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Introdugao 1. Aessncia da filosofia A teoria do conhecimento é uma disci filoséfica. Para determinar seu lugar no conjunto da filosofia, devemos. partir de uma definigao da esséncia da filosofia, Como che- gar, porém, a essa definigdo? Que método devemos em- pregar para determinar a esséncia da filosofia? Primeiramente, poderiamos tentar obter uma defini- cio da esséncia da filosofia a partir do significado da pa- lavra. A palavra “filosofia” provém da lingua grega e sig- nifica amor & sabedoria ou, em outras palavras, aspirago ao saber, ao conhecimento. E evidente, porém, que esse significado etimol6gico da palavra “filosofia” é excessi- vamente genérico para que dele derivemos uma definigao da esséncia, Por isso, devemos escolher outro método. Para encontrar uma definigdo exaustiva, poderiamos pensar em reunir e comparar entre si as diferentes defini- gies da esséncia da filosofia que os filésofos deram a0 longo da historia. Mas por si s6 esse procedimento tam- bém niio conduz ao nosso objetivo, pois as definigdes da esséncia que encontramos na histéria da filosofia so tio divergentes que parece completamente impossivel obter-se, a partir delas, uma definigdo uniforme. Compare-se, por exemplo, a definicao que Platéo e Aristételes dio da filo- sofia, considerando-a pura e simplesmente como ciéncia, 4 TEORIA DO CONHECIMENTO com a definigao dos estdicos e epicuristas, para quem a filosofia significa, respectivamente, aspiragio a excelén- cia e 8 felicidade. Ou compare-se a definigao de Filosofia dada por Wolff, na Idade Moderna, como scientia possibi- lium, quatenus esse possunt com a que Uberweg nos di em seu conhecido Eshogo da historia da filosofia, segun- do a qual a filosofia é “a ciéncia dos principios”. Tais divergéncias fazem com que a idéia de encontrar uma de- finigdo da esséncia da filosofia por esse caminho parega va. Sé chegaremos a tal definigdo se nos voltarmos para o proprio fato historico da filosofia. Esse nos fornece 0 material com que podemos obter o conceito da esséncia da filosofia. Foi Dilthey, em seu tratado sobre 4 esséncia da filosofia, quem empregou esse método pela primeira vez. Na seqiiéncia, estaremos acompanhando Dilthey livre- mente e procurando, ao mesmo tempo, levar seus pensa- mentos mais adiante. Aparentemente, porém, esse procedimento deve fa- har devido a uma dificuldade de principio: para que pos- samos falar de um fato historico da filosofia, ja devemos, assim parece, possuir um conceito de filosofia. Eu ja devo saber 0 que é filosofia caso pretenda obter seu con- ceito a partir dos fatos. Portanto, na determinacao da es- séncia da filosofia, tal como queremos levi-la a efeito, parece haver um circulo, e todo o procedimento parece falhar devido a essa dificuldade. Mas nao é assim. Essa dificuldade é removida se no partimos de um conceito determinado de filosofia, mas da representacao geral que qualquer pessoa culta tem dela. Como observa Dilthey, “deve-se primeiramente buscar um contetido comum nos sistemas em que se forma a repre- sentagdo geral da filosofia”. E, de fato, tais sistemas existem. Quanto a muitas for- mas de pensamento, 6 duvidoso consideri-las como filo- inTRoDUGAO 5 sofia; mas no caso de numerosos outros sistemas, cala-se toda divida. Desde que se tornaram conhecidos, a huma- nidade sempre os considerou como produtos espirituais filoséficos e enxergou neles, desde o primeiro momento, a esséncia da filosofia. Tais sto os sistemas de Plato Aristételes, Descartes ¢ Leibniz, Kant ¢ Hegel. Quando nos aprofundamos neles, deparantos com certas caracte~ risticas essenciais comuns, apesar de todas as diferencas que apresentam. Encontramos uma atragio pelo todo, um_ direcionamento para a totalidade dos objetos. Contraria- mente a atitude do especialista, cuja visio esta sempre di- rigida a um recorte na totalidade dos objetos de conheci- ‘mento, temos aqui um ponto de vista universal, abrangendo a totalidade das coisas. Esses sistemas, portanto, pos- suem 0 cariter da universalidade, A essa caracteristica essencial comum soma-se outra. A atitude do filésofo com relagao a totalidade dos objetos & uma atitude inte- lectual, uma atitude do pensamento. Cabe ao fildsofo conhecer, saber. O filésofo é um conhecedor por natureza. Aparecem, portanto, as seguintes marcas da esséncia de toda filosofia: 1. a atitude em relagdo a totalidade dos objetos; 2. 0 carater racional, cognoscitivo dessa atitude Com isso, obtivemos um conceito da esséncia da filo- sofia que ainda é, decerto, puramente formal. Aleanga- remos um enriquecimento do conteiido desse conceito considerando os diversos sistemas nao mais isoladamen- te, mas em seu contexto histérico. Trata-se, portanto, de aprender em suas principais caracteristicas a totalidade do desenvolvimento histérico da filosofia. A partir desse posto de observacdo, poderemos compreender também as definigdes contraditorias da esséncia da filosofia a que ha pouco nos referimos. Nao sem justica, Sécrates ¢ chamado de criador da filosofia ocidental. Nele, a atitude tedrica do espirito gre- 6 TEORIA DO CONHECIMENTO go manifesta-se claramente. Todos os seus pensamentos ¢ cnergias estio voltados para a edificagdo da vida hurnana sobre a base da reflexio do saber. Ele tenta fazer com que todo agit humano seja um agir consciente, um saber, empenha-se em elevar a vida, com todos 0s seus contet dos, ao nivel da consciéncia filosofica. Essa tendéncia alcangara desenvolvimento pleno em Plato, seu maiot discipulo. Em Platdo, a consciéncia filoséfica estende-se a totalidade do contetido da consciéncia humana; diri- ge-se néio apenas aos objetos priticos, aos valores e virtu- des, como ocorria quase sempre em Sécrafes, mas tam- bém ao conhecimento cientifico. Tanto 0 agir do estadista quanto 0 do poeta ou do cientista tornam-se igualmente objetos da reflexdo filoséfica. Com isso, a filosofia apare- ce em Sécrates e mais ainda em Platdo como auto-reflexio do espirito a respeito de seus mais altos valores tedricos e priticos, os valores do verdadeiro, do bom e do belo. A filosofia de Aristételes mostra outra fisionomia, Seu espirito esta principalmente concentrado no conheci ico € em seu objeto, o ser. No seu nicleo ‘uma ciéncia universal do ser: a “filosofia primeira” ou, como seria chamada mais tarde, a metafisica. Ela nos in- forma sobre a esséncia das coisas, a contingéncia ¢ os, principios iiltimos da realidade. Se a filosofia socrati- co-platénica pode ser caracterizada como uma visdo de si do espirito, devemos dizer que, em Aristéreles, a filosofia aparece antes de mais nada como visdo de mundo. Na época pés-aristotélica, com 0s estdicos e epicu- ristas, a filosofia torna-se novamente auto-reflexaio do espirito. Ocorre um estreitamento da concepgao socrat co-platénica, na medida em que apenas as questdes prt cas entram no campo visual da consciéncia filoséfica. A filosofia aparece, no dizer de Cicero, como “mestra da vida, inventora das leis, instrutora de toda virtude”, Em poucas palavras, transforma-se em filosofia de vida. InTRoDUGAO 1 ‘No comego da Idade Moderna, a filosofia envereda novamente pelo caminho da concepgao aristotélica. Os sistemas de Descartes, Espinosa e Leibniz mostram ‘mesma orientagio no sentido do conhecimento objetivo do mundo tal como acontecera com os estagiritas. Nesses sistemas, a filosofia aparece expressamente como visdo de mundo. Em Kant, ao contrario, € 0 tipo platénico que ira reviver. A filosofia assume-novamente o cardter de auto-reflexio, de visio de si do espirito, Ela aparece, antes de mais nada, como teoria do conhecimento, como fundamentagao critica do conhecimento cientifico. Nao se limita, porém, a0 dominio teérico, mas avanga, a partir dele, para uma fundamentagao critica dos valores em sua totalidade. Além da Critica da razéo pura, surgem a Critica da razao pratica, que trata do ambito ético dos valores, ¢ a Critica do juizo, que toma os valores estéticos como objeto de uma investigagao critica. Também em Kant, portanto, a filosofia aparece como auto-reflexio univer- sal do espirito, como reflexdo da pessoa culta a respeito de todo 0 seu compogtamento valorativo. No século XIX, 6 tipo aristotélico de filosofia revive nos sistemas do idealismo alemio, particularmente em Schelling e Hegel. A forma unilateral e exaltada sob a {qual esse tipo aparece ocasiona um movimento contrério igualmente unilateral. Ele conduz, por um lado, a uma desvalorizagao total da filosofia — como a que esti pre- sente no materialismo e no positivismo ~ e, por outro lado, a uma renovagao do tipo kantiano, como a que ocor- reu no neokantismo. A unilateralidade dessa renovagio esti em que sdo eliminados todos os fatores (inconfundi- ‘velmente presentes em Kant) relacionados ao contetido € visto de mundo, e a filosofia assume um cardter pura- mente formal, metodolégico. F latente, nesse modo de en- carar as coisas, o impulso para um novo movimento do 8 TEORIA DO CONHECIMENTO pensamento filoséfico que, contra o formalismo e 0 me- todologismo dos neokantianos, busca os contetidos e uma visio de mundo e representa, assim, uma renovagio do tipo aristotélico. Estamos ainda em meio a esse movi- mento. Ele conduziu, por um lado, 4 busca de uma meta- fisica indutiva, como a empreendida por Hartmann, Wundt € Driesch e, por outro lado, a uma filosofia da intuigdo, ‘como a que encontramos em Bergson e, sob uma outra forma, na moderna fenomenologia de Husser! e Scheler. Este panorama do desenvolvimento do pensamento filoséfico em seu conjunto conduziu-nos a dois outros elementos do conceito essencial de filosofia. Chamamos um dos fatores “visio de si”; ao outro, chamamos “visio de mundo”. Como a historia nos mostrou, existe entre es- ses dois elementos uma tensio peculiar, Mal aparece um deles, 0 outro emerge com mais forga; quanto mais um avanga, mais outro retrocede. Toda a histéria da filoso- fia aparece, enfim, como um movimento pendular entre esses dois pontos. Isso prova, porém, que esses dois ele- ‘mentos pertencem ao conceito essencial. Nao se trata de um ou-isto-ou-aquilo, mas de um tanto-isto-quanto-aquilo. A filosofia ¢ ambas as coisas: visio de sie visio de mundo. Para chegarmos a uma completa definigao da esséncia, devemos estabelecer agora uma ligagio entre os dois ele- mentos que acabamos de obter e os dois elementos for- mais anteriormente apresentados. O enfoque da totalida- de dos objetos ¢ o cardter cognoscitivo desse enfoque re- velaram-se ha pouco como as duas principais caracteristi- cas da filosofia. Devido aos dois novos elementos que acabamos de obter, a primeira dessas duas marcas experi- ‘menta agora uma diferenciagao. A totalidade dos objetos pode referir-se tanto ao mundo exterior quanto ao mundo interior, tanto a0 macrocosmo quanto ao microcosma-Se a consciéncia filoséfica dirige-se a0 macrocosmo, trata- intropucao 9 ‘mos de filosofia como visto de mundo. Se ¢ 0 microcos- ‘mo que constitui o objeto do enfoque filos6fico, surge 0 segundo tipo de filosofia: a filosofia como visao de si do espirito. Os dois elementos essenciais que acabamos de obter ajustam-se, assim, perfeitamente, ao conceito es- sencial formal anteriormente apresentado, na medida em que vém completi-Io ¢ corrigi-lo. Podemos agora determinar a esséncia da filosofia dizendo: a filosofia & auto-reflexdo do espirito sobre seu comportamento valorativo tedrico e pratico e, igualmen- te, aspiragdo a uma inteligéncia das conexées tiltimas das coisas, a uma visdo racional de mundo. Podemos, porém, estabelecer uma liga¢do mais profunda entre esses dois elementos essenciais. Como Platdo ¢ Kant nos mostram, existe entre ambos uma relag&io de meio e fim. A auto- reflexdo do espirito € meio para se atingir uma imagem de mundo, uma visio metafisica de mundo. Em conelu- sto, portanto; pédemos dizer que a filosofia é a téntativa do espirito humano de atingir uma visdo de mundo, me- diante a auto-reflexdo sobre suas fungdes valorativas teé- ricas epriticas. —- Obtivemos essa definigio da esséncia da Filosofia mediante um procedimento indutivo. Agora, porém, po- demos completar esse procedimento indutivo com um dedutivo. Este consiste em situat a filosofia no contexto das funcdes superiores do espirito, indicar o lugar que ela ‘ocupa no sistema da cultura como um todo. O conjunto das fungGes culturais langa uma nova luz sobre 0 conceito es- sencial de filosofia que obtivemos. Entre as fungdes superiores do espirito e da cultura incluem-se a ciéncia, a arte, a religido e a moral. Quando relacionamos a filosofia a essas fungdes, é da moral que ela mais parece distanciar-se. A moral diz respeito ao lado pratico da existéncia humana, pois seu sujeito ¢ a vonta~ 10 TEORIA DO CONHECIMENTO de. A filosofia, por sua vez, pertence completamente a0 lado teérico do espirito humano. Por isso, ela parece estar nas cercanias da ciéncia. E, de fato, existe uma afinidade entre filosofia e ciéncia, na medida em que esto basea- das na mesma funcao do espirito humano — o pensamento. Conforme ja assinalamos, porém, ambas distinguem-se por seu objeto. Enquanto as ciéncias particulares tomam. por objeto uma parte da realidade, a filosofia dirige-se & totalidade do real. Nao obstante, poderiamos pensar em aplicar 0 conceito de ciéncia 4 filosofia. Distinguiriamos, centio, entre ciéncia particular € universal, chamando a iiltima de filosofia. Nao é correto, porém, subordinar a fi- losofia a ciéncia, tratando-a como se fosse um tipo deter- minado de ciéncia, pois em virtude de seu objeto a filoso- fia ndo se distingue da ciéncia por graus, mas essencial- mente. A totalidade do ente & mais do que uma soma dos diferentes dominios parciais da realidade que constituem © objeto das ciéncias particulares. Frente a esses domi- nios parciais, a totalidade é um objeto novo, de outro tipo. Por isso, ela pressupde também uma nova fungdo por parte do sujeito. O conhecimento filoséfico, dirigido & totalidade das coisas, é essencialmente distinto do conhe- cimento das ciéncias particulares, que vai ao encontro de dominios parciais da realidade. Entre filosofia e ciéncia, portanto, ha diferenga nao apenas sob 0 aspecto objetivo, mas também sob o aspecto subjetivo. E como se dé a relagdo da filosofia com os dois do- minios restantes da cultura, a arte ea religido? A resposta deve ser: existe uma profunda afinidade entre esses trés dominios culturais. Eles estio ligados por uma amarra comum, que é seu objeto. Com efeito, sio 0s mesmos enig- mas do mundo e da vida que esto colocados diante da poesia, da religiao e da filosofia. No fundo, as trés querem solucionar esses enigmas, querem fornecer uma interpre- ivrropugao ul tagio da realidade, uma visio de mundo. O que as diferen- cia é a origem dessa visio de mundo. Enquanto a visio filoséfica de mundo brota do conhecimento racional, a ori- gem da visio religiosa de mundo esté na fé religiosa. 0 principio do qual ela procede e que determina seu espirito € a vivéncia religiosa dos valores, a experiéncia de Deus. Enquanto a visio religiosa de mundo depende decisiva- mente de fatores subjetivos, a visio filoséfica de mundo reclama validade universal, demonstrabilidade racional. O que da acesso a primeira nao é 0 conhecimento univer- salmente valido, mas a experiéncia pessoal, a vivéncia re- ligiosa. Existe pois uma diferenga essencial entre a visio de mundo religiosa e a filoséfica e, conseqiientemente, entre religido e filosofia. A filosofia é também essencialmente distinta da arte. A interpretagdo do mundo feita pelo artista provém tio pouco do pensamento puro quanto a concepgao de mundo do homem religioso. Também ela deve sua origem muito mais a vivéncia e a intuigdo, O verdadeiro artista nao pro- dduz sua obra com o intelecto, mas a partir da totalidade das forgas espirituais. A essa diferenga nas fungdes subje- tivas acresce uma distingao no aspecto objetivo. O verda- deiro artista ndo esta, como o filésofo, diretamente volta- do A totalidade do ser. Seu espirito dirige-se, antes de mais nada, a um ser ea um acontecer concretos. A medida que 0s representa, eleva este ser e este acontecer concretos 20, nivel do mundo da aparéncia, do irreal. O estranho € que, nesse acontecer irreal, o sentido do acontecer real se ma- nifesta; no acontecer particular apresentam-se o sentido e ‘valor do acontecer do mundo. Assim, na medida em que interpreta um ser ou acontecer particular, 0 verdadeiro artista nos da indiretamente uma interpretagao da totali- dade do mundo e da vida. Se tentarmos agora determinar 0 lugar da filosofia no sistema da cultura, deveremos dizer o seguinte. A filo- 12 TEORIA DO CONHECIMENTO sofia tem uma face voltada para a religido e para a arte e outra face voltada para a ciéncia. Com a religio e a arte, tem em comum o olhar dirigido a totalidade do real; com aciéncia, tem em comum o carder teérico, No sistema da cultura, portanto, a filosofia tem seu lugar entre a ciéncia, de um lado, ¢ a religido e a arte, de outro. Dentre as ulti- mas, é da religido que a filosofia est mais préxima, na medida em que também a religido dirige-se 4 totalidade do ser e tenta interpretar essa totalidade. ‘Com isso, completamos nosso procedimento induti- vo com um dedutivo, Inserindo a filosofia na totalidade da cultura, relacionando-a a dominios culturais particula- res, 0 conceito essencial de filosofia que obtivemos indu- tivamente foi confirmado e as caracteristicas particulares foram ressaltadas de modo ainda mais nitido. 2. A posigao da teoria do conhecimento no sistema da filosofia Com essa definic&o, surge imediatamente uma divisio da filosofia em suas diferentes disciplinas. Como vimos, a filosofia € antes de mais nada auto-teflexdo do espirito sobre seu comportamento valorativo tedrico e pratico. En- {quanto reflexiio sobre o comportamento teérico, sobre aqui Jo que chamamos de ciéncia, a filosofia ¢ teoria do conheci- ‘mento cientifico, teoria da ciéncia. Enquanto reflexio so- bre o comportamento prtico do espirito, sobre 0 que cha- ‘mamas de valor no sentido estrito, a filosofia é teoria do valor. A auto-reflexdo do espirito, porém, néo é fim em si, ‘mas meio para atingir uma viséo de mundo. Assim, em ter- ceiro lugar, a filosofia é teoria da visiio de mundo. O campo da filosofia divide-se portanto em trés partes: teoria da cién- cia, teoria do valor e teoria da visdo de mundo. inTRopuGAO B Uma ulterior divisdo dessas partes fornece as princi- pais disciplinas da filosofia. A teoria da visio de mundo & decomposta em metafisica (que, por sua vez, divide-se em metafisica da natureza e metafisica do espirito) ¢ em teoria da visito de mundo em sentido estrito, que investi- ‘ga as questées referentes a Deus, a liberdade e a imortali- dade. A teoria do valor divide-se, segundo os diferentes tipos de valor, nas teorias dos valores éticos, estéticos ¢ religiosos. Obtemos, assim, trés disciplinas: ética, estéti- cae filosofia da religido. A teoria da ciéncia, finalmente, € decomposta em teoria formal e doutrina material da ciéncia, A primeira, chamamos de légica; a tiltima, de teo- ria do conhecimento. ‘Assinalamos, assim, o lugar que a teoria do conheei- ‘mento ocupa no conjunto da filosofia. Segundo o que foi ito, ela é uma parte da teoria da ciéncia, Podemos defi- ni-la como teoria material da ciéncia ou como teoria dos principios materiais do conhecimento humano. Enquanto a légica investiga os principios formais do conhecimento, as formas e leis gerais do pensamento humano, a teoria do conhecimento dirige-se aos pressupostos materiais mais sgerais do conhecimento cientifico. Enquanto a primeira prescinde da referéncia do pensamento aos objetos e con- sidera o pensamento puramente em si, a segunda tem os olhos fixos justamente na referéncia objetiva do pensa- mento, na sua relagdo com os objetos. Enquanto a Idgica pergunta a respeito da correcdo formal do pensamento, sobre sua concordancia consigo mesmo, com suas préprias formas e leis, a teoria do conhecimento pergunta sobre a verdade do pensamento, sobre sua concordincia com 0 objeto. Também podemos, por isso, definir a teoria do co- nhecimento como a teoria do pensamento verdadeiro, por ‘oposigio a légica, definida como a teoria do pensamento correto. Torna-se claro, assim, o significado fundamental 4 TBORIA DO CONHECIMENTO da teoria do conhecimento para todo o campo da filoso- fia. E com todo 0 direito que ela sera chamada de philo- sophia fundamentalis, ciéncia filos6fica fundamental. Costuma-se dividir a teoria do conhecimento em geral € especial, A primeira investiga a relacdo do pensamento com o objeto em geral. A segunda toma como objeto de ‘uma investigacdo critica os axiomas e conceitos funda- mentais em que se exprime a referéncia de nosso pensa- ‘mento aos objetos. Comegaremos, naturalmente, com a apresentagio da teoria geral do conhecimento. Antes, de- tenhamos brevemente nosso olhar sobre a histéria da teo- ria do conhecimento. 3. A histéria da teoria do conhecimento Como disciplina filos6fica independente, ndo se pode falar de uma teoria do conhecimento nem na Antiguidade nem na Idade Média. Certamente, encontraremos nume- rosas reflexes epistemolégicas na filosofia antiga, espe- cialmente em Plado ¢ em Aristételes. So, porém, inves- tigagdes epistemolégicas que ainda esto completamente embutidas em contextos psicolégicos ¢ metafisicos. E. 6 na [dade Moderna que a teoria do conhecimento aparece ‘como disciplina independente, O filésofo inglés daha Lacke deve ser considerado seu fundador. Sua principal obra, An Essay concerning Human Understanding, publicada em 1690, trata de modo sistemético as questdes referen- tes a origem, a esséncia e & certeza do conhecimento hu- ‘mano. No livro Nouveaux essais sur I'entendement humain, Publicado postumamente em 1765, Leibniz tentou refutar © ponto de vista epistemolégico de Locke. Na Inglaterra, George Berkeley, em sua obra A Treatise concerning the ivTropucao 1s Principles of Human Knowledge (1710), ¢ David Hume, em sua obra principal, Treatise on Human Nature (1739/40) e em outra de menor dimensao, o Enquiry con- cerning Human Understanding (1748), continuaram edi- ficando sobre a base dos resultados obtidos por Locke. Na filosofia continental,-tmmanuel Kant aparece como 0 verdadeiro fundador da teoria do conhecimento. Em sua principal obra epistemolégica, a Critica da razio pura (1781), tentou fornecer uma fundamentagao critica a0 conhecimento das ciéncias naturais. O método que usou foi chamado por ele proprio de “método transcen- dental”. Esse método nao investiga a génese psicolégica do conhecimento, mas sua validade ligica. Nao pergunta, & maneira do método psicolégico, como surge 0 conheci- mento, mas sim como é possivel 0 conhecimento, sobre quais fundamentos, sobre quais pressupostos ele repousa. Em virtude desse método, a filosofia de Kant também € chamada abreviadamente de transcendentalismo ou, ainda, de criticismo. Em Fichte, 0 sucessor imediato de Kant, a teoria do conhecimento aparece pela primeira vez intitulada “teo- ria da ciéneia”. Mas jé apresenta aquele amilgama de teoria do conhecimento e metafisica que ganhara livre ‘curso em Schelling e Hegel e que também estara inconfuun- divelmente presente em Schopenhauer ¢ em Hartmann. Em contraposigao a esses tratamentos metafisicos da teo- ria do conhecimento, 0 neokantismo, surgido na década de 1860, esforga-se por separar nitidamente o questiona- mento metafisico do epistemolégico. No entanto, o pro- blema epistemolégico foi tio vigorosamente empurrado para o primeiro plano que a filosofia corria 0 perigo de reduzir-se a teoria do conhecimento. O neokantismo de- senvolveu a teoria kantiana do conhecimento numa dirego 16 TEORIA DO CONHECIMENTO muito bem determinada. A unilateralidade de questiona- mento que isso provocou fez. logo surgirem numerosas correntes epistemolégicas contrarias. Vem dai estarmos hoje ante uma enorme quantidade de direcionamentos epistemolégicos, de que os mais importantes serdo apre- sentados a seguir em conexdo sistematica, PRIMEIRA PARTE Teoria geral do conhecimento Investigagao fenomenolégica preliminar: O fenémeno do conhecimento e os problemas nele contidos A teoria do conhecimento, como o nome ja diz, é uma teoria, isto é, uma interpretagdo e uma explicacao fi- los6ficas do conhecimento humano. Antes, porém, de filosofar sobre um objeto, € necessario examiné-lo com exatidio. Qualquer explicacao ou interpretago deve ser precedida de uma observagao e de uma descrigdo exatas do objeto. Isso vale também para 0 nosso caso, De- ‘vemos pois apreender com um olhar penetrante e des- crever com exatidio esse fendmeno peculiar de cons- ciéncia que chamamos de conhecimento. Fazemos isso na medida em que tentamos aprender as caracteristicas essenciais desse fendmeno mediante a auto-reflexio sobre o que experimentamos quando falamos em conhe- cimento. Para diferencié-lo do método psicoligico, cha- mamos esse método de fenomenolégico. O primeiro in- vestiga 0s processos mentais concretos em seu curso regular e em suas relagdes com outros processos, a0 asso que o tltimo procura apreender a esséncia geral no fenémeno concreto. Em nosso caso, 0 método nao descreve um proceso de conhecimento determinado, nao procura estabelecer o que caracteristico de um determinado conhecimento, mas aquilo que é essencial a todo conhecimento, aquilo em que consiste sua estru- tura geral 20 TEORIA DO CONHECIMENTO Se aplicamos esse método, o fendmeno do conheci- ‘mento se nos apresenta, nas suas caracteristicas fundamen- tais, do seguinte modo'. No conhecimento defrontam-se consciéncia e objeto, sujeito e objeto. O conhecimento aparece como uma rela- cio entre esses dois elementos. Nessa relagio, sujeito ¢ objeto permanecem eternamente separados. O dualismo do sujeito e do objeto pertence & esséncia do conhecimento. Ao mesmo tempo, a relago entre os dois elementos € uma relagdo reciproca (correlagio). O sujeito s6 & su- jeito para um objeto eo objeto s6 ¢ objeto para um sujei- to. Ambos so 0 que so apenas na medida em que 0 si0 um para o outro. Essa correlacao, porém, nao é reversi- vel. Ser sujeito ¢ algo completamente diverso de ser obje- to. A fungao do sujeito ¢ aprender o objeto; a fungao do objeto é ser apreensivel e ser apreendido pelo sujeito. Vista a partir do sujeito, essa apreensio aparece como uma saida do sujeito para além de sua esfera propria, co- mo uma invasio da esfera do objeto e como uma apreen- sio das determinagGes do objeto. Com isso, no entanto, 0 objeto ndo é arrastado para a esfera do sujeito, mas per- manece transcendente a ele. Nao é no objeto, mas no su- jeito que algo foi alterado pela fungiio cognoscitiva. Surge no sujeito uma “figura” que contém as determinagdes do objeto, uma “imagem” do objeto. Visto a partir do objeto, o conhecimento aparece como um alastramento, no sujeito, das determinagdes do objeto. Ha uma transcendéncia do objeto na esfera do su- jeito correspondendo a transcendéncia do sujeito na esfera do objeto. Ambas sio apenas aspectos diferentes do mes- 1. Cf, com relagdo a0 que vem a seguir, a “Andlise do fendmeno do conhecimento” feta por Nicola! Hartmann em sia importante obra Grundzige einer Metaphysik der Erkenninis (Pincipas caractersticas de uma meta- Fisica do conecimento), pp. 36-48, SORIA GERALDO CONHECIMENTO 2 mo ato, Nesse ato, porém, o objeto tem preponderancia sobre 0 sujeito. O objeto é o determinante, 0 sujeito é 0 determinado. E por isso que o conhecimento pode ser de- finido como uma determinagdo do sujeito pelo objeto. ‘Nao é porém o sujeito que é pura ¢ simplesmente deter- minado, mas apenas a imagem, nele, do objeto. A imagem € objetiva na medida em que carrega consigo as caracte- risticas do objeto. Diferente do objeto, ela estd, de um certo modo, entre o sujeito e o objeto. Ela é 0 meio com o qual a consciéncia cognoscente apreende seu objeto. Dizer que o conhecimento é uma determinagio do sujeito pelo objeto é dizer que o sujeito comporta-se re- ceptivamente com respeito ao objeto. Essa receptividade, contudo, ndo significa passividade. Pelo contririo, pode-se falar de uma atividade e de uma espontaneidade do sujei- to no conhecimento, Certamente, a espontaneidade no est felacionada ao objeto, mas 4 imagem do objeto, na qual a consciéncia pode muito bem ter uma participago criadora. Receptividade com respeito ao objeto e espon- taneidade com respeito a imagem do objeto no sujeito po- dem perfeitamente coexistir. ‘Na medida em que determina o sujeito, o objeto mos- tra-se independente do sujeito, para além dele, transcen- dente. Todo conhecimento visa (“intenciona”) um objeto independente da consciéncia cognoscente. Por isso 0 cardter transcendente & adequado a todos os objetos de conhecimento. Dividimos os objetos em reais e ideais. Chamamos de reais ou efetivos todos que nos so dados na experiéncia externa ou interna ou sao inferidos a partir dela. Comparados a eles, os objetos ideais aparece como irreais, meramente pensados. Esses objetos ideais so, por exemplo, as estruturas da matemdtica, os numeros € as figuras geométricas. O estranho & que também esses ‘objetos ideais possuem um ser em si, uma transcendéncia 2 TEORIA DO CONHECIMENTO no sentido epistemol6gico. As leis numéricas, as relagdes existentes, por exemplo, entre os lados e angulos de um tridngulo tém uma independéncia de nosso pensamento subjetivo semelhante a dos objetos reais. Apesar de sua irrealidade, defrontam-se com nosso pensamento como algo em si mesmo determinado e independente. Parece existir uma contradigdo entre a transcendén- cia do objeto em face do sujeito e a correlagao constatada ha pouco entre sujeito e objeto. Essa contradigao, porém, apenas aparente. O objeto s6 ndo é separivel da correla- ‘gG0 na medida em que ¢ um objeto de conhecimento. A correlagio entre sujeito ¢ objeto nao ¢ em si mesma indis- soliivel; s6 0 € no interior do conhecimento. Sujeito ¢ objeto no se esgotam em scu ser um para o outro, mas tém, além disso, um ser em si. No objeto, este ser em si consiste naquilo que ainda é desconhecido, No sujeito, con- siste naquilo que ele é além de sujeito que conhece. Além de conhecer, ele também esta apto a sentir e a querer. Assim, enquanto 0 objeto cessa de ser objeto quando se se- para da correlagdo, o sujeito apenas deixa de ser sujeito cognoscente Assim como a correlagdo entre sujeito e objeto so nao é dissolivel no interior do conhecimento, ela também 86 no é reversivel enquanto relagiio de conhecimento. Em si mesma, uma reversao é perfeitamente possivel. Ela corre, de fato, na ago, pois nesse caso no & o objeto que determina o sujeito, mas 0 sujeito que determina objeto. Nao é o sujeito que muda, mas 0 objeto. O sujeito no mais se comporta receptivamente, mas espontdnea e ativamente, ao passo que 0 objeto comporta-se passiva- mente. Desse modo, conhecimento e agdo apresentam es- truturas completamente opostas. A esséncia do conhecimento esta estreitamente liga- da ao conceito de verdade. Sé 0 conhecimento verdadeiro ‘TEORIA GERAL. DO CONHECIMENTO 2B € conhecimento efetivo. “Conhecimento nao-verdadeiro” ndo é propriamente conhecimento, mas erro ¢ engano. Em que consiste, entdo, a verdade do conhecimento? Segundo © que foi dito, a verdade deve consistir na concordancia da “figura” com o objeto. Um conhecimento é verdadeiro nna medida em que seu contetido concorda com 0 objeto itencionado. Conseqiientemente, o conceito de verdade um conceito relacional. Ele expressa um relacionamen- to, saber, o relacionamento do conteiido do pensamento, da “figura”, com o objeto. O proprio objeto, ao contrario, no pode ser nem verdadeiro nem falso. De certo modo, ele esta para além da verdade e da inverdade. Uma repre- sentagio inadequada, por sua vez, pode ser verdadeira, pois apesar de incompleta pode ser correta, se as caracteristi- cas que contém existirem efetivamente no objeto. coneeito de verdade que obtivemos a partir da con- sideragao fenomenolégica do conhecimento pode ser cha- mado conceito transcendente de verdade, vale dizer, ele tem a transcendéncia do objeto como pressuposto. E esse ‘oconceito de verdade da consciéncia ingénua e também o da consciéncia cientifica. Ambos visam, com a verdade, aconcordéncia do contetido do pensamento com 0 objeto. Nao basta, porém, que um conhecimento seja verda- deiro, Devemos chegar também A certeza de que ele & verdadeiro. Surge assim a seguinte questo: em que posso reconhecer um conhecimento como verdadeiro? Essa é a {questio acerca do critério da verdade. Os achados feno- ‘menolégicos nada dizem sobre a existéncia de tal critério. ‘Apenas a exigéncia desse critério pertence ao fendmeno do conhecimento, nao a satisfagdo dessa exigéncia, fenémeno do conhecimento humano fica, assim, esclarecido no que diz respeito a suas caracteristicas prin- cipais. Ficou claro, ao mesmo tempo, que esse fenémeno faz fronteira com trés esferas distintas. Como dissemos, 0 24 TEORIA DO CONHECIMENTO conhecimento possui trés elementos principas: sujito, imagem” ¢ objeto. Pelo sujeito, o fendnomeno do conhe, cimento confina com a esfera psicolégica: pela “imagem” com a esfera légica; pelo objeto, com a ontolégica. En. ‘quanto processo psicolégico num sujeito, o conhecimen. to € objeto da psicologia. Vé-se de imediato que a psico. logia ndo pode solucionar as questdes referentes & esséneta do conhecimento humano, Como nossa investigagao feno- ‘menol6gica mostrou, o conhecimento consistena apreen. do espiritual de um objeto. Ora, a psicologia se abstém, em sua investigacdo dos processos de pensamento, dessa referéncia objetual. Como ja foi dito, ela dirige sua aten. 60 para génesee para o curso dos process psicolépicos, Ela pergunta como o pensamento se dé e no se o pensa- mento é verdadeito, isto 6, se concorda com seu objeto, A Pergunta sobre 0 contetido de verdade do conhecimento esti fora, portanto, de seu dominio. Se, nao obstante ela tentasse responder a essa questo, ocorreria uma remata. da metébasis eis illo génos, uma passagem para outra on. dem. £ aqui exatamente que reside o erro de base do psi. cologismo. : Com Seu. segundo elemento, o conhecimento ascende a esfera logica. A “imagem” do objeto no sujeito ¢ uma estrutura légica e, enquanto tal, objeto da logica, Mas, também aqui, imediatamente se vé que a logica nao € ca. paz de resolver o problema do conhecimento, Ela investi. 82 as estruturas légicas enquanto tas, sua consttuigaio interna e suas relages mituas. Ela pergunta sobre a con. cordncia do pensamento consigo mesmo, nao sobre sua concordéncia com 0 objeto. O questionamento epistemo. légico também se situa, portanto, fora da esfera légicn, Desconhecer esse fato é cair no logicismo, Com seu terceiro elemento, 0 conhecimento humano toca a esfera ontoldgica. O objeto defronta-se com a cons. TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO 25 ciéncia cognoscente enquanto algo que é, quer se trate de um ser real ou ideal. O ser, porém, é objeto da ontologia. Também aqui, deve-se reconhecer que a ontologia nao pode resolver o problema do conhecimento, pois, assim ‘como no podemos eliminar 0 objeto no conhecimento, também nao podemos eliminar o sujeito. Conforme o exa- me fenomenoligico j4 mostrou, ambos pertencem a0 contetido essencial do conhecimento humano. Quando se ignora isso se encara o problema do conhecimento, de forma unilateral, a partir do objeto, o resultado € o ponto de vista do ontologismo, Nem a psicologia, nem a légica, nem a ontologia sfio capazes, portanto, de resolver 0 problema do conhecimen- to, que é algo completamente peculiar e independente. Se quisermos rotulé-lo com um nome especifico, poderemos falar, com N. Hartmann, de um fato gnoseolégico. O que queremos dizer com isso é que a referéncia objetual de nosso pensamento, a relago entre sujeito e objeto, nao cabe em nenhuma das trés disciplinas mencionadas e fun- da, portanto, uma nova disciplina, a teoria do conhecimen- to, Sendo assim, o exame fenomenolégico também con- duz.ao reconhecimento da teoria do conhecimento como uma disciplina filoséfica aut6noma, Poder-se-ia pensar que a tarefa da teoria do conheci- mento estaria cumprida, no essencial, com a descrigo do feidmeno do conhecimento. Mas nio é assim. A descrigao do fenémeno ainda nao ¢ uma interpretagao ¢ uma expli- cacao filoséficas. O que acabamos de descrever & aquilo que a consciéncia natural entende por conhecimento. Vi- ‘mos que, segundo a concepeo da consciéncia natural, co conhecimento é uma afiguragio do objeto e a verdade do conhecimento consiste numa concordancia da “imagem” com 0 objeto, Esta fora do alcance do questionamento fe- nomenoldgico, porém, perguntar se essa concepciio é jus- 26 TEORIA DO CONHECIMENTO tificada, © método fenomenol6gico s6 pode oferecer uma descrigao do fendmeno do conhecimento. Com base nes sa descrigdo fenomenolégica, deve-se buscar uma expl cagdo e uma interpretagdo filos6ficas, uma teoria do co- nhecimento. Essa ¢ a verdadeira tarefa da teoria do conhe- cimento. Esse fato & muitas vezes desconsiderado pelos feno- ‘mendlogos. Eles eréem poder solucionar o problema do conhecimento por meio da mera descrigio do fendmeno do conhecimento. As objegdes vindas de epistemélogos de diferentes orientagies, reagem apontando os dados fe. nomenolégicos do conhecimento. Mas se esquecem de que fenomenologia do conhecimento e teoria do conheci. Mento sio coisas muito distintas. A fenomenologia tem a capacidade unicamente de trazer a luz a fatualidade da concepeao natural, jamais de decidir a respeito de seu direito, de sua verdade. Essa questio critica permanece fora de sua esfera de competéncia. Esse pensamento tam. bém pode ser expresso dizendo-se que a fenomenologia é ‘um método, mas no é uma teoria do conhecimento, De acordo com o que foi dito, a descrigio do fendme- no do conhecimento tem uma significagdo apenas prepa- Tat6ria, Sua tarefa no ¢ resolver o problema do conheci. mento, mas conduzir-nos até o problema. A descrigio fe nemenolgica Bode € deve descobrir ¢ tazer & nossa msciéncia os lemas 6 erent os problemas que se apresentam no fenéme- _ Senos aprofundarmos ainda uma vez na deserigio do fendmeno do conhecimento, veremos sem dificuldade que ha sobretudo cinco problemas principais contidos nos achados fenomenolégicos. Vimos que o conhecimento sig. nifica uma relacdo entre sujeito e objeto. Por assim dizer, ambos entram em contato um com o outro: 0 sujete apreende 0 objeto. A pergunta que imediatamente se faz 6 TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO 21 se essa concepgdo da consciéncia natural é justificada, se corre realmente esse contato entre sujeito ¢ objeto. Serd o sujeito realmente capaz de aprender o objeto? Essa é a questo sobre a possibilidade do conhecimento humano. Deparamos com outro problema quando considera- mos mais de perto a estrutura do sujeito cognoscente. Essa estrutura é dualista. © homem é um ser espiritual e sensivel. Distinguimos correspondentemente um conhe- cimento espiritual e um conhecimento sensivel. A fonte do primeiro € a razio; a do segundo, a experiéncia. Per- gunta-se, entdo, qual é a principal fonte em que a cons- cigncia cognoscente vai buscar seus contéudos. A fonte ¢ © fundamento do conhecimento humano é a razio ou a experiéncia? Essa é a questo sobre a origem do conheci- ‘mento. ‘Somos conduzidos ao problema verdadeiramente cen- tral da teoria do conhecimento quando fixamos o olhar sobre a relagao entre sujeito e objeto, Na descrigio feno- menolégica caracterizamos essa relagdo como uma deter- minagio do sujeito pelo objeto. Agora, porém, também perguntamos se essa concepgao da consciéncia natural éa correta, Como veremos mais tarde, numerosos ¢ impor- tantes tedricos do conhecimento definiram a relagdo num sentido diametralmente oposto. Segundo eles, a situagao real € exatamente inversa: no & 0 objeto que determina 0 sujeito, mas 0 sujeito que determina 0 objeto. A conscién- cia cognoscente ndo se comporta receptivamente frente a seu objeto, mas ativa e espontaneamente. Pergunta-se qual ddas duas interpretagdes do conhecimento humano ¢ a cor- reta, De forma abreviada, podemos chamar esse problema de questo sobre a esséncia do conhecimento humano. ‘Até agora, quando falamos em conhecimento, sem- pre pensamos apenas numa apreensio racional do objeto. O que se pergunta é se, além desse conhecimento racio- 28 TEORIA DO CONHECIMENTO nal, existe um outro, de outro tipo, um conhecimento que, Por oposigio ao conhecimento racional-discursivo, pode. riamos chamar de intuitivo, Essa éa questo sobre os tipos de conhecimento humano. Existe ainda um iltimo problema que entrou em nos- so campo visual ao término da descrigdo fenomenoldgi- ca: a questio sobre o critério da verdade. Se existe conhe- cimento verdadeiro, como posso reconhecer sua verdade? Qual € 0 critério que me diz em cada caso se um conheci- mento € verdadeiro ou no? © problema do conhecimento divide-se, assim, em cinco problemas parciais, No restante do livro, eles serio discutidos um apés 0 outro. Mostraremos, em cada caso, as principais solugdes dadas ao problema no curso da his. t6ria da filosofia, e assumindo entdo uma posigao critica, indiearemos a direso na qual nés mesmos buscamos uma solugao. I. A possibilidade do conhecimento 1. 0 dogmatismo Por dogmatismo (do grego dégma, doutrina estabele- cida) entendemos a posigdo epistemoldgica para a qual 0 problema do conhecimento nao chega a ser levantado. A possibilidade e a realidade do contato entre sujeito e obje- to sio pura e simplesmente pressupostas. E auto-evidente que o sujeito apreende seu objeto, que a consciéncia cog- noscente apreende aquilo que esté diante dela. Esse ponto de vista é sustentado por uma confianga na razio humana que ainda nao foi acometida por nenhuma diivida. fato de que, para o dogmatismo, o conhecimento nao chega a ser um problema, repousa sobre uma visio errdnea da esséncia do conhecimento. O contato entre su- jeito e objeto nao pode parecer questiondvel se nao se vé que o conhecimento apresenta-se numa relagao. E 0 que ‘corre com 0 dogmitico, Ele no vé que o conhecimento 6 essencialmente, uma relacio entre sujeito e objeto. Ao contririo, acredita que os objetos de conhecimento nos sao dados como tais, e nao pela fungao mediadora do co- nhecimento (¢ apenas por ela). Ele desconsidera esta ilti- ma. E isso vale nao apenas para 0 campo da percepgio, ‘mas também para o do pensamento. Segundo a concepgao do dogmatismo, os objetos da percepcao nos seriam dados diretamente, corporeamente, ¢ assim também os objetos

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