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real at @) principe eo Carte Mark Twain Recontada por Silvana Salerno Tustrada por Rogério Borges 1. Cm principe eum mei nascem no mesmo ata antiga cidade de Londres, num dia de outono da segunda metade 4, culo XVI, nasceu um menino na familia Canty, que, de to pobre, y3, queria aquele bebé. No mesmo dia, outra crianga inglesa nascia na nobre fam, Tudor, que ficou extremamente feliz. Nao s6 os Tudor queriam aquele bebe; todos os ingleses 0 queriam. Os ingleses haviam esperado tanto por esse momento, haviam rezado tanto po, ele que, quando o menino nasceu, ficaram loucos de alegria. Foi decretado feriado, ricos ¢ pobres festejaram juntos nas ruas. De dia, dava gosto ver Londres com a5 casas enfeitadas com bandeirinhas, cortejos passando pelas ruas com espetéculos de teatro. A noite, acendiam-se fogueiras e a festa continuava, com mtisica e danca, Em toda a Inglaterra nao se falava de outra coisa que nao fosse o herdeiro do trono, o filho do rei Henrique VIII, Eduardo Tudor, o principe de Gales, que dormia com roupinhas de seda e cetim. Mas ninguém comentava o nascimento do outro bebé, Tom Canty, que dormia entre farrapos, Vamos deixar passar algum tempo, Londres tinha mil e quinhentos anos ¢ era uma grande cidade, com cem mil habitantes. As ruas eram estreitas e sujas, especialmente na drea em que Tom vivia, no longe da Torre de Londres. As casas eram de madeira, em geral de erés andares. As janelas eram pequenas ¢ se abriam Para fora como Portas, 10 Oprincipe eo mendigo ‘Tom morava numa viela suja chamada Offal Court. A : a em que nascera era pequena eestava em ruinas, mas nela viviam varias famflias miserive . Sua familia cupava um quarto no tereeiro andar, A mie ¢ 6 pai dormiam num canto, numa Bet ¢ Nan ~ podiam escolher onde se deitar, pois tinham todo o chao para dormir, Cobertores esfarrapados e um expéie de colehio, mas Tom, a avé eas duas ims poco de pala sua faziam as yezes ce cama para eles Bete Nan tinham quinze anos, Eram gémeas, de bom coragao e profundamente orantes. AS mas eram boas como a mie, mas 0 pai ¢ a avé eram uma dupla de sndnios. Viviam bébados e estavam sempre brigando e xingando. John Canty era Jado, ¢ sua mée, mendiga, O pa transformou os filhos em mendigos, mas nao conseguitr que se tornassem ladrées, Um velho ¢ bom padre, que h avia sido despedido pelo rei com uma pensio «go baixa que néo dava para morar em outro lugar, vivia naquele ambiente horrive. © padre Andrew gostava muito das criangas ¢ costumava reuni-las para orienté-las jo caminho do bem. Foi com ele que Tom aprendeu a ler ea escrever, além de um pouco de latim; suas itmas nao quiseram estudar com 0 padre, pis tinham medo da zombaria das amigas. O beco era povoado de cortigos como o da familia Canty. A bebedeira, 2 desordem eas brigas dominavam o lugar, is vezes, se prolongavam pela madrugada. © pequeno Tom era infeliz. Nao gostava da vida que levava, que era mesma de todos os garotos de ld. A noite, quando voltava para casa sem ter conseguido nenhum trocado, sabia que seu pai Ihe daria uma surra e sua av6, outra. Quando se deitavam, sua mae faminta lhe passava um pedago de pao duro que deixara de comer para guardar para ele, apesar de saber que, se fosse descoberta, apanharia do marido. No verdo, a vida de Tom era mais tranquila, Mendigava o suficiente para no apanhar; no tempo que sobrava, ouvia do padre as histéras de fadas e gigantes, duendes e génios, castelos encantados com principes € princesas; sua cabega ficava tomada por esse mundo fantastico. Diversas noites, cansado e faminto, deitado no chao, com 0 corpo todo doido, ele soltava a imaginagao ¢ logo esquecia as dores, transformando-se em um principe que vivia num majestoso palicio. Um principe © um mendigonascem no meso dia WT Uma ideia, com o tempo, comegou a obcect-lo die noites cle quer, A Ver un, principe de verdade. re Ihe emprestava c ouvia as explicagoe {i f plicagses que the g, Tom lia 0s livros que o pad fo mudangas nele. As pessoas dos se leituras ¢ os sonhos foram causand is sat 4; . Sonh vin mais andar sujo e maltrapilho, Contin, r a ntes que ele nfo que 1 valorizava a port idade que tinha ¢, Oe te e brincar na lama como antes, ma lavar no rio depois. havia feiras ¢ outras divers6es, como Parada, Para os garoros se diserafrem, a pristo da Torre de Londres, s. Num sendo levados pa trés homens serem queimados numa fogue BUcirg, militares ¢ presos famos¢ dia de verio, Tom viu uma moga ¢ ariada ¢ interessante. de modo geral, a vida de Tom era v a ptincipesca. Aos poucos, se » Sem Sim, ea sonhar com a vid Ele continuava a I agir como um principe. Seu modo d ara divertimento da vizinhanga. No entanto perceber, comevou & Je falar suas maneiras rornaram-se gentis € cerimoniosos; Pp’ os meninos aumentava a cada dia, to! Sabia fazere dizer coisas ¢ ele comecou a ser vistg sua influéncia entre como um ser superior. Tom parecia ter tanto conhecimen | Fra considerado um sabio. am aos pais o que Tom fazia cles tam jindria. Os adultos 0 procuravam para le suas respostas. Ele foi maravilhosas Os meninos contay: lo como uma criatura extraord eficavam perplexos com a sabedoria d eo conheciam, menos para seu pai € sua avd. m, Ele era o principe, seus bém comecaram a encaré-l solucionar suas diividas ando um her6i para todos os qui ou-se uma corte ao redor de To real ¢ os outros eram oficiais, chanceleres, lordes ido com o cerimonial que se torn: ‘Aos poucos, form: res amigos formavam a guarda o principe imaginério era rece a. Todos os dias, os assuntos mais importantes tera, o principe, criava leis melhot ¢ damas. Todos os dias, “Tom aprendera nos romances que li do reino eram discutidos pelo conselho real, e Sua Al para o Exército ea Marinha. Depois disso, ia mendigar alguns centavos e, no fim d onde comia seu pao duro e apanhava, como sempre; entao, sua e sonhava com reinos e grandezas. A cada dia, porém, aumentava o seu descjo de conhecer um principe de verdade, ¢ essa ideia tornou-se o objetivo de sua vida. lo dia, voltava para casa, deitava-se na palha 12 Oprincipe eo mendigo Num dia de janeiro do inverno londrino, Tom saiu para pedir esmol : olas © ng conseguiu nem uma moeda. Era um dia gelado, ¢ ele vagou horas a fio. D a escale 0 e-sem agasalho, parou em frente a uma confeitaria ¢ admirou os doces d joces da vitri ine; imaginava que aquelas guloscimas fossem feitas pelos anjos. a chover, € 0 dia ficou ainda mais escuro melancélico. A Noite, Domesou volkou para casa to molhado ecansado que até seu pai esuaavé ficaram, a se » a.Seu modo, com pena dele. Deram alguns tapas no garoto ¢ o mandaram dormir. O cans : Sago, » frio e a fome espantaram seu sono; ficou ouvindo as brigas dos vizinhos até rinhos até que «eu pensamento vou para bem longe ¢ ele sonhou que era um principe que vi e vivia com outros principes num imenso palicio e possuia servos & sua volta executand. indo todos os seus desejos. que o reverenciavam, num ambiente perfumado. A noite inteira, a gléria real brilhou sobre ele. Caminha a va entre lordes e damas Demanb4, 20 acordar olhar onde estava, 0 contraste com seu sonho intensif cou a miséria e a sordidez de onde vivia, Entio ele chorou, com 0 corasao apertado, 14 Oprincipe ¢ o mendigo 2. O encontro de G om com o principe ‘om acordou morto de fome. Saiu de casa e perambulou pelas ruas, Com o pensamento voltado para as maravilhas que vivera no sonho, esqueceu-se fome e foi andando sem rumo pela da fon lade. [As pessoas o empurravam ealgumas the davam bronca, mas ele nem percebia, ego imerso estava nos seus pensamentos, Caminhando sem olhar para onde ia, acabou chegando ao Bar Temple; nunca havia se afastado tanto de casa. Parou, olhou ao redor e voltou ao seu mundo interior; e, dessa forma, foi andando até atravessar a muralha de Londres. Pegou uma bela alameda e chegou a um paldcio majestoso, Olhou maravilhado para aquela enorme construgdo, as torres ¢ os bastides sisudos, 0 imenso portéo com grades douradas, os gigantescos leées de granito ¢ outros simbolos da realeza. O desejo de Tom seria finalmente satisfeito? Agora, era realidade: cle estava em frente ao palicio real... 0 Palicio de Westminster! Ser4 que veria um principe de carne € osso? De cada lado do portao havia uma estatua viva, isto é, um guarda imponente € imével, com uma armadura de ago que o cobria da cabeca aos pés. A uma distincia respeitosa, um grupo de pessoas esperava uma oportunidade de ver alguém da realeza. Carruagens luxuosas com pessoas esplendorosas entravam ¢ safam pelos diversos port6es da mansio real. Pobre Tom! Todo esfarrapado, com o coragio saltando do peito e uma enorme esperanga, foi andando timidamente € passow pelas sentinelas. Nesse momento ele viu, pelas grades do portéo, um menino bonito, com roupas de O encontro de GFom como principe 15 seda e coberto de joias, Usava botas de saltos vermelhos, chapéu com ply, mas ¢ leyava uma espada incrustada com pedras preciosas. Havia varios cavalhe, tos s servidores, sem diivida. s lado dele = se “Um principe... de verdade!”, pensou, vibrando de alegria. Sem foleg : : Se excitagao, aregalou os olhos, maravilhado, Enfioua cabega entre as grades para a ne Mirae © principe, mas um guarda o agarrou € o empurrou para o meio da multida P tidao, dizend, 0; — Tome cuidado, seu moleque! [As pessoas sua volta cairam na risada, Mas o principe, que observava ace na, imou-se do porto e disse ao guarda, com indignagao: — Como ousa maltratar esse pobre garoto? Abra 0 porto e deixe-o entrar Entusiasmado com a atitude do principe, 0 povo gritou: — Vida longa ao principe de Gales! Os guardas abriram 0 portéo e deixaram 0 Principe dos Pobres entrar, pag dar as méos ao Principe dos Ricos. Eduardo disse a Tom: — Voce parece cansado e faminto; venha comigo. Meia diizia de servos se postaram a frente dele para interferir. Eduardo tirou-os juxuoso gabinete. Logo depois, foi servida uma refeicio de cena e levou Tom a seu I a nio ser nos livros. O principe pediu que que o garoto nunca havia visto na vida, os servos se retirassem, para deixar o héspede vontade. Sentou-se 20 lado de Tom ¢ foi lhe fazendo perguntas enquanto ele comia. — Como se chama? —Tom Canty, senhor. —£ um nome diferente. Onde mora? — No centro da cidade, na Offal Court. — Offal Court! Que nome original! Vocé tem pais? ~Tenho pais, uma avé que, Deus me perdoe, preferia nao ter, e duas irmis gémeas: Nan e Bet. — Sua avé nao gosta de voce? ~ Ela nao gosta nem de mim nem de ninguém; o que gosta mesmo é de fazer maldade. — Ela bate em vocé? 16 Opprincipe e 0 mendigo Minha avé s6 niio me bate quando esté bébada ou dormindo, No resto do compo, cla me di cada sutt O qué? Surra’l = exclamou 0 principe, indignado. Isso mesmo, senhor, ela me espanca Espanca um menino! Mas pode deixar que, ainda hoje, vou pedir a0 rei, meu pai, para prendé-la na Torre de Londres. = Na Torre de Londres? Mas a Torre ¢ para presos importantes, ¢ minha av6 éuma mendiga... — E verdade... Vou pensar num castigo para ela. E seu pai ele bom para voc? — Tio bom quanto minha avd, senhor. = Parece que 0s pais sio todos parecidos. © meu pai também nio é ficl; ele tem a mao pesada, mas nao comigo. Comigo, ele conversa e dé conselhos. E sua mae, como &? — Minha mie é muito boa; nunca me bateu. Minhas irmas, Nan e Bet, sao como ela. — Que idade elas tém’ — Quinze anos, senhor. — Minha irma Elizabeth tem catorze anos, ¢ Jane Grey, minha prima, tem a minha idade; as duas sio muito simpéticas. Mas minha irma Mary est sempre carrancuda... Diga-me uma coisa: suas irmas protbem suas servas de sorrit? — Ah, senhor! Imagina que elas tenham criadas? O principe contemplou Tom gravemente por um momento e disse: = Por que nao? Quem as ajuda a se vestir de manha ea se despir & noite? — Ninguém. O senhor acha que elas dormem sem o vestido, como os animais? — O yestido? Elas s6 tem um vestido? — Ah, senhor! O que fariam com mais? Elas s6 tém um corpo... ~ Esse é um pensamento maravilhoso! Perdao, nao tive a intengao de ofendé- -lo. Vou providenciar agora para que Nan ¢ Bet tenham roupas e camareiras... Nao, nao me agradega. Mas diga-me uma coisa: onde vocé aprendeu a falar tao bem? Vocé estudou? —O bom padre Andrew ensinou-me, nos livros dele. Oencontro de Fomcomo principe 17 seda ¢ coberto de joias, Usava botas de saltos vermelhos, chapéu com plumas ¢ levava uma espada incrustada com pedras preciosas. Havia varios cavalheiros ag lado dele = seus servidores, sem dtivida “Um principe... de verdade!", pensou, vibrando de alegria. Sem folego pela exsitagio, arregalou os olhos, maravilhado, Enfiou a cabega entre as grades para admira, ArroU €o empurrou para o meio da multidao, dizendo. © principe, mas um guarda od dado, seu moleque! volta cafram na risada, Mas o principe, que observava a cena, — Tome As pe aproximou-se do portio ¢ disse ao guarda, com indignacao: ~ Como ousa maltratar esse pobre garoto? Abra o portéo e deixe-o entrar Entusiasmado com a atitude do principe, 0 povo gritou: ~Vida longa ao principe de Gales! Os guardas abriram 0 portio e deixaram 0 Principe dos Pobres entrar, para dar as mos a0 Principe dos Ricos. Eduardo disse a Tom: ~ Vocé parece cansado e faminto; venha comigo, Meia dizi de servos se postaram & frente dele para interfer, Eduardo troucos de cena e levou Tom a seu luxuoso gabinete. Logo depois, foi servida uma refeicao que o garoto nunca havia visto na vida, a nao ser nos livros. O principe pediu que Os servos se retirassem, para deixar o héspede A vontade. Sentou-se ao lado de Tom ¢ foi lhe fazendo perguntas enquanto ele comia. — Como se chama? — Tom Canty, senhor. ~E um nome diferente, Onde mora? — No centro da cidade, na Offal Court, ~ Offal Court! Que nome original! Vocé tem pais? ~Tenho pais, uma avé que, Deus me perdoe, preferia nao ter, e duas irmas gémeas: Nan e Bet. — Sua avé nao gosta de voce? — Ela bate em vocé? 16 O principe e 0 mendigo Minha avd s6 nado me bate q do esta bébada ou dormindo, No resto do rempo ela me di cada sutra © qué? Surtatl < exclamou o principe, indignado Isso mesmo, senhor, cla me espanea. Espanca um menino! Mas pode deixar que, ainda hoje, vou pedie a0 rei ime pai, para prendé-la na Torre de Londres, : Na Torre de Londres? Mas a ‘Torre é para presos importantes, e minha avé Guma mendigas. E verdade... Vou pensar num castigo para cla, E seu pai ele ébom para voc? — Tao bom quanto minha avd, senhor. — Parece que os pais sio todos parecidos. © meu pai também nao ¢ facil; ele gem a mao pesada, mas no comigo. Comigo, ele conversa ¢ da conselhos. E sua mie, como & — Minha mie é muito boa; nunca me bateu. Minhas imas, Nan ¢ Bet, sio como ela. — Que idade elas tém? — Quinze anos, senhor. = Minha ima Elizabeth tem catorze anos, ¢ Jane Grey, minha prima, tem a minha idade; as duas sio muito simpaticas. Mas minha irma Mary est sempre carrancuda... Diga-me uma coisa: suas irmas proibem suas servas de sorrir? — Ah, senhor! Imagina que elas tenham criadas? O principe contemplou Tom gravemente por um momento e disse: — Por que n4o? Quem as ajuda a se vestir de manha ea se despir & noite? — Ninguém. O senhor acha que elas dormem sem 0 vestido, como os animais? —O vestido? Elas sé tém um vestido? ~ Ah, senhor! O que fariam com mais? Elas s6 tém um corpo... ~ Esse é um pensamento maravilhoso! Perdao, nao tive a intengio de ofendé- -lo. Vou providenciar agora para que Nan e Bet tenham roupas ¢ camareiras... Nao, nao me agradega. Mas diga-me uma coisa: onde vocé aprendeu a falar tao bem? Vocé estudou? —O bom padre Andrew ensinou-me, nos livros dele. eencontro de Tom como principe IZ Aprendeu latim? Muito pouco, eu imagino. Vale a pena aprender; s6 € dificil no comego. O grego é mais dificil. Mas sora fale-me da Oflal Court. Vive-se bem 4? ‘Sim, menos quando temos fome. Assistimos a teatro de marionete, shows aatro em que todos os atores lutam até morrer. £ muito com macacos ¢ pegas de te: bom e custa um centavo, mas é bastante dificil conseguir esse dinheiro. — Conte mais. — Os garotos da Offal Court brincam de lutar com bast6es como se fossem soldados. Os olhos de Eduardo brilharam. — Que bom! E uma coisa que eu gostaria de fazer. Conte mais. — Apostamos corrida para ver quem é 0 mais répido. — Isso eu também gostaria de fazer. Continue. — No verio, brincamos nos canais € nos rios, jogamos Agua uns nos outros, nadamos, mergulhamos, gritamos e. _ Eu daria o reino do meu pai para fazer isso pelo menos uma vez. Por favor, continue. — Cantamos e dangamos em Cheapside. Brincamos na areia; cobrimos um a0 utro de areia e, as vezes, rolamos na lama. Ah, senhor, nao existe nada melhor do que rolar na lama! — Por favor, nao diga mais nada! Se eu pudesse ficar descalgo e vestir-me com farrapos para me esfregar na lama uma tinica ver, sem ninguém a meu lado para me vigiar ou proibir, seria capaz de renunciar & coroa! ~ Ah, se eu pudesse me vestir uma tinica vez com suas roupas, caro senhor, — suspirou Tom. — Vocé gostaria? Entao vamos mudar de roupa ja, antes que alguém nos atrapalhe. Num instante, eles se trocaram, Com os farrapos de Tom, o principe de Gales ficou irreconhecivel, assim como o Principe dos Pobres, que parecia um principe de verdade. Olharam-se no espelho e s6 entio perceberam como eram parecidos. 18 Oprincipe eo mendigo —Temos 0 mesmo cabelo, oe OS Mesn / : ; mos olhos, o mesmo rosto, a mesma Voz e até as mesmas manciras — disse 0 princi “< © Principe. — Nossa alt a fot é z tura © nosso corpo sao suais; ninguém vai pe fi iguais: ninguém val perceber-a trocal Com suzs toupas, See Ps » poder 2 sentiu quando aquele guarda o maltratou, Néo sala deareae nt tt ne, . aia o principe, despedindo-se. daqui até minha volta ~ disse Saiu do pa cio, atravessou 0 jardim, e no 2 Portio foi abordado pelo guarda que — Tome isto, mendigo, pela bronca que Sua Alteza mi — disse © guarda, , mendigo, pela bronca qu Alteza me deu! — di gt dando-lhe um tapa na orelha que o fez rodopiar ¢ cair n hi 7a b ae 10 chao. — Sor sales, como se atrev ~ tespondeu Eduardo. uo principe de Gales, Se atreve a me agredir? — respondeu Eduard oy 2 le indignado. — You mandar enforcé-lo! ‘ A multidao que os rodeava caiu na ri n s caiu na risada, enquant a to Eduardo sai: 4 oie ia do palacio, eencontro de Fom como principe 19 inci confusq 3. O principe e om se metem em confusdo duardo foi perseguido um tempao pelo povo, que se divertia as custas daquele mendigo que se julgava principe. Finalmente, quando as pessoas se cansaram ele ficou sozinho, nao sabia onde estava. Continuou andando até que, aos poucos, as casas foram rareando. Quando chegou a um riacho, aproveitou para lavar os pés, que sangravam. Descansou um pouco ¢, ao retomar o caminho, avistou uma grande igreja. Ficou animado; ele conhecia aquela igreja! “E a Igreja de Cristo, que meu pai destinou as criangas abandonadas’, disse para si mesmo. Criangas jogavam bola e brincavam no jardim. Ele ficou olhando para os meninos, até que eles pararam de brincar e perguntaram quem era € 0 que queria. — Sou Eduardo Tudor, filho do rei Henrique VIII. Gostaria de falar com o padre. — Ser que voce nao é 0 mensageito do principe, seu mendigo? O principe ficou vermelho de raiva e pés a mao na cintura, 4 procura da espada, mas n4o a encontrou. Os meninos cafram na risada. ~ Sou o principe! E vocés vivem as custas do meu pai! — Vocés compreenderam? Nés, pobres coitados, somos sustentados pelo pai de Sua Alteza! Vamos nos prosternar ¢ reverenciar seus farrapos! Ajoclhados, os meninos zombaram do principe, que reagiu dando um pontapé no garoto mais proximo. Imediatamente, eles pararam de rir. ~ Fora com ele! ~ gritou um. 20 O principe eo mendigo - gritou outro. suido por um longo escapado dos ces! Quanty {eia. Ao anoitecer, chegou g Yamos soltar os cachorro: cempo pelos cachorros, axe Eduardo foi esbofeteado e perseg voltaram ¢ ele pode parar. > Nao tinha a menor id 1 todo machucado, suas mao, Foi uma sorte ¢ que os ca ele tinha andado? Onde est ada da cidade, Seu corpo esta Je lama, Estava morto de cansaco, mag uma area muito povo am se coberto ¢ sangravam e seus farrapos tinh ; : sorientado, até que nao conseguiu mais pép continuou andando, completamente des um pé depois do outro, bes is pessoas, pois s6 recebia insultos como resposta, Parou de pedir inform : “A familia de Tom vai perceber que nag mas nao desistia de chegar & Offal Court, sou ele e vai me levar de volta ao pakicio”, pensou. Enquanto caminhava, rememorava tudo o que havia vivido. “Quando ey for rei, os meninos do Abrigo da Igreja de Cristo nao receberao s6 casa e comida, Vao estudar, terdo professores ¢ livros, pois, de que adianta comer se a cabeca ¢ © cora¢do estéo vazios?” Parou um pouco e disse para si mesmo: “Quantas coisas aprendi em tao pouco tempo! Vou guardar tudo na minha meméria para que o povo nao sofra mais desse jeito”. Escurecera completamente. Comegou a chover € a ventar, ¢ 0 principe, desabrigado, continuava a perambular, enveredando por becos sujos, onde as pessoas viviam amontoadas em corticos. De repente, um bébado o agarrou, dizendo: = Na rua esta hora? Garanto que néo trouxe um centavo! Se nio tiver trazido nada, quebrarei todos os oss0s do seu corpo, ou nao me chamo John Canty! O principe livrou-se bruscamente das maos que o seguravam e respondeu, com raiv. —John Canty? E 0 pai dele! Entao pode me levar para o palacio e pegé-lo li. ~ Pai dele? Palacio? Nao sei o que est dizendo, Sou seu pai e quero acertar as contas com vocé! ~ Nao brinque! — disse o principe. — Estou cansado e ferido, nao aguento mais. Leve-me para o rei, meu pai, que ele o recompensar’, Nao me acredita? Estou dizendo a verdade! Sou o principe de Gales! 22 Oprincipe eo mendigo O homem olhou-o, perplexo, —Vocé enlouqueceu, Tom! ~ disse, aparr 1 “¢ agarrando-o pelos ombros, = Louco ou. sutra, ou n: nfo, eu€ sua avé saberemos the dar uma boa ‘40 sou um homem de verdade! — completou, arrast ando o principe, Divertindo-se.com a cena, a multidio que se formata a0 redor deles os seguiu, Enquanto o principe ia para a casa de Tom, o que estava acontecendo com o priprio Tom? Ao ficar sozinho no gabinete de Sua Alter at ele aproveitou para se admirar no espelho. Andou imitando 0 porte do principe; * desembainhou a espada e beijou a lamina, como havia visto um oficial fazer na Torre de Londtes, Observouros més tando como o pessoal da Offal Court ficaria orgulhoso seo visse em tamanho esplendor, eadecoracao do ambiente e ficou imagin: Serd que acreditarao na minha historia ou vao pensar que perdi o juizo?” Depois de meia hora, pensou que talver o principe demorase ¢ comegou a se sentir 6, Parou de mexer nos objetos e ficou impaciente. © que aconteceria se alguém chegasse e 0 visse vestido com as toupas do principe? Nao teria como explicar. Comegou a ficar nervoso, Tremendo de medo, abriu devagarinho a porta da antecimara; imediatamente, seis servos e dois pajens levantaram-se e fizeram reveréncia, Ele recuou e fechou a porta, ~ Esto brincando comigo! Agora, vio contar para todos... ¢ eu vou morret! Tremendo de medo, pos-se a andar de la para ci no quarto, atento aos ruidos que vinham de fora. Logo, a porta se abriu ¢ um pajem anunciou: ~ Lady Jane Grey. Uma menina delicada, ricamente vestida, entrou, fazendo uma profunda reveréncia. Olhou para ele e perguntou, preocupada: — Esta se sentindo mal, meu principe? Pobre Tom! Ficou sem ar, mas conseguiu murmurar: ~ Por misericérdia, me ouga! Bu nao sou principe, sou apenas o pobre Tom Canty, que mora na Offal Court. Por favor, deixe-me ver o principe; ele devolverd ‘ aa ‘meus farrapos e eu poderei ir em paz, Por favor, salve-me! O principe e Tom se metem emeonfusao 23 O menino se ajoelhou, suplicando com os olhos e as maos. ; ee ; = Meu principe. de joelhos... ena minha frente?! ~ exclamou a menina, ¢ sai correndo do quarto me levarao,” “Nao hii mais saida’, pensou ‘Tom, “Agora ele Enquanto isso, uma noticia terrivel espalhava-se pelo palécio. A fofoca corrig .d Entio, surgiu um oficial proclamando por todo o palécio: salao em salao: “O principe enlouqueceu!”, entre os servos ¢ os nobres “EM NOME Do REI! Ninguém deve dar ouvidos a esse boato falso, nem comenté-lo ou espalha-lo, sob pena de morte!”, No mesmo instante, as fofocas acabaram. Logo depois, ouviu-se um murmiério pelos corredores: “O principe! O principe!”. O pobre Tom vinha devagas, passando pelos varios grupos de nobres. As pessoas the faziam profundas reveréncias,¢ ele tentava retribuir. Olhava com humildade 20 redor, completamente atordoado. Os duques caminhavam a seu lado, amparando-o, Axrds, vinham os médicos e alguns servos. Finalmente, entraram num rico aposento. Lé estava um homem grande ¢ gordo, de cabclosgrisalhos, com expressio consternada, Tinha uma perna enfaixada, apoiada em uma almofada. Sua roupa era luxuosa, porém velha e gasta. O silencio ra completo. Todas as cabecas estavam curvadas em reveréncia, exceto a dele, Esse homem de expresséo severa era Henrique VIII, o rei da Inglaterra. ~ E entéo, meu principe Eduardo? Quer assustar este bom rei, seu pai, que o ama tanto? ‘Tom mal conseguia entender o que se passaya, mas, quando ouviu “este bom rei, seu pai”, ficou at6nito. Ajoelhando-se, exclamou: ~O senhor é mesmo 0 rei? Entio, tudo se acabou! O tei ficou chocado. Seus olhos vagaram de rosto em rosto até se fixarem nos olhos do menino. 24 O principe € 0 mendigo ~ Meu Deus! Pensei que estivessem exagerando, mas vejo que disseram a pura e vendade. ~ Dando um suspiro, disse carinhosamente para Tom: ~ Venha com seu pai; meu filho! Ni se sence bem? Tremulo, o menino se aproximou. O rei o abragou, dizendo: _Nio reconhece seu pai, meu filho? Nao parta meu velho coracéo, diga que me reconhece. _ Sim, o senhor & 0 rei. Que Deus o proteja! Fique tranquilo, meu filho, nao precisa ter medo. Ninguém vai machucé-lo, todos gostam de voce. Esti melhoragora, nfo? Foi um pesadelo, nao? Conte-me tudo. — Peco que o senhor acredite em mim, eu falo a verdade. Sou um menino iisenivel, 6 estou aqui por acaso, Mesmo assim, sou muito novo para morrer. Por favor, Majestade, eu Ihe imploro! — Morrer?! Nao diga isso, meu principe. Fique tranquilo, vocé nao vai morrer! — Deus o proteja, meu rei, e lhe conceda vida longa! ~ exclamou Tom, exultante. Em seguida, virando-se para os nobres ali presentes, disse: - Ouviram? Eu nao vou morrer! O rei acaba de dizer isso! Ninguém respondeu. Tom hesitou, confuso, e voltou-se timidamente para o rei. —Posso ir agora? — Pode ir, se quiser. Mas por que néo fica mais um pouco? Aonde quer ir? — Gostaria de ir para o lugar onde nasci, onde moram minha mae e minhas irmés. Sempre vivi na miséria, no estou acostumado com toda essa riqueza. Por favor, Majestade, deixe-me ir! O rei ficou em siléncio. Sua expressio demonstrava um softimento profundo. Queira “Talvez ele esteja louco apenas nesse assunto”, pensou, esperangoso. Deus que seja isso. Vamos fazer uma experiéncia.” rei fez uma pergunta a Tom em latim ¢ ele respondeu, cometendo alguns erros. Os duques e os médicos ficaram contentes. — Nio esté de acordo com seu conhecimento, mas mostra que sua mente nao esté completamente abalada. O que acha, doutor? ~Concordo plenamente — respondeu o médico. O principe e GFom se metemem confusto 25 ste, fazendo a Tom Encorajado com a resposta, o rei decidiu continuar o tes uma pergunta em francé — Sinto muito, Majestade, no conhego essa lingua nimado. O rei caiu na poltrona, des Venha ci, meu filho. Descansea cabega no peito de seu paie fique tranquil Logo ficaré bom. E, voltando-se para as pessoas & sua volta, declarou: — Ougam todos! Meu filho esté louco, mas isso nao é definitivo. Foi causado pelo excesso de estudo e pelo fato de viver fechado no palicio. A partir de agora, ir até ficar curado. ~ Endireitou-se e prosseguiu, ele vai praticar esportes e se distr com energia: ~ Ele esté louco, mas é meu filho e 0 herdeito do trono. E, louco ou sio, ele ird reinar! Portanto, aquele que falar da doenca do principe seré enforcado! Os nobres ¢ os médicos fizeram reveréncias ao rei ¢ sairam. Tom foi acompanhado até os aposentos de Eduardo. Estava angustiado; nao tinha mais esperanca de ser posto em liberdade. Queria ficar sozinho para poder chorar, mas estava sempre rodeado de nobres ou criados. “Meu Deus, tenha pena de mim!”, pensou Tom. “A vida no palicio € muito diferente do que eu imaginava...” 26 Oprincipe eo mendigo 4, om recebe instrucdes fizessem 0 mesmo, mas eles Ihe disseram que 0 protocolo os proibia de se On foi conduzido a um belissimo saléo, onde se sentou. Pediu que os nobres sentarem na sua presenga. ~ Devo tratar de um assunto particular — disse lorde St. John. ~ Vossa Altera deve dispensar todos menos lorde Hertford. Observando que Tom nao sabia como agin, ele sussurrou cm seu ouvido que bastava fazer um sinal com a mao. Assim que todos safram, o lorde leu um documento: ~ “Sua Majesade,o rei, ordena que, por razées de Fstado, a doenga do principe de Gales ndo seja comentada com ninguém até que ele se recupere. Nesse periodo, © principe Eduardo deve cooperar da seguinte forma: 1. Nao deve negar ser o principe da Inglaterra, 2. Deve manter sua dignidade principesca, recebendo com naturalidade, sem protestar, as honras que lhe sao devidas. 3. Nao deve comentar a origem pobre e a vida miserivel que sua imaginagao criou, 4. Deve fazer um esforco para se lembrar de pessoas, nomes ¢ coisas que tiver esquecido e, se ndo conseguir, nao deve demonstrar 0 esquecimento aos outros. >- Nos assuntos do palicio e do governo, sempre que se sent indeciso ou tiver alguma dificuldade, deve aconselhar-se com lorde Hertford e lorde St. John, escolhidos por Sua Majestade para auxilié-lo, Sua Majestade cumprimenta Sua Alteza ¢ toga a Deus que o cure e proteja.” — St. John fez uma reveréncia € permaneceu ao lado do principe. 28 Oprincipe eo mendigo — Como o rei pediu que se distraisse, a que divertimento gostaria de se dedicar antes do banquete? — perguntou Hertford — Banquet?! — exclamou ‘Tom. Todos olharam para o menino, que ficou vermelho ao perceber que havia desobedecido As ordens reais. Sua meméria o traiu, mas nao se preocupe, isso vai passar — disse St. John. _ Ha dois meses, Sua Majestade programou um banquete na cidade, e sua presenga é indispensivel. N scrarem, Hertford pediu que nao estranhassem se 0 principe parecesse esquisito ¢ momento, lady Elizabeth ¢ lady Jane Grey foram anunciadas, Ao nem demonstrassem surpresa com sua falta de meméria, A conversa com elas foi dificil; Tom no sabia o que dizer. Quando a distraida Jane falou em grego com Tom, Elizabeth salvou-o, respondendo em seu lugar. Mas, quando elas disseram que estariam ao lado dele no banquete, ele ficou contente. O cuidado das meninas foi deixando Tom cada vez mais confiante; ja se sentia cotalmente & vontade com elas. Depois de conversarem um pouco, Elizabeth pediu licenga para se retirarem. — Minhas damas, podem conseguir de mim o que quiserem. Apesar de ser dificil para mim privar-me da sua presenga, eu as autotizo a se retirar. Satisfeito com 0 que havia dito, pensou: “Nao foi a toa que li tantos livros sobre principes! Aprendi a falar como os nobres!”. Quando as mogas se retraram, ele pediu para ficar sozinho. ~ Um desejo de Vossa Alteza é uma ordem. Vossa Alteza nao deve pedis, mas ordenar — disse Hertford. Tom foi levado a um aposento menor, Sentou-se e comegou a tirar os sapatos, mas um pajem correu e fez.0 servigo por ele, Em seguida, outro pajem tirou sua roupa ¢ vestiu-lhe uma camisola que ia até os pés, usada para dormir. “S6 falta respirarem por mim!”, pensou. Ele se deitou, mas nao conseguiu dormir, Os acontecimentos do dia ocupavam sua cabega. Além disso, 0 quarto estava cheio de criados; como nao haviam sido dispensados, eles tiveram de permanecer ali. Depois que o principe saiu, os dois lordes conversaram. ‘Tom recebe instrucoes 29 grave ~ disse Hertford. ~ O rei esté doente € © principe que subir ao trono perdeu o juizo. Que De a Ing Nao tem nenhuma diivida em relagio ao principe? — perguntou St. John, —A situagao erra! Is proteja =O que quer dizer? sme estranho que o principe tenha esquecido tudo 0 que aprendey — Parec ¢ viveu_de repente, Como ele repetiu tantas vezes que nao era principe, fiquej pensando que.. ~ Por favor! Esqueceu-se das ordens reais? Se eu ouvi-lo, serei seu ctimplice! — Reconhego que errei, sim! Por favor, néo me entregue ao rei! ~ Caro lorde, nao vou denuncié-lo, mas nao comente o que pensa com maig ninguéem. Fique tranquilo, esse jovem é 0 nosso principe. 2 iq! I J No entanto, Hertford pensava: “Ele tem de ser 0 principe! Poderiam existiz duas pessoas tao idénticas? E, se existissem, seria possivel que se encontrassem? Nao! Ese um impostor tomasse o lugar do principe, ele nao negaria ser 0 principe! A.uma hora da tarde, os pajens vestiram Tom com roupas luxuiosas ¢o levaram @ uma sala repleta de criados, onde havia apenas um lugar & mesa, com pratos de ouro. O capelio fez uma prece,e, em seguida, um conde amarrou o guardanapg Sree oregon O provador estava a postos: sua fungao era experimentar os pratos que Parecessem suspeitos, correndo 0 risco de morrer envenenado, imagine s6! Ao redor de Tom, estavam o despenseiro-chefe, 0 cozinheiro-chefe ¢ muitos outros. Além desses, havia mais trezentos ¢ oitenta e quatro criados para servi-lo. Todos sabiam que o principe estava temporariamente sem meméria e que nao deveriam demonstrar surpresa com suas esquisitices. ‘Tom atacou a comida com as maos, mas todos fingiram nao perceber. O menino olhou com interesse para o lindo tecido do guardanapo e disse, com simplicidade: ~ Por favor, tirem esse guardanapo; nao quero sujd-lo com meus maus modos. O guardanapo foi retirado e ninguém disse nada. ‘Tom observou o nabo ea alface com curiosidade ¢ Perguntou 0 que eram e se podiam ser comidos. Fazia Pouco tempo que legumes e verduras eram cultivados na Inglaterra. 50 Oprincipe eo mendigo Quando terminou a sobremesa,encheu os bolss com noves. En io, sentiu uma fore coceira no natiz, que o deixou desesperado, Seus olhos se ¢ i for 1 peradlo, Seus olhos se encheram de Lirimas rercebendo que estava aflito, os nobres perguntaram-Ihe 0 que o incomodava Pego que me desculpem, meu nariz esti cogando muito. Por favor, digam- me como devo agit. Ninguém riu. Eles ficaram perplexos eno sabiam o que fazer, Era o primeiro » na histéria da Inglaterra. © mestre de cerimdnias nao estava presente ninguuém yaa resolver 0 problema. Enquanto isso, as ligrimas corriam pelo rosto do searrisea menino. Sem suportar mais, Tom pediu desculpas por quebrar a etiqueta e cogou 0 natiz, Todos ficaram aliviados por nao terem de cogar o natiz do principe, Um ctiado trouxe um recipiente de ouro com agua de rosas para o principe lavar as mos, © menino ficou olhando por alguns instantes para aquele belo prato, até que decidiu beber um pouco da gua. — Esta dgua nao é boa; tem um cheiro bom, mas o gosto é ruim. Em seguida, levantou-se da mesa no momento em que o capelao, atris da sua cadeira e de olhos fechados, comecava a oragao para agradecer a Deus pela refeicio. Mais uma vez, ninguém demonstrou que o principe estava agindo de modo estranho. Levado para seu gabinete, ficou observando o ambiente. Na parede, havia uma armadura de aco, coberta com incrustagées de ouro ~ era um presente da rainha para o filho. Tom colocou as partes da armadura que conseguia vestir sozinho: o elmo, as manoplas e as lavas de aco. Queria por a armadura inteira e, por um segundo, pensou em pedir ajuda, mas estava tio bem sozinho que desistiu da ieia. Lembrou-se das noves ¢ comecou a comé-las; pela primeira ver, desde que se tornara principe, sentia-se feliz Num nicho do escritério havia alguns livros, entre eles um sobre etiqueta na corte, Era iss0 0 que queria! Deitou-se no suntuoso sofa e comegou a estudar 0 assunto com muita atengao. ‘om recebe instrucdes 31 5. Acerimonia no rio 0) amisa or volta das cinco horas, o rei acordou de um sono agitado, “Maus sonhos, maus pressentimentos! Minha saide esta piorando e as batidas fracas do meu coracio confirmam isso”, pensou. “Mas, antes que eu morra, ele deve morter.” Ao perceber que o rei estava acordado, um camateiro avisou-o de que chanceler queria falar com ele. = Mande-o entrar — disse 0 rei. Ajoclhando-se & sua frente, o chanceler disse: — Majestade, de acordo com suas ordens os nobres confirmaram a condenacéo do duque de Norfolk e aguardam novas instrucées, Henrique VIII deu um sortiso cruel. — Ajudem-me a levantar. Eu mesmo irei ao Parlamento e, com minhas préprias méos, colocareio sinete na sentenga que vai me livrar do... Sua vor sumiu e ele empalideceu, Seus camareitos o sentaram na cama; ele se reanimou € prosseguiu: Como esperei por este momento! Parece que ele chegou tarde demais, pois minhas forgas nao me permitem aproveité-lo, Mas isso nao importal Antes que 0 sol se levante e se ponha de novo, tragam-me a cabega dele! ~ Suas ordens serio cumpridas, Majestade! Por gentileza, ordene que o sinete real seja devolvido a mim para que eu possa desempenhar essa fungao. —O sinete2! Nao é vocé que guarda o sinete? Acerimonia no rio Famisa 33 -lo, porém, que hé dois g,, para lembrd — Sim, Majestade, Peso licen ‘ ilo aré que fosse usado na condenacs senhor me pediu o sinete para guardé-lo até qu 50 dy duque de Norfolk i Sinto-me muito fraco ¢ minha memé, ~ E verdade... O que fiz com ele? Sinto-me muito fr Meméria ngs ri me ajudando, m sentido e sacudia a cabega, tentando record, 4 ns s O rei murmurava s " " yenturou-se a falar. que hayia feito com o sinete. Por fim, Hertford aventt — Majestade, se me permite... — Fale! Fale! uM6s ter vis ~ Majestade, algumas pessoas aqui presentes ¢ eu lembrai SCO 0 senhor é not jue o guar entregar o sinete real a Sua Alteza, o principe de Gales, para que © guardasse, —E verdade! Vio buscé-lo, répido! Hertford correu ao encontro do principe ¢ voltou logo em seguida. — Sinto muito ser portador de noticias pouco animadoras: Sua Alteza nao se lembra de ter recebido o sinete real, ~ Nao incomodem a pobre crianga— disse o re, tristemente, fechando os olhos, Ao abri-los, deu com o chanceler ajoelhado a seus pés. ~Ainda estd af? Pelo amor de Deus! Se nao cuidar da sentenga do duque, quem vai cuidar? — Sinto muito, Majestade, estou esperando o sinete. ~ O pequeno sinete esté guardado no tesouro real. Vi logo e s6 me apareea aman com a cabeca do duque de Norfolk! As nove horas da noite, foi iluminada a ampla fachada do palicio que dava para 0 Tamisa. O rio estava coberto de barcos enfeitados com lanternas coloridas; agitadas Pelas ondas, pareciam flores de um imenso jardim balangando a0 vento. © grande terraco do palacio, com sua escadaria que dava no tio, parecia uma pintura, com os soldados de armaduras reluzentes ¢ os seryos correndo, apressados, Uma ordem foi dada e, em seguida, todas as Pessoas desapareceram, O suspense € a expectativa deixaram 0 clima pesado, 34 Oprincipe e o mendig elt Una fila de quarenta ou cinquenta barcas douradas, decoradas com esculeuras, pandeiras e flamulas atracou junto & escada, Todas traziam homens com armaduras emisicos. (s soldados formaram duas alas, desde 0 porto do palicio até o tltimo degra da escadas um tapete de veludo brilhante foi estendido no meio. Ao toque gas trombetas, 0s misicos comegaram a tocar e dois escudeiros saftam do palicio, postando-se no portal. Entio, vieram os oficiais da guarda, os cavaleiros, os juizes, os excudeiros, 0s Hideres das associagdes, Depois deles, 0 chanceler, seguido dos embaixadores e seu séquito, Nobres ingleses importantes encerravam 0 cortejo As trombetas tocaram noyamente. O tio do principe, futuro duque de Somerset, surgiu vestido de preto e dourado, Um novo toque de trombetas, mais longo, anunciou Sua Alteza, Eduardo Tudor, o principe de Gales. ‘As tochas ardiam no alto das muralhas do palicio, formando uma lingua de fogo; 0 povo, apertado junto ao rio, irrompeu em aplausos e saudades. Tom Canty, representando Eduardo, o principe de Gales, apareceu magnificamente vestido em cetim branco; o peitilho da camisa era bordado com brilhantes. Seu manto, tecido com ouro branco, tinha pérolas e pedras preciosas ¢ era preso ao pescoso por uma fivela de brilhantes. Criado nas sarjetas, Tom Canty era ovacionado pela multidao como o herdeiro do trono da Inglaterral Acerimonia no rio Famisa 35 4 6. O principe se ve em apuros aviamos deixado John Canty, 0 pai de Tom, arrastando 0 verdadeirg He para a Offal Court, seguido pela multidao que se divertia com # cena. S6 uma pessoa tentou libertar 0 menino, mas, no meio da gritaria que nao era ouvida. O principe lutava para se soltar das garras de John, até Canty perdeu a pouca paciéncia que tinha ergueu o bastao sobre sua cabeca, O homem que defendia Eduardo segurou o braco de John, ¢ 0 golpe parou em seu préprio pulso. ~ Por que se meteu no que nao é da sua conta? Pois af vai sua recompensa ~ bradou o pai de Tom, dando uma bastonada na cabeca do desconhecido, Ouviu-se um gemido ¢ 0 homem caiu aos pés da multidao. As pessoas continuaram a se divertir com as maldades de Canty, sem se importar com o homem caido no chio. John Canty entrou em casa com Eduardo, Apenas uma vela iluminava a sala; o principe nao podia enxergar o ambiente repugnante em que estava. Duas meninas magrinhas ¢ uma mulher de meia-idade estavam encolhidas em um canto, como bichos acostumados a maus-tratos. No outro canto, uma velha com cara de bruxa ¢ olhos malignos. ~ Vocé vai se divertir com as histérias malucas que este moleque inventou - disse John para a velha. ~ Depois, pode sentar a mao nele. Venha ci, moleque — disse para Eduardo. ~ Quem é vocé? Vermelho de raiva, 0 principe respondeu, indignad ~ Vou lhe dizer 0 que ja disse antes; sou Eduardo, 0 principe de Gales! 36 Oprincipe e 0 mendigo A resposta deixou a velha sem félego. Olhou para Eduardo tio assombrada 1a filho caiu na risada. Mas a reagio da mae que o canalha do s das irmas de Tom foi diferente. Preocupadas, clas se aproxima ram do menino, — Ah, meu pobre Tom! ~ exclamou a mie, angustiada, ajoclhando-se a sua frente e abragando-o, ~ Meu filho querido, essas leituras abalaram sua cabeca ~ disse, chorando. ~ Eu bem que dizia a vocé para deixar isso de lado; agora, acontecet 0 pior. ~ Minha senhor cu filho esté bem e nao perdeu o juizo, Leve-me ao paldcio, onde ele esti, € 0 rei, meu pai, o entregard a senhora ~ disse Eduardo, olhando-a nos olhos, — O rei, seu pai? Ah, meu querido, nao fale mais isso! Pode comprometer a codos nds, Vamos, faga forga para sair deste sonho e volte & realidade. Olhe para mim: sou sua mae, que tanto gosta de voc?! — Sinto muito dizer, mas nao sou seu filho. Nunca via senhora antes. A mulher caiu sentada no chao, solugando. —O espeticulo continual — gritou John. — Nan, Bet, nao vio se ajoelhar e fazer uma reveréncia 20 principe? — Deixe Tom descansar, papai — pediu Nan, - Amanhi ele estaré melhor. = Por favor, papail suplicou Bet. - Deve ser 0 cansago; amanha ele pediré esmolas de novo. ‘A mengio as esmolas acabou com a brincadeira. — Amanha temos de pagar o aluguel para 0 dono deste buraco ~ disse o pai com rudeza ~, senao seremos despejados. Mostre que conseguiu hoje, Tom! No me ofenda com esses assuntos mesquinhos — respondeu o principe. = Vou Ihe dizer de novo que sou o filho do rei! Um ruidoso tapa jogou o principe nos bragos da mae, que 0 abragou, protegendo-o da saraivada de socos bofetdes. Apavoradas, as meninas voltaram a seu canto, enquanto a av6 ajudaya o filho a surrar o neto. ~ Nao deve apanhar por mim, senhoral ~ disse o menino, afastando-se da mae de Tom. ~ Deixe esses porcos cairem apenas em cima de mim. Oprincipese veemapuros 37

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