You are on page 1of 14
Politica exterior e desenvolvimento (1951-1964): o nacionalismo e politica externa independente Paulo G. Fagundes Vizentini* A década compreendida entre 0 suicidio de Getilio Vargas e o golpe de 1964 constitui, sob mtiltiplos aspectos, um perfodo crucial na histéria do Brasil contemporaneo, Um dos aspectos mais relevantes desta fase foi a politica exterior. Sua compreensio global, entretanto, implica a necessidade de incluir 0 segundo governo Vargas (1951-1954) na andlise deste perfodo!, A politica externa brasileira entre 1951 ¢ 1964 apresentou caracte- risticas novas, que a diferenciavam das fases anteriores. Apesar das dife- rengas existentes entre 0 nacional-desenvolvimentismo populista de Getiilio Vargas, 0 desenvolvimentismo associado de Juscelino Kubitschek de Oli- veira, ¢ a Politica Externa Independente de Jénio Quadros e Joao Goulart, bem como das particularidades que marcaram o contexto histérico de cada uma, esses projetos possuem acentuados tragos em comum e apresentam uma continuidade. Ainda que caracterizada por certas ambigilidades e interrompidas por um hiato apés o suicfdio de Vargas, a politica externa desses trés perfodos apresenta um aprofundamento continuo, que atinge sua forma superior com a Polftica Externa Independente (PEI). Embora apresentada inicialmente apenas como tentativa de realizar uma diplomacia mais auténoma perante os Estados Unidos apés as decepgdes geradas durante 0 governo Dutra (quando se esperava uma relagéo privilegiada com esse pafs como decorréncia da colaboragao durante a Segunda Guerra Mundial ¢ infcio da Guerra Fria), essa linha politica possufa rafzes mais distantes. Entre 1930 ¢ 1945, Vargas j4 havia procurado tansformar a politica exterior num instrumento de apoio ao desenvolvimento econémico. Durante a primeira metade do século XX, a politica externa brasileira leve como tendéncia predominante a inserg’o do pafs no contexto hemis- férico, onde 0 eixo principal era a relag3o com os Estados Unidos. Nao se trata apenas da dependéncia perante os EUA, mas no fato de o Brasil centrar sua politica externa no estreitamento das relagdes com Washington, * Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) | © presente texto € uma sintese da minha tese de doutorado Da barganha nacionalista & Politica Externa Independente, 1951-1964: uma politica exterior para o desenvolvimento, que se encontra no prelo. 99 dentro da perspectiva da “alianga nfo escrita”, concebida durante a ges- tao Rio Branco. A dependéncia, enquanto tal, prosseguiu depois desta fase, mas a tOnica nfo era mais essencialmente a busca de uma aproxima- go privilegiada com os Estados Unidos. ‘Ao longo desta fase, houve momentos de busca de uma relativa “autonomia na dependéncia” ou de barganha para a defesa de certos interesses brasileiros, como durante a gestéo Rio Branco e 0 primeiro go- verno Vargas. O restante da Reptblica Velha (1912-1930) e o mandato do presidente Dutra (1946-1951) caracterizam-se, em oposigao, por uma de- pendéncia relativamente passiva diante dos EUA. Entretanto, 0 perfodo 1930-1945 pautou-se por uma temtativa consciente de tirar proveito da conjuntura internacional ¢ da redefini¢Zo da economia brasileira, por in- termédio da utilizagio da politica externa como instrumento estratégico para lograr a industrializagao do pais. & necessério ressaltar, entretanto, que 0 estégio embriondrio do desenvolvimento brasileiro ¢ as escassas possibilidades oferecidas pelo contexto internacional, a longo ¢ médio pra- zos, limitaram o alcance desta inovagao varguista. A diplomacia pendular do Brasil, entre Washington e Berlim, buscava, em esséncia, reativar a velha “alianga privilegiada” com os EUA, inovando-a com outras formas de cooperago econdmica. Em suma, Vargas ensaiava uma nova politica externa em uma situacio ainda dominada por velhas estruturas de alcance regional. ‘A derrubada do ditador estadonovista € o cardter da politica exter- na do governo Dutra evidenciaram esses elementos acima apontados ¢ a tendéncia a formas mais ou menos passivas de uma acomodayio submissa aos Estados Unidos ainda se fariam sentir entre 1951 ¢ 1964, Sem embargo, a volta de Vargas ao poder vai significar uma importante mudanga. & inegavel que ainda iria persistir em larga medida a ilusdo de que o Brasil poderia, por meio de uma barganha nacionalista, voltar a lograr estabelecer vinculos privilegiados com os EUA; isto até o final do governo Kubits- chek. Mas a situago nos anos 50 era diferente. O desenvolvimento eco- némico ¢ a progressiva afirmagdo de um novo perfil sécio-politico da so- ciedade brasileira, impunham novas demandas & politica exterior. ‘A década de 1950 abria-se com o incremento da urbanizagio ¢ da industrializagao, a afirmago de uma burguesia industrial, de segmentos médios urbanos, de uma jovem classe operéria ¢ outros trabalhadores 2 MOURA, Gerson. Autonomia na Dependéncia: a politica externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 100 urbanos ¢ rurais. O sistema politico tinha de responder a crescente partici- pagdo popular, enquanto as contradigdes da sociedade brasileira consti- tuiam um terreno fértil para conflitos sociais. Assim, Vargas viu-se na contingéncia de retomar o projeto de desenvolvimento industrial por subs- tituigdo de importagées, incrementando a inddstria de base. O setor externo da economia possuia, nesse quadro, um papel fundamental, A obtengao de capitais tecnologia s6 poderia ser lograda incrementando-se a coope- ragdo econdmica com a poténcia entéo hegemdnica do mundo capitalista, 08 Estados Unidos. No quadro da Guerra Fria, entretanto, 0 espaco de manobra era muito limitado para atrair a atencdo americana, visando su- plantar 0 “descaso” de Washington para com a América Latina, ¢, em particular, para com o Brasil. S nesse quadro que Vargas procura implementar uma barganha nacionalista, que consistia em apoiar os EUA no plano politico-estratégico da Guerra Fria, em troca de ajuda ao desenvolvimento econémico brasi- leiro.? Esta politica, a0 mesmo tempo, fortaleceria a posig&o intema do governo, granjeando-Ihe apoio de diferentes forgas politicas. As contradi- des internas cada vez mais pronunciadas © os magros resultados obtidos no plano externo atingiram um ponto grave a partir de 1953, com a eleigdo do republicano Eisenhower. Neste momento, Vargas viu-se na contin- géncia de aprofundar sua barganha diplomatica, visando reverter um qua- dro crescentemente adverso. O problema, entretanto, cra que o cenério in- ternacional nfo oferecia suficientes alternativas, pois os paises socialistas ainda eram considerados “inimigos”, a Europa ocidental ¢ o Japio mal conclufam a reconstrugéo econémica, enquanto o Terceiro Mundo recém despertara como realidade politica, devido ao embriondrio estdgio da des- colonizagéo. A América Latina, por seu turno, encontrava-se sob forte pressdo dos BUA, além de politicamente bastante dividida. De qualquer forma, Vargas procurou tirar proveito. dos limitados espagos, além de tentar criar outros. Entretanto, mesmo esse esbogo de multilateralizacéo, que visava mais barganha com os Estados Unidos do que a uma nova forma de insergo no plano mundial, viu-se obstaculizado pelos acirrados conflitos internos, nos quais a oposigao articulava-se diretamente com Washington, isolando o governo e levando 0 presidente ao suicfdio em 1954. A derrubada do governo Vargas ¢ a reac conservadora que se seguiu, tanto no plano interno como, sobretudo, extemo, evidenciaram que @ barganha nacionalista havia se tornado uma politica incémoda para o Statu quo internacional hegemonizado pelos Estados Unidos. A tentativa ° HIRST, Ménica. O pragmatismo impossivel: a politica externa do Segundo Governo Vargas 1951-1954. Rio de Janeiro: CPDOC-FGH, 1980 (mimeo) 101 precoce de promover uma diplomacia nfio linearmente subordinada a Washington apoiava-se em fatores objetivos em desenvolvimento, € no apenas na vontade politica de um Ifder populista, Por isso significou o infcio de uma nova fase da politica externa brasileira, que conheceré seu amadurecimento com a Politica Externa Independente. Entre 1954 e 1958 essa politica conhece um sério retrocesso, ¢ hé um auténtico hiato com relacio as tendéncias marcantes do periodo. A gestio Café Filho caracterizou-se pela abertura econémica absoluta ao capitalismo internacional ¢ pelo retorno do alinhamento automético em relagdo & diplomacia americana, tal como no governo Dutra. O projeto de desenvolvimento € momentaneamente abandonado em nome de um li- beralismo econémico extiemado, enquanto a barganha nacionalista de- saparece das palavras ¢ atitudes do governo. Tratava-se da afirmagio da diplomacia da Escola Superior de Guerra (ESG) ¢ sua concepgdo de segu- ranga ¢ desenvolvimento. ‘Com a ascensio de Kubitschek ao poder em 1956, a situago altera- se em certo sentido, O Brasil continua calcando sua politica externa no alinhamento automético com relagio aos BUA, a qual se concentra essencialmente na diplomacia hemisférica. Também prossegue a abertura completa da economia ao capital internacional, Entretanto, JK retomou 0 projeto de industrializago, s6 que agora calcado no setor de. bens de consumo durivel para as classes de média e elevada renda. Assim, Kubitschek conseguia conjunturalmente um espago em que se harmo- nizavam 05 interesses da poténcia hegeménica ¢ de um projeto de in- dustrializagdo alterado, E necessério salientar, sem embargo, que tal politica foi possivel, entre outras coisas, pelo retorno pleno da Europa ocidental & vida econdmica internacional, fornecendo alternativas co- merciais financeiras ao Brasil, sem confrontago com Washington. Esse hiato, com suas duas fases distintas, no entanto, encerra-se em 1958, com a retomada da barganha nacionalista por Kubitschek, em termos muito semelhantes aos de Vargas. A crise dos milagrosos “50 anos em 5” € determinadas alteragdes internacionais, como a criagao da Co- munidade Econ6mica Buropéia, a reeleigéo de Hisenhower num quadro de crise descontentamento latino-americano, bem como as presses do FMI, Jevaram 0 governo a retomar uma ativa barganha nacionalista por meio da Operagdo Pan-Americana (OPA). Esta objetivava atrair a atengio dos Estados Unidos para a América Latina ¢ obter maiores créditos nos marcos do sistema interamericano, comprometendo a Casa Branca num programa multilateral de desenvolvimento econdmico de largo alcance.* * Operagdo Pan-Americana: documentdrio. Histéria da Politica Exterior Brasileira: 1822-1985. Rio de Janeiro: Tmprensa Oficial, 1958 ¢ 1959, e CERVO, Amado & BUENO, Clodoaldo, Sio Paulo: Atica, 1992. 102 A OPA pretendia incrementar os investimentos nas regides eco- nomicamente atrasadas do continente, compensando a escassez de capitais internos; promover a assisténcia técnica para melhorar a produtividade e garantir os investimentos realizados; proteger os pregos dos produtos primarios exportados pela América Latina, bem como ampliar 0s recursos e liberalizar os estatutos das organizagdes financeiras internacionais. Ao contrério da Alianga para o Progresso, que priorizava capitais privados as relages bilaterais, a OPA enfatizava a utilizagdo de capitais piblicos e a multilateralizagao das relagdes interamericanas. Paralelamente, JK buscou expandir a barganha para a 4rea socialista e terceiromundista, mas de forma extremamente acanhada. A economia brasileira internacionalizava-se acen- tuadamente, e os conflitos sociais exacerbavam-se, enquanto as reper- cussées da Revolugao Cubana criavam problemas adicionais. Nao po- dendo agir além do que the permitiam suas bases de sustentagio politica, a diplomacia de JK permanecerd no meio do caminho, empurrando para os seus sucessores decisées que nfo podia ou ndo estava disposta a tomar. Este € 0 contexto em que se inicia o breve governo Janio Quadros a sua Polftica Externa Independente (PEI), Apesar de Janio ¢ seu ministro das Relages Exteriores, Afonso Arinos (da UDN mineira), caracterizarem- se por uma postura conservadora (sobretudo na politica nacional e econémica), 0 novo governo inaugura uma linha diplomdtica que apro- funda e coloca em prética elementos essenciais da barganha nacionalista dos anos 50. O nticleo bésico da PEI pode ser sintetizado em 5 princfpios enun- ciados oficialmente e que se mantiveram ativos entre 1961 ¢ 1964. O pri meiro referia-se 4 ampliagdo do mercado externo dos produtos primérios ¢ dos manufaturados brasileiros por meio da redug4o tariféria no Ambito latino-americano ¢ da intensificago das relagées comerciais com todas as nagdes, inclusive as socialistas. O segundo defendia a formulagao auté- noma dos planos de desenvolvimento econdmicos ¢ a prestagio e acei- taco de ajuda internacional nos marcos destes planos (visando escapar as imposigdes do FMI). © terceiro principio, coexisténcia pactfica, enfatizava, a necessidade da manutengo da paz entre estados regidos por ideologias antagdnicas, e do desarmamento geral e progressive. Os re- cursos poupados por esta politica deveriam, entéo, financiar o desen- volvimento do Terceiro Mundo. © quarto principio defendia enfaticamente a nogao de ndo-inter- vengdao nos assuntos internos de outros pafses, a autodeterminagdo dos povos ¢ o primado absoluto do Direito Internacional com relagio a solugéo dos problemas mundiais. Este princ{pio aplicava-se sobretudo & questéo cubana, pois 0 Brasil temia outra contra-revolugio em escala continental como a que ocotrera em 1954-1955 (que foi tanto politica 103 quanto cconémica), Tolerar uma intervengdo em Cuba abriria caminho as ingeréncias em qualquer pafs que nfo concordasse plenamente com os Estados Unidos, como era o caso do Brasil, Finalmente, 0 quinto principio apoiava a emancipagao completa dos territérios nflo-auténomos, qualquer que fosse a forma juridica utilizada para sujeité-los 4 metépole. Esta questo colocava o Brasil contra um tradicional aliado, Portugal salazarista. A atitude brasileira justificava-se por uma questéo econdmica ¢ outra politica. No primeiro caso, a descolonizagdo africana em marcha favoreceria as exportagdes primérias brasileiras para a Europa, pois os produtos dos patses coloniais no pagavam taxas para ingressar na Europa. Quanto ao segundo aspecto, o Brasil buscava ocupar a posigdo de intermediério entre o Primeiro ¢ 0 Terceiro Mundo. Segundo Janio, nosso pais possufa todas as condig6es para desempenhar este papel, enquanto “poténcia média”, devido ao seu grau de desenvolvimento industrial e suas caracteristicas etno-culturais.® A Politica Externa Independente pode ser abordada a partir de distintas interpretagées que podem ser aglutinadas em trés abordagens: diplométicas, econ6micas e sociais. A primeira delas é constituida por wés argumentos diferentes. Um primeiro argumento considera a PEI como uma resposta da diplomacia brasileira as aceleradas transformagées inter- nacionais, em particular o surgimento de novos atores ou modificagio do caréter de alguns, cujas necessidades ¢ anseios os posicionavam fora da politica dos centros dominantes. O segundo argumento, derivado do anterior, vé a Politica Externa Independente como uma estratégia cons- ciente para questionar 0 statu quo mundial e negociar uma nova forma de insergao internacional do pafs, ou, dito mais claramente, renegociar o perfil da dependéncia, Outro argumento centra a ateng3o nas relagées Brasil — Estados Unidos e sua crescente deteriorago, entendendo a PEI como uma forma de reagdo nacionalista ao hegemonismo norte-americano. ‘As abordagens econ6micas, por sua vez, sao integradas também por trés argumentos basicos. O primeiro deles considera a PEI como uma deterioragdo dos termos do comércio exterior, devida sobretudo @ queda continua dos pregos das matérias-primas ¢ produtos agricolas, daf a busca constante de navos mercados. O segundo argumento representa, de certa forma, um aprofundamento e ampliagao do anterior, entendendo a PEI como ® QUADROS, Janio. “Brazil's New Forei oct, 1", 1961, pp. 19-27; Relatdrio do Ministério das Relacbes Exteriores. Rio de Janeiro: Servigo de Publicagdo da Divisio de Documentagéo do MRE, 1961, ¢ ARAUJO, Bras José de. Politique Extériewre et Contradictions du Capitalisme Dépendent: la politique extérieure du gouvernment Jénio Quadros au Brésil. Paris, 1970 (mimeo). Policy’! in Foreign Affairs vol. XL, 104 instrumento diplomatico do interesse nacional, isto é, como elemento de apoio do processo de desenvolvimento industrial brasileiro. Outro argu- mento vé na PEI uma tfpica politica de pais capitalista dependente que j4 esboga tragos de um “sub-imperialismo”, que reage & poténcia dominante, mas procura garantir sua prépria érea de influéncia. Finalmente, a abordagem sociolégica interpreta a PEI primordialmente como resultado das transformages internas da sociedade brasileira, tais como o surgimen- to de novos segmentos sociais em fungao da acelerada urbanizagao ¢ industrializagao do pais ¢ dos efeitos politicos daf decorrentes. Na perspectiva desse estudo, os diferentes enfoques acima apre- sentados nao sfo excludentes entre si. Bem ao contrério. Eles abarcam distintos aspectos de uma mesma realidade, decorrentes da observagio a partir de Angulos distintos e interesses tedricos especificos, Neste sentido, trata-se de segmentos de uma mesma realidade, a qual nao constitui, entre- tanto, mera soma ou simples interacdo entre fatores igualmente impor- tantes. Existe um elemento que, em tltima instdncia, confere razéo de ser aos demais e constitui o fio condutor do processo histérico. A Polftica Externa Independente constitui um projeto coerente, articulado e sistemdtico visando transformar a atuagdo internacional do Brasil. Até entdo a diplomacia brasileira havia sido basicamente o reflexo da posigdo que o pafs ocupava no cendrio mundial. Assim a “politica externa para o desenvolvimento” que Vargas ensaiou nos anos 30 era ainda parte de uma conjuntura especffica, que se alterou apés a guerra. Durante os anos 50, entretanto, devido ao processo de industrializagao brasileiro e 4 progressiva alteragdo do contexto internacional, mas so- bretudo a partir da passagem dos anos 50 ¢ 60, a politica externa procura tornar-se um instrumento indispensdvel para a realizacdo de projetos nacionais, no caso a industrializagio ¢ o desenvolvimento do capitalismo. Ess€ constitui o elemento dinaémico da PEI, dentro do qual os demais fatores devem ser entendidos. E esse o plano que confere sentido ao nacionalismo que marcou o periodo. Sem diivida, a emergéncia ¢ a con- cretizagao desse projeto encontra-se marcada por tensdes e até con- tadigdes, o que ser4 visivel em todos os governos entre 1951 ¢ 1964, mais ptincipalmente na derrocada do regime: populista. Tendo em consideragao esse elemento primordial, torna-se mais objetiva a aglutinag&io dos miltiplos fatores que interagem na formulagao de uma nova linha nas relagdes exteriores do Brasil. A postura diplomética que atinge seu ponto culminante na Politica Externa Independente decor- reu, em grande medida, de alguns fendmenos internos da sociedade brasi- leira. Esses sAo tanto de natureza econémico-social como politico-ideol6- gica. Quanto ao primeiro aspecto, ¢ fundamental a relagao existente entre 105 politica exterior executada pelo Brasil as necessidades, tanto tdticas quanto estratégicas, de sew projeto de desenvolvimento industrial substi- tutivo de importacées. Pode-se salientar que a prépria implementagiio do desenvolvimento industrial nacional entrava em choque, em muitos pontos, com os interesses da poténcia capitalista hegeménica, os EUA. A esse marco mais geral, pode-se acrescentar que esses choques ampliavam-se € explicitavam-se com intensidade nos momentos de crise econémica, espe- cialmente quando o estrangulamento do setor externo (no que tange ao capital estrangeiro, tecnologia ¢ exportagdes). Nesses momentos (1953-54 e 1958-64), a diplomacia brasileira reagiu de forma ousada, colocando em prética muitos elementos de sua retérica nacionalista. ‘Ao lado. dos aspectos materiais, ligados @ tentativa de uma na¢ao periférica de barganhar a reformulagdo de sua relagiio de dependéncia, deve-se considerar os fatores politico-sociais internos. Os anos 50 constituem a década da emergéncia das massas populares e segmentos médios no quadro de um regime democratico-liberal e de uma sociedade ‘em acelerada urbanizagao. Esta base social ampliada, & qual é necessério acrescentar uma articulada burguesia nativa (ligada sobretudo produgao de bens de consumo popular), dard razio de ser ao nacionalismo, que a partir de 1951 constituiu uma espécie de ideologia oficial do populismo brasileiro. O nacionalismo agregava ao Estado maior legitimagdo enquanto representagdo dos interesses coletivos, coroando certos interesses con- vergentes entre operariado € este setor da burguesia brasileira. A Politica Externa Independente também estava vinculada aos fenémenos externos, numa época de grandes transformagGes no sistema internacional. A orientacio diplomdtica da PEI respondia & atitude dos EUA com relagio 4 América Latina, percebida como de descaso até a Revolugao Cubana. Esse fenémeno caracterizava-se pela auséncia de investimentos publicos norte-americanos para a drea de infra-estrutura € de bens de capital. O “descaso” transformava-se em forte pressio politica econémica quando as nagées latino-americanas tomavam qualquer atitude visando modificar, ainda que parcialmente, as relagdes de dependéncia, para lograr o desenvolvimento nacional. Tgualmente importante foi a adaptagio da politica exterior brasileira as transformagées do sistema internacional em fins dos anos 50 e inicio dos 60, tais como a recuperagao econémica da Europa ocidental e Japao (como alternativas comerciais ¢ de financiamento do desenvolvimento); a descolonizagao, particularmente da Africa (que ao se tornar independente, perdia vantagens tarifarias como concorrente brasileira © tornava-se um mercado alternativo de produtos industriais); a consolidagio do campo socialista, em especial a emergéncia da URSS a condigio de poténcia 106 mundial (constituindo elemento de barganha brasileira com os EUA e€ mercado potencial); 0 surgimento do Movimento dos Paises Nao-Alinha- dos, decorrente da emergéncia do Terceiro Mundo no cenério mundial (movimento cujas posturas no campo politico interessavam & diplomacia brasileira); e a Revolugdo Cubana (cujo impacto na América Latina iria redefinir a estratégia americana), O novo contexto internacional vai re- percutir no Brasil, permitindo ao pais transitar de uma diplomacia voltada primordialmente ao sistema regional, para o ambito de uma diplomacia realmente mundial.6 ‘A busca da mundializagao da politica externa brasileira representava um estégio mais elevado na barganha com os Estados Unidos ¢ uma solugdo para os impasses brasileiros, pois 0 excedente da produgio po- deria ser absorvido pelo mercado mundial, tornando-se desnecesséria uma redistribuigao intema da renda (o que era complicado num perfodo de graves conflitos sociais). Este processo nao constitufa apenas uma jogada tatica, como lembra José Luis Werneck da Silva, mas a configuragao de uma multilateralizagdo da politica exterior brasileira, em que a verticalidade Norte-Sul ainda esta presente, mas coexiste com a horizontalidade Sul- ‘Sul e até com uma relacdo diagonal Sul-Leste. Assim, a diplomacia bra- sileira que se caracterizava entéo por ser uma politica externa para o de- senvolvimento, via-se premida a atuar fora do contexto hemisférico, ga- nhando consideravel autonomia perante os Estados Unidos.” Ocorre que este pais cncontrava-se na contingéncia de fazer frente a0 desafio de Revolugdo Cubana e reagir ao desgaste de sua hegemonia mundial. O reformismo de Kennedy langou a Alianga para 0 Progresso, visando combater as bascs da revolugio na América Latina, bem como cooptar os membros da Organizagio dos Estados Americanos (OBA) para uma ago contra o regime de Fidel Castro e o reforgo da agenda de segu- ranga. Isto era, na percepgdo da Casa Branca, extremamente urgente, pois esbogavam-se “novas Cubas” no continente. O nordeste brasileiro, onde cram ativas as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julio, era con- siderado 0 ponto mais vulneravel. Nesse contexto, 0s EUA nao viam com bons olhos a diplomacia brasileira, mas como as politicas financeira e doméstica de Jaénio eram extremamente conservadoras, procuravam apenas limité-la. Entretanto, como a PEI manteve-se firme cuanto & questo cubana, e mesmo avangou em seus demais prinefpios, Washington comega a estreitar seus vinculos * MALAN, Pedro. “Relagécs Econdmicas Internacionais do Brasil (1945-1964)", in FAUSTO, Boris (org). Historia Geral da Civilizagao Brasileira. Vol. 11. Sto Paulo: Difel, 1984, pp. 51-106. 7 SILVA, José Lufs Werneck da. As duas faces da moeda: a politica externa do Brasil monérquico. Rio de Janeiro: Universidade Aberta, 1990. 107 com os grupos pré-americanos dentro do Brasil. A crise polftico-institu- cional aberta com a renincia de Janio levard a situa¢Zo a um ponto quase explosivo. A mobilizagao popular nos marcos do cpisédio da Legalidade ¢ a articulacdo da direita civil e militar desembocam num impasse parcial- mente controlado com a implantagéo do Parlamentarismo. Assim, 0 vice- presidente Joao Goulart, considerado pela Casa Branca ¢ pela reacao brasi- leira como “esquerdista”, assume um poder limitado. A margem de manobra de Goulant para implantar a PEI, entretanto, € muito mais estreita. Jango inicia seu governo sob suspeigéo ideoldgica, € as pressGes externas ¢ internas combinadas tornaram-se ainda maiores. Entretanto, seu chanceler, San Tiago Dantas, aprofundou a diplomacia brasileira iniciada com Janio. Segundo Dantas, a PEI visa “a consideragéo exclusiva do interesse do Brasil, visto como um pafs que aspira ao desen- volvimento ¢ & emancipagio econémica e a conciliagao histérica entre o regime democratico representativo e uma reforma social capaz de suprimir a opressio da classe trabalhadora pela classe proprietaria”.® Esta postura expressava a radicalizacao das lutas sociais e as cres- centes dificuldades do regime populista, agora hegemonizado pelo PTB. A diplomacia brasileira promoveu o reatamento com a URSS, apoiou a lenta descolonizagao da Africa Portuguesa, aproximou-se dos grandes pafses latino-americanos (particularmente da Argentina através do Tratado de Uruguaiana), e, sobretudo, negou-se a acompanhar Washington na expulsio de Cuba da OBA. No plano interno, a imposigo de limites & temessa de lucros para o exterior, as encampagées da empresas estran- geiras que nfo modernizavam e ampliavam seus servigos feitas por alguns govemnos estaduais (como 0 Rio Grande do Sul, de Brizola), e o problema do pagamento da divida extema ¢ dos atrasos comerciais, complicavam ainda mais a situagio. No inicio de 1963, com a vitéria do Presidencialismo ¢ 0 fracasso das negociagdes econdmicas Brasil-Estados Unidos, Washington passa a considerar 0 Brasil como “caso perdido”. O fracasso da Bafa dos Porcos fora compensado pela demonstrag#o de forga na crise dos misseis em outubro de 1962, ¢ os EUA partiram para a ofensiva. Apsiam os Estados brasileiros “eficientes” (isto é, governados por pré-americanos), ferindo abertamente 0 monopdlio da Unido sobre as relagdes exteriores, ¢ arti- cularam com a direita brasileira 0 golpe militar. O assassinato de Kennedy intensifica 0 processo: cresce a infiltragdo de agentes, o afluxo de recursos aos golpistas e as pressdes diplomético-financeiras contra o Brasil. ® DANTAS, San Tiago. Politica Externa Independente. Rio de Janeiro: Civilizagio Brasileira, 1962, p. 5. 108 © governo Jango, imerso na crise econdmica ¢ premido pelo ama- durecimento das contradig6es sociais conflitivas, mergulha na paralisia politica, enquanto golpistas avangam a luz do dia. O presidente busca uma conciliag4o impossfvel com Washington, enquanto 0 movimento popular obriga-o a adotar um discurso fortemente reformista. Isto ameagava as prdprias bases capitalistas do projeto populista, deixando 0 governo sem alternativas. Quanto 4 politica exterior, inviabilizado o neutralismo janista sem um minimo de consenso interno, passa a ser influenciada pelas te- ses do chanceler Aratijo Castro, ¢ sofre um nitido refluxo. Quando © golpe acontece, a falta de reagdo do governo torna des- necessdria a Operagao Brother Sam, pela qual a Casa Branca socorreria militarmente os golpistas em caso de guerra civil. O novo governo é imedia- tamente reconhecido pelos EUA, ¢ orienta para esse pais a sua politica externa, abandonando os avangos anteriores. A Doutrina de Seguranca Nacional logo levard o Brasil a romper relagdes com Cuba (1964) e a apoiar militarmente a intervengZo americana, sob cobertura da OEA, na Repiblica Dominicana (1965). O pais reafirma assim sua alianga subordinada em relagdo a Washington. Desta forma, 1964 representou também um golpe contra a Politica Externa Independente e uma intervengdo bem calculada contra 0 projeto econdmico, social ¢ nacional que esta representava. Apesar disso, a PEI revelou-se muito mais precoce que equivocada, pois muitos de seus postulados foram posteriormente retomados pela diplo- macia dos militares em meados dos anos 70 com o chamado “Pragmatismo Responsdvel”.2 A barganha nacionalista ¢, principalmente, a Politica Externa Inde- pendente haviam representado nfo apenas uma diplomacia visando impulsionar o desenvolvimento industrial, mas continham implicitamente uma concepgio de Brasil Poténcia. Esta estratégia, cujos contornos emer- gem em algumas obras do ISEB e na politica e discurso diplomético, tinha como pressuposto a integragéo de amplos setores sociais no projeto de desenvolvimento. Por outro lado, a industrializagdo, nos marcos Pressu- postos, sé poderia ser lograda se o Brasil mantivesse certa autonomia frente aos Estados Unidos. Ocorre que a radicalizagao politico-social interna que marcou a crise do populismo, combinada com a busca de autonomia brasileira perante os Estados Unidos, justamente no momento em que esse pafs procurava ° CRUZ, José Humberto de Brito. “Aspectos da evolugdo diplomética brasileira no perfodo da Politica Externa Independente (1961-1964)", in Cadernos do IPRI, n® 2, Brasilia: 1989, pp. 65-78. © FONSECA Jr., Embaixador Gelson, Mundos diversos, argumentos afins: notas sobre aspectos doutrinérios da Politica Externa Independente e do Pragmatismo Responsével, Brasflia: s/ed., s/d. (mimeo). 109 conter o desgaste de sua hegemonia mundial, criou uma situagio in- sustentavel para o regime brasileiro e sua diplomacia, E 0 momento do contra-ataque do projeto da ESG. Q alinhamento automético com Wa- shington, efetuado pela Doutrina de Seguranga Nacional apés 1964 combinou-se com a conten¢o do movimento popular ¢ das tendéncias “esquerdistas” da estratégia anterior. Nao se tratava apenas do “sa- neamento” e abertura econémicas, mas da “restauragdo da ordem”. Essa tarefa abarcou especialmente 0 governo Castelo Branco, mas também Costa ¢ Silva ¢ Médici. Entretanto, esses dois ultimos, em varios aspectos, resga- tam a idéia de projeto nacional e mesmo de Brasil-Poténcia. Depois, portan- to, de um breve hiato, a multilateralizagaio das relagdes internacionais brasileiras € retomada. © “Pragmatismo Responsdvel” de Geisel, bem como a diplomacia dos governos Figueiredo ¢ Sarey, vio ainda mais longe, voltando a buscar para o pais uma maior margem de manobra no plano internacional, uma politica exterior realmente de dimensdes mundiais e, sobretudo, voltada a um projeto de desenvolvimento econémico e fortalecimento nacional. A novidade é o carater conservador ¢ excludente deste fortale- cimento nacional, bem como o incremento da capacidade auténoma de defesa. Por isso, 0 discurso do Pragmatismo Responsdvel sera menos “politizado” que o da Politica Externa Independente, embora as duas di- plomacias sejam aparentadas. Pelas razées acima apontadas, a Politica Externa Independente, bem como a barganha nacionalista que lhe abriu caminho, representam um momento decisivo na histéria da politica exterior brasileira, Nao se trata, pois, de uma experiéncia perdida, tanto pelos scus desdobramentos pos- teriores, quanto, sobretudo, pelos impasses atuais das relagdes inter- nacionais brasileiras. Quanto ao primeiro aspecto, trata-se da continnidade © aprofundamento da multilateralizagdo das relagdes externas do Brasil num cenério mundial em transformacio, O segundo refere-se ao neoli- beralismo que conduz ao esvaziamento de qualquer projeto nacional no p6s-Guerra Fria. Tero se esgotado as possibilidades da multilateralizago das nossas relagdes internacionais, ou estaremos apenas vivendo um novo hiato na evolugdo de nossa politica externa? 0 RESUMO A politica externa brasileira do periodo populista, apesar de marcada por avangos ¢ recuos, vin- culou-se progressivamente as necessi- dades do projeto de desenvolvimento industrial por substituigdo de impor- tages. A barganka nacionalista dos anos 50 e a Politica Externa Inde- pendente do principio da década de 60 buscaram uma autonomia relativa diante dos Estados Unidos, dando inicio @ multilateralizagdo das rela- Ges exteriores do Brasil. Mas a crise e os conflitos sociais internos, bem como as dificuldades do contexto internacional conduziram a interrup- (do temporaria desse projeto diplo- matico em 1964. ABSTRACT The Brazilian foreing policy of the populist period, in spite of its comings and goings, was linked pro- gressively to the needs of the industrial development project. The nationalist bargain of the 50's and the Inde- pendent Foreing Policy of the early 60's looked for relative autonomy con- cerning to U.S.A., begining the multi- lateralization of the Brazilian foreing affairs. But the crisis and the internal and social conflicts, as well as the difficulties of the international context lead to a temporary interuption of this diplomatic project in 1964, 11

You might also like