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A DIMENSAO ESPIRITUAL religiao, filosofia e valor humano JOHN COTTINGHAM Tradugao Edson Bini Edicées Loyola Titulo original: The Spiritual Dimension — Religion, Philosophy and Human Value © John Cottingham 2005 ISBN 0-521-60497-4 Preparacao: Mauricio Balthazar Leal Revisfio: Maria de Fatima Cavallaro Diagramagao: Ronaldo Hideo Inoue Edigdes Loyola Rua 1822, 347 04216-000 Sao Paulo, SP Caixa Postal 42.335 —_04218-970 Sao Paulo, SP 755112914 1922 F 55 11 2063 4275 editorial@loyole.com.br vendas@loyola.com.br www.loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode serreproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer eis (eletrénico ou mecénico, incluindo fotocépia e gravacao) au arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisséo escrita de Editora. ISBN 978-85-15-03600-4 1. Religiado e espiritualidade: da praxis a crenca Glaube Du! Es schadet nicht. (“Cré! Nao machuca””) Lupwic WirTGENsTEIN' Amor ipse notitia est. (“O amor é ele préprio conhecimento.”) GREGORIO MaGNo* 1. Da analise ao exercicio B ernard Williams, talvez 0 mais ilustre filésofo moral analitico em ati- vidade na virada do século XX, especulou uma vez que poderia haver algo acerca do entendimento ético que o torna inerentemente inadequado aser explorado mediante os métodos e técnicas exclusivos da filosofia ana- litica’. Se isso é verdadeiro, esse ponto pode aplicar-se a fortiori a religiao, 1. MS 128 [c. 1944], in Culture and Value: A Selection from the Posthumous Remains [Vermischte Bemerkungen: Eine Auswahl aus dem Nachla®, 1994], ed. G. H. von Wright, trad. P. Winch, Oxford, Blackwell, ed. rev., 1998, p. 52. 2. Grecorio Macno, Homelia in Evangelium 27,4 (Patrologia Latina, ed. J. Migne, 76, 1207), cit, in Denys Turner, The Darkness of God, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 222. 3. Numa entrevista a respeito da filosofia de Nietzsche transmitida pela BBC World Service em 1991. A expressio “filosofia analitica” é, em alguns aspectos, uma expressao in- satisfat6ria, visto que tm havido muitas mudangas em como a matéria ¢ praticada desde os dias de “andlise conceitual” (ver acima o Prefacio); o contraste subentendido com a chamada filosofia “continental” também tem se tornado crescentemente problematico. Entretanto, empregarei essa expressdo neste capitulo como uma conveniente taquigrafia para um certo ‘A DIMENSAO ESPIRITUAL na medida em que atitudes religiosas, ainda mais que as morais, parecem freqtientemente abarcar elementos resistentes a andlise logica. Filésofos analiticos despendem muito de seu tempo lidando com proposi¢ées e com inferéncia valida de uma proposicao para outra. Mas, como Leszek Kolakowski lembrou-nos num livro recente, ... teligido nao é um conjunto de proposigées, € 0 dominio do culto em que entendimento, conhecimento, o sentimento de participagao na realidade suprema e 0 compromisso moral aparecem [todos] como um ato singular, cuja segregacdo subseqiiente em classes separadas de assercdes metafisicas, morais e outras poderia ser util, mas esta destinada a distorcer o sentido do ato original do culto‘. Essa “distor¢éo”, como a denomina Kolakowski, é particularmente aparente em discussdes filoséficas académicas de questées religiosas, Tes- temunhei muitos debates intricados entre protagonistas teistas e ateistas na filosofia da religiao, mas ainda que fascinantes, como costumam ser, raramente vi qualquer dos participantes abrir mao de um centimetro de raz4o como resultado dos argumentos aventados, e muito menos ser motivado pelos argumentos a modificar ou abandonar sua prévia posi¢io religiosa ou anti-religiosa. Experimenta-se um estranho sentimento de que aanilise intelectual, nao importa quao arguta seja, nao capta o que est4em jogo quando alguém concede ou recusa sua fidelidade a uma concep¢ao de mundo religiosa. De algum modo, 0 foco esta errado. A primeira vista, isso poderia parecer muito estranho. O teste funda- mental que separa teistas de ateistas nao é como responderiam a pergunta “Vocé aceita ou vocé nao aceita a proposicao de que Deus existe?” Portanto, 0 foco primario nao tem sempre de estar nessa proposic¢ao — seu preciso contetido e suas implicagGes, a evidéncia a favor de sua verdade e assim por diante? Bem, talvez nao. Esté claro que as proposig6es sao importantes (e pelo fim deste livro espero que fique claro que nao estou defendendo a linha “nao-cognitivista” que vé crengas e afirmagoes de verdade como irrelevantes para a devogao religiosa). Mas, se quisermos compreender a modo reconhecivel de fazer filosofia que permanece predominante em muitas partes do mundo filos6fico angléfono. 4, Leszek Kotaxowskt, Religion, South Bend, St Augustine's Press, 2001, p. 165. 1. RELIGIAO FESPIRITUALIDADE; DA PRAXIS A CRENCA perspectiva religiosa (ou sua rejeigéo), e se quisermos nos dedicar a um didlogo frutifero acerca desse aspecto maximamente crucial de como concebemos 0 mundo, entaéo pér sempre o foco priméario e inicial nas proposi¢Ges podera, nao obstante, constituir uma ma orientagao. A mim parece que aatitude de Jung esteve mais préxima do alvo. Ele élargamente, e em minha opiniao acertadamente, considerado um pensador intensa- mente religioso, preocupado com idéias religiosas e sua importancia central para uma vida humana florescente; ainda assim, firmemente recusou-se a ser arrastado na pergunta Vocé aceita ou vocé nao aceita...?. “Quando as pessoas dizem que créem na existéncia de Deus’, ele observou, “isso jamais me impressionou minimamente’®. (Voltarei 4 propria posi¢ao particular de Jung acerca dessas matérias no capitulo 4.) Aabordagema ser adotada neste livro nao pretendeu em nenhum senti- do desacreditar a tradic¢ao analitica (tradicao na qual fui eu mesmo criado): metas como as de clareza conceitual e argumentagao precisa parecem-me importantes elementos de qualquer filosofar frutifero. Todavia, a maneira com a qual muitos filésofos académicos contemporaneos empreendem sua tarefa — mantendo um estilo severamente seco moldado na prosa legalista ou cientifica, evitando escrupulosamente alusoes literarias ou outras potencialmente emotivas, tentando nao tanto persuadir quanto acossar seu opositor obstruindo obstinadamente quaisquer possiveis rotas de fuga —, essas técnicas, até nas maos do praticante virtuoso, parecem freqiientemente de algum modo errar 0 alvo ou ao menos necessitar de uma suplementacao quando estamos lidando com 0 fendmeno da devogao religiosa e sua significagao. Para ver por que nosso discurso filos6fico acerca da religiao pode estar necessitado de uma certa suplementacao ou ampliacao se for o caso de nos engajar em mais do que um plano estreitamente intelectual, podera contribuir um ligeiro deslocamento da énfase, movendo do dominio da religido para o dominio intimamente conexo, mas distinto, da espirituali- dade. O conceito de espiritualidade é interessante, na medida em que nao parece provocar, de imediato, 0 tipo de reacao imediatamente polarizada 5. De uma carta a H. L. Philp de 1956, in C. G. June, Collected Works, ed. H. Read et al., London, Routledge, 1953-79, vol. XVIII, p. 706-707, cit. in M. PatmEr, Freud and Jung on Religion, London, Routledge, 1977, p. 125. 19 ‘A DIMENSAO ESPIRITUAL com que topamos no caso da religiao. Isso pode ter a ver em parte com a imprecisao do termo — no uso contemporaneo popular o rétulo “espiri- tual” tende a ser invocado pelos fornecedores de uma gama heterogénea de produtos e servigos, de cristais magicos, bastées de incenso e astrolo- gia 4 medicina alternativa, tai chi e cursos de meditacao. Nao obstante, no extremo mais rico do espectro, descobrimos 0 termo empregado em conexao com atividades e atitudes que impdem um atrativo amplamente difundido, independentemente de compromisso metafisico ou fidelidade doutrindria. Mesmo 0 mais convencido dos ateistas pode estar preparado para admitir um interesse na dimensao “espiritual” da existéncia humana, se essa dimensio for entendida cobrindo formas de vida que premiam certos tipos de resposta moral e estética intensamente focada, ou a busca de uma consciéncia refletiva mais profunda do significado de nossas vidas e de nosso relacionamento com os outros e com o mundo natural. Em geral, o rotulo “espiritual” parece ser usado em referéncia a atividades que visam preencher 0 espa¢o criativo e meditativo deixado quando a ciéncia a tecnologia satisfizeram nossas necessidades materiais. Assim interpre- tado, tanto defensores como opositores da religiéo poderiam concordar que a perda da dimensao espiritual deixaria nossa existéncia humana radicalmente empobrecida. Penso que ha uma razio adicional para o difundido consenso sobre o valor do dominio espiritual nesse sentido, a despeito da polarizacao de perspectivas quando se trata de aceitagao ou rejeicao de afirmacées religiosas ou sobrenaturalistas. Espiritualidade tem sido, hé muito tempo, entendida como um conceito que diz respeito em primeira instancia mais propriamente a atividades do que a teorias, mais propriamente a modos de vida do que a doutrinas subscritas, mais propriamente a praxis do que a crenga. Na historia da filosofia, 0 epiteto “espiritual” ¢ 0 mais comumente associado nao com o termo “cren¢as”, mas com 0 termo “exercicios”. Talvez © exemplo mais famoso seja o dos Exercicios Espirituais de Santo Inacio de Loyola, do século XVI (c. 1522-1541). Como seu nome sugere, nao se trata de um tratado de doutrina, nem mesmo de um livro de sermées, mas de um conjunto estruturado de exercicios ou praticas; € um curso pratico de atividades para aquele que esta de retiro, a ser seguido numa ordem determinada, cuidadosamente dividido em dias e semanas. O mais 20 1. RFLIGIAO E ESPIRITUALIDADE: DA PRAXIS A CRENCA. préximo paralelo puramente filos6fico sao as Meditacoes de Descartes, escritas mais de um século depois. Mas, embora talvez Descartes preten- desse que as Meditagées fossem lidas uma por dia durante seis dias (ele fora, € claro, educado pelos jesuitas, de sorte que estaria familiarizado com a maneira inaciana de fazer as coisas), esse aspecto da obra cartesiana é, num certo sentido, nao mais do que uma afeta¢ao estilistica: a validade (ou caso contrario) dos argumentos, sua capacidade de persuasao e sua forca impositiva flutuam inteiramente livres de qualquer questo a respeito do tempo levado para lé-los, seja isso um periodo inteiro de estudo ou um unico dia. Em Inacio, diferentemente, estamos lidando com um manual pratico — um manual de treinamento —, e os cronogramas estrutura- dos, os programas organizados das leituras — contemplagao, meditacao, oracao e reflexao —, entremeados com os ritmos cotidianos do comer e beber sao absolutamente centrais, na verdade sao a esséncia da coisa. O préprio Inacio abre o trabalho fazendo um paralelo explicito com os programas de treinamento fisico: “tal como perambular, caminhar e correr sao exercicios para 0 corpo, “exercicios espirituais” 6 o nome dado a todo modo de preparar e dispor a alma a livrar-se de apegos desordenados”®. Deslocando 0 foco para uma época muito mais anterior do quea Renas- cenga, Pierre Hadot, em seu recente estudo notavel dos exercicios espirituais no mundo antigo, reiteradamente realcou o que poderiamos chamar de a dimensao pratica do espiritual’. Houve muitos tratados est6icos intitulados “Dos exercicios”, e a nogao central de askesis, encontrada, por exemplo em Epicteto, implicava nao tanto “ascetismo” no sentido moderno quanto um programa pratico de treinamento que dizia respeito a “arte de viver”’. Para tais programas, era fundamental aprender a técnica do prosoche— atencao, uma vigilancia continua e presenca da mente (uma nogio que, incidental- mente, evoca 4 mente certas técnicas espirituais budistas). Era também 6. InActo DE Loyora (1491-1556), Spiritual Exercises [c. 1525], trad. J. Munitz, P. Endean, Harmondsworth, Penguin, 1996, Anot. I, p. 283. 7. Pierre Havor, Philosophy as a Way of Life, Cambridge, Mass., Blackwell, 1995, cap. 3. Originalmente publicado como Exercices spirituels et philosophie antique, Paris, Etudes Augustiniennes, 1987. 8. Epicreto, Diatribae [c. 100 d.C. Philosophy as a Way of Life, p. 110. 9. Diatribae, IV, 12, 1-21; cf. Havot, Philosophy as a Way of Life, p. 84. |, TT, 12, 1-7; 1, 4, 14 ss. I, 15, 2, cit. in Hapor, 21 A DIMENSAO ESPIRITUAL crucial 0 dominio de métodos para o ordenamento das paixdes — 0 que foi chamado de a terapia do desejo'®. O objetivo geral de tais programas nao era meramente esclarecimento intelectual ou a transmissao de teoria abstrata, mas a transformagao da pessoa inteira, inclusive de nossos pa- drdes de resposta emocional. Metanoia, uma conversao ou mudanga do coracao fundamental, € 0 termo grego; no estdico romano Séneca aparece como uma “substituicdo na mentalidade de alguém” (translatio animi) ou uma “mutacao” (mutatio) do eu. “Eu sinto, meu caro Lucilio’, diz Seneca, “que estou sendo no apenas corrigido, mas transformado” (non tantum emendari sed transfigurati)"'. Esse processo de transformacées interior considerado, em contraste com a ocupacio intelectual de avaliar proposig6es, a mim parece funda- mental para compreender a natureza nao apenas da espiritualidade mas também a da religiao em geral. O que vale para qualquer explicacao plau- sivel da tradicdo dos exercicios espirituais também vale mais geralmente para qualquer entendimento auténtico do lugar da religiao na vida humana: temos que reconhecer o que poderia ser chamado de o primado da praxis, a vital importancia atribuida a entrada de um individuo numa senda de auto- transformagao pratica, de preferéncia (digamos) a simplesmente dedicar-se ao debate intelectual ou a andlise filosdfica. Penso que isso explica aquele estranho sentimento de distor¢ao, de foco erréneo, que se experimenta quando se esta diante dos muitos classicos debates de filosofia da religiao na literatura académica — o sentimento de que, a despeito da grandeza e da aparente centralidade das questées levantadas, elas nao captam o que estd no cerne do empreendimento religioso. Entretanto, no caso de vocé pensar que estou sugerindo que o filésofo deveria, portanto, sair de cena quando a religiao constitui o assunto da dis- cussao, devo apressar-me a acrescentar 0 que pode parecer um paradoxo: que essa tese, a tese do primado da praxis na religiao, é ela mesma perfeita- mente suscetivel de ser examinada e defendida pelo argumento filos6fico. E isso € 0 que tentarei mostrar no que resta deste capitulo de abertura. 10. Cf. M. Nusspau (ed.), The Poetics of Therapy, Apeiron 23:4 (dez. 1990). 11. Stneca, Epistulae Morales [64 d.C.}, VI. 1. 22 1 RELIGIAO E ESPIRITUALIDADE: DA PRAXIS A CRENCA. 2. Por que a praxis tem que vir primeiro Para comegar, deverfamos observar que a nogao do primado, ou prio- ridade, da praxis é ambigua. A afirmacdo poderia ser simplesmente de prioridade causal ou temporal — que 0 envolvimento pratico na observan- cia religiosa organizada geralmente, nas vidas da maioria dos individuos, surge num estagio anterior a avaliacao teérica das doutrinas. Isso parece suficientemente incontroverso: para citar Kolakowski novamente, “as Pessoas sao [tipicamente] iniciadas no entendimento de uma linguagem teligiosa e no culto por meio da participacao na vida de uma comuni- dade religiosa e nao por meio da persuasao racional””?, Mas quero sugerir algo um tanto mais forte do que isso, a saber, que é da prépria natureza do entendimento religioso que ele se origine do envolvimento pratico, mais do que da anilise intelectual. O filésofo Blaise Pascal foi um notavel defensor dessa linha de pen- samento. Sua famosa nuit de feu, “noite de fogo”, em 23 de novembro de 1654 — a intensa experiéncia religiosa que conduziu a uma mudanca radical em sua vida —, gerou nele 0 que ele descreve como sentimentos de “sincera certeza, paz e alegria”. Mas o Deus que € a fonte desses sen- timentos é “o Deus de Abraao, Isaac e Jac6”, nao o Deus de “filésofos e estudiosos”'*. Comentadores discutiram 0 exato peso dessas palavras, porém o ponto geral é suficientemente claro: a f€ para Pascal tem que surgir no contexto de uma tradi¢ao viva de observancia religiosa pratica, e nao do debate e da anilise na sala de seminarios. Isso é coerente com a posicao filosdfica geral de Pascal sobre o estatuto epistémico das afir- mag6es religiosas, que pode ser descrito como protokantiano: questées sobre a natureza e a existéncia de Deus estao além do alcance da razio discursiva. “Se ha um Deus’, diz Pascal, “ele esta infinitamente além de nossa compreensao. .. e conseqiientemente somos incapazes de conhecer ou o que ele é ou se ele é”"*. E como a razao nao pode resolver o assunto temos que realizar uma escolha pratica, uma escolha da qual depende a nossa felicidade fundamental. 12. Koraxowsx1, Religion, p. 172. 13. Blaise Pascat, Pensées [1670], ed. L. Lafuma, Paris, Seuil, 1962, n. 913, 14. Tbid.,n. 418. 23 A DIMENSAO ESPIRITUAL A mengao a Pascal sempre conjura o espectro de sua afamada (ou in- fame) “aposta”: Se Deus existe, 0 crente religioso pode olhar adiante para “uma infinidade de vida feliz”; se nao ha Deus, entao nada foi sacrificado por ter se tornado um crente (“o que tens a perder?”, pergunta Pascal). O resultado é que “apostar” na existéncia de Deus é uma “coisa certa” — uma aposta segura. Enunciada assim indisfarcadamente, é improvavel que a idéia da aposta desperte muito entusiasmo da parte de teistas ou atefstas; Voltaire (que foi talvez um pouco de ambos) condenou a introducao de um jogo de perda e ganho como “indecente e pueril, ajustando-se mal a gravidade do assunto”'’. A idéia de vida eterna como uma indu¢io para o crente parece envolver uma abordagem do tipo “cenoura na ponta da vara”, que nao consegue respeitar a autonomia do sujeito humano— e assim pode confirmar as suspeitas dos criticos da religiao de que a obediéncia a um poder divino superior ocorre ao custo da heteronomia radical, uma perda de nossa dignidade e nossa independéncia humanas (tentarei resolver essa questo no capitulo 3). Os defensores da religiao, porém, podem também estar descontentes com a aposta na medida em que esta parece compreen- der mal a natureza da salvacao: sobre qualquer plausivel entendimento da bondade de Deus, nao se pode supor que ele suborne ou ameace os seres humanos com a felicidade ou a danacdo. A doutrina crista padrao torna claro, em lugar disso, que a salvacao é oferecida como o “dom gratuito de Deus” (na frase de Sao Paulo)"*, e que em qualquer caso, apropriadamente entendida, nao envolve a mera afirmagao ou instalacao de uma aposta, mas uma radical transforma¢ao moral — ou, na imagem do Evangelho de Sao Joao, um novo nascimento’, Entretanto, a posigao de Pascal é, na realidade, muito mais sutil do que possa parecer inicialmente. Em primeiro lugar, embora sua discussao da aposta seja amitide denominada “o argumento pragmiatico”, ele est4 en- faticamente nao oferecendo um argumento a favor da existéncia de Deus (como ja notado, ele considera a questao da existéncia divina exterior ao dominio do conhecimento racionalmente acessivel). Em segundo lugar, e 15. Lettres philosophiques [1733], cit. in Ward Jones, Religious Conversion, Self- Deception and Pascal’s Wager, Journal of the History of Philosophy 36:2 (abr. 1998) 172. 16. Romanos 6,23. 17. Joao 3,3 (Jesus a Nicodemos). 24 1 RELIGIAO E ESPIRITUALIDADE: DA PRAXIS A CRENCA, o que é importantissimo, ele nao esta oferecendo um argumento planeja- do para produzir assentimento imediato ou fé nas afirmacées da religiao; nesse sentido, a imagem da instalacao de uma aposta, um ato instantaneo de supressao das fichas do jogo, é enganosa. Pelo contrario, ele considera a féa destinacao — algo a ser alcangado através de um longo caminho de praxis religiosa; consideracdes em torno da felicidade sao simplesmente introduzidas como um motivo para embarcar nessa viagem'*. Em terceiro lugar, e finalmente, as recompensas invocadas nao sao simplesmente as do préximo mundo (embora seja assim, é claro, que a aposta é inicialmente apresentada), mas em lugar disso emergem ao fim de sua discusséo como evidentes beneficios relacionados a esta vida presente. E aqui que o pensamento de Pascal se associa a tradicdo antiga da praxis espiritual antes mencionada. As “terapias para a alma’ descritas nos velhos sistemas de filosofia helenista ofereciam a seus adeptos (para citar novamente Pierre Hadot) uma instrugao nao em “teoria abstrata”, mas na “arte de viver”. O que foi concebido nao esté meramente no nivel cognitivo, mas no do eue do ser ... um progres- so que nos faz ser mais plenamente e nos torna melhores ... uma conversao que ergue 0 individuo de uma condicao inauténtica de vida, escurecida pela inconsciéncia e acossada pela aflicao, para ... a paz interior ea liberdade. ... Cumpria renunciar aos falsos valores de riqueza, honras e prazer e voltar-se para os verdadeiros valores da virtude, contemplacao, um estilo simples de vida e a simples felicidade do existir”. De modo semelhante, os beneficios frisados por Pascal na culminagao de seu argumento envolvem precisamente tal progresso na virtude e o desenvolvimento rumo ao contentamento. “Que dano advird a tise fizeres essa escolha?’, ele pergunta. Renunciards aos “prazeres corrompidos” da “gloria” e do “fausto”, mas em contraposigao “seras fiel, honesto, humilde, grato, um agente de boas obras, um bom amigo, sincero e verdadeiro”®, A cenoura aqui nao é tanto torta de cenoura no céu quanto a meta da benéfica 18. “Tua desejada destinagao é a fé, mas nao conheces ainda o caminho” (Pensées, n. 418). Ver adicionalmente Ward Jones, Religious Conversion. 19. Hapor, Philosophy as a Way of Life, p. 83 e 104 (fazendo referencia a Epicteto, Diatribae, I, 15, 2). 20. Pensées, n. 418. x ‘ADIMENSAO ESPIRITUAL transformagao interior que constitui o objetivo de qualquer sélido sistema de praxis espiritual; tens muito a ganhar, diz Pascal, e pouco a perder. 3. O coracao tem suas razées Localizar a defesa de Pascal do compromisso religioso no ambito da tradi¢ao antiga de sistemas de exercicios espirituais pode representar algum avan¢o no sentido de iluminar a idéia do primado da praxis, mas ainda deixa muitas questdes sem resposta. Parece nao haver dtivida de que Pascal, como um crente cristao devoto, sustentou incisivamente a verdade dessas afirmagSes que sua propria jornada espiritual o levara a aceitar. Contudo, se afirma¢6es de verdade esto envolvidas — poder-se-ia objetar — entao a énfase na praxis é altamente suspeita, pois a praxis religiosa, na propria avaliacao de Pascal, envolve uma transformacio progressiva de nossas posturas emocionais: ele explicitamente defende medidas para 0 abrandamento ou amansamento (abétir) das reacoes do crente aspirante”!. Num tipico exercfcio spiritual, a obstinada resisténcia sera gradualmente, ou talvez stibita e espetacularmente, sobrepujada por uma capitulacao da vontade, um transbordamento de remorso, um sentimento avassalador de submissao, um impeto de exaltacao, ou qualquer dos muitos estados emocionais intensificados descritos nos prolificos anais das experiéncias de conversao. O préprio Pascal fala no registro de sua noite de fogo, num per- gaminho encontrado costurado em sua roupa por ocasiao de sua morte, de sua “alegria, alegria, alegria, lagrimas de alegria’. Em suas Elegias de Duino, 0 poeta Rilke oferece uma expresso mais ampliada da mesma dinamica 21. “Queres curar-te da descrenga, e solicitas remédios: aprende com aqueles que eram obstruidos como tu € que agora apostam tudo que possuem. Sao pessoas que conhecem © caminho que gostarias de trilhar; estio curados da enfermidade para a qual buscas uma cura; assim, segui-os e come¢a como comecaram — agindo como se cressem, tomando 4gua benta, assistindo a missas, ¢ assim por diante. No curso natural dos acontecimentos isso, Por si 86, te fara crer, isso treinar-te-4” (PascaL, Pensées, n. 418, trad. in J. CorTINGHAM (ed.), Western Philosophy, Oxford, Blackwell, 1996), parte V, § 6. As conotacdes do termo abétir, etimologicamente ligadas ao treinamento ou domesticagéo de um animal ou uma fera (béte), podem inicialmente parecer particularmente perturbadoras. Mas ver também J. CorticHam, On the Meaning of Life, London, Routledge, 2003, p. 92 ss. 26 1 RECIGIAO E ESPIRITUALIDADE: DA PRAXIS A CRENGA, emocional numa prece extatica a ponto de seu pranto apaixonado poder emitir uma nota de radiante afirmagao: Daf von den klargeschlagenen Himmern des Herzens keiner versage an weichen, zweifelnden oder reifenden Saiten. Que nenhuma tecla das cordas de som claro de meu coracao possa emitir uma nota débil e dtibia de suas cordas”. Todo ceticismo ou embarago demorado € para ser descartado. Mas agora (para nos voltarmos para a obje¢io) como podem tais esta- dos emocionais intensificados ser compativeis com a judiciosa avaliacao das afirmacées de verdade? Se a praxis espiritual precede a avaliacao intelectual, nao ha um sério perigo de que a primeira, devido a sua propria natureza, obstruira a segunda? Na melhor das hipoteses, parece possivel que possa ser uma distra¢ao do processo de compreensio e avaliacao das afirma¢ées deverdade em questao; na pior das hipoteses, que corra o risco de se tornar uma espécie de lavagem cerebral, um processo de estupidificagao que leva o devoto a abandonar a racionalidade critica a favor de uma aquiescéncia id6latra, sem consideracao da evidéncia. Como Winston Smith, no 1984 de Orwell, nosso curso de praxis pode acabar por nos fazer ver cinco dedos quando apenas quatro sao exibidos: Ele fitou a enorme face. Tinha levado quarenta anos para aprender que tipo de sorriso estava oculto sob 0 bigode escuro. © cruel, desnecessaria incom- preensao! O exilado obstinado, teimoso do peito amoroso! Duas lagrimas com cheiro de gim escorreram pelos lados de seu nariz.... [A] luta findara. Ele conquistara a vit6ria sobre si mesmo. Ele amava o Grande Irmao”, A preocupagao aqui é perturbadora, e penso que deve se aplicar a qualquer abordagem que parega se afastar de uma explicacao estritamente cognitivista da verdade religiosa, ou que pareca (como aqui) sugerir que o caminho para essa verdade é algo distinto da avaliacao racional imparcial. 22. Rainer Maria Ruxe, Duineser Elegien [1922], X, trad. J. C. Hé um texto em alemao com tradugao em inglés em J. B, LEISHMAN, S. SPENDER (ed.), Rainer Maria Rilke, Duino Elegies, London, Hogarth Press, 1939, ‘1968. 23. George OxweLt, 1984, London, Secker and Warburg, 1949, paragrafo final. a0 ‘A DIMENSAO ESPIRITUAL Contudo, penso que os materiais para solucionar essa preocupacio, ao menos em parte, podem ser extraidos de uma exploracdo esclarecedora, produzida por Martha Nussbaum, num contexto muito diferente do papel vital desempenhado pelas emocGes no entendimento humano. Com efei- to, isso corresponde a uma critica radical da tradicional rigida dicotomia entre as faculdades supostamente antitéticas da razao e as paix6es. Em seu artigo, que é objeto de justa admiracao, “Conhecimento do amor”, Nus- sbaum desenvolve um exemplo de Em busca do tempo perdido. O herdi examinou cuidadosa e judiciosamente seus sentimentos da maneira mai: meticulosa e chegou a conclusao raciocinada de que nao se importa mais com Albertine. Mas entao a governanta Francoise traz-lhe a noticia de que Albertine deixou a cidade — precisamente no momento em que ele convencera completamente a si mesmo e, com plena certeza, de que nao mais a amava. Um sentimento imediato, agudo e avassalador de angustia Ihe diz: ele estava errado. A voz autoral medita: Estivera errado ao pensar que podia ver claramente no mago de meu préprio coracao. Um conhecimento que as mais perspicazes percepcoes da mente nao teriam me proporcionado fora agora trazido a mim, s6lido, resplandecente, estranho, como sal cristalizado, pela abrupta reacdo da dor’. Nussbaum emprega esse notavel episédio para arrojar uma dtivida geral sobre uma concep¢io de conhecimento que tem raizes poderosas em nossa tradi¢ao filos6fica. De acordo com essa concepgao, conhecimento (por exem- plo, acerca de si mesmo, se alguém ama alguém) “pode ser o melhor obtido gracas ao exame intelectual imparcial, nao-emocional e exato da condi¢ao de alguém, exame conduzido do modo que um cientista conduziria uma pesquisa ... separando, analisando, classificando”®. Mas a realizacao obtida por Marcel, 0 protagonista do romance, produz um resultado distinto: A avaliacao de Marcel do autoconhecimento no rivaliza simplesmente com a avalia¢ao intelectual. Informa-nos que a avaliacao intelectual estava 24, M. Proust, A la recherche du temps perdu [1913-1927], trad. L. Scott Moncrieff, London, Chatto & Windus, 1967, vol. III, p. 426, cit. in Nusssaum, Love's Knowledge, [1988], reimpr. in M, Nusspavm, Love’s Knowledge, Oxford, Oxford University Press, 1990, p. 265. 25. Nussbaum, Love's Knowledge, p. 262. 28 1. REHGIAO E ESPIRITUALIDADE: DA PRAXIS A CRENCA, errada: errada a respeito do contetido da verdade sobre Marcel, errada a respeito dos métodos apropriados para conquistar esse conhecimento, errada também acerca do tipo de experiéncia ... que é conhecer. E nos informa que tentar apreender 0 amor intelectualmente constitui um modo de nao sofrer, nao amar ... um artificio de fuga”’. A observacao feita por Pascal uma vez é célebre: “le coeur a ses raisons que la raison ne connait point” —“o corac4o possui suas razGes, as quais a razJo de modo algum conhece””’. A andlise de Nussbaum sugere uma variagao persuasiva em torno desse enigmatico tema: ha certos tipos de verdade em relacao aos quais a tentativa de apreendé-los puramente de forma intelectual constitui evit4-los. O que estou propondo (e 0 que me parece servir de base a posicao de Pascal a respeito de fé e praxis) é que a verdade religiosa deveria ser vista como se ajustando precisamente a essa categoria. Para qualquer pessoa educada no curriculo classico de textos canénicos na filosofia da religiao, o paralelo entre conhecimento religioso e o tipo de conhecimento envolvido em relagdes emocionais pode parecer andtema. Como podem as objetivas afirmagées da religiao acerca da natureza do cosmos e de nosso lugar humano nele ser colocadas na mesma categoria das verdades que se relacionam com o mundo interior descrito pelo roman- cista? Bem, consideremos um pouco mais minuciosamente a descrigao de Nussbaum do conhecimento relativamente a essa tiltima categoria (nesta oportunidade, o exemplo literario dela nao é Proust, mas uma historia de amor contemporanea da autoria de Ann Beattie, significativamente intitulada “Aprendendo a cair”). A andlise de Nussbaum merece ser citada em toda a sua extensao a fim de exibir o que a mim parecem ser paralelos inequivocos com a consciéncia religiosa: Esse conhecimento... desdobra-se, expande-se em tempo humano. Nao é, de modo algum, uma coisa, mas um modo complexo de estar com uma outra pessoa, um deliberado capitular diante de influéncias externas incontrolaveis. Nao ha condi¢6es necessérias e suficientes, e nenhuma certeza. Para mostrar 26. Ibid., p. 268-269 (énfase adicionada) 27. Pensées, n. 423. Comparar com n. 424: “C'est le coeur qui sent Dieu et non la raison. Voila ce que c’est que la foi” (“E 0 coracao que sente Deus e nao a razao. Isso € 0 que éa fé”) 2B | | A DIMENSAO ESPIRITUAL essa idéia adequadamente num texto, parece que necessitamos de um texto que... nao da definigdes e permite que 0 misterioso permanega assim... [Tal texto] alista-nos em ... uma atividade confiante e amorosa. Lemo-lo suspendendo o ceticismo; permitimos a nds préprios sermos tocados pelo texto, pelos personagens a medida que conversam conosco no decurso do tempo. Poderiamos estar errados, mas permitimo-nos crer. A atitude que temos diante de um texto filoséfico pode parecer, em contraste, retentiva e nao- amorosa— solicitando razGes, questionando e examinando cada afirmacao, arrancando clareza do obscuro ... Diante de uma obra literria [do tipo descrito] somos humildes, abertos, ativos e, nao obstante, porosos. Diante de uma obra filoséfica ... somos ativos, controladores, almejando nao deixar nenhum flanco sem defesa e nenhum mistério sem ser dissipado**. A propria Nussbaum, devo apressar-me a acrescentar, nao traca ne- nhum paralelo religioso, nem esboga sequer a mais infima insinuagao de fazé-lo”. Mas me parece dificil refletir no que ela diz sobre a necessidade de franqueza e suscetibilidade 4 mensagem de uma poderosa obra de literatura sem ver algum vinculo entre isso e 0 que os arquitetos da grande tradicao dos exercicios espirituais tinham em mente. E precisamente porque as grandes verdades da religiao sao tidas como sendo em parte um mistério, ultrapassando a direta compreensao da mente humana, que uma tentativa de apreendé-las de frente através dos instrumentos da anilise logica é, num certo sentido, esquivar-se a elas. Uma estratégia diferente, a estratégia do envolvimento, a estratégia da praxis, é exigida pela natureza do material. O paralelo de Nussbaum com a leitura de um texto é sugestivo de um modo adicional quando aplicado aos mecanismos da praxis espiritual, pois, esta claro, um elemento crucial em muitos exercicios espirituais tradicionais (os de Inacio, bem como os encontrados na muito mais antiga tradicao 28. Nusssaum, Love's Knowledge, p. 281 e 282 (énfase adicionada). 29. Embora em outra parte ela explore alguma coisa similar num contexto religioso: “Descobrimos nas Confissées [de Agostinho] ... um amor de Deus caracterizado nao por uma nitida progressao intelectual rumo a pureza contemplativa, mas por um sentimento de anseio, incompletude e passividade” (The Ascent of Love, in G. MartHews [ed.], The Augustinian Tradition, Berkeley, University of California Press, 1999, p.71).O tema do amor envolvendo um tipo de conhecimento ou consciéncia que é distinto e, talvez, mais revelador do que contemplacao imparcial ou andlise critica pode ser encontrado sob varias formas na literatura crist primitiva. Comparar com o pronunciamento de Gegério Magno: amor ipse notitia est, citado na segunda epigrafe ao presente capitulo. 30 |, REIGIAO E ESPIRITUALIDADE: DA PRAXIS A CRENCA, beneditina) é a leitura de um texto, realmente do texto supostamente supremo. A lectio divina — uma franca e suscetivel leitura da Biblia — é ela propria entendida, nessa tradigao, como um veiculo principal para a operagao da graca divina, e conseqiientemente um caminho apropriado e certo para esse tipo especial de conhecimento exigido pela profunda e misteriosa natureza do assunto. Desentranhemos juntos os fios. A estratégia de Pascal culmina num convite a seus leitores para nao responder a indug6es mercendrias, nem conferir abrupto assentimento a doutrinas que nao estao apropriadamente substanciadas, mas, em lugar disso, se abrir para um processo de trans- formaco, o qual permitira a operacao da graca divina, cuja meta final é a f°, A reflexdo na andlise de Nussbaum de um certo tipo de conhecimento capacita-nos a construir, com efeito, um duplo paralelo para esse proceso. Tal como o apropriado entendimento de um certo tipo de texto envolve um processo de capitulacao, de porosidade ante o poder da literatura, e tal como compreender apropriadamente as proprias respostas emocionais é amitide melhor alcangado nao pelo exame desinteressado, imparcial, mas pelo ouvir os sinais de nosso interior, assim precisamente do mesmo modo 0 adepto religioso pode afirmar que o conhecimento de Deus que éa meta da vida humana é para ser encontrado por meio da senda da praxis espiritual — praxis que produz uma transformacao interior, uma receptividade que sao a precondi¢ao essencial para a operacao da graca. Rejeitar o primado da praxis é, em todos os trés casos, nao uma receita para o conhecimento mais confidvel, mas um esquivar-se do conhecimento, uma maneira de nao amar, um artificio de fuga’. 30. Estou aqui em grande débito com as persuasivas interpretagoes de Ward Jones, Religious Conversion, Self-Deception and Pascal’s Wager. 31. Ainda que o contexto seja muito diferente, pode haver alguns vinculos entre a concepcao aqui proposta ea posicao assumida por Hegel em sua Fenomenologia do Espirito: “Se o receio de cair no erro instaura uma desconfianca da Ciéncia, a qual na auséncia de tais escriipulos avanca ela propria com o trabalho, e realmente conhece alguma coisa, ¢ dificil compreender por que nao deveriamos dar a volta e desconfiar dessa prépria desconfianca. Nao deverfamos nés nos preocupar se esse receio do erro nao € precisamente o proprio erro” (Phanomenologie des Geistes [1807], trad. A. V. Miller, Oxford, Oxford University Press, 1977, p.47.) Devo essa citacao a Philip Stratton-Lake, que com competéncia comenta: “Quanto mais distanciados permanecemos de alguma pratica ou fendmeno, mais ela (cle) pareceré absurdo e sem sentido ... 0 receio do erro pode ser o préprio erro, pois o desejo de evitar 31 ‘A DIMENSAO ESPIRITUAL 4. Confianca e as correcdes da razao No estagio atingido agora pelo argumento, parece que diversas objecdes apinham-se. A primeira (na qual j4 tocamos) diz respeito as credenciais epistémicas da crenga religiosa: como podem afirmagées religiosas ser bem sustentadas se sua adogao é 0 resultado de um procedimento que parece envolver o abandono da racionalidade critica? E célebre a argumentagao de Platao de que estar “preso por uma cadeia de raciocinio”” constitui uma condicao necessdria a que uma crenca tem que se submeter se quer merecer a dignidade de conhecimento. Talvez os crentes religiosos se contentem com algo que seja menos do que conhecimento no sentido estrito; mas tipicamente desejarao que seus compromissos tenham, ao menos, algum tipo de suporte ou fundamento racional. Podemos realmente admitir que um “deliberado capitular diante de influéncias externas incontrolaveis” pode ser um meio apropriado de adquirir crenga religiosa? Voltarei a questao geral das credenciais epistémicas da crenga religiosa num capitulo posterior®. Entretanto, com relacdo ao problema especifico acerca do “capitular”, desejo aqui sugerir que, talvez surpreendentemen- te, a dificuldade acaba por se mostrar mais aparente do que real. Como argumentei em outro texto™, ha uma certa passividade em toda cogni¢ao — algo reconhecido por filésofos radicalmente diferentes, em suas pos- turas ante a religiao, como Descartes e Hume. Para Hume, a crenca 6 um mecanismo cognitivo passivo, algo que, por assim dizer, “acontece a nds”, Para Descartes, a “luz natural”, a faculdade que nos faz assentir a verdades clara e distintamente percebidas, nao nos proporciona outra escolha exceto erros e ingenuidade pode ele proprio nos impedir de alcancar a verdade” (Introducao a P. Srrarton-Laxe [ed.], Ethical Intuitionism, Oxford, Clarendon Press, 2002, p. 27). 32. Cf. PLarAo, Ménon [c. 380.a.C.] 98: “Opinides, mesmo se verdadeiras, evadem-se da mente de uma pessoa, e nao so de muito valor, a menos que tu as prenda elaborando uma razdo ... E essa é a razdo por que o conhecimento € mais nobre e excelente do que a opiniao verdadeira, porque preso por uma cadeia’. 33. Ver abaixo capitulo 7, espec. seg. 2. 34. Ver J. CortincHam, Descartes and the Voluntariness of Belief, Monist 85:3 (out. 2002) 343-360. 35. David Hume, resumo de A Treatise of Human Nature [1739-1740], ed. L.A. Selby- Bigge, rev. P. H. Nidditch, Oxford, Clarendon, 1978, p. 657. Cf. Bernard WittiaMs, Deciding to believe, in Problems of the Self, Cambridge, Cambridge University Press, 1978, p. 148. 32 | RELIGIAO E ESPIRITUALIDADE: DA PRAXIS A CRENGA, assentir enquanto nos colocamos na posicao apropriada, receptiva. Quando os concentramos apropriadamente na proposi¢ao “dois mais dois igual a quatro’, entao, de acordo com Descartes, nao podemos sendo afirmar sua verdade. A iluminacdo intelectual gerada pela luz do entendimento produz imediata e diretamente uma poderosa propensdo mental a crer: ex magna luce in intellectu sequitur magna propensio in voluntate” partir de uma grande luz no intelecto segue-se uma grande propensao na vontade”)**, Contudo, a estrita determinagao de nossa crenga nao solapa seu status epistémico, visto que nos abrir a irresistivel luz natural permite 2 opera 0 de um processo que nao se esquiva de nossa racionalidade, mas opera em virtude dela. A propensao natural de Descartes, a lumen naturale, é precisamente a lux rationis, a luz da raz4o; e nosso irresistivel assentimento nos concede exatamente o que poderiamos querer idealmente —aconviccao inabalavel de que as conclus6es de argumentos validamente defendidos sao verdadeiras. Poder-se-ia pensar que esse retrato da luz irresistivel ainda coloca o nyestigador epistémico numa situacao aflitivamente passiva. Mas o que omo como sendo a propria resolugao de Descartes dessa dificuldade a mim parece inteiramente satisfatoria: 0 mecanismo espontaneo de assen- timento nao solapa, para Descartes, nossa autonomia epistémica humana, pois permanecemos com 0 encargo das condigGes sob as quais ele opera. A rresistibilidade da luz natural somente dura enquanto mantemos em foco as verdades, sustentando nosso olhar mental nas proposig6es em questao. O proprio curso de praxis epistémica de Descartes, as Meditacoes, é pro- etado para nos voltar para a dire¢do correta, mas nao ha nenhuma com- pulsao acerca de seguir a estrada rumo a verdade; seres humanos reterao sempre a capacidade de declinar quanto a trilhar esse caminho. E mesmo gue tenham se disposto a trilha-lo estarao a qualquer tempo capacitados a permitir que as proposigGes nao cobertas saiam rapidamente de foco. A 36. Meditagdes [Meditationes de prima philosophia, 1641], AT VII 59; CSM IL 41."AT” refere-se & edigdo franco-latina padrao de Descartes por C. Adam e P. Tannery, Oeuvres de Descartes, ed. rev., Paris, Vrin/CNRS, 1964-76, 12 vols.; “CSM” refere-se traducao inglesa de Cottingham, R. Stoothoff e D. Murdoch, The Philosophical Writings of Descartes, Cambrid- ge, Cambridge University Press, 1985, vols. Ie II; e“CSMK” ao vol. III, The Correspondence, pelos mesmos tradutores mais A. Kenny, Cambridge, Cambridge University Press, 1991. 33 [A DIMENSAO ESPIRITUAL luz faz irresistivelmente a pupila do olho contrair, mas vocé pode sempre evitar olhar para a luz”. Assim, capitular diante do irresistivel nao é, de modo algum, incom- pativel quer com a possibilidade de conhecimento, quer, em segundo lugar, com um considerdyel grau de autonomia epistémica. O quadro que acabou de ser esbocado precisaria, decerto, ser preenchido com muito mais detalhes para tornar-se plenamente persuasivo; mas, mesmo que yocé 0 aceite, uma importante dificuldade ainda persiste. Ha certamente uma crucial diferenga entre 0 tipo de caso matemiatico aludido e as ver- dades vistas como a destinagao da rota pascaliana para a fé. As afirmacoes tipicamente envolvidas na crenga crista do tipo defendido por Pascal sao, segundo sua prépria admissao, nao do tipo que pode ser estabelecido pelo argumento filoséfico ou pela razao cientifica: incluirao, por exemplo, mistérios transcendentes, tais como 0 mistério da Encarnagao. Acabam por se mostrar, para usar uma Util distincdo cartesiana, como os tipos de verdade que sdo apreendidos nao através da luz natural, mas através de luz sobrenatural. Mas agora o defensor da praxis espiritual parece ter de enfrentar um importante problema. Se a destinacao de tal praxis religiosa & assentimento a verdades que nao podem ser racionalmente validadas, 0 tipo de argumento que examinamos nao abre as comportas a todos os tipos de sistemas bizarros de cren¢a? Parecemos aqui retornar a uma variante da anterior objecao do “Grande Irmao” Se seu curso da praxis envolve a adesao a um partido totalitario, € possivel que vocé acabe por assentir aos mistérios do Fihrerprinzip. Estao envolvidas aqui questoes complexas, € voltarei a algumas delas mais a frente. Mas encerrarei este capitulo de abertura fazendo duas observacoes relativamente diretas. Em primeiro lugar, nada na idéia do primado da praxis necessaria- mente envolve um permanente abandono da racionalidade critica. Tendo 7, Para mais acerca disso, ver CoTTINGHAM, Descartes: and the Voluntariness of Belief. 38. Descartes, segundo conjunto de respostas a objecbes as Meditagdes: AT VII 148, 1.27; CSM II 106, 39. A preocupacao de que 0 tipo de linha defendido conduz a uma posicao episte- micamente irresponsavel do tipo as vezes estigmatizado como “fideista” seré tratada no capitulo 7. 34 1LRELIGIAO E ESPIRITUALIDADE: DA PRAXIS A CRENGA desenvolvido o ponto de Nussbaum sobre a receptividade e a porosidade necessarias em certos tipos de entendimento, podemos agora observar a propria judiciosa qualificagao dela— de que as raz6es do coracao tém com freqliéncia que ser suplementadas, ou ordenadas, por deliberacao racional adicional: “As vezes 0 coracio humano necessita da reflexao como uma | aliada”"°. E esse ponto pode agora ser aplicado ao caso religioso. Embarcar na busca religiosa nao € colocar as préprias faculdades deliberativas na paralisia geral e permanente, nem subitamente os outros proprios valores e compromissos — 0 proprio conhecimento da natureza humana, as proprias sensibilidades morais. E verdade que 0 que é concebido é um processo de transformacao, porém, como todas as transformagoes, essa s6 pode fun- cionar com base num fundo do que é mantido constante. Para formul4-lo em termos ligeiramente mais concretos, tipo de poder transformador que seus defensores cristos discernem nas grandes pardbolas dos evangelhos (o bom samaritano, 0 filho prédigo, e assim por diante) ira operar — visto ser esse 0 tinico modo em que pode operar — por meio de uma ativacao, e um aprofundamento, de intuigdes morais que jé estao 14. E, na medida em que essas intui¢es constituem parte de uma estrutura racional de crencas sobre o mundo ea condi¢aéo humana, 0s resultados da praxis espiritual terao que atuar em harmonia com elas, em lugar de em oposicio a elas. A objecao das “comportas” pode assim ser contraposta salientando-se que 0 juizo moral critico pode ser usado como uma espécie de pedra de toque com base na qual sistemas de praxis espiritual podem ser avaliados. A grande tese kantiana da autonomia relativa do juizo moral, sua indepen- déncia de premissas religiosas, assim acaba por se mostrar nao como um obstaculo ao se embarcar numa senda religiosa, mas, pelo contrario, como um pré-requisito essencial para isso (embora eu va voltar a esse ponto e a relacao geral entre moral e religido no capitulo 3). Em sintese, nao sera qualquer antigo sistema de praxis espiritual que serviré, mas somente um cujos insights estiverem em harmonia com nossa reflexao moral consi- derada. Se, como se argumentou neste capitulo, s6 se pode ter acesso a verdade religiosa mediante a fé, e a fé s6 pode ser adquirida através de uma tradicao viva de praxis religiosa, ent&o nos confiando a uma senda qualquer 40. Nussbaum, Love's Knowledge, p. 283. 35 A DIMENSAO ESPIRITUAL necessitamos de uma maneira de nos certificar, tanto quanto pudermos, de que nossa confianga nao esta depositada no lugar errado. E podemos empregar nossas intui¢6es para avaliar as credenciais morais dos sistemas de praxis disponiveis (e realmente a credibilidade moral daqueles que os oferecem), bem como os frutos morais desses sistemas. Pode, entretanto, persistir a suspeita de que, uma vez “dentro de” uma estrutura de praxis, nosso panorama possa se tornar progressivamente condicionado pelas hipéteses operativas desse panorama, de modo a perdermosa perspectiva externa da qual uma avaliacao mais critica pode ser feita. E aqui chego a meu segundo ponto, que € 0 final. E verdade que na destinacao da fé considerada na rota pascaliana os juizos do crente serao, por assim dizer, aqueles de “alguém que esta no interior”, alguém para quem aspectos cruciais da perspectiva religiosa foram sistematica- mente interiorizados. Mas isso, num sentido importante, é verdadeiro no que se refere a todo juizo humano. Nao podemos saltar para fora do interior de uma dada estrutura a fim de ganhar alguma certeza final ¢ definitiva de que tudo esta indo bem. Mas tampouco podemos assegurar uma posi¢ao externa imparcial por permanecer fora dessa estrutura, pois qualquer posicao humana é necessariamente uma posi¢ao condicionada por estruturas preexistentes de entendimento, estruturas de pertenci- mento, compromisso e dependéncia“’. Se isso constitui um problema, é um problema para a condicao humana em geral, nao para estruturas religiosas em particular. A natureza inevitavel de nossa condigao humana é somente podermos aprender gracas a um certo grau de receptividade, por, numa certa medida, deixar-nos levar, por nos estendermos em confianga. E assim, afinal, como comecamos a aprender qualquer coisa como criangas, e assim, embora possamos lutar para resistir a isso, € como temos que ser, como adultos, se pretendemos continuar crescendo rumo ao conhecimento e ao amor, que sao os mais preciosos dos bens humanos. A necessaria confianga, la- 41. Comparar com a critica de Rowan WiitiaMs da concepgao de que “o ponto do raciocinio é levar-nos a um ponto-base de nao-comprometimento, a partir do qual pode- mos nos mover para fora para formular politicas evidentemente fundamentadas para ... comprometimento (Belief, Unbelief and Religious Education, London, Lambeth Palace Press Office, 8 mar. 2004). 36

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