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UMA REFLEXAO SOBRE A DIDATICA (*) José Mario Pires Azanha «Como se deve palmilhar a encosta? Sobe e nao penses nisto>. Nietzsche — A gaia ciéncia Introducao Para que se avalie a dificuldade de exame do tema deste painel Pressupostos da Diddtica é suficiente considerar separa- damente os conceitos envolvidos: o: de “pressuposi¢iio” e 0 de “diddtica”. Cada um deles possui tal multiplicidade de signifi- eados que resiste a qualquer simplificagao e torna necessaria- mente insuficientes as consideragdes que se fagam do tema que os enlaga no limite de tempo que temos. Conscientes desta limitagao, queremos inicialmente explicitar as opedes conceituais que fizemos com relago is nogées de “pressuposicio” e de “didatica” para poder esbogar um_ dos possiveis tratamentos filoséficos do tema. Aqui — como jd fizemos ha dez anos quando examinamos um tema aparentado com o de hoje: Pressupostos do Discurso Pedagégico — queremos apenas mostrar uma linha de investigagio educacional que, nao obstante poten (*) — Trabalho apresentado no 3.8 Seminério A Diddtica em Questdo, realizado em fevereiro de 1985, na Faculdade de Educagio da Universidade de Sao Paulo. cialmente fecunda, tem sido sistematicamente ignorada pelos pesquisadores brasileiros. Trata-se da explicitagao e anélise de pressuposigées. Comecemos pela propria nogio de pressuposigéo. A grama- tica Iégica desta nogo tem sido objeto de uma polémica na qual se envolveram os principais légicos contemporaneos. Essa polé- mica que ja deu oportunidade a que surgissem centenas de artigos nas revistas especializadas, gira em torno das conseqiiéncias légi- cas e epistemolégicas dos diferentes modos de compreender a nogao de pressuposigiio. Mas, aqui no nos interessa essa polé- mica. Queremos apenas explicitar uma das linhas de anélise possiveis e que é a adotada por Collingwood no sew trabalho Um ensaio de Metafisica. Nesta obra, o autor, depois de mostrar que a simples formulacdo de qualquer questio representa um comprometimento implicito ¢ nem sempre suspeitado com algu- mas idéias, passa a examinar a natureza das pressuposi¢des. Segundo ele, h pressuposigdes absolutas e relativas. As pressu- posicdes absolutas dizem respeito a idéias tio fundamentais aos esforcos de conhecimento ou da acéo que a sua problematizacao teria um efcito paralisante com relagdo a esses esforcos. Pense-se, como exemplo de pressuposigdo absoluta, na idéia da possibilidade de aperfeigoamento humano. A rejeigéo desta idéia inviabilizaria a agio educativa. A crenga nela, a sua admisséo, é algo absolu- tamente inevitével ao educador. Outras pressuposigses — as relativas — nfo teriam esse cardter impositivo e inevitdvel. Representam apenas comprometimentos evitdveis e por isso mesmo sempre discutiveis, sem que essa discussio inviabilize um forgo de conhecimento ou de agio. Ainda no campo da Educa- go, teriamos um exemplo de pressuposiggo relativa na idéia de que a perfectibilidade humana é limitada pelo patriménio gené- tico dos individuos. A aceitagaio ou nao desta idéia nao confere um cardter de inconseqiiéncia & agdo educativa, apenas modifica a probabilidade de obtengdo de ‘determinados resultados. E esta nogéo de pressuposiggo relativa que pretendemos utilizar no encaminhamento do tema de hoje. Vamos deixé-la de lado por enquanto e examinemos a outra nogio que nos interessa, a de Didatiea, Na verdade, nfo se trata de uma simples nogio cujo significado possa ser explicitade por 71 uma definigéo ou exemplificado pela sua utilizagéo em determi- nados.contextos. Qualquer que seja o modo pelo qual nos situemos com relagéo & Didética, o que se adota é uma concepeio desse setor do conhecimento pedagégico. Porém, nds nao temos neniuma concepgio original do campo da Didatica a oferecer; em primeiro, porque nio somos especialistas na area e, em segundo, porque a leitura dos préprios especialistas nos da a impressfio de que a Didatica ora é uma variedade do saber psicolégico, ora uma variedade do saber sociolégico, ora uma variedade do saber politico, etc. Esta “crise de identidade” que parece refletida no proprio titulo deste Simpésio nos tranqiiiliza quanto as opgdes conceituais que fizemos para encaminhamento do assunto. Para nds, nesta discussio, a Didatica é, ou aspira a ser, ou deveria ser um empreendimento muito semelhante aquele concebido por Coménio na Didética Magna que, como todos sabem, foi publicada pela primeira vez em fins de 1657. Temos como justificativa duas razdes. A primeira é de natureza histérica. Coménio xepresenta um momento decisivo na Histéria da Educagio como iniciador do realismo pedagégico e como precursor da educacio dos deficientes mentais, da psicologia genética, da educagao maternal, da aplicagdo de recursos audiovisuais em educagio, da crientagao profissional, ete. A sua Diddtica Magna é reconhecida como “o primeiro tratado sistematico de pedagogia, de didatica e até de sociologia escolar”. A segunda esté ligada ao préprio modo como Coménio concebe a Diddtica, “uma arte universal de ensinar tudo a todos”. Qualquer que seja o modo pelo qual se conceba, hoje, o contetido dos estudos didaticos, esse modo também tem como micleo de preocupagio a relagiio ensino-apren- dizagem, mais ainda, essa preocupagio é orientada, como o foi a Didética Magna, pelo propésito de organizar o ensino em termos de uma viabilizagéo do proceso de aprendizagem. O sonho de Coménio de elaborar a “arte universal de ensinar tudo a todos” continua um sonho amplamente disseminado. E possivel que a pretensio dele j4 nfo seja confessada, tao aberta e candidamente, mas a simples leitura dos amincios de jornal nos informa sobre cursos que se propéem a ensinar lideranga, eficién- cia pessoal, felicidade conjugal, ete. E claro que a Didatica, enquanto disciplina académica, é mais comportada e modesta 72 nas suas aspiragdes, mas nfo cremos errar quando consideramos como, uma pressuposigfo absoluta da Didatica a crenga de que dentre as intimeras organizagées possiveis do processo de ensin algumas sio mais eficientes do que outras em termos da melhoria do processo de aprendizagem. Acreditamos mesmo que, sem essa pressuposigao, os estudos didaticos seriam vaeuos e inconseqiien- tes. Mas, esta convieedo é apenas lateral A nossa discussio do tema deste Simpésio e foi referida somente para justificar a nossa escolha da concepgao de Didatica de Coménio como um paradigma historico de outras concepedes possiveis. Os pressupostos da Didatica Limitaremos nosso exame do tema aos pressupostos impli- cados na idéia comeniana, segundo a qual é possivel formular um método de-ensino, universal ou geral. cuja aplicagéo garanta o éxito, isto é, conduza 4 aprendizagem visada. Antes de passar a0 exame do que entendemos como sendo as pressuposicées rela- tivas implicadas logicamente por essa idéia, ¢ preciso que deixe- mos claros dois pontos importantes. O primeiro diz respeito & origem do propésito de Coménio de claborar um método universal de ensino. Essa origem esta claramente vinculada & concepgéo baconiana de Ciéncia. Na época em que Coménio escreveu a Diddtica Magna, 0 pensamento de Bacon sobre a ciéncia causava um impacto intelectual a que nem o proprio Newton escapou, e que continuaria nos séculos seguintes e até atualmente. Simplificadamente, para Bacon, fazer ciéncia era questio de aplicagio de um método fundado na observacio. Coménio transplantou e adaptou essa idéia & Edu- cagdo. Assim como fazer ciéncia era aplicar um método, também ensinar era aplicar um método. © outro ponto é um esclarecimento. Nao se pode fazer injustiga a Coménio, permitindo que se imagine que, para ele, 0 método de ensino operava com absoluta autonomia em face de condigdes contextuais. Coménio tinha a clara compreensio de tapas de desenvolvimento e de outros condicionantes do ensino. Por isso mesmo, também preconizou meétodos especiais para o 73 ensino de diferentes saberes, como as Ciéncias, as Artes, as Linguas, a Moral e a Religiio. Mas, esses métodos, que levavam em conta as estruturas particulares dos diferentes saberes, eram apenas complementos do método geral de ensino que incorporava conselhos cujos fundamentos, segundo ele, foram “tirados da propria natureza das coisas” ¢ cuja aplicagao permitiria “ensinar tudo a todos”. Essa concepefio repousa sobre duas nogdes nucleares cuja anélise poderd explicitar as pressuposigdes que queremos discutir. ‘Trata.se das nogdes de “‘método de ensino” e de “cardter exaustivo do método”. 1. Comecemos pela nogio de método. Expressdes como “seguir um métedo”, “obedecer a um método”, “aplicar um método” ¢ outras equivalentes implicam a disponibilidade de um conjunto de regras para fazer algo. No caso do ensino, aplicar um método 6, entéo, executar a atividade de ensinar segundo certas regras. Esta questéo nos remete a uma oulra, muito mais geral, que € a das relagdes entre regras e atividades. O que significa dizer que a execugio de uma atividade depende da observancia de regras? Distinguiremos trés casos nos quais esta questo se responde diferentemente. Caso 1 — Jogar xadrez, por exemplo, é uma atividade paradigmatica daqueles casos em que sem o conhecimento e observaneia de certo conjunto de regras a atividade é, por defi- nig&o, impossivel. O jogo de xadrez caracteriza-se por certas regras. Sem conhecé-las e aplicé-las, nfio se joga xadrez. Este é um claro exemplo de utilizagio do verbo saber no sentido de saber que, isto é, de um saber proposicional. Dizer que alguém sabe jogar xadrez significa que ele tem o conhecimento das regras do jogo e sabe aplicé-las. E 0 caso tipico de uma atividade cuja pratica é, logicamente, precedida de um conhecimento. Nao 6 dificil imaginar que muitos outros jogos e atividades encontram-se em situagdo semelhante. O exame deste caso nos revela, assim, uma situagdo em que a relagdo entre regras ¢ a atividade orde- nada por elas é de precedéncia daquelas com relagio a esta. 74 Caso I] — Nadar é uma atividade que no seu relaciona- mento com regras representa um caso muito distinto do anterior. Alguém pode saber nadar, ser eapaz de executar a atividade sem conhecer explicitamente nenhuma regra referente ao assunto, Diferentemente do caso do jogo de xadrez, pode-se dizer de alguém, que sabe nadar sem que esta afirmagio implique que tem um conhecimento prévio das regras de natagio, Alias, nadou-se muito antes que alguém pensasse em codificar as regras da natagio. E claro, também, que se pode, atualmente, iniciar a aprendizagem de natacio aprendendo antes um certo conjunto de regras. Mas, mesmo neste caso, no hi nenhuma precedéncia Iégica do conhecimento das regras para executar a atividade. Esta é uma situagio tipica em que a pratica da atividade nao exige um conhecimento prévio, embora possa dizer-se que esse conhecimento esta incorporado na propria pratica. Saber nadar é antes um exemplo de saber como do que de saber que. Nadar significa uma capacidade de executar uma atividade que pode ocorrer som o conhecimento explicito de quaisquer regras. Caso IIT — Pensar criticamente, argumentar, contar piadas com graga, etc. sio exemplos de atividades do terceiro caso que vamos examinar. Trata-se de atividades que revelam um saber como, um saber fazer e niio um saber que. Como diz Ryle, se perguntassemos a um humorista que regras obedece para contar piadas com graca, provavelmente nada obteriamos. Aqui, segundo 0 autor citado, a “pratica eficiente precede a teoria”, isto 6, o conhecimento de certas regras. Nao hd um método para contar piadas, argumentar, pensar criticamente, porque essas atividades sao essencialmente criativas e nao hé método para inventar. A propria nogéo de criatividade é incompativel logi- camente com a idéia de aplicar regras, isto é, um método. Além disso, como a criatividade é essencialmente individual, seria impossivel formular regras universais para ela. Neste caso, pode haver regras para avaliar o resultado da atividade, mas nao para regulé-la, As regras da ldgica nos permitem avaliar uma argumentagiio, mas nfo inventé-la. E possivel até mesmo dizer que o conhecimento das regras de avaliagio de uma atividade 75 | | | possa orientar de algum modo a execugio da prépria, mas néo para garantir o seu éxito. Dos trés casos examinados, este 6 aquele em que a referéncia ao éxito é inevitdvel ¢ implicita. Dizer que alguém sabe jogar xadrez ou que sahe nadar nio significa necessariamente que execute bem essas atividades. Podemos dizer: “Fulano sabe jogar xadrez, mas sofrivelmente”, ou “Fulano sabe nadar, mas mal”, Contudo, quando dizemos que alguém sabe argumentar ou que sabe contar piadas, est implicito que executa bem essas atividades, Finalizando este comentério sobre a nogio de meétodo podemos concluir, talvez, um exemplo de saber como do que saber que, isto ¢. tratase Fe a eae icd-Tas. Se dissermos que a sabe ensinar, isto significa necessariamente que obtém éxito no seu propésito e sé acesséria ¢ eventualmente que segue esta ou aquela regra. 2. Com relago & nogio de “cardter exaustivo do método” 6 suficiente recordar Scheffler quando ele se refere a “regras exaustivas” e “nio-exaustivas” para executar uma certa atividade. Dizer que uma atividade ¢ exaustivamente regulével significa dizer que 6 possivel, com relagio a ela, explicitar um conjunto tal de regras que se forem obedecidas, a atividade se completa com éxito. Em outros casos, porém, nao é possivel determinar © conjunto de regras cuja observancia garanta o éxito. No méxi- mo, poderemos aumentar a probabilidade do sucesso, mas nfo garanti-lo. Se usarmos a distingio de Scheffler ao ultimo dos trés casos referidos de atividade, constataremos que quaisquor tegras que apliquemos as atividades de pensar criticamente, argumentar ¢ ensinar, sio necessariamente nao-exaustivas, isto no garantidoras do éxito, mas apenas e eventualmente facilita, doras. Coneluindo, finalmente. Embora apenas tenhamos aflorado © tema dos pressupostos da Didética numa perspectiva limitada da andllise légica, acreditamos ter fornecido nesta exposigao, pelo menos, indicagdes de que o sonho de Coménio e também suas 76 variantes histéricas e atuais repousam numa ilusio. A de que a atividade de ensinar, no seu sentido amplo, possa ser exaustiva- mente regulada. O reconhecimento desse fato deve ter um efeito moderador no entusiasmo com que, as vezes, aderimos a esta ou aquela novidade no campo da Didatica. Por outro lado. esta é uma conelusio muito positiva porque revela que o pro- fessor, na sua ati idade criativa de ensinar, é um solitario, que por isso mesmo “nfo deve esperar socorro definitive de nenhum modelo ou método de ensino, por mais avangadas e sofisticadas que sejam as teorias que supostamente o fundamentam. Bibliografia COMENIO, J. A. — Didactica Magna. Introducao, Tradugao e Notas de Joaquim Ferreira Gomes, Fundagdéo Calouste Gulbenkian, Coimbra, 196. RYLE, G. — The Concept of Mind. Barnes e Noble Inc, Nova York. SCHEFFLER, J. — A Linguagem da Educagio. Traducéo de Balthazar Barboza Filho, Saraiva. Reason ond Teaching. I. Scheffler (Org.), London, Routledge and Kegan Paul. 1973. JOSE MARIO PIRES AZANHA Educacgao Alguns Escritos COMPANHIA EDITORA NACIONAL {984

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