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Marina Massimi Maria do Carmo Guedes (organizadoras) HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL NOVOS ESTUDOS Revisao André Lufs Masiero educ Si Sao Paulo 2004 Ficha catalogrética elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvea Kfourl / PUC-SP Histéria da Psicologia no Brasil: novos estudos / orgs. Marina Massimi, Maria do Carmo Guedes ; revisio André Luis Masiero. - Séo Paulo EDUC; Cortez, 2004. 262 p. ; 23 cm ISBN 85-283-0300-4 (Educ) ISBN 85-249-1088-7 (Cortez) 1. Psicologia - Brasil - Histéria. 1. Massimi, Marina. Il. Guedes, Maria do Carmo. Ill, Masiero, André Lut cop 150.981 EDUC - Editora da PUC-SP Diregso Maria Eliza Mazzili Pereira Deniza Rosana Rubano Producéo Editorial Magali Oliveira Fernandes Preparacéo e Revise Tereza Lourenco Pereira Editoracao Eletrénica Artsoft Informatica Capa Sara Rosa Realizagao: Waldir Antonio Alves educ Seis Rus Bartira, 317 - Perdizes (08009-000 - So Paulo ~ SP 11) 3873-3359 Tol: (11) 3864-0111 educ@pucsp.br Fax: (11) 3864-4290 Site: www.pucep. br/educ E-mail: cortez@cortezeditora.com.br Site: www.cortereditora.com.br Rua Ministro God6i, 1197 0015-001 ~ Séo Paulo ~ SP Te Fe APRESENTAGAO Marina Massimi A presente coletanea visa apresentar 0 estado da obra de pesquisas realizadas até o momento no que diz respeito Historia da Psicologia no Brasil. Nao pretende ser um apanhado exaustivo, mas apenas um trabalho que pretende colocar algumas pinceladas no grande afresco que ao longo das titimas décadas estd sendo realizado pelos historiadores da Psicologia, com o objetivo de re- compor o percurso histérico que no contexto sociocultural brasi Ieiro levou a constituicgo das formas de conhecimento psicolégico e da ciéncia psicolégica enquanto tal Com efeito, recentemente assistimos a um aumento qualita tivo e quantitative das investigacdes na area, contando com a ibuig&o, seja de pesquisadores mais experientes, seja de jo- vens pesquisadores em formacao, que estdo elaborando teses de doutorado, dissertagées de mestrado e monografias de iniciagao cientifica dedicadas a estudos historicos em Psicologia. Além do mais, a disciplina “Histéria da Psicologia” comparece de uma for- ma cada vez mais freqliente nos curriculos dos cursos de gradua- G80 @ pés-graduacao em Psicologia, fato este que acarreta a ne- cessidade de produzir material adequado para 0 uso didético na perspectiva histérica. A coletanea estrutura-se em partes: abre-se com uma contri- buigdo sobre a historiografia geral da Psicologia, prosseguindo com textos que tracam o percurso histérico da Psicologia no Bra: no pals, de abordagens eapeciticas, teis como a psicendlise. As contribuleSee alo apresentadas em ordem cronoldgica (no que diz respeito & colocacao temporal do tema tratado em cada uma), res- peitando assim o critério temporal, postulado essencial para traba- thos de natureza historiografica (© primeiro capitulo, elaborado por Deise Mancebo, visa de- monstrar, numa perspective focaultiana, que a Psicologia, assim como qualquer outro tipo de sujeito cultural, constitui-se no interior da Historia, e como tal é por esta continuamente fundada e refun- dada. Apés reconstituir as origens da ciéncia psicolégica no con- texto do process mais amplo de consolida¢ao da ciéncia moderna, Mancebo descreve as crises do paradigma cientifico da modernida- de e as repercussées no que diz respeito & Psicologia. Prope cami nhos para a constituigao de uma relacdo adequada entre Psicologia e Histéria, bem como alerta acerca das armadilhas inerentes a esta colaboracao, o que acreditamos ser de grande utilidade para todos ~ psicélogos ¢ historiadores - que desejam empreender a pes- quisa em Hist6ria da Psicologia com rigor e seriedade, superando amadorismos, intengdes apologéticas, interpretacdes superficiais ideolégicas, que no contribuem ao avanco efetivo desta érea de estudos. 0 segundo eo tercsiro capitulos ~ ambos de autoria de Marina Massimi - sao dedicados a hist6ria das idéias psicoldgicas na cultu- ra luso-brasileira do século XVI aos inicios do século XIX: aborda-se a producio de idéias psicolégicas no ambito do saber dos jesuitas, ordem religiosa que teve uma grande importancia no contexto do Brasil Coldnia, e a elaboragao de conhecimentos psicolégicos pela inteligéncia brasileira do século XVIII e XIX. O objetivo 6 mostrar, através deste percurso histérico, o fato de que muitos dos concei- tos utilizados pela Psicologia moderna possuem raizes no passado & que, portanto, 0 estudo da Hist6ria da Psicologia contribui ao enrai- zamento do psicélogo brasileiro em sua cultura e sociedade. 0 quarto capitulo, elaborado por Elisabeth Bomfim, descreve © processo de construgao do sentimento de identidade nacional, percorrendo as etapas mais marcantes da Histéria do Brasil, desde © Descobrimento até os tempos atuais. Apresenta um apanhado sintético das contribuigdes mais importantes acerca deste tema No quinto capitulo, Nadia Maria Dourado Rocha relata suas pesquisas acerca da Faculdade de Medicina da Bahia e de sua con- tribuigao & produgdo dos conhecimentos psicolégicos no pais. So enfocados varios tipos de documentos: em primeiro lugar, as teses de cunho psicolégico de médicos baianos, apresentadas ao longo do século XIX, cujo estudo é importante no tanto pela originalida- de de métodos e contetidos propostos, mas por permitir uma ava- lag8o adequada da vinculago desses médicos ao contexto interna- cional da Ciéncia da época, através da andlise dos temas escolhidos @ dos autores citados. Em segundo lugar, so apresentados textos elaborados por intelectuais baianos referentes ao conhecimento psi coldgico, entre eles as Investigagées de Psicologia (1854), do médico e filésofo Eduardo Ferreira Franca. sexto capitulo, elaborado por Mitsuko Aparecida Makino Antunes, proporciona uma viagem panoramica e abrangente a0 longo da Histéria da Psicologia brasileira do século XIX até a atualidade, detendo-se em alguns pontos fundamentais de virada ocorridos no decorrer do tempo, a saber: a conquista da autono- mia da Psicologia como érea de conhecimento no Brasil, sua con- solidagao como ciéncia e profissao, sua profissionalizacao, sua expansao. Visa contribuir ao importante exercicio da Psicologia de tepensar a si prépria no momento hodierno, to cheio de fermen- tos @ questionamentos. 0 sétimo capitulo, de autoria de Marisa T. D. S. Baptista, aborda a constituicao da identidade enquanto psicélogos por parte de alguns profissionais que desempenharam atividades no campo da Psicologia, em Sao Paulo, antes de 1962. Aponta para duas fases desse processo de constituigdo da identidade: a primeira, en- tre os anos 20 ¢ 40; a segunda, entre as décadas de 1960 e 1962. 0 oitavo capitulo, elaborado por Raul Albino Pacheco Filho, ¢ © nono, de autoria de Roberto Yutaka Sagawa, reconstroem o per- curso de introdugao e consolidagao da psicandlise no Brasil. O pri- meiro realiza uma anélise de natureza histérica e epistemolégica acerca das relacdes entre psicandlise, Psicologia e Ciéncia, enfati- zando a necessidade e a importancia de discussées epistemolégi- cas e metodolégicas na construcéo do conhecimento cientifico. © segundo discute a introdugao da psicanélise no contexto brasilei ro, € especialmente em Sao Paulo, seja enquanto concepeao teri ca, seja enquanto pratica clinica. Essas contribuigdes, todas elas realizadas por membros do Grupo de Trabalho em Hist6ria da Psicologia da Anpepp ~ Associa~ 80 Nacional de Pesquisa e Pés-Graduacao em Psicologia, visam proporcionar aos leitores um conhecimento histérico Util a reflexao sobre a Psicologia, seu significado e sua funcao no contexto brasi- leiro. Ao mesmo tempo, quer estimular 0 interesse pela continuida- ® HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS de das investigages na drea, lancando um desafio, neste sentido, aos estudantes em formagao e aos jovens pesquisadores. Ha muita coisa ainda a se fazer, pois, no caminho da indagacao histérica, cada meta alcancada constitui-se num novo ponto de partida Marina Massimi Professora Associ FFCLRP-USP - Campus de Ri 12 do Departamento de Psicologia @ Educacao da ‘bo Preto. E-mail: mmarina@ffcirp.usp.br i vl SUMARIO Historia e Psicologia: um encontro necessério € suas “armadilhas” .. aa Deise Mancebo As idéias psicolégicas na produgao cultural da Companhia de Jesus no Brasil do século XVI e XVII 27 Marina Massimi As idéias psicolégicas no Brasil nos séculos XVII ¢ XVIII ...49 Marina Massimi Fragmentos psicossociais na histérica construgéo da identidade nacional ........-..css- seseeeesesctsssenees TY Elizabeth de Melo Bomtim A Faculdade de Medicina da Bahia e a preocupacéio com questdes de ordem psicolégica durante os oitocentos .......89 Nédia Maria Dourado Rocha A Psicologia no Brasil no século XX: desenvolvimento cientifico e profissional ........ sree 109 Mitsuko Aparecida Makino Antunes A constitui¢80 da identidade de alguns profissionais que atuaram como psicdlogos antes de 1962 em Séo Paulo... 153 risa T. D, S, Baptista 0 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS VIll Psicandlise, Psicologia e Ciénc origens, inter-relagdes e conflitos, 205 Raul Albino Pacheco Filho IX. Psicandlise @ Psicologia no Brasil e em Sao Paulo: registros histéricos .. 231 Roberto Yutaka Sagawa HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO. NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS” Deise Mancebo Seria interessante tentar ver como se dé, através da historia, a Cconstituicao de um sujeito que néo é dado definitivamente, que néo @ aquilo a partir do que a verdade se dé na historia, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da historia e que & a cada instante fundado e refundado pela histéri. £ na direcéo desta critica radical do sujeito humano pela histéria que devemos nos divigir. (Foucault, 1991, p. 7) Constituic&o histérica dos saberes “p: (© modelo de racionalidade que preside a ciéncia moderna cons- tituiu-se a partir do século XVI, no campo das ciéncias naturais, tendo por expoentes Bacon e Descartes. Descartes, especialmente, teve a preocupagao de estabelecer paraémetros que possibilitassem uma forma de conhecimento considerado verdadeiro. Dentre outros aspectos, o conhecimento cientifico comporta, desde entao, algumas distingdes que o qualificam enquanto tal. Em primeiro lugar, 0 conhecimento cotidiano, fruto do senso comum, é jado do campo do conhecimento cientifico, ou seja, a ciéncia moderna descarta sistematicamente as evidéncias da experiéncia Imediata, entendendo-as como informagdes pouco precisas, inse- guras e engenador: 2 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS Outra importante clivagem operada pela ciéncia moderna se refere a distincdo entre natureza e ser humano. A natureza é consi- derada passiva e reversivel, como uma engrenagem cujos elemen- tos se pode desmontar e depois associar sob a forma de leis; ndo deve possuir nenhuma distingo especial que 0 homem néo consiga analisar. Apresenta, assim, como pressuposto metateérico, a idéia de ordem, estabilidade do mundo, do passado que se repete no futuro, sendo, portanto, passivel de ser dominada pelo homem em sua plenitude (Santos, 1997). Com base nesses pressupostos, dentre outros, o conhecimento cientifico procurou avangar, na modernidade, através de andlises rigorosas do ponto de vista técnico e metodolégico, 0 que signifi- ‘cou alimentar @ pretensdo de um descomprometimento do conheci: mento em relacao aos valores do pesquisador. As idéias mais claras e simples, os objetos reduzidos em sua complexidade, a possi dade de quantificacdo dos fendmenos transformam-se em pré- requisitos para um conhecimento rigoroso e sistemético da nature- za, condigdo para que um saber almeje o status de cientifico. Desse modo, dentre outros desenvolvimentos caracteristicos, a preciso torna-se um atributo imprescindivel para a ciéncia mo- derna, acompanhada necessariamente pela progressiva parceliza- ¢&0 do objeto e, em decorréncia, por especializagées do conhec mento, produzido cada vez em maior numero. Por essa via, a natu- reza & desmembrada em muiltiplos campos para efeitos de investi- gacao, mesmo que a custa do cardter distorcivo do conhecimento gerado sob esta maxima Com algumas ivas no século XVIII e principalmente a partir do século XIX, esse modelo de racionalidade se estende pro- gressivamente as ciéncias sociais e humanas emergentes. Uma das principais questées tematizada nos séculos XVIil e XIX, por tedri cos de diversas procedéncias, & a das relagdes entre o “in: €0 “coletivo”. A proliferacao desses estudos ¢ justificada pela pre- eminéncia concreta da prépria dicotomia enquanto tal, fazendo jus a necessidade de novas teorizagdes que dessem conta dos interes- ses individuais (Hirschman, 1979), da vida em sociedade recém- inaugurada, bem como ao duplo processo de individualizaco/inte- gracdo em que se sustentava a formac&o dos estados modernos. Nesse universo de busca de explicagées e soluges para as tensdes surgidas com a nova clivagem instituida - individuo @ so- ciedade -, emergem, por um lado, as primeiras ciénci HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS" 19. com teoriza¢des sobre 0 econdmico, o politico, o Estado, o soci ©, por outro, as primeiras ciéncias psicolégicas (ou morais, como muitas vezes estéo designadas), encarregadas dos individuos, de suas paixdes, pulsdes e interesses (Mancebo, 1999a). De la aos dias de hoje, esta dualidade no campo dos saberes no se alterou fundamentalmente, malgrado os esforgos de cons- trugdes inter/multidisciplinares'. No caso das psicologias, desen- volveram-se objetos de reflexdo, classificagao e intervencao sobre aspectos os mais variados da chamada interioridade. A realidade intima @ seu funcionamento conquistaram densidade tedrica e al- cangaram modelos complexos de intervencao, de modo que a pré- pria autonomizago 0 reconhecimento dos saberes “psi” como ciéncias - conceituando “legitimidades” e “validades”, definindo autores e autoridades cientificas, ou melhor, estabelecendo as mar- gens no interior das quais devem ocorrer a produgao e a divulgagao cientificas ~ contribufram para a consolidagéo das fronteiras entre as diversas disciplinas (Mancebo, 19992). © grau de imbricacdo entre 0 processo historico que segmen- tou individuo e sociedade, bem como a necessidade também his- torica (no seu sentido mais forte) do desenvolvimento das psicolo- gias ~ considerando-se, aqui, também a psiquiatria e a psicandlise -, 6 de tal ordem que, de modo bastante recorrente, sé se reconhe. em como modernas, racionais, civilizadas © até disciplinadas as Sociedades que apresentam um certo grau de psicologizacao Foucault (1979) uma referéncia central nessa discusséo, Pois analisa precisamente os dispositivos de poder que se desenvol. vem a partir do século XVIll, articulando-os a constituico dos sa- beres humanos e sociais. Apresenta duas formas nao excludentes, mas intercomplementares, de poderes que se organizam sobre a vida. A primeira tem como eixo 0 corpo/méquina, cujos dispositivos disciplinares permitem a elaboraco e a sistematizago dos saberes constitutivos de uma anatomopolitica do corpo humano. O investi- mento na utilidade/docilidade do corpo humano tornado maquina direciona sua integracéo em sistemas sociais e econémicos. A se- *\ Slo multes as polémicas acerca do sentido a atribulr a ‘nar, pluridiscipliner, interdlsclotinr e transdisciplinar, tas, no momento, termos multidiseipl 1“ HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS gunda forma tem como eixo 0 corpolespécie. Uma biopolitica da populacdo se elabora com o conhecimento da mecanica do organis- mo vivo no que diz respeito a natalidade, a mortalidade, a satide, & longevidade, ou seja, dos processos biolégicos que possibilitam in- tervengdes e controles reguladores sobre as populacées. Em torno desses dois eixos, anatomopolitico e biopolitico, organiza-se 0 po- der sobre a vida nas sociedades modernas, conforme diz Foucault, e se elaboram saberes que, sistematizados, iréo constituir as Cién- cias Humanas e as Ciéncias Sociais. Nesta linha de raciocinio, o proprio “individuo” & apresentado como uma produgao histérica, diante da qual, a partir do fim do século XVIII, todas as ciéncias se curvaram. Foucault identifica, no mundo contemporaneo, a transformacao do espaco puiblico em lu- gar de seqiiestro e de esquadrinhamento do individuo. Esse esqua- drinhamento é possibilitado néo apenas pelas tecnologias de poder, a exemplo das que se manifestam na arquitetura das cidades, na localizagdo das pracas e dos locais de diversdo, ou na organizagao interna de fabricas, escolas, prises, etc. Os saberes médicos, juri- dicos, sociolégicos, antropolégicos, policiais e psicolégicos, que cresceram visivelmente desde o século XIX na nsia de organizar as multiddes e canalizar “positivamente” os problemas oriundos da industrializagao e da urbanizagao em larga escala, também se cons- tituiram em dispositivos centrais de codificacao e normatizagao das condutas humanas. 0 desenvolvimento desses saberes, dentre eles 0 psicolégico, s&o-nos apresentados, por Foucault, como processos de controle social, formas de sujeicdo/subjetivacéo mobilizadas pela sociedade urbano-industrial, que classificam os individuos em conceitos iden- titérios e os alocam em campos partilhados entre 0 normal 0 patolégico. Para esse autor, entéo, o individuo foi construfdo nae pela complexa intrincagao das relagdes de poder e saber, nasceu com elas e com elas se constituiu. Do mesmo modo, a emergéncia © 0 desenvolvimento das Ciéncias Humanas, na qualidade de saber préprio do homem, incluindo todas as ciéncias, andlises ou praticas com 0 radical “psico”, tomaram corpo nessa reviravolta historica dos processos de individualizagao (Mancebo, 1999b}. Pode-se dizer, sinteticamente, que a partir do século XVII, € com maior nitidez no século XIX, engendrou-se um solo epistemo- légico pleno de especializacdes, em que teorias, ciéncias, idéias e conhecimentos puderam florescer para dar conta da compreens&o HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIOE SUAS “ARMADILHAS" 15 do universo de experiéncias da interioridade humana, em especial das suas tensdes. Desse modo, o espaco psicolégico, tal como o conhecemos na modernidade, nasceu e vive precisamente da arti culagao conflitiva das formas de pensar e praticar a vida individual em sociedade. Crise do paradigma cientifico moderno e repercussées para a Psicologia Como resultado interativo de uma pluralidade de condicées, 0 paradigma dominante de ciéncia entrou em crise no século que fin- dou, Passa-se ao reconhecimento de que 0 conhecimento cientifico moderno “é um conhecimento desencantado e triste, que transfor- ‘ma a natureza num autémato (...) ou num interlocutor terrivelmente estUpido”, Dentre outros aspectos, o rigor cientifico ndo raramenté. desquslifica os objetos ~ “ao objetivar os fendmenos, os objectua- liza e os degrada, (...) ao caracterizar os fenémenos, os caricaturi- | za” (Santos, 1997, p. 32) - e, ao reduzi-lo em pequenos objetos, perde em relevancia social, em generalizagdo e em potencial expli-/ cativo. Em decorréncia das criticas que o conhecimento moderno passa a enfrentar no século XX, alguns pressupostos de um novo paradig- ma, ainda emergente, vém sendo postulados, com implicagées pro- fundas para todos os campos investigativos, inclusive a Psicologia. Primeiramente, 0 conhecimento do paradigma emergente pro- cura superar alguns dualismos bastante familiares a disciplina psi- colégica, como natureza/cultura, natureza/artificial, vivolinanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/ individual, animal/pessoa (idem, ibidem). Depois, afirma-se a ndo-neutralidade na produgao dos co- nhecimentos, e o investigador passa a ser considerado como par- te constitutiva do fendmeno analisado. Conforme Santos, a cién- cia moderna, sob cujos parémetros a Psicologia se desenvolveu, “consagrou o homem enquanto sujeito epistémico, mas expulsou-o +) enquanto sujeito empirico” (ibidem, p. 50). Um conhecimento objetivo, factual e rigoroso no tolerava a interferéncia dos valo- res humanos @ as implicagdes do investigador. Ao contrério, sob a Percepello emergente, os pressupostos metafisicos, os sistemas > 16 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRAS! Novos estupes de crengas, os jufzos de valor nao estao antes, nem depois, da explicacao cientifica da natureza oy da sociedade. Sao parte inte- grante dessa mesma explicacao. (A realidade 6 uma construcdo coletiva cotidiana, na qual individuos e sociedade se transformam mutuamente no curso de sua inevitével interagao) Passa-se a as- sumir, desse modo, a impossibilidade da objetividade, to cara a muitos no campo da investigac&o psicossocial: @ presenga do in- vestigador, a selegao do seu tema de trabalho, a escolha dos su- jeitos (amostra), a determinacao das condigées da pesquisa e das técnicas adotadas de coleta de dados (entrevista, observacées, formularios, histéria de vida, pesquisa documental e bibliografica, dentre outras), a anélise dos dados (andlises quantitativas e qual tativas - a “anélise do contetido”, a “andlise do discurso” -, den- tre outras), enfim, as partes constitutivas da construgao investi gativa constituem-se em escothas, nas quais 0 pesquisador tem ativa participagao, Hé que se considerar, ainda, as implicages metodolégicas geradas na crise da ciéncia moderna, que se encaminham no senti- do de uma fértil aproximagao da Psicologia com as Ciéncias Natu- rais, Sociais e demais humanidades. Conforme ja apresentado, na investigacdo moderna o conhe- cimento avanca pela especializacao, e as inumeras subdivisoes da Psicologia comprovam esta afirmacao. 0 conhecimento “6 conside- rado tanto mais rigoroso quanto mais restrito € 0 objeto sobre 0 qual incide, (...) 0 seu rigor aumenta na proporedo direta da arbitra- riedade com que espartilha o real” (idem, ibidem, p. 46), mesmo que & custa de evidentes efeitos negativos quanto ao seu potencial de generalizacao e sua relevancia social. A consciéncia das limita- des deste modelo encaminha, entdo, alguns programas investiga- tivos para a busca de articulacdes multi e interdisciplinares j loca- izaveis em uma significativa e volumosa producao académica de ivros revistas “especializadas”. Psicologia, Sociologia, Antropo- logia, Economia, Histéria, Pedagogia, Linglistica e outras discip! nas tém suas margens permeabilizadas diante do objetivo de am- pliar 0 conhecimento do individuo, do grupo, da sociedade e da produgao de sua existéncia material e concreta (Camino, 1996). Por fim, assume-se o caréter histérico das investigagdes, de seus resultados e métodos utilizados, o que significa afirmar que_as sociedades humanas @ os homens que as habitam existem num determinado espaco, cuja formaco social e contigura¢éo s&o espe- HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS" 17 cificas, que o dinamismo e a especificidade sao caracteristicas fun- damentais de qualquer questo social e que teorias e métodos psi- cossociais construfdos para tratar dos homens e das sociedades so historicamente datados. Sob esta nova perspectiva na produ 80 do conhecimento, abdica-se progressivamente do projeto até ent&o hegeménico de purificago metodolégica; o acolhimento dos “hibridos” (Latour, 1994) torna-se uma realidade em algumas pes- quisas, transformando a Psicologia numa disciplina mestiga (Serres, 1993), combinada com outros campos do saber, que Ihe ita, enfim, avangos tedrico-epistemoldgicos e, especialmen- te, ético-politicos. Em sintese, da aproximagao da Psicologia com outros sabe- res, do exercicio critico as especializagdes e as purificacdes tedrico- metodolégicas positivo-funcionais, decorrem referenciais de anéli se que afirmam o cardter histérico dos fenémenos. psicossociais. ‘Os conhecimentos psicolégicos construidos estéo embebidos no’ contexto temporal, cultural, espacial em que séo criados, e se con- sidera que as formagdes da subjetividade no podem ser compreen- | didas como desligadas da formac&o social na qual se constituem), Desse modo, “tanto os fenémenos ‘normais’ quanto os ‘patolégi 0s’, bem como a determinagao das fronteiras entre uns e outros, dizem respeito a uma dada formacdo social e s6 podem ser compre- endidos em relaco a ela” (Gentil, 1996, p. 83). Em conseqiiéncia, 0 conhecimentos alcancados sao transitérios e destinados a serem superados, modificados e esquecidos, na medida em que deixem de responder as condigdes sécio-histéricas que os favoreceram, exigiram e os fizeram florescer. Historia e Psicologia: uma hibridagdo necessaria So muitas as alternativas para uma Psicologia hibrida. Sem a possibilidade de uma extenséo maior no escopo deste texto, é pre- ciso pelo menos citar duas dessas propostas: as investigacdes que aproximam a Psicologia da Antropologia e as que a aproximam da Historia, Com a Escola dos Anais, criada na década de 1920 e assim nomeada por causa da revista que, desde 1929, reuniu as contri- bulges de seus principals representantes (Annales d'Histoire 8 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS Economique et Sociale), Psicologia ¢ Hist6ria passam a habitar or- ganicamente teméticas comuns. O esforco multidisciplinar que marcou essa nova tendéncia historiogréfica ~ associada inicialmen- te aos nomes de Lucien Febvre e Marc Bloch - encaminhava-se para a definicéo dos delineamentos pelos quais as épocas se distin- guem, relevando de forma inovadora as fronteiras éticas, estéticas @ também psfquicas. Tudo o que poderia dar sentido a mentalidade de uma época - Histéria da Psicologia coletiva, da comunidade de valores ¢ hdbitos, dos gestos, dos sentimentos ~ transforma-se em objeto de investigacao e andlise. Nesta perspectiva, as teméticas analisadas ganham espessu- ra temporal. Apresentam-se como tecidos complexos, com ritmos préprios, uns mais lentos, ainda resistindo as herancas e a meméria do passado, enquanto outras conjunturas sao percebidas como ace- leradas, rompendo o presente para impor a urgéncia da mudanca Os programas investigativos multiplicam-se em questdes nas quais cabem a historia das idéias cientificas, das praticas econémicas e religiosas, das curvas demograficas, a histéria da cultura, das guer- ras, das formas de representacao da familia, da loucura, da morte, das mulheres, das criancas e da propria subjetividade. 0 vocabulé- rio, @ sintaxe, os lugares-comuns, a concepgao de espaco e de tempo, os quadros légicos, tudo 0 que diga respeito aos locais e a0 modo de produgéo das mentalidades pode ser motivo de exame, constituindo um complexo inventario, que Febvre designou outillage mental. Por seu turno, a Antropologia detém, também de longa data, experiéncias de pesquisas do que se convencionou chamar de cul- turas “exdticas”, que obrigam a um aporte avesso ao anacronismo psicolégico, segundo 0 qual poder-se-ia aplicar a todos os represen- tantes da espécie humana as caracteristicas que sao especificas daquele que os pensa. Especialmente a partir de uma certa tradicdo ‘na Antropologia, iniciada com Mauss (1974),? passa-se a perceber que a prépria categoria “individuo”, tao cara as diversas psicolo- gias, além de construida histérica e socialmente, é um valor. Nesta seqiiéncia, Louis Dumont 6 outra referéncia central. Cabe destaque, a, &fertiidade de desenvolvimentos tedricos que se deram nesta linha, em not pals, com Gilberto Velho, Roberto Da Matta, Jane Russo e Luls Fernando Dias Duarte, para citar alguns, I HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS" 19, Desse modo, de posse das férteis articulacdes com as cons- trugées histérica e antropolégica, torna-se possivel & Psicologia expandir a critica ao etnocentrismo, para fazer despontar uma du- pla preocupagao com a variagéo espacial e temporal das mentalida- des. A Psicologia pode e deve manter uma intima relagdo com estas disciplinas, e, mais do que se perguntar se hé uma forma geral de representacao de si e do mundo, se hd uma mentalidade ou “in- consciente coletivo” (Ari8s, 1990) a reger as trocas simbdlicas de uma época, voltar-se para o exame da forma como o homem se singulariza nesses espacos e tempos. So miiltiplas, portanto, as trajetérias possiveis de se percor- rer, uma vez que se proponha a lancar mao de construgées tedricas, que ultrapassem as margens exclusivas dos saberes psicolégicos. A Historia da Psicologia, motivo central deste trabalho, pode expor- nos diante da contextualidade dos fatos humanos, na qual 0 pano de fundo universalista dos saberes “psi” dilui-se, bem como as reni- tentes pretensdes de construgdo de um discurso verdadeiro sobre as diferentes qualidades e condigdes com que se organiza a alma, 0 comportamento, a consciéncia, dentre outros objetos.(A subjetivi- dade pode ganhar novas visibilidades diante da enunciagdo de sua historicidade, os homens podem tomer corpo num tempo e num #8paco que os definem, como pertencentes a uma dada época & pera uma dada area social, econdmica, geografica e linguistica. Hibridar Psicologia e Histéria pode, além de tudo, oferecer um Instrumento critico que justaponha a normalidade de um presente a diferenca de outras organiza¢es}- econdmicas, politicas, cultu- rals, existenciais -, que, apoiando-se na moda de passados findos, reletivizam a ortopraxe e a ortodoxia do sistema em que viverios, (Certeau, s. d., p. 13). O recurso ao passado é vital. Exige 0 con- fronto entre praticas e andlises heterogéneas. Pode fornecer a forca tranagressora da inventividade humana, politizando a criatividade, 9 inacebamento do fazer e da narracéo. Como diz Paul Veyne, “os tatos humanos no so evidentes por si mesmos”, e a curiosidade reside em se perguntar por que nao seria possivel fazer de maneira diterente da que se pensa ou jé se pensou. O apelo a Histéria pode ‘ugerir, assim, novas técnicas e objetos “psi”, distintos daqueles oristalizados em espacos privados e intimistas. Deste modo, investigagdes que remetem a disciplina psicol6gi- (08 08 seus contextos de produ&o, que exploram os paradigmas Construldos no campo palcoldgico, que snalisam hébitos ou regras 20 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS. compartithadas pela comunidade de pesquisadores de uma determi nada época, que recuperam as intengdes, as convengdes e os con- textos de producao desta disciplina, estas tém-se mostrados férteis. Tal esforgo pode ser triplice: a andlise de “orientacées, para- digmas, probleméticas e instrumentos de pesquisa” dessa disci nna; a pesquisa do processo de institucionalizacao através da qual a disciplina procura se estabilizar do ponto de vista de sua organiza- G80, @ a discussao dos primeiros esforcos de constitui¢éo do cam- po de trabalho, com os quais, em principio, os integrantes da comu- nidade cientifica se aram (Lepenies, 1983, p. 38). ilhas” no encontro /Psicologia © caminho nao é todavia tranqiiilo, e armadilhas precisam ser evitadas. Primeiramente, é necessério romper com um determinado tipo de literatura na Hist6ria da Psicologia, que persiste em ater-se a0 territério restrito da memoria pessoal ou coletiva, E verdade que, entre Histéria e meméria, as relacdes sao fortes, e muitas das ne- cessidades de rememoragao estiveram, com freqiéncia, na base de investigag6es rigorosas e originals. Mas nem por isso Hist6ria meméria sao identificdveis. A primeira estd inscrita na ordem de um saber trabalhado criticamente, “universalmente aceitavel” e, para alguns, “cientifico”. A segunda 6 movimentada pelas exigéncias existenciais de comunidades ou pessoas para as quais a presenca do passado no presente 6 um elemento essencial de seu ser coleti- vo pessoal (Chartier, 2000, p. 19). Além disso, & preciso destacar que os “depoimentos”, em geral utilizados nesse tipo de literatura, esto interna e externamen- te subordinados a restri¢des. Em outros termos, nem tudo tem o direito de ser dito: “os tabus, a loucura, 0 erro (conhecimento falso) atestam todo um esfor¢o no sentido de silenciar o que oferece pe- rigo” (Pinho, 1998, p. 184) Procedimentos demarcam as fronteiras de cada discurso, limitando, ‘ou melhor, impondo regras a sua livre circulagao. Sao os rituais de enunciago (que requerem gestos, comportamentos e circunstén- clas especificos), a engrenagem editorial, as associagées criadas para garantir a manutenco de determinado saber, os sistemas dou- trinais, educacionais etc. (Pinho, 1998, p. 184) HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS* 2 Em contraposicao a Histéria, a meméria ajusta-se as necessi- dades de construgao de uma identidade. E, neste jogo, as violén- cias, 0s erros e nao raramente as lutas que tiveram lugar tém que ser esquecidas ou interpretadas de maneira que néo impecam o sentimento de unidade, que permitam a producao de uma narrativa coerente, uma escritura harménica da disciplina. Deste modo, 6 um bom antidoto caminhar além da memoria e em prol de uma Histéria da Psicologia, caminhar na diregao de cap- tar 0 processo de constituigao da Psicologia, no qual as experién- cias, os projetos ¢ as lutas dos que se opuseram, perderam ou foram abafados também tenham presenga, o que implica realizar uma pesquisa que nao se fixe somente nos “resultados”, isto é, no projeto hegeménico, nas leis aprovadas, nos livros que ficaram, nos homes reconhecidos (Mancebo, 1999c). As contradi¢des devem ser analisadas pela Histéria da Psicologia no sentido discutido por Orlandi (1987, p. 31): 0 “espaco de dissensdes multiplas”, 0 espa- G0 em que se mantém “o discurso em suas asperezas milltiplas”. Sob tal orientacao historiografica, a leitura dos textos - espe- claimente as fontes documentais primérias - também se altera. Pri- meiro, porque nao se trata mais de Ié-los na busca de uma “unida- de" que pudesse totalizé-los, mas de multiplicé-los. Desse modo, em vez de se analisar a “estrutura interna de uma teoria”, como fazem as “descricdes epistemolégicas ou arquiteténicas, a anélise Pode se encaminhar para uma articulaco miltipla, para uma plura- idade de registros, interessando-se por intersticios e desvios” (Orlandi, 1987, p. 30). Depois, é preciso também se precaver quan- to aos perigos de se manter a independéncia soberana e solitaria dos discursos psicolégicos. Como em Foucault (1981), deve-se manter a preocupagao em estabelecer “formas especificas de arti- culagéo” entre discursos e dominios ou “ ai vos”, ‘sistemas no discursivos’ ou, ainda, em descobrir todo esse sistema de institui¢des, de pro- 880s econdmicos, de relagdes sociais sobre os quais se podem articular os textos e os conceitos que os abarcam, néo mai “teencontrar um encadeamento causal” entre, por exemplo, ‘conceit @ uma estrutura social”, mas para captar um “tipo proprio, de historicidade” em que se esté enredado, relacionada a “todo um @onjunto de historicidades diversas”. Outro aspecto cuja persisténcia deve ser evitada refere-se as Intermindvels séries de influéncies tho comuns nos manuais de “Histé- sta de Psicologia”. Conforme Lepenies, as influéncias so, sem divide, 22 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS } menos importantes que uma rede de relagSee interdaciplinares ((0."R howsra de toda dscpina deve sera histria das suas rele Cs com es outs cscipings, daquelas que sia mita como mode- ® Ios, toma como aliadas, tolera como vizinhas, rejeita como concor rentes ou despreza como inferiores. (1983, pp. 39-40) Por fim, € possivel se aperceber que, na formagao de um sa- ber especifico sobre 0 homem, no se encontra exclusivamente um suporte epistemolégico. Os textos apresentam-se associados inva~ riavelmente a um componente politico e, mais do que mecanismos repressivos, envolvem relagdes de forca, eficdcias estratégicas, té- icas politicas. Passa a fazer parte do oficio do historiador da Psico- logia a tarefa de revelar 0 regime politico inerente as praticas dis- cursivas e nao discursivas, as redes de poder, as configuracées culturais e histéricas que resultaram na produgao de objetos, méto- dos e tratamentos para a Psyché. Isto implica, de um lado, a superagdo do “modelo filosético” que postula @ leitura de “escolas”, “estilos" ou “tendéncias” do pensamento erudito e institucionalizado como uma extensa ¢ inin- terrupta cadeia de interlocutores que se sucederam e se revezaram no tempo. Significa, ainda, pér em xeque o “modelo da como philosophia perennis” (Warde, 1997, p. 290), em pro! de uma outra metodologia que secundarize as relacdes de continui- dade (sucessores e predecessores) e releve as relacdes de luta que se travaram contemporaneamente. Implica, igualmente, superar 0 entendimento de que as dindmicas disciplinares so impelidas pelo motor interno das idéias, em favor de uma compreensao “contex- tualizada” das idéias, do pensamento, das teorias. Isto significa, também, repensar radicalmente os procedimen- tos historiogréficos, j que ndo se trata mais de buscar formas de manifestagéo de um fendmeno ao longo da histéria, de partir do objeto, do sujeito, de uma teoria “plenamente” constitulda para ver como ele havia se manifestado em diferentes formagées sociais. A questo que aqui se advoga ¢ a de perceber de que maneira as iprdticas discursivas e as néo discursivas, as redes de poder consti- ® tuem determinadas configuragées culturais e histéricas que resul- tam na produgao de determinados objetos e de determinadas figu- ras sociais (Rago, 1995 Trata-se, enfim, de levar a sério a questo levantada por Rodrigues: HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS" 23 // Enquanto privilegiarmos 0 epistemoldgico e o téenico, em detrimen- { to do histérico (poltico @ micro-pottico), néo estaremos, necessa- \ fiamente,logitimando saberes-competéncias- GANTOS, Boaventura de Souza (1997). Um discurso sobre as clén- clag, G.ed, Porto, Afrontamento. 26 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS: SERRES, M. (1993). Filosofia mestica. Rio de Janeiro, Nova Fron- teira. WARDE, Mirian Jorge (1997). "Para uma historia disciplinar: Psico- Togia, crianga e Pedagogia”. In: FREITAS, M. C. F. (org.). His- t6ria social da infancia no Brasil. S80 Paulo, Cortez. Deise Mancebo Protessora titular e pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de doutora em Histéria e Filosofia da Educacao pela Pontificl idade Catélica de Sao Paulo. I AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUCAO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL DO SECULO XVI E XV Marina Massimi Histéria das idéias psicolégicas, na cultura luso-brasileira: do que se trata? A elaboracdo dos conhecimentos psicolégicos ao longo do mpo nas diferentes culturas é objeto de uma drea de estudos que denomina historia das idéias psicolégicas. Indica-se com este Rome a reconstrucao de conhecimentos e praticas psicolégicas pre- ntes no contexto de especificas culturas e sociedades, expressi- vos das diversas “visées de mundo” (Chartier, 1990) que as carac- terizam. Entende-se por viséo de mundo aquele conjunto de aspira- de sentimentos e de idéias que retine os membros de um mesmo grupo e os diferencia de outros grupos sociais. O estudo da cultura brasileira dos séculos XVI ao século XVIII : de fato, a produgao de idéias e de tentativas de sinteses cultu- 6 uma caracteristica marcante desse periodo hist6rico, confor- insiado por varios autores (Hansen, 1986; Morandé, 1984; , 1995; Pecora, 1994). Analisando 0 conjunto da producéo ira colonial, delineiam-se umas tem: relevantes NO que diz respeito a conhecimentos # préticas psicoldgicas, bem eomo ee di igniticativo de alguns sujeitos culturais 28 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS especialmente expressivos e atuantes no ambito da cultura of ou no da cultura académica e popular brasileira. Com efeito, apesar da fragmentagao e do autodidatismo que caracterizam a realidade do pals daquele perfodo, constata-se a existéncia de alguns grupos ou realidades culturais que apresentam uma certa homogeneidade, podendo assim ser considerados como sujeitos culturais, ou seja, sujeitos que representam, expressam, transmitem e preservam determinados modelos culturais. Evidenciaremos, a seguir, alguns topics da produ¢ao cultural brasileira do periodo entre 0 século XVI e as inicios do século XIX, que podemos reconhecer como significativos para a histéria dos conhecimentos psicolégicos na cultura ocidental. Os jesuitas como portadores e transmissores de idéias psicolégicas Ordem religiosa recém-surgida quando da vinda de seus pa- dres missionérios ao Brasil, junto da armada do Governador Geral portugués Tomé de Souza, em 1549, a Companhia de Jesus se originara num contexto cultural muito fecundo da Europa da época. Com efeito, seus inicios aconteceram no Ambito de um pequeno grupo de docentes e alunos da Universidade de Paris, local de con- vergéncia da tradi¢o medieval e dos novos fermentos do Humanis- mo e do Renascimento; além disso, a identidade hispanica de seu fundador, Indcio de Loyola, e de varios entre os primeiros adeptos, proporcionava a colocagéo da Companhia no amago de um dos mais importantes movimentos culturais da Europa da época: a Se- gunda Escoléstica ibérica, escola filoséfica que tencionava abarcar e discutir as novas teorias dos filésofos renascentistas e, a0 mes- mo tempo, manter uma ligacdo estreita com a tradi¢ao filoséfica crist. Alguns dos membros da Companhia estiveram mesmo entre 08 mais ilustres representantes desta corrente de pensamento (Fran- cisco Suarez, Pedro de Fonseca, Luis de Molina) A proveniéncia portuguesa ou hispanica de grande parte dos jesuitas que apés 1549 chegaram no Brasil, bem como 0 fato de sua formacao espiritual e intelectual ter sido realizada no Colégio das Artes de Coimbra, que fora um dos focos do referido movimen- to filos6fico, reforga ainda mais a significagao do papel cultural que [AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUGAO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS 29 08 jesuitas assumiram no Brasil: 0 de portadores e transmissores da tradic&o medieval e renascentista da Europa no contexto da colénia além-mar, tendo eles propiciado e em parte se encarregado de rea- zar 0 enxerto das idéias, sonhos e desilusées, riquezas e contradi- ges do Velho Mundo no terreno fecundo, virgem e desconhecido do Mundo Novo, onde irdo estabelecer sua morada. A educagao 6 reconhecida pelos religiosos ~ imbuidos pelo espirito da pedagogia humanista — como instrumento privilegiado Para criar um homem novo e uma nova sociedade no Novo Mundo.’ Por isso a educacao das criangas e a criaco de escolas se consti- tutram os objetivos prioritérios do plano missionério da Companhia No Brasil. Esse empreendimento acarretava a necessidade de for- mular conhecimentos ¢ priticas de cardter pedagégico e psicoldgico. Cabe ressaltar outro motivo que justifica o interesse do estudo do saber dos jesuitas do ponto de vista da Psicol6gicas no Brasil: uma das dimensées principais da es dade da Companhia e de sua formacao € a énfase no conhecimento de si mesmo @ no didlogo interpessoal visando & compreensao da prépria dindmica interior. O discernimento dos espiritos e a direcao itual, por exemplo, recursos utilizados na Companhia para a formacao de seus membros, so expressdes de uma atenco toda moderna para com 0 cuidado de si mesmo e tornam-se normas para ida individual e social no ambito da Companhia. Esses recursos Préticos eram aplicados a vida do individu, sendo porém funcio- ' Com ito, assim como muitos entre os europeus que viersm para as Améri ons, 08 jesuitas chegaram ao Brasil carregando consigo fermentos milenaristas ‘que, expressivos da crise cultural e social da Europa quinhentista, levavam-nos a jsperanga de que aqui, no Novo Mundo, seria possivel realizar 0 que fora imposs Vol em seu contexto de origem. As Américas seriam, entio, o contexto onde seria izar 8 “utopia”. Nesta perspectiva, a criagko de escolas seria um dos. inminhos para possibiitar a realizagao do ideal preconizado. Tal objetivo fora re- fo1gado pela constatapo — apés alguns anos de experiéncia com os indios brasil ton -, de que estes no seriam propriamente tabula rasa, como era esperado: polo ‘oontrdrio, eram portadores de ums cultura e de um ethas muito diferentes, © as vers radicalmente opostos & cultura ¢ aos ve igiosos @ morais dos euro: aus, conforme é documentado pela correspondéncia jesuitica escrita do Brasil a0 longo do eéculo XVI (Massimi et al, 1997). Daqui nasceu a necessidade urgente col8s para formago dos meninos, pois na tenra idade seria mais le que se pretendera moldar. E, pois em poucos anos os jesultas conse- {Quiram conetrult @ tornar operativas uma rede de instruc&o de primeiro, segundo & oelro grave nae diversas regi6es de aus presence m) Je crlaco do

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