar é a do autor e nao a sua. “E isso mesmo’, deve ser a pergunta continua que o leitor faz a si mesmo. Os fildlogos tem uma mania um pouco divertida, mas que par- te do melhor sentimento do mundo e que devemos ter e conser- var como principio, como raiz. Eles se perguntam sempre: “E este mesmo 0 texto? Nao seria ergo em lugar de ego, e ex templo em lugar de extemplo? Isso faria diferenca.” Essa mania lhes surgiu de um habito excelente, que é o de ler devagar, que é 0 de desconfiar do primeiro sentido que se vé nas coisas, que é 0 de nao se aban- donar, que é 0 de nao sermos Preguicosos ao ler. Dizem que, no texto de Pascal sobre 0 dcaro, ao ver 0 manuscrito, Cousin’ leu: * Gustave Flaubert (1821-1880), um dos maiores nomes da histéria da lite tura francesa, autor de clissicos como Madame Bovary e Trés contos. “Blaise Pascal (1623-1662), matemitico, fisico e fil6sofo francés. * Victor Cousin (1792-1867), filésofo e historiador, um dos mais impor tantes pensadores franceses de seu tempo. 10 Digitalizado com CamScanner “nos contornos dessa sintese de abismo” E como ele 0 admirou! Como 0 admirou! Estava escrito: “nos contornos dessa sintese de tomo”, o que faz sentido. Cousin, levado por seu entusiasmo ro- mantico, nao se perguntou se “sintese de abismo” também fazia. E preciso nao ter preguiga ao ler, mesmo uma preguica lirica. Nem precipitacao. A precipitagao nao passa, alids, de uma forma de preguica. Nossos pais diziam: “Ler com os dedos.” Isso queria di- zer folhear de tal modo que, feitas as contas, os dedos tinham mais trabalho do que os olhos. “O sr. Beyle* lia muito com os dedos, o que quer dizer que ele percorria muito mais do que lia, e deparava sempre com o lugar essencial e curioso do livro.” E preciso nao pensar muito mal desse método que é 0 dos homens que sao, como Beyle, colecio- nadores de ideias. Ocorre apenas que esse método tira todo o prazer da leitura e o substitui pelo da caga. Se vocé quer ser um leitor dile- tante endo um cacador, seu método precisa ser exatamente 0 oposto. De forma alguma deve ler com os dedos, nem ler na diagonal, como também se diz de modo bastante pitoresco. Deve ler com um espirito atento e bastante desconfiado de sua primeira impressao. Vocé me diré que ha livros que nao podem ser lidos devagar, que nao suportam a leitura lenta. E os hd, de fato, mas esses sao os livros que nao é preciso ler em absoluto. Primeira consequéncia benéfica da leitura lenta: ela faz a separacdo, desde o inicio, entre o livro que se deve ler e 0 livro que s6 foi feito para nao ser lido. Ler devagar é o primeiro principio, e se aplica a toda e qual- quer leitura. E como a esséncia da arte de ler. HA outras? Sim, mas nenhuma se aplica a todos 0s livros sem distingdo. Além de “ler devagar” nao ha uma arte de ler; ha artes deler, e muito diferentes conforme as diferentes obras. Sao essas artes de ler que tentaremos sucessivamente destrinchar. ® Henri-Marie Beyle (1783-1842), romancista francés mais conhecido pelo pseud6nimo Stendhal, com o qual assinou classicos como O vermelho e 0 negro e A cartuxa de Parma. n Digitalizado com CamScanner 2 OS LIVROS DE IDEIAS HA LIVROS DE IDEIAS, COMO 0 Discurso sobre 0 método, O espi- rito das leis, 0 Curso de filosofia positiva, Ha livros de sentimento, como as Confissées e as Memérias de além-tiumulo. Ha poemas dramaticos. Ha poemas liricos. £ evidente que, excetuando-se esse preceito geral de ler com atengao e reflexao continuas, a arte de ler nao pode ser a mesma para esses diferentes géneros de es- crita. Hé uma arte de ler para cada um. Aarte de ler os livros de ideias me parece ser esta. E uma arte de compara¢ao e de aproximacao continuas. Con- cretamente, lé-se um livro de ideias tanto virando as paginas da esquerda para a direita quanto da direita para a esquerda, ou seja, tanto voltando aquilo que se leu quanto continuando a ler. Sendo o homem de ideias, mais do que qualquer outro, um homem que nao pode dizer tudo de uma sé vez, ele se completa e se esclarece * Algumas informagées sobre as obras citadas: 0 Discurso sobre o método foi publicado em 1637 pelo fil6sofo, fisico e matematico francés René Descartes (1596-1650); 0 Curso de filosofia positiva, de Auguste Comte (1798-1857), fun- dador do positivismo, saiu em seis volumes entre 1830 ¢ 1842; O espirito das leis é 0 principal trabalho de Charles de Montesquieu (1689-1755) e foi edita- do em 1748; Memérias de além-ttimulo, de Francois-René de Chateaubriand (1768-1848), consta de 42 volumes autobiogréficos redigidos entre 1809 € 1842, porém publicados apenas postumamente, nos anos de 1849 ¢ 1850; a5 Confissoes, compostas de 12 livros, sao de autoria do pensador sui¢o Jean- “Jacques Rousseau (1712-1778) e também apresentam carter autobiogt’f- 0} 0s livros foram publicados em dois momentos distintos: em 1782 € 1789- 12 Digitalizado com CamScanner ao avangar, e sé o compreendemos quando o lemos por comple- to. E preciso, entéo, a medida que ele se completa e se esclarece, levar em consideracao todo o tempo para compreender 0 que se lé hoje, aquilo que se leu ontem e, para melhor compreender aquilo que se leu ontem, aquilo que se lé hoje. Assim se desenham em seu espirito, leitor, as ideias mais gerais do pensador, aquelas que ele teve antes de todas as outras e das quais todas as outras resultaram — ou aquelas que ele teve bem no final, como consequéncia e como sintese de um sem-ntimero de ideias particulares — ou (com mais frequéncia) as que ele teve no decorrer de sua carreira intelectual e que eram 0 resumo de uma grande quantidade de ideias particulares que, por sua vez, produziram, criaram ideias particulares em grande quantidade. Se vocé lé Plato," por exemplo, acredita se dar conta de que a primeira ideia geral tida por ele foi o horror 4 democracia ateniense que matou Sécrates."! Observa que toda a sua politica deve vir dai e é levado, assim, a comparar tal ou tal texto das Leis com a famosa prosopopeia das Leis no Criton. Vocé diz a si mesmo que Platao é, antes de tudo, um aristocrata, mas que uma espécie de respeito estoico e mesmo cavalheiresco pela lei € algo que ele deve ter no co- aco, jA que tanto o respeita no coragao alheio, Seria ele entao uma espécie de republicano aristocrata, republicano enquanto alguém que deseja apenas ser 0 stidito da lei e deseja que a lei seja mais po- derosa do que todos os homens, aristocrata enquanto alguém que nao quer a multidao no comando. 1 Plato de Atenas (c. 428-347 a.C.), fildsofo grego, autor de obras que abrangem uma diversidade de temas, entre os quais ética, politica e metafi- sica. Foi discfpulo de Sécrates e mestre de Aristételes. " Sécrates (470-399 a.C.), filésofo grego, é tido como um dos fundadores da moderna filosofia ocidental. Suas ideias so conhecidas sobretudo a par- tir dos didlogos de seu discipulo Platao, uma vez que no deixou registros escritos de préprio punho. Foi sentenciado a morte sob a alegagao de cor- romper as mentes de jovens atenienses. 13 Digitalizado com CamScanner Mas nao ha ai uma contradigao e nao é a multidio que fiz, 4 lei? Nao em uma reptiblica aristocritica. Nao, sobretudo se voca observa que Platao fala principalmente do respeito As leis antigas, io nem de uma que, no momento presente, ndo so obra da multida elite, e sim obra do passado, a obra lenta dos séculos. Entio, voce chega a conclusao de que talvez Platao seja um homem desejoso de que um povo seja governado, sobretudo, por seu passado, o que é a esséncia mesma da aristocracia. Vocé talvez se engane, mas vocd comparou, aproximou, controlou uma ideia através de outra, limi- tou ou retificou uma ideia através de outra e desfrutou do prazer que devemos buscar num pensador, que é 0 prazer de pensar, Falei das ideias gerais das quais o autor partit e que fizeram nas- cer ideias particulares. Vocé ha de perceber sempre que, quando se trata de uma ideia geral da qual o autor partiu, essa ideia é um senti- mento. Para Platao, o édio a democracia é 0 culto a Sécrates, Mas fa- lei de ideias gerais as quais 0 autor chegou, pouco a pouco, reunindo um grande ntimero de ideias ou observagées de detalhes. Platao lhe parecerd ter procedido assim para chegar A sua teoria das Ideias. Ele é monotefsta, como varios de seus predecessores em filosofia. Que 0 mundo seja suscetivel de ser conduzido a uma tinica lei é uma ideia que come¢ou a invadir 0 espirito humano e se impor a ele. Mas, por outro lado, ele é grego demais para nao permanecer um pouco poli- tefsta, para nao acreditar que forcas multiplas e diversas governam 0 mundo e o disputam. Nao seré por isso que ele imagina seu mundo das Ideias, vivendo no seio de Deus, substancias e almas inerentes a todas as coisas que existem? O que é isso? & um Olimpo material substituido por um Olimpo espiritual; é um Olimpo de super ~homens, um Olimpo antropomérfico, substituido por um Olimp? dealmas puras. Bo livro de um pagao mistico, de um pagio espititu” lizado, Vocé compara, aproxima, lembra-se de que Plato adora mitos, OU seja, as teorias vestidas de fabulas, no estilo dos poe™* “Picos, ¢ diz a si mesmo que o encontro de um mitdlogo ¢ de” 14 Digitalizado com CamScanner ista produziu essa teoria da \GOes que bstragdes que sito for Evocé ainda pode estar enganado, mas néo deixaria Platao insatisfeito, ele que, como todos 0s fildsofos, escreve menos para ser admirado do que para ser compreendido, ¢ até mesmo menos para ser compreendido do que para fazer pensar. Vocé pensou; cle ganhou a partida. Além disso, ha ideias gerais que vém ao cérebro do pensador depois de todas as outras, ou quase todas. E essas ideias filhas das ideias, quase ndo tém mais relagio alguma com o sentimento. Per- ceba-as como tais ¢ veja-as como sendo tao temerdrias quanto pu- ras e como sendo tao aventureiras quanto abstratas. O que é Deus para Platao? Nao um ser que se adora a partir de um movimento do coragao e um impulso do instinto, mas uma doutrina que outras doutrinas levaram pouco a pouco a se ter como verdadeira. Deus, para Platao, é uma conclusio; a fé de Platéo é uma ldgica. Nao se deve censuré-lo por isso, mas como tal nos interessa comparar essa. religiao filos6fica as religides em que Deus é “sensivel ao coragao”, ou seja, A intuicao imediata de todo ser vivo! Quem tem razao? Ah! Por ora, o que importa? Por ora, estou apenas aprendendo a ler. Ler um filésofo significa compara-lo sem cessar a ele mesmo. Significa ver o que nele é sentimento, ideia sentimental, ideia re- sultante de uma mistura de sentimento e ideias, ideia ideol6gica, ou seja, resultante de uma lenta acumulagao, no espirito do pen- sador, de ideias puras ou quase puras. , Vocé lé Montesquieu. Descobre bem depressa que esse homem tem uma tinica paixdo: 0 6dio ao despotismo. O que mais detesta- mos no mundo, quando temos a alma ativa e nao apenas passiva e submissa, é 0 que vimos ao nosso redor aos 20 anos. E nao digo que isso seja muito bom; digo apenas que assim é. Montesquieu viu, aos 20 anos, o fim do reinado de Luis XIV; 0 que mais detesta no mun- do € 0 despotismo. Observemo-lo ainda, lendo sobretudo as Cartas persas: algo que ele também nao aprecia é a religido catélica. Por . 15, Digitalizado com CamScanner que? Sem chivida, porque a religiZo catélica foi uma boa aliada de Lufs XIV, sobretudo na tiltima parte de seu reinado, dando uma boa sustentagio ao seu trono. Ora, 0 que lemos no Espirito das leis? Que areligito é uma das melhores coisas de um Estado bem regulamen. tado, Que contradigiio é essa? Nao terfamos apenas passado de uma ideia de sentimento a uma ideia de raciocinio? Montesquieu foj |e. vado ao édio do despotismo. Pensou, como consequéncia bastante légica, em tudo o que poderia deté-lo, conté-lo, refred-lo, estorva-lo e reprimi-lo. Entre as diferentes forcas que poderiam ter esse efej- to, encontrou a religido, como encontrou a aristocracia militar, como encontrou a magistratura. A partir de entao, a religido lhe aparecey sob outro aspecto, e nao digo que ele tenha nutrido por ela um afeto da alma; sentiu por ela afeto do espirito. Evolugao de ideias libertan- do-se pouco a pouco dos sentimentos que as originaram. Encontramos em Montesquieu essa grande ideia geral: influén- cia do clima sobre os temperamentos, sobre os habitos, sobre as ideias e sobre as instituigdes dos povos. E nao deixamos de conside- rar Montesquieu o tedrico materialista ou fatalista das legislacdes. O que vemos, ao mesmo tempo? Essa ideia de que é preciso com- bater o clima através dos hébitos, e os habitos, tais como ficaram ainda sob a influéncia do clima, através das leis, Mas isso € posstvel? Em que ele acredita, ent4o? Supde-se que acredite em duas coisas: a saber, no império das coisas sobre nés e no nosso poder sobre as coisas. Ele acredita sem diivida, como disse Montaigne,” que a fatalidade nos devora e que o espitito humano pode reagir a ela. Os climas fazem nossos habitos, nossos habitos fazem as leis, sim, mas também nossas leis fazem nossos habitos e nossos habitos podem combater o clima. Mas com o que faremos leis contra nossos habi- tos e depois habitos que, impregnados por nossas leis, combater40 —___ " Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592), filésofo cético € politico frances, autor dos Ensaios, oe 4 Digitalizado com CamScanner o clima? Sem dtivida, com a forga de nosso proprio espirito. Um fa- talista espiritualista, e tanto mais espiritualista, pois assim é preciso, quanto mais fatalista 6, assim é entio Montesquicu? £ 0 que parece. Supondo ao menos que assim seja, pela comparagao que fizermos dele com ele mesmo, teremos: pensado, teremos refletido sobre essas diferentes forcas, exteriores, a que estamos submetidos, e as interiores, de que nos apoderamos ou acreditamos nos apoderar. Exteriores, que sentimos, interiores, de que tomamos consciéncia e teremos, em todo caso, ampliado o circulo de nosso espirito. Lemos Descartes. Primeira impressao: que positivista! Em nada crer pela autoridade, em nada crer sendo pela observagio e pela teflexao feita por nés. E iluminados por que luz? Assegurados por que critério? Pela “evidéncia’, ou seja, pela necessidade que teremos de acreditar a menos que renunciemos ao nosso proprio intelecto, pela necessidade que temos de acreditar sob pena de suicidio inte- lectual. E 0 préprio positivismo. Prossiga, continue a ler e compare. Mas o que nos garantira que nossa evidéncia nao é enganosa? Nada? Sim! Deus! Deus, que nao pode se enganar nem nos enganar e que, por conseguinte, nos deu uma evidéncia que nao é uma ilusao de evidéncia e através de quem Nos asseguramos, portanto, de que ao-crer em nossa evidéncia nao se- remos ludibriados. Mas retomemos: Deus, que nao pode se enganar, € Deus-verdade, e Deus que nao pode nos enganar é Deus-bondade. Para crer em nossa evidéncia, é entao em Deus-onisciente e em Deus- -providéncia que se deve crer, e nossa condicao de conhecimento é entao Deus-verdade e Deus-providéncia. E, dependendo esse conhe- cimento de Deus-providéncia, isso nao é muito diferente da visio em Deus de Malebranche."? Nao ver senao porque Deus permite que ve- jamos é ver em Deus; ver através de Deus é ver em Deus. Descartes © Nicolas Malebranche (1638-1715), filésofo, padre e tedlogo francés, con- siderado cartesiano, 17 Digitalizado com CamScanner njo é entio um positivista, é um defsta, e que deistal E um mistico, Pela comparagao entre as duas ideias principais de Descartes, inver- temo-lo, E do pai do positivismo moderno fizemos o mais radical defensor do deismo e do providencialismo tradicional. £ isso 0 que ele é Nao sei; € bastante provavel, na minha opi- nido, mas nao seis o que sei € que nés pensamos. Pensamos, ao nos lembrarmos, através das Meditagées, do Discurso sobre 0 método, e ao controlarmos 0 Discurso sobre 0 método através das Meditagées, e fizemos uma espécie de passeio pelo problema do conhecimento, apercebendo-nos de que nosso recurso essencial de conhecer esta su- bordinado a algo que nao podemos conhecer; apercebendo-nos de que nosso conhecimento se decompés em fé, seja nele mesmo, seja em algo incognoscivel. O que ganhamos? ‘Ter compreendido uma inteligencia de primeira ordem, ter compreendido uma inteligéncia superior a nés e, com isso, sem diivida, ter desenvolvido a nossa. Lemos um simples moralista, La Rochefoucauld,"* por exemplo. Percebemos que ele nao acredita em virtude alguma. Isso pode nos revoltar. Pode também nos parecer muito facil de refutar através de uma suposicao imediata da consciéncia, através dessa afirmagio de nosso ser fntimo de que, se sentimos em nés muitos vicios, aferra- mo-nos também a tal momento como capaz de uma virtude e como numa espécie de impoténcia para nao ceder a seu apelo. Isso esta bem; mas, detendo-nos aqui, estamos ainda longe de nosso autor, mantemo-nos a distancia dele, no entramos em sua intimidade. Em outras palavras, nao o lemos. Aproximemo-nos, vejamos mais de perto, O que vemos, pouco a pouco? Que ha nuances e que com muita frequéncia La Rochefoucauld diz “sempre”, mas que também com alguma frequéncia ele diz “as vezes”; que é, no fundo, muito menos cortante do que parece ser & primeira vista e que nao deve s** M i ‘ Frangois de La Rochefoucauld (1613-1680), escritor, moralista e mem?” Tialista francés, conhecido sobretudo por suas Méximas, 18 Digitalizado com CamScanner visto como um bloco. Hé mais. Vamos nos aperceber em breve, ape- nas fazendo mentalmente uma pequena lista das virtudes humanas, de que hd virtudes das quais ele nao fala e, por conseguinte, virtudes que ele nao nega. Ele nao nega, em absoluto, o amor paterno ou 0 amor materno, e € provavel que reconhega que existem, em estado puro. Se ele diz: “Se acreditamos que é por amor a ela que amamos uma mulher, estamos bem enganados’, ele nao diz: “Se uma mie acredita que é por amor a ele que ama seu filho, esta bem enganada.” Nao levou seu ceticismo a esse ponto. Seu ceticismo tem, portanto, limites. Muito bem! Vamos tragé-los e, delimitando 0 pensamento de nosso autor, haveremos de compreendé-lo melhor. Ler um fil6- sofo é relé-lo tao atentamente que o analisamos. Releiamos novamente e observemos, 0 que é impossivel nao deixarmos de fazer, qual 0 seu procedimento. Seu procedimento, de que iremos nos aproximar comparando entre si um nimero suficiente de suas maximas, é 0 seguinte: dissolver, por assim dizer, diluir uma virtude que ele empreende em todos os defeitos que a circundam: a coragem, por exemplo, no desejo de brilhar; a gene- rosidade, na ostentagao; a lealdade, no desejo de inspirar uma con- fianga da qual beneficios serao obtidos etc. Muito bem! Mas, entao, se é possivel dissolver as virtudes nos defeitos que as circundam, é também possivel dissolver os defeitos nas virtudes que estdo pré- ximas a eles e dizer: “Tal homem deseja brilhar e por isso se coloca sempre na frente, mas no fundo dessa atitude existe coragem. Tal homem quer que 0 consideremos generoso, mas, para que 0 con- sideremos, ele 0 é com efeito; é preciso que ele o seja mesmo, e em sua esséncia, para que faca tantos sacrificios a fim de que saiba- mos que ele o é. £, afinal, um homem bastante bom.” Ao dominar © procedimento de um autor, vocé pode sempre volté-lo contra ele mesmo. E isso é, a principio, um jogo divertido, portanto um prazer. Mas nao é s6 um jogo, é se assenhorear de seu autor até 0 fundo. £ como que se apoderar de sua raiz, do germe de onde sua 19 Digitalizado com CamScanner obra saiu e de onde poderia sa! outra diregao. £, na verdade, co” Sem dtivida, s6 conhecemos @) sem duvida, idéntica, mas numa hecé-lo bem. iguém quando sabemos 0 que ia ser. também o que poderia rates i ue, o que o vemos afirmar sem- i duq Voltando ainda ao senhor ; : pre? Que o egoismo, 0 jnteresse, 0 amor-proprio, como ele diz, & a esséncia de todos os nossos sentimentos € 0 motor cc todas as nossas ages. Vocé reflete sobre isso e diz a si mesmo: Mas... pelo amor de Deus! Dizer que agimos sempre tendo em vista 0 nosso interesse é dizer que nunca agimos POT bondade, mas ¢ dizer também que nunca agimos por maldade, que o homem nunca faz o mal pelo prazer de fazer 0 mal; que, em poucas palavras, a maldade nao existe! Mas, entao, que favordvel ideia faz La Rochefoucauld da natureza humana! Como ele se engana em favor dela! Que otimista é esse La Rochefoucauld! Como me enganei sobre esse La Rochefoucauld!” Ha verdade aqui, muita verdade. La Rochefoucauld foi severo conosco, mas também foi caridoso. Nosso maior defeito ele nao viu, ou nao quis ver. Da parte de um homem tao sagaz, é uma maravilhosa indulgéncia. Que seja; mas o que aconteceu, ent4o? Aconteceu que, lendo e relendo La Rochefoucauld, La Rochefoucauld se transformou sob nossos olhos. Nés o vemos de um modo totalmente diferente. As sentengas se transformam sob a leitura como 0 raio através do pris- ma. Serd isso um bem? Sera um mal? E onde esté entao a verdade? Na primeira impressao, na segunda ou na terceira? Provavelmen- te, essa verdade foge de nés numa fuga eterna; provavelmente, 0s autores sao inesgotaveis em razao do que tém e em razao do que, a0 lé-los, neles colocamos. Mas o essencial é pensar. O prazer que eae 2S m filésofo é 0 prazer de pensar, e desse prazet ao acompanhar todo o pensamento do autor teed as ao dele, e 0 dele excitando 0 nosso ¢ 0 nosso le e talvez o traindo; mas aqui se trata apenas de 20 Digitalizado com CamScanner prazer. Ha prazeres resultantes da infidelidade, e a infidelidade, no que diz respeito a um autor, é uma inocente libertinagem. Além disso, ao ler um fildsofo é preciso prestar aten¢ao em suas contradig6es. As contradigées sao os acidentes geograficos de um grande pensador. Ficariamos desolados se estes nao ocorressem em absoluto e se a paisagem fosse por demais bem elaborada. Pareceria entdo que sua obra fosse 0 quadro de que falava Musset,' “ao qual se vé que um senhor bastante sensato se dedicou”. Nao ficamos em absoluto irritados que a liberdade de espirito, a espontaneidade, o jorro intelectual sejam marcados pelo fato de o pensador nao ter sempre pensado a mesma coisa e nao ter tirado todas as suas ideias umas das outras como formulas algébricas. A contradi¢ao chama a atencao, excita-a, reaviva-a, transforma-a em reflexao, fecunda-a infinitamente. Nao desejo que os autores sejam abundantes em contradi¢des, mas desejo que os leitores saibam encontré-las. Por exemplo, Jean-Jacques Rousseau maldiz em todas as suas obras a influéncia da sociedade sobre o individuo e deseja apaixonadamen- te que o individuo saiba se subtrair a ela; e numa tinica sacrifica 0 individuo a sociedade e deseja imperiosamente que ela 0 absorva. E uma contradi¢ao, sem diivida, mas estou, de minha parte, convenci- do: como as grandes ideias gerais derivam sempre de sentimentos, é provavel que Rousseau, na maioria de seus escritos, tenha retirado suas ideias de sua paixdo pela independéncia e pela solidao, e num de seus livros de sua paixao, muito louvavel, pela Reptiblica de Genebra. ‘Mas sera que estamos seguros e serd que estamos certos de que se trata de uma contradicao? Conhego homens da mais alta inteligéncia que nao veem ai contradicao alguma e que vinculam com muita enge- nhosidade o Contrato social ao conjunto da obra, para eles una e muito coerente, de Rousseau. Nao digo em absoluto que eles estejam errados. 5 Louis Charles Alfred de Musset-Pathay (1810-1857), poeta, dramaturgo € romancista francés, a1 Digitalizado com CamScanner ig6 imeiro os de contradi¢ées, o prime! i p lmeow le agua 0 espirito a0 encontra-las e las, e 0 segundo, destrinché-las. El oe ite-ae ao salient refina-o ainda mais ao fazé-las desaparecers alient: exercita-se ainda mais demonstrando a simesmo que elas no existem e nunca existiram. Tudo isso é bom € tudo isso € muita agradavel. A sequéncia dos estados de espirito, nesse sentido, € esta: come- amos por nao captar as contradi¢des ao ker os pensadores; depois percebemos muitas; as observamos demais e, cee altura, confor- me a natureza de nosso espirito, nés as multiplicamos com malig- nidade e triunfamos sobre elas, ou nos habituamos a destrincha-las todas e terminamos por multiplicé-las para destrincha-las. E preci- so nao pender para excesso algum e € preciso manter-se num certo meio em que o prazer de compreender nao seja arruinado pelo prazer de discutir, nem mesmo pelo de conciliar em excesso; mas se colocar alternadamente nos diferentes pontos de vista e nas dife- rentes atitudes; ora se abandonar a forca do pensamento e ao rigor prazer do leitor é encontra- da légica, ora se defender, nao querer ser ludibriado, opor o autor ao autor para vencé-lo com a ajuda de um auxiliar que é ele mes- mo; ora vir em seu auxilio e demonstrar que ele nem se enganou nem se contradisse e que so as aparéncias que estao contra ele, se de fato existem aparéncias. Tudo isso ainda é compreender; tudo isso séo formas diferentes de compreender e basta, para que todas Sejam titeis e fecundas, que a lealdade presida todas essas operagées € que a elas o sofisma jamais se misture. Para resumir, a leitura de um autor que é fildsofo é uma dis- Cussao continua com ele, uma discussao onde se encontram todos a ¢ também todos os perigos de uma discusséo na vida mtemaeei ieee, saber desfrutar, escutar por mui- todas as iesiaraee ac 'sador em todos os seus desvios, mesmo en se elevar suavemente aa Laapees E preciso sentir a objeto rebente e que ee ™ Nosso espirito, mas pedir-lhe que nao at © momento em que talvez o autor venha # 22 Digitalizado com CamScanner “ senti principio, certeza de estar em plena troca intelectual com o autor, ele mesmo. O prazer entdo é muito intenso, pois temos, a jaque nds o prevenimos, ou seja, j4 que o compreendemos de ante- mio. Mas, em seguida, dizemo-nos, com satisfagao, que nao somo indignamente inferiores a ele, pois a objegdo que ele fez a si mesmo nés jaa fizemos, pois circulamos em seu pensamento quase que tao amplamente, quase que tao facilmente quanto cle préprio. E quanto aos perigos da discussio, ¢ preciso saber evité-los como numa discussao privada. & preciso nao nos obstinarmos em nosso sentimento, porque ele é nosso sentimento; e, por termos encontra- do contra um raciocinio um pouco fraco do autor um raciocinio forte o suficiente, nao acreditar termos sempre razao sobre ele. Isso nos levaria bem depressa a estreiteza de espirito, a uma espécie de irreceptividade, se assim posso me expressar, na verdade a uma inin- teligéncia adquirida que seria, decerto, a mais infeliz das aquisicées. Algumas preferéncias as avessas sio dignas de nota. Tal autor é preferido por um leitor nao porque esse leitor Ihe considere de espfrito justo, mas porque considera seu espirito falso, o que daao leitor o prazer de ter sempre razao ou de acreditar sempre ter razao sobre ele, motivo pelo qual é a esse autor que o leitor volta assidua- mente. Ao entrar em sua biblioteca, esse leitor vai diretamente a esse autor e senta-se dizendo, de modo mais ou menos consciente: “Como eu vou ter razdo! Como eu vou ter o espirito justo!” Eu aconselharia a esse leitor que trocasse de autor favorito. Conheci dois homens que s6 conversavam sobre Proudhon,'* sempre. Um deles o admirava acima de tudo, 0 outro chegava muitas vezes a blasfemar contra ele. Eu nunca soube qual dos dois gostava mais de Proudhon, o que via nele uma fonte inesgotavel de verdades ouo que via nele um oceano de sofismas. Um 0 amava como um pai ° Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), economista, socidlogo e socialista francés, partiddrio do anarquismo. 23 Digitalizado com CamScanner ecimento do dom da vida; 0 outro devia o fato de poder saborear jdade intelectual; um 0 amaya um o amava com todo 0 amor i h espiritual a quem devia o recon es 9 amava como um homem a quer i ‘ior continuamente sua propria super 10 com egoismo; bane mane i utro o amava com todo 0 amor que que se pode ter pelo ser eleito, 0 0 : eum se sentia orgulhoso por pensar que, se se pode ter por si vyhon, kaved a de refutd-lo e sem ditvida 0 confun. date cnsPen e explicé-lo a ele proprio com uma clareza ne ; Eeles se adoravam reciprocamente, alias: um feliz com as opor- tunidades que o outro lhe dava de expor a doutrina de seu mestree de nela penetrar mais uma vez; 0 outro feliz com as oportunidades que lhe dava o primeiro de discutir como se fosse com 0 proprio Proudhon e de arras4-lo por procuracao. Fortunati ambo. Creio, entretanto, que é a meia distancia, ou quase, desses dois afortunados que se deve estar e tentar se manter, para Preservar essa liberdade de espirito que é a verdadeira felicidade intelectual. Em coisas do intelecto, é preciso evitar tanto a abdica¢ao quanto o triun- fo..A abdicacao é sempre um pouco deprimente e o triunfo é sempre vao. Sentir-se, diante de um pensador, sempre em luta cortés e bene- volente, sentir que ele tem razdo e s6 concordar com ele em tiltimo caso, mas concordar francamente. Sentir que ele esta errado e ficar Srato por senti-lo, mas também s6 em ultimo caso e nos dizendo sempre que, se ele estivesse Presente, talvez ni ha seguranca da vit6ria e, sem diivida, teria alguma perigosa réplica ofensiva; emprestar-lhe, ainda que obtido dele ou de nés mesmos, al; gum 4rgumento reserva para nos diminuir ou embaracar: eis ° exercicio que constituirg sofos, aleitura é uma boa higiene intelectual. Com os fil6- »2situra € uma esgrima através da qual, tomadas algumas 4s Precauses que indicam, 0S, 0 espiri j forgas Novas que podem ser tite. pirito ganha incessantemente is Tuteis de todas as maneirase que, por si mest & pelo si Pelo simples prazer de possui-las, valem a pena ser possufdas. ‘a0 nos deixasse em ple- 24 Digitalizado com CamScanner

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