You are on page 1of 46
ESTABILIDADE CONTRATUAL, MODIFICACAO UNILATERAL E EQUILIBRIO FINANCEIRO EM CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS Pelo Prof. Doutor Paulo Otero SUMARIO: CONSULTA PARECER I EQUAGAO DO PROBLEMA A) Empreitadas de obras puiblicas e verba de estaleiro B) Sequéncia Il OBJECTO DO CONTRATO E REALIZACAO DE TRABA- LHOS A MAIS A) Principio da estabilidade do objecto do contrato de emprei- tada de obras puiblicas? B) Natureza da «execugao de trabalhos a mais» pelo emprei- teiro CC). Posigao juridica do empreiteiro TRABALHOS A MAIS, ESTALEIRO E EQUIL{BRIO FINANCEIRO A) Trabalhos a mais e equilfbrio financeiro B) Verba de estaleiro e equilibrio financeiro CC) Uma solugdo residual: 0 enriquecimento sem causa IV CONCLUSOES iit Consulta Tendo como base o regime juridico das empreitadas de obras publicas resultante do Decreto-Lei n.° 235/86, de 18 de Agosto, foi 914 PAULO OTERO solicitado 0 nosso parecer juridico sobre a seguinte questo: numa empreitada de obras piiblicas, serd que a componente varidvel da verba de «estaleiro e acessos», fixada em termos de prego global, habilita validamente o empreiteiro a reclamar junto do dono da obra um valor suplementar pelo custo do estaleiro correspondente aos trabalhos a mais a executar (ou j4 executados) na respectiva obra? Parecer 1 EQUACAO DO PROBLEMA A) Empreitadas de obras piiblicas e verba de estaleiro 1.1. A tipologia das empreitadas de obras piiblicas. segundo decorre do regime juridico fixado pelo Decreto-Lei n.° 235/86, de 18 de Agosto, baseia-se no modo de retribuigao do empreiteiro ('). Neste mbito, podem distinguir-se quatro tipos de empreitadas de obras publicas: (i) a empreitada por prego global (°); (ii) a empreitada por série de pregos (*); () Chr, antigo 6. Este mesmo critério continua hoje em vigor no artigo 6.° do Decreto-Lei n.° 405/93, de 10 de Dezembro, que revogou o regime juridico das obras piblicas decorrente do Decreto-Lei n.° 235/86, de 18 de Agosto. Alids, este critério resultava jd do Decreto-Lei n.® 48 871, de 19 de Fevereiro de 1969 (cfr., neste ultimo sentido, MARCELLO CAE- TANO, Manual de Direito Administrarivo, U1, 9: ed., Coimbra, 1980, p. 1006). ) Na empreitada por prego global, a remuneracio do empreiteiro esté antecipada- mente determinada numa soma certa, correspondendo esta & realizagao de todos os traba- Ihos necessérios para a execugao da obra ou de parte desta (cfr. artigos 7.° a 16.° e, além disso, também os artigos 22.° a 41.°). Sobre esta e outras modalidades de fixacdo do preco m contrato de empreitada, cfr. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contrato de Emprei- tada, Coimbra, 1994, p. 105 seg. (’) Na empreitada por série de precos, observa-se que a remuneracdo do emprei- teiro resulta da aplicagio dos pregos unitadrios previstos no contrato para cada espécie de trabalho a realizar as quantidades de tais trabalhos realmente executadas (cfr. artigos 17.° 21." €, por outro lado, também os artigos 22.° a 41.°). CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS. 91S (iii) a empreitada por percentagem (+); (iv) a empreitada mista (*). No que diz respeito ao estaleiro da obra, enquanto designacao correspondente a verba que se refere ao custo, transporte, montagem. e desmontagem de todo um conjunto de instalacdes € servigos de apoio afectos 4 execucao da obra (v. g., armazéns, oficinas, dormité- rios e refeitérios destinados ao pessoal da obra, escritérios, casa do guarda permanente, redes provisérias de agua, esgotos, electricidade, telefone), qualquer que seja a modalidade escolhida de retribuigao do empreiteiro, a lei fixa-Ihe como obrigagio, salvo estipulagéo em contrério, a execugao dos trabalhos de construgao do estaleiro da obra, dos seus acessos e das respectivas serventias internas (°). Todavia, se é certo que a lei cria a favor do empreiteiro uma obrigagao de facere no que respeita aos aspectos da construgao e desmontagem do estaleiro e acessos da obra, a verdade € que o suporte de todos os inerentes custos financeiros constitui a base de uma verba integrante do valor da remuneragao do empreiteiro por parte do dono da obra. Ha aqui, porém, e isto sem tomar agora em consideragaio as empreitadas mistas — isto é, aquelas que conju- gam diferentes modos de remuneragdo para varias partes ou tipos de trabalho da obra —, a possibilidade de se configurarem trés diferentes hipéteses de remuneragao da verba de estaleiro: 1.2) — Verificando-se uma hipotese de empreitada por prego global, a verba de estaleiro surge como valor auténomo, ainda que integrado na soma certa total que estd subjacente a remuneracio antecipadamente determinada do empreiteiro; 2.8) — Pelo contrério, na hipétese de empreitada por série de pregos, o valor da verba de estaleiro nao assume (°) Na empreitada por percentagem, verifica-se que o empreiteiro assume a obriga- 0 de executar a obra pelo preco correspondente ao seu custo, acrescido de uma percen- tagem destinada a cobrir os encargos de administragdo e a remuneracZo normal da empresa (cfr. artigos 42.° a 47.°). () A empreitada mista, como a propria designagdo deixa adivinhar, consiste na adopgio de diversos modos de retribuigdo do empreiteiro para distintas partes da obra ou diferentes tipos de trabalhos de um mesmo contrato de empreitada (cfr. artigo 6.°, n.° 2). () Cfir. Decreto-Lei n.° 235/86, de 18 de Agosto, artigo 25.°, n.° 2, alineas a) € c). 916 PAULO OTERO cardcter aut6nomo, antes constitui uma percentagem inte- grante do valor dos pregos unitdrios previstos para cada espé- cie de trabalho a realizar tendo em vista a execugao do objecto do contrato, sendo a remuneragao do empreiteiro o resultado da aplicagio de tais precos as quantidades de trabalhos efecti- vamente executadas; 3.*) — Na hipétese de uma empreitada por percentagem, como resulta expressamente do artigo 43.°, n.° 1, 0 dispéndio com os estaleiros é um elemento integrante do custo dos tra- balhos que o empreiteiro assume a obrigagdo de executar pelo respectivo prego, isto sem prejuizo de vir a acrescentar ao total dos custos uma percentagem destinada a cobrir os encar- gos de administragdo e a remuneragao normal da empresa. 1.2, Perante o quadro remuneratério tragado, pode bem per- guntar-se 0 seguinte: seré que a designada verba de estaleiro é homogénea? Ou seja, ser4 que o valor das componentes de uma tal verba € totalmente independente das quantidades de trabalho envolvidas pela execucao da empreitada de obras publicas? Segundo informagées técnicas recolhidas, valor respeitante ao estaleiro compreende duas componentes: 1.*)— Por um lado, a verba de estaleiro envolve uma componente fixa, isto é, independente de qualquer quantidade de trabalho a executar, sendo esta constitufda pelos custos decorrentes do transporte, montagem e desmontagem de ins- talagdes e equipamentos, execucdo das redes de abasteci- mento de Agua e energia, além dos acessos; 2.*) — Por outro lado, a verba de estaleiro comporta uma componente varidvel, ou seja, todo o restante conjunto de cus- tos directamente dependentes da quantidade de trabalho efec- tivamente executada ou previsivelmente a executar pelo empreiteiro. 1.3. A dicotomia da verba de estaleiro numa componente fixa e numa componente varidvel comporta inevitaveis efeitos juri- dicos que urge salientar: a) Em primeiro lugar, é com base nos valores respeitantes as quantidades de trabalho previstas no objecto do contrato b) CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS 917 de empreitada — e em relagao as quais foi aberto con- curso ptiblico — que o empreiteiro, ainda enquanto con- corrente, elabora a proposta que apresenta a concurso, aqui se incluindo, obviamente, o cdlculo e a fixagdo de uma determinada verba de estaleiro. Em consequéncia, para uma certa quantidade de trabalho — além de um custo das componentes fixas, isto qualquer que fosse a quantidade de trabalho a executar —, iré corresponder um determinado custo de tais componentes varidveis de esta- leiro e, consequentemente, um certo valor (varidvel) da verba de estaleiro, podendo esta assumir trés configura- ges (v. supra, n.° 1.1.): (i) Se a empreitada é por prego global, a componente varidvel da verba de estaleiro reflectir-se-4 no valor auténomo a esta destinado e depois inclufdo no total da soma certa antecipadamente determinada; (ii) Se aempreitada é por série de pregos, a componente varidvel da verba de estaleiro sera proprocional- mente reflectida na percentagem integrante do valor dos precos unitérios previstos para cada espécie de trabalho a realizar; (iii) Se a empreitada é por percentagem, a componente yaridvel da verba de estaleiro projectar-se-4 directa- mente no custo dos trabalhos que o empreiteiro assume a obrigagdo de executar pelo respectivo prego; Em segundo lugar, se a quantidade de trabalho realizada (ou a realizar) se reflecte directamente sobre a compo- nente varidvel da verba de estaleiro, uma outra conclusaéo importa extrair: uma alteragdo do objecto do contrato de empreitada ou, mais especificamente, das prestagoes a que estd vinculado o empreiteiro e, deste modo, da quantidade de trabalho, provoca inevitaveis efeitos sobre a compo- nente varidvel de custos integrantes da verba de estaleiro e, por consequéncia, sobre a base ou os pressupostos de célculo do total da verba de estaleiro apresentada pelo PAULO OTERO empreiteiro. Nestes termos, podem extrair-se as duas seguintes regras: (Quanto maior for o volume de trabalho da emprei- tada, maior seré 0 montante de custos da compo- nente varidvel da verba de estaleiro; (it) Pelo contrario, quanto menor for 0 volume do tra- balho da empreitada, sem prejuizo dos custos inva- ridveis decorrentes das componentes fixas da verba de estaleiro, menor serd 0 montante de custos da componente varidvel da verba de estaleiro; c) Em terceiro lugar, se a quantidade de trabalho realizada (ou a realizar) constitui a base ou 0 pressuposto de cdlculo da verba das componentes variaveis de estaleiro apresen- tada pelo empreiteiro, qualquer vicissitude ou alteragdo na indicag&o ou determinagaéo da quantidade de trabalho envolvida pela execugdo da empreitada vai reflectir-se no montante calculado para as componentes varidveis inclui- das na verba de estaleiro: (i) O erro na indicagao ou determinagdo da quantidade de trabalho gerard um erro subsequente no valor di componentes varidveis da verba de estaleiro indi- cada (ou pressuposta) pelo empreiteiro na sua pro- posta; (ii) A realizagao de trabalhos a mais ou a menos dos Previstos no objecto do contrato de empreitada, tal como resultava do respectivo caderno de encargos, determinard, respectivamente, um acréscimo ou uma diminui¢io no valor das componentes varid- veis da verba de estaleiro; d) Em quarto lugar, envolvendo a realizacao de trabalhos a mais, relativamente aos previstos no contrato de emprei- tada, um inevitdvel acréscimo no valor das componentes varidveis da verba de estaleiro, a sua repercussao finan- ceira sobre 0 dono da obra esté automaticamente assegu- rada na empreitada por percentagem. Todavia, nas CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS 919 empreitadas por série de pregos e por prego global o pro- blema ganha relevancia: (i) Na empreitada por série de precos, serd que 0 acrés- cimo da componente varidvel da verba de estaleiro resultante dos trabalhos a mais deverd ser proporci- onalmente reflectido na percentagem integrante do valor dos pre¢os unitdrios previstos para cada espé- cie de trabalho a mais a realizar? (ii) Na empreitada por preco global, por outro lado, sera que o acréscimo da componente varidvel da verba de estaleiro resultante dos trabalhos a mais deverd reflectir-se num valor aut6nomo suplementar a exi- gir ao dono da obra na sequéncia da execugao dos trabalhos a mais? 1.4. Como facilmente se pode verificar, a ultima interroga- ¢4o colocada esté directamente relacionada com 0 objecto central da presente Consulta: Perante uma verba de «estaleiro e acessos» fixada em termos de prego global — isto independentemente da existén- cia de outros regimes remuneratérios na mesma empreitada de obras ptblicas, enquanto empreitada mista (v. supra, n.° 1.1.) —, seré que o empreiteiro pode validamente recla- mar junto do dono da obra um valor suplementar pelo custo acrescido das componentes varidveis do estaleiro decorrente de todos os trabalhos a mais que executou na obra? Eis o problema que cumpre indagar. B) Sequéncia 1.5. Tracado o enquadramento jurfdico subjacente 4 questao colocada pela Consulta, importa agora indicar 0 itinerdrio de inves- tigagdo a percorrer: a) Em primeiro lugar, procuramos esclarecer as implicagdes juridicas decorrentes da relagdo existente entre o objecto 920 PAULO OTERO do contrato de empreitada de obras puiblicas e a realizagdio de trabalhos a mais por parte do empreiteiro; Em segundo lugar, debrugar-nos-emos sobre os efeitos da eventual aplicabilidade ao problema do principio do equi- Ifbrio financeiro dos contratos administrativos, em espe- cial da sua relevancia perante os trabalhos a mais e a verba de estaleiro. 5 Encerraremos o presente estudo apresentando uma sintese das. principais conclusées resultantes da investigacio. i OBJECTO DO CONTRATO E REALIZACAO DE TRABALHOS A MAIS A) Principio da estabilidade do objecto do contrato de emprei- tada de obras piiblicas? 2.1. Numa empreitada de obras puiblicas precedida de con- curso ptiblico, tal como sucedeu no caso subjacente a presente Consulta, os «elementos que servem de base a0 concurso» (’), em especial o respectivo caderno de encargos, definem o objecto material do futuro contrato de empreitada: 0 contrato nado podera ter por objecto material uma realidade diferente daquela que em concreto foi objecto de concurso publico. Exemplificando: se, por hipétese, foi aberto concurso puiblico para uma empreitada de obras ptblicas referente a construgao de uma estrada entre as localidades A e B, nao pode o contrato de empreitada resultante do respectivo acto de adjudicagao estabele- cer como objecto material dessa empreitada que a mesma com- preende também (ou em substituicado) a construgdo da estrada (*) Trata-se de uma expresso que consta da epigrafe do artigo 59.° do Decreto-Lei n.° 235/86, de 18 de Agosto, compreendendo a mesma o projecto, o cademo de encargos © 0 programa de concurso que estio na base do concurso ptiblico. CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS 921 entre as localidades B e C ou, pura e simplesmente, «converter essa empreitada na construcao de uma rede de rega entre as loca- lidades A e B. Com efeito, o contrato de empreitada de obras ptiblicas tem por objecto a proposta escolhida ¢ aceite pelo dono da obra no acto de adjudicagao, a qual, por sua vez, havia sido ante- riormente elaborada e apresentada a concurso tendo como ponto de partida os citados «elementos que servem de base ao concurso». A exigéncia de uma relagao directa de conformidade entre 0 objecto do contrato de empreitada de obras ptiblicas e o objecto dos «elementos que servem de base ao concurso», espe- cialmente do caderno de encargos, constitui um coroldrio da pr6- pria exigéncia de concurso ptiblico e dos principios da imparci- alidade e da melhor prossecugao do interesse piblico ou boa administragao. Afinal, bem vistas as coisas, se assim nao fosse, a exigéncia de concurso ptblico seria uma mera formalidade sem qualquer contetido ou utilidade: de que serviria a exigéncia de concurso publico para uma determinada empreitada de obras ptiblicas se, depois de aberto 0 concurso e adjudicada a obra, 0 objecto mate- rial do contrato de empreitada acabasse por nada (ou muito pouco) ter a ver com 0 objecto da empreitada para o qual foi aberto con- curso ptiblico? Por outro lado, além de aspectos de legalidade com uma natu- ral incidéncia objectivista, hé aqui também uma vertente garantis- tica ou subjectivista que importa realgar: como se poderia tutelar a confianca dos concorrentes a um concurso ptiblico se, depois do acto de adjudicaciio, o objecto material do contrato a celebrar fosse passivel de mudar, nada (ou muito pouco) tendo jé de identificavel com 0 objecto da empreitada para a qual foi aberto concurso publico e eles apresentaram as suas propostas? Em bom rigor, uma tal utilizagao fraudulenta do concurso ptiblico deve ser equiparada, pura e simplesmente, a auséncia de concurso publico: se é aberto concurso ptblico para 0 objecto X e © contrato de empreitada consequente ao respectivo acto procedi- mental de adjudicagio tem por objecto X + Y ou Z, tudo se passa 922 PAULO OTERO como se para 0 objecto material efectivo deste contrato nao tivesse existido concurso puiblico (*). Ha aqui, por tudo isto, um verdadeiro princfpio geral de iden- tidade entre o objecto material do contrato de empreitada e 0 objecto material do concurso publico que esté subjacente ao pro- cedimento prévio a celebragdo do respectivo contrato. 2.2. Se podemos dizer que o objecto material do contrato de empreitada de obras ptblicas se encontra jd definido pelos ele- mentos que servem de base ao concurso ptblico, especialmente pelo caderno de encargos, a verdade € que, isto j4 desde momento anterior, segundo decorre do principio da proteccao da confianga, a Administracéo Publica nao pode alterar os termos da proposta contratual ou convite para contratar, afastando-se, consequente- mente, do quadro por ela propria pré-estabelecido (°). Ha aqui, reconhega-se, um verdadeiro principio de estabilidade deciséria procedimental pré-contratual por parte da Administragao. Deste modo, salvo perante eventuais casos de ilegalidade da sua prépria autovinculagao ('°), a Administragao carece de um poder unilateral para modificar as autovinculagdes que vai criando na sequéncia da abertura de um concurso ptiblico. De igual modo, como se acabou de observar (v. supra, n.° 2.1.), 4 data da celebracdo do contrato de empreitada de obras ptiblicas precedido de concurso publico, a Administragao carece de qualquer poder para se afastar do objecto material da empreitada em relag4o ao qual foi aberto o respective procedimento do con- curso ptiblico que terminou no acto de adjudicag4o ao concorrente agora co-contratante. (*) Sobre a violagdo do principio da legalidade em matéria de concurso publico refe- rente a formagio de contrato administrativo, cfr. FAUSTO DE QUADROS, O Concurso Piblico na Formagado do Contrato Administrativo, sep. da Revista da Ordem dos Advoga- dos, 1987, em especial, p. 710 seg. Especificamente sobre a fungo do concurso piblico como limite 4 autonomia contratual da Administragdo, cfr. SERVULO CORREIA, Legali- dade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, p. 690 seg. ) Neste tiltimo sentido, cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, O Concurso Piiblico na Formagao do Contrato Administrativo, Lisboa, 1994, p. 30-31. (°) Cf. PIERA MARIA VIPIANA, L'Autolimite della Pubblica Amministrazione, Milano, 1990, p. 333. CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS. 923 Resta saber, acrescente-se, se depois da celebragéo do con- trato administrativo, isto é, j4 durante a fase da respectiva execu- ao, a Administragao goza de algum poder de intervencdo sobre 0 objecto material do contrato ou o contetido das prestagées. Tudo est4 em determinar, afinal, se perante os contratos admi- nistrativos j4 celebrados, designadamente os contratos de emprei- tada de obras publicas, existe e, caso assim suceda, qual o grau de operatividade do principio da forga vinculativa dos contratos e, muito em especial, do principio da estabilidade contratual ("). 2.3. Nos termos do artigo 406.°. n.° 1, do Cédigo Civil, «o contrato deve ser pontualmente cumprido, e s6 pode modificar-se ou extinguir-se por miituo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei», aqui residindo a sede legal do princfpio da forga vinculativa ou da obrigatoriedade dos contratos de Direito Privado. Significa isto, por outras palavras, os dois seguintes aspec- tos ('7): a) Em primeiro lugar, os contratos devem ser executados ou cumpridos «ponto por ponto», isto é, na integra, seja em termos temporais ou materiais, tanto quanto aos seus ele- mentos essenciais como em relagdo aos elementos acess6- rios, nisto consistindo o princfpio da pontualidade; b) Em segundo lugar, os contratos esto também sujeitos ao principio da estabilidade do respectivo vinculo, aspecto este que assume duas manifestagdes: (i) Por um lado, tendo por base os principios da segu- ranga e da tutela da confianga, os vinculos contra- tuais sao irretrataveis ou irrevogaveis, salvo, como se refere no artigo 406.°, n.° 1, do Cédigo Civil, «por mituo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei»; (*) Para um desenvolvimento de tais principios ao nivel do Direito Privado, cfr., por todos, MARIO JULIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigagées, 52 ed., Coimbra, 1991, p. 244 seg. () Cf. MARIO JULIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigagoes, p. 244-245. 924 PAULO OTERO (ii) Por outro lado, os contratos estao também sujeitos a uma regra de intangibilidade do seu contetido, podendo dizer-se que h4 um verdadeiro congela- mento do objecto ou contetido do contrato, salvo, uma vez mais, «miituo consentimento dos contraen- tes ou nos casos admitidos na lei». Centrado a nossa andlise nos aspectos referentes ao principio da estabilidade do vinculo contratual, sempre importa saber se 0 mesmo se configura como verdadeiro principio geral de Direito Comum e, consequentemente, também aplicdvel em Direito Admi- nistrativo. Utilizando as palavras dd MARCELO REBELO DE SOUSA, pode dizer-se que «os contratos administrativos, também eles, obe- decem ao principio da forga vinculativa, inclusive & sua compo- nente de estabilidade contratual e, fora as situagdes excepcionai em que ela pode ser afastada pelas partes, pela lei ou por decisao jurisdicional, qualquer conduta que se choque com 0 principio e sua componente é geradora de responsabilidade contratual» (!°), 2.4. Firmada a configuragio do principio da estabilidade contratual como principio geral de Direito Comum e, por isso mesmo, como sendo um principio aplicdvel aos contratos adminis- trativos, importa reconhecer que também aqui, tal como sucede em relacao aos contratos de direito privado, este principio sofre excep- g6es ou desvios provocados «por miituo consentimento dos con- traentes ou nos casos admitidos na lei». Duas observagGes, todavia, importa fazer ('*): a) Em primeiro lugar, os desvios ao principio da estabilidade contratual, sejam eles a irrevogabilidade do vinculo ou a intangibilidade do seu contetido, sempre que resultantes (“) Cfr, MARCELO REBELO DE SOUSA, 0 Concurso Publico..., p. 54 (4) Tratam-se de observagées que, de alguma forma, marcam as diferengas de ope- ratividade de um tal principio da estabilidade contratual ¢ dos seus desvios em (i) contra- tos entre entidades privadas e (ii) em contratos administrativos ou, pelo menos, em con- tratos que tenham a Administraco como contraente, tenham estes sido celebrados no exercicio de uma actividade de gestio publica ou de gestdo privada. CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS 925 de mutuo consentimento dos contraentes nido podem dei- xar de estar pautados por trés principais regras: 1.4) — Todos os desvios tém de se nortear ainda (e sempre) pela prossecugao do interesse ptiblico, enquanto principio constitucional vinculativo do agir da Adminis- tragdo Ptiblica (CRP, artigo 266.°, n.° 1); 2.°) — Os desvios nao podem colocar em causa a identidade entre 0 objecto material do contrato de emprei- tada e 0 objecto material do concurso ptiblico que esteve subjacente ao procedimento prévio de celebragdo do res- pectivo contrato (v. supra, n.° 2.1.); 3.*) — O proprio consentimento miituo na introdugao de desvios ao principio da estabilidade contratual pressu- poe uma formacdo perfeita da vontade de ambos os con- traentes; b) Em segundo lugar, o principio da estabilidade contratual em Direito Administrativo pode também sofrer desvios ou excepgdes «nos casos admitidos na lei». Sem tomar agora em consideracio 0 caso de resolugio ou alteracao intro- duzida por via jurisdicional na sequéncia de pedido do contraente privado verificando-se, por exemplo, alteragdo das circunstancias, a verdade é que a Administragao Publica goza, bem ao contrario do contraente privado, de um poder geral de «modificar unilateralmente 0 contetido das prestages, desde que seja respeitado 0 objecto do contrato e 0 seu equilfbrio financeiro» ('5). Significa isto o seguinte: (i) A lei —e ja antes um verdadeiro principio geral de Direito Administrativo ('°) — reconhece 4 Admi- nistragdo Publica um genérico poder unilateral de modificagio dos contratos administrativos ou, ('5) Chr. Cédigo do Procedimento Administrativo, artigo 180.°. alinea a). (°°) Cf, MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 1, 10.*ed., reimp., Coimbra, 1980, p. 618 seg.; SERVULO CORREIA, Contrato Administrativo, sep. do Diciondrio Juridico da Administracao Publica, Coimbra, 1970, p. 31; IDEM, Legalidade ..., p. 733. 926 PAULO OTERO melhor, de modificacao do contetido das prestagdes decorrentes de tais contratos ('7) ('); (ii) O poder de modificagao unilateral da Administra- ¢40, além de se encontrar sempre sujeito ao princi- pio da prossecugao do interesse piblico, ao princi- pio da proporcionalidade — designadamente na sua vertente de proibigao do excesso ou principio da necessidade — ("") e ao dever de fundamenta- ¢40 (7°), estd especialmente limitado pelo respeito ao objecto do contrato (*') e ao respectivo equilibrio financeiro (?*); (iii) O contrato de empreitada de obras publicas, enquanto contrato administrativo — e sem prejuizo de todas as especialidades pormenorizadas resultan- tes do especifico regime legal —, est também ele sujeito ao poder unilateral de interven¢o modifica- tiva do contetido das prestagdes do empreiteiro por () Trata-se, segundo uma sugestiva designagdo da doutrina espanhola, de um ius variendi titulado pela Administragao, cfr. EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA / TOMAS-RAMON FERNANDEZ. Curso de Derecho Administrativo, 1, 4. ed., Madrid, 1984, p. 637 © 6474 seg.; RAMON PARADA, Derecho Administrativo, |. 42 ed., Madrid, 1992, 274 seg. Ainda sobre a origem € evolugdo do poder de modificagdo unilateral dos contratos administrativos, cfr. MARIA JOAO ESTORNINHO, Requiem pelo Contrato Administrative, Coimbra, 1990, p. 130 seg. (") Especificamente sobre 0 sentido da expresso legal «conteddo das prestages», cfr. MARIO ESTEVES DE OLIVEIRA / PEDRO COSTA GONGALVES / J. PACHECO DE AMORIM, Cédigo do Procedimento Administrativo, Hl, Coimbra, 1995. p. () Para um primeiro afloramento de tais ideias, cfr. MARCELLO CAETANO, Manual... 1, p. 620. ) Cfr. EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA / TOMAS-RAMON FERNAN- DEZ, Curso..., I, p. 674; RAMON PARADA, Derecho... 1, p. 275 ') Para uma sintese do problema da tangibilidade ou intangibilidade do objecto do contrato administrativo por efeito do poder de modificagio unilateral das prestagdes por parte da Administragao, cfr., por todos, € antes do Cédigo do Procedimento Administra- tivo, AUGUSTO DE ATAIDE, Para uma Teoria do Contrato Administrativo: limites efei- tos do exercicio do poder de modificagao unilateral pela Administragdo, in Estudos de Direito Piiblico em Honra do Professor Marcello Caetano, Lisboa, 1974, p. 76 seg. @) Cfr. SERVULO CORREIA, Conirato Administrativo, p. 33; DIOGO FREI- TAS DO AMARAL, Direito Administrativo, Hl, Policop., Lisboa, 1988, p. 460 seg. CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS 927 parte do dono da obra, havendo aqui a salientar os dois j4 mencionados aspectos: — Primeiro: as modificagées unilaterais ao con- tetido das prestagGes do empreiteiro tém de res- peitar 0 objecto do contrato, existindo aqui uma expressa consagragdo da regra de intangibilidade e uma sequela do principio de identidade entre o objecto material do contrato de empreitada e 0 objecto material do respectivo concurso piblico (v. supra, n° 2.1.): — Segundo: as citadas modificagées unilaterais ao contetido das prestagGes tém de respeitar 0 equi- librio financeiro do contrato, enquanto decorrén- cia directa do principio da justiga. 2.5. Atendendo a uma outra perspectiva, pode dizer-se que © reconhecimento & Administragdo Publica, enquanto entidade contraente, de um genérico poder unilateral de modificar 0 con- tetido das prestagdes contratuais — sem embargo de todas as limi- tagdes materiais existentes e da sempre presente garantia de recurso jurisdicional do respectivo acto — permite extrair uma importante conclusao: em Direito Administrativo, bem ao contra- rio do que normalmente sucede em Direito Privado (**), o principio da estabilidade contratual deve sempre ser entendido sem prejuizo do poder unilateral de modificagao do contetido das prestagdes contratuais por parte da Administragao Ptiblica (*). E que, cumpre justificar, 0 exercicio pela Administragao Piiblica de uma actividade sob a forma contratual nao pode deixar de se pautar — sob pena de ilegalidade — pela prossecugao do interesse ptiblico. Em consequéncia, como bem refere MARCELLO CAE- TANO, a Administragao «(...) nao pode exonerar-se do dever de pro- curar sempre os melhores processos técnicos ¢ os meios materiais e C) V. infra, n.° 2.7., nota n° 35. ) Ha mesmo quem diga que «face & imutabilidade e & rigidez do contrato privado, pode falar-se da mutabilidade e da flexibilidade do contrato administrativo», cfr. PROS- PER WEIL, O Direito Administrativo, Coimbra, 1977, p. 68. 928 PAULO OTERO juridicos de realiz4-lo» (5). Se assim nao fosse, seria a prépria colec- tividade que acarretaria as consequéncias de uma deficiente prosse- cug&o do interesse piblico (7°). Aqui reside, afinal, o fundamento de um genérico poder unilateral de modificar 0 contetido das prestagdes contratuais por parte da Administracao Publica e a inerente debilita- ¢4o substancial do princfpio da estabilidade dos contratos. Por outras palavras, o principio da estabilidade contratual em matéria de empreitadas de obras puiblicas, tal como em qualquer outra vinculagao contratual da Administragao Publica, atendendo a raz6es decorrentes da prevaléncia do principio da prossecugao do interesse ptiblico, goza de uma eficdcia seriamente debilitada: o poder unilateral da Administragao modificar o contetido das pres- tagdes do empreiteiro permite observar que, verificadas certas con- digdes, a lei acaba por colocar nas maos do dono da obra a exacta concretizagao do principio da estabilidade contratual. Perante 0 contrato de empreitada de obras publicas, e dentro dos limites legais, pode concluir-se que a titularidade pelo dono da obra de um genérico poder unilateral de modificar 0 contetido das prestagGes do empreiteiro faz do principio da estabilidade contra- tual uma verdadeira regra na disponibilidade da Administracao: 0 principio da estabilidade contratual apenas é aplicdével enquanto 0 dono da obra, sempre no ambito da legalidade, assim o entenda na Pprossecucao do interesse ptiblico. B) Natureza da «execugao de trabalhos a mais» pelo empreiteiro 2.6. Nos termos do regime juridico das empreitadas de obras ptiblicas, estabelece-se que 0 empreiteiro tem a obrigagao de executar «trabalhos a mais ou de espécie diversa dos previstos no contrato» (77), isto dentro dos trés seguintes requisitos: 1.°) — Os trabalhos em causa tém de se destinar a realizado da mesma empreitada; ) Cf. Manual... 1, p. 619. (*) Cfr. EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA / TOMAS-RAMON FERNAN- DEZ, Curso... 1. p. 675. (°) Cfr. artigo 27.°, n.° 1, do Decreto-Lei n,° 235/86, de 18 de Agosto. CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS 929 2.°) — Tais trabalhos tém de ser ordenados ao empreiteiro através de forma escrita pelo dono da obra: 3.°) — O fiscal da obra tem de fornecer ao empreiteiro todo um conjunto de elementos de natureza técnica que habilitem a execugao dos citados trabalhos. Centrando a atengdo no primeiro requisito apontado, verifica- -se que os trabalhos a mais a executar por parte do empreiteiro, apesar de passiveis de serem de espécie diferente dos inicialmente previstos no contrato, tém sempre de se relacionar com 0 objecto material do mesmo, isto é, serem respeitantes 4 mesma empreitada de obras ptiblicas. H4 aqui, por conseguinte, a afirmagao clara de respeito pelo objecto material do contrato (v. supra, n.° 2.4.): os trabalhos a mais s6 sdo exigfveis se nao violarem o principio da intangibilidade do contetido (ou objecto) material do contrato de empreitada de obras ptiblicas. Por outro lado, atendendo a sua origem e configuracao, podem existir, segundo a lei ?*), dois tipos diferentes de trabalhos a mais: (i) Por um lado, temos os trabalhos a mais de espécie dii rente das inclufdas no contrato de empreitada, ou seja, aqueles que em absoluto nao foram inicialmente previs tos; (ii) Por outro lado, podemos deparar com simples trabalhos em quantidades superiores as indicadas no contrato de empreitada, isto é, trabalhos que incidem sobre espécies af j4 previstas s6 que em quantidades inferiores. Note-se, todavia, que os trabalhos a mais, além de se funda- mentarem sempre numa razao de necessidade relativamente a uma circunstancia imprevista ou respeitante ao proprio acabamento da obra, nado devem ter uma autonomia técnica ou econémica que per- mita serem separados do contrato da empreitada principal (””). Caso contrario — e isto sempre sem prejufzo de eventuais limites (@) Cfr. artigo 27.°-A, aditado pelo Decreto-Lei n.° 320/90, de 15 de Outubro. (@) Cfr. artigo 27.°-A, aditado pelo Decreto-Lei n.° 320/90, de 15 de Outubro. 930, PAULO OTERO financeiros quanto ao montante dos trabalhos a mais susceptiveis de serem exigidos pelo dono da obra (°°) —, a exigéncia de reali- zagao de tais trabalhos poder-se-ia tornar numa forma de fraude & obrigatoriedade de concurso publico ou numa forma de obter uma obra distinta da que foi objecto de adjudicagao (*"). Em sintese, tendo como base a lei (**) e a jurisprudén- cia (3), pode dizer-se que sdo trabalhos a mais todos aqueles que, dentro da natureza ou objecto material da obra, nao foram inclufdos no texto inicial do contrato de empreitada de obras ptblicas, tendo a sua posterior necessidade justificado, segundo os termos da lei, a respectiva exigéncia ao empreiteiro por parte do dono da obra. 2.7. Como se pode facilmente concluir, a possibilidade legal de o dono da obra exigir ao empreiteiro a execugao de trabalhos a mais, isto relativamente aos que inicialmente resultavam do con- trato de empreitada — ainda que dentro do objecto material da mesma empreitada —, configura a expresso de um poder unilate- ral da Administragéo em modificar 0 contetido das prestagdes do empreiteiro (v. supra, n. 2.4. e 2.5.) (*). Exigindo a realizagdo de trabalhos a mais, enquanto presta- goes de espécie ou quantidade nao inclufdas no texto inicial do contrato, a lei faculta ao dono da obra — ainda e sempre na pros- secugao do interesse publico — uma faculdade unilateral de rede- finigdo parcial da posigAo juridica do empreiteiro e, deste modo, do préprio contetido de certas cldusulas do contrato administrativo de (*) Neste preciso sentido, cfr. 0 artigo 26.°, n.° 2, do novo regime juridico das ‘empreitadas de obras, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 405/93, de 10 de Dezembro. Quanto a0 regime aplicdvel as alteragdes ao contrato de empreitada regulado pelo Cédigo Civil, cfr. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contraro de Empreitada, p. 144. ©) Neste dltimo sentido, cfr. JORGE ANDRADE DA SILVA, Regime Juridico das Empreitadas de Obras Piiblicas, 4.* ed., Coimbra, 1995, p. 70. () Cfr. artigo 27.°-A, aditado pelo Decreto-Lei n.° 320/90, de 15 de Outubro. ©) Cfr. Acérdio do Supremo Tribunal Administrativo, (1.7 Secgao), de 23 de Janeiro de 1970, in Acérdéo Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.° 102, p. 801 seg. (*) Neste sentido, ainda que através de uma referéncia incidental, cfr. MARIO. ESTEVES DE OLIVEIRA / PEDRO COSTA GONCALVES / J. PACHECO DE AMO- RIM, Cédigo..., Il, p. 353-354. CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS 931 empreitada de obras ptblicas. H4 aqui, por isso mesmo, a expres- sdo exemplificativa da debilidade operativa do principio da estabi- lidade contratual em Direito Administrativo (v. supra, n.° 2.5.) (5). Com efeito, sendo a exigéncia de trabalhos a mais uma mani- festagao do poder unilateral de modificag4o do contetido das pres- tagdes a que o empreiteiro estava obrigado pela execugio do texto inicial do contrato de empreitada, verifica-se que uma tal exigén- cia de trabalhos a mais comporta juridicamente uma verdadeira modificagdo sobre o préprio texto primitivo do contrato de emprei- tada de obras ptiblicas. Alids, compreende-se, por isso mesmo, que 0 artigo 27.°, n.° 7, do Decreto-Lei n.° 235/86, de 18 de Agosto, refira que a ordem de execugio dos trabalhos a mais deva ser «averbada ao contrato como suplemento deste». Significa isto, em boa verdade, que ao texto inicial do contrato se tenha de juntar uma apostilha ou suplemento (*), isto de tal forma que a interpretacdo e execugao do texto primitivo devam agora ser feitas nos termos do sentido e das clausulas resultantes do suplemento averbado. Podem recortar-se, todavia, duas formas tfpicas de introdugao de modificagdes a versio inicial do contrato: 1.8) — Sempre que os trabalhos a mais se traduzam num sim- ples aumento de quantidades de espécies j4 anterior- mente previstas no contrato, estaremos perante a revo- gacdo substitutiva de disposigdes do texto inicial do contrato (= modificago secundéria ou revogat6ria); 2.3) — Se, pelo contrario, os trabalhos a mais vao ao ponto de envolver a criagdo de novas espécies de prestagdes, isto é, de trabalhos a mais de espécie diferente dos (5) Curiosa e excepcionalmente, também ao nivel do contrato de empreitada de direito privado, o artigo 1216.°, n.° 1, do Cédigo Civil confere ao dono da obra um poder unilateral de exigir ao empreiteiro alteragGes sobre o plano de obras convencionado. Neste Liltimo sentido, reconhecendo estar-se aqui perante «uma verdadeira excepgao a regra segundo a qual os contratos, uma vez celebrados, s6 por miituo consenso podem ser alte- rados», cfr. PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Codigo Civil Anotado, M1, 22 ed., Coimbra, 1981, p.723. Ainda sobre o assunto, cft. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Con- trato de Empreitada, p. 143 seg () Cir. MARCELLO CAETANO, Manual... {, p. 618. 932 PAULO OTERO anteriormente previstos no texto do contrato, estare- mos perante um aditamento complementar sem natu- reza revogatoria (= modificagao priméria). Sem prejuizo da susceptibilidade de combinagao das duas referidas formas de modificagao do contrato de empreitada por efeito da exigéncia unilateral pela Administracao da execugao de trabalhos a mais, verifica-se que o empreiteiro ao celebrar 0 con- trato de empreitada se encontra vinculado a dois tipos de obriga- ges: (i) as obrigagdes que decorrem directamente do vinculo con- tratual e (ii) todas aquelas que, tendo por fundamento directo a lei, venham a ser exigidas pela Administragdo ao abrigo do seu poder unilateral de modificagao do contetido das prestagées. As lltimas obrigacées referenciadas traduzem, afinal, a con- sequéncia de 0 contraente privado ao celebrar o contrato adminis- trativo ter também firmado um «pacto de colaborag&o» com a Administragao (*’) para a realizagao de imperativos de interesse publico a que esta estd directa e permanentemente vinculada. Importa, todavia, colocar a seguinte questdo: dizendo a lei que «o empreiteiro é obrigado a executar trabalhos a mais ou de espé- cie diversa dos previstos no contrato» (**), e enquadrada uma tal exigéncia da Administragao no seu poder unilateral de modificar 0 contetido das prestagdes do contraente privado, quais os direitos que assistem ao empreiteiro? Como pode o empreiteiro, segundo outras palavras, verificando-se a exigéncia de realizagao de traba- Thos a mais, tutelar a sua situagdo jurfdica? Eis 0 que iremos averiguar de imediato. ©) Posigdo jurtdica do empreiteiro 2.8. Em termos esquematicos, pode dizer-se que perante a exigéncia de realizacdo de trabalhos a mais, ndo obstante a lei refe- (”) Cfr. MARCELO CAETANO, Manual..., 1, p. 620. (@) Cfr. artigo 27.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 235/86, de 18 de Agosto (sublinhado nosso). CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS 933 rir que o empreiteiro é obrigado a executar tais trabalhos (*), é possfvel recortar cinco principais cendrios diferentes: 1) Atendendo a razGes decorrentes do valor acumulado de realizagao dos trabalhos a mais exigidos pelo dono da obra, isto no contexto do prego da adjudicagao, a lei faculta ao empreiteiro 0 direito de solicitar a rescisio do contrato (4); 2) Perante trabalhos a mais de espécie diferente dos previs- tos no contrato — e nao, sublinhe-se, em caso de simples. aumento de quantidades de espécies j4 previstas no con- trato —, a circunsténcia de o empreiteiro nao possuir o equipamento indispensdvel para a sua execugdo pode constituir, verificando-se 0 procedimento legal ade- quado (*'), causa legitima para a inexecugao (licita) de tal obrigacao; 3) No caso de ser exigida a realizagdo de trabalhos a mais relativamente aos quais tenham sido violadas as exigén- cias materiais e formais previstas no artigo 27.°, n.° 1 (*), nao se chegou a constituir qualquer obrigacao na esfera do empreiteiro, daf que, em bom rigor, nem sequer exista uma situagdo de causa legitima de inexecugao licita — aqui, pura e simplesmente, repete-se, nado ha qualquer obrigagao; 4) O empreiteiro, podendo ou nao obter a resciséo do con- trato ou a invocagao de causa legitima para a inexecugao (*) Cf. Decreto-Lei n.° 235/86, de 18 de Agosto, artigo 27.°, n.° 1 (*) Cfr. Decreto-Lei n.° 235/86 de 18 de Agosto, artigos 28.°, n.° 2, 32.°, 0.° 1, e450. (!) Cfr. Decreto-Lei n.° 235/86, de 18 de Agosto, artigo 27.°, n.° 2, 2.* parte, (#) Recorde-se que siio trés tais exigéncias: (i Destinarem-se 0s trabalhos a mais & realizago da mesma empreitada; (i) Existir comunicagao por escrito ao dono da obra de uma tal ordem e, por outro lado, esta ser regular e proveniente da autoridade administrativa competente (neste tiltimo sentido, cfr. JORGE ANDRADE DA SILVA, Regime... p. 72); (iii) Fornecimento pelo fiscal da obra de todos os elementos técnicos necessé- rios, 934 PAULO OTERO licita da obrigag4o de realizar os trabalhos a mais, vem posteriormente colocar-se numa situagdo de incumpri- mento (total ou parcial) da obrigacao de os executar; 5) O empreiteiro executa todos os trabalhos a mais que lhe foram exigidos pelo dono da obra, podendo aqui descorti- narem-se, porém, trés hipdteses: 1.*) — Os trabalhos a mais sao validamente exigiveis pela Administracéo e, estando 0 empreiteiro a eles legalmente vinculado, cumpriu pontualmente a respectiva obrigagao; — Apesar de serem exigiveis os trabalhos a mais, 0 empreiteiro gozava no caso concreto da possibili- dade de resciséo do contrato [cenario 1)] ou de invocar causa legitima para a inexecugio licita de tal obrigagao [cendrio 2)], todavia, consciente- mente ou por preclusdo dos prazos de exercicio de tais faculdades, acabou por os realizar, — Nao obstante os trabalhos a mais ndo serem vali- damente exigiveis por parte da Administragao, isto &, apesar de nao existir a obrigagdo de tais traba- Thos serem realizados pelo empreiteiro, carecendo de fundamento legal uma tal vinculagao, a verdade € que o empreiteiro os realizou. O quinto e ultimo cendrio apresentado — em qualquer uma das trés hipéteses expostas, segundo imp6e um tratamento juridico baseado nos principios da justiga e da igualdade — coloca a tema- tica dos efeitos decorrentes da execugdo dos trabalhos a mais pelo empreiteiro. Uma vez que é este 0 cendrio subjacente a presente Consulta, a ele restringiremos as consideragées subsequentes sobre a posigao do empreiteiro. 2.9. A execucdo dos trabalhos a mais por parte do emprei- teiro provoca, inevitavelmente, uma alteragdo dos custos varidveis inicialmente previstos e tidos como pressuposto durante a prepara- ¢4o e apresentagao da respectiva proposta a concurso, a qual viria a ser objecto de adjudicagao e, em momento subsequente, conver- tida em contrato de empreitada.

You might also like