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“Thon ale’ Peter Sloterdijk ira e tempo ensalo politico-psicolégico tradugso Marco Casanova \ Talo original: Zor wnd Zett Copyright © Suhrkamp Verlag Frankfort am Main 2006 ‘Copyright © EdicoraEstagio Liberdade, 2012, par esta tadugio Propargiode texto Angel Bojadsen Revisio — Huendel Vian, Perrto Rissa e Pula Nogueira Asistnca editorial Tomoe Moscizumi eFibio Bonilla Projo grifco —Edilberca Fernando Vera Composiio BD. Miranda ‘Imagem decepa — Lyonel Feininge, 1871-1956. grea cidade (eae), 1927 (Col. Deutsche Bank AG. Foro: Latinstock/ Akg Images As notas numeradas sio do autor; as notas do tradutor extio assinaladas com asterisco e N.T. (CIP-BRASIL. CATALOGAGKO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DELIVROS. RJ S643: Slotrile Pee 1947- lee tempo seni poi peli Pat Sei: a ode Marco Cana Sto Pato Eaio Libera 2012. 30pm “Tradugo de: Zor und Zee ISBN 978-85.7448-195-1 1. ta 2 I~ Aspects religion ~ Crise, 3. fea Aspect elgooe~ Jodaime, 4 Cacia polities ~ Foote 5. Capleiame~ Floss, LTisua, 736 cpp. 1s247 couasess2 ‘dos o direitos reseroades 8 Editors Exagio Libendade Leda, ‘Rua Dona Elisa, 16 ['01155-030 | Sio Palo-SP ‘Tels (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239 wenwestacaoiberdadecombe Sumario Introdugio A primeira palavra da Europa (© mundo timético: orgulho e guerra Para além do erotismo ‘Teoria dos conjuntos do orgulho Premissas gregas de lutas modernas ~a doutrina do thymds instante de Nietzsche CCapitalismo consumado: uma economia da generosidade A siuacio pés-comunista 1, Neg6cios da ira em geral Vinganga narrada agressor como doador Irae tempo: a simples explosio Forma projetiva da ira: a vinganga Forma bancéria da ira: evolugio ( poder descomunal do negativo 2. © Deus irado: 0 caminko para a descoberta do banco metafisico da vinganga Prelidio: a vinganga de Deus contra o mundo secular Ore indo ‘Ainterrupgio da vinganga ‘Acurulacéo original da ira Genealogia do militantismo ‘A massa de ira autoagressiva Ira hiperbélica: a apocaliptica judaicae cristé Recepticulos daira, depésitos infernais: sobre a metafisica dos depésitos finais de residuos Por que a busca por fundamentos para a ira de Deus se equivoca — paralogismos cristios Blogio do purgatério u 22 25 32 36 39 43 52. cy 70 3 8 9 95 105, 108 nm us ng 122 126 131 139 A primeira palavra da Europa No verso de aberrura da Iiada, comego da tradicio europela, emerge « palavra “ira”, de uma maneira fatal e festva, como um apelo que néo admite nenhuma oposigio. Tal como condiz a um objeto frasal plena- ‘mente constituido, esse substantivo encontra-se no acusativo: “A ira canta, 6 deusa, de Aquiles, filho de Peleu.” © fato de a palavra aparecer ‘em primeiro lugar expressa de maneira audivel um pathos elevado. Que tipo de relagio com a ira se sugere aos ouvintes no mégico prelidio da cangio heroics? A ira, com a qual tudo comesou no antigo Ocidente — de que maneira 0 poeta quer lhe dar vou? Seri que ele a descreverd como uma forca violenta que enreda homens pacificos em acontecimen- tos tenebrosos? Serd que devemos domar, reftear,reprimir este afeto, de todos 0 mais descomunal* ¢ © mais humano? Seré que sempre fugimos dele rapidamente, todas as vezes nas quais ele se manifesta nos outros ¢ se faz sentir em nés mesmos? Serd que devemos sactificd-lo incessantemente A compreensio neutralizada, a uma melhor compreensio? Como jé podemos notar, estas sio questées contemporineas que vio muito além de nosso objeto — se € que este objeto se chama a ira de Aquiles. O mundo antigo tinha aberto seus préprios caminhos em rela- ‘fo 2 ira, caminhos que néo podem mais ser os caminhos dos modernos. Enquanco estes apelam para os terapeutas ou digitam o nimero da poli- cia, 08 sfbios de outrora ditigiam-se'2o mundo superior. A fim de deixar que ressoasse 2 primeira palavra da Europa, a deusa é conclamada por Homero de acordo com um antigo hébito dos rapsodos e seguindo 0 raciocinio de que © melhor para aquele que se propée algo imodesto é ‘medonko" _Bho" Seguindo seu sentido etimolpico, wuheilich designaltealmenteaquilo que ‘io (wr) pertence A nosa terra natal (Hei), aquil diane do qual nfo nos entimos ‘em casa Poriaso,o ermo também abarca de maneia derlvada o significado de algo desconhecid, Kigubre« inguierance, assim como de algo ingente, ggantesco. Para presevara iqueza deste ermo em sua dimensfo mais original, exolhemos paves *escomunal’, porque ela ambém descreve a experiénciade um confronto com algo forado.comum eabarcaalguas dos matizessignficativos do original. (N.T] Ira remo 2 ‘comesar com bastante modéstia, Néo sou eu, Homero, que posso asegurar to de meu canto, Cana signa deni emposimesorl abs store para que forsas superiores possam se anunciar, Se minha apresentagéo obti- ver sucesso e autoridade, as musas€ que terio sido responsiveis e, para além das musas — quem sabe — 0 deus, a prépria deusa. Seo canto se dissipa sem ser ouvido, ¢ porque ot poderes mais elevados nio estavam interessados por ele. No caso de Homero, o julgamento divino foi exposto de maneira clara. No comeso estava a palavra “ra” e a palavra foi coroada de éxito, Menin aiede, thea, Peleiadeo Achiles Onloumenen, he myri Achaioc alge etek. Aira canta, 6 deusa, do filho de Peleu, Aquiles, airs portadora de desgrasa, que mil softimentos zos Aqueus iow muitas imponentes almas para baixo até 0 Hades arrojou De maneira inconfundivel os versos invocatérios da Mada prescrevem cde que modo bs gregos, 0 povo modelo para a civilizacio ocidental, devern ir go encontro dairrupyéo daira na vida dos mortais — com o espanto que € apropriado a uma aparigéo. O primeiro apelo de nossa tradigéo cultural —serd que see “noss snda vido? —enunciao pedo: que © mundo superior venba apoiar o canto da ira de um guerrero singular. O que notre! nee xo fo de aque que cana no tere tent enna arenuapio, Desde as primers linas, ele renal a org instaradora de lesgragas que & prépria a ira heroica: onde ela se manifesta, os desferides por todos os lados. Os préprios gregos tém até ee cals 4 softer com isso do que 08 troianos. Logo no inicio da guerra, a ira de Aquiles s¢ volta contra os seus, x6 voltando a se alinhar com o front prego ppouco antes da bacalha dexisiva. O com dos primeitos verso apresenta pre viamente o programa: as almas dos herbs vencidos — nesse momento cha- ‘mados imponentes, mas em geral representados como fancasmas sombrios — descem para o Hades, enquanio seus corpos inanimados, “eles mes- ‘mos’, como diz Homero, sio devorados a céu aberto por pissaros e cies, (Com uma simetria euférica, « voz do cantador desliza sobre 0 hori- onte da existtncia, que fornece substincia semelhante a esse tipo de relato. Durante a época clistica, ouvir essa vor sigaificava 0 mesmo que ser grego. Onde a apreendemos, algo se torna imediatamente compreen- sivel: guerra ¢ paz sio nomes para fases de um contexto vital, onde Irropugio 6 pleno emprego da morte nunca esti em questio. O encontro precoce dda morte com o herbi também fax parte das mensagens do canto hervico. Se a expressio “glorificagdo da violéncia” teve algum dia um sentido, ela cencontraria 0 seu lugar nesse introito ao mais antigo documento da cul- ‘ura europeia. No entanto, ela designaria praticamente o contririo daquilo {que temos em vista no contexto atual, inevitavelmente desabonador. De- ‘cantar a ira significa torné-la digna de pensamento, mas aquilo que é digno de pensamento esté préximo do impressionante e da elevada valorizagio duradoura; sim, esd precisamente préximo do bem. Essas avaiagbes so tio intensamente opostas aos modos de pensar e sentir dos modernos que sem diivida precisamos admitir: um acesso no falseado & compreensio homé- rica da ira em itima insedncia permaneceré para sempre vedado para nés. Somente aproximasées indireras nos auxiliam a prosseguir. Com- preendemos, contudo, que néo se trata aqui da ira divina, da qual falam as fontes biblicas. Nao se trata da indignagéo do profeta em face do ato abomindvel e contrério a Deus; tampouco da ira de Moisés, que des- 116i as cébuas enquanto o povo se satisfaz com o bezerro; nem do dio Janguido dos autores dos Salmos, que nfo podem esperar pelo dia em que 0 justo banhari seus pés no sangue dos pecadores.' A ira de Aquiles também tem pouco em comum com a ira de Javé, do antigo Deus das tempestades e dos desertos, um Deus ainda nada sublime que, na posigéo de “Deus exbravejador”, coloca-se como guia A frente do povo em éxodo, aniquilando seus perseguidores com temporais e torrentes.* No entanto, também nfo se tem em vista os ataques profanos de ira que acometem os hhomens, que os sofistas tardios e as doutrinas filos6ficas moras tinham em mente quando pregavam o ideal do autocontrole. ‘A verdade é que Homero se movimenta num mundo repleto de um beliciemo feliz ¢ sem limites. Por mais sombrios que possam ser os hori- zontes desse universo forjado a partir de guerras e mortes, o tom funda- mental da invocagio é determinado pelo orgulho de poder testemunhar tais cenas ¢ tais destinos. Sua visibilidade luminosa reconcilia-nos com a dureza dos fatos — & isso que Nietzsche tinha designado com o termo artstico “apolineo’. Nenhum homem moderno est em condigbes de 1, Salmos 5811, 2. CE Ralf Miggelbrink, Der zomige Gots die Bedentung einer ansbuigen bible Tradition (0 Deus irado: 0 significado de uma tradigdo bibica escandalos), Dar smseadt, 2002, p13 13

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