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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO


PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA

CÍCERO RENAN NASCIMENTO FILGUEIRA

ENTRE A FEIRA E O TEATRO:


A DINÂMICA DOS REPENTISTAS EM PERNAMBUCO (1900-1948)

Recife
Março / 2017
CÍCERO RENAN NASCIMENTO FILGUEIRA

ENTRE A FEIRA E O TEATRO:


A DINÂMICA DOS REPENTISTAS EM PERNAMBUCO (1900-1948)

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Rural de
Pernambuco como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre em
História.

Orientadora:
Prof.ª Dra. Maria Ângela de Faria Grillo.

Recife
Março / 2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Sistema Integrado de Bibliotecas da UFRPE
Biblioteca Central, Recife-PE, Brasil

F481e Filgueira, Cícero Renan Nascimento.


Entre a feira e o teatro : a dinâmica dos repentistas em
Pernambuco (1900-1948) / Cícero Renan Nascimento Filgueira.

2017.
213 f. ; il.

Orientadora: Maria Ângela de Faria Grillo.


Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Rural de
Pernambuco, Pós-Graduação em História, Recife, BR-PE, 2017.
Inclui referências.

1. Repente de viola 2. Folcore 3. História cultural I. Congresso


de Cantadores do Nordeste II. Grillo, Maria Ângela de Faria,
orient.
II. Título

CDD
907
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA

CÍCERO RENAN NASCIMENTO FILGUEIRA

ENTRE A FEIRA E O TEATRO:


A DINÂMICA DOS REPENTISTAS EM PERNAMBUCO (1900-1948)

Aprovada em: 08/03/2017

Banca Examinadora

________________________________________________
Prof.ª Dra. Maria Ângela de Faria Grillo – PPGH-UFRPE
(Orientadora)

________________________________________________
Prof. Dr. Rômulo José Francisco de Oliveira Junior – Faculdade Joaquim Nabuco
(Examinador externo)

________________________________________________
Prof.ª Dra. Isabel Cristina Martins Guillen – PPGH-UFPE/PPGH-UFRPE
(Examinadora externa)

________________________________________________
Prof.ª Dra. Ana Lucia do Nascimento Oliveira – PPGH-UFRPE
(Examinadora interna)

Recife
Março / 2017
Aos meus avós: Rafael Filgueira, Ana
“Rosalva” Cabral (in memoriam),
Antônio Tota do Nascimento (in
memoriam) e Irene Bezerra (in
memoriam).
Sem vocês eu não seria essa mistura de
sertões...
AGRADECIMENTOS

Agradecimentos sempre são difíceis e injustos pela impossibilidade de pontuar


diretamente todos que contribuíram para que este trabalho seja finalizado. Em quase
dois anos de estudos e pesquisas para a elaboração desta dissertação muitas pessoa
contribuíram direta ou indiretamente; de amigos, familiares, professores, funcionários
das instituições que frequentei, todos foram fundamentais nesse processo.
Agradeço, especialmente, aos meus pais Francisco Rômulo e Jussara pelo amor,
carinho, compreensão e apoio ao longo desta fase de minha vida, assim como Ivanilda
(Didida), minha segunda mãe, que é exemplo de amor. Também aos meus irmãos
Rômulo e Remmo e suas respectivas esposas pela amizade e o carinho.
A todos os meus tios, tias, primos e primas dessa família maravilhosa. Aos meus
tios Renato e Rubens com ótimas conversas repletas de conhecimento, conselhos e
profundo entusiasmo em minha empreitada. Ao meu primo Irapuan Sobral, profundo
conhecedor do mundo da cantoria de viola, sem o empréstimo de seus livros raros, este
trabalho seria inviável. A todos os meus tios, tias, primos e primas dessa família
maravilhosa.
Aos professores da banca que contribuíram enormemente com conselhos a
minha pesquisa. Professor Rômulo, conselheiro dedicado e ótimo crítico textual,
verdadeiro amigo para a vida toda. Professora Isabel, seu conhecimento em História
Cultual e Social foi um verdadeiro alicerce para este trabalho. Professora Ângela, minha
orientadora, melhor companheira que se pode esperar nas orientações afiadas e na
doçura de caráter. A todos carrego profundo respeito e admiração para me espelhar no
ofício de historiador, meu muito obrigado!
Aos meus amigos. Em especial aos companheiros do Cab’et, que nos momentos
de estresse foram um verdadeiro abraço de companheirismo, meu muito obrigado a:
Rafael (Pirraia), Raphael (Balu), Matheus (Mago), George (Geo), Laurinha, João,
Marcos, Victão, Dyego, Giceli e todos os outros que fazem parte dessa turma
maravilhosa. À Camila Caetano, suas correções ácidas foram de muita ajuda. À
Angélica Renepont e sua valiosa ajuda em me apresentar Marcelo Renan, que por sua
vez me apresentou o professor Carlos Newton (UFPE), no qual, tivemos uma ótima
conversa e fornecimento de matéria fundamental para a elaboração de parte desta
dissertação.
Aos amigos do Manolo’s, grandes amigos desde a infância: Igor (meu primo),
Eduardo (Ash), Felipe, Fabinho, Gabriel (Bit), Gustavo (Guga), Lucas (Shiriu) e os
demais que fazem parte dessa fraternidade.
Aos meus amigos, verdadeiros irmãos, de Tabira: Júnior de Beta, Jefferson
(Geo), Giuseppe Mascena, Alan, Dioguinho e todos os irmãos/poetas desta cidade.
À FACEPE, pelo auxílio financeiro, sem a qual teria sido impossível dedicar
tempo ao levantamento de fontes.
Aos amigos do mestrado, ótimos companheiros que compartilharam as dores e
alegrias que é fazer a dissertação. Em especial a: Jorge, Juliana (Julie), Karina, Fred,
Rômulo, Leon, Lenivaldo (Leni) e todos os outros que formam essa grande família da
PPGH.
À todos os professores que tive contato durante o mestrado com vossos
conhecimentos nas leituras dirigidas em muito ajudou na construção historiográfica
deste trabalho. Em memória do professor Tiago, onde quer que esteja que esteja em paz.
Sem esquecer-me de Rafael da secretaria da pós, sempre solícito e pronto a ajudar.
Aos funcionários da hemeroteca da FUNDAJ, sempre dispostos a ajudar na
pesquisa. Aos funcionários da APEJE pela ajuda na busca por periódicos para esta
pesquisa. À Sandro do Museu da Cidade do Recife que, além de companheiro de
profissão, me direcionou na busca de fontes no início da pesquisa. Aos amigos que fiz
no Arquivo Geral do Tribunal de Pernambuco durante meu estágio ainda na graduação,
amigos para a vida toda. Aos meus amigos do Jiu-jitsu, verdadeiras horas de descanso
mental nos treinos.
No mais, peço desculpas se deixei algum nome escapar por entre os fios da
memória. A todos próximo eu os agradeço por fazer parte de minha vida durante esse
processo!
Meu muito obrigado!
“São os poetas os rios
Que deslizam entre as fráguas
Das cordilheiras mais altas,
De onde Deus derrama as águas,
E em baixo, no vale humano,
Viram represas de mágoas.”

Dimas Batista
RESUMO

O repente de viola passou por modificações no seu mecanismo de atuação entre o fim
do século XIX até por volta do início de 1950, identificadas, assim, em uma série de
mudanças que corroborou para um projeto de profissionalização do repentista. Para a
análise e construção da narrativa de como esse processo se deu foi necessário criar um
diálogo entre fontes escassas (periódicos, escritos de folcloristas e folhetos) e a
historiografia da História Cultural, em especial autores como Roger Chartier, Michel de
Certeau, Carlo Ginzburg e Pierre Bourdieu. Foram identificados vários momentos de
rupturas e continuidades na prática dos repentistas. Em um momento ainda bastante
ruralizado, aqui chamado de “Geração Clássica de Cantadores”, viu-se a anexação de
novos gêneros métricos, a vitória da viola dentre outros instrumentos e a solidificação
de duplas de poetas fixas levando, assim, às formas canônicas da cantoria pé-de-parede.
A partir da década de 1920 é identificada uma migração acentuada de repentistas para as
grandes cidades, na qual esse momento de chegada foi visto por três óticas: os trabalhos
dos folcloristas em defesa do cantador como símbolo de um Nordeste que surgia e como
estes representavam aqueles em suas obras; a reconstrução do cotidiano dos cantadores
entre os mercados e ruas do Recife pelos jornais, principalmente ao longo dos anos
1930 e início da década de 1940; por fim, nas capas dos folhetos em circulação neste
período foi identificada mudanças das representações dos cantadores entre as feiras e os
teatros. Para a construção do novo campo dos repentistas na década de 1940, foi
discernido, a partir de estudos biográficos, o surgimento da “Geração Moderna de
Cantadores”, que ganhou uma série de novas características que levou os repentistas das
feiras aos grandes palcos. Diante disto, analisa-se o processo ocorrido até a construção
do I Congresso de Cantadores do Nordeste alicerçado na analisada das experiências de
Ariano Suassuna na primeira cantoria “oficial” do Recife e os primeiros congressos de
sucesso midiático organizados pelo jornalista e poeta Rogaciano Leite.

Palavras-chave: Repente de viola, Folclore, História Cultural, I Congresso de


Cantadores do Nordeste
ABSTRACT

The “repente de viola” underwent modifications in its mechanism of action between the
end of the nineteenth century until around the beginning of the 1950s, identified, thus,
in a series of changes that corroborated for a project of professionalization of the
“repentista”. For the analysis and construction of the narrative of how this process took
place, it was necessary to create a dialogue between scarce sources (periodicals,
writings of folklorists and “folhetos”) and the historiography of Cultural History,
especially authors such as Roger Chartier, Michel de Certeau, Carlo Ginzburg and
Pierre Bourdieu. Several moments of rupture were identified in the practice of the
"repentista". In a still quite ruralized moment, here called "Classical Generation of
Cantadores", it was seen the annexation of new metrical genres, the victory of the viola
among other instruments and the solidification of fixed poet pairs, leading, thus, to the
canonical forms of the "cantoria pé-de-parede". From the 1920s onwards a sharp
migration of “repentistas” to large cities was identified, in which this moment of arrival
was seen by three optics: the works of the folklorists in defense of the “cantador” as a
symbol of a rising Nordeste and how they represented those In their works; The
reconstruction of the “cantadores” daily life among the markets and streets of Recife in
the newspapers, especially during the 1930s and early 1940s; Finally, on the covers of
the “folhetos” circulating in this period, changes were made between the representations
of the “cantadores” between the fairs and the theaters. For the construction of the new
field of the “repentista” in the 1940s, the emergence of the "Modern Generation of
Cantadores" was discerned from biographical studies, which gained a series of new
characteristics that led the fairs “repentistas” to the big stages. Before this, it is analyzed
the process that took place before the construction of the First Congress of “Cantadores
do Nordeste”, based on the analysis of the experiences of Ariano Suassuna in the first
"official" “cantoria” of Recife and the first congresses with media success organized by
the journalist and poet Rogaciano Leite.

Keywords: Repente de viola, Folklore, Cultural History, I Congress of “Cantadores do


Nordeste"
LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 Cantigas de Santa Maria, por Alfonso X, “O Sábio”. p. 53


Fig. 2 Repentistas Serrador, Cego Sinfrônio, Cego Aderaldo p. 56
e Jacó Passarinho com Leonardo Mota.
Fig. 3 Poetas repentistas em congresso de cantadores no Rio p. 57
de Janeiro, em 1959.
Fig. 4 “Polígono da Poesia”. p. 60
Fig. 5 “Caminho do Capibaribe”. p. 62
Fig. 6 “A Peleja de Ulysses Bahiano com José do Braço” de p. 101
João Martins de Athayde.
Fig. 7 “A peleja de Ventania com Pedra Azul” de João p. 103
Martins de Athayde.
Fig. 8 “Peleja de Laurindo Gato com Marcolino Cobra p. 105
Verde” de João Martins de Athayde.
Fig. 9 “Peleja de Patricio com Inacio da Catingueira” de João p. 106
Martins de Athayde.
Fig. 10 “Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho” de João p. 107
Martins de Athayde.
Fig. 11 Manchete de primeira página da visita dos repentistas p. 117
Otácilio Batista e Dimas Batista à redação do Jornal
Pequeno, em 1946.
Fig. 12 Dimas Batista, Ariano Suassuna, Otacílio Batista em p. 119
entrevista para o Jornal Pequeno, 1946.
Fig. 13 Anuncio do espetáculo dos cantadores na Rádio Jornal p. 129
do Commercio, em outubro de 1948.
Fig. 14 Pedro Bandeira e Pinto do Monteiro, em 1946. p. 142
Fig. 15 Pinto do Monteiro em foto de página inteira em p. 143
matéria “Poesia, Feijoada e Viola” da revista O
Cruzeiro.
Fig. 16 Rogaciano Leite e João Siqueira de Amorim, em 1945. p. 159
Fig. 17 Rogaciano observando os emboladores no Mercado de p. 162
S. José, em 1954.
Fig. 18 Registro do público presente no Congresso de p. 178
Cantadores, em 1948, no Teatro Santa Isabel
Fig. 19 João Francisco de Oliveira, Agostinho Lopes, Severino p. 183
Pinto e Otacílio Batista no Recife, em 1948.
Fig. 20 Rogaciano Leite apresentando a maioria dos p. 184
repentistas que participaram da competição no I
Congresso de Cantadores do Nordeste, em 1948.
Fig. 21 Apresentação de Dimas Batista e Otacílio Batista, p. 188
primeira dupla do Congresso de 1948.
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Alguns gêneros do repente de viola p. 42


LISTA DE ABREVIATURAS

APEJE - Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano

BN – Biblioteca Nacional

CEPE – Companhia Editoria de Pernambuco

CNFCP – Comissão Nacional de Folclore e Cultura Popular

FCRB – Fundação Casa de Rui Barbosa

FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco

MEC – Ministério da Educação

PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

UFF – Universidade Federal Fluminense

UFPB – Universidade Federal da Paraíba

UFPE – Universidade Federal de Pernambuco

UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina

UFRPE – Universidade Federal Rural de Pernambuco

UNESP – Universidade Estadual Paulista

USP – Universidade de São Paulo


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................... 14
Estudos folclóricos e o folclorista como fonte .................................................. 25

CAPÍTULO 1 – A cantoria e o sertão: antigas tradições ................................ 34


1.1 A cantoria, os gêneros e os instrumentos .................................................... 35
1.2 A geografia da cantoria: o Polígono da Poesia e os repentistas
itinerantes........................................................................................................... 58

CAPÍTULO 2 – A cantoria e a cidade: tradições e representações ................. 74


2.1 O repentista entre o regionalismo e o olhar dos folcloristas ....................... 75
2.2 Os repentista das ruas: tradições nas ruas e nos mercados do Recife ......... 86
2.3. No tabuleiro do mercado: representações dos desafios nos folhetos ......... 100

CAPÍTULO 3 – Ariano Suassuna e a Geração Moderna de Cantadores ........ 109


3.1. Ariano Suassuna e a primeira cantoria “oficial” do Recife ....................... 110
3.2. A Geração Moderna de Cantadores ........................................................... 123

CAPÍTULO 4 – Rogaciano Leite e o I Congresso de Cantadores do


Nordeste ............................................................................................................ 152
4.1. Rogaciano Leite: entre o popular e o erudito ............................................. 153
4.2. I Congresso de Cantadores do Nordeste .................................................... 172

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 200


REFERÊNCIAS E FONTES ......................................................................... 205
14

INTRODUÇÃO

“Pra quem tem educação


A fama se estabelece,
Toda pessoa merece
Que você dê atenção,
Cada história é uma instrução
Pra quem souber reparar,
E quem quiser aceitar
Aceite como cultura,
Cada uma criatura
Tem história pra contar.”
Pedro Bandeira

Por que motivo estudar os cantadores de viola? Desde minha infância vi o papel
que os cantadores de viola têm na construção do cotidiano da região que nasci, no
Sertão do Pajeú pernambucano, em especial na cidade de Tabira. Indo de cantorias em
bares até congressos (como são chamados os torneios) ou até mesmo grandes eventos,
de vários dias, como a Missa do Poeta1, em Tabira, e as festas dedicadas aos famosos
poetas de outrora, como a festa em homenagem a Lourival (Louro) do Pajeú, em São
José do Egito.
Perdi a conta das vezes em que fui à praça central de minha cidade e vi amigos
improvisando versos por diversão. As rimas saíam praticamente de forma natural, quase
sem esforço. Nunca tive habilidades para acompanhá-los nas rodas de poesia
improvisada e de alguma forma sentia inveja. Para suprir essa necessidade, encontrei
nos estudos, na pesquisa, a maneira de contribuir na apreciação e divulgação dessas
figuras que fazem parte da história daquela região. Já na academia, cursando História,
comecei a analisar essa prática cultural, que por muitas vezes encontrava-se nas
entrelinhas dos folcloristas, periódicos e folhetos.
Mas, a ideia específica de estudar as cantorias e os congressos surgiu a partir de
uma experiência que tive em um certo dia que desencadeou a curiosidade por um
momento histórico, que os repentistas viveram. Neste dia, de férias da graduação em
História, estava em Tabira. Na ocasião, ocorreu um congresso de cantadores locais,

1
Festividade de quatro dias em memória do poeta e compositor Zé Marcolino, na qual ocorrem várias
atrações, desde congressos a mesas de glosas, saraus, vendas de livros e a própria missa. Ocorre no mês
setembro, normalmente na segunda semana.
15

organizado pela APPTA (Associação dos Poetas e Prosadores de Tabira). Aproveitei a


oportunidade para assistir os improvisos do meu poeta favorito, João Paraibano (1953-
2014), que residia na cidade vizinha, Afogados da Ingazeira. Este comumente cantava
com Sebastião Dias (1950-), outro grande fenômeno do improviso.
O congresso mal começara e uma dupla estava incompleta: João Paraibano havia
se atrasado para o início da competição. Quando o evento já estava por findar, eis que
cantador chega e sentou junto à plateia. Com o fim do certame, foi proclamado pela
mesa julgadora os vencedores e, então, o salão começou a esvaziar. Eu, por estar
próximo de amigos íntimos dos poetas da região, ouvi o pedido de João Paraibano para
fazer uns improvisos no fundo do salão, ao pé-da-parede2. Foi, então, que vi uma
saraivada de versos improvisados saírem com uma naturalidade extraordinária. João,
intercalando com uns poetas que ficaram, declamou motes dados pelos que lá estavam.
A certa altura da noite, já entrando na madrugada, foi dado o mote “Todo mundo canta
bem/ Nas madrugadas da vida”, e João improvisou um verso que viria a ficar na
memória de muitos que lá estiveram.

Dorme uma galinha choca


Sentindo as sombras das telhas
Um cão balança as orelhas
Mordidas de muriçoca
Se deita numa parroca
Sem conforto na dormida
Passa a língua na ferida
Enquanto chega o xerém
Todo mundo canta bem
Nas madrugadas da vida. 3

A partir deste momento me surgiu a curiosidade de como esses dois momentos


da prática do repente se comunicaram, ou seja, qual a relação entre os pés-de-parede e
os congressos? Como as pelejas foram levadas às competições nos moldes dos
congressos? Essa é a razão deste trabalho e perpassa por todas as páginas aqui escritas.
Ao dedilhar a viola, o repentista faz uma representação do mundo através da
declamação. Um mundo por vezes escuro, triste, como se a mágoa eterna o tocasse. Por
vezes, um mundo repleto de aventuras, de bois fantasiosos que falam e sentem como

2
Fazendo alusão a forma como os cantadores se apresentam em bares, festas particulares, etc. Encostados
junto à parede.
3
A data exata do evento foge a memória minha e dos amigos que lá estiveram comigo, porém, ocorreu no
decorrer de 2009.
16

gente, às vezes mais do que as pessoas. O historiador, assim como os cantadores, faz
representações do mundo em seus textos: mundo parcialmente representado nos
documentos que contam uma história fragmentada, como uma estrofe sempre a ser
concluída. Logo, pode-se entender que o historiador está fadado a escrever uma história
pelos retalhos deixados nas linhas, ou melhor, entrelinhas dos fatos registrados ao longo
do tempo.
Como toda pesquisa, deve-se inicialmente estudar os que tratarem o tema para
então delimitar uma forma de ação. Como será visto adiante, foco em três folcloristas
para trabalhar os primeiros momentos da cantoria de viola, que são: Rodrigues de
Carvalho, Leonardo Mota e Câmara Cascudo. Ao lê-los, obtive as primeiras noções das
práticas dos cantadores na virada do século XIX e como esta começou a ganhar novas
formas nas primeiras décadas do século XX. Ao estudar esses autores foi possível
conhecer um pouco sobre a vida itinerante dos poetas que caminham sozinhos pelos
sertões a procura de outros repentistas para se apresentarem nas casas de fazendeiros e
que cantavam, principalmente, em forma de quadras. Somente em fins do século XIX
que é visto a anexação das sextilhas e outros gêneros no mundo do repente. Mas como
as tradições nos sertões dos folcloristas chegaram ao palco do teatro da cidade grande?
Na busca por trabalhos atuais, produzidos sobre essa temática, encontrei em
pesquisas algumas respostas que me levaram a análise historiográfica pretendida. A
grande maioria destes trabalhos sobre a cantoria de viola pertence à área de Letras,
Ciências Sociais ou Antropologia, porém, pouquíssimos eram focados nos aspectos
históricos do repente de viola antes da primeira metade do século XX. Os que chegam a
trabalhar com este período dedicam apenas um pequeno espaço em suas dissertações e
teses.
Francisco José Gomes Damasceno, que foi bastante utilizado no presente
trabalho, em Versos quentes e baiões de viola: cantoria e cantadores do/no Nordeste
Brasileiro no século XX, traz uma pesquisa voltada principalmente para segunda metade
do século XX, ou como o próprio chama, a segunda fase-geração de cantadores4. O
espaço dedicado para a primeira fase-geração, que são exatamente os cantadores que
pesquiso, ou seja, os que circularam com maior intensidade entre os anos de 1920-1940.

4
DAMASCENO, Francisco José Gomes. Versos quentes e bailões de viola: cantorias e cantadores
do/no Nordeste Brasileiro no século XX. Campina Grande (PB): EDUFCG, 2012. p,223-252.
17

O fato do autor trabalhar menor o período aqui explanado está ligado a fonte escassa
usada por Damasceno, que é principalmente os relatos orais de cantadores.
O trabalho de Karlla Souza5 mostra um panorama no tempo presente o que são
os congressos e para tal, procurou rebuscar, mesmo que por alto, os primeiros eventos
deste tipo e inserir a discussão no papel dos congressos na relação cantador profissional
e amador. Recentemente, Andréa Silva6, em sua tese de doutorado, trabalhou próximo a
minha pesquisa, ao passo que centrada na concepção dos festivais7. A autora foca em
uma pesquisa calcada em entrevistas com cantadores que fazem parte dessa geração dos
festivais e da difusão deste tipo de evento. Porém, a autora não atenta em sua pesquisa
para os eventos antes de 1950. Assim como Damasceno, Andréa Silva e Karlla Souza
exploram os congressos antes de 1950 apenas pelos relatos dos antigos cantadores em
entrevistas, em especial as informações obtidas através José Alves Sobrinho (1921-
2011). No entanto, os dados por vezes são confusos até mesmo quando se refere às
datações.
Com isso, procuro entender como se deu o processo que Marcia Abreu8 aponta
como as formas definitivas que a cantoria de viola tomou nos fins dos anos de 1920:
uma gama maior de gêneros (esquemas de rimas e métricas) surgem deixando os
desafios (pelejas) apenas como mais um momento da apresentação; ao passo que os
poetas começam a fixar-se em duplas. Aliado a isso, como será visto, há um abandono
progressivo do uso de folhetos entre os cantadores impulsionados por novas gerações de
improvisadores que procuram abandonar o costume de reproduzir versos decorados
numa tentativa de legitimar a profissão de repentista a partir da década de 1940. É neste
momento, entre os anos de 1920 e 1940, que os cantadores passam a fazer parte cada
vez mais do cotidiano das ruas, mercados e festas populares nos grandes centros
urbanos (para tal, foco a pesquisa na cidade do Recife).
Esses novos cantadores, aqui designados como Geração Moderna de Cantadores,
reinventam as antigas pelejas do século XIX e chegaram aos grandes palcos dos teatros.

5
SOUZA, Karlla Christine A. A Poesia de Repente volta para casa: Itapetim no circuito dos
Congressos de violeiros. Campina Grande, 2006. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Programa de
Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Campina Grande, 2006.
6
SILVA, Andréa Betânia da. Entre pés-de-parede e festivais : rota(s) das poéticas orais na cantoria de
improviso. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Prof. Milton Santos. I’Université Paris Ouest Nanterre, 2014.
7
Eventos maiores com duração mais extensa que os congressos. Surgem com maior notoriedade a partir
de 1970.
8
ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado das letras, 1999.
18

Para recolher as informações e, consequentemente analisá-las, foi necessário fazer uma


pesquisa a fundo nos periódicos, principalmente, entre as décadas de 1930 e 1940.
Apesar de focar principalmente nos jornais Diario de Pernambuco, Jornal do
Commercio e Jornal Pequeno, parto, por vezes a outros periódicos para um
enriquecimento informativo nas discussões.
Por que o marco deste trabalho pretende-se até o fim da década de 1940? Entre
1946 e 1948 ocorrem eventos importantes no que se refere à chegada dos cantadores aos
teatros – revelando a mudança na dinâmica da cantoria e desencadeando o processo de
profissionalização que viria a ocorrer tempos depois. Em 1946, o então estudante de
Direto, Ariano Suassuna promoveu o que chamou de “Primeira cantoria ‘oficial’ do
Recife”, no Teatro Santa Isabel. Já o poeta e jornalista Rogaciano Leite realizou, em
1947, no Teatro José de Alencar (Fortaleza-CE) um grande congresso de cantadores,
sendo sua maioria de participantes os que residiam no Ceará. Por outro lado, um ano
após este, em 1948, na capital pernambucana, Rogaciano reuniu violeiros de vários
estados nordestinos para o I Congresso de Cantadores do Nordeste.
Doravante, foi preciso recuar o corte temporal da pesquisa para os anos entre
1900 e 1948. Por mais que boa parte do Capítulo 2 e, em sua totalidade, os Capítulos 3
e 4 sejam fixados entre 1920 e 1948, seria impossível não trabalhar as antigas tradições
da virada do século XIX para o XX na tentativa de compreender as mudanças na
dinâmica da cantoria observadas ao longo dos trinta anos da primeira metade do século
XX. Não obstante, a pesquisa foi calcadas em uma gama de fontes escassas e diluídas
ao longo de quase cinquenta anos de prática do repente improvisado, promovidos, em
sua maioria, pelos sertanejos do interior dos estados nordestinos. Começando por relatos
dos folcloristas e concluindo com o uso de periódicos, no qual, destes poucas
informações são colhidas até metade da década de 1930. Já ao longo da década de 1940
apesar de, comparada com a década anterior, ter mais relatos sobre a cantoria e os
cantadores, ainda assim contém situações difusas, por vezes desencontradas, se
concentrando mais no I Congresso de Cantadores do Nordeste, em 1948. Portanto, trago
nos quatro capítulos aqui desenvolvidos as questões pertinentes as transformações
vivenciadas pelos poetas da época.
Com o intuito de inserir as análises no contexto da História Cultural, ou hoje
chamada de Nova História Cultural, foi construído a partir de um processo pelo qual a
historiografia passou por todo o século XX. Um processo, visto que, novas abordagens
19

e paradigmas foram inseridos no devir historiográfico. A partir da década de 1930, a


historiografia ganhou novas faces e desafios, principalmente, devido às proposições da
Escola dos Annales francesa9. Diversos pontos de análise foram inseridos aos poucos
como forma de resposta a escola metodista positivista do século XIX, que tinha como
fonte recorrente de informações para fundamentar a escrita dos historiadores os
documentos oficiais do estado. Com as novas abordagens, geradas em meados do século
XX, passou a ser mais usado outras formas de pesquisa e fontes, como ritos,
personagens desconhecidos, vestuário, paisagens, etc. Segundo Peter Burke 10, quatro
teóricos tiveram fundamental importância para os historiadores praticantes da Nova
História Cultural: Mikhail Bakhtin, Norbert Elias, Michel Foulcault e Pierre Bourdieu.
Desses manterei o foco no primeiro e no último: Bakhtin e Bourdieu.
No que se refere à produção historiográfica brasileira, José D’assunção Barros11
trabalha a História Cultural hoje sob três eixos principais de influência, os quais adoto
alguns deles como marcos teóricos da pesquisa aqui apresentada. O primeiro eixo é a
Escola Marxista Inglesa, representada principalmente por Thompson e Hobsbawm. O
segundo eixo refere-se à polifonia cultural e micro-história, trabalhadas por Ginzburg.
Por fim, o terceiro eixo está ligado às práticas e representações articuladas,
principalmente, por Michel de Certeau e Chartier. Logicamente, os eixos não são
apresentados como formas indissociáveis e impossíveis de trabalhar em conjunto.
Dentre os eixos, os que me chamam mais atenção para esta produção é a noção de
práticas, representações e apropriação trabalhadas por Roger Chartier e a circularidade
cultural em Bakhtin que Ginzburg utilizou.
O teórico em linguagem, Bakhtin, é especialmente importante, pois, como será
visto adiante, foi fundamental na construção da noção de circularidade cultural
retomada por Carlo Ginzburg. Bakhtin em Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento traz, a partir de Rabelais, trabalhos sobre a cultura popular no qual
desenvolveu as noções de carnavalização, polifonia, dialogismo. Importante frisar que
Bakhtin analisa o carnaval na sua obra dissociado da realidade cristã, ou seja, faz todo
seu estudo focado na ideia unilateral do carnaval sem o englobar em uma estrutura
maior. Já Ginzburg ao se apropriar do conceito procurou utilizá-lo bilateralmente. Se

9
Cf. BURKE, Peter. A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). Ed.
Unesp, 1991.
10
Cf. BURKE, Peter. O que é história cultural?. Zahar, 2008.
11
Cf. BARROS, J. D. O campo da História: Especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
20

colocar o popular como elemento cultural há muito existentes em uma comunidade ou


classe subalterna e, normalmente, transmitido através da oralidade e o erudito como
cultura de centro ou cultura moderna, nota-se que existe um diálogo e certa disputa
entre eles por significações que fazem os vários agrupamentos culturais se
influenciarem. Carlo Ginzburg procura encontrar estes contrastes entre costumes
eruditos e populares e o diálogo que estes formam. Para tal, Carlo Ginzburg trabalha
com a perspectiva da circularidade cultural. Ideia desenvolvida principalmente no seu
livro O Queijo e os Vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição, onde basicamente o autor considera a circularidade cultural como sendo um
influxo recíproco entre cultura subalterna (popular/ tradição oral) e cultura hegemônica
(elite/erudita)12.
Completando o pensamento de Ginzburg, busco estabelecer o que, ao longo do
texto, é chamado de popular. Logo, adoto a concepção de popular a partir dos trabalhos
do antropólogo argentino Néstor García Clancini, principalmente em Culturas híbridas:
estratégias para entrar e sair da modernidade. Para o pesquisador, o popular:

É nessa história o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não


conseguem que ele seja reconhecido ou conservado; os artesãos que não
chegam a ser artistas, a individualizar-se, nem a participar do mercado de
bens simbólicos ‘legítimos’; os espectadores dos meios massivos que ficam
de fora das universidades e dos museus.13

Tal conceito é aplicável à realidade aqui trabalhada, pois, o repentista não foi
considerado pelo Estado como uma profissão por anos, fato que só veio a ocorrer
oficialmente em 2010. Aliado a isto, a noção de patrimônio também não é aplicável, já
que estou utilizando um momento que começou a fortalecer a ideia do movimento
folclórico do repente como símbolo do Nordeste.
O filósofo Pierre Bourdieu não escreveu para a historiografia, mas teve seu
pensamento fortemente ligado à construção do pensamento historiográfico. Sua maior
influência está relacionada à noção de “reprodução cultural”,

[...] processo pelo qual um grupo, como por exemplo a burguesia francesa,
mantém sua posição na sociedade por meio de um sistema educacional que

12
Cf. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Ver prefácio à edição italiana.
13
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: EDUSP, 2008, p. 205.
21

parece ser autônomo e imparcial, embora na verdade selecione para a


educação superior alunos com as qualidades que lhe são inculcadas desde o
nascimento naquele grupo social14.

A contribuição mais marcante de Bourdieu esteja relacionada à concepção da


“teoria das práticas” e o conceito de “habitus”. As práticas estão relacionadas às
improvisações inculcadas pela cultura na mente e no corpo, já o habitus está relacionado
a noção de improvisação, ou seja, parece “natural” a forma como os filhos dos
burgueses eram bem sucedidos nos exames da educação superior15. Com isso, habitus
pode ser entendido como uma série de mecanismos que ajudam os indivíduos a agir
dentro da manutenção de uma estrutura. Logo, assim Bourdieu procurou definir o
conceito: “[...] como sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto
estruturas estruturantes, constituem o principio gerador e unificador do conjunto das
práticas e das ideologias características de um grupo de agentes”16.
Aliado ao conceito de habitus, o conceito bourdieuniano de “campo” adquire
fundamental também importância ao longo de todo o texto quando é trabalhado a
mudança na dinâmica da cantoria, ou seja, na transformação das antigas pelejas para os
improvisadores dos congressos. Com isso, tal visão consiste nos espaços sociais onde as
práticas individuais e coletivas se dão de forma normatizada. Segundo Bourdieu 17, o
campo só é possível ser construído dentro de uma noção de oposições dentro do jogo
social. Tais ações são criadas e recriadas constantemente ao paço que seus integrantes
sofrem influência e se influenciam, refletindo assim, nas práticas deste grupo.
Resumindo, consiste nas articulações dentro de espaços sociais no qual a ação dos
agentes definem a manutenção e mudanças nas normatizações. Ou, melhor explicando
nas palavras de Roger Chartier, os campos,

[...] segundo Bourdieu, têm suas próprias regras, princípios e hierarquias. São
definidos a partir dos conflitos e das tensões no que diz respeito à sua própria
delimitação e construídos por redes de relações ou de oposições entre os
atores sociais que são seus membros.18

14
BURKE, 2008. p. 77.
15
Ibidem.
16
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 191.
17
Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
18
CHARTIER, Roger. Pierre Bourdieu e a história. In: Topoi (Rio de Janeiro), v. 3, n. 4, p. 139-182,
2002. p. 140.
22

Com isso, procuro ao longo do texto demonstrar como o campo do repentista foi
sendo (re)criado ao longo das primeiras décadas do século XX. Para tal, tenho como
principal fonte de pesquisa os periódicos e os registros dos folcloristas, do mesmo modo
que uma análise iconográfica nas capas de folhetos e fotos, na qual tento observar as
representações e apropriações da cantoria de viola e de seus praticantes, os violeiros.
Logo, entende-se tais produções não como uma realidade fixa e imutável, mas sim
como uma representação da realidade. Concordando com Chartier, busco:

[...] uma história cultural do social que tome por objetivo a compreensão das
formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo
social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e
interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a
sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse. 19.

Para isso, Chartier propõe que três conceitos se tornem fundamentais na


construção da história cultural: representações, práticas e apropriações. As práticas são
trabalhadas pelo autor em seus estudos sobre a história dos textos e leitura. Em Leitura
e leitores na França do Antigo Regime, apontou que não tem como dissociar a cultura
erudita da cultura popular. Ao usar a bibliothèque bleue20 como objeto de estudo,
Chartier identificou usos populares de ideias e de códigos que não eram considerados
como populares, ao mesmo tempo em que identificou usos coletivos de uma cultura
coletiva que a elite somente as separou.
As representações para Chartier são quando “o real assume assim um novo
sentido: aquilo que é real, efetivamente, não é (ou não é apenas)” 21. Logo, procuro
entender como se deu a construção dos congressos de cantadores a partir dos aspectos
destacados destes, ou seja, como os cantadores foram caracterizados pelos jornais, pelos
folcloristas e pelos folhetos. Com isso, tais representações são articuladas às práticas
sociais, como aponta Lynn Hunt: "Todas as práticas, sejam econômicas ou culturais,
dependem das representações utilizadas pelos indivíduos para darem sentido a seu
mundo"22.

19
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro/Lisboa:
Bertrand/Difel, 1990. p. 19.
20
“Biblioteca Azul”, como era chamada a coleção de pequenos livros de baixo custo de produção. O
nome “azul” é dado devido ao papel (o mesmo utilizado para embrulhar pão) utilizado na capa destes
pequenos livros de bolso.
21
Ibidem. p, 63.
22
HUNT, Lynn. A Nova História Cultural – O Homem e a História. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
p. 25.
23

Com isso, no intuito de superar a análise histórica somente entre estruturas e


sujeitos, Chartier propõe, “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos
uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler”23. O papel do
historiador seria, portanto, pesquisar uma realidade que somente fosse possível através
das representações construídas sobre o real.
Para investigar a noção de usos sociais das práticas culturais, Chartier se
aproximou do pensamento de Michel de Certeau, no tocante da obra A invenção do
cotidiano: arte de fazer. Nela há duas concepções importantes para o desenvolvimento
da noção de práticas e apropriações, que são: estratégias e as táticas. Enquanto as
estratégias são “o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder [...] pode ser isolado” 24; as táticas são
operações que, jogando com as regras sociais, normalmente as que o disciplinam, o
sujeito trabalha para que tais efeitos sejam anulados ou minimizados25.
A concepção de apropriação que utilizo ao longo do meu texto está relacionada
ao fato de considerar os congressos de cantadores como um processo de apropriações
das práticas dos desafios e pelejas de outrora. Ou seja, os cantadores no início do século
XX se apropriaram (releram) das antigas pelejas na construção do seu modo de
operação26. Na chamada cantoria de viola o mesmo ocorre na formação dos congressos,
que aqui são encarados como representações dos pés-de-parede. Logo, a prática da
cantoria de viola era representada no palco dos teatros, portanto, com as mesmas
estruturas, mas com uma nova roupagem e, mesmo que as pelejas já demonstrassem
uma noção de competitividade entre os cantadores, os congressos deixam a ideia de
competição mais clara: agora com premiação dada por uma mesa julgadora. Diante diso,
compartilhando da ideia de Chartier,

A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social
das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que
são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as
produzem27.

23
CHARTIER, 1990. p, 16-17.
24
. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – Vol 1: arte de fazer. 3ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
p. 99.
25
Ibidem.
26
Essa diferenciação é trabalhada no Capítulo 1.
27
CHARTIER,1990. p, 26.
24

Dentro desta concepção de práticas sociais dependerem das representações que


um indivíduo ou um grupo constrói da realidade, Chartier se aproxima da noção de
“representação coletiva” definindo três tipos de relação com mundo:

Em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de decomposição, que dá


origem aos diversos padrões intelectuais a partir dos quais a realidade é
construída de maneiras contraditórias pelos vários grupos que formam a
sociedade; em segundo lugar, as práticas que visam fazer reconhecer, exibir
uma maneira específica de estar no mundo, significar simbolicamente um
status e uma hierarquia; e, finalmente as formas institucionalizadas,
objetivadas, por meio das quais os “representantes” (coletivos ou individuais)
mascam a existência do grupo ou classe de um modo visível e permanente. 28

Nessa perspectiva pretendo trabalhei principalmente com os dois últimos pontos,


analisando as narrativas presentes nos jornais que indicam uma superioridade e
inferioridade cultural entre o erudito e o popular. Por último, procuro identificar a noção
de cantadores e cantoria a partir do desenvolvimento da profissão, desde a sua fixação
na região que compreende o sertão da Serra do Teixeira e Cariri, na Paraíba, e o Sertão
do Pajeú e o Moxotó, em Pernambuco, até quando os cânones da prática da cantoria são
estabelecidos no decorrer do início do século XX.

28
CHARTIER, Roger. “The world as representation (1989)”. p. 555. Apud CARDOSO, Ciro Flamarion
& Malerba, Jurandir (orgs.). Representações: Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas:
Papirus, 2002. p,12. Optei pela tradução de Ciro Flamarion Cardoso, porém, pode ser encontrada a
publicação completa em CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. In: Estudos Avançados,
São Paulo, 11(5), 1991, pp. 173-191.
25

Estudos folclóricos e o folclorista como fonte

A pesquisa aqui apresentada tem como principal mecanismo a análise das


representações e práticas colhidas em periódicos e escritas folclóricas assim como, tais
fontes, também contribuem para a construção da narrativa dos fatos abordados nos
capítulos. Os textos folclóricos merecem uma atenção especial por dois motivos:
primeiro, por se tratarem de uma tradição que remete ao século XIX de estudos voltados
a buscar informações em geral do que era chamado de “alma do povo”; segundo, muito
dos textos jornalísticos ao longo do trabalho é observado que seus autores reproduzem
os discursos dos folcloristas.
O manuseio com esse tipo de fonte carece um cuidado especial como apontam
alguns pensadores. O historiador britânico Edward P. Thompson atenta para fato que a
utilização dos escritos dos folcloristas deve sempre ser vista com cautela para não
reproduzir o discurso desses na escrita do texto científico. Thompson, ao levantar o
material dos folcloristas durante a pesquisa para escrever A formação da classe
operária inglesa, ficou inquieto ao notar que,

O costume e o ritual foram frequentemente encarados pelo cavalheiro


paternal – e estrangeiro (no caso da Índia) – a partir de cima e por cima de
uma fronteira de classe, sendo ainda divorciados de sua situação ou contexto.
As perguntas dos folcloristas raramente procuravam saber da sua função ou
uso corrente. Antes, os costumes eram vistos como “relíquias” de uma
antiguidade remota e perdida, como ruínas desmoronadas [...]29

À medida que é reproduzido no discurso dos folcloristas a percepção de uma


cultura em extinção, adoto o que o historiador Michel de Certeau30 chama de Beleza do
Morto. Neste processo, descreve-se como a cultura popular era encarada pelas elites e a
necessidade que estas tinham em primeiro esquecer (censurar) o popular para então
“ressuscitar” (ser estudadas). Com isso, procuro compreender que a cantoria de viola
“[...] só pode ser interpretado quando as fontes (algumas delas coletadas por
folcloristas) deixam de ser olhadas como fragmento folclórico, uma ‘sobrevivência’, e

29
THOMPSON, Edward Palmer. Folclore, Antropologia e História Social. In: ______; NEGRO, Antonio
Luigi; SILVA, Sergio (orgs.). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. São Paulo: Editora da
Unicamp, 2012. p. 231.
30
CERTEAU, Michel de. A beleza do morto. In: _______. A cultura no plural. São Paulo: Papirus,
1995. pp. 55-86.
26

são reinseridas no seu contexto total”31. Historiadores, como Durval Muniz, na análise
da formação do movimento folclórico no Nordeste também atentam para fato da
“salvação” do popular. Segundo este, o mundo oral era potencialmente perigoso para as
elites e, ao passo que este mundo é transferido para a linguagem escrita (registro dos
folcloristas) significava uma tradução dos gestos, das atitudes, dos rituais, etc., portanto,
o trabalho folclórico representava atividades de seleção e censura 32.
Para estudar o discurso dos folcloristas aqui analisados é necessário explanar
como se deu o desenvolvimento desta prática no Brasil. O movimento folclórico já
vinha forte no Brasil desde a metade do século XIX, no que Renato Ortiz 33 chama de
Período Romântico do folclore brasileiro. A chegada do folclorismo no Brasil remete,
em parte, a grande atuação dos Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm Grimm), linguistas e
poetas alemães que, sob forte influência do movimento romântico alemão, registraram
contos populares, principalmente infantis, e ganharam grande notoriedade internacional.
O termo "folclore" fora adotado pela primeira vez em meados do século XIX pelo
arqueólogo inglês Willian John Thoms e é construído na junção de folk (povo) e lore
(saber). Logo, o novo termo passa a ser adotado e substitui outras expressões, como
"literatura popular" e "antiguidades populares", que representavam a prática do registro
das tradições transmitidas oralmente no campesinato34. Portanto, o termo “folclore” não
pode ser naturalizado, logo, se encaixa dentro de uma concepção de história dos
conceitos, ou seja, longe de ser um elemento fixo e estático, o conceito reflete uma
noção política atual no espaço e tempo da sociedade que a cria 35. Já no início do século
XX os estudos do folclore se concentravam basicamente na poesia de origem popular, a
chamada literatura oral. Somente por volta dos anos de 1950 que os folguedos populares
ganham maior notoriedade nos estudos folclóricos.
O período romântico é caracterizado pela valorização do positivismo, em alta
entre fins do século XVIII e início do século XIX. Os intelectuais deste período tinham
um grande interesse pelo que consideravam pitoresco. Os que se dedicaram a esse tema
foram os responsáveis pela criação de um popular ingênuo e anônimo, alma da

31
THOMPSON, 2012, p. 238.
32
Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “O morto vestido para um ato inaugural":
procedimentos e práticas dos estudos de folclore e cultura popular. São Paulo: Intermeios, 2013b.
33
ORTIZ, Renato. Românticos e folcloristas: cultura popular. Olho d'água, 1992. p. 36.
34
VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro, 1947-1964. Fundação
Getulio Vargas Editora, 1997. pp. 24-25.
35
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuições à semântica dos tempos históricos. Puc-Rio.
2006. p. 98.
27

nacionalidade36. Para os românticos, o povo seria um elemento primitivo, autêntico e


restringia-se basicamente ao meio rural. Além disso, havia um forte sentimento
nostálgico que, segundo Ortiz, “tratava-se de lutar contra o tempo. O esforço de
colecionador identifica-se à ideia de salvação; a missão é agora congelar o passado,
recuperando-o como patrimônio histórico” 37.
Dentro dessa perspectiva, Durval Muniz observa que ao mesmo tempo em que o
folclorista procura a salvação do morto, do que está em viés de escassez, tem em sua
fala uma tentativa de significar a manutenção de um discurso conservador. Ou seja, a
partir do momento que a sociedade entra num processo de globalização e alteração de
práticas culturais (a exemplo do divórcio, voto feminino, etc.), “salvar o morto” como
símbolo nacional representaria a manutenção de antigas tradições sociais. Para o
historiador, “uma história feita de conservações e não de mudanças, rupturas, de
descontinuidades, de deslocamentos”38. Ortiz viu esse cenário inicial contrastante, pois,
ao passo que se pregava o progresso da Revolução Industrial travestido em uma
modernidade ligada aos técnicos, administradores, etc., em contrapartida, os intelectuais
românticos representavam o “intelectual tradicional”, ou seja, “nadam contra a corrente,
e procuram armazenar, em seus museus e bibliotecas a maior quantidade possível de
beleza morta”39.
É, em meio a esse cenário, que surgem os primeiros estudiosos folcloristas no
Brasil. A preocupação inicial estava relacionada à identidade nacional sendo mais
urgente responder questionamentos, tais como: “Quem somos?” ou “quem nós não
somos?”. Dois são os sentidos nas reflexões que estes fazem: o primeiro deles advém
por uma compreensão da sociedade, logo, passa por análises sociológicas, históricas e
antropológicas; o segundo, como acima afirmado, estava relacionado ao destino, ou
seja, precisavam entender quem eram. Esse tipo de debate englobou vários estamentos
da elite nacional envolvendo profissionais como médicos, engenheiros e advogados.
Para Ortiz,
[...] a ideia fundamental que marca esta discussão é a de “falta”, de
“ausência”. Pode-se enumerar várias maneiras como o tema foi abordado,
mas existe uma constante, que atravessa o século, um vetor convergindo
sempre para o mesmo horizonte: a identidade nacional40.

36
VILHENA, 1997, p. 25.
37
ORTIZ, 1992, p. 40.
38
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013b. p. 154.
39
ORTIZ, Op. Cit. (grifo meu).
40
Ibidem. p. 76.
28

Tais inquietudes foram as temáticas dos nossos primeiros folcloristas, como


Silvio Romero, Celso de Magalhães e Couto de Magalhães. Estes acreditavam que a
identidade nacional seria alcançada entrando em contato com as manifestações
populares, mesmo que este contato não seja direto com os praticantes da manifestação
cultural. Durante a segunda metade do século XIX há apresentação de duas formas de
identidade nacional encabeçadas por José de Alencar e Silvio Romero.
Celso de Magalhães é considerado o pioneiro nos estudos folclóricos no Brasil,
tendo focado seus registros em festas baianas e maranhenses. Em 1873 já publicava em
periódicos seus trabalhos sobre a temática. Fazendo parte de sua formação intelectual, o
evolucionismo, foi criticado por seus exageros em relação a participação étnica na
formação do folclore nacional. Silvio Romero, um dos críticos de Magalhães 41,
percebeu um exagero daquele ao negar veementemente a influência indígena e, ao
mesmo tempo em que aquele vê negativamente as influências negras na miscigenação e
formação cultural do Brasil. Para Romero, “O moço [Celso] foi neste ponto vítima de
um exagero reacionário. [...] Celso entrou na reação por mim promovida contra
semelhante despropósito e excedeu-se”42.
No decorrer deste período surgiu a figura de José de Alencar. Ortiz, ao analisar a
importância da obra O Guarani, vê que o escritor, encaixado no romantismo, é
fortemente ligado a um eurocentrismo em sua obra na caracterização dos índios, das
florestas, dos animais, etc. Porém, ao contrário dos Irmãos Grimm, que tentaram manter
intacta em seus romances a relação aos relatos colhidos, em Alencar é criado uma visão
totalmente ficcional europeizante. Ortiz conclui,

No caso brasileiro ocorre o inverso [comparando com os Irmãos Grimm].


Quando José de Alencar descrê uma situação medieval, o leitor sabe que é
ficção. Não há nenhuma correlação plausível com a história brasileira; seu
passado encarrega-se de desmentir o embaralhamento dos fatos. A construção
da identidade nacional é nesse sentido puramente alusiva, e deve voltar-se
para o futuro, para o que se pretende criar43.

41
Esse tipo de prática crítica era comum no final do século XIX. Silvio Romero dedica quatro dos dez
capítulos de Estudos sobre a poesia popular no Brasil a analisar escritores que trabalharam o tema da
poesia popular. Cf. MATOS, Cláudia. A poesia popular na República das Letras: Sílvio Romero
folclorista. Editora UFRJ, 1994. p. 39 et. seq.
42
ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. 2ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 59.
43
ORTIZ, 1992. p. 79.
29

Ângela Grillo44, ao analisar a produção de José de Alencar no que este se refere


ao cancioneiro popular, tira algumas conclusões. Na obra O Nosso Cancioneiro, que foi
publicado incialmente em forma de cartas publicadas no jornal O Globo, em 1874, vê-se
a proposta de Alencar de remontar às origens da poesia popular que estavam calcadaa
nos mitos, lendas e tradições da nação.
A historiadora faz uma análise das cartas publicadas no jornal O Globo, que por
sua vez traça o perfil de José de Alencar no que se refere ao trato com o romanceiro
popular. Grillo observa que em Alencar a poesia popular torna-se diretamente integrada
ao gênero pastoril, mais especificamente ao ciclo do boi. Por fim, a autora atenta para o
rebuscamento no passado, na infância, em Alencar. Os folcloristas posicionam o
cancioneiro em uma era de ouro da história brasileira, um patrimônio da identidade
nacional. Assim Grillo conclui:

Em Alencar percebe-se uma valorização um tanto sentimental, pois a poesia


traz para ele um tempo que não volta mais – a sua infância –, e daí a
associação com a infância do homem, da civilização. Esse mesmo viés
argumentativo encontra-se também em Cascudo, para quem a vida nos
sertões remete a uma idade do ouro, onde tudo é melhor e mais perfeito, um
tempo para onde se deseja voltar, apesar de perdido no passado 45.

Quando se refere especificamente ao “nascimento” da poesia popular no


Nordeste, a fim de posicionar o cancioneiro como um elemento representante de uma
identidade primeira do nordestino, alguns estudiosos tornam-se referências. Em um
primeiro momento no século XIX, destacam-se Silvio Romero e Pereira da Costa. Já
nas primeiras décadas do século XX se sobressaem Rodrigues de Carvalho, Leonardo
Mota e Câmara Cascudo.
Silvio Romero desempenha um papel de destaque nos estudos folclóricos.
Crítico assíduo de obras de folcloristas desenvolveu três obras, entre as décadas de 70 e
80 do século XIX, que se tornaram de suma importância para quem estuda cultura
popular: Contos Populares do Brasil; Cantos Populares do Brasil; Estudos sobre a
poesia popular do Brasil. Neste último, Romero pontua onde o Brasil se encontra nas
categorias de população. Para ele, há três tipos de população46. O primeiro tipo refere-se
ao povo dito bárbaro, uma vez que o mesmo usa de exemplo as tribos africanas,

44
GRILLO, Maria Ângela de Faria. A Arte do Povo: Histórias na Literatura de Cordel (1900-1940).
Jundiaí: Paco Editorial, 2015. pp. 128-131.
45
Ibidem. p. 130.
46
ROMERO, 1977. pp. 32-35.
30

americanas e da Oceania. Elas seriam o manancial para colhimento das transformações


das linguagens, mitos e religiões. No segundo tipo encontram-se povos antigos que com
o tempo desenvolveram as civilizações antigas, como os gregos e romanos. Nestes, os
cânticos anônimos circulariam por gerações até que em dado momento fossem reunidos
em escritos (Vedas, Ilíada, etc.). Por fim, as populações que em parte tiveram contato
com a modernidade e parte (essencialmente rurais) mantiveram-se alheias aos tempos
modernos.
Nesta última categoria é onde Romero insere a sociedade brasileira. A partir daí,
traça o perfil de origens dos costumes populares brasileiros. A princípio exclui as tribos
indígenas “selvagens”, o “negro da costa” e o “português nato”, pois, para ele seriam
estrangeiros e não brasileiros. “O genuíno nacional é o descendente destas origens” 47,
no entanto, o mesmo põe em pesos as influências destes no processo de miscigenação
do Brasil. Conclui que a condição do índio era primitiva demais para influenciar na
formação de uma brasilidade, ao passo que esses seriam civilizados pelos europeus no
processo de colonização. Já o papel das culturas africanas é obscurecido na poesia
popular, pois, para Romero, o escravo carregava um sentimento de passividade quase
como se os africanos estivessem no Brasil apenas a passeio. Deixando assim a cargo dos
ibéricos o papel de maestros do desenvolvimento da cultura brasileira e, logicamente, da
poesia popular brasileira, no que diz: “O fator português pesa-lhe com mais força por
meio de sua civilização, sua língua, sua religião e suas leis”48. Sua postura remete ao um
eurocentrismo claramente palpado no darwinismo social.
Sobre a poesia popular em Silvio Romero, Ângela Grillo desenvolve uma crítica
a noção que aquele cria de uma dissociação entre a literatura oral e a literatura escrita
popular, ou seja, para Romero o que caracterizava a poesia popular brasileira seria
aquela escrita por homens iletrados e analfabetos que só conseguiam passar os registros
poéticos oralmente. A literatura de folhetos seria, portanto, toda importada de Portugal,
a medida que títulos semelhantes circulavam no Brasil e em Portugal (“A história da
donzela Teodora”, “A formosa Magaloma”, entre outros). Em contrapartida, como
observa Grillo49, há uma releitura dos contos ibéricos em território brasileiro levando a
crer que no tocante geral o que circulava no Brasil seria uma literatura produzida
nacionalmente.
47
Ibidem. p. 33.
48
Ibidem. p. 34.
49
GRILLO, 2015. pp. 24-26.
31

Pereira da Costa, contemporâneo de Silvio Romero, porém, só veio a publicar


obras de trato folclórico já no início do século XX. Publicou, em 1908, já
cinquentenário, o Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular
em Pernambuco. Ao contrário do que consta em seu título, preocupou-se no
levantamento exaustivo de exemplos urbanos do Recife da poética popular. Focou no
levantamento de superstições; festas religiosas; crendices; mitos, a exemplo do boi
voador de Nassau. Dentro do capítulo dedicado a poesia popular, Pereira da Costa faz
um grande levantamento de cânticos dentre os reisados, carregadores de piano, congos,
etc. O que merece um destaque para este trabalho, como será visto no Capítulo 3, se
refere à tradição dos Oiteiros, na qual uso de abarque para a análise do surgimento dos
congressos de cantadores.
Dentro dessa longa tradição, que remete a segunda metade do século XIX,
surgem os folcloristas que seriam considerados fundadores da noção do popular
cantador como símbolo do Nordeste no século XX, que são, principalmente: Rodrigues
de Carvalho, Leonardo Mota e Câmara Cascudo. Doravante, estes vou resguardar a
análise para o Capítulo 2, onde será dado um destaque maior no que tange o trato com
o cantador, bem como a relação da demanda regionalista/tradicionalista com tais
estudiosos, na década de 1920.
Na busca por compreender mais sobre o universo da cantoria de viola durante o
período proposto – das antigas pelejas na virada do século XIX até os surgimentos dos
congressos nos anos 40 do século XX –, esses folcloristas tornam-se referências, pois,
são os primeiros a trabalhar de forma a quebrar o anonimato dos cantadores sertanejos.
Com isso, é possível identificar a cantoria de viola e seus agentes. Dentre as produções
aqui utilizadas estão: Rodrigues de Carvalho com Cancioneiro do Norte (1903);
Leonardo Mota com Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense (1921),
Violeiros do Note: Poesia e linguagem do Sertão Nordestino (1925) e Sertão Alegre:
Poesia e linguagem do Sertão Nordestino (1928); Câmara Cascudo, principalmente em
Vaqueiros e Cantadores (1939) e Literatura Oral no Brasil (1952). Atento ainda para o
folclorista Coutinho Filho em Violas e Repentes (1952) que, apesar de ser da geração
herdeira das referências acima citadas torna-se fundamental como fonte, pois, escreve
sua obra no período contemporâneo aos primeiros congressos de cantadores da década
de 1940 trazendo um material importantíssimo para o estudo sobre os cantadores deste
período.
32

Com isso, entre o dedilhar do violeiro, a pena dos folcloristas e jornalista e as artes dos
cordelistas, é visto no Capítulo 1, A Cantoria e o Sertão: antigas tradições, trabalho a
cantoria de viola nas tradições na virada do século XIX para o XX, aqui chamado de
clássicos, ao passo que traço uma análise do surgimento de novos gêneros da cantoria
como forma de mudança na prática dos repentistas. Aliado a isso, busco trazer na
discussão elementos constituintes do momento em que a viola se fixou na prática do
repente e como se sobrepôs a outros instrumentos tornando-se, então, a “cantoria de
viola”. Em um segundo momento situo a cantoria em Pernambuco espacialmente na
região aqui chamada de “Polígono da Poesia” e como os cantadores circulavam nesses
espaços até o processo de migração para os grandes centros urbanos no litoral.
No Capítulo 2, A Cantoria e a Cidade: tradições e representações, discuto a
chegada dos cantadores a Recife, a partir de 1920, por três perspectivas. Na primeira, o
surgimento de uma demanda regionalista e tradicionalista, que propõe o aparecimento
de uma noção de Nordeste e como para os folcloristas do início do século XX é criado a
perspectiva de cantador como símbolo de Nordeste. Para tal faço uma análise dos
trabalhos dos três folcloristas citados anteriormente e, em seguida, estudo como estes
caracterizavam os cantadores em suas obras. A segunda perspectiva consiste em
remontar quais eram os desafios dos repentistas nas ruas e mercados do Recife
utilizando como fonte principal os periódicos das décadas de 1930 e início da década de
1940. Por fim, traço as mudanças e diferenciações que houve das representações das
pelejas nas capas dos folhetos atribuídos a João Martins de Athayde, que tinha grande
circulação no período estudado, com o objetivo de demonstrar as mudanças no campo e
habitus dos repentistas.
No Capítulo 3, Ariano Suassuna e a Geração Moderna de Cantadores, começo
a trabalhar a chegada dos cantadores aos teatros. Este e o capítulo subsequente são
focados em eventos da década de 1940. De início apresento o papel que o jovem Ariano
Suassuna teve ao realizar o que este chamou de “primeira cantoria ‘oficial’ do Recife”,
em 1946, e qual a importância da relação da cantoria e Ariano no que este viria a
encabeçar o Movimento Armorial anos mais tarde. Em seguida, traço as características
da nova leva de cantadores, ao qual Ariano chamou de “Escola ‘Moderna’ de
Cantadores”. Para realizar tal intuito uso de estudos dirigidos nas biografias dos
seguintes repentistas: Antônio Marinho, Severino Pinto, Lourival Batista, Dimas
33

Batista, Otacílio Batista e Domingos Fonseca como suporte na caracterização da


Geração Moderna.
No Capítulo 4, faço um estudo direcionado ao repentista e jornalista Rogaciano
Leite, que organizou os primeiros congressos de cantadores de sucesso. Analiso sua
biografia encaixando a noção de “excepcional normal” demonstrando como ele
caminhou ao longo da vida entre a poesia popular e erudita e como isso reflete em sua
postura com os cantadores. Por fim, reconstruo o I Congresso de Cantadores do
Nordeste, realizado no Teatro Santa Isabel, em Recife no ano de 1948. Saliento a
importância deste acontecimento para o cenário da profissionalização do repentista, bem
como, os discursos dos periódicos no trato com o referido evento.
Todas as fontes de pesquisa consultadas (periódicos, obras de folcloristas e
cordéis) foram colhidas no original. Com isso, mantive a escrita como no original com
o objetivo de manter a linguagem própria do período e evitar excessivas notas de
rodapé.
Com isso, os convido a acompanhar o dedilhado dos cantadores entre a feira e o
teatro!
34

CAPÍTULO 1
A CANTORIA E O SERTÃO: ANTIGAS TRADIÇÕES

“Quero te contar, Romano,


O que me tem sucedido,
Lugares que tenho andado
Famas que tenho vencido,
A troco dum “Deus lhe pague”
Já vi meu tempo perdido...”
Firino de Góis Jurema em carta
enviada a Romano do Teixeira.

Quem é o cantador de viola e o que ele faz? O que o torna tão peculiar? De onde
vieram os cantadores que percorriam os mercados do Recife? Quais os desafios do
repentista na cidade grande? Sem a intenção de propor uma epopeia ou a construção de
uma origem, este capítulo tem como desafio procurar os cantadores. Estes homens que
desenvolveram uma prática única e que se reinventaram na cidade grande.
Encaixando os cantadores que construíram famas históricas nas pequenas
cidades dos sertões, no qual, perambulavam a cavalo entre as vilas com uma viola de
fitas amarradas no braço e guardadas em sacos de pano, durante os fins do século XIX e
início do século XX, recebem aqui uma ligação em comum: são os repentistas da
Geração Clássica de Cantadores50. Para isso, é identificado características deste grupo
nas antigas tradições rurais neste período. Um momento de transição que é observado a
anexação de novos gêneros métricos como forma de superar o uso das quadras e
dinamizar o espetáculo. Também é visto neste momento a vitória da viola dentre outros
instrumentos, tais como a rabeca e o pandeiro. Por fim, a solidificação de duplas de
repentistas fixas.

50
Conforme será visto no Capítulo 3, essa nomenclatura segue a lógica da denominação dada a Geração
Moderna de Cantadores.
35

1.1 A cantoria, os gêneros e os instrumentos

Rimar é fazer dar certo, isto é, escrever uma linha em cima e outra em baixo,
mas com a condição de a segunda terminar por uma palavra cujo final tenha o
mesmo som do final da sétima palavra da linha que ficou em cima 51.

O que é rimar? É estar de acordo com alguma regra estrutural na formação de


uma estrofe em poema. É seguir um padrão sonoro que torne um conjunto de versos (a
estrofe) sonoramente agradável. O ato de rimar, assim como Leonardo Mota explica,
seria o desafio interno que um cantador de viola deve travar em sua mente ao
improvisar um verso para o público e, essa capacidade, seria o que diferenciaria os
cantadores bons dos ruins e os tornariam famosos. O repente de viola é um gênero
poético de origem popular, oral, baseado em narrativas de improviso rimadas. Tem
como principal função o desafio poético entre os cantadores52. O mundo rural
demonstrou grande afinidade para a propagação das práticas orais, onde, os momentos
de trabalho eram arraigados por cantos, como observa Andréa Silva,

Nos momentos e nos espaços de oralidade dominante, o mundo rural era


preenchido por ocupações que giravam em torno de atividades desenvolvidas
nas fazendas e destinavam-se à elaboração de práticas agrícolas e pecuárias
que representavam a economia local. Os momentos de trabalho eram
preenchidos por cantos que embalavam os fazeres e os momentos de lazer se
davam em espaços onde todos se reuniam para troca de experiências, para
partilha de sonhos, para alimento de prazeres53.

A autora ainda observa que nos momentos de lazer os espaços eram reservados
às trocas de experiências diárias. São nessas circunstâncias que a cantoria de viola
brasileira se desenvolve, ganhando formas no final do século XIX com os primeiros
cantadores54 até os anos finais da década de 1920, com alguns repentistas adquirindo
fama nacional nas mãos dos registros dos folcloristas e nos folhetos de cordel. Período
este em que a cantoria começa a ganhar suas formas canônicas 55, ou seja, estipulando
regras, dentre as quais, o uso fixo das sextilhas, as duplas começam a torna-se fixas, as

51
MOTA, Leonardo. No tempo de Lampião. Livraria Editora Cátedra, 1976. p. 62.
52
Cf. AYALA, Maria Ignez Novais. No arranco do grito: (aspectos da cantoria nordestina). Ática, 1988.
53
SILVA, Andréa, 2014. p. 25.
54
Aqui chamo de primeiros cantadores os que ficaram no conhecimento popular, apontados pelos
folcloristas, como sendo os pioneiros. A literatura apresenta como o mais antigo cantador Agostinho
Nunes da Costa (1797-1858). Cf. ALMEIDA, Átila. Notas sobre a poesia popular. Campina
Grande:[s.n], 1984.
55
ABREU, Márcia, 1999. pp. 73-90.
36

pelejas passam a ser somente um momento do espetáculo, onde, há abertura para novos
gêneros poéticos no repente.
As formas de narrativas de transmissão oral não são unanimidades da região do
Nordeste brasileiro, todos os povos as conhecem, principalmente as civilizações onde a
escrita não se desenvolveu predominantemente, como entre os índios e tribos africanas.
E, no Brasil, com a colonização, as práticas das narrativas rítmicas ganharam várias
formas de acordo com as regiões56. Logo, pode-se observar que o ritmo desempenha um
papel importante nas narrativas, pois,

[...] pode ressignificar a concepção da oralidade, uma vez que o oral é o


primado do ritmo, e é este que contribui diretamente para o estabelecimento
dos sentidos, superando, por vezes, os limites linguísticos, visto que, em se
tratando de algumas produções poéticas, é mais importante forjar palavras
que mantenham o ritmo do texto, mesmo que o sentido geral seja
comprometido57.

Alguns autores trabalharam com as influências e apropriações da cantoria


nordestina. Entre eles, o folclorista Câmara Cascudo58. Dentre várias práticas apontadas
pelo folclorista, as que mais se assemelham à cantoria de viola nordestina seria um
“cantar ao desafio” já em Portugal do século XII, porém não entre dois poetas, mas
comumente, um duelo entre rapazes e moças em momentos de enamorar 59. Esse tipo de
postura do folclorista denota um eurocentrismo comum entre os folcloristas nas últimas
décadas do século XIX e nas primeiras do século XX.
No Brasil, em especial na região central do atual Nordeste, as modas de viola
vindas com o colonizador português ganham feições especiais na sua prática. Os
primeiros desafios poéticos, ou pelejas, eram os embates entre dois cantadores60, os
quais, devem-se dar continuidade aos versos do oponente até que um não consiga mais
responder ao outro por não encontrar uma resposta ou pelo fato de se sentir inadequado
a continuar o combate poético. Segundo Maria Ayala e Marcos Ayala, a cantoria seria a

Manifestação poética nordestina em que dois repentistas estabelecem uma


disputa poética mais ou menos velada. Cada qual busca superar o outro,
atraindo para si a atenção do público. Para isso, valem-se de grande agilidade

56
Ibidem.
57
SILVA, Andréa, 2014. p. 28.
58
Cf. CASCUDO, Luiz da Câmara. Vaqueiro e Cantadores. São Paulo: Global, 2005. Ver subtópico
“Antecedentes” no capítulo dedicado aos desafios.
59
Ibidem. p. 188.
60
São chamados também, simplesmente, de “repentistas” ou “violeiros”.
37

mental, que lhes permite encontrar soluções estéticas e exibir um domínio da


técnica de composição (com obediência a regras rígidas de métrica e de
construção das estrofes), além de um conhecimento geral que se transforma
61
em poesia .

Uma das definições mais aceitas no início do século passado é dada por
Leonardo Mota em Cantadores, de 1921. Nessa obra, o folclorista afirma logo nas
primeiras páginas do capítulo inicial: “cantadores são os poetas populares que
perambulam pelos sertões, cantando versos próprios e alheios” 62. Esta é a tradição
antiga dos cantadores da Geração Clássica que, como será visto mais a frente, definiu a
cantoria por boa parte do século XIX e início do século XX, quando o repente de viola
começa a popularizar-se nos grandes centros urbanos e, com isso, muda sua dinâmica.
Os cantadores em geral se apresentavam nas casas dos fazendeiros, em
residências urbanas, em festejos públicos ou privados e palcos em feiras, normalmente
encostados à parede63. As disputas poéticas, representadas no desafio entre os
repentistas, começavam normalmente com os cantadores fazendo a autopromoção de
suas habilidades e em seguida partiam para as agressões em forma de “desaforo”
(provocação). Neste sentido, nem todos os repentistas gostavam de fazer pelejas, mas
“[...], mormente os que não desdenham ou temem o desafio, peleja intelectual em que,
perante o auditório ordinariamente numeroso, são postos em evidência os dotes de
improvisação de dois ou mais vates” 64.
Rodrigues de Carvalho registrou um desses momentos que os cantadores por
vezes acabavam entrando em uma briga devido aos xingamentos trocados. A peleja
entre Manuel Cabeceira e Manuel Caetano começou com o convite de um ao outro para
animar a festa em questão.

Cabeceira:
Cavaleiro, pega esta,
Toma esta e volta já,
Vai dizer ao Caetano
Que mandei-o chamar

Senhor Manuel Caetano,


Eu não o vim visitar,

61
AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil: perspectiva de análise.
Ática, 1987. p. 69.
62
MOTA, Leonardo. Cantadores: Poesia e linguagem do sertão cearense. Livraria Editora Cátedra,
1976a. p. 3.
63
Por isso a denominação “Cantoria pé-de-parede”.
64
Ibidem.
38

Mandou dizer Cabeceira,


Que o senhor lhe fosse lá65

Observa-se que na segunda estrofe a pessoa que pronuncia modifica-se – seria já


o cavaleiro falando com Caetano. Em seguida, Caetano pronuncia algumas estrofes
introdutórias explicando da sua chegada ao ressinto. Dentre elas:

Amontei no meu cavalo


A galope na carreira,
Fui acudir ao chamado
Do seu Manuel Cabeceira.
E quando avistei a casa,
Que apeei-me no terreiro
Antes de apertar-me a mão
Deu-me abraço primeiro...
Entramos bem dois pareceiros [sic].66

Após este início, Cabeceira começa com as provocações para incitar o desafio
entre eles e o seu adversário também declama suas provocações.

Cabeceira:
Senhor Manuel Caetano
Alu [sic] vai, me trate bem,
No pilão que eu piso milho
Pinto não come xerém,
Nem vou engordar capão
Para dar mimo a ninguém.

Caetano:
Eu Manuel, você Manuel,
Cuidemos em ser xarapim,
Que mais vale um negro bom
Do que cem brancos ruins.
[...]
Cabeceira:
Senhor Manuel Caetano,
Negro do pé de rebolo,
Se passo a mão, vejo a queda,
Se passo o pé, vejo o rôlo;
Na ponta da minha língua,
Há quatro mil desaforos67.

O embate entre os poetas continua por mais algumas rimas até que os dois
começam a brigar depois das seguintes estrofes:

65
CARVALHO, José Rodrigues de. Cancioneiro do Norte. 3 ed. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do
Livro, 1967. p. 343.
66
Ibidem.
67
Ibidem. p. 345-347. Como visto mais à frente os desafios não seguiam uma estrutura fixa de versos,
sendo somente no início do século XX que as estruturas do embate ficam mais rígidas.
39

Cabeceira:
Minha mãe bem me dizia,
E agora acabei de crer,
Quem com porcos se mistura,
Farelos vem a comer.

Caetano:
Quanto eu vim lá de cima
Que passei lá no Brejinho,
Deixei tua mãe parida
Com um bando de bacorinho
Com uma corrente no pé
E uma argola no fucinho.

Cabeceira:
Quando eu vim de lá de cima
Que passei em Mato Grosso,
Deixei tua mãe parida
Com um chocalho no pescoço,
Olhe, não bula comigo,
Senão o barulho é grosso.

Caetano:
Nas profundas do inferno
Tem uma caldeira fervendo,
Com tua mãe de uma banda,
Com uma colher mexendo
E os diabos todos do inferno
Nas suas costelas comendo 68.

Esse tipo de reviravolta em uma cantoria podia ser corriqueiro, principalmente,


quando um cantador vinha de longe entrava em disputa com um poeta local e acabava
provocando os fãs deste. Braulio Tavares, ao que chama o período clássico da cantoria
de “tempos heroicos”, aponta que

Nos chamados tempos heroicos da cantoria, durante o século 19, grande parte
das cantorias eram os chamados desafios, uma disputa declarada que muitas
vezes se transformava numa guerra sem quartel entre os poetas e suas
torcidas. 69

A violência presente nas cantorias foi vista também por Leonardo Mota, em
Sertão Alegre, ao falar do alcoolismo entre os cantadores, retrata um episódio em que

68
Ibidem.
69
TAVARES, Braulio. Arte e ciência da cantoria de viola. Vol.1: cantoria: regras e estilos. Recife:
Bagaço, 2016. p. 12. (grifo do autor).
40

duas moças e um rapaz teriam ido a uma cantoria e uma delas teria sido morta no local
por estar sob o efeito do álcool “a dizer rebarbativas inconveniências” 70.
No entanto, os registros que tive acesso levaram a crer que em sua maioria os
desafios partiam para troca de provocações de forma pacífica. Artifício comum eram os
embates na forma de conhecimentos gerais, ou seja, um poeta perguntando ao outro
sobre temas referentes a mitologia, história, geografia, etc. como maneira de ganhar a
disputa e o outro não conseguir prosseguir. Após um sair vitorioso, poderia, a sua
vontade, declamar versos para demonstrar sua superioridade em relação ao derrotado. O
vencedor proferia rimas de sua autoria nos mais diversos temas, motes, ABC’s71,
sátiras, louvações, narrativas, etc72. As histórias preferidas entre os poetas e o público
eram quando as narrativas assumiam a voz de um boi e suas proezas. Várias narrativas
de bois ficaram famosas, como a do Boi Moleque, Boi Mandingueiro, Boi Surubim,
Vaca do Burel73.
A definição anteriormente apontada por Maria Ayala e Marcos Ayala
caracteriza, primordialmente, este primeiro momento da cantoria de viola, em fins do
século XIX, nas mãos dos repentistas clássicos. Pela necessidade de continuar o
espetáculo e de atrair a atenção do público vão surgindo novas formas e estruturas.
Neste momento, a cantoria vai ganhando suas formas mais canônicas em regras, ou seja,
na sua estrutura definitiva no fim da década de 1920 passou a denominar “desafio”
somente a situação do espetáculo em que os poetas entravam em debates. A partir disto,
o campo dos cantadores começa a se organizar em duplas fixas amigas, no qual, alguns
momentos da apresentação já eram previamente ensaiados74 ou de fácil dedução devido
ao convívio constante com o parceiro.

70
MOTA, Leonardo. Sertão Alegre: Poesia e linguagem do serão nordestino. Livraria Editora Cátedra,
1976c. p. 95.
71
Apesar de serem registrados em vários países, como Portugal e Espanha. Os ABC’s ganharam no Brasil
uma característica diferente. Normalmente os poemas eram feitos falando das proezas de animais (bois,
touro, bode, onça, etc.). A primeira palavra da primeira estrofe começa com a letra “A” e as demais
seguiam a ordem do alfabeto, ou seja, a primeira palavra da segunda estrofe começa com “B” e assim
sucessivamente. Cf. CASCUDO, 2005.
72
ABREU, Márcia. 1999. pp. 73-90.
73
Cf. CASCUDO, 2005. Ver “Ciclo do Gado”.
74
ABREU, Márcia. Op. Cit. 1999. pp. 73-90. Essa mudança na dinâmica da cantoria é compreendida
dentro de uma série de apropriações que uma leva de cantadores, que chamo aqui de “Geração Moderna”
fizeram das antigas tradições. Esse tipo de conduta, mesmo que involuntariamente, significa causar uma
distinção entre os novos praticantes e os praticantes aqui chamados de clássicos. Concordando com Roger
Chartier quando este afirma: “[...] em toda sociedade, as formas de apropriação dos textos, dos códigos,
dos modelos compartilhados são tão ou mais geradoras de distinção que as práticas próprias de cada
41

Em meio a esta nova estratégia que a apresentação ganhou novos gêneros e a


ateu-se a regras. Esta prática, que se deu a partir das apropriações das antigas pelejas,
pela qual vários estilos/gêneros são declamados, é chamada cantoria de viola, ou
simplesmente: repente de viola. A geração clássica começou a estipular as primeiras
mudanças na cantoria, quando esta ainda era cantada apenas em quadras. Posso afirmar
que as primeiras mudanças significativas vieram quando, segundo José Alves Sobrinho
e Átila Almeida:

Silvino Pirauá Lima criou a sextilha e introduziu o martelo agalopado na


cantoria.
Nicandro Nunes da Costa criou o mote de um pé só; Manoel Raimundo de
Barros criou a regra de um mote de 3 versos; Romano do Teixeira criou o
mourão de 5 pés; Manoel Leopoldino de Mendonça Serrador criou a estrofe
de 7 pés e o mourão de 7 pés; Jose Pretinho do Crato, criou o galope à beira
mar; Antônio Ugolino Nunes da Costa criou a oitava antiga; [...].75

Para melhor ilustrar o desenvolvimento de novos estilos ao longo dos anos o


quadro a seguir mostra os principais gêneros, as características e o provável poeta que
introduziu o estilo no mundo da cantoria. Em seguida, esses gêneros serão mais
elucidados.

grupo social” CHARTIER, Roger. Cultura Popular revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, no. 16, 1995, p. 184.
75
ALMEIDA, Átila Augusto F. de; SOBRINHO, José Alves. Dicionário bio-bibliográfico de
repentistas e poetas de bancada. Ed. Universitária, 1978. p. 45.
42

Tabela 1: Alguns gêneros do repente de viola


Gênero Característica Criador/Precursor76

Inicialmente também chamada de pé quebrado Tradição vinda da Europa


Quadra
devido ao esquema de rima: ABCB
Sextilha Acrescentam-se dois pés à quadra: ABCBDB Silvino Pirauá
Há dois estilos clássicos, de 5 pés e de 7 pés: Romano do Teixeira (mourão de 5
Mourão, AABBA, AABBCCB. pés); Manoel Leopoldino de
Moirão, Mendonça Serrador (Mourão de 7
Trocado pés)
O nome se dá pelo fato de ser uma quadra Vicente Grangeiro Landim
Quadrão duplicada: AAABCCCB, termia quase sempre
em “oito pés em quadrão”.
Muito utilizada nos motes, a décima Modelo muito antigo na Europa, já
heptassilábica aumentou consideravelmente o utilizado por Cervantes.
Décima nível de dificuldade dos poetas:
ABBAACCDDC.
Décima decassilábica. Nome dado ao fato dos Estilo criado por Pedro Martelo,
poetas ficarem se martelando em desafio, mas mas que criou uma nova dinâmica
Martelo também se refere ao poeta Pedro Jaime (a do repente) nas mãos de Silvino
Agalopado Martelo (1665-1727), que fez uma releitura Pirauá.
dos versos de Camões. ABBAACCDDC.
Com tônica nas sílabas 3,6 e 10.
O nome está relacionado ao movimento das Criado por José Pretinho do Crato.
ondas e, ao mesmo tempo, dos galopes de uma Este teria criado o estilo depois de
tropa de cavalos. Diferentemente do Martelo uma derrota com o poeta Manuel
Galope à(na) Agalopado, o Galope na Beira-do-mar é Vieira Machado no estilo Martelo
beira-do-mar composto por onze sílabas e sempre termina Galopado e, após a derrota, se
com o dizer "Nos dez de galope à beira-do- retirou para a praia, onde,
mar" ou "Cantando galope à beira-do-mar". declamou um galope junto à praia,
em Fortaleza-CE
Variação da sextilha tradicional, onde se Benjamin Mangabeira
Gemedeira adiciona estribilho 77 “ai! ai! ui! ui!” ou “ai! ai!
hum! hum!” na estrofe.

Apesar de o quadro procurar catalogar os gêneros é importante frisar que é uma


classificação didática e que não restringia, obviamente, os cantadores
criadores/precursores a cantar somente os seus gêneros. A escolha dos gêneros aqui
expostos segue a premissa por serem os mais usados em cantorias, assim como os que
foram usados no I Congresso de Cantadores do Nordeste (foco do Capítulo 4).
Grande parte desses poetas viveram no século XIX. É o caso de Silvino Pirauá
(1848-1913), Romano do Teixeira (1840-1891), Manoel Leopoldino de Mendonça
Serrador (18??-18??), e tantos outros que talvez nunca cheguem a conhecimento. Já
Benjamin Mangabeira (1904-1975), José Pretinho do Crato (18??-19??), Vicente

76
Tais informações foram colhidas principalmente em ALMEIDA; SOBRINHO, Op. Cit. 1978.
77
Comumente usado para se referir ao refrão.
43

Grangeiro78 (1901-19??) e outras dezenas de cantadores criaram novos gêneros ao longo


de boa parte da primeira metade do século XX.
Visto que a cantoria de viola começou a mudar suas práticas juntamente com o
surgimento dos novos gêneros, faz-se necessário dissertar acerca da estrutura das
poesias, conforme os estilos que surgiram com o desenvolvimento da cantoria de viola.
Câmara Cascudo79 considera que os cantos ritmados, ou as poéticas musicadas,
que chegaram ao Brasil com a colonização, eram em sua grande maioria quadras
(também chamadas de quatro pés) em redondilha maior (heptassilábica). Tais formas
poéticas heptassilábicas em muito se devem aos diálogos culturais entre os árabes
vindos do norte da África e as povoações da Península Ibérica desde o século VIII 80.
Para melhor entendimento do esquema métrico, será ilustrado, em seguida, o
exemplo do mote81 fornecido ao programa de rádio "Noites Matutas", da Rádio Clube
de Pernambuco, pelo folclorista Coutinho Filho, em 1955, que, na ocasião, estava de
mudança para São Paulo:

(1) (2) (3) (4) (5) (6) (7)


Há/ ver/sos/ de/ can/ta/dores

(1) (2) (3) (4) (5) (6) (7)


No/ meu/ ba/tel/ de/ sau/dades.82

Observa-se que em cada linha do mote "Há versos de cantadores/ No meu batel
de saudades" há a marcação de sete sílabas sonoras (ou poéticas) terminadas na tônica
da última palavra da linha, desprezando as sílabas seguintes. Nota-se também que não é
o mesmo que separação silábica, pois, no exemplo teriam oito sílabas por linha. No
momento, o folclorista recebeu de imediato alguns versos dos poetas José Alves
Sobrinho e Agostinho Lopes (1906-1972), entre eles:

José Alves Sobrinho:


Quanto do norte saí,
De tudo trouxe lembrança...

78
A nomenclatura varia de acordo com autores entre Grangeiro e Granjeiro.
79
Cf. CASCUDO, Luiz da Câmara. Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3 ed. São Paulo: Ed.
USP, 1984. Ver Capítulo X.
80
SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. Publ. Europa-América, 1995. pp. 33-36.
81
Mote equivale, em geral, às duas últimas linhas da estrofe, no qual, os poetas deveriam além de
encaixar a temática, fazer o arranjo de rimas de acordo com as palavras finais de cada linha do mote.
82
COUTINHO FILHO, Francisco. Violas e Repentes: repentes populares em prosa e verso. 2ed.
Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972. p. 311. (grifo meu).
44

Das rimas que sempre ouvi!...


Os cantadores dali,
Batendo nas minhas grades,
Cantando mil amizades
Dos jardins e dos amores...
Há versos de Cantadores
No meu batel de saudade.

Agostinho Lopes:
Não deixarei de lembrar
As violas sonoras
As canções melodiosas,
Os modelos de rimar...
Estilos de glosar
Em diversas qualidades!
Dos poetas das cidades
Fazendo versos de amores...
Há versos de cantadores
No meu batel de saudade83.

Além do esquema métrico que deve seguir cada linha, há também o esquema de
rimas de cada linha na formulação da estrofe. A quadra apresenta um esquema de rima
bastante simples, onde, rima as linhas pares da estrofe ficando a quadra com o esquema
"ABCB". Em desafio em quadra, Manuel Carneiro e Romano do Teixeira debateram:

Manuel Carneiro:
A - Romano, num pingo d'água
B - Eu quero ver se afundo,
C - Diga lá em quatro pés
A - As coisas leves do mundo.

Romano do Teixeira:
A- Sendo coisa aqui da terra,
B - Pena, papel e algodão,
C - Sendo coisa do outro mundo,
A - Alma, fantasma e visão.84

A quadra heptassilábica foi a forma predominante durante toda segunda metade


do século XIX e início do século XX, assim como afirmou Manuel Romualdo da Costa,
conhecido como Manduri, poeta octogenário no início do século XX, ao folclorista
Leonardo Mota, “antigamente a gente só cantava de quatro pés”85. As pelejas
começaram a ganhar fama nos primeiros anos do século XX, em muito, ao papel de
divulgação dos folhetos, pois, “o estilo característico da literatura de folhetos parece ter

83
Ibidem. (grifo meu).
84
WILSON, Luís. Roteiro de velhos cantadores e poetas populares do sertão. 2 ed. Recife: CEHM,
1986. p. 41. (grifo meu).
85
MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: Poesia e linguagem do Sertão Nordestino. 3ed. Imprensa
Universitária do Ceará, 1962. p. 102.
45

iniciado seu processo de definição nesse espaço oral, muito antes que a impressão fosse
possível”86. Márcia Abreu87 aponta que a maior contribuição lusitana à literatura de
folhetos foi exatamente o uso da quadra que começou a cair em desuso no fim do século
XIX. Para Átila Abreu e José Alves Sobrinho88, a criação da sextilha como forma de
substituição das quadras foi responsabilidade dos poetas Silvino Pirauá, quando
acrescentou dois pés89 (linhas) ao antigo gênero português, ficando o esquema de rimas
ABCBDB. As sextilhas ganharam grande notoriedade entre os cantadores e os
cordelistas tendo como principal explicação para seu surgimento:

Nos desafios, cada cantador dispunha de uma – e apenas uma – estrofe para
responder às perguntas e provocações de seu oponente, tendo ainda que
devolvê-las caso não quisesse ficar todo tempo na defensiva. Tarefa difícil
quando se dispõe de apenas quatro versos90.

Em uma cantoria, a sextilha normalmente é dada no início e acompanhada de um


tema, por exemplo: "vida na fazenda", "nem a palma o boi tem mais", etc. Ganhou tanta
notoriedade neste meio que em muitos casos a sextilha era chamada de “repente”,
conforme o poeta Dimas Batista explicou em entrevista de 1949, “os cantadores
geralmente iniciam uma cantoria com a ‘sextilha’, denominada ‘repente’. É uma estrofe
de seis versos com sete sílabas”91. Em um dos eventos dos improvisadores da rima na
residência do prefeito Sancho Leite de Teixeira-PB, em 1950, os poetas Lourival
(Louro) Batista e Elísio Félix (1912?-1965) fizeram alguns desafios em sextilha, entre
eles:

Elísio Félix:
A - Doutor, sua proteção
B - É coisa que me convém!
C - Cantador só passa mal,
B - Governador passa bem!
D - De mim ao governador
B - Grande diferença tem!92

86
ABREU, Márcia. 1999. p. 74.
87
Ibidem.
88
ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p. 45.
89
Importante observar que, nas primeiras cantorias do século XX, a denominação “pé quebrado”
equivaleria a uma mudança no esquema de rimas, ou seja, na quadra no lugar de rimar a linha dois com a
linha quatro, rimaria as linhas dois e três (ABBC). No entanto, hoje em dia a denominação “pé quebrado”
ganhou novo significado, quando o poeta erra a métrica naquela linha.
90
ABREU, Márcia. Op. Cit., p. 85.
91
O Cruzeiro, 25 jun.1949. Matéria assinada por José Leal. Acervo BN.
92
COUTINHO FILHO, 1972. p. 24. (grifo meu).
46

Lourival, ao ver o excelente verso, pegou a "deixa"93 do poeta Elísio e continuou


o amistoso desafio fazendo a mesma brincadeira.

Lourival Batista:
A - A diferença que vem
B - De ti ao Governador,
C - É que ele é formado e rico,
B - Tu és pobre e cantador!
D - Ele trigueiro no nome,
B - E tu trigueiro na cor.94

Outra forma muito comum de poesia que surge nas cantorias do início do século
XX são os “mourões” (ou “moirões”), também chamada/ligada a forma de “trocado”,
pois podiam ser de cinco ou sete pés. O primeiro cantador começava improvisando dois
versos e o segundo fazia o mesmo. Por fim, o primeiro cantador encerrava a estrofe com
três versos. No caso dos mourões de cinco pés, o primeiro cantador improvisava um
verso, o segundo também e, ao fim, o primeiro cantador finalizava a estrofe com três
versos. O esquema de rimas nos mourões de cinco e sete pés são, respectivamente,
AABBA e ABABCCB. Por exemplo:

1º cantador: A - Agora meu companheiro


B - Vamos cantar um “trocado”,

2º cantador: A - Pode trazer seu roteiro


B - Que me encontra preparado

1º cantador: C - Em verso não lhe aborreço,


C - Mas em “trocado” eu conheço
B - Quem é que canta emprestado!95

Outro estilo bastante difundido nas cantorias na primeira metade do século XX


eram os quadrões96. O termo refere-se a uma quadra duplicada, ou seja, uma oitava

93
A "deixa" equivale ao poeta começar a sua estrofe rimando a primeira linha com a última linha do
verso que sua dupla acabara de declamar (em negrito). Não se sabe ao certo quem criou a deixa, alguns
folcloristas desconfiam de Silvino Pirauá, mas somente na peleja entre Pinto do Monteiro e Antônio
Marinho, em 1926, que se tem registrado o uso oficial do termo "deixa". Cf. VIEIRA, Rui Carlos Gomes.
Poesia popular nordestina: Dicionário Temático. Campina Grande: Maxgraf, 2012. p. 339.
94
COUTINHO FILHO, Op. Cit. (grifo meu).
95
CASCUDO, 1984. p.342.
96
Também conhecido como “oito pés em quadrão”, ou "oitavo arrebatido" (bastante usado no estado de
Alagoas).
47

heptassilábica. O esquema de rimas muda um pouco comparado com outros gêneros,


ficando “AAABCCCB” e terminando sempre com a palavra “quadrão”97.
A - Vamos cantar no momento
A - Não faltando pensamento
A - Ideia, rima, talento
B - Base, força, inspiração
C - Para o povo aqui presente
C - Conhecer perfeitamente
C - Como se faz de repente
B - Os “oito pés em quadrão”98

O nível de dificuldade dos cantadores aumenta consideravelmente quando entra


nos outros três mais comuns tipos de poesias nas cantorias, depois da sextilha. O
primeiro deles é elaborado em verso com mote de sete sílabas (heptassilábico) em forma
de décima. O mote, normalmente integra o verso do improvisador, fazendo com que o
esquema de rimas ficasse "ABBAACCDDC" onde, por sua vez, o mote ficando ao final
("DC") faz com que o poeta seja obrigado a fazer rimas com as palavras finais do mote,
dificultando ainda mais o processo de improvisação. O poeta conhecido como
Canelinha, na ocasião dos confrontos de 1932 em São Paulo99, ao saber que o governo
estava recrutando para a luta armada glosou essa famosa estrofe:

A - Não me leve para a guerra,


B - Não me faça essa surpresa
B - Pois não tenho natureza
A - De ver meu sangue na terra,
A - Me deixe em cima da serra,
C - Lá por dentro dos buracos,
C - Para viver com os macacos,
D - Embora passando fome
D - Depois escreva meu nome
C - No livro dos homens fracos.100

O segundo gênero mais difícil no improviso é também em forma de décima, o


Martelo Agalopado. Com o mesmo esquema de rimas da décima "ABBAACCDDC",
mas com uma métrica diferente, contendo dez sílabas poéticas (decassilábico) e não sete

97
Diário de Notícias, 08 out. 1950. Matéria assinada por Manuel Diégues Júnior com o título “Gêneros
da Cantoria”. Acervo BN.
98
O Cruzeiro, 25 jun. 1949. Matéria assinada por José Leal. Acervo BN.
99
A chamada Revolução Constitucionalista. Após a tomada do poder central do Brasil por Getúlio
Vargas, em 1930, causou desconforto em São Paulo, pois, Vargas não permitiu que Júlio Prestes
(paulista) assumisse a presidência. Após uma série de medidas do governo central, a elite paulista (com
apoio de grande parcela da população) não aceitando as medidas inicia uma série de embates que
culminam no uso de armas.
100
SANTOS, Brás Ivan Costa (Padre). No altar da poesia. Recife; Teresina: Gráfica e Editora Halley,
2016. p. 217.
48

como nas décimas tradicionais, o Martelo tem uma peculiaridade que dificulta ainda
mais o trabalho de improvisação, em cada linha as sílabas fortes são sempre a terceira, a
sexta e a décima. O estilo fora também inserido por Silvino Pirauá que, na ocasião,
nomeou esse estilo de Martelo Agalopado por lembrar o galope de uma tropa de
cavalos. Muitos difundem a ideia que o nome do gênero faz referência ao fato dos
poetas estarem "se martelando" em desafio, mas é mais provável que se refira ao
literário francês Pedro Jaime Martelo (1665-1727) que o criou a partir de uma releitura
das oitavas camonianas101, porém com o esquema de rimas alternado e sem limites de
linhas. Com Silvino Pirauá, o estilo ganhou uma nova estrutura ficando em forma de
décima102.
Há outra variação da décima que também é muito comum em meio às cantorias,
sendo o terceiro estilo mais difícil, o Galope à Beira-do-mar103. Criado por José
Pretinho do Crato-CE, que teria iniciado o estilo depois de ser derrotado pelo poeta
Manuel Vieira Machado (????-????) no estilo Martelo Galopado e, após este fato, se
retirou para a praia, onde, declamou um verso junto ao mar, em Fortaleza-CE. O nome
está relacionado ao movimento das ondas e, ao mesmo tempo, os galopes de uma tropa
de cavalos. Mais tarde, o estilo foi aprimorado por João Siqueira Amorim 104 (1913-
19??) e José Virgulino de Souza (????-????), em 1939.
Diferentemente do Martelo Agalopado, o Galope na Beira-do-mar é composto
por onze sílabas e sempre termina com o refrão "Nos dez de galope à beira-do-mar" ou
"Cantando galope à beira-do-mar" ou ainda “Só canto galope na beira do mar”. Assim
como o martelo, o Galope na beira-do-mar segue um esquema de tônicas por cada linha
da estrofe. Sendo então necessário manter a tônica na segunda, quinta, oitava e décima
primeira sílabas de cada linha. Inicialmente, quando foi anexado no mundo da cantoria,
o estilo era usado para falar de façanhas heroicas - lembrando um pouco a poesia

101
Referente a leituras das obras de Camões.
102
O Martelo Agalopado ganhou diferentes variações, como o “Martelo Alagoano” que basicamente
diferencia pela terminação da estrofe em “nos dez pés de martelo alagoano”. Outra variação comum é o
“Martelo Solto”, ou “Martelo de Sextilha”, no qual seriam sextilhas decassilábicas. Cf. LINHARES,
Francisco; BATISTA, Otacílio. Antologia ilustrada dos cantadores. 3ªed. João Pessoa: Editora da
UFPB, 2013. Ver “Gêneros da Poesia Popular”. Alento ainda para o fato de o estilo não tenha sido
necessariamente criado por Pirauá, podendo este ter apropriado de alguma outra prática poética.
103
Assim como outros gêneros, o Galope à beira-do-mar ganha algumas variações entre os cantadores. A
mais famosa é com a estrofe terminando em “galope por dentro do mato”. Este gênero é muito reconte em
temáticas sertanejas.
104
Sobre o poeta Domingos Fonseca uma parte do Capitulo 3 é dedicada devido a sua importância na
criação da primeira associação de cantadore.
49

heroica trovadoresca -, ou temas de praia, mas atualmente ganhou outras temáticas105.


O exemplo famoso de um Galope na Beira-do-mar em forma heroica é do poeta Zé
Limeira (1886-1954), conhecido como "o poeta do absurdo" devido a seu modo de fazer
poesia, sempre com muita sagacidade, ironia e exagero.

A - Eu canto galope no céu e na terra


B - Prumode os vivente pude me ispiá...
B - Tacaca, mofumbo, raposa e preá
A - No campo, na baixa, na grota e na serra,
A - Jumento, cavalo, garrote que berra,
C - Garrote, cavalo, jumento muá,
C - Vaqueiro, cangalha, chicote de pá,
D - Chicote, cangalha, vaqueiro, sacola,
D - Limeira é quem berra no som da viola
C - Cantando galope na beira do má.106

O galope à beira-do-mar ou “na beira-do-mar”, conforme visto acima, ganhou


grande notoriedade entre os cantadores e hoje é muito usado para falar de outras
temáticas que não as envolvidas em pelejas e desafios. Alguns poetas tomam a liberdade
de mudar até mesmo o refrão para se adequar melhor a estrofe no contexto. Foi o caso
do poeta Dimas Batista ao fazer uma homenagem aos pescadores e vaqueiros.

Eu sempre que via lá no meu Sertão


Caboclo vaqueiro de grande bravura
Num simples cavalo, na mata mais dura
Com roupa de couro pegar barbatão,
Dizia abismado com aquela impressão:
“Não há quem o possa em bravura igualar!”;
Mas desde que vi o praiano pescar
Em frágil jangada, ou barco veleiro,
Achei-o bravo tal qual o vaqueiro:
Merece uma estátua na beira do mar!107

Por fim, a Gemedeira, gênero criado pelo poeta Benjamim Mangabeira. Em


suma é uma simples variação da sextilha tradicional onde é adicionada uma linha,
deixando a antiga sextilha com sete linhas. A sexta linha é composta de um estribilho

105
WILSON, 1986. p. 63.
106
TEJO, Orlando. Zé Limeira, poeta do absurdo. 6ªed. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
p. 173. (grifo meu). Zé Limeira foi uma figura controversa sendo considerado louco andarilho por muitos
entusiastas. Nas mãos de Tejo, tornou-se mitológico: Limeira, famoso por suas poesias esdruxulas, se se
acredita que muitas das poesias contidas no livro de Tejo não tenham sido criadas por Zé Limeira, mas
por outros poetas que lhe deram a autoria do verso. Esse tipo de prática era comum em folhetos, quando
os autores recriavam pelejas inexistentes entre repentistas.
107
TAVARES, 2016. pp. 58-59.
50

“ai! ai! ui! ui!” ou “ai! ai! hum! hum!”, por fim, na sétima linha o poeta conclui como
na sextilha tradicional. Geralmente o repentista tem que justificar o “gemido” no fim do
verso, portanto, normalmente é usado em versos jocosos.
Não caberia aqui atenção a todos os gêneros que existem nas cantorias, ou até
mesmo a outros famosos no meio da cantoria como o “gabinete”, “martelo alagoano”,
entre outros, quase incalculáveis. O apologista Pedro Ernesto Filho 108 fez um vasto
levantamento de gêneros chegando a estipular por volta de 140 a 200 estilos de poemas.
Enquanto em fins do século XIX praticamente só se tinha a quadra, com a aurora do
século XX foram introduzidos novos gêneros que mudaram a dinâmica do espetáculo,
passando de pelejas para cantorias.
O foco neste momento não é prender-se aos elementos literários do estudo da
cantoria, mas sim na cantoria e seus agentes inseridos em uma prática cultural
contextualizada. Neste ponto, a proposta deste trabalho é explicar a função do repente
de viola, bem como as principais modalidades de versos rimados de improviso.
Portanto, a construção da cantoria é encarada como uma série apropriações e
representações da/na cantoria.
A união dos ritos com os gêneros e a interação dos cantadores com o público
formam a performance da cantoria de viola. Os ritos são as sequencias, os passo-a-
passos que os cantadores devem desenvolver perante a plateia: começando com
sextilhas, partindo para motes em décimas, martelos, galopes à beira-mar, etc. A noção
de performance na cantoria se encaixa no conceito de Paul Zumthor109. Para este, a
performance é construída a partir de uma relação vocal (oralidade) e auditiva em que o
comunicador (repentistas) transmite a poesia (voz) juntamente com uma expressão
corporal – interpretação, dedilhar da viola e desenvolvimento do gênero improvisado
requer entonação e forma de cantar diferentes. O ouvinte (plateia) neste caso não é um
agente da ação passivo, ou seja, dentro da performance, este desenvolve um papel
atuante, seja com motes, aplausos, etc. Concordando com o pensamento de Zumthor de
uma plateia ativa, Maria Ayala assim descreve o papel do publico nas cantorias:

108
Cf. ERNESTO FILHO, Pedro. Por dentro da cantoria. Ed. Banco do Nordeste do Brasil, Fortaleza,
2013. Ver Parte II.
109
Cf. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. EDUC-Editora da PUC-SP, 2000. Ver
Capítulo 1.
51

O publico jamais se caracteriza como um aglomerado de pessoas que


recebem passivamente a poesia. É também agente da manifestação. Seus
integrantes sabem fazer versos que, enviados aos cantadores, servirão de
motes para alguns gêneros de improviso.110

Esse público assíduo veio a se tornar os apologistas, que decoravam os versos


cantados, passavam para cordéis (os que sabiam escrever), atualmente em livros 111,
outros viravam glosadores em momentos propícios em reuniões sociais (festas ou
encontros familiares). Com relação à popularização das estrofes entre camadas
populares e aristocráticas, Leonardo Mota salienta em Cantadores:

A fácil popularização de uma estrofe está condicionada no tom singelo e


poder sintético de sua expressão. Assim como o imenso vulgo canta
carinhosamente os versos dos vates ilustres, tradutores do sentir coletivo, as
mais lindas bocas de damas aristocráticas cantam e aclamam também, num
grande prêmio merecido e consolador, as trovas da humilde musa do povo.112

Esses momentos de mudança nas performances com a entrada de novos gêneros


nas primeiras décadas do século XX, assim como a fixação de duplas fixas entre os
cantadores podem ser entendidos como um momento de ruptura na cantoria de viola.
Esse momento de quebra de parâmetros antigos foi construído dentro do campo de
atuação do repentista, no que viria ser profissão de cantador. Uma transformação social
dentro da cantoria se deu tanto nos atores (cantadores), quanto no público, que também
mudou com a chegada da cantoria nas cidades grandes do litoral 113. Contribuindo para
as transformações dentro da cantoria de viola estão o desenvolvimento dos instrumentos
– desde o período colonial com a chegada de instrumentos marginalizados
(considerados ultrapassados), como é caso da viola arcaica e da rabeca; até a definitiva
adoção da complexa viola moderna, a viola nordestina.
O elemento que, talvez, mais caracterize a cantoria seja o seu instrumento, a
viola. O “desafio” português, conforme observou Câmara Cascudo, seguiu o

110
AYALA, 1988. p. 21.
111
Exemplo do famoso apologista Zé de Cazuza (José Nunes Filho) de Monteiro-PB, ganhou fama por
decorar cantorias inteiras. Reuniu todo o seu acervo mental e anotações no livro NUNES FILHO, José.
Poetas Encantadores. Campina Grande: Gráfica Marcone, 2009.
112
MOTA, 1976a. pp. 202-203.
113
Será visto no Capítulo 2. As transformações sociais dentro de um ritual são trabalhadas pelo
antropólogo Vitor Turner, no qual, este vê momentos pacíficos de transformações sociais dentro de um
ritual. Os atores sociais em interação com a plateia podem construir interações que fazem a performance
mudar, causando assim uma mudança no rito. Cf. TURNER, Victor Witter; DA ROCHA PINTO, Paulo
Gabriel Hilu; VOGEL, Arno. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EdUFF, 2005.
pp. 137-158.
52

procedimento de outros modelos de canto improvisado, ou seja, com acompanhamento


musical. Todavia, nas regiões que compõem hoje o interior de Pernambuco, Paraíba,
Ceará e Rio Grande do Norte, o canto ganhou uma característica única, ficando
independente do acompanhamento musical. “Os cantadores do Nordeste só cantam sem
acompanhamento, servindo-se dos instrumentos para encher o espaço entre a pergunta
de um e a resposta do outro”114. Mas, então, por que dos instrumentos se perpetuarem,
mesmo que variando ao longo do tempo entre a rabeca, o pandeiro e, enfim, a viola?
Talvez a melhor resposta esteja nas palavras de Andréa Betânia da Silva:

Em se tratando do repente, há quem afirme que a música ocupa um lugar


tangenciado, servindo apenas como pano de fundo para o desencadeamento
da poesia. Ainda que a variação musical utilizada não seja ampla e variada,
podendo um mesmo tom servir como acorde para mais de um gênero, são as
toadas que indicam o desenvolvimento de cada modalidade, de modo que sua
inadequação concorre para o descrédito da produção executada. Além disso,
importa ressaltar a relação que se estabelece entre os cantadores, a viola e o
lugar que esta ocupa não apenas no imaginário daqueles que a admiram, mas
principalmente na performance. Funcionando como uma extensão do corpo
do violeiro, a viola, que varia de cor, de tamanho e da qualidade do pinho,
ainda colabora para o sucesso da sua apresentação e para a formação do seu
ethos em função de sua representação 115.

A viola, ou como alguns violeiros chamam carinhosamente, o pinho, passou por


um longo processo de invenção e reinvenção e, em seu processo de criação, está
inserido o motivo pelo qual alguns cantadores do início do século XX usarem a rabeca
como forma de acompanhamento nos desafios e cantorias.
Segundo Luis Soler116, o hábito do improviso fazia parte das vivências das tribos
árabes nômades chegando a aparecer em registros escritos já no século VI. Os jograis
representam bem esse lado poético em duplas, como as dos nossos cantadores, no que
se refere à declamação acompanhada de instrumentos, além do fato de serem aqueles
que ganhavam o sustendo entretendo o público.

114
CASCUDO, 1984. p. 349.
115
SILVA, Andréa, 2014. p. 73.
116
SOLER, Luis. Origens árabes no folclore do Sertão Brasileiro. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 1995.
p. 28.
53

Fig. 1

Fonte: Cantigas de Santa Maria, por Alfonso X, “O Sábio” In: GOODY, Jack. Islam in Europe. John
Wiley & Sons, 2013. A imagem também ilustra com alterações a capa de SOLER, 1995.

Na ilustração, vê-se a representação do desafio poético entre dois jograis, um


árabe (esquerda) e outro cristão (direita). Para a discussão aqui proposta, destaca-se na
imagem os declamadores usando alaúdes. O Alaúde (Al’úd), inicialmente, foi um
instrumento de cordas pulsadas de origem árabe em formato de “meia-pêra” e sem o
sistema de trastes117 separando casas no braço. Segundo Soler, o instrumento fora
largamente difundido na Europa medieval, em boa parte do período Barroco. Mais
tarde, os alaúdes árabes sofreram transformações ganhando o sistema de 5 ou 6 cordas
duplicadas e ganharam um braço provido de trastes. Uma variante do alaúde árabe foi a
vihuela hispânica que, sobretudo, copiou muito desse instrumento musical. Segundo
Soler,

A vihuela, ou viola como era chamada em terras galaico-portuguesas,


distingue-se do alaúde apenas no formato da caixa: em lugar do fundo bojo,
de “meia-pera”, ela apresenta dois tampos planos, um inferior e outro
superior, interligados por altas ilhargas. [...] Este tipo de viola, já
perfeitamente definido e muito popular em Portugal renascentista, é o que
veio para o sertão e o que é conhecido, hoje, com o nome de “viola
sertaneja”118.

117
São pequenas divisões de metal no braço do instrumento de corda que servem para separar as “casas”
no braço. Quando um músico toca uma corda livre, esta produz uma nota musical e se o mesmo desejar
tirar uma variante mais aguda desta nota, basta “reduzir” o tamanho da corda, ou seja, deve apoiar o dedo
em uma das casas separadas pelo traste para que a onda formada ao tocar a corda seja menor que a onda
formada ao tocar a corda livre.
118
Ibidem. p. 108.
54

Outro instrumento utilizado, no passado, no repente é a rabeca. Ao contrário da


viola, a rabeca é um aparelho musical de cordas friccionado por arco que, para Soler,
era desconhecido na Europa até a chegada do rabab árabe. O instrumento lembra um
pouco o alaúde, porém, o modelo arcaico apresentava duas cordas e tocava-se encostado
no chão. Mais tarde, ganhou novas denominações,

Coincidindo com a conquista do domínio político de Al’Andaluz por parte


dos berberes, difundiu-se pela península, ao lado do rabab oriental
propriamente dito, um tal de rabé, preferentemente tocado no peito119.

O rabé sofreu mudanças e ganhos de embelezamento e um processo de


“aviolamento”, muito em parte por causa da própria viola europeia. Em algum momento
a viola começou a ser tocada com um arco. O rabé passou por uma mudança de formato
e, consequentemente, um novo nome, rebec ou rabeca. É em meio a esse processo que
os luthières120 criaram a família do violino, que, basicamente, significa “viola pequena”.
O violino passa a dominar todo o ambiente musical europeu e os instrumentos mais
arcaicos começam a entrar em desuso, como é o caso da rabeca. Para Soler, se a rabeca
não fosse então considerada uma mãe do violino moderno, deveria pelo menos ser “uma
tia carnal”121.

A definitiva adoção da família do violino tornou obsoleto o uso das rabecas


[...], instrumentos que iriam perdurar unicamente em ambientes rurais
montanheses: alguma zona rústica de Portugal (rabeca chuleira), do planalto
espanhol (o rabel dos pastores castelhanos) alguns pontos da cordilheira
italiana (a rubeca). [...]. No tocante ao Brasil, não há dúvida de que tanto a
rabeca quando a viola devem seu uso a implantação que aconteceu nas
primeiras etapas da colonização.122

Por fim, o último instrumento do repente: o pandeiro. Usado hoje na embolada,


conhecida também como repente de pandeiro ou coco-de-embolada123, leva esse nome
devido a sua origem se remeter aos cocos-de-roda, dança típica de algumas regiões do
que é hoje o Nordeste. Apesar de não fazer parte de foco aqui proposto, que é o
cantador de viola, o embolador é um artista popular do improviso. Os coquistas 124 usam

119
Ibidem. p. 109.
120
Profissional que trabalha com a construção e manutenção dos instrumentos musicais.
121
Ibidem. p. 111.
122
Ibidem.
123
Também chamado de coco-de-improviso.
124
Percussionistas nas danças de coco.
55

instrumentos de percussão para fazer seus improvisos, normalmente o pandeiro.


Segundo Cascudo125, a embolada que é cantada dançando leva o nome de coco-de-
embolada. Igualmente a cantoria de viola no que se refere à métrica e o esquema de
rimas, o coco-de-embolada apresenta uma diferença, ou seja,

Como a cantoria de viola, é uma manifestação de poesia oral cantada


nordestina, fundamentada no improviso. Difere bastante, porém, da cantoria,
pelos gêneros poéticos, cânones estéticos, ritmo, instrumentos utilizados,
relacionamento com o público e utilização do espaço - em geral é apresentada
em espaço aberto (praças, vias públicas, feiras livres). O público vai-se
formando ao acaso, sem divulgação prévia, pelos transeuntes, que são
atraídos pelas vozes e ritmos dos emboladores. 126

Portanto, pode-se dizer que o uso da rabeca no repente teve alguma


expressividade em fins do século XIX e início do século XX, porém caiu em desuso
devido a facilidade da viola tanto no manejo como na capacidade de criar toadas para
animar a cantoria nos intervalos dos estilos. Sem falar que, de acordo com Braulio
Tavares, o uso da rabeca e do pandeiro ficou restrito a poucos poetas e, ao passo que se
consolidou o termo “cantoria de viola”. O uso de outros instrumentos migrou para
outras práticas, caso do pandeiro na embolada, ou caíram em desuso nos versos
improvisados, caso da rabeca127.
Na imagem a seguir é percebido um momento de transição, ao modo que, é
visto a viola ao lado das rabecas.

125
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 12 ed. São Paulo: Global, 2012. p.
214.
126
AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil: perspectiva de análise.
Ática, 1987. p. 70.
127
TAVARES, 2016. p. 14.
56

Fig. 2

Fonte: Da esquerda para a direita: Serrador; Cego Sinfrônio; Cego Aderaldo; Jacó Passarinho. De pé:
Leonardo Mota In: MOTA, 1976a. n.p.

Na imagem nota-se uma postura comum nos registros dos cantadores nas obras
dos folcloristas. Aqueles sempre enfileirados, sentados e mostrando seus instrumentos
transversalmente ao peito, enquanto o folclorista ficava em pé – por vezes com uma
caderneta na mão, representando o seu ofício –, expondo os poetas como peças de
museu. A vitória da viola pode ser demonstrada no seu progresso de transformação ao
longo dos anos. Logo, a viola que ilustra a imagem acima nas mãos do poeta Serrador
(Figura 2) se assemelha muito a Viola de Queluz, muito comum no Brasil até o fim da
década de 1920128. As antigas violas foram romantizadas nas letras de Rodrigues de
Carvalho ao descrevê-las, em 1903,

A viola – o pinho chamado – é pintado de amarelo, o braço negro, cingido


por uma vara de fita de pataca, que flutua ao vento, tentando o coração das
matutas.
Ao lado do tocador de viola, que é ao mesmo tempo o cantador, o
contentador em desafio empunha um botijão, manejando num vibrante ti-rim-
tim-tim uma chave de porta, segura entre o polegar e o anular, ou produz o
mesmo som com uma moeda de cobre – o dobrão. 129

O uso contínuo da hoje chamada Viola Nordestina ou Viola de Cantoria se deu


entre o fim da década de 1940 e início dos aos 1950, pelo qual, é um instrumento que
tornou mais dinâmica a cantoria com uma série de amplificadores naturais feitos em

128
VILELA, Ivan. Cantando a própria história: Música Caipira e Enraizamento. São Paulo: Editora da
USP, 2015. pp. 31-45. O autor faz uma reconstrução dos tipos de viola que existiam em Portugal e quais
se enraizaram no Brasil. Apesar de, quando se refere ao Nordeste, o autor parta diretamente para a Viola
de Cantoria, os modelos da Figura 2 se assemelham muito a estilo Queluz, que ganhou muita fama no
início do Século XX. Hoje se sabe que muitas violas eram feitas artesanalmente pelos violeiros. Ver
também CORRÊA, Roberto. A arte de pontear viola. Edição do Autor, 2000. Ver “Parte Especulativa”.
129
CARVALHO, 1963. p. 342.
57

metal e com uma organização, normalmente, fixa com doze cordas (Figura 3).
Observa-se que, comparada com a viola da Figura 2, a caixa130 do instrumento teve um
aumento considerável.

Fig. 3

Fonte: Repentistas em congresso de cantadores realizado no Rio de Janeiro, em 1959, usando a Viola
Nordestina In: LINHARES; BATISTA, 2013. p. 327. (Grifo meu).

Desta maneira, leva a crer que a utilização de amplificadores de metais na


caixa da viola, bem como o aumento do tamanho da caixa, representou uma necessidade
de ampliação do som do instrumento, ao mesmo tempo em que mantém o som
metalizado, substituindo a chave ou dobrão dos cantadores clássicos. O aumento da
caixa e o uso de amplificadores para amplificar o som representa, também, o surgimento
dos congressos e apresentações em grandes palcos nos festivais, consequentemente, há
um aumento dos espectadores e a necessidade de alcance maior do som.
Antes de chegarem aos grandes palcos nos litorais, os repentistas tiveram uma
vida itinerante e uma presença marcante pelos sertões. A seguir, será dado um foco em
Pernambuco, proposta da pesquisa, na forma como o repente se fixou no interior do
estado e regiões circunvizinhas. Também, como os poetas trafegavam pelas pequenas
cidades e vilas. Por fim, a redução das fronteiras sertão-litoral favorecendo a chegada
dos poetas nas grandes cidades.

130
Também chamada de Caixa de Ressonância, principal parte do violão e responsável pela formação e
saída do som.
58

1.2 A geografia da cantoria: o Polígono da Poesia e os repentistas itinerantes

Na segunda metade deste século (XIX), os poetas populares mais célebres


são todos do sertão e particularmente do Planalto da Borborema, e são:
Francisco Romano, Bernardo Nogueira, Ignácio (da Catingueira) todos três já
falecidos. Romano foi escravo da família Caluête, a cor da pele e os cabelos
demonstravam ser ele de sangue indígena. A grande seca de 77 obrigou-o a
emigrar para o sul de Pernambuco, e ali com os seus cantos adquiriu recursos
para sustento da família, tornando-se muito conhecido e admirado.
Bernardo Nogueira parecia branco, era alto e delgado; e como cantador
ambulante assistia a todas as festas sertanejas do Cariri Velho. Tornou-se
igualmente afamado como jogador de espada e valentão. Tomando parte no
rapto de uma moça, em que houve grande conflito, com mortes e ferimentos,
foi processado e pronunciado. Preso e recolhido em 1875, pouco tempo
depois fugiu por ocasião do movimento Quebra-Quilos.
Perseguido alguns anos, afinal, isentou-se da culpa, fixando residência na
pequena povoação de Cangalha, nas raias do Cariri com o Pajeú, onde
faleceu.
Ignácio (da Catingueira) era escravo e morreu nesta condição. De cor escura
e analfabeto, causa admiração por toda a parte o seu talento. Era conhecido
pela denominação do povoado onde morava com seu senhor, na ribeira de
Piancó.
Romano deixou diversos discípulos, Josué Romano, seu filho, Silvino Pirauá,
Palmeira e outros, que existem.
Os irmãos Gulino e Nicandro, filhos da vila de Teixeira e pertencentes,
dizem, à família do nosso malogrado Sabino Batista, também gozavam de
certa nomeada [...]131.

As palavras acima citadas foram feitas pelo amigo e historiógrafo 132 do


folclorista Rodrigues de Carvalho, Irineu Joffily (1843-1902), através de uma carta
quando esse perguntou o que este conhecia sobre de onde vinham os primeiros
cantadores conhecidos, a Geração Clássica de Cantadores. Rodrigues de Carvalho, em
suas pesquisas realizadas no fim do século XIX, aponta para a região entre o sertão
paraibano do Teixeira e do Sertão do Pajeú pernambucano como sendo os lugares onde
surgiram os primeiros cantadores de que se têm notícias, a geração clássica.
O que intriga é: “como esse fenômeno se desenvolveu no sertão e quem o
fazia?”. Uma boa resposta pode está no livro Itapetim: “Ventre Imortal da Poesia”133,
onde há uma antologia de poetas amadores e profissionais da cidade de Itapetim-PE.

131
Ibidem. p. 336-337.
132
Os historiógrafos eram responsáveis por um órgão ou pelo estado para escrever a história através da
pesquisa, basicamente um trabalho técnico.
133
Cf. COSTA, Marcos; PASSOS, Saulo. Itapetim: “Ventre Imortal da Poesia”. 2 ed. Recife: Ed.
CEHM/CONDEPE/FIDEM, 2013. pp. 27-44.
59

Traz em sua introdução o estudo, no qual, parece bem substancial para elucidar este
questionamento.
A temática aqui trabalhada não procura criar ou alimentar um mito da origem da
cantoria de viola em Pernambuco, até porque, como visto nos folcloristas nas primeiras
décadas do século XX, a prática do repente estava presente em quase todos os estados
do atual Nordeste. Com isso, esta parte da pesquisa se preocupa em dissertar sobre uma
fenomenologia de uma prática cultural no intuito de ajudar na argumentação acerca da
dinâmica dos cantadores entre o campo e o litoral, bem como entre a feira e o teatro.
A cantoria de viola teria se amadurecido na região do Pajeú e Moxotó
pernambucano e no Cariri e Serra do Teixeira paraibano. Ocorrendo, principalmente,
entre as cidades de Itapetim, São José do Egito, Tabira, chegando a Serra Talhada e
Sertânia, em Pernambuco; Monteiro, Patos e Teixeira, na Paraíba, assim como outras
cidades do entorno destas que formam o “Polígono da Poesia” 134.

134
Tais cidades sofrem direta ou indiretamente a influência do Rio Pajeú, tanto no que se refere ao fator
econômico da região em agropecuária, como no imaginário da população e, portanto, dos poetas. O rio
nasce aos pés da Serra da Borborema nas imediações da cidade de Itapetim (1) e Brejinho, se une ao Rio
da Custódia na cidade de Floresta e nesta deságua no Rio São Francisco, na divisa com a Bahia. As
cidades margeadas são: Itapetim, Tuparetama, Ingazeira, Afogados da Ingazeira, Carnaíba, Flores,
Calumbi, Serra Talhada e Floresta. Seus principais afluentes são os riachos: Tigre, Barreira, Brejo, São
Cristóvão, Belém Cedro, Quixaba, São Domingos, Poço Negro e Navio. O seu vale constitui uma das
maiores bacias do estado de Pernambuco, com um pouco mais de dezesseis mil quilômetros quadrados,
cerca de 16,7% do território pernambucano. Sua área rural de influência direta corresponde a vinte
municípios, que são: Brejinho, Itapetim, São José do Egito, Tuparetama, Santa Terezinha, Ingazeira,
Tabira, Solidão, Afogados da Ingazeira, Iguaraci, Carnaíba e Quixaba, Flores, Triunfo, Calumbi, Santa
Cruz da Baixa Verde, Serra Talhada, São José do Belmonte, Mirandiba e Sertânia. Cf. MDA/SDT. Plano
Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Sertão do Pajeú, 2011.
60

Fig. 4

Fonte: Algumas cidades que formam o "Polígono da Poesia". Mapa editado a partir da Base Cartográfica
do IBGE.

Em entrevista concedida ao documentário Poetas do Repente135, o escritor e


pesquisador Braulio Tavares chamou a região da divisa norte do Sertão do Pajeú
(Microrregião do Sertão do Pajeú) em Pernambuco com as cidades circunvizinhas dos
Cariris Velhos (Microrregião do Sertão do Cariri Ocidental) paraibano de uma espécie
de triângulo que, no qual, se a região fosse vista por um satélite a noite e poesia
brilhasse, este local ficaria incandescente por tamanha produção poética lá produzida.
Optei por chamar de Polígono da Poesia por melhor explicação didática e, também,
como uma referência às regiões ricas em minério para extração e exportação que, neste
caso, é rica e exporta poesia. Acrescento ainda, junto a dos Cariris Velhos, a região da
Serra do Teixeira (Microrregião da Serra do Teixeira), pois, com isso pode-se fazer
também uma alusão aos primeiros grandes poetas a ganhar fama, como aponta a carta
135
Poetas do Repente. Direção Geral: Hilton Lacerda. MEC; TV Escola; FUNDAJ; Massangana
Multimidia, 2008.
61

de Irineu Joffily, bem como a região do Moxotó Pernambucano. Importante observar


que, no período aqui retratado, a configuração municipal do Polígono da Poesia se
diferenciava um pouco da presente na Figura 4. Ou seja, alguns municípios perteciam a
outros, a exemplo de Itapetim, que pertencia à São José do Egito, e Tabira, que
pertencia à Afogados da Ingazeira.
A difusão da cantoria na região está intimamente ligada à colonização da região.
Tal tema é trabalho por Marcos Costa e Saulo Passos136, que remete ao aparecimento
dos primeiros cantadores a algumas famílias de cristãos novos que chegaram a região da
atual cidade de Itapetim através dos caminhos de exploração apontados, como visto a
seguir, por José Antônio Gonsalves de Mello137. Em sua pesquisa, Mello apresenta o
fato de ter havido uma intensa ocupação do território pernambucano, em fins do século
XVIII, expondo três roteiros (mapas) de penetrações do território Pernambuco. Destaca-
se o primeiro roteiro, de 1738, chamado de "Caminho do Capibaribe". Segundo o
mesmo,

O "Caminho do Capibaribe" perlongava-o até as nascentes, e, cortando


território paraibano, atingia a ribeira do Pajeú, nos atuais municípios
pernambucanos de Itapetim e São José do Egito e por ela se guia até o Brejo
do Gama, onde cruzava em direção a Cabrobó, à margem do Rio São
Francisco138.

Na Figura 5 vê-se o "Caminho do Capibaribe" e o que chama atenção é o fato


que o caminho percorre e se aproxima das cidades do "Polígono da Poesia" (Figura 4).
Mas por que remetermos a tamanha distância temporal e mostrar a colonização da
região? Segundo Costa e Passos, ao dissertar sobre o trabalho de Mello, neste período
chegaram famílias de origem judia (cristãos novos), que, trouxeram os instrumentos e o
modus primitivo do que viria a ser a cantoria de viola atual. Dois fatos nos chamam
atenção no texto de Nunes e Passos: a importância das famílias de cristãos novos que lá
chegaram, bem como seus descendentes e, por fim, os caminhos que fizeram do Pajeú
um importante ponto de criação de gado e acesso ao Rio São Francisco.

136
Cf. COSTA; PASSOS, 2013, pp. 27-44.
137
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Três roteiros de penetração do território pernambucano
(1738-1802). Monografia nº3. Recife: Imprensa Universtitária, 1966. pp. 7-12.
138
Ibidem. p. 9-10.
62

Fig. 5

Fonte: Recorte do mapa do "Caminho do Capibaribe", que mostra as localidades saindo de Recife e
seguindo contra o curso do Rio Capibaribe até chegar ao Rio Pajeú (destaque) e, por fim, encontrando o
Rio São Francisco em Cabrobó-PE. In. MELLO, 1966, n.p. (Grifo meu).

Segundo os autores, foi de suma importância a chegada de algumas famílias ao


interior de Pernambuco, vindas pelo já citado "Caminho do Capibaribe". Algumas delas
são destacadas, como por exemplo: os Cavalcantis, os Carvalhos, os Ferreiras, os
Batistas, os Correias, os Dantas, os Araújos, os Limas (ou Piancó, devido ao fato de
terem migrado da região de Piancó-PB), os Leites, entre outros. Foi em meio a essas
famílias, que apareceram os primeiros cantadores que se tem registro. Entre estirpes
deram origem a linhagens de cantadores, como os "Irmãos Batistas" (Lourival, Dimas e
Otacílio), considerados grandes expoentes da poesia sertaneja no século XX, chamados
de faraós da poesia139 – dentre os poetas mais aclamados no I Congresso de Cantadores
do Nordeste, bem como o poeta responsável por organizar tal evento, Rogaciano Leite.
Além do "Caminho do Capibaribe", os autores nos atentam para as estradas que
ligavam e ainda ligam os sítios, vilas e cidades que circundavam a cabeceira do Rio
Pajeú e as vizinhas no Estado da Paraíba. A importância dessas estradas estava,
principalmente, na migração entre as localidades e, sobretudo, as famílias que viam do
Paraíba em busca de terras frescas e fornecimento de água constante 140. É dessa
confluência que surgem as famílias já citadas acima. Assim Passos e Costa afirmam:

139
Uma alusão a cidade de onde eles viviam, São José do Egito.
140
As estradas de ferro, ao longo do início do século XX também desenvolveram uma importância
fundamental na comunicação (leia-se também “migração”) entre o sertão e o litoral.
63

Algumas dessas estradas menores partiam das bandas da Paraíba, mais


precisamente das bandas Norte (Serra da Borborema e Serra do Teixeira,
como é conhecida a região), de localidades como Princesa Isabel, Piancó,
Teixeira, Conceição, etc. desciam pelas nascentes do Rio Pajeú, passando
pela Povoação de Umburanas (hoje Itapetim), dirigia-se para Fazenda São
Pedro, onde passava o "Caminho do Capibaribe", que vinha de Cabrobó rumo
a Olinda141.

É compreensível que a região tenha mantido um intenso contato tanto comercial


quanto de rotas de migração entre as fazendas. O que chama atenção é o fato da
importância que Serra do Teixeira tem na formação social da região, bem como no
aparecimento dos primeiros poetas. A exploração da localidade para a pecuária e
agricultura se remete ao fim da primeira metade do século XVIII, onde, acompanhando
um esquema comum em tempos de colonização, Fábio Dantas e Maria Dantas pontuam:

A Serra do Teixeira pouco diferiu do quadro geral, quando atraiu, a partir do


século XVIII, colonos para a pecuária e para o cultivo de algodão, tabaco,
mandioca, milho, feijão, frutas, e, em menor escala, cana de açúcar para o
fabrico da rapadura e da aguardente 142.

A vila de Teixeira foi criada em 1861 e, apesar de ter tido todo um ambiente
favorável para o desenvolvimento agropecuário, acabou por cair em declínio, devido em
parte a três motivos, como nos aponta Irineu Joffily: “além da dificuldade de
comunicações com centros maiores, eram [...] a politicagem e o banditismo [que
transferiram] o polo comercial e político para outras regiões [...]”143. Talvez este tenha
sido o grande motivo que algumas famílias migraram para a região do Pajeú
pernambucano, como concluem Marcos Costa e Saulo Passos. O declínio do Teixeira se
deve em muito aos conflitos entre as famílias dominantes da região, entre elas a mais
forte politicamente, os Dantas144. Apesar dos entraves político-sociais que a vila sofreu,
a vida cultural foi intensa. Após analisar cartas e reportagens sobre a região do Teixeira

141
COSTA; PASSOS, 2013, p. 37.
142
DANTAS, Fábio Lafaiete; DANTAS, Maria Leda de Resende. Uma família na Serra do Teixeira:
elenco e fatos. Liber, 2008. p. 76-80.
143
FRAGOSO, Hugo (Frei). O vigário Bernardo: Reflexo da face do povo teixeirense. In: SILVA,
Severino Vicente da (org.). A Igreja e a questão agrária no Nordeste, p. 92. Apud DANTAS;
DANTAS, op. cit., p. 81.
144
Ibidem. Segundo os autores o declínio se deve em parte as brigas políticas travadas entre os opositores
da família Dantas para desvalorizar a região para favorecer outras localidades. Muitos dessas disputas
foram mostradas em jornais de época, onde, alguns opositores faziam matérias de cunho depreciativo da
região.
64

com o objetivo de reconstruir uma história desta região, Fábio Dantas e Maria Dantas,
observaram que,

Nem tudo em Teixeira era labuta e animosidade. São mencionadas [nas


cartas] atividades culturais, das danças de salão aos folguedos, como o
bumba-meu-boi, o rei congo, as cavalhadas, o fandango e outras expressões
populares145.

Os primeiros poetas que se tem registro são todos nascidos na região do Teixeira
e que, em boa parte da vida, circularam pela região do Polígono da Poesia. Luís Wilson
fez um levantamento dos principais cantadores (os mais famosos) que circularam na
segunda metade do século XX, porém, dedica parte do livro para escrever sobre os
primeiros expoentes do repente e, em sua fala, a região do Teixeira é o núcleo que
começou toda a história da poesia de repente no Polígono da Poesia. Para ele,

Só a antiga vilazinha do Teixeira, no alto, nos alcantis, nos araxás ou numa


aba da serra do mesmo nome (Sertão do Estado da Paraíba), nos deu no
século passado [XIX] tantos e tão grandes violeiros, entre os quais –
Agostinho Nunes da Costa (1797-1858), Francisco Romano Caluete, Romano
da Mãe D’Água, Romano do Teixeira ou o “Grande Romano” (1840-1891),
Ferino de Góes Jurema (da Freguesia de Santa Madalena, padroeira do
Teixeira), Germano Alves de Araújo Leitão “Germano da Lagoa” (1842-
1904), Francisco da Chagas Batista (Fazenda Riacho Verde, 05.05.1882 –
João Pessoa, 26.01.1930), Nicandro Nunes da Costa (1826-1918), Josué
Romano (1877-1913), Bernardo Nogueira (1832-1895) e Hugolino Nunes da
Costa, Hugolino do Teixeira ou Hugolino Sabugi (1832-1895)146.

É dado, pela literatura encontrada para a pesquisa, a Agostinho Nunes da Costa o


título de fundador dos poetas repentistas; seus herdeiros ajudaram a difundir a prática de
improvisação de versos, bem como a migração rumo ao sul do Teixeira, para o Sertão
do Pajeú. Era pai de Nicandro Nunes da Costa e Ugolino Nunes da Costa, tio-avô de
Chagas Batista e Antônio Guedes, tronco de uma família de poetas fixados na cabeceira
do Rio Pajeú, da qual saíram grandes nomes da poesia do repente no século XX, os
Irmãos Batista147. Tais poetas citados no livro de Luís Wilson fazem parte do chamado
“Grupo do Teixeira” e foram responsáveis pelas primeiras mudanças que levaram a
prática da cantoria de viola148. Poetas, como Romano do Teixeira, fizeram escola. Este

145
Ibidem. p. 88.
146
WILSON, 1986 p. 31. Nota-se que o autor se equivocou ao incluir Francisco da Chagas Batista como
sendo um violeiro, já que o poeta é conhecido apenas por ser cordelista.
147
COSTA; PASSOS, 2013. p. 34.
148
ABREU, Márcia, 1999. p. 84.
65

tendo como discípulos vários nomes que mantiveram a chamada cantoria acesa, como
Josué Romano (seu filho, 1877-1913), Silvino Pirauá. Outros que também não eram
cantadores acabaram mais tarde fazendo fama com a venda de folhetos contando ou
criando histórias sobre as pelejas dos famosos poetas da região, eram: Leandro Gomes
de Barros e Francisco da Chagas Batista149.
Rodrigues de Carvalho foi o responsável pelo que seria o primeiro registro em
livro (1903) de um desafio naquela região, protagonizado com Inácio da Catingueira e
Romano da Mãe D’água. Segundo aponta o autor, o desafio entre Romano e Inácio foi
o primeiro registrado pela oralidade popular e, como nos diz Cascudo, ocorreu na vila
de Patos na Paraíba, em 1870150. A mitologia criada nesta famosa cantoria abriu espaço
para a comercialização de folhetos contando tal história. O trecho registrado por
Rodrigues de Carvalho consta:

Romano do Teixeira:
Sou Romano da Mãe D’água,
Mato com porva sorturna;
Para vencer inleição,
Não meto chapa na urna,
Salto da ponta da pedra,
E tomo a boca da furna.

Inácio da Catingueira:
Sou Inácio da Catingueira
Aparador de catombos,
Dou três trapaz, são três quedas
Dou três tiros, são três rombos,
Negro velho cachaceiro,
Bebo, mas não dou um tombo.

Romano do Teixeira:
Inácio ainda não cortaste
Miolo de pau musisso,
Ainda não viste agora,
O Romano mais veríssimo:
Um, é o relâmpago de fogo.
Outro o trovão inteiriço.

Inácio da Catingueira:
Seu Romano inda não viu
Do Catingueira o arranco:
Se está neste pensar, me fale,
Se não está, me seja franco,
Abra os olhos, limpe as vistas,
Que seu negro dá em branco

149
Cf. GRILLO, 2015. pp. 46-84.
150
CASCUDO, 2005. p. 338.
66

Romano do Teixeira:
Inácio tu reconheces,
Que eu sou o rei cantado,
Prá cantar estou aprovado,
Em qualquer lugar que estou
Prá tomar a Catingueira,
Só te afirmo ainda vou.

Inácio da Catingueira:
Branco, dou-lhe um parecer,
Vossa mercê me atenda,
Se for lá para brincarmos
Possa ser que lhe ofenda.
Para tomar a Catingueira,
Pode ser que se arrependa.

Romano do Teixeira:
Quem quer ferir inimigo,
Não faz ponto nem avisa;
Quando eu for à Catingueira.
Nesse dia o sol incrisa;
Eu só vou a Catingueira,
Somente dar-te uma pisa.

Inácio da Catingueira:
Me diga o dia em que vai,
Quais são os seus companheiros,
Que o senhor pode levar
Dez ou doze cangaceiros.
Que a todos eu saio a peito
Como um valente guerreiro.

Romano do Teixeira:
Não digo dia nem hora,
Nem te digo quando vou
Só, sim, quando eu chegar lá
Tu hás de ser sabedor.
Irei topar-te o riacho
E tomar-te o sangrador151.

Três temáticas chamam atenção neste desafio. A primeira delas, na estrofe


inicial de Romano, o poeta se atenta para a problemática eleitoral no sertão nordestino,
falando de fraude, o voto de cabresto praticado pelo coronelismo na região. O segundo
ponto se refere ao uso do debate racial como forma de provocar um ao outro: tanto
Romano quanto Inácio usam os termos “branco” e “negro” como forma de provocar e
instigar um ao outro. Neste último caso, devido à necessidade de depreciar o adversário,
como visto na peleja de Manuel Cabeceira e Manuel Caetano, para que o oponente
perca ficando sempre na defensiva, dificultando revidar o adversário. Por fim, o

151
CARVALHO, 1967. p. 258-260.
67

cangaço mostra-se um tema vivo e presente na realidade de cada um em suas


localidades.
Como observado anteriormente, as questões eleitorais e do banditismo no
cangaço estavam presente no dia-a-dia da população do Teixeira; as famílias, como os
Dantas e seus rivais, travavam disputas que, por muitas vezes faziam alguns moradores
migrarem para o Pajeú. Importante observar que o Cangaço torna-se uma temática
recorrente no mundo da cantoria e dos folhetos, mas não pretendendo discutir a temática
político-social que foi o período do banditismo social presente no sertão nordestino, mas
sim, o que representou para a literatura popular152. Alguns personagens como Antônio
Silvino, Lampião e tantos outros ganharam destaque nas produções populares, como nos
diz Ângela Grillo: “Quando esses homens se tornam célebres por suas façanhas, passam
a ser perpetuados na memória popular através da literatura, seja ela oral ou escrita nos
folhetos”153. Grillo ao analisar folhetos, como o Enterro da Justiça de Francisco da
Chagas Batista, demonstra que, para o cordelista, as relações de poder existentes no
coronelismo, apesar de não serem totalmente responsáveis pelo surgimento do
banditismo, potencializam as tensões sociais.
Ulysses Lins de Albuquerque traz de suas lembranças os tempos que, ainda
criança na virada do século XIX, via chegar à fazenda de seus pais e à vila no Sertão do
Moxotó154 cantadores da região para cantorias ou somente de passagem. Assim
descreveu a chegada do poeta Manuel Telegrama à sua região:

Telegrama era um sujeito acaboclado, de estatura avantajada, bigodes


retorcidos, que aparecera na vila vindo dos lados de Pesqueira, a pé, de viola
a tiracolo. Vinha cantando em algumas casas na vila, onde, para isso pedia
permissão, mas incorreu logo no desagrado de alguns rapazes, que não
gostaram dos modos meio arrogantes do cantador, que era, como se diz,
muito convencido. Por isso, aproveitaram a presença de Manuel Galdino, que
viera da fazenda de minha avó, por saberem que ele gostava de cantar à viola,
e levaram-no a um desafio com Telegrama 155.

152
Cf. OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo J. F. de. Antonio Silvino: “de governador dos sertões a governador
da Detenção”: 1875-1944. Recife: Bagaço, 2012. O autor discute ao longo do livro as facetas, bem como
as representações de cangaceiros na figura de Antônio Silvino. Ver também FAORO, Raymundo. Os
donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2013.
153
GRILLO, 2015. p. 165.
154
Microrregião do Sertão do Moxotó no interior pernambucano é composta por sete cidades (Arcoverde,
Betânia, Custódia, Ibimirim, Inajá, Manari e Sertânia), no qual, faz divisa com o Sertão do Pajeú.
155
ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de. Um sertanejo e o sertão. Moxotó brabo. Três ribeiras;
reminiscências e episódios do quotidiano no interior de Pernambuco. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. p. 27.
68

Esses cantadores, andarilhos ou à cavalos, mulas, jumentos, percorriam toda a


região do Polígono da Poesia encarando algumas vezes regiões mais longínquas. Não
obstante, no fim do século XIX, poucos ousavam ir muito longe, pois, muitos deles
cantavam pela região nos períodos de entressafra. Normalmente, se apresentavam nas
casas-grandes das fazendas, em residências nas cidades, como apontou Ulysses
Albuquerque, em festas privadas e públicas (como casamentos e festas religiosas) e nas
feiras. Algumas dessas figuras permaneciam nos seus locais de residência e esperavam
sempre que algum poeta surgisse para que um desafio fosse feito. Mas, a grande maioria
percorria o sertão cantando versos próprios ou de outros, em dupla ou sozinho, como
Telegrama que, por vezes, quando o público queria um desafio procurava uma dupla
para formar a disputa.
Importante salientar que apesar do foco até então ter sido o Polígono da Poesia,
alguns folcloristas como Leonardo Mota e Rodrigues de Carvalho apontam a
importância dos repentistas de outros estados, chegando por vezes a procurar
semelhanças e diferenças entre os poetas de cada estado. Leonardo Mota,
principalmente, nos seus primeiros escritos (Cantadores, 1921), dá uma atenção muito
grande aos poetas cearenses. Já em fins dos anos 1920 (Violeiros do Norte, 1925; Sertão
Alegre, 1928), começa a tratar a cantoria como um elemento mais amplo, do Nordeste.
Descrevendo sempre suas viagens pelo sertão a procura de famosos poetas das
localidades.
Rodrigues de Carvalho, em Cancioneiro do Norte (1903), ao comentar sobre os
cantadores de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, descreve:

O cantador de Pernambuco confunde-se com qualquer cantador dos outros


Estados.
As encarniçadas intrigas por causa de terras; tomadas de môças; as
destruições feitas por godos nos roçados, determinando morticínios; os
casamentos; as festas populares são idênticas nesta região.
[...] Distinguir um cantador do Ceará de um cantador do Rio Grande do
Norte, é o mesmo que tentar construir uma barreira nas águas do verde
oceano que os dois Estados acaricia igualmente; seria abrir valados nesses
campos vastos em os carnaubais se confundem.
A mesma raça, o mesmo solo, a mesma natureza, as mesmas correntes da
evolução etnológica; seria impossível destacar uma peculiaridade dêste ou
daquele cultor da musa popular.156

156
CARVALHO, 1967. p. 354-355.
69

Portanto, sem a pretensão de criar um mito fundador da cantoria do repente,


por mais que os registros apontem para a região do Polígono da Poesia, folcloristas de
outros estados circunvizinhos a Pernambuco construíram obras e mais obras referentes
aos poetas andarilhos dos sertões demonstrando, por exemplo, a “sagacidade do matuto
cearense”157, no caso de Mota, ou enumerando os repentistas norte-rio-grandenses e
paraibanos no caso de Carvalho e Câmara Cascudo.
Com isso, como se deu o processo de migração para o litoral? A chegada dos
cantadores no processo de migração para o litoral coincide com a cantoria se tornando
sistemática, ou seja, tendo os seus principais cânones no ritual do repente de viola, ou,
melhor entendido, a materialização dos gêneros desenvolvidos em fins do século XIX e
início do século XX em uma prática popular. De certa maneira, compreendo tal
necessidade como os primeiros passos dos poetas a levarem a vida da viola a tiracolo
como principal fonte de renda, o embrião do poeta profissional.
Como visto, as cantorias normalmente aconteciam em residências ou festas,
como casamentos. Nestas ocasiões, o mais comum para o pagamento dos cantadores era
a justa, ou seja, quando é previamente acertado com o provedor do evento os valores
pagos a cada poeta e, menos comum, a cantoria ingressada, onde é cobrado ingresso ao
público. No entanto, quando as cantorias ocorriam em feiras, palcos improvisados,
botecos, varandas, enfim, nos pés-de-parede, o mais comum é o pagamento pela
bandeja, ou seja, uma bandeja era sobreposta em cima de uma mesa aos pés dos
cantadores ou a frente deles para que o público pagasse voluntariamente. 158
Tais facetas que a cantoria adquiriu ao longo do início do século XX podem ser
compreendidas como uma mudança nas práticas, ou um processo de ressignificação.
Conforme a cantoria de viola saiu do seu seio primeiro (meio rural) em meio a
apresentações em bares, casamentos e festas em geral, para ganhar uma magnitude nos
grandes centros urbanos e capitais, passou a ter uma nova concepção, uma nova
estrutura em meio às práticas dos versos improvisados. Em vias gerais, os cantadores
até o início do século XX não tinha o repente como forma de sustento, sendo em sua
grande maioria agricultores e feirantes. Com as novas facetas trazidas com os avanços
tecnológicos (rádios, estradas, trens) na virada do século XIX, a comunicação Sertão-
Litoral tornou-se mais fácil e atrativa para aumentar a renda familiar dos poetas.

157
MOTA, 1976a. p. 233.
158
AYALA, 1988. pp. 23-33.
70

Essa prática itinerante dos cantadores em muito contribuiu para sua migração
para a capital, ainda assim, muitos são os motivos que levaram os cantadores a chegar
no litoral. A ida dos cantadores para a capital em busca de novas oportunidades
acompanhou um processo de crescimento populacional acelerado na capital
pernambucana, por exemplo. Assim Câmara Cascudo afirma:

[...] cada região não ignorava os nomes mas estes não passavam para as
memórias afastadas. Havia, realmente, uma comunicação dos cantadores
pelos sertões nordestinos, viajando a pé, viola no saco de algodãozinho,
aproveitando as festas religiosas, cantando nos casamentos e apartações de
gado, aceitando os encontros com os companheiros, numa batalha feroz pelo
renome. Não atingiam à pancada do mar, como se dizia nas velhas sesmarias
que tinham por limites o oceano. Não chegavam esses heróis às cidades do
litoral. A maioria dos príncipes da cantoria sertaneja desapareceu sem ter
visto o Atlântico. Muitos gabavam-se de ter cantado em terras com duas
igrejas. Era um orgulho. Duas igrejas denunciavam população desenvolvida,
interesses maiores, dinamismo social159.

O autor aponta a contribuição de alguns folcloristas para que os violeiros fossem


assuntos na capital, em especial Leonardo Mota, com o seu livro Cantadores, de 1921.
Esse processo pode ser descrito como a urbanização da cantoria, ou seja, conduzir os
repentistas para a cidade160.
Câmara Cascudo, em suas lembranças da infância e início da vida de jornalista
no jornal de seu pai, notou que pouco era mostradas cantorias nos periódicos.

Posso, evidentemente, dar meu testemunho e antiguidade de simpatia porque


me criara no alto sertão, ouvindo e aplaudindo cantadores. Numa capital era
apenas, na melhor da expressão, esquisitice, excentricidade, tolice. Assim,
antes de 1921 [ano de lançamento de Cantadores de Leonardo Mota], o
cantador não tomara, normalmente, contato com a “terra grande”, cidade,
jornais. Não era, e foi muitíssimo depois, um assunto noticiativo [sic]. Meu
pai tinha um jornal (“A imprensa”, 1914-1927) e era uma surpresa tremenda,
desconcertante, atroadora, quando iniciei a publicação das minhas primeiras e
tímidas pesquisas folclóricas161.

159
CASCUDO, Luís da Câmara In: MOTA, 1976a. pp. XLIV-XLV.
160
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013b. pp. 220-245.
161
CASCUDO, Luís da Câmara In: MOTA, 1976ª, p. XLVIII. Leonardo Mota, de fato contribuiu para
que a população da capital pernambucana, bem como de outras capitais, conhecessem mais os cantadores.
Após o lançamento de seu livro, em 1921, fez uma série de conferências comentando seus livros. Ao
longo dos anos de 1920, o Diario de Pernambuco fez propagandas de conferências do folclorista
Leonardo Mota. Muitas dessas conferências ocorreram no mês de setembro de 1924, tanto no Teatro de
Santa Isabel, no Gabinete Português, como também no auditório do Diario de Pernambuco. Suas
conferências baseavam-se em explicar o seus livros e mostrar um pouco dos trabalhos recolhidos pelo
interior cearense, declamando estrofes dos poetas.
71

Entre fins da década de 1930 e início da década de 1940, Recife apresentava um


crescimento populacional vertiginoso. Na política, Getúlio Vargas estava no poder
efetivamente desde 1937, tendo como interventor Agamenon Magalhães 162. A cidade
ocupara a posição de terceira maior capital do país com uma população em torno de 350
mil habitantes. Durante este período, a cidade teve um acentuado crescimento urbano
nas regiões de mangue, com os aterros, e nas áreas de morros na parte noroeste da
cidade, bem como o crescimento na direção oeste chegando na região atual do bairro da
Iputinga.
Tal crescimento urbano no Recife em muito foi causado pela própria migração
interiorana. Boa parte da população do interior dos estados nordestinos tinha em grande
parte emigrados para as regiões sul e sudeste do país. Estima-se que, no decênio de
1930, tenha partido para as regiões mais ao sul, cerca de 650 mil pessoas dos estados do
Nordeste163. No entanto, boa parte desta leva de imigrantes circulava dentro do próprio
Estado. A capital pernambucana, entre os anos de 1920 e 1940, apresenta um
crescimento de 111.659 habitantes, sendo registrado no recenseamento de primeiro de
setembro de 1940 um total de 350.502 pessoas164 contando com as áreas suburbanas,
urbanas e rurais.
O crescimento populacional do Recife já era notado pelos artistas populares
antes do governo começar a tomar medidas. O poeta cordelista Leandro Gomes de
Barros escreveu em 1908 um poema intitulado O Recife, que foi publicado juntamente
com outro chamado Paródia. O primeiro trabalho ocupa todo o folheto, deixando
apenas a última página para o Paródia. No restante do folheto, o poeta descreve as ruas

162
Agamenon Magalhães assumiu o governo em 1937, como interventor de Getúlio Vargas,
permanecendo no poder até 1945 para assumir a pasta do Ministério da Justiça e comandar a transição
para a democracia. Torna-se deputado pelo Partido Social Democrático (PSD) e voltou ao governo
pernambucano através das eleições diretas em 1950. Seu governo é interrompido com sua morte em 1952.
Durante seu governo algumas medidas de mudança urbana foram tomadas dentre elas, chama atenção o
que pode ser denominar de "limpeza urbana", ou seja, medidas de maqueamento da cidade na tentativa de
tornar a Recife nos moldes de cidade moderna. Cf. FELDHUES, Paulo Raphael Pires. Tradição e
modernidade no Recife do Estado Novo: considerações à luz das propagandas políticas e comercial.
2010. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História da UNB, 2010.
163
OJIMA, Ricardo; FUSCO, Wilson. Migrações e nordestinos pelo Brasil: uma breve contextualização,
p.11-26. In: RICARDO OJIMA, Wilson Fusco. Migrações Nordestinas no Século 21 - Um Panorama
Recente. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2015. p. 13.
164
Boletim da Cidade e do Porto do Recife. Jan-Dez, 1946-1949. Nºs 19-34. Acervo FUNDAJ. Este
periódico era fornecido pela Diretoria de Documentação e Cultura da Cidade do Recife e continha
colunas de algumas personalidades locais, como, por exemplo, José Estelita, Waldemar de Oliveira, Josué
de Castro e outros. Ao fim continha dados estatísticos, entre eles: densidade demográfica, migrações,
natalidade, mortalidade, construções, demolições e valores da alimentação básica. Também continham em
ordem cronológica alguns eventos que ocorreram nos anos abordados, dentre eles o I Congresso de
Cantadores do Recife em 1948.
72

da cidade, enumerando becos e vielas desafiando o leitor, ironicamente, a encontrar


erros nas contagens feitas. Em determinado trecho, onde enumera os bairros da cidade,
o poeta chama atenção para os locais de periferia que estavam bastantes povoados.

Como bem seja Sant’Anna,


Magdalena e Cadeirero,
Varzea, Caxangá, Zumby,
Afflictos, Poço, Monteiro,
Estrada Nova, Arrayal,
Beberibe e Espinheiro.

A Casa Forte e Capunga,


Parnamirim, Afogados,
Areia, Tigipió,
Que estão muitos povoados,
Sitio de flores e fructeiras,
São uns aos outros ligados165.

Como nota-se (em destaque) o poeta atenta para o fato das regiões estarem com
um grande contingente populacional. Em outro trecho, o cordelista fala que não
encontra muitos agricultores na cidade, mas que outras profissões são mais atrativas,
vistos mais nas ruas recifenses, como os artistas.
Aqui na capital moram
Bem poucos agricultores;
Moram mais commerciantes,
Artistas e carregadores;
Empregados, jornalistas,
Almocreves, pescadores.166

A migração de poetas para a capital do Estado pode ser explicada não somente
por uma tendência de mudança, mas também, por um mercado para as cantorias
crescente no litoral. Ivo Leitão, em reportagem para o Diario de Pernambuco, fica
surpreso ao chegar em São José do Egito e quase não encontrar mais poetas por lá. Este
começa assim a matéria intitulada “Literatura popular do sertão”:

O sertão começa onde termina a estrada de ferro. Com esta, as rodovias


rasgando os tabuleiros e os chichi-chiques, os cantadores e repentistas estão
se despedindo. São os últimos retirantes da terra calcinada. Com o cinema e o
rádio penetrando, o bacharel de anel enfiado no dedo citando Freud Lin
Yutang [...], a paisagem antiga modificou-se, está secando também.

165
“O Recife – Paródia” de Leandro Gomes de Barros. Tipografia do Jornal do Recife, 1908. Acervo
FCRB. (grifo meu).
166
Ibidem.
73

– É o diabo! – cochicham os últimos remanescentes de chapéu de couro e


violão, os cânones de Romano e Inacio da Catingueira, marechais das
emboladas e dos desafios em todo o Nordeste. [...]167

O objetivo da matéria era mostrar histórias do sertão e a volta de bacharéis


recém-formados para seus lares. Apesar do trem não chegar ao sertão, as estradas já
cortavam toda região interiorana e, é perceptível na fala do repórter que, com o
estreitamento das fronteiras das cidades do interior com o litoral, tornou-se atrativo para
o repentista migrar para onde tinha mais público. Nota-se ainda que, para Ivo Leitão, a
chegada de bacharéis nascidos na região e que saíram para estudar também foi uma
forma de queda do público para os cantadores nos sertões. Ou seja, os jovens de
famílias ricas saíam cada vez mais para o litoral e tornavam-se bacharéis. Ao voltarem
para as suas terras viram a necessidade de urbanizaram (levar a cidade) a cantoria168.
Aliado a isso, a chegada do cinema e do rádio no interior também contribuiu para uma
queda de público nos espetáculos de cantador, já que se caracterizavam como uma
forma alternativa de entretimento.
Sinal dessa mudança pode ser notado no número crescente de reportagens sobre
os poetas em Recife, em especial nos mercados (principalmente o Mercado de São José)
e festas religiosas (Nossa Senhora da Conceição). Portanto, a seguir procurarei dissertar
sobre o cantador de viola que tentaram a sorte na capital pernambucana, mediante uma
esperança de vida melhor longe das hostilidades das secas, encontrara lá não só um
grande público familiar sertanejo, decorrente do grande processo de migração; mas
também, a oportunidade de construir novos diálogos culturais, a partir da interação
direta ou indireta com os vários setores da sociedade citadina.

167
Diario de Pernambuco, 21 ago. 1946. Acervo BN.
168
Neste momento pode-se usar o exemplo de Rogaciano Leite no Capítulo 4.
74

CAPÍTULO 2
A CANTORIA E A CIDADE: TRADIÇÕES E REPRESENTAÇÕES

“O lixo atapeta o chão


Um caminhão se balança
Quem vem de fora se lança
Em cima do caminhão
Um ébrio esmurra o balcão
No botequim da esquina
O gari faz a faxina
Um cego ensaca a sanfona
E um vendedor dobra a lona
Depois que a feira termina.”
Trecho de “Fim de Feira” de
Dedé Monteiro.

A cantoria foi trazida para a grande cidade. O cantador seguiu o fluxo migratório
dos sertões e começou a vir cada vez mais para a cidade grande do litoral. O trabalho
dos folcloristas é intensificado a partir da década de 1920. Surge uma emergência
regionalista em nome de um Nordeste com propostas político-culturais voltadas na
criação de uma imagem de Nordeste e uma identidade coletiva voltada para um
sentimento de pertencimento a região. Nos trabalhos folclóricos surge o cantador como
símbolo de Nordeste. As figuras de Leonardo Mota e Câmara Cascudo começam a
surgir nesse cenário, assim como o rebuscamento de folcloristas de outrora, a exemplo
de Rodrigues de Carvalho. Nesse meio, o cantador é apresentado nas palestras e livros
destes, mas como o sujeito cantador era representado nas obras dos citados folcloristas?
Com as migrações o número de cantadores cresceu por entre as ruas do Recife,
mas como era o dia-a-dia desses que perambulavam pelas ruas, mercados e festas
populares da capital? Nos mercados, por entre o aglomerado de transeuntes que iam
fazer a feira do lar, lá estavam os folhetos estendidos e repletos de representações dos
desafios. O diziam as representações nos folhetos sobre a dinâmica do cantador? O que
capítulo está direcionado na tentativa de estabelecer uma discussão sobre o cotidiano
dos repentistas em Recife entre as décadas de 1920 e início dos anos 1940, bem como as
representações destes entre os folhetos de pelejas e os livros de folcloristas.
75

2.1 O repentista entre o regionalismo e o olhar dos folcloristas

Como visto anteriormente, Recife a partir de 1930 se tornou um grande centro


urbano devido ao crescimento populacional e ao seu comércio que se tornou bastante
vigoroso. Consequentemente, se firmando como um polo econômico, também houve o
crescimento nas produções intelectuais desta cidade. A Faculdade de Direito do Recife
foi a grande responsável pela movimentação dos filhos das elites dos estados da área
inicialmente chamada de Nordeste (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e
Ceará). Entre os bacharéis circulavam grandes debates e troca de ideias que, mais tarde,
levariam para seus estados e, em muitos casos, muito desses estudantes tornaram-se
governantes em seus estados169.
É neste contexto que, pela inspiração de Gilberto Freyre, o Centro Regionalista
do Nordeste foi criado em nove de setembro de 1924: “Data em que ocorre um
acontecimento decisivo para a emergência do que se conhece hoje como sendo a cultura
170
popular nordestina” , encontraram-se na casa de Odilon Nestor171 (1875-1968) no
bairro da Boa Vista em Recife, com o intuito de defender as tradições e promover os
interesses pelo Nordeste, alguns dos principais nomes no cenário intelectual dos estudos
da cultura nordestina. Dentre eles estavam: Gilberto Freyre (escritor e sociólogo
pernambucano); Leonardo Mota (folclorista cearense); Joaquim Nogueira (ex-
governador do Piauí); Câmara Cascudo (folclorista, escritor e jornalista do Rio Grande
do Norte). Para este contexto, é importante frisar, que a historiografia atribui a ideia de
um Centro Regionalista, porém, é controverso, já que foi um encontro informal e sem
construção de manifestos ou algo do gênero. Para esta pesquisa, me atento a ideia
crescente de regionalismo que tornou-se mais frequente e forte a partir da década de
1920.
A demanda regionalista/tradicionalista ganhou força na missão de desenvolver o
sentimento de unidade do Nordeste e, entre 7 e 11 de fevereiro de 1926, foi instalado o I
Congresso Regionalista do Nordeste, com uma extensa programação. A cessão de

169
Há um menor destaque de início ao estado de Alagoas. Já Sergipe, Bahia, Piauí e Maranhão tiveram
uma adesão no projeto mais tardiamente. Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Feira dos
Mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste, 1920-1950). São Paulo: Intermeios,
2013a. p. 171.
170
Ibidem. p. 179.
171
Foi aluno e, posteriormente, professor na Faculdade de Direito do Recife sendo, também, poeta,
jornalista e deputado federal.
76

abertura foi no auditório da Faculdade de Direito do Recife e, entre as pautas, estava


desde: tratar de problemas econômicos e sociais; discutir a unificação econômica do
Nordeste, problemas rurais, florestais no Nordeste; defesa do patrimônio artístico e dos
monumentos históricos; entre outras temáticas. Teve também reuniões no salão de
conferências do Departamento de Saúde e Assistência, onde, várias teses de estudos da
cultura nordestina foram apresentadas172.
O termo “Nordeste” é usado oficialmente pela primeira vez, em 1919, pela
IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas), no qual, designava o Nordeste
como sendo uma parte da região Norte assolada por secas constantes e, com isso,
necessitava de uma atenção especial por parte do poder central 173. Durval Muniz174
acentua que as secas, em especial a de 1877-79, que começaram a difundir a região nos
periódicos do Sul. Logo, a ideia da região Nordeste ser sinônimo de flagelo social ganha
notoriedade nas populações sulistas. Com isso, a superação dessa visão e a construção
de um Nordeste separado dos estados do Norte é a grande missão político-cultural na
institucionalização do Nordeste. Nesse contexto, Durval salienta a importância do
Centro Regionalista na promoção do congresso acima citado, no qual,

[...] se propunha a “colaborar com todos os movimentos políticos que


visassem ao desenvolvimento moral e material do Nordeste e defender os
interesses do Nordeste em solidariedade”. Dizia o programa do Centro que a
unidade do Nordeste já estava claramente definida, embora assumisse
também, como uma de suas tarefas, acabar com os particularismos
provincianos para criar a comunhão regional. 175

As contribuições desta demanda regionalista/tradicionalista estão visíveis nos


jornais recifenses mesmo na década de 1940176, principalmente pela forte visibilidade
que as práticas culturais nordestinas ganharam ao longo da década de 1930 com as
publicações de Gilberto Freyre 177. E em especial, ao que se refere ao universo do

172
Cf. FREYRE, Fernando de Mello. O Movimento Regionalista e Tradicionalista e a seu modo
também modernista: Algumas Considerações. Ci. & Tróp.. Recife, (5(2): 175-188 jul/dez. 1977. pp.
175-188.
173
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5.ed. São
Paulo: Cortez, 2011. p. 81.
174
Ibidem. p. 81 et. seq.
175
Ibidem. pp. 86-87.
176
Principalmente pela forte visibilidade que a cultura nordestina ganha na década de 1930 com, por
exemplo, a publicação de Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, em 1933.
177
Casa Grande & Senzala (1933), Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife (1934),
Sobrados e Mocambos (1936), Nordeste: Aspectos da Influência da Cana Sobre a Vida e a Paisagem
(1937), Açúcar (1939), Olinda (1939).
77

repente de viola, três folcloristas se destacam para este trabalho: Rodrigues de Carvalho,
Leonardo Mota e Câmara Cascudo. Neste ínterim, os cantadores e o folclore nordestino
já tinha certa divulgação, principalmente em propagandas de festas, mas também
quando os repentistas eram temas acadêmicos, como,

Por iniciativa da Diretoria de Estatística, Propaganda e Turismo, com


cooperação da Força Policial do Estado foi proporcionado ontem ao prof.
Curt Lange, no Nucleo Operario do Prado, uma exibição de cantadores e
violeiros do sertão.
Foram executados números de viola, de sanfona, tendo havido vários
desafios. [...] O prof. Curt Lange interessou-se pelos cantadores, colhendo, na
ocasião várias informações que se relacionam aos seus trabalhos de pesquisa
nesta região. O grupo estava assim constituído: Otacílio Batista Patriota, José
Duda Neto, João Francisco d’Oliveira e Pedro José da Silva, Violeiros.
[...] A DEPT irá gravar todas as composições apresentadas, uma vez que se
tratam de melodias típicas, que tendem, infelizmente, a desaparecer como
efeito da descaracterização crescente da zona onde são comuns 178.

Na matéria, referente a visita do musicólogo teuto-uruguaio Curt Lange à Recife,


a fim de ouvir os cantadores em sua pesquisa de campo para levantamento da cultura da
América Latina, observa-se ainda (em destaque) a reprodução do discurso folclorista da
necessidade de estudar o estava por morres, o que representa o Nordeste. Logo, com
relação à adesão dos folcloristas ao movimento, Durval Muniz afirma que é

[...] fundamental para a emergência da ideia de Nordeste, mobilizou


fundamentalmente os intelectuais e políticos daqueles quatro Estados, o que
pode explicar a adesão desses estudiosos do folclore e esta identidade
regional. 179

O que levou os folcloristas a ganhar prestígio no cenário nacional foi o empenho


no levantamento biográfico de poetas e o excessivo trabalho de registro de canções.
Mas, dentro das obras dos folcloristas, como eram representados os cantadores?
Logo na virada do século XX, em 1903, o paraibano Rodrigues de Carvalho
publicou o Cancioneiro do Norte. O pioneirismo de Rodrigues não consistiu somente no
levantamento de manifestações populares (desafios, cocos, lendas, folguedos, bumbas-
meu-boi, cantigas de São João, etc.), mas sim, em trabalhar com a poesia popular
procurando autoria, ou seja, os cantadores. Com isso, seguindo contra a corrente, quebra

178
Diario de Pernambuco, 01 jun. 1944. Acervo BN. (grifo meu). Notícia exatamente semelhante fora
publicada no Jornal Pequeno (01 dez. 1944). O único dado acrescentado foi que a Diretoria de Estatística,
Propaganda e Turismo teve ajuda da Rádio Clube de Pernambuco na gravação. Acervo BN.
179
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a. p. 124.
78

o anonimato do folclore e procurou fazer um levantamento sobre quem eram esses


cantadores que perambulavam pelo sertão no fim do século XIX. Outro fator do
ineditismo na obra deste está relacionado ao levantamento e análise dos gêneros da
cantoria ao longo da introdução na primeira edição, onde, pode-se notar o uso da
quadra, do mourão, da sextilha, da décima e do martelo pelos cantadores que entraram
no século XX.
Decerto, seria anacronismo inserir Rodrigues em um movimento que somente
ganha força vinte anos após sua publicação, porém, como salienta Durval Muniz, foi na
segunda edição de Cancioneiro do Norte, de 1928, que o folclorista adere à ideia de
cultura nordestina. Com disso, “será sempre considerado pelos que o seguem como um
livro precursor dos estudos dessa cultural”180.
Rodrigues, considerado por Câmara Cascudo como uma bibliografia básica nos
estudos de folclore, em suas páginas dedicadas as “Notas sobre cantadores”, começa
descrevendo suas impressões sobre os cantadores. Afirmou:

Quem conhecer a vida sertaneja do norte, as zonas brejosas e as praias, não


pode ignorar a originalidade dêsse tipo de povo, devotado a um regime de
vida de prazeres e folgares: o cantador popular. Quase sempre desocupado,
sem profissão classificada entre as classes laboriosas, boêmio por índole,
valentão e desordeiro, seduzindo mulheres, dominando a canalha; eis o
trovador do povo, a perambular de povoado em povoado, adivinhando
casamentos e batizados, de viola ao peito, faca de ponta à cinta, lenço de
ganga ao pescoço, cabelos em cachos sôbre a testa, usando jaqueta e camisa
muito anilada.181

Sistematicamente, suas observações foram criadas a partir de relatos, ao passo


que o folclorista não fez um estudo de campo colhendo informações. A partir do
momento que sua obra é considerada referência, passou a promover uma ideia genérica
da imagem de cantador de viola. Mais a frente, ainda em suas notas, o folclorista
descreveu o repentista com característica de imutável, afirmando:

O cantador anda invariavelmente aguardentado. Do domingo ao sábado,


pernoitado, olhos raiados de sangue, vai de povoado em povoado, de fazenda
em fazenda, em sua fainha de ganhar a vida cantando, ora em desafios
picarescos, ora em louvaminha barata ao seu coronel, ou à filha dêste, a
Sinhàzinha, moçoila gentil, que nem sempre vem à sala, quando há visita de
homem estranho em casa.182

180
Ibidem. p. 123.
181
CARVALHO, 1967. p. 336.
182
Ibidem. p. 342. (grifo meu).
79

Nota-se que, em seu texto, o uso de termo como “invariavelmente” remete a uma
imagem fixa, predeterminada, do repentista. Um conceito estigmatizado de boêmio
alcoólatra, arruaceiro, etc. Esse tipo de postura começou a ser abandonada com mais
assiduidade em meados do século XX, com a entrada de novos cantadores no cenário
nacional que, em alguns casos, chegam a ser comparados a famosos artistas eruditos.
O segundo aqui destacado em ordem de produção é o cearense Leonardo Mota.
Este é peculiarmente importante na construção da ideia de Nordeste. Tendo como
principais obras: Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense (1921), Violeiros
do Note: Poesia e linguagem do Sertão Nordestino (1925) e Sertão Alegre: Poesia e
linguagem do Sertão Nordestino (1928).
O pioneirismo de Leonardo Mota está no trato com os cantadores, pois, fez suas
pesquisas convivendo com os poetas, entrevistando-os, levando-os para sua residência,
etc. Câmara Cascudo, no prefácio de Cantadores, disserta sobre o fato de, apesar de já
terem existidos outros trabalhos que se referiam ao cancioneiro popular, somente com a
contribuição de Leota (como era chamado pelos amigos), que tais cantadores saem
“detrás da cantoria”, afirmou Cascudo:

Com o CANTADORES (1921) Leonardo Mota divulga a figura do produtor


da poesia sertaneja. Tínhamos uma certa abundância desse material, colhido e
salvo especialmente por Silvio Romero (1883) e a contribuição meritória de
Rodrigues de Carvalho (1903) e Pereira da Costa (1908). Nesse 1921
Gustavo Barroso publicava a primeira antologia do folclore em prosa e verso
nordestino, “Ao som da viola”.
Mas o cantador estava escondido detrás da cantoria, oculto pela floração.
Ninguém sabia, de moro geral, a história deles, como viviam, produziam,
decoravam, enfim, a mecânica do desafio. Ignorava-se a galeria daqueles
183
valores humanos, as fisionomias, a gesta .

Leonardo Mota, ao contrário de seus predecessores Silvio Romero, Pereira da


Costa e Rodrigues de Carvalho, nos estudos folclóricos, foi a campo recolher
informações, taquigrafar poesias, biografar cantadores contemporâneos184, tornando-os
famosos entre os leitores da elite urbana.
Para Durval Muniz185, as ideias oriundas do que seria o Centro Regionalista foi
de fundamental importância nos escritos de Mota. Diálogos e ideias construídas,

183
MOTA, 1976a. p. XLIV. (grifos do autor).
184
Como visto na Figura 2 no Capítulo 1.
185
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a. pp. 94-96.
80

principalmente, entre Leonardo Mota e Câmara Cascudo, que acabaram tornaram-se


grandes amigos. Fato observado na série de prefácios que Cascudo faz das obras de
Leota. Leota já era folclorista de renome com a publicação de Cantadores, em 1921,
enquanto Cascudo apenas havia iniciado seus estudos folclóricos e teria algumas poucas
publicações no jornal A Imprensa.
As produções subsequentes de Mota passam a incorporar a ideia de Nordeste. O
folclorista deixa de descrever a cultura popular direcionada ao Ceará e passa a descrever
de uma cultura popular nordestina, ou seja, “passa a usar a designação nordestina para
nomear e definir os materiais culturais populares que recolhera e que organizava em
forma de livro”186. Pode-se usar como exemplo dessa mudança os títulos dos seus livros
após o encontro de 1924: a obra Cantadores tinha como subtítulo “poesia e linguagem
do sertão cearense”, todavia, um ano após o encontro em Recife, Leota publica um livro
denominado Violeiro do Norte187 e, desta vez, o subtítulo passa a ser “poesia e
linguagem do sertão nordestino”188.
Assim como outros folcloristas contemporâneos e os do final do século XIX,
Mota se refere aos repentistas com certa distância. Como membro da elite rural, este se
via acima em uma fronteira de classe. No entanto, o folclorista cearense levou em um
tom, por certo, mais leve que seu predecessor, Rodrigues de Carvalho. Mesmo quando
os temas coincidem. Mota escreveu sobre o alcoolismo entre os cantadores:

Do meu convívio com os cantadores me resta suficiente autoridade para


garantir que os cantadores, que são também “homens de inteligência e
grandes lúcidos”, não gostam de água mineral. Entre os mortos tenho notícia
de muitos que iam à perfeição de não abusar, sequer, da água do pote,
embora não repetissem a velhaca escusa daquele boêmio que se abstinha do
uso da água, para não roubar o pão às pobres lavadeiras... 189

Obviamente, o gosto particular dos repentistas não era motivo de julgamento


pré-estabelecido ou, pelo contrário, como o próprio Leonardo Mota defendeu, eram
“homens de inteligência e grandes lúcidos”. Anos depois, quando Orlando Tejo se

186
Ibidem.
187
Ibidem. Cogitou-se a possibilidade do livro se chamar “Violeiros do Nordeste”, mas como foi
publicado pela Cia. Gráfico-Editora Moteiro Lobato, sedia em São Paulo e de propriedade do próprio
Monteiro Lobato. O editou pareceu receoso em adotar o título já que a espacialidade “Nordeste” ainda
estava em formação.
188
Ibidem.
189
MOTA, 1976c. p. 95.
81

referindo a um dos maiores repentistas do século XX, Severino Pinto, e o fato deste
gostar de bebidas alcóolicas não é levado em consideração ao estipular seu caráter190.
Leonardo Mota ao longo dos anos 1920 e 1930 apresentou-se inúmeras vezes no
Recife. Suas palestras o tornaram cada vez mais famoso por entre a elite. Essas
palestras, lembra Durval Muniz191, proferidas por Mota foram responsável pela
urbanização (trazer à cidades) a figura do cantador, de apresenta-los as elites letradas
dos grandes centros. Constantemente, os jornais da capital pernambucana expunham
propagandas das audições do folclorista assim como notas sobre de suas viagens pelo
sul do país. Chegou-se, inclusive, a ser publicado resumo de seus livros, principalmente,
do pioneiro Cantadores.
Leota, em uma de suas apresentações, assumiu tom em defesa dos repentistas.
Em Violeiros do Norte, onde transcreveu trechos dessa palestra proferida em Fortaleza,
fez duras críticas às populações litorâneas, principalmente, das regiões mais ao sul do
Nordeste do Brasil que tratavam com preconceitos os cantadores e a população sertaneja
em geral.

No Rio de Janeiro, em doze capitais de Estado e nas principais cidades de S.


Paulo e Minas, populosos centros urbanos patrícios que visitei há três anos,
todo me devotei a uma campanha de morigerado nacionalismo, refutando a
velha injustiça de as populações litorâneas ou citadinas só enxergarem no
sertanejo ou o cangaceiro de alma de lama e de aço a que reporta Gustavo
Barroso, ou o ser desfibrado e lerdo que magina, de cócoras e tão
inexoravelmente caricaturado por Monteiro Lobato.192

Mota ao referir-se das palestras proferidas por vários estados, nas quais,
procurou quebrar a ideia de sertanejos como inferiores, bêbados, lerdos, inúteis, etc.
Nota-se ainda na sua fala a defesa do jeca caricaturado nas obras de Monteiro Lobato,
quando este referia-se ao sertão (interior) paulista e não ao interior do Nordeste. Mais a
frente, em seu discurso, Leota deixou claro seus objetivos nas palestras:
“[...]reivindicando o bom nome dos habitantes do Interior, estigmatizei o fato de
sòmente cair no gosto das multidões o julgamento pejorativo da raça, mercê das
‘generalizações estouvadas’ e dos ‘erros de sociologia leviana’”.193

190
O tópico Geração Moderna de Cantadores é dedicado, em parte, a este poeta e lá é citado quase que em
tom jocoso o gosto de Severino Pinto pela cachaça em uma entrevista.
191
Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013b.
192
MOTA, 1962. p. 25.
193
Ibidem.
82

Leonardo Mota propôs uma nova imagem do sertanejo (repentista) trazendo este
à tona e quebrando estigmas, “que nos sertões do Nordeste não vegeta molemente uma
patuléia de inúteis”194. Desenvolveu em seu texto argumentos que levam a defesa dos
sertanejos, a uma nova visão sem preconceitos, enumerando pensadores e escritores que
comungavam de sua ideia: de que o “Jeca Tatu não é uma síntese nem fisiológica, nem
psíquica, nem econômica, nem política”195. Encerrando sua linha de pensamento, o
folclorista em tom de desabafo afirmou:

Fui assim, meus Srs., fui, como estais vendo, fui intransigente na defesa do
sertão esquecido, do sertão ridicularizado, do sertão caluniado e só lembrado
quando dêle se quer o imposto nos tempos de paz ou o soldado nos tempos de
guerra. E foi, sobretudo, contra o labéu de cretinice do sertanejo nordestino
que orientei a minha documenta contradita: em todo o meu “Cantadores” e
nas conferências que proferi, de Norte a Sul, pus o melhor dos meus
empenhos em fazer ressaltar a acuidade, a destreza de espírito, a vivacidade
da desaproveitada inteligência sertaneja, de que os menestréis plebeus são a
expressão bizarra e esquecida, apesar de digna de estudos.196

Mota, ao longo dos seus textos, evita fazer julgamentos como os de Rodrigues
de Carvalho, até mesmo quando se distancia dos repentistas com o olhar de estrangeiro
ao expressar-se em relação às poesias sertanejas como sendo bizarras, pitorescas, etc. O
autor se concentra, ao longo de sua narrativa, descrevendo os fatos ouvidos ou
presenciados em suas viagens, assim como a análise das poesias, sempre destacando a
inteligência e presunção dos poetas. Esse tipo de postura que o folclorista mantém é
compreendido dentro de um contexto, no qual, a elite rural (a qual ele pertencia) viu no
elemento popular (o cantador) um aliado na defesa do modo vida que desejava
manter.197
Por fim e não menos importante, destaco Câmara Cascudo. Este, ao contrário de
Mota, demorou um pouco mais para lançar um livro dedicado ao folclore. Somente em
1939 lança Vaqueiros e Cantadores: folclore poético do sertão do Ceará, Paraíba, Rio
Grande do Norte e Pernambuco. Nota-se que, diferentemente de Leota, não anexa de

194
Ibidem.
195
Ibidem.
196
Ibidem. p. 27.
197
Durval Muniz parte por essa perspectiva ao analisar, por exemplo, que Leonardo Mota utiliza do
pressuposto do cancioneiro popular sendo representado como um elemento dignificador da sociedade
continha à defesa de tradições e repudiaria transformações sociais, a exemplo da prática do divorcio que
vinha se tornando comum a partir da década de 1920. Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a. p. 43 et.
seq.
83

início o termo Nordeste nos seus escritos198, como pôde-se notar no subtítulo da
primeira edição da citada obra.
Em Vaqueiros e Cantadores, Cascudo fez um levantamento de materiais
separando-os por tipo: Romances, Pé-quebrado, Os A.B.C., Pelo-Sinais, Ciclo do Gado,
Ciclo Social (Pe. Cícero, Louvor e Deslouvor das Damas, O Cangaceiro), etc. Ainda
promove um longo estudo sobre o que considera ser os antecedentes da cantoria, os
instrumentos, temas, etc. Ao fim deste livro dedicou biografias aos famosos cantadores
do século XIX.
Cascudo fez uma vasta produção escrita sobre o folclore. No tocante da cantoria,
lança também, em 1952, Literatura Oral no Brasil. Ao longo de suas produções o
folclorista mantém um tom que deixa os agentes do folclore estáticos, como peça de
museu199, no qual, a sociedade deveria se espelhar como elemento dignificador. Com
relação a isso, Durval Muniz afirma:

Seus estudos, longe de fazer uma análise histórica ou socióloga do dado


folclórico, se constituem em verdadeiras coletâneas de materiais referentes à
sociedade rural, patriarcal e pré-capitalista do Nordeste, vendo o folclore
como um elemento decisivo na defesa da autenticidade regional, contra os
200
fluxos culturais cosmopolitas.

No que se refere à origem do fenômeno da cantoria de viola no Nordeste, dois


pontos nas obras de Câmara Cascudo chamam atenção: os temas referentes às
influências africanas e indígenas na cultura da viola. Para o folclorista, a cultura
indígena em nada contribuiu para a poesia do desafio, onde, ao citar estudos como o
Gabriel de Souza, Carfim, Léry, entre outros, afirma que os cânticos indígenas eram em
grupos e pouquíssimas eram os casos de improviso, ou seja, para o autor, não haveria
registros entres os ameríndios de uma poética do improviso. O que me parece
insatisfatória a proposta de Cascudo quando confrontado a ideia do mesmo com a de
Ginzburg quando este se refere a circularidade cultural. Ao passo que, a colonização dos

198
Ibidem. p. 97. Segundo o historiador, Cascudo alterna em seus artigos os termos “Norte”,
“nordestino”, “nortista”, nos escritos da década de 1920. Doravante, se refere a nordestino como sendo o
morador do sertão. O Nordeste seria, então, o cancioneiro popular e não o lugar o qual pertencia o
folclorista.
199
Note que esse tipo de postura é comum entre os folcloristas. Ver Figura 2.
200
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, 91.
84

sertões se deu em muito com as entradas e com os conflitos com os indígenas locais 201,
é quase impossível dizer que as regiões onde se proliferou a cultura do repente de viola,
as populações não sofreram trocas mútuas de experiências e costumes.
O mesmo se aplica a influência africana. Ao afirmar que não havia entre os
africanos nada de semelhante com a cantoria do sertão nordestino, Cascudo caí no
mesmo engano, pois, quando este leva em consideração a forte influência moura nas
formas poéticas brasileiras, não se atentou ao fato de que a invasão moura à Península
Ibérica se deu pelo norte da África, no qual, cem anos foi o tempo que os árabes
começaram a expandir seus domínios políticos na África até que começou a penetrar na
Península Ibérica, em 711.202
Por fim, destaca-se ainda em Cascudo como este representava a figura do
repentista em suas obras. Em Vaqueiros e Cantadores, os poetas do improviso são
retratados semelhante a visão de Rodrigues de Carvalho. No capítulo “Cantador”,
Cascudo repassa toda sua impressão eurocentrista do que seria o cantador: o
descendente dos aedos grego, do rapsodo ambulante, metris árabes em Al-Andalus, etc.
Em dado momento, se remeteu aos cantadores nordestinos da seguinte maneira:
“curiosa é a figura do cantador. Tem ele todo orgulho do seu estado. Sabe que é uma
marca de superioridade ambiental, um sinal de elevação, de supremacia, de
predomínio”203. Mesmo que elevando a importância do repentista por entre a população
interiorana, o folclorista em Dicionário do Folclore Brasileiro204, acrescentou ao
pensamento acima: “analfabetos ou semiletrados, têm domínio do povo que os ama e
compreende”205, mesmo que, em sua obra anterior, tenha amenizado o analfabetismo
entre os repentistas, onde “a percentagem hoje é inferior a 20%”206, isso em 1939, ano
do lançamento do livro.
A cantoria de viola, em Câmara Cascudo, foi promovida ao elemento
dignificador da cultura popular. Mesmo assim, não deixou de pré-julgar seus
praticantes, pejorativamente, classificando-os com uma série de adjetivos, tais como:

201
Cf. PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência indígena e conflitos no Nordeste
colonial. Recife: Fundarpe, 1990. Ver também PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros. Ed. USP,
2002.
202
Cf. GOMES, Salatiel Ribeiro. Vaqueiros e Cantadores: a desafricanizada cantoria sertaneja de Luiz da
Câmara Cascudo. In: Padê, Brasília, v. 2, n. 1, p. 47-70, jan./jun. 2008.
203
CASCUDO, 2005, p.129.
204
Publicado pela primeira vez em 1969.
205
CASCUDO, 2012, p.170.
206
CASCUDO, 2005, p.129.
85

“paupérrimo, andrajoso, semi-faminto, errante, ostenta, num diapasão de consciente


prestígio, os valores da inteligência inculta e brava, mas senhora de si, reverenciada e
dominadora”207. O prestígio, como dito, é seguido de uma inteligência classificada
como inculta. Esse tipo de postura, novamente foi reflexo de um distanciamento que os
folcloristas mantinham do seu elemento de estudo. A visão de um estrangeiro de uma
classe dita superior garantida por seu posicionamento social e sua formação intelectual.
Nota-se, portanto, que progressivamente o repente de viola passa a ser
considerado como símbolo de um Nordeste que surgia era também elevado a elemento
dignificador da moral e ética de uma sociedade que estava em mudança. Por vezes, esse
fato variou quando o tema era diretamente o sujeito cantador, ao passo que este
representava uma cultura dignificadora, porém, deveria ter os hábitos que os manteria
inferiores aos que os representava na elite.
Os repentistas perdem anonimato com os folcloristas, no entanto, não é o mesmo
que ocorre nos jornais. Os cantadores demoram mais alguns anos para começar a ganhar
nomes com mais frequências nas páginas dos periódicos, mais precisamente somente
depois que estes se aproximam dos palcos. Como era então o cotidiano dos
improvisadores nas ruas do Recife? Como os jornais retravam esses anônimos poeta que
perambulavam com a viola a tiracolo nas ruas do Recife?

207
Ibidem.
86

2.2 Os repentistas das ruas: tradições nas ruas e nos mercados do Recife

O Mercado de São José é o maior mercado público do Recife; localizado no


bairro de São José é considerado, acima de tudo, popular. O Mercado, situado em frente
ao grande pátio da igreja de Nossa Senhora da Penha, era uma das áreas que mais
circulavam pessoas; sendo assim, era onde facilmente encontravam-se vendedores das
mais diversas variedades: “O vai e vêm constante dos cantadores ambulantes, os
pregões das quituteiras, a conversa na cadeira do engraxate, o som das violas dos
cantadores, o recitar dos folheteiros e os malabarismos dos artistas mambembes”.208
O excesso de ofertas em um só lugar chamava atenção das pessoas que iam fazer
a feira diária. O Mercado já existia desde o final do século XIX, a princípio construído
com o objetivo de modificar os hábitos da população do Bairro do Recife, região
estritamente popular com um comércio muito forte (feira de frutas, peixes, artesanato
doméstico, etc.), porém, até mesmo com as reformas, o público mais simplório resistiu e
continuou sendo os frequentadores mais encontrados no local.

Durante todo o final do século XIX e início do XX a prefeitura da cidade do


Recife vai criar posturas municipais visando normatizar o comércio popular
tanto no Mercado quando em seu entorno. Em vão! Ao redor daquele
imponente edifício criou-se um grande espaço cultural. [...] Uma grande
quantidade de camelôs, ambulantes, cantadores, poetas e vendedores de
cordel lá se estabeleceram, mostrando que a cultura popular tinha raízes mais
profundas que as elites pernambucanas imaginavam209.

O Mercado se consolidou como o grande palco para os artistas e comerciantes


do Recife da primeira metade do século XX. Não só o Mercado de São José, mas as
ruas dos bairros de São José e Santo Antônio tornam-se grandes tabuleiros de
comerciantes. Em reportagem do Diario de Pernambuco intitulada “vida e negocio dos
vendedores ambulantes”210, a matéria descreve como era o dia-a-dia destes ambulantes:
“O pequeno commercio actualmente é um dos aspectos humildes e pitorescos da nossa
paysagem urbana”211. O jornal caracteriza esse tipo de vendedores como sendo,
praticamente, exclusivos para os pobres ao afirmar,

208
GUILLEN, Isabel C. M. (org.); GRILLO, Maria Ângela de F.; FARIAS, Rosilene G. Mercado de São
José: Memória e História. Recife: IPHAN/FADURPE, 2010. p. 9.
209
Ibidem. p.12.
210
Diario de Pernambuco, 16 jun. 1935. Acervo BN.
211
Ibidem.
87

A variedade das mercadorias vendidas é enorme. A freguesia é sempre gente


pobre. Mas alguns transeuntes da classe media, apressados e sem tempo
212
sufficiente para entrar nas lojas ou armazéns compram .

O jornal dá uma boa atenção na matéria ao vendedore de ervas medicinais,


conhecido localmente como Doutor Jurubeba. Esse tipo de vendedores eram
encontrados no Pátio do Paraíso e no Mercado de São José. Sobra a realidade financeira
dos vendedores:

Doutor Jurubeba tem dias que não vende nada. Então pede ao fiscal para
deixar para outro dia o imposto de 1$600. O fiscal vê que o doutor Jurebeba
vae mal de negócios, é um pae de familia e está com duzentos réis no bolso.
E como o doutor há muito annos, em seu comercio humilde, pega dez tostões
por dia á Prefeitura, o fiscal disça e deixa o doutor Jurubeba em paz: -
“Vamos vêr amanhã...”213

Ao longo da matéria, o jornal apresenta outros vendedores, como os de chinelos,


livros usados e miudezas. Entre os comerciantes locais, é abordado o vendedor de
folhetos Hildebrando Quintino Bráulio, o qual foi entrevistado. Ao ser perguntado sobre
seu dia-a-dia como vendedor de folhetos, afirma:

Trabalho nisso porque não tenho outro geito [sic]. Quase sempre vendo bruto
3 ou 4 mil reis. Sabbado vendo uns 10 mil reis. O lucro é pequeno, não vale
nada. Nas feiras dos arrabaldes é onde vendo mais. Leio em voz alta os
versos para que o pessoal compre.214

Pode-se perceber que, em muitos casos, o vendedor de folhetos não tem como
ofício único a venda deste material. Na citação, ainda observa-se a prática de venda dos
vendedores de folhetos, a qual declamam os primeiros versos para chamar atenção dos
compradores. Forma semelhante, como será visto adiante, era utilizada pelos cantadores
que andavam com folhetos e declamavam para chamar atenção dos transeuntes para
vender algum folheto ou ganhar algum dinheiro por improvisos ou versos decorados
dirigidos ao espectador.
A prática de leitura dos folhetos em voz alta entre os transeuntes do mercado é
uma prática que pode ser entendida como a noção de performance teatral em Paul

212
Ibidem.
213
Ibidem.
214
Ibidem.
88

Zumthor215. Para este, o texto teatral por si só não tem a funcionalidade se não com o
somatório de voz, gesto e cenário. A entonação dos cordelistas e/ou violeiros ao
declamarem os versos e as formas de lidar com cada gênero, aliado aos gestos que
chamam atenção de quem os vê nos cenários peculiares de mercados e feiras tornam
todo esse contexto um desempenho do hábito de declamador popular. Ângela Grillo
contribui para tal pensamento a medida que, “mesmo sendo uma literatura impressa
oferecida a uma população em grande parte analfabeta, encontra um grande público”216.
Este público que, como afirmou em citação acima exposta, assimila com facilidade os
versos devido ao tom poético capaz de sintetizar as histórias, ou seja, “há certa
facilidade em se aprender essas histórias narradas, pois, como são feitas em forma de
rima, com palavras que combinam entre si, facilita a memorização” 217.
Em matéria especial para o Diario de Pernambuco, Fernando de Barros redigiu
uma longa matéria, quase toda em entrevista com o cordelista João Martins de
Athayde218, intitulada “A vida ao gemido da viola”. Alguns pontos são importantes para
o entendimento de parte da vida desses poetas que tentavam ganhar a vida no Recife da
década de 1930. Primeiramente, o repórter procurou explicar o motivo de sua pesquisa
para a matéria.

[...] Estudar o que temos, travestir-se de novo garimpeiro para ir buscar


pepitas de inspiração não lapidadas, auscultar o sentimentalismo de um Brasil
inteligente e pitoresco, é um prazer para o jornalista que mais do que os
outros profissionais, róe os ossos do seu officio. [...]219

Fernando de Barros reproduz o discurso dos folcloristas, ao levar sua profissão


como medida de “ir buscar pepitas de inspiração não lapidadas”, trabalhar com o
escondido, as belezas do morto. Para ele, os artistas populares são uma pedra bruta, ou
seja, em estado natural, de um “sentimentalismo de um Brasil”, denotando a

215
ZUMTHOR, 2000. p. 62 et. seq.
216
GRILLO, 2015. p. 21.
217
Ibidem.
218
Athayde, paraibano nascido em Cachoeira da Cebola, município de Ingá do Bacamarte, em 1880. Teve
sua primeira grande experiência com a cantoria ao ver o poeta Pedra Azul. Muda-se para Pernambuco em
1898 e em 1908, já estabelecido em Recife, começa a produzir folhetos. O sucesso veio logo em seguida
e, com sua publicação Discussão de Leandro Gomes com João Athayde, causou muita polêmica, logo
que, Leandro Gomes afirmou que desconhecia Athayde. Mais tarde, os dois ficam amigos, a admiração de
Athayde por Leandro Gomes é visível em vários folhetos no qual homenageava o famoso cordelista.
Após a morte deste, a viúva vende os direitos das obras do mesmo para Athayde, em 1921.
219
Diario de Pernambuco, 19 abr. 1936. Acervo BN.
89

importância em falar dos poetas como símbolos de um Brasil inteligente e pitoresco.


Mais a frente o jornalista continua:

[...] Lá p’ras bandas de Pao d’Alho, ali, ainda na zona da matta, eu estava
cançado de ouvir uns negros pela madrugada, que depois do trabalho da
padaria, se ajuntavam pelas calçadas, debaixo de um posto orgulhoso da sua
lâmpada de dez velas. Liam os versos do cantador Leandro, com entonação
nas ultimas syllabas, para se confundir com os gemidos de um violão quasi
sem cordas, “pinicado” pelos dedos sensíveis de um preto cégo. Isso fazia
com que muita gente não dormisse. [...]220

Nota-se que a literatura de cordel acompanhava os cantadores que, em


momentos se remetiam aos folhetos, assim como músicos a uma partitura, para
declamar pela noite os versos famosos. Importante observar que tanto neste momento de
seu texto como em outros, o jornalista não difere cantador de cordelista. Para ele,
Leandro Gomes de Barros era um cantador, ou até mesmo Athayde221. Os cantadores,
apesar de já serem conhecidos, principalmente pelas letras dos cordelistas, em muito se
confundiam com estes que se apropriavam da cantoria de viola para produzir os
folhetos. O sucesso que os folhetos fazem é grande, pois, “pelas ruas e trechos de maior
movimento nesta capital, não faltam taboleiros com estantes cheias de folhetos de
versos”222.
O não estabelecimento da diferença entre cordelista e repentista deve-se em
muito, ao momento histórico no qual a matéria foi feita. Não só pelo fato de há pouco
tempo os folcloristas estarem se concentrando nesse elemento, focadamente, da
cantoria, mas por esta não ter-se ainda fixado no imaginário dos praticantes as formas
de como se devia levar a profissão. O momento era de construção de um campo de
atuação223.
Mesmo que, com um aparente exagero estatístico evidente na fala de Fernando
de Barros, este acrescenta:

220
Ibidem.
221
Segundo ALMEIDA; SOBRINHO, 1984. p. 227. ao citar os poetas que não usavam da viola, ou seja,
não praticam a cantoria, afirma que, “Ora, Athayde escrevia, glosava, mas não cantava”.
222
Diario de Pernambuco, 19 abr. 1936. Acervo BN.
223
Como discutido na introdução, Bourdier propões uma jogo de articulações dentro dos praticantes
culturais. Para ele: “O campo, no seu conjunto, define-se como um sistema de desvio de níveis diferentes
e nada, nem nas instituições ou nos agentes, nem nos actos ou nos discursos que eles produzem, têm
sentido senão relacionalmente, por meio do jogo das oposições e das distinções.” BOURDIEU, 2003.
p. 179
90

[...] Há poucos mezes alguem lembrou um inquérito para apurar qual o


escritor de maior numero de fans. Opinou-se por Castro Alves.
No emtanto, parece que os trovadores, muito bem qualificados de populares,
são mais lidos e mais decorados pela memoria do vulgo que no Brasil fórma
com mais de 50%.
Os cantadores, na verdade, escrevem para ser lidos é “de com força”.224

Ao exaltar que os cantadores escreviam para serem lidos “de com força” remete
a um aumento da prática de leitores de cordel, já que, como apontou Grillo
anteriormente, a maioria do público alvo eram de analfabetos. Logo, com a urbanização
dos cantadores e, consequentemente, cordelistas promovida pelos folcloristas a partir da
década de 1920, levou a aumento do número de leitores, podendo ser a parcela letrada
da população citadina225.
Mais a frente em seu texto, o jornalista falou da experiência do encontro com
um cantador que peregrinava pelas ruas e mercados do Recife.

Num desses dias desci de um bond no Pateo do Mercado para ouvir as trovas
recitadas a dois violões, por um cantador sertanejo.
O homem cantava as trovas, dando uma entonação na ultima palavra de cada
verso, o que me lembrou um padre cantando latim pelo missal.
Pouco mais e o cantador embrulhava os folhetos, os seus dois ajudantes
puzeram as violas nos sacos e “pegaram” o bond.
Subi no mesmo electrico e tratei de puxar conversa comprida com o homem,
que se fez logo camarada, como todos os sertanejos.
˗ Aquella sua entonação, quando lê...
Elle atalha, dando explicação:
˗ o verso é mais comprehensivel para todo o matuto e sertanejo. E essa
entonação é coisa de importancia. Enquanto eles entoam descançam. E como
eles não sabem ler muito direito “por cima” teem tempo de ir reparando “por
baixo” as palavras do verso seguinte.
O matuto só lê verso, porque é o que ele entende e aprecia. – Quando ouvi
isso, fiquei imaginando um jornal para sertanejos escripto em emboladas,
mortes, “a galope” e, para descrever um crime passional, um romance em
versos á la Zezinho e Mariquinha 226.

A entonação na última sílaba das palavras de cada linha é uma prática ainda hoje
utilizada pelos repentistas, como se o último vocábulo demorasse um pouco na garganta
do cantador. No entanto, não se pode confirmar que, como o poeta anônimo acima
afirmou, tal maneira de declamar (prática) tenha surgido e perpetuado como forma de
facilitar a leitura dos folhetos para os que tinham dificuldade, bem como, uma maneira

224
Ibidem.
225
Segundo Grillo houve no Brasil um aumento considerável de leitores de jornais, na virada do século
XIX. E ao longo das primeiras décadas do século XX o número de tipografias de folhetos cresce bastante
no Nordeste, refletindo um número crescente de leitores. GRILLO, 2015. passim.
226
Diario de Pernambuco, 19 abr. 1936. Acervo BN.
91

de descansar para prosseguir nas glosas. Outro fato que chama atenção é exatamente
sobre os ajudantes, que não é um privilégio somente dos poetas cegos, que auxiliavam
embrulhando as violas e os folhetos, tanto para leitura em declamações como para
venda.
“O matuto só lê verso, porque é o que ele entende e aprecia ”227. Tais palavras
fazem toda uma construção da importância dos folhetos e da cantoria no mundo
interiorano. O poeta itinerante dos sertões funciona como jornalista aos que viviam no
isolamento das fazendas e vilas levando as histórias das outras regiões, dos embates do
cangaço, etc. Assim, como aponta Ângela Grillo,

O folheto, nesse sentido, se transforma em jornal falado, pois, ao difundir o


fato, torna-se a informação do dia-a-dia, levando para vários recantos, até
onde não chegam os jornais e nem se ouvem rádios, os fatos ocorridos,
aproximando as pessoas. É possível perceber essa relação, jornal/cordel, pois
não raras vezes o próprio poeta alude ter ouvido ou lido no jornal a notícia
que passa a divulgar 228.

O tema dos poetas analfabetos é presente em toda a matéria com Athayde,


Fernando Barros ao perguntar a aquele se os cantadores estudavam, pois sempre
observou que os repentistas trabalham com as mais variadas temáticas como geografia,
história, mitologia, etc., obteve como resposta:

Há muitos que não sabem nem o A. Se querem publicar, ditam p’ra outra
pessoa escrever.
Os que sabem ler, leem algum livro – leitura muito diminuta e não se
preocupam com estudos, não. Eles dizem coisas assim, porque ouvem dizer e
o que bate na cabeça de um cantador deixe está que nunca mais sâe. Tem u’a
memoria mais forte que a pedra. E nos desafios nem teem tempo de pensar.
As trovas vão saindo tão depressa... Ah! Sâe todo pensamento dele e se vê
qual é o bonzinho229.

Fica evidente na fala de Athayde que a transmissão oral e as estratégias de


memorização dos poetas, neste momento, são mais importantes que a pesquisa em
livros. A preocupação nas pelejas pelo rigor da verdade não é o ponto principal, tanto
que alguns poetas ganharam fama exatamente por fazer versos centrados em histórias
absurdas, como Zé Limeira. Este reuniu em si um conjunto de poetas, ou seja, começou-
se a atribuir a Zé Limeira a autoria dos versos sem lógica, totalmente desconstruídos. O

227
Ibidem.
228
GRILLO, 2015. p. 79.
229
Diario de Pernambuco, 19 abr. 1936. Acervo BN.
92

poeta (ou o personagem criado dele) passou a apropriar as temáticas que recorriam na
primeira metade do século XX e a distorcê-las,

Nos desafios, fugia do assunto, deixando de estabelecer o diálogo. Perdia o


fio das respostas e prosseguia, desatento, distante, desarrazoado, sem ligar
para o companheiro. Fazia de conta que não ouvia a deixa 230.

Em um desafio, Zé Limeira levava ao desconcerto sua dupla ao declamar versos


como estes:

Napoleão era um
Bom capitão de navio:
Sofria de tosse braba
No tempo em que era sadio,
Foi poeta e demagogo,
Numa coivara de fogo
Morreu tremendo de frio.

Dom Pedro teve um enfarte,


Tomou um chá de jumento,
Vomitou, boto pra dentro,
Tomo goipa outra vez...

Quando Jesus veio ao mundo


Foi só pra faze justiça.
Com treze ano de idade
Discutiu com a doutoriça,
Com trinta ano depois
Sentô praça na puliça. 231

Athayde torna-se centro de reportagem novamente, em 1944, dessa vez em


matéria escrita por Paulo Pedroza pelo Diario de Pernambuco intitulada “Cangaceiros e
Valentões: um poeta popular conta sua história ao repórter”. Neste artigo, Pedroza faz
alerta para o que seria o fim do improviso em detrimento ao excesso de uso dos folhetos
por parte dos cantadores. Com um público agradável para os poetas do repente nos
mercados e praças do Recife, acaba por surgir violeiros que não faziam o repente
improvisando, e sim, apenas reproduzem poesias decoradas.
Esse tipo de conduta foi bastante utilizada pelos poetas do repente que surgiram
(ou ganham fama nacional) a partir da década de 1940. Como será visto mais adiante,
parte destes novos poetas estimulavam o improviso como forma absoluta da
caracterização do repentista profissional. Logo, uma crítica a leitura de folhetos em

230
TEJO, 1988. p. 28.
231
Ibidem.
93

excesso durante a prática cultural pode ser entendida como uma estratégia na construção
do campo do repentista profissional. Pedroza pontua no no texto do subtítulo “A
cantoria vai morrendo” na matéria para o Diario de Pernambuco:

Ataíde tem publicado numerosos desafios entre grandes cantadores como


Catingueira, Romano da Mãe Dágua, Bernardo Nogueira e outros mestres da
cantoria nordestina. Essas pelejas são imaginárias, devidas exclusivamente a
Ataíde. O autor utilizou-se desse processo apenas para chamar atenção do
povo e assim vender os seus folhetos. Mas com eles Ataíde revela-se um
poeta inteiramente identificado com o espírito da cantoria sertaneja, capaz de
se confundir com os próprios cantadores. Talvez por isso que seus folhetos
sejam tão estimados entre os que fazem vida de cantar, que os decoram e
declamam onde chegam. Sinal que o repente está desaparecendo. Os novos
cantadores não se encabulam de trazer os bolsos cheios de “livros” de Ataíde
e Leandro Gomes232.

O motivo dos cantadores andarem com folhetos e os declamar era também uma
exigência do público, como nos diz Átila Almeira e José Alves Sobrinho:

Há anos atrás até os bons repentistas eram obrigados a decorar romances


escritos pelos versistas porque, ao lado das cantorias, o público ouvinte
exigia a inclusão dessas peças no espetáculo. Hoje essa prática está em viés
de desaparecimento233.

Para os autores, as novelas de rádio e televisão contribuíram para queda dos


romances lidos. Já, a partir da década de 1940, esses “falsos poetas” eram motivo de
descontentamento entre aqueles que faziam da cantoria de improviso uma profissão. Em
outra oportunidade, comentando sobre essas estratégias de alguns cantadores que não
praticavam do improviso, difamando a imagem dos improvisadores, Dimas Batista234
declamou em martelo:

Basta um cabra não ter disposição


Pra viver de serviço de alugado,
Pega numa viola e bota ao lado,
Compra logo o romance do Pavão,
A peleja do Diabo e Riachão,
E a estória de Pedro Malazarte,
Sai, no mundo, a gabar-se em toda parte,
A berrar por vintém em meio de feira,

232
Diario de Pernambuco, 16 jan. 1944. Acervo BN.
233
ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p.12.
234
Como já citado, ganhou grande notoriedade nacional ao lado dos seus irmãos, “Irmãos Batista”. Fez
parte do grupo de poetas que circularam entre os primeiros congressos a partir da década de 1940, o que
contribuiu para o seu reconhecimento e popularidade.
94

Parasitas, assim, desta maneira,235

Hoje, é comum chamar os versos compostos previamente de balaio236. Três são


as possibilidades do uso de tal termo: o primeiro é exatamente quando tais versos são
inseridos em uma cantoria como se fossem de improviso. O segundo é quando os poetas
repetem, por excesso, determinada rima na mesma cantoria ou em diversas, tornando
um repertório clichê. Por fim, quando um cantador se apropria do verso alheio como se
fosse seu, ou seja, plágio237. Não pude obter ao certo se o termo já era usado no período
das matérias acima citadas, porém, tal ideia de cesto ou matulão carregados de versos,
pode ter sido criado para se referir aos poetas que andavam com os bolsos cheios de
folhetos e não somente a um “balaio” (bagagem imagética) de versos decorados.
Os cantadores, agora andarilhos do calçamento por entre os prédios, sobrados e
mocambos, trocam sua peregrinação a cavalo pelo bonde e as pequenas vilas pelos
bairros do Recife. Os mercados públicos representaram um grande atrativo para os
poetas, mas não somente neles buscavam sua renda. Eram verdadeiros animadores de
festas, tanto privadas quanto públicas. Nas vaquejadas na zona da mata pernambucana
sempre se encontravam os violeiros cantando versos, na capital era mais comum vê-los
em festas religiosas. Em reportagem de Fernandes de Barros, para o Diario de
Pernambuco, no qual cobria o encerramento da novena de Nossa Senhora da Conceição,
dedica um trecho para o que encontrou no pátio da festa. Entre as bandas e as barracas
de quitutes se apresentavam alguns cantadores de viola, destaca o repórter no subtítulo
“Desafio de Cantadores”.

Com um violão puxavam em sons saudosas canções tristes e ternas. Dois


repentistas iniciam o desafio.
Um círculo de pessoas fez-se immediatamente em volta.
Dois dos espectadores diziam:
- Aposto nesse!
- Aquele é madeira.
- Qué apostá?
- Dois mil réis meu contra um seu.
- Tá casado.
E o duelo prosseguiu.238

235
LINHARES; BATISTA, p. 329.
236
Também chamado de “trabalho”.
237
AYALA, 1988. pp. 117-118.
238
Diario de Pernambuco, 09 dez. 1936. Título da matéria: “Encerrou-se com brilhantismo a novena de
N. S. da Conceição”. Acervo BN.
95

O desafio dos cantadores era o que mais vendia sua arte. Apesar de outros
gêneros terem sidos criados como forma de dinamizar a cantoria de viola, os desafios e
pelejas ainda continuavam a ser mais atrativo entre o público, logo, é em competições
como esta que se vê o embrião dos futuros torneios de cantadores, como será visto no
próximo capítulo. Ademais, há muito se faz presente algum tipo de premiação aos
cantadores que venciam os desafios. Em 1931, houve uma exposição de produtos
variados no Colégio Salesiano. Na ocasião, foram colocados stands onde os expositores
mostraram seus produtos. Parte do evento constituiu em ser dedicado a festividades,
dentre elas, uma competição de cantadores. Assim constava:

[...] Está destinado a ruidoso sucesso o sensacional Concurso de Cantadores


Regionais, patrocinado por um matutino desta cidade. Reunir-se-ão em
desafio as mais afamadas gargantas do Recife e do interior, havendo
medalhas de ouro para os vencedores. [...]239

As duplas fixas ainda eram raras de se encontrar, os poetas enveredavam pelos


bairros sozinhos. Barros, ainda se referindo a festa religiosa citada anteriormente,
chamou atenção em seu texto sobre um repentista que se apresentava desacompanhado,
em “cantando a própria vida”:

Um cantador, sosinho, sem ter admiradores, cantava qualquer coisa tão baixo
que a voz se enrolava com o vibrar do violão.
Aproximámo-nos delle e entendemos:
- O pobre trabalhadô
Tem três horas de alegria
Quando almoça e quando janta
Quando arrecebe a “mumbia”
Quando vae chegando a tarde
Que vae se vencendo o dia. 240

Barros continuou: “cantam versos sem saber que cantam a propria vida”241. O
cantador já cansado da lida diária, ˗ as festividades estavam no fim visto que o jornalista
afirma que estava anoitecendo ˗, triste por estar sem um público foi, para o repórter, um
simples transmissor dos versos, anônimo e sem personalidade nas poesias.
No entanto, ao contrário desta fala, os poetas, em especial cantadores e
cordelistas transmitem seus sentimentos e mágoas também nos versos. No momento de

239
Idem., 01 dez. 1931. Título da matéria: “Grande Exposição de Produtos”. Acervo BN.
240
Idem., 09 dez. 1936. Título da matéria: “Encerrou-se com brilhantismo a novena de N. S. da
Conceição”. Acervo BN.
241
Ibidem.
96

produção, os autores exprimem suas individualidades, principalmente nas poesias. O


poeta seria o que Dimas Batista declamou:

Alguém já me perguntou:
O que são mesmo os poetas?
Eu respondi: são crianças
Dessas rebeldes, inquietas,
Que juntam as dores do mundo
242
Às suas dores secretas.

Os cantadores de coco-de-improviso (emboladores), ainda que poucos vistos, a


partir da década de 1930 estavam presentes, como registrado na festa da Novena de
Santo Amaro de Salinas, no bairro de Santo Amaro, no Recife. Com o subtítulo:
“Sempre os cantadores”; um jornalista não identificado iniciou a seção explicando o
subtítulo, “Em festas como essas, não faltam os cantadores para entreter o povo” 243.
Após a descrição da apresentação, onde o homem declamava quadras e a criança
respondia “eu vi” antes do poeta encerrar o verso, o repórter decidiu interromper para
perguntar ao poeta o significado de “zinebra”, neste trecho:

Eu me chamo Zé Vicente
Zinebra, mercado quente
Do territoria legá...244

O poeta respondeu: “Seu moço, esses nomes todos que eu disse: ‘Zinebra,
mercado quente’, é de verso...”, denotando a apropriação dos versos, provavelmente de
folhetos ou de outros cantadores. O público começou a sair do entorno do cantador
devido aos gritos dos vendedores da barraca de prenda e, ao ver o público saindo, o
cantador protestou em verso se referindo aos que o atrapalharam como sendo urtigas e
formigas:

Eu nasci de madrugada
Eu trouxe uma mão fechada
Era o signal do ganzá

Gallo só canta bravura


Gaveta, gancho, gordura,
Godo, gude, mego e mar...

242
AMÂNCIO, Geraldo; PEREIRA, Wanderley. Gênios da Cantoria. [s.n.]. Fortaleza, 2004. p. 26.
243
Diario de Pernambuco, 09 dez. 1936. Acervo BN.
244
Idem, 19 jan.1937. Título da matéria: “Encerrou-se a novena de Santo Amaro das Salinas”. Acervo
BN.
97

Não há nada mais má do que a urtiga


Na terra que tem formiga
Ninguem póde trabaiá...245

A vida dos poetas ambulantes pelas ruas do Recife estava, assim como outras
atividades, sujeita a violência. Passar o dia entre mercados ou festas para, então, voltar
para casa no subúrbio já a noite, poderia os tornar alvo de algum tipo de agressão, desde
um assalto ou algum motivo carregado de estigma, como o “ser matuto” ou o “ser
cego”, ou seja, uma gama de significações e estereótipos aos marginalizados. Os
interioranos que vieram tentar a vida em Recife em muitos casos tornaram-se
ambulantes ou desenvolveram atividades vistas como inferiores comparadas com
outras. O cego carregava o rótulo de pedinte: os cegos de porta de igreja, por exemplo.
Os cantadores, comumente eram chamados de mendigos, como diz matéria do
Diario de Pernambuco de 1933, onde, “certamente que temos em Recife o tipo de
mendigo profissional [...]. Possuímos os cantadores de rua, estereotipados, mendigos de
igreja e exploradores de crianças [...]”246. Para o jornalista anônimo, o Estado deveria
tomar medidas de amparo para que a mendicância tivesse fim. Não são muitos os relatos
de agressões aos poetas, mas dois posso destacar.
O Diario de Pernambuco publicou, em 1936, uma matéria sobre um cantador
que foi agredido juntamente com sua dupla na Rua Augusta 247, em Recife. Com o título:
“O trovador Antonio Silvino sofreu aggressão: invadiu o lar alheio para espancar a
victima”248. A matéria explica que o poeta Antonio Silvino, vulgo “Bahiano”, estava
caminhando junto com seu parceiro, Severino Cirillo de Lima, e “foi apupado por um
grupo de rapazes e logo depois alvo de insultos e doestos”249. Em seguida, os cantadores
correram em direção a Rua São João, mas foram alcançados pelos rapazes que
continuaram a espanca-los até que Bahiano conseguiu entrar em uma casa para se
abrigar. No entanto, um dos agressores invadiu a residência para continuar com a

245
Ibidem.
246
Diario de Pernambuco, 26 set. 1933. Acervo BN. Título da matéria: “O problema moral e jurídico da
esmola”. Refere-se ao estudo de Louis Paulian “Paris qui Mendie” sobre os mendigos de Paris, pelo qual,
identificou o que chamou de verdadeiro e falso mendigo, através de uma pesquisa de campo, onde fingia
ser um mendigo, na virada para o século XX.
247
Hoje, uma das ruas que deu origem a Av. Dantas Barreto; na mesma rua ficava a já demolida Igreja
dos Martírios, também demolida para a abertura da referida avenida.
248
Diario de Pernambuco, 13 mar. 1936. Acervo BN. Não confundir o repentista Antônio Silvino com o
famoso cangaceiro de mesmo nome.
249
Ibidem.
98

violência, até que desistiram e foram embora antes que a polícia chegasse, deixando o
poeta muito ferido no chão.
Outro caso, que foi registrado por estudiosos e folcloristas, se refere ao poeta
cego Cesário José de Pontes250. O poeta Cego Cesário, como era conhecido, nasceu em
Patos-PB, em 1875, vindo a falecer em 1947. Perdeu a visão ainda cedo, aos sete anos, e
era famoso por suas estrofes irônicas e um humor crítico. José Sobrinho e Átila
Almeida251 observam que muitos cegos decoravam versos para simplesmente chamar
atenção na rua e ganhar dinheiro, no entanto, para eles, o fato de Cego Cesário ser um
improvisador garantia não ser considerado pedinte por entre os praticantes do
improviso. Coutinho Filho252 assim descreveu o que teria ocorrido com o poeta Cego
Cesário:

Na caçada a pedintes pelas ruas do Recife, anos atrás, a polícia foi ao


extremo de prender o cego Cesário José de Pontes, conhecido profissional da
viola que, tocando e cantando, ganhando a vida honestamente, e não podia se
considerado mendigo. Ele não pedia a transeuntes, nem implorava de porta
em porta. Recebia a paga de quem ia ouvi-lo, cantando só ou companhia de
outros violeiros, fosse atentando a chamados de admiradores, fosse em
auditórios improvisados nas feiras 253.

Ainda segundo Coutinho Filho, o incidente foi resolvido somente no dia


seguinte com a intervenção junto a polícia por amigos do poeta, onde convencendo a
guarda que o mesmo não era um pedinte. Em seguida, ainda no dia da soltura, Cego
Cesário participou de uma cantoria na Feira da Encruzilhada, região do subúrbio
recifense. Coutinho afirma que, na pausa entre uma estrofe e outra, na ocasião, passou
um cortejo fúnebre de um policial que havia sido assassinado na Estrada do Fundão. O
poeta cego, que sempre fazia seus versos com humor, aproveitou para declamar uma
sextilha sobre os abusos policiais que sofrera no dia anterior:

250
As fontes fornecidas por COUTINHO FILHO, 1972., bem como por Luís WILSON, 1986. não
puderam ser confirmadas, pois, nada foi encontrado sobre a prisão do poeta Cesário. Já em ALMEIDA;
SOBRINHO, 1978. o poeta é dito como não sendo pedinte. Por outro lado, LINHARES; BATISTA,
2013. há o registro de uma estrofe do poeta Cesário se declarando pedinte.
251
ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. passim.
252
Francisco Coutinho Filho (1891-1975). O paraibano Coutinho Filho recolheu informações bastante
substanciais sobre os poetas que ganharam fama a partir da década de 1940, os que aqui são chamados da
Geração Moderna de Cantadores, tema discutido nos Capítulos 3 e 4.
253
COUTINHO FILHO, 1972. p. 168.
99

Passei, ontem, toda noite,


Preso, num quarto trancado;
Mas, agora, ouço dizer
Que aí vai morto um soldado!
Se for dos que pegam cego,
Eu, desse, estou descansado!254

Em outra ocasião, em 1930 no Recife255, o poeta estava em uma cantoria e, em


dado momento, alguns policiais legalistas chegam e começam a assistir a declamação de
versos. Em dado momento, Cesário começou uma estrofe elogiando os policiais:

Eu vou chamar, com respeito,


Os soldados valorosos!256

O guia, que também era seu filho, neste momento, o interrompeu dizendo que os
militares haviam saído. De imediato, com sua ironia característica, continuou o verso
que havia começado.

Os militares correram...
Meu Deus, que homens nervosos:
Correm com medo de um cego,
Quanto mais dos revoltosos!257

O medo de ser preso por pedir esmolas assolou a vida do poeta Cesário. Em
outro momento, ainda no Recife, um policial tentara levá-lo preso acusando-o de
pedinte. Ao ver o filho, seu guia, em desespero, faz um verso para tentar convencer os
policiais de livrar a criança.

Desculpe, seu delegado;


Isso é causa que sucede!
Com relação à pobreza,
A minha casa é a sede,
Eu sou cego e ando pedindo,
Porém meu filho não pede!258

O cantador repentista até a década de 1940 não fez dos palcos dos teatros um
local de apresentação. Percorreu as feiras e festas populares pelas ruas do Recife a

254
Ibidem.
255
LINHARES; BATISTA, 2013 p. 108.
256
Ibidem.
257
Ibidem. p. 109.
258
Ibidem.
100

procura de ouvintes para as glosas, por muitas vezes padecem por serem tachados de
mendigos, ou até mesmo sofrendo agressões. No entanto, os cantadores ganharam fama
pelas mãos dos cordelistas e esses foram, também, responsáveis por mostrar nas capas
de suas obras as mudanças na dinâmica da cantoria de viola.

2.3 No tabuleiro do mercado: representação dos desafios nos folhetos

Até o surgimento dos congressos, os folhetos desempenharam um importante


papel entre os cantadores. Comumente andando com um no bolso nas cantorias tanto
em Recife quanto no interior do estado havia, normalmente, um momento de leitura e
vendas dos folhetos, no qual, os cantadores comercializavam os que produziam ou
revendiam de terceiros. Tal prática começou a cair em desuso com o incentivo, por parte
de uma gama de poetas que surgem a partir dos anos de 1930, e ganhou força com a
chegada dos anos 1940, com o desencadear dos congressos. Esse abandono foi devido,
em grande parte, ao incentivo à poesia improvisada como marca fundamental de uma
possível profissão de repentista. Com isso, decorar histórias dos folhetos passou a ser
visto como atitude de cantador de segunda categoria; para alguns poetas era considerado
até trapaça.
Durante a pesquisa, alguns folhetos, em especial os que se referiam as pelejas,
chamaram atenção devido à variação das representações nas capas. O trabalho ficou
concentrado em João Martins de Athayde devido a sua produção e respaldo entre os
compradores das histórias no corte temporal aqui proposto para a pesquisa. Após
adquirir os direitos de uso do material de Leandro Gomes de Barros, Athayde passou a
ser um dos principais produtores de folhetos de Pernambuco e de estados vizinhos. Com
isso, pude observar nas obras a variação da representação dos cantadores.
101

Fig. 6

Fonte: Peleja de Ulysses Bahiano com José do Braço, 1940259. Acervo FCRB.

Na imagem acima, nota-se que a peleja está representada em meio a um


ambiente de simplicidade, possivelmente rural, onde veem-se os cantadores com trajes
surrados e sentados em uma pedra e um tronco de árvore. A plateia também acompanha
a mudança de representação pois, na capa acima são pontuados de forma a mostrar um
ambiente humilde. A temática abordada neste folheto praticamente estabeleceu um
conflito estadual, pois, o poeta Ulysses Bahiano260 tenta vangloriar o estado da Bahia
enquanto José do Braço261 satiriza o adversário pelos exageros na tal tentativa.

U: Eu vim porque desejava


Envestido peito a peito
Me disseram que o senhor
É um cantador direito
Eu vim fazer-lhe um trabalho,
Que o povo diga: é bem feito.

J: Esse povo na Baía.


Pensa menos que a creança,
Pensa que o céo fica perto,
Que com uma vara se alcança,
Entre como um leão bravio,
Sai como uma ovelha mança.
[...]
U: Há ferreiros na Baía
Que derretem diamante,
Eu em casa tenho gato

259
Observa-se neste folheto e nos outros que a data de publicação não indica propriamente a primeira vez
que foi publicado com tal representação na capa, mas sim o ano que este folheto foi publicado, podendo
ter a capa sido reutilizada em outras oportunidades.
260
Sabe-se que o cantador faleceu antes de 1930.
261
Em ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p. 94. aparece somente a informação de que o poeta ainda estava
vivo em 1935 e residindo em Currais Novos-RN.
102

Que pega até elefante,


Meu filho tem sete mêses,
Mas já tem dado em gigante.

J: São Bento! Que terra é essa?!


Que produção fabulosa!
Que tamanho de gato é esse?
Oh que creança forçosa!
O colega enfeita bem
Uma historia mentirosa.

U:Baía é duas mil vezes


Melhor que o Brasil inteiro,
E nela foi que aportou,
O primeiro barco estrangeiro,
E foi quem primeiro teve,
O pavilhão brasileiro 262.

Em um segundo momento, a atração do folheto é exatamente com relação ao


ambiente que a população de baixa renda interiorana viveu quando chegou ao Recife.
Veem-se as palavras utilizadas em José do Braço após a explanação final de Ulysses.

[...]
J: Colega gostei de vêr
Seu sítio mistificado,
Eu tambem tenho mucambo
Em chão proprio edificado,
Dê-me licença a dizer
Onde mora seu criado

No Rio Grande do Sul,


Lá está nossa cabana,
Lá perguntando onde é
A Veneza Americana.
Tudo ensina nossa casa
Pessôa alguma se engana.

Eis aí caro colega


Nosso mucambo é assim,
Só nas mil e uma noites
O palacio de Aladim,
Se o colega me aguentar
Eu inda descrevo o fim. 263

A fala de José do Braço reflete a tentativa de construir um retrato imaginário do


mocambo onde viveu. Assim como outros tantos folhetos, não se sabe a veracidade do
fato, ou seja, se realmente as palavras eram dos poetas representados ou se foi de
Athayde construindo uma peleja imaginária dos cantadores. Porém, percebe-se que o

262
Peleja de Ulysses Bahiano com José do Braço. Acervo FCRB. Ano de publicação deste folheto: 1940.
263
Ibidem.
103

uso do mocambo como moradia reflete uma realidade comum no dia-a-dia destes, ou até
mesmo dos leitores, sendo este um artifício que o cordelista utiliza para tenta atrair o
leitor para os seus folhetos buscando retratar de alguma forma a realidade local. Em
seguida, vê-se outro folheto de Athayde com uma construção da representação da peleja
um pouco parecida com a vista anteriormente.

Fig. 7

Fonte: A peleja de Ventania com Pedra Azul, 1940. Acervo FCRB.

Veem-se os poetas Ventania264 e Pedra Azul265 ilustrados em um ambiente rural.


Ao fundo, aparentemente, uma bodega e personagens com chapéu de palha. A peleja
seguiu os moldes daquela ocorrida entre Ulysses Bahiano com José do Braço onde os
poetas ficam difamando a região um do outro. Porém, em determinado momento
observa-se:

V: Isto ninguém acredita


Eu digo e quero provar.
Serrador deu-te uma surra
Você não pode negar
Um cantor da sua marca
Acostumou-se apanhar

P: Eu sou culpado de tudo


Porque tambem não sabia
Que vinha para um salão
Da alta aristocracia
Ouvir um analfabeto

264
Manoel da Luz Ventania, única informação encontrada, tanto nos primeiros versos do folheto, quanto
em ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p. 309, é que residia na cidade de Bananeiras-PB.
265
João Pedra Azul, poeta nascido em Belo Jardim-PE. Sobre ele, o cordelista Athayde tem uma especial
atenção devido ao fato de ter sido Pedra Azul a primeira vez que viu um cantador. GRILLO, 2015. p. 60.
104

Mostrar sabedoria. 266

Duas temáticas aparecem neste trecho: em primeiro lugar, o poeta Pedra Azul se
remete a um ambiente aristocrático, provavelmente uma tentativa do autor do folheto
em representar os repentistas em um local urbanizado. Em seguida, na mesma estrofe,
Pedra Azul provoca o seu adversário o tarjando de analfabeto, denotando o letramento
como uma vantagem na construção do saber do poeta repentista. Os cantadores
continuam:

[...]
V: A gramatica é cinecia
Da remota antiguidade
Por ser a chave da língua
Mostra com realidade
A origem da palavra.
E sua propriedade.

P: Dizer assim não é nada


Qualquer um pode cantar,
Porem é para os cantores
Que gostam de decorar
Eu quero ver seu talento
Na forma de analisar.
[...]267

As palavras do poeta Ventania remetem a importância que os repentistas dão ao


conhecimento científico como forma de tentar vencer o oponente no debate sobre
conhecimentos variados. Depois, Pedra Azul retomou uma característica que passou a
ser criticada a partir dos anos de 1940: os repentistas improvisadores procuram
exatamente no “improvisar” uma forma de caracterizar o ofício do cantador de viola, ou
seja, negando os poetas que decoravam versos.
Prosseguindo, à medida que os cantadores começaram a fixar-se cada vez mais
nas grandes cidades e, portanto, adotar novas vestimentas para o público, vê-se:

266
Peleja de Ventania com Pedra Azul. Acervo FCRB. Ano de publicação deste folheto: 1940. João
Faustino, conhecido como Serrador. Faleceu em 1924, na cidade de Maranacanaú-PE.
267
Ibidem.
105

Fig. 8

Fonte: Peleja de Laurindo Gato com Marcolino Cobra Verde, 1941. Acervo FCRB

Na capa do folheto nota-se representados, com trajes diferentes dos anteriores


aqui expostos, tanto dos poetas como a plateia. Observa-se que as sombras ao fundo
denotando um público maior. Também é possível ver os cantadores Laurindo Gato268 e
Marcolino Cobra Verde269 usando paletó e, aparentemente, sapatos sociais e sem o
chapéu de palha. Percebe-se também a representação da cantoria aos moldes clássicos,
ou seja, ao que parece em uma residência ou festa privada, normalmente de autoridades
locais. Assim o narrador inicia:

Na Paraíba do Norte
Entre o Crato e Batalhão,
Morava Laurindo Gato
Cantador de profissão
Foi ele o melhor poeta
Que andou no alto sertão.

Quando afinava a viola


Para tocar um baiano 270,
Seu repente era seguro
No martelo era tirano,
Nunca foi repreendido
Nem siquer por um engano.271

268
Poeta falecido antes de 1930.
269
Poeta cearense falecido antes da década de 1930.
270
Provavelmente se referindo ao estilo “Coqueiro da Bahia”, no qual, o verso é organizado pela forma
ABBCCDDC e finalizado com o refrão: Coqueiro da Bahia / Quero ver meu bem agora” e em seguida
uma estrofe, onde, ambos afirmam “Quer ir mais eu vamos / Que ir vamos embora / Coqueiro da Bahia /
Quero ver meu bem agora”. Cf. ERNESTO FILHO, 2013. p. 117.
271
Peleja de Laurindo Gato com Marcolino Cobra Verde, Acervo FCRB. Publicado em 1941.
106

Além da representação dos poetas em um ambiente citadino, o autor do folheto


procurou expor nos versos que a cantoria também estava mudando. Neste momento, há
a necessidade de por o cantador como profissional, aquele que somente vive do repente.
Em seguida, o estilo martelo foi apresentado como uma vantagem de denominação,
demonstrando uma usualidade deste gênero. Há ainda a tentativa de mostrar os poetas
do fim do século XIX ao modo dos cantadores “urbanizados”.

Fig. 9

Título: Peleja de Patricio 272 com Inacio da Catingueira, 1954. Fonte: Acervo FCRB

Neste folheto273, publicado em 1954, se vê a representação dos poetas com trajes


comuns do ano da publicação: gravata e chapéu de massa (repentista da esquerda). Tal
artifício poderia retratar a necessidade de demonstrar ao público como os cantadores
estavam se vestindo. Logo, comparado com a primeira capa exposta acima (Figura 6),
os repentistas estão inseridos em um novo espaço, com outras práticas.
Por fim, os cantadores sendo representados como nos moldes dos congressos, ou
seja, em grandes palcos, com o público abaixo deles.

272
José Patrício Ferreira de Siqueira Patriota. Assim como o poeta Pirauá, foi discípulo de Romano do
Teixeira. Consta que cantou até por volta de 1920.
273
Nota-se que neste folheto os direitos autorais de Athayde foram passados a José Bernardo da Silva.
107

Fig. 10

Fonte: Peleja do Cego Aderaldo 274 com Zé Pretinho275, 1973. Acervo FCRB.

Na ilustração, os repentistas estão posicionados em um palco e o publico,


diferentemente das Figuras 6 e 7, estão trajados a rigor, demonstrando uma mudança na
também da plateia, um público do litoral, dos grandes centros, com a aristocracia local
fazendo parte. Ao contrário do conteúdo do folheto, Cego Aderaldo costumava usar
uma rabeca:

Ele tirou a viola


Dum saco nôvo de chita
E cuja a viola estava
Tôda enfeitada de fita
Ouvi as moças dizendo:
Grande viola bonita!

Então para me sentar


Botaram um pobre caixão
Já velho desmantelado
Desses que vêm com sabão
Eu sentei, êle envergou
E me deu um beliscão

274
Aderaldo Ferreira de Araújo, nascido no Crato-CE, em 1882. Ganhou grande notoriedade com as
publicações de Leonardo Mota. Cantou por toda sua vida e, como consta no Capítulo 4, saiu vitorioso ao
lado de Otacílio Batista no congresso de cantadores promovido, em Fortaleza, pelo repórter e poeta
Rogaciano Leite. Veio a falecer em 1967.
275
Há vários registros de cantores com este nome, porém, segundo ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p.
62., o poeta representado neste folheto é fictício e foi criado pelo cunhado de Cego Aderaldo, o piauiense
Firmino Teixeira Amaral.
108

Eu tirei a rabequinha
Dum pobre saco de meia
Um pouco desconfiado
Por estar em terra alheia
Ouvi as moças dizendo:
Meu deus, que rabeca feia!276

Com isso, nota-se que a cantoria de viola ao longo da primeira metade do século
XX foi adquirindo novas práticas. Estas, refletidas nas representações dos cantadores
nos folhetos e nas palavras dos folcloristas. Ora estão trajados com trapos, ora trajados
com paletó, debatendo sobre o outro ser analfabeto ou que entende das ciências. Por
vezes, os poetas começam a ser retratados criticando os que decoram os versos e os que
usam instrumentos velhos em desuso, como a rabeca.
O cantador de viola passa, então, aos poucos a ser encarado como símbolo de
uma identidade nordestina e, começa a utilizar novas práticas a partir da apropriação da
cantoria de viola, tais como: aumento da quantidade de gêneros nos eventos; forma de
se trajar nos palcos; tornar a linguagem usada nas improvisações mais acessíveis as
mais diferentes parcelas da sociedade; começar a usar duplas fixas. Surgem os grandes
torneios nos teatros (congressos). O repentista do torneio deveria ser diferente do
cantador de rua ambulante e dos representados em alguns livros de folcloristas.
Os novos cantadores que iram para os teatros eram diferentes e, para tal,
aderiram a moda citadina (travestiram-se de poder): usar o linho e a gravata, abandonar
o chapéu de palha ou couro. Passaram a trabalhar o vocabulário para agradar, não
somente os populares e conterrâneos das cidades do interior, mas também, a elite do
litoral frequentadora de teatro a aberta as novas propostas ideológicas do movimento
folclórico277. A cantoria de viola toma novas dinâmicas nas mãos dos improvisadores da
rima que começam a ganhar fama a partir da década de 1940, através dos organizadores
de cantorias em teatros, como será visto a seguir, na figura de Ariano Suassuna e, mais
adiante, com Rogaciano Leite – organizador do I Congresso de Cantadores do Nordeste.

276
Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho. Acervo FCRB, publicado em 1973.
277
O mesmo pode ser observado no caso dos sambistas que começaram a ser encarados como símbolo de
uma nacionalidade à medida que “desciam” os morros do Rio de Janeiro começaram a se adaptar aos
palcos que lhes eram entregues para apresentações. Cf. VIANNA, Hermano. O mistério do samba.
Zahar, 1995.
109

CAPÍTULO 3
ARIANO SUASSUNA E A GERAÇÃO MODERNA DE
CANTADORES

“Louro e Pinto deixaram seu talento


Estampados em repentes imortais,
A grandeza de Dimas e outros mais
Não se pode arquivar no esquecimento.
É preciso salvar o monumento
Do mais puro repente nordestino
E jamais cometer o desatino
De fechar as cortinas da memória,
Pra deixar desprezada e sem história
A viola do povo nordestino.”
Lucas de Barros

A década de 1940 levou a cantoria de viola a uma nova forma, uma releitura das
antigas pelejas e desafios. Agora os holofotes estavam ligados para os poetas do repente
nos palcos de teatros. Surgiu uma gama de cantadores para introduzir essa diferente
estratégia de atuação dos repentistas, a Geração Moderna de Cantadores, que tem como
características básicas: estímulo à improvisação como característica do profissional do
repente; maior diálogo entre a literatura erudita e a popular, consequentemente um
letramento mais acentuado nos repentistas; início do contato com o rádio e os jornais
impresso, os repentista-jornalistas; e, conforme dito, o surgimento dos torneios de
cantadores. Poetas são estimulados a produzir versos mais articulados, abertos para as
mais diversas temáticas que os novos públicos do litoral iriam exigir.
A viagem que os repentistas deram das feiras aos teatros não foi rápida, menos
ainda fácil. Ariano Suassuna ao propor, em 1946, uma cantoria no Teatro Santa Isabel
(Recife-PE) desencadeou um novo rumo aos poetas que o mesmo chamou de “Escola
‘Moderna’ de Cantadores”. Inspirado em seu pai, Ariano abriu uma nova discussão com
os administradores do teatro para mostrar as improvisações dos cantadores sertanejos,
ressignificando o espaço, transformando-o em uma cantoria sertaneja. Com a chegada
aos grandes palcos, os cantadores promoveram uma mudança nas antigas pelejas de pé-
de-parede, relendo seus modus operandi dentro da sua prática cultura, ou seja, recriando
110

através de apropriações e representações nos congressos, assim chamados os torneios de


repentistas.

3.1 Ariano Suassuna e a primeira cantoria “oficial” do Recife

A chegada dos poetas aos teatros não se deu de forma repentina, houve um
processo até a organização dos torneios nos palcos teatrais. O advento dos cantadores
em grandes salões, sedes de governos, etc. dependeu de uma espécie de organizador.
Organizador não no sentido de patrocinar ou pagar para os cantadores irem (como os
mecenas renascentistas), mas no sentido de incentivar e fazer a propaganda do evento.
O registro mais antigo sobre a atuação dos músicos da rima improvisada em
Pernambuco está intimamente ligado aos eventos de 1946 e 1948, no Teatro Santa
Isabel. Uma leva de cantadores apresentou-se no Palácio da Redenção, sede do governo
paraibano, graças ao apoio do Presidente do Estado, João Suassuna (1886-1930), na
década de 1920. Ariano, filho do então Presidente da Paraíba sob influência da atitude
do pai decide mostrar os violeiros para um público diversificado em meados dos anos
1940.
O relato pessoal foi dado por Ariano Suassuna, em matéria que este sempre
fornecia para o Jornal da Semana, entre dezembro de 1972 e junho de 1974. O meio de
comunicação foi um semanário recifense de pouca tiragem e baixo custo que abriu
espaço para uma coluna chamada "Almanaque Armorial do Nordeste" redigida por
Ariano. Os seus relatos nesta coluna, mais tarde deram origem ao volume O Movimento
Armorial, publicado pela editora da UFPE em 1974278. Ainda no cabeçalho, logo abaixo
de uma xilogravura, que sempre vinha na coluna, havia:

Contendo idéias, enigmas, informações, comentários e a narração de causos


acontecidos ou inventados, contados em prosa e em verso, num "Livro Negro
do Cotidiano", pelo bacharel em Filosofia e licenciado em Artes [após um
longo espaçamento] Ariano Suassuna 279.

278
JÚNIOR, Carlos Newton. Prefácio. In: SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2008. p. 9.
279
Jornal da Semana, 21-27 jan. 1973. Acervo pessoal do Prof. Dr. Carlos Newton Júnior (UFPE).
111

Antes de prosseguir com o contato de Ariano Suassuna e sua experiência de


levar cantadores para os palcos dos teatros, é necessário dissertar sobre a importância
desse escritor para a cultura popular nordestina. Mesmo que o Movimento Armorial
tenha ganhado o cenário nacional somente após os eventos aqui trabalhados, é relevante
elucidar o momento em que Ariano produziu artigos para o Jornal da Semana, ou seja,
apenas dois anos após o Movimento Armorial ter sido oficialmente lançado.
Encabeçado por Ariano Suassuna, o Movimento tinha como objetivo primordial
realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares, como forma de
valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro. Tinha como principais meios de
atuação: pintura, música, literatura, cerâmica, dança, escultura, tapeçaria, arquitetura,
teatro, gravura e cinema. Foi lançado oficialmente em 1970, com a realização de um
concerto e uma exposição de artes plásticas no Pátio de São Pedro, em Recife. Dão uma
atenção especial aos folhetos, por acreditar que neles estão contidos o espírito do povo
nordestino.
A rigor, o Movimento Armorial se propôs a criar, a partir da cultura popular,
elementos artísticos com estética erudita. Para tal fim, houve apropriações do
cancioneiro popular em representações nas mais diversas áreas artísticas, como já
dito.280 Com isso, verifica-se que o pensamento de Ariano estava inserido dentro do
regionalismo sob duas óticas. A primeira, uma posição particular, “uma atitude de vida,
e que tem, como decorrência, entre outras coisas, uma posição artística”281. A segunda
se refere a um movimento de indivíduos que foi desencadeado desde Freyre e o
Congresso Regionalista de 1926. Esta última está ligada ao momento que o país vivia de
abertura para a Indústria Cultural, “milagre econômico” e a entrada excessiva de
produtos da cultura pop internacional. Nesse contexto, segundo Ariano: “estamos a
caminho de nos tornar uma América de segunda ordem, no que se refere à vida de
família e aos valores de cultura mais importantes”282.

280
O Prof. Dr. Carlos Newton Júnior (UFRPE) dedicou grande parte de sua vida ao estudo do Movimento
Armorial, em sua obra O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna (inicialmente para
dissertação de mestrado) há um longo estudo sobre os pressupostos do Movimento Armorial, bem como
análises das obras de Ariano e suas ligações com o Movimento. Destaque para a O Romance d’A Pedra
do Reino, de 1971, obra que expõe a conjectura de ideias do Movimento. Cf. JÚNIOR, Carlos Newton. O
pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna. Editora Universitária UFPE, 1999.
281
SUASSUNA, 2008. p. 44. Texto escrito por Ariano Suassuna, em 1962, intitulado “Teatro, região e
tradição”.
282
Ibidem. p. 60.
112

Quais as referências que Ariano teve para seus trabalhos? Uma resposta extensa,
como o próprio afirmou, “mas isso tudo é um capítulo muito grande de que, a rigor,
deveria incluir nomes de poetas populares, como Leandro Gomes de Barros, de
pesquisadores modestos e limitados, como Leonardo Mota, [...]” 283. E esse tipo de
literatura estava presente na sua vida desde criança.
Ariano Vilar Suassuna nasceu, em 1927, na atual João Pessoa-PB. Apesar de ter
nascido na capital do Estado, teve boa parte de sua vida ligada ao sertão, principalmente
após o seu pai deixar de ser o Presidente do Estado da Paraíba; residiu principalmente
em Souza-PB e Taperoá-PB. O sertão paraibano influenciou as obras de Ariano
Suassuna, desde textos para jornal até peças de teatros e romances. Muito de seu
pensamento veio de seu pai, João Suassuna, e seu apreço pelos poetas populares. Daí
vem seu contato com Leonardo Mota, onde,

Devo acentuar o fato de ser filho de família sertaneja, criado em fazendas e


numa pequena cidade do sertão paraibano. O acaso também desempenha um
papel importante em nossa formação: meu pai gostava muito de literatura
popular nordestina. Leonardo Mota era seu hóspede, de vez em quando, e
ouviam juntos os cantadores que o cearense levava a nossa casa, com seus
livros e cantigas anotadas. Mal aprendi a ler, descobri esse material e decorei
alguns romances, autos e moralidades que ainda hoje são temas obsessionais
em teatro.284

O próprio Leota relembra de sua relação com João Suassuna nos encontros
durante suas viagens pelo Sertão. Das conversas com o então Presidente da Paraíba,
Mota recolheu diversas anotações, algumas das quais, confrontou com outros escritos
para testar veracidade de autoria. Sobre João Suassuna, escreveu, em 1928:

Sua Excelência, o Sr. Dr. João Suassuna, jovem, bravo, ilustre Presidente da
Paraíba e estadista que se orgulha de ser filho do sertão, é emérito
conhecedor de episódios da vida dos cantadores nordestinos. Vezes muitas, o
distintíssimo democrata me honrou com sua fascinante conversação,
ministrando-me preciosos informes acerca de vários menestréis plebeus. Pena
é que se não decida a compendiar em livro, que seria de alto valor, o muito
que sabe a respeito do folclore do Nordeste.285

Em uma edição do Jornal da Semana, Ariano escreveu um causo acontecido no


palácio do Governo da Paraíba. Inicialmente, Ariano falou um pouco sobre o
reconhecimento do amor que seu pai tinha pelo romanceiro popular, descrito por
283
Ibidem. p. 44.
284
Idibem. p. 53
285
MOTA, 1976c. p. 7.
113

Leonardo Mota e o Barão de Itararé – visto que ele sempre declamava algumas estrofes
que havia ouvido de poetas no sertão, quando não contava causos populares. Em dado
momento, no subtópico "Cantadores no Palácio do governo", o escritor afirma:

Quanto Suassuna [João Suassuna] governou a Paraíba, de 1924 a 1928,


escandalizou uma porção de gente porque costumava levar para o Palácio
Cantadores, músicos populares etc. Um deles, era além de cantador, escultor
em madeira, o famoso Antônio Imaginário. Imaginário, como todos sabem no
Nordeste é aquele que esculpe, em madeira, imagens de santos para as
igrejas, capelas e santuários.286

Em seguida, Ariano abriu um parêntese para escrever sobre sua experiência na


organização de uma cantoria de viola no Teatro de Santa Isabel, em 26 de Setembro de
1946, comparando com o que seu pai fizera na Paraíba, ou seja, também sentiu tal
estranheza e negação por alguns setores da sociedade recifense. No entanto, falarei mais
a frente sobre esse fato. Ao retornar a temática dos cantadores no Palácio, pontuou:

Pois bem, se o ambiente era esse em 1946, avaliem como não era em 1924! É
verdade que havia alguma diferença: em 1946, o Suassuna que iria realizar a
cantoria no Santa Isabel era apenas primeiroanista de Direito, e o outro, que
levava Cantadores para o Palácio do Governo era Presidente da Paraíba,
como dizia naquele tempo. Ora, tem sempre uma porção de gente pronta a
achar que tudo o que o Governador faz é interessante. De modo que, apesar
das estranhezas, havia uma porção da chamada "gente da melhor sociedade"
pronta a ouvir, certa noite, no Palácio, os cantadores José Batista e José
Clementino, trazidos pelo Presidente Suassuna do Alto Sertão Paraibano,
terra sua, a fim de exibirem, na capital, seus dotes improvisadores287.

Como o próprio Ariano afirma em seu texto, o fato de seu pai levar cantadores
para o Palácio, o incentivou a propor uma apresentação de repentistas no maior teatro
do Recife, em muito, para mostrar ao grande público que não estava acostumado a esse
tipo de arte como a capacidade de fazer versos em improviso era uma forma sublime e
tão completa como os versos acadêmicos, assim pode-se dizer.
Para o evento de 1946, o ainda estudante Ariano Suassuna encontrou alguns
problemas para execução. Em vários momentos o mesmo falou sobre as dificuldades
para a realização do evento no Santa Isabel. A primeira situação na matéria
anteriormente exposta e, a segunda ocasião no discurso de abertura do II Congresso de
Cantadores do Recife, em 1987. Os textos são bem semelhantes e apontam para a

286
Jornal da Semana, 21-27 jan. 1973. Acervo pessoal do Prof. Dr. Carlos Newton Júnior (UFPE).
287
Ibidem.
114

mesma problemática principal: os empecilhos que o então diretor do teatro, Waldemar


de Oliveira, impusera para o não acontecimento do evento. Assim, Ariano relatou a
semelhança no estranhamento que sentira comparando com a experiência de seu pai ao
levar os cantadores para o Palácio sede do governo paraibano:

[...] O fato causava, como é de se pensar, uma certa estranheza [se refere ao
ocorrido com o João Suassuna e os cantadores no Palácio]. Lembro-me bem
de que, em 1946, quando realizei, no Santa Isabel, uma cantoria coletiva, que
foi o embrião dos futuros Festivais de Violeiros e que foi o início da fama
nacional dos irmãos Batistas - Lourival, Dimas e Otacílio - tive que lutar
contra aqueles que se escandalizavam com o fato de eu querer levar
"Cantadores populares para o Santa Isabel"! Lembro-me bem de que o diretor
do Teatro naquele ano, Waldemar de Oliveira, me dizia, desolado:
"Cantadores e violeiros no mesmo ambiente em que falaram ou recitaram
versos Joaquim Nabuco, Castro Alves e Tobias Barreto"!288

Em seguida, no subtópico "Castro Alves e os Cantadores", Ariano afirmou:

Lembro-me de ter objetado a Waldemar de Oliveira que Castro Alves e


Tobias Barreto talvez até gostassem disso. O diretor do Teatro, porém, não se
deixou convencer. Forçado pelas circunstâncias, conforme ele mesmo me
disse, iria concordar com o requerimento, feito pelo Diretório da Faculdade
de Direito, do qual eu fazia parte em 1946. Mas, segundo disse, "para
ressalvar sua responsabilidade", iria fazer contar do despacho, como fez, que
concordava somente tendo em vista "o fim filantrópico" para o qual iria
reverter a renda do espetáculo.289

Em outra oportunidade, ainda no seu discurso de abertura do II Congresso de


Cantadores do Recife, em 1987, comentou que, para convencer Waldemar de Oliveira,
metade da renda seria revertida para um abrigo de cegos:

Em 1946, com apoio do Diretório da Faculdade de Direito, organizei, no


Teatro de Santa Isabel, a primeira cantoria de que a nossa Cidade iria tomar
conhecimento oficial, digamos assim. [...] Para essa cantoria, os Cantadores
vieram por sua própria conta e confiando somente, para compensar as
despesas, no êxito da atrevida experiência. Quem nos ajudou foi Tadeu
Rocha que juntamente com Esmaragdo Marroquim publicara, no ano
anterior, o poema "Noturno", com o qual estreei na Literatura impressa.
Levei os cantadores a Tadeu Tocha e ele divulgou o mais que pôde a
Cantoria, publicando sobre ela várias matérias de jornais. Com isso, o Santa
Isabel ficou lotado e os aplausos consagraram nossos grandes Poetas290.

288
Ibidem.
289
Ibidem.
290
BEZERRA, Jaci; RAFAEL, Ésio (org.). Livro dos Repentes: Congressos de cantadores do Recife.
Recife: FUNDARPE, 1990. p. 13.
115

A temática da inadequação do local para fins de apresentação de poetas


populares se estende até o I Congresso de Cantadores do Recife, em 1948. A força da
circunstância a que Ariano se refere não somente deve-se pela possível pressão que o
Diretório da Faculdade de Direito teria feito para execução do evento, mas também, o
papel que os jornais tiveram na divulgação do evento.
Ariano teve a ideia de promover a cantoria quando esteve de férias na fazenda de
seu tio em Limoeiro do Norte-CE, naquele mesmo ano. Suas experiências da viagem
foram publicadas na seção “Vida Literária” do Jornal do Commercio, em primeiro de
setembro de 1946. O escritor começou a matéria contando que teve contato com vários
elementos da cultura popular local, como o xote e outros ritmos. Mas o que lhe chamou
atenção foi,

E, melhor do que tudo, travei conhecimento com a Escola “Moderna” de


cantadores, raça que eu cria extinta pelo advento do rádio e do fonógrafo.
Mas qual! A Paraíba, o Ceará fervilham de cantadores. Conheci três e vou
manda-los buscar por intermédio do Diretório da Faculdade 291.

292
O que Ariano chama de “Escola Moderna” de cantadores é o que Francisco
293
Damascena denomina de primeira fase-geração do século XX, momento em que os
cantadores começam a ganhar fama nacional, programas de rádio e os palcos dos
teatros, em um processo de urbanização da cantoria (migração para os grandes centros
urbanos) e maior contato com os veículos de mídia. No próximo tópico serão abordados
com maiores detalhes tais cantadores. Para este momento procuro fazer uma mescla
entre a concepção de Ariano Suassuna e Damascena, ou seja, o que chamo de Geração
Moderna294. Suassuna prosseguiu em seu texto,

Com êles virá Dionísio, o maior violeiro cearense, em cuja viola teremos
oportunidade de notar a extraordinária semelhança das melodias sertanejas
com as fugas de Bach e dos compositores pré-clássicos295.

Ariano justifica que a aproximação com a música de Bach está presente na


educação dos padres trazida pelos portugueses ainda na colonização. Em sua matéria,

291
Jornal do Commercio, 01 set. 1946. Acervo APEJE. (grifo meu).
292
Um tópico dedicado à chamada Geração Moderna de Cantadores será visto em seguida.
293
DAMASCENO, 2012, pp. 215-223.
294
Os motivos da escolha do termo serão elucidados no referido tópico.
295
Jornal do Commercio, 01 set. 1946. Acervo APEJE.
116

enumera influências e aproximações para justificar a pureza do tocar de viola de


Dionísio afirmando que os tons baixos usados por este quase não se vê no sertão. O
escritor continua, “[...] não se impressionam a primeira vista como o colorido rico e
variado da música negra, causam entretanto uma emoção mais profunda a quem tem
ouvidos para ouvi-la. Algo como a diferença entre a música de Bach e a de Chopin” 296.
Nota-se a necessidade de Ariano de elevar o grau do popular no mesmo nível do
considerado erudito, buscando uma aproximação deste elemento cultural como
pertencente ou oriundo da Europa. Nesse sentindo, Ariano, no papel de intelectual,
delimita ou pelo menos tenta estabelecer uma conceituação do que seria a cultura
popular a partir de um posicionamento dito erudito297.
Em seguida, apresentou os poetas Otacílio Batista, com quem criou grande
amizade na temporada na casa de seu tio e que levou para o resto da vida e Lourival
Batista, “que é na opinião de todos os cantadores com quem falei, o maior repentista
vivo”298. Ao passo que demonstra algumas poesias dos cantadores, introduz o último,
Eugênio Oliveira, do qual fala muito pouco sobre. O que pode ser percebido
posteriormente, dos três, somente Otacílio vai ao evento no Recife. Lourival Batista é
substituído por Dimas, seu irmão. Ariano, então, mostra que os cantadores dominam os
mais variados gêneros da cantoria de repente (galopes, motes decassílabos, mourão,
etc.) e finaliza seu texto com uma observação,

P.S. – Depois de escritas estas notas, tive notícia de que vai haver em São
José do Egito, um congresso de repentistas. É uma iniciativa notável que não
tem precedentes no Brasil. Na Idade Média, reuniam-se os trovadores
alemães num monte, o que deu assunto a Wagner para a ópera “Os Mestres
Cantores”. Até nisto nota-se a semelhança dos nossos cantadores com os
provençais e alemães da Idade Média299.

Na citação vê-se novamente a necessidade de colocar o popular em posição de


erudição, forçando uma aproximação dos cantadores com a cultura medieval europeia,
como tentativa de representar estes como parte de um processo eurocentrista e

296
Ibidem.
297
Tal noção é vista por Roger Chartier em Cultura Popular revisitando um conceito historiográfico. Para
o historiador significa “caracterizar e nomear práticas que nunca são designadas pelos seus atores como
pertencendo à ‘cultura popular’. Produzido como uma categoria erudita destinada a circunscrever e
descrever produções e condutas situadas fora da cultura erudita.” CHARTIER, Roger. Cultura Popular
revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, no. 16, 1995, p.
179
298
Jornal do Commercio, 01 set. 1946. Acervo APEJE.
299
Ibidem.
117

medieval. Percebe-se, também, a existência de congressos feitos no sertão


pernambucano mostrando o surgimento desse tipo de prática. Tal medida acompanha a
carreira artística de Ariano, posto que, o escritor utiliza com frequência em suas obras a
apropriação da poesia popular ao mesmo tempo em que a representa como pertencente a
uma origem europeia.
Dos jornais investigados, os que parecem ter maior expressividade foram o
Jornal Pequeno e o Jornal do Commercio. O Jornal Pequeno explanou como seria o
dado evento. Além do fato de fazer uma matéria de primeira página (imagem abaixo),
fez propagandas um dia antes, no dia e um dia depois do evento. Essa última na seção
"Teatro-Musica-Cinema". Diferentemente o Diario de Pernambuco, tomou outra
postura e só fez uma propaganda um dia antes do evento noticiando que estava sob o
patrocínio do Diretório da Faculdade de Direito e que contaria com a presença dos
irmãos cantadores Dimas e Otacílio Batista.

Fig. 11

Fonte: Manchete de primeira página. In: Jornal Pequeno, 24 set. 1946. Acervo BN.

Apesar do equívoco característico da época, os termos “congresso”, “festival” e


“torneio” ainda se confundiam. A matéria referente a manchete da Figura 11 começou
com um longo e entusiasmado texto sobre os cantadores.

Vem de longe a fama e o prestígio dos cantadores. Atravessam as caatingas e


varam os tempos, deixando na tradição de gentes as vezes longínquas, as suas
façanhas incruentas, onde brilha o verso e amarga a ironia.
Suas estrofes brilhantes na linguagem rude são gravadas por todos:
vaqueiros, calungas, comboeiros, bodegueiros e vagabundos das cidades
sertanejas que nos dias de feira os recitam, entre goles de "pinga" e historias
heróicas de punhais reluzindo e lutas titanicas de cangaceiros e policiais.
Os cegos aprendem-lhe desafios inteiros que descontam, nas beiras das
estradas e nas portas da igreja, enquanto esperam as esmola dos fieis 300.

300
Jornal Pequeno, 24 set. 1946. Acervo BN.
118

O jornal lembra as habilidades dos cantadores e do famoso Antônio Marinho


(1887-1940), que, aparentemente, já estava conhecido na capital pernambucana. Assim
disse:

Somente uma vez ou outra surge um repentista afamado. Viola a tiracolo,


alpercata e gibão, mete a cantaria no meio do povo que se ajunta para ouvir-
lhe as "lorotas", no baião, no repente de seis linhas, no mourão e no martelo.
Houve deles que acabava feiras, quando chegava.
Quem, hoje, mesmo nas capitais do litoral não já ouviu falar de Antônio
Marinho? Onde ele chegava, adeus compras e vendas!... o pessoal cedo se
chegava e era um nunca acabar de motes e glosas, anedotas picarescas, versos
líricos, falando de jeca, caboclas bonitas e noites de lua.
Entravam pelas noites, e se aparecia um parceiro, então, a coisa ia longe, no
repinicado da viola.
Contam casos de oito dias e oito noites, só parando os dois para comer 301.

Uma das poesias declamadas no evento do Santa Isabel, organizado por Ariano
Suassuna em parceria com o Diretório da Faculdade de Direito, ficou registrada. Ariano
deu o mote para ser feito em décima: “Zé Américo de Almeida,/O salvador do sertão”.
A estrofe, feita em homenagem à José Américo de Almeida, famoso político paraibano,
ex-aluno da Faculdade de Direito do Recife, fundador da UFPB e que havia sido
interventor da Paraíba por um breve período em 1930 que, segundo os poetas, teria
ajudado os sertanejos nas secas recentes. Dimas Batista recebeu o mote e declamou:

De trinta, ano inconstante,


Não há quem mágoas não sinta,
Trinta e um foi como trinta,
Trinta e dois mais torturante.
Enquanto o sol causticante
Tostava a face do chão,
Apareceu um cristão
Apagando a labareda:
Zé Américo de Almeida,
O salvador do sertão302.

Ainda foi possível resgatar o registro feito pelo Jornal Pequeno da entrevista
com os irmãos poetas e Ariano Suassuna.

301
Idem.
302
LINHARES; BATISTA, Op. Cit. p. 332.
119

Fig. 12

Fonte: Da esquerda para direita: o repórter (não identificado), Dimas Batista, Ariano Suassuna, Otacílio
Batista. In: Jornal Pequeno, 24 set. 1946. Acervo BN.

Durante o levantamento de dados para esta pesquisa, foi possível notar, no que
se refere aos cantadores de viola, que os jornais se expressam usando de adjetivos
pejorativos e que varia tanto de veículo, como dentro do próprio jornal. Percebe-se que
isso teve maior abertura para ocorrer devido às matérias serem feitas por diversos
jornalistas, a maioria sem referência de autoria nos textos, mas também, pelo fato do
periódico assumir duas posturas; ora apoiando os repentistas como elemento de nossa
cultura que deve ser preservado e prestigiado em eventos, ora se referindo aos
cantadores como sendo inferiores, produtores de uma poesia inferior à erudita. Esse tipo
de discurso foi recorrente nos jornais de época promovendo, por vezes, uma hierarquia
cultural. No entanto, tal distinção entre popular e erudito torna-se impossível de ser
radicalmente estratificado, ao passo que os diálogos culturais na formação de práticas
culturais são construídos a partir de mesclas constantes entre os vários estamentos
sociais.
Dimas Batista e Otacílio Batista, nesta entrevista ao Jornal Pequeno, não deixam
e até fazem questão de citar o poeta, já falecido na ocasião, Antônio Marinho que,
segundo eles, foi o grande mestre da cantoria do Pajeú pernambucano. Assim como os
poetas do início do século, Antônio Marinho dedicou-se a vida dupla de poeta e
agricultor. É perceptível durante o encontro, a exaltação que Dimas Batista faz a seu
mestre (como ele próprio considera) ao fato deste ter cantado em um teatro da capital
pela primeira vez. O respeito por Marinho era tão grande que ao ser perguntado se já
havia entrado em desafio com ele, afirmou categoricamente: “Qual nada! Quem podia
120

com aquele homem?”. O repórter aproveita este momento em seu texto para dissertar
sobre os novos caminhos que a cantoria vinha tomando e sob o subtítulo “Marinho se
foi”, pontua:

Mas, agora, Marinho morreu. Foi-se. “A remo mesmo”, porque faltou


vela!.... Segundo explicou, no último suspiro. E aqui, na frente do reporter,
estão dois outros que o relembram: Dimas Batista de quem já falamos, e
Otacílio Batista Guedes.
[...] Alguém pergunta a Otacílio: Matuto lá do sertão. Que quer aqui na
cidade?
O cantador machuca as abas do chapéu concentrado. Já não trás mais gibão,
nem alpercatas. A roupa é de brim branco e não couro. Está civilizado – de
óculos com aros, ar citadino. Mas o talento é o mesmo 303.

Como visto anteriormente, os rimadores do improviso sentem a necessidade de


se tornarem, em parte, diferentes dos cantadores de outrora, retratados por Leonardo
Mota, Câmara Cascudo e Rodrigues de Carvalho. O poeta agora estava inserido nos
meios citadinos, caracterizado à moda da elite econômica, acessível para os mais
variados olhares da sociedade, dos políticos aos comerciantes dos mercados públicos da
cidade. Diante disso, Otacílio declamou uma décima sem pestanejar e sem se sentir
menosprezado pela dita pergunta, dizendo:

Eu saí do Ceará
Conduzindo um pobre pinho
Dizendo pelo caminho
O que é que eu vou ver lá?
Assim que saltei por cá
De voltar tive vontade
Um homem de certa idade
Me disse na estação:
Matuto lá do sertão
Que quer aqui na cidade?304

O Diario de Pernambuco não dedicou uma matéria específica sobre o evento,


como o fez o Jornal Pequeno e o Jornal do Commercio. Naquele houve apenas a
divulgação da propaganda do evento, que ocorreria no dia 25 de setembro às 20h. As
apresentações foram divididas em três momentos: no primeiro, os poetas fariam
repentes em mourão, quadrões, galopes, entre outras formas; em um segundo momento,
o público forneceria motes para os cantadores improvisarem – esse fato demonstra que

303
Jornal Pequeno, 24 set.1946. Acervo BN.
304
Ibidem. Possivelmente o repórter não registrou bem o verso e acabou publicando fora da métrica,
mesmo assim, mantive a forma publicada originalmente no jornal.
121

os presentes já tinham certa familiaridade com a cantoria de viola–; por fim, a


modalidade desafio, modo de maior apelo popular, em martelo galopado, teve
exclusividade na forma dos violeiros mostrarem suas estrofes improvisadas.
Destacam-se, ainda, algumas situações importantes na reportagem feita pelo
Jornal do Commercio. A matéria intitulada “A legítima poesia sertaneja no palco do
Santa Isabel, amanhã” começa logo com uma crítica aos que negam a poesia do repente
como sendo pertencente ao folclore brasileiro e vê negativamente o contato da cultura
popular com as novas realidades no litoral.

O cheiro que a coisa tem de “presepada” falsamente folclórica ou baixamente


radiofônica é inteiramente infundado. Esses cantadores que vão expor ao
público do Recife as artes rudes do repente e da viola são legítimas
expressões regionais – dessa região sertaneja que produziu os grandes
trovadores que foram Inácio da Catingueira e Romano da Mão D’água e em
certas zonas se acha ainda incontaminada da má influência metropolitana 305.

O cantador de viola foi posto em um pedestal idealizado. Um elemento puro e


dignificador da cultura nordestina, fora do alcance da cultura metropolitana. Ao
contrário do que o jornalista propõe, o fato dos cantadores estarem se apresentando em
palco parte de uma concepção de diálogo cultural no qual a população não familiarizada
com a cantoria passa a aceitar como um elemento cotidiano dos centros urbanos e os
cantadores começam a assimilar elementos citadinos, desde formas de falar mais
acessíveis a quem não é do sertão, até vestir-se à moda da elite (paletó branco, etc.).
Causa surpresa ao repórter o fato dos poetas “terem uma pronúncia mais correta que a
pronúncia do nosso literal”306. O jornalista prosseguiu, “uma pronuncia cuidadosa,
mesma. Não tem complexos de inferioridade nem também ímpetos de petulância; fazem
questão de ser fiéis à sua origem humilde porém forte e honesta” 307. Assim como no
caso do Jornal Pequeno, a equipe do Jornal do Commercio forneceu um mote para
encerrar a entrevista, semelhante ao outro periódico, “Vamos mostrar à cidade/ A poesia
do Sertão”.

Dimas Batista:
Vim da terra de Iracema
Mostrar, como violeiro,
O abôio do vaqueiro,

305
Ibidem.
306
Ibidem.
307
Ibidem.
122

O triste gemer da ema,


O grito da sirima
E o grito do cancão,
O pio do gavião
Nas horas mansas da tarde
Vamos mostrar à cidade
A poesia do sertão.

Otacílio Batista:
Eu venho de outra serra
Mostrar outra natureza
E apresentar a “Veneza”
Poesia da outra terra.
Quem fala certo não erra
Diz o antigo rifão
E eu, com toda perfeição,
Declaro a santa verdade:
Vamos mostrar à cidade
A poesia do sertão.308

Portanto, nota-se que os violeiros começam a ganhar as páginas dos jornais. Ao


contrário dos cantadores expostos nas matérias do capítulo anterior, estes ganham nome,
saem do anonimato. Surgem os ídolos pessoais e a necessidade de propor uma nova
estrutura para o repente de viola, moderno construído pela Geração Moderna de
Cantadores.
Após o passo dado com a chegada dos cantadores aos grandes teatros, deu-se
início as apropriações das cantorias e, em seguida, a construção das representações
destas nos palcos, através dos torneios. Com um público variante entre as camadas mais
pobres da sociedade e a aristocracia, os violeiros ganharam maior notoriedade, o que
possibilitou o processo de construção da profissão de repentista. Os antigos cantadores
de feiras com os bolsos cheios de folhetos, por onde decoravam os versos, passa a ser
negados e substituídos pela ideia de legítimo improvisador, com conhecimento e
linguagem rebuscada.

308
Ibidem. Neste período, Dimas morava no Ceará, enquanto Otacílio morava em São José do Egito.
123

3.2 A Geração Moderna de Cantadores

Muitos repentistas mereciam estudos de caso para elucidar mais a fundo o


processo de profissionalização da cantoria, porém não cabe no presente trabalho a
função de construção de uma antologia ou dicionário biográfico dos cantadores, como o
caso de José Alves Sobrinho e Átila Augusto309. No entanto, a dificuldade de se
encontrar informações sobre alguns cantadores, desde informações simples como data
de nascimento e morte até mesmo os percursos tomados ao longo da vida de cantador
dificultaram o processo de construção da história dos mesmos.
Quem seriam esses novos cantadores a quem Ariano Suassuna chamou de
“Escola ‘Moderna’ de Cantadores”? Para responder o questionamento se faz necessário
um estudo prosopográfico alicerçado na proposta do historiador Lawrence Stone310.
Para este, o uso de biografias seria necessário para determinar características comuns
em um grupo. Com isso, é fundamental que o estudo dessas histórias seja voltado para
coletividade, ou seja, a atuação profissional dos atores sociais para que, assim, seja
estabelecido o universo das práticas que caracterizam o grupo estudado. Dentro desta
noção procuro dentro da biografia de uma pequena coletividade as perspectivas que
encaixam nas caracterização da Geração Moderna de Cantadores.
Obviamente que, uma prosopografia de todos cantadores que fizeram parte deste
time da Geração Moderna seria inviável devido ao enorme número de cantadores que
aparecem no cenário público a partir de 1940. Sendo assim, este ponto trata das
principais características e, de alguns nomes de violeiros, em especial os que fizeram
carreira no I Congresso de Cantadores do Nordeste311. Diante disso, optei inicialmente
pela biografia de seis repentistas com o objetivo de analisar suas biografias dentro da
mudança na dinâmica da cantoria neste momento, que são: Antônio Marinho, Severino

309
Autores que dedicaram vasta obra em dois volumes na busca por um dicionário bio-blibliográfico
bastante utilizada nesta pesquisa. Cf. ALMEIDA; SOBRINHO, 1978.
310
STONE, Laurence. Prosopography. Deadalus, V. 100. N. 1, pp.46-79, 1971. p. 46. A construção das
prosopografias é elaborada em parte a partir de trabalhos biográficos já escritos e, também, de matérias de
jornais, principalmente, no Capítulo 4 ao analisar Rogaciano Leite. Com isso, é preciso ter o cuidado de
não cair no que Bourdieu conceitua de “ilusão biográfica”, que consiste na tentativa de construir uma
biografia firmada na complexidade do sujeito estudado. Cf. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In:
FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2006. pp. 183-191.
311
No Capítulo 4 há um tópico dedicado ao I Congresso de Cantadores do Nordeste.
124

Pinto, os Irmãos Batista (Lourival Batista, Dimas Batista e Otacílio Batista) e, por fim,
Domingo Fonseca312.
O trabalho aqui proposto tem apenas como objetivo analisar a primeira fase da
chamada Geração Moderna de Cantadores. Apesar de obter a alcunha de Geração
Moderna existem outros nomes nas obras de estudiosos da cantoria de viola para definir
este momento vivido pelos repentistas. Francisco Damasceno313, como havia citado
anteriormente, chama de Primeira Fase-Geração do século XX; Já Braulio Tavares
refere-se aos poetas deste período como uma Era de Ouro da cantoria de viola 314. Um
consenso sobre quem deveria ser integrado a determinada fase é quase impossível de se
mensurar. Logo, nessa sessão a intenção é mostrar como eram os cantadores que
fizeram parte dos primeiros congressos e contribuíram fundamentalmente para
desenvolvimento do repente como profissão. Já que não há um movimento organizado
ou até mesmo um estatuto que definisse no período quem seriam ou o que seria
necessário para ser encaixado neste grupo, por este motivo que a alcunha dada por
Ariano (Escola) seria inviável de ser aplicada. Ou seja, nem mesmo um manifesto foi
escrito para determinar a inauguração de uma nova maneira de se fazer o repente. Com
isso, neste trabalho, assim como em outros que se preocupam em estabelecer fases é
somente devido a uma série de posturas e características que causaram rupturas e
permanências dentro da prática do repente.
A princípio, na primeira fase da Geração Moderna se encontra entre 1930 e 1960
e tem como características básicas: introdução nos meios de comunicação, em especial
o rádio e o jornal impresso; poetas de modo geral letrados; surgimento dos grandes
torneios, os congressos. A segunda fase do movimento, que ganha força a partir de
1970, tem como aspectos principais: desenvolvimento das propostas da primeira fase,
expandindo para a TV e outras mídias fonográficas (LP, por exemplo, foi bastante
difundido neste período); estatutos definitivos de profissional do repente, encabeçado
pelo poeta Ivanildo Vila Nova (1945-); surgimento dos grandes festivais de violeiros de
cunho interestadual. A terceira fase da Geração Moderna, situada por volta dos anos de
1990 em diante, acompanha o ritmo das outras fases: tem a maioria dos seus “membros”

312
Rogaciano Leite também está incluso nesta primeira leva de repentistas que foram aos palcos dos
teatros, porém, no Capítulo 4 que é dissertado sobre este devido a seu envolvimento na elaboração do I
Congresso de Cantadores do Nordeste.
313
DAMASCENO, 2012. pp. 203-259.
314
TAVARES, 2016. pp. 29-32. O autor se refere não somente a uma localização temporal como sendo a
Era de Ouro, mas um momento onde se deu o boom de novos gêneros e estilos na cantoria de viola.
125

nascidos em grandes centros urbanos e já intimamente ligados a um movimento de


cultura popular, no qual, a cantoria de viola é inserida; há uma crescente intimidade com
os meios de comunicação sociais aliados a uma escolaridade avançada.
Francisco Damasceno afirma que, atualmente, a cantoria de viola está na sua
terceira fase-geração. O escritor aponta uma divisão na trajetória da cantoria de viola no
século XX separada por acontecimentos e mudanças de práticas entre os cantadores315.
A primeira fase corresponde ao momento que os primeiros violeiros começam a ganhar
fama, principalmente, com a participação dos folcloristas no colhimento de informações
pelos sertões nordestinos. Dois pontos, segundo o autor, caracterizam a esta etapa. O
primeiro deles, com a entrada dos cantadores nos meios de comunicação de massa entre
os anos 1950-1960, mais especificamente, o rádio; ainda, acrescenta-se aqui a
importância que os jornais impressos tiveram nesse processo. O segundo ponto está
ligado ao surgimento dos grandes congressos que levaram aos futuros grandes festivais.
A segunda fase-geração acompanha o crescimento da primeira e soma-se o uso de
outros meios de comunicação como televisão e a indústria fonográfica (Disco de Vinil,
ou LPs; CD-ROM; e, mais tarde, DVD-ROM).
Esta gama de cantadores é responsável pelo crescimento urbano da cantoria e
pela nacionalização de alguns repentistas. O grande Festival de Campina Grande-PB,
em 1974, parece ser o grande divisor de águas, entre outros motivos, pela introdução de
novos repentistas na competição por espaços que já estavam sob posse dos antigos
cantadores da primeira fase da Geração Moderna. Sobretudo, é neste momento, pós
1960, que a cantoria ganha às formas profissionais que é visto hoje em lei (Lei nº
12.198, de 14 de janeiro de 2010). A terceira fase, conforme definição de Damasceno, é
composta pelos jovens que aproveitam a visibilidade da mídia e, da já fixa urbanização
da cantoria; a facilidade de comunicação, com a internet e das novas facetas que a
profissionalização traz, como diálogo com outros elementos culturais, a exemplo do
rap316.
Antes da primeira metade do século XX era muito difícil encontrar repentista de
origem urbana – a grande maioria nasceu nas zonas rurais das cidades do interior. Logo,
a maioria dos cantadores tinha a viola como um segundo sustento familiar, vivendo a

315
Aqui divido como pode observar em fases de uma única Geração, da Geração Moderna de Cantadores.
316
Discurso rimado que surgiu nos EUA no fim do século XX e está inserido na cultura do Hip Hop.
Pode ser cantado com ou sem acompanhamento musical (beatbox ou Dj mixer). Há ainda os momentos de
duelo entre os praticantes (MC’s).
126

maioria de agricultura, comércio, etc. Para viver da cantoria, antes dos festivais e
grandes congressos, era necessário, mais do que hoje, fazer grandes deslocamentos para
vender a arte do improviso317. O letramento básico era importante neste meio em que os
cantadores viviam, pois, em muitos casos, eles migravam para a manufatura de folhetos.
Com isso, “o cantador sabe que está inserido numa sociedade em que, para a classe e
cultura dominantes (e também em grande parte para os dominados, inclusive os
analfabetos), só é considerado ‘cultura’ o que é veiculado pela escrita”. 318
Os violeiros com prestígio, de um modo geral, viajavam centenas de quilômetros
para as mais variadas apresentações e tal fato é mostrado com a participação de alguns
consagrados poetas como os Irmãos Batista319, Severino Pinto (1896-1990) e Domingos
Fonseca (1913-1958), Agostinho Lopes (1906-1972), Vicente Grangeiro (1901-?), José
Alves Sobrinho320 e outros poucos, que estavam circulando no período aqui estudado
entre, principalmente, São Paulo, Rio de Janeiro (então capital do país), Recife,
Fortaleza e João Pessoa. Participaram, senão de todos, da maioria dos congressos de
cantadores organizados entre 1946 e 1960321.
Como se deu tal prestígio? Acredita-se que foi a grande capacidade de
improvisação e de articulação, que ao estreitar a relação destes com o público, teve,
como consequência, uma aproximação com veículos de divulgação que não fosse os
folhetos para dar continuidade a sua renda familiar. Segundo Damasceno:

Esta intensa movimentação é ela própria um reflexo da inserção nos meios


urbanos e uma aproximação com setores políticos e intelectuais com quem
travaram contato, para quem cantaram, através de quem resolveram
problemas mais imediatos, ou mesmo obtiveram oportunidades na
programação de rádio 322.

Os jornais divulgavam esse tipo de mudança encontrada nos cantadores, muito


com a intenção de quebrar estereótipos para conquistar um novo público. Ao fim do I

317
O antropólogo fez uma pesquisa prática de campo para trabalhar as facetas da cantoria de viola
procurando analisar a relação entre ação e estrutura dentro do campo social da cantoria. SAUTCHUK,
João Miguel Manzolillo. A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino. Brasília,
2009. Tese (Doutorado em Antropologia), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Universidade de Brasília, 2009. Ver capítulo III.
318
AYALA, 1988. p. 20.
319
Lourival Batista (1915-1995), Dimas Batista (1921-1985) e Otacílio Batista (1923-2004).
320
Nome artístico de José Clementino de Souto (1921-2011). Importante cantador no que se refere ao
levantamento de dados biográficos e antologias poéticas.
321
DAMASCENO, 2012. p. 223.
322
Ibidem.
127

Congresso de Cantadores do Nordeste, em 1948, o jornal O Globo realiza a matéria


abordando sobre esses novos cantadores. Publicaram no artigo:

Os homens trazidos ao Recife pelo poeta Rogaciano Leite não nos davam a
impressão de estarmos ouvindo matutos analfabetos, com indumentaria
falsificada. O aspecto e a linguagem dos atuais cantadores nordestinos estão
sofrendo a influência da civilização hodierna. Todos os violeiros são rapazes
apresentáveis, usando roupas de linho, óculos e gravatas da moda. [...]
Raramente se nota um ou outro erro de concordância no linguajar do
cantador. Isso, sem dúvida, nasce do rápido processo verificado na
civilização nos últimos dez anos.323

Os cantadores começaram a mudar e estipular novas formas de construção do


campo de atuação, bem como, elaborar diferentes maneiras de interagir com o público,
agora diversificado entre o popular e elite das cidades grandes. Esse tipo de postura é
trabalhada por alguns autores que envolvem essa perspectiva em uma noção de
“travestir-se de poder”324 entrar na moda vigente das grandes cidades, abandonar alguns
adornos comuns do sertão (chapéu de couro, por exemplo) e tornam-se a imagem dos
homens citadinos325. Esse tipo de adequação aos novos ares em que apresentam seus
versos os faz tornam mais atrativos para um público novo, bem como a da elite
econômica dos grandes centros urbanos. Nota-se também o quão a representação da
matéria difere da forma apresentada pelo folclorista Rodrigues de Carvalho no início do
século XX.
Importante salientar que o “travestir-se de poder” não necessariamente seja algo
forçado ou com intuito de abandonar as raízes interioranas – até porque o sertão
comumente é o alimentador imagético destes repentistas –, mas sim uma característica

323
O Globo, 18 out. 1948. Acervo digital de O Globo.
324
Ângela Grillo trabalha os momentos de mudança de representação na imagem do cangaceiro nos
folhetos no início do século XX, onde de início, “vê os homens humildes diante do poder dos coronéis,
para em seguida analisar a inserção do bandido – herói nesse contexto”. GRILLO, 2015. p. 165 et. seq.
Rômulo Oliveira trabalha igualmente o projeto de “travestir-se de poder”, porém nos membros que
promoveriam a criação da Academia Pernambucana de Letras, no qual, há um tom nos jornais de os
caracterizá-los pertencendo a um status de elite, vê-se quando o historiador analisa as imagens publicadas
dos literatos: “Elas distinguem os homens pelo traje de casemira, geralmente um fraque no lugar da
sobrecasaca, o porte suntuoso e elegante, a gravata borboleta ou tradicional, os bigodes ou barbas
tratadas, a expressão de seriedade, como se fossem incapazes de representar o sorriso da sociedade. São
figuras que imprimem a imagem de ser civilizado, culto, erudito, de fino trato, bom gosto e cortês.
Elementos como o pince-nez ao invés dos óculos completam a construção dos modismos que aderiam tais
sujeitos.” Cf. OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo José Francisco. “OS OPERÁRIOS DAS LETRAS”: O
campo literário no Recife (1889-1910). Recife, 2016. Tese (Doutorado em História), Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, 2016. p. 157.
325
O mesmo é identificado na figura dos sambistas cariocas no processo de “descer” o morro e ganhar os
salões da elite no Rio de Janeiro.
128

que pode ser normal de jovens que passam a morar ou frequentar com mais as cidades
grandes e, com isso, passam a ser influenciados pela moda local, que também não muito
diferente do que era visto nos interiores com a diminuição das fronteiras com estradas,
trens, rádio, etc.
Os congressos e festivais trouxeram o pagamento por contrato e premiações aos
cantadores; ao passo que na cantoria tradicional de pé-de-parede, a bandeja foi uma
importante forma de interlocução entre o cantador e seu público. Ao contrário de um
espetáculo de música, por exemplo, os quais existem distanciamento entre artista e
quem o prestigia, a interação do público com os cantadores é expressiva, sendo sentida
desde as exageradas palmas para as boas poesias, ou "pagar o verso" quando um
membro da plateia gosta do verso e deposita o valor justo por ela na bandeja. E, em
meio a esse público surgiu os apologistas, ou seja, críticos e grandes divulgadores da
arte de improvisar.
Notadamente, em muitos casos tais apologistas viraram os chamados folcloristas
e passaram a registrar e estudar os cantadores, em especial, na primeira metade do
século XX. De acordo com Ayala:

Se analisarmos a constituição do público, encontraremos, nos diferentes


contextos da cantoria, uma parcela da audiência composta por indivíduos que
conhecem profundamente os mecanismos da composição poética, o que lhes
possibilita fazer o julgamento crítico da produção literária no momento em
que são cantados os improvisos. Estes críticos populares são os chamados
apologistas e são eles que, com sua vivência poética, distinguem os maiores
cantadores dos menores326.

O publico torna-se dinâmico na cantoria a partir da virada do século XX.


Surgem os apologistas e desses saíram muitos autores que fizeram trabalhos folclóricos
(Leota, Coutinho Filho, Cascudo, etc.). Por essa perspectiva, como visto no Capítulo 2,
os violeiros foram apresentados a cidade em muitos casos pelas mãos dos folcloristas
com o papel de representantes da cultura popular nordestina. Diante disso, é observável
que o popular, através das representações dos literatos, é uma construção dos
intelectuais.327

326
AYALA, 1988. p.21.
327
Roger Chartier trabalha essa noção de construção do popular como construção de uma elite intelectual
em, “as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais "representantes" (instâncias
coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da
comunidade ou da classe.” CHARTIER, 1991, p. 183.
129

A relação dos artistas com o público nos festivais mesmo que tenha sido, de
certa forma, fragilizada tornando-se indireta com o não uso da bandeja e a adoção de
cachês e premiações, ainda se mantinha através das palmas, como acima afirmado, mas
também, como visto em alguns eventos e congressos, por meio da interação criada pela
possibilidade dos presentes em fornecerem motes para os cantadores improvisarem. Até
mesmo quando os repentistas migraram para o rádio – muitos em grande parte sendo os
próprios locutores dos programas –, a proximidade entre violeiro e seu público se dava
através dos ouvintes ligando (ou enviando cartas) para oferecer motes. O que estimulava
maior participação de quem acompanhava os programas, pois, sempre que era dito o
tema também era anunciado quem o pediu/fez.
Já na década de 1940, a relação jornal impresso-rádio era uma grande forma de
divulgação da poesia, além de propaganda para os eventos. O Jornal do Commercio
aproveitando a vinda dos poetas para o I Congresso de Cantadores do Nordeste, em
1948, anuncia uma apresentação dos mesmos no auditório da Rádio Jornal do
Commercio, que fora ouvida pelos ouvintes da emissora radiofônica.

Fig. 13

Fonte: Anúncio que ocupava toda parte inferior da página In: Jornal do Commercio, 08 de outubro de
1948. Acervo FUNDAJ.

Com a entrada do rádio no meio da cantoria de viola surge uma mudança na


dinâmica público-cantador. Ao passo que os ouvintes foram uma peça chave no
desenvolvimento do espetáculo, com o rádio há um distanciamento dessa relação. Para
suprir a relação que se esfacelou, os cantadores acabam por receber temas, motes, etc.
através de cartas e, com o passar dos anos, por telefonemas atendidos ao vivo. Sobre
essa nova estratégia na dinâmica da cantoria, Maria Ayala nos diz que:

Um outro contexto de atuação dos repentistas são os programas de rádio. A


relação público-cantadores é indireta e mediada pelo aparato técnico da
indústria cultural, mas mesmo assim o público pode interferir. Os ouvintes
fazem pedidos, através de cartas enviadas à emissora ou em encontros diretos
com os poetas responsáveis pelo programa.
130

Os repentistas comumente são os locutores de seus programas e, para


satisfação de seu público, anunciam enfaticamente que em atendimento a
fulano ou sicrano vão cantar tal gênero ou canção. Desta forma, integrantes
do público sentem-se valorizados ao ouvirem seus nomes pelo rádio e
continuam enviando pedidos ao programa. 328

Tal fato é construído como a estratégia da Geração Moderna de Cantadores, a


qual, insere novos mecanismos para “vender”/alcançar um público novo ou mais
abrangente, ao mesmo tempo que deseja ser caracterizado como profissional inserido
neste meio, separando-se assim de práticas anteriores (Geração Clássica)329. Ao passo
que a cantoria começou a ser um tema de notícias, novas aberturas ocorrem e vê-se, até
mesmo, um cantador e jornalista (organizador de congressos) Rogaciano Leite330
escrevendo para os jornais de grande circulação do Nordeste (Diario de Pernambuco,
Jornal do Commercio, Gazeta do Ceará, entre outros).
O segundo ponto que Damascena apresenta como característico da Geração
Moderna é exatamente a criação dos congressos. Logo, segundo o autor: "estas duas
interferências foram acompanhadas por um deslocamento que se intensificou de forma
acentuada, sobretudo nas principais capitais do Nordeste" 331.
Hoje a cantoria de pé-de-parede refere-se àquelas que rebuscam a tradição das
antigas pelejas. Muito se deve ao surgimento dos congressos – torneio de cantadores
cujo uma mesa julgadora escolhe as três melhores duplas, no geral; no caso aqui
mostrado em um momento mais a frente, o público que escolhe os vencedores. Ainda
nos anos de 1940, observa-se, no levantamento de informações em periódicos, a
presença também do termo "torneio", que apesar de fazer mais jus ao que de fato ocorre
nos eventos, não vingou, sendo, então, perpetuado o termo "congresso".
Outro termo comum é “festival”. Porém, segundo Pedro Filho, a diferenciação
entre Congresso e Festival está na relação, principalmente, na quantidade de dias que o
evento tem, ou seja, "em regra geral, [o festival] realiza-se em uma só noite, mas
existem os grandes festivais, chamados congressos, que duram três noites, com
eliminatórias"332. O autor ainda aponta o surgimento dos grandes campeonatos, que
possuem cerca de 18 duplas – os menores costumam ter, em média, seis duplas –, indo
328
AYALA, 1988, p. 30.
329
O conceito de estratégia é abordado por Michel de Certeau ao estudar os mecanismos de táticas sociais
no cotidiano. Ou seja, grupamentos sociais sentem-se na necessidade de usar táticas para “surgir no
mundo” para compartilhar o produto que têm em comum. Cf. CERTEAU, 1998.
330
Sobre Rogaciano Leite há um tópico específico em seguida.
331
DAMASCENO, 2012, p.217.
332
ERNESTO FILHO, 2013. p. 30.
131

para a final as três melhores integrando o processo de tornar a cantoria de viola em uma
prática cotidiana das pessoas que moram nos centros urbanos 333. Assim, Pedro Filho
completa, "festival é, portanto, a cantoria moderna, que sai do ambiente rústico dos
sertões para ocupar espaço nos clubes, teatros e ginásios esportivos dos grandes centros.
É a fase de urbanização da cantoria"334. Os congressos, desta forma, assumem a forma
de apropriação da cantoria de viola, dentro da própria prática, buscando uma nova
leitura dos antigos desafios do século XIX. Evangelista e Souza corroboram o
pensamento da seguinte maneira:

O congresso de violeiros, ao passo que conserva certas características da


cantoria, apropria-se de outras, quebrando a monotonia das formas,
desenvolvendo-as, refundido-as [sic]. Quanto aos seus poetas, estes saíram da
unidade da experiência “arcaica” para a pluralidade “modernizada”, dentro da
regra geral de renovação da tradição 335.

Tais facetas, como visto na introdução, que a cantoria adquiriu ao longo da


primeira metade do século XX são compreendidas dentro da noção de apropriação e
representação dos antigos debates entre os cantadores e, juntamente com os diálogos
culturais (circularidade), possibilitaram novas perspectivas, uma nova forma de se fazer
repente.
Em vias gerais, os cantadores até o início do século XX não tinham a cantoria
como forma de sustento, sendo em sua grande maioria agricultores. Com as mudanças
trazidas com os avanços tecnológicos (rádios, estradas, trem) a comunicação Sertão-
Litoral tornou-se mais fácil e atrativa para aumentar a renda familiar. Tal fato, de certa
maneira, foi o pequeno passo para a profissionalização do cantador de viola que só veio
a torna-se realidade em fins da segunda metade do século XX.
Os Congressos na segunda metade do século XX trazem um novo elemento ao
mundo da cantoria, o elemento "mesa julgadora”. A mesa, em geral, é formava sempre
por poetas ou apologistas, ou seja, por pessoas que tenham certa familiaridade com a
arte de improvisação336, sendo composta, normalmente, de seis a sete julgadores,
inclusive o presidente, que tem o voto de minerva em caso de empates. Os

333
Ibidem.
334
Ibidem.
335
EVANGELISTA, Jucieude. L.; SOUZA, Karlla C. A. A poesia em movimento: enraizamento e
itinerância no repente. In: XV Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste e Pré-Alas Brasil,
2012. pp. 3-4.
336
ERNESTO FILHO, 2013. p. 32.
132

organizadores (ou comissão de organizadores) fazem os convites aos poetas que, a


critérios destes, formam as duplas. Os membros da mesa escolhem os motes a serem
sorteados para que os poetas declamem os versos. Cada rodada varia, mas normalmente
são dez minutos para o gênero cantado. Todos os integrantes da mesa recebem um papel
para ser preenchido (conforme ilustração abaixo) e, só então, o presidente faz a
contagem final e elege os vencedores. Há ainda a eleição do "Cantador da noite" pela
plateia realizada por meio de aplausos. Em alguns casos, o eleito não confere com o
melhor participante escolhido pela mesa julgadora.
Como os festivais e/ou congressos não eram organizados nem regulamentados
por uma única instituição, as regras estipuladas em cada encontro de cantadores faziam
parte de um ideal comum entre seus fomentadores, podendo variar de evento para
evento, de organizadores para organizadores. Hoje, os congressos costumam ter um
estatuto para impedir abusos e legitimar os vencedores. Luís Wilson 337 fez o
levantamento detalhado das regras do III Congresso de Repentistas e Poetas Populares
de São José do Egito em 1979, encontrando algumas diferenças do programa
organizacional dos congressos e festivais proposto por Pedro Filho. Nas normas do
congresso, na seção "Do critério de classificação", constavam quais obrigações os
poetas tinham de cumprir:

I - As duplas concorrentes terão cada uma o prazo de 20 (vinte) minutos para


demonstrar sua habilidade na arte da poesia improvisada, através dos estilos
escolhidos pela Comissão Organizadora do Congresso.
II - Os modelos escolhidos pela Comissão foram os seguintes: A tradicional
sextilha em "mote" para ser glosada em versos de sete sílabas. Um "mote" em
10 (dez) sílabas e um gênero sorteado.
III - Para o 1º estilo as duplas terão o prazo de 10 (dez) minutos, para o
segundo, de 5 (cinco) minutos e para o terceiro, de 5 (cinco) minutos.
IV - O assunto da sextilha será sorteado no momento da apresentação de cada
338
dupla, como todos os motes .

É conveniente abrir um parêntese para o entendimento da complexa


circularidade cultural a qual passou a construção do repente de viola. Comumente um
elemento de uma tradição popular, os congressos de repentistas foram encarados como
inovador, demonstrando um pioneirismo dentro da tradição339. Contudo, toda tradição

337
WILSON, 1986. pp. 34-37.
338
Ibidem. p. 37.
339
Para Ginzburg, esse tipo de postura de considerar um determinado elemento da cultura como sendo
inovador, quebra com a noção de dialogo entre as classes e as práticas culturais. Logo, “Insistindo nos
133

cultural, seja ela de origem popular ou de elite, tende com o tempo a sofrer um diálogo
entre elas, podendo, inclusive, chegar a um ponto onde não se distingue de onde surgiu
determinado elemento constitutivo de seu legado. Pereira da Costa registra os chamados
Oiteiros Poéticos: grupos de poetas que se apresentavam com bastante semelhança aos
congressos de repentistas. Segundo o mesmo, tal prática é longínqua, havendo registros
dela no século XVI no estado de Pernambuco, a qual ganhou forte prestígio até o início
do século XIX, onde, por volta de meados deste mesmo século caiu em total desuso. Os
oiteiros consistiam,

Em Pernambuco, como vimos, era à noite que se efetuavam os oiteiros, para


o que se armava um elegante palanque no pátio da igreja, como que
representando o monte Parnaso, sobre o qual tinha assento uma mulher
convenientemente trajada, figurando de musa a qual distribuía os motes
para serem glosados pelos poetas que concorriam ao certame.
Toda a praça se iluminava e se adornavam o palanque, e dado o mote pela
musa, cujos conceitos eram sempre adequados ao objeto da festa, quer fosse
religiosa ou não, aquele dentre eles que se propunha a glosá-lo, batia palmas
e recitava imediatamente a glosa. Não rara as vezes acontecia aparecer mais
de uma glosa sobre o mesmo mote.
Se a poesia agradava, harmonizando-se perfeitamente ao objeto do mote, e
formando um pensamento e naturalmente desenvolvido, uma peça, enfim,
artisticamente burilada, era o poeta vitoriado pelo povo com frenética
aclamação de palmas;[...].340

Esse tipo de prática é apontada por Rômulo Oliveira Júnior como reflexo de um
letramento crescente na capital do estado, bem como um progresso intelectual:

As conferências literárias tinham os motes lançados previamente, em que os


oradores levavam os versos, discursos e exageravam na verborragia e no
vocabulário difícil. Ou os motes eram lançados na hora e vários participavam
recitando versos decorados ou improvisados. Tal prática da oralidade
remontava aos tempos das apresentações de oiteiros e ao mesmo tempo
simbolizava o progresso intelectual, bem como a exposição das pessoas que
se letravam e estavam circulando entre o espaço público e privado.341

elementos comuns, homogêneos, da mentalidade de um certo período, somos inevitavelmente induzidos a


negligenciar as divergências e os contrastes entre as mentalidades das várias classes, dos vários grupos
sociais, mergulhando tudo numa mentalidade coletiva indiferenciada e interclassista”. GINZBURG,
Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das
Letras. 1988. p.12
340
PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto Pereira. Folk-lore pernambucano: subsídios para a
história da poesia popular em Pernambuco. 2ed. CEPE Editora, 2004. p, 293-294. (grifo meu). Rômulo
Oliveira Júnior ao estudar a atuação literária em Pernambuco em fins do século XIX, aponta que o
desenvolvimento de encontros (desde oiteiros até sociedades literárias) para discutir literatura foi
fundamental para a construção de um órgão que fosse a representação legal dos literatos e poetas,
Academia Pernambucana de Letras. Cf. OLIVEIRA JÚNIOR, 2016. Ver Capítulo I.
341
OLIVEIRA JÚNIOR, 2016. p. 126.
134

Dois pontos se assemelham com o que foi visto nos primeiros congressos. No
primeiro, diferente da prática da musa, eram fornecidos aos competidores motes ou pela
assistência, ou pelo público. Por fim, ainda sem existir uma mesa julgadora nos moldes
dos contemporâneos congressos, a aclamação do público definia o vencedor. Um
método comum entre os repentistas do fim do século XIX, e até mesmo ao longo da
primeira metade do século XX, consistia no uso de absurdos em suas poesias ou mesmo
uma mudança da temática, muito em voga pelo desenrolar da cantoria. Tal tipo de
prática também foi observada por Pereira da Costa nos saraus dos oiteiros, onde:

Nesse poético passatempo, que tinha por cenário quase sempre a praça
pública, diz Pacífico do Amaral, não era raro ver-se os poetas repentistas
empenhados em levar de vendida uns aos outros, na pugna das consoantes e
rimas, desviarem-se reciprocamente do assunto principal e atirarem-se ao
desconhecido, completando muitas vezes em sentido inteiramente contrário
ao pensamento apenas enunciado pelo colega in frente, como também
aproveitarem-se do ensejo para ferirem com epigramas e indiretas este ou
aquele indivíduo, costume ou uso.342

Há uma aproximação dessas práticas com o repente de viola não somente na


mudança de sentido que o verso toma, mas também, em sua forma comum de
improvisação: a quadra. Pereira da Costa apresenta alguns versos que sobreviveram da
primeira metade do século XIX, a exemplo de um oiteiro que houve em Recife após
algumas festas em homenagem ao nascimento de D. Pedro II, em 1825. Na ocasião, os
poetas Batista e Camões debateram em glosas:

Batista:
Ao nascer este menino
Que o império governará

Camões:
Para o banquete dará
Dona Maria o pepino

Batista:
Oh! Que presente mofino
O tal do pepino ofertado

Camões:
Batista, estás enganado
Porque o pepino dela,
Cozido em gorda panela
É excelente bocado!343

342
PEREIRA DA COSTA, 2004. p. 294.
343
Ibidem. pp. 294-295.
135

Nota-se uma forte semelhança com o modelo antigo de mourão bastante


difundido entre os repentistas, porém com uma linha a mais na última estrofe rimada
(no caso do mourão, termina-se em três linhas a última estrofe). Maior similaridade são
as décimas em mote que nos oiteiros eram declamadas, onde até mesma a estrutura
rimática (ABBAACCDDC) acompanha os repentistas até hoje. Pereira da Costa destaca
o mote “A Conceição de Maria” dado nas comemorações das festas de Nossa Sr.ª da
Conceição, do Menino Deus e N. Sr.ª. do Livramento. Nele podem-se perceber as
afinidades com o esquema de rimas das décimas heptassilábicas comum na cantoria.
Segundo Pereira da Costa, remete para meados do século XVIII:

Fez Deus no dia primeiro


O mundo sem luzimento;
No segundo o Firmamento
E fez o mar no terceiro;
No quarto fez o Luzeiro,
Que a todo o mundo alumia,
No quinto a animália,
No sexto fez os Humanos;
Daí a quatro mil anos
A Conceição de Maria. 344

A complexidade de apontar as barreiras das tradições demonstra-se mais


multiforme e inviável do que comumente é estabelecido. No século XX, uma nova
gama de poetas surge trazendo releituras e um matulão poético repleto de apropriações
culturais. Mas quem eram os poetas que Ariano afirmou pertencer a “Escola Moderna”?
O que eles tinham de diferente dos seus predecessores sertanejos e oiteiros oitocentistas
da capital pernambucana? Como já apontado, estes cantadores começaram a se aliar ao
rádio, fazer parte cada vez mais das páginas dos folcloristas que buscavam um
símbolo/representante da cultura e, não menos importante, a criação de uma nova forma
de se fazer cantoria, os congressos.
Muitos repentistas da primeira fase da Geração Moderna, que ganhou os grandes
palcos como os Irmãos Batista e Severino Pinto, tiveram como grande precursor e
inspirador o poeta Antônio Marinho do Nascimento (1887-1940)345. Nascido no

344
Ibidem. p. 295.
345
A admiração dos poetas deste período por Marinho é observada na ocasião, em 1946, da instalação do
busto do repentista em São José do Egito com o epigrama em forma de verso: “Em novecentos e onze/
Tremulou seu estandarte/ Quando este peito de bronze/ Deu início a esta arte.”
136

povoado Mundo Novo pertencente ao município de São José do Egito-PE, Marinho


inspirou e cantou junto de grandes astros do repente, como Rogaciano Leite e Severino
Pinto. Sua voz entoada e a capacidade de improvisar versos carregados de humor em
pelejas tornou-o o que Luís Wilson chama de “I faraó do reino dos cantadores de São
José do Egito”346. Assim, como para muitos cantadores contemporâneos, a possibilidade
do violeiro de viver somente da cantoria era quase impossível, mesmo assim:

Marinho teve a felicidade de nascer numa família ajusta. Cedo começou a


trabalhar. Diversificou seu trabalho exercitando o ofício de pedreiro,
carpinteiro, marceneiro, ferreiro e até oleiro. Só aos vinte e quatro anos
pensou em fazer poesia. Acreditou na profissão de cantador e
profissionalizou-se. Foi o primeiro cantador profissional de São José do
Egito.347

O profissionalismo de Marinho, a que Ivo Mascena se refere, foi uma busca mais
consistente por cantorias em sua região e, por vezes em outros cenários viajando pelo
Nordeste. Mas a agricultura e outros trabalhos sempre estiveram presente. Começou sua
carreira em 1911 e poucos anos depois, em 1915, viajou de trem de Rio Branco (atual
Arcoverde-PE) para o Recife, onde enfrentou Zé Duda (1866-1931), famoso repentista
da época. Sobre este encontro um folheto foi produzido, Encontro de Antônio Marinho
com José Duda, no Recife em 1915348. Casou-se em 1918 com Isabel Neves Marinho
com quem teve cinco filhos.
Sua vida de repentista ganhou maior notoriedade a partir da década de 1930
quando se mudou com a família por algum tempo para Alagoa de Baixo (atual Sertânia-
PE). De lá passou um tempo morando sozinho em Caruaru, onde criou renome fazendo
cantorias na Feira do Gado349 local. A importância de Marinho em Caruaru é apontada
por Mascena da seguinte forma:

346
WILSON, 1986, p. 159.
347
VERAS, Ivo Mascenas. Antônio Marinho do Nascimento: o precursor dos repentistas de São José do
Egito: história de uma vida. Recife, Bagaço, 2007. p. 33.
348
Apesar de o folheto afirmar em seu título que o encontro tenha sido no Recife, em uma dada estrofe do
mesmo o poeta afirma que foi até Moreno-PE (Na Vila de Natã) para fazer a peleja com Zé Duda. Luís
Wilson (WILSON, 1986. p. 164) põe a autoria do folheto a Antônio Marinho, porém, também é possível
ver na contra capa do folheto “Os milagres ou curas de Madame Jael em Recife” de João Ferreira Lima
afirmar que o encontro de Antônio Marinho e Zé Duda era de autoria deste. Tais folhetos podem ser
encontrados na Cordelteca Digital do CNFCP.
349
Local de comercialização de animais por fazendeiros da região. Tal tipo de feira é comum nas cidades
do agreste e sertão pernambucano.
137

Marinho também exerceu sua influência em Caruaru, como repentista de


talento. [...] Do centro da cidade para a Feira do Gado se realizava cantoria
todo dia. Marinho ainda desviou uns dias do seu tempo para tocar roça.
Depois de Marinho passaram por ali Pinto do Monteiro, Rogaciano Leite,
Lourival Batista Patriota, [...]. Era tanto cantador que Adauto Ferreira um
bom profissional passou a fabricar violas e vender. 350

Com o desenvolvimento das estradas e do trem, as regiões mais próximas ao


litoral começaram a se tornar atrativas para os poetas devido a uma grande concentração
de ouvintes em um só local (feiras de gados, grandes mercados, etc.). No entanto, o peso
da idade começou cedo para Marinho e ele decidiu voltar para o sertão por volta do ano
de 1935. Desta vez, voltou a morar em São José do Egito para melhor educação dos
filhos351. E lá permaneceu até sua morte aos 53 anos de idade.
Claramente, Antônio Marinho está inserido em um momento transitório da
cantoria de viola. Das antigas tradições das cantorias que podiam demorar a noite toda
até as longas viagens até o litoral. Por mais que, aparentemente, não tenha participado
de nenhum congresso, Marinho desempenhou um papel importante para os que nele se
inspiraram para fazer do repente profissão. Ivo Mascena registrou um desses momentos
das antigas tradições do repente no sertão. Na ocasião, Marinho cantava com o jovem
Lourival Batista e, como era de costume, as cantorias podiam ir até o amanhecer do dia.
Lourival com pouca experiência ficava constantemente reparando nas estrelas para se
situar a que altura da noite estavam. Então, Marinho improvisou:

Todo Cantador novato


Para cantar se oferece
Da meia-noite por diante
Fica fazendo uma prece
À Deusa da Madrugada
Pra ver se o dia amanhece.352

A vida itinerante dos poetas do repente, como visto anteriormente, era algo
bastante comum nos no final do século XIX e início do século XX. A dedicação aos
versos foi inspiração para muitos cantadores, sendo uma verdadeira forma de vida.
Entre os vários violeiros que declamaram, junto com Marinho, grandes desafios,
destaca-se Severino Lourenço da Silva Pinto, conhecido como Pinto do Monteiro

350
VERAS, op. cit., pp. 42-43.
351
Ibidem. p. 69.
352
VERAS, Ivo Mascena. Pinto Velho do Monteiro: o maior repentista do século. Ed. do Autor, Recife,
2002. p. 119.
138

(devido ao seu local de nascimento, Monteiro-PB), pelo qual alguns estudiosos dizem
que só foi derrotado em uma peleja pelo poeta acima mencionado.
Severino Pinto ganhou fama devido à rapidez com a qual processava
improvisações, bem como seu humor ácido em desafios com outros cantadores. Ivo
Mascena353 estipula que ao longo da vida, Pinto do Monteiro tenha cantado junto com
cerca de cem cantadores. Teve sua infância e parte da vida adulta ligada ao campo,
crescendo no Sítio Carnaubinha, no município de Monteiro-PB. Viveu com os pais até
que se mudou para a Fazenda do Feijão (pertencente ao Cel. Sizenando Rafael de Deus),
em 1910, para trabalhar de vaqueiro, ficando lá até seus 20 anos, em 1916.354 Em
entrevista concedida à Orlando Tejo (1935-)355, em 1975, Pinto falou um pouco de sua
trajetória na Fazenda do Feijão e como decidiu entrar para o mundo da cantoria. Ao ser
perguntado como começou com a cantoria, o poeta afirmou:

Eu era vaqueiro na fazenda do Feijão, no município de Monteiro, do Coronel


Sizenando Rafael de Deus. Ele era inimigo da cantoria.
Um dia eu disse que ia ouvir Antônio Marinho com Manoel Clemetino Leite.
Ele disse:
- Você não vai.
- Vou!
Ficou calado, passou-se... quando foi de tarde...
- Ô fulando, tem uma novilha minha com bicheira lá pros lados da lagos das
Marrecas, da Serra Vermelha, do Bola, por ali... vá pegar.
Eu fui ajeitar o cavalo, aí me lembrei...
- Ah! Ele não quer que eu vá pra cantoria!
Aí fui, e no outro dia ele estava de cara fechada. Cheguei junto dele e disse:
- Tá aqui suas perneiras, seu gibão... não quero mais ser vaqueiro!356

De imediato, Pinto não tentou a profissão do repente para seu único meio de
vida. Ficou “manzanzando... fui para Floresta do Navio e no dia 05.08.1916 me alistei
no 3º Batalhão da Polícia. Saí de lá em 09.01.1919, em Serra Talhada” 357. Neste tempo
o recrutamento para o combate ao cangaço estava em alta, por isso a facilidade de
alistamento. O pouco tempo que ficou na polícia foi marcado por insegurança e medo
de uma profissão mais perigosa que de vaqueiro. Chegou a ser fichado e preso por

353
Ibidem. pp. 97-100.
354
Ibidem. p. 127.
355
Construiu fama como repórter e principalmente por escrever o livro Zé Limeira: o poeta do absurdo.
356
NUNES, Joselito. Pinto Velho do Monteiro: um cantador sem parelha. Bagaço, Recife, 2009. p.45.
357
Ibidem. p.46.
139

entrar em uma briga contra um colega de farda que espancava uma mulher. Até que se
esgotou e pediu afastamento.358
De volta a sua terra natal, teve a oportunidade de cantar com Manoel Clementino
Leite na ausência de Antônio Marinho, que não pôde comparecer. Disse: “Clementino
pegou a cantar com um tal de Saturnino Mandu... aí eu disse: - Se for para cantar desse
jeito, eu também canto!”359. A partir daí sempre que possível, participou de cantorias.
Segundo Ivo Mascena, sobre o episódio com Manoel Clementino, este varreu elogios ao
iniciante no repente:

O seu potencial poético já era propalado desde o seu tempo de vaqueiro. Um


bom repentista naquela época já era uma projeção invejável para muitos
jovens pobres. Pinto era inteligente, dinâmico e simpático. Não tendo
instrução se ressentiu da falta desse atributo e era preciso a todo custo
adquiri-lo. 360

Pinto, ao contrário de outros cantadores que fizeram parte desta fase da cantoria,
não tinha um nível escolar alto361 e tentou suprir desenvolvendo mais suas estratégias de
improvisação, bem como construir um arcabouço temático para os debates com outros
repentistas. Do sertão, seguiu o rumo de muitos retirantes para tentar a sorte na capital
pernambucana. Morou no bairro do Arruda, subúrbio do Recife, e nesta cidade tentou
ser novamente policial, mas com sua ficha manchada não teve sucesso. Em 1930, tentou
instalar uma fábrica de cuscuz ao mesmo tempo em que fazia cantorias no Mercado de
São José362, muitas delas com o Cego Cesário (já citado). Segundo Pinto, ainda na
entrevista concedida a Orlando Tejo, disse que ganhava “duzentos bem cedo, cem de
noite, a cem réis..., ganhava dinheiro como o diabo”363. Nota-se que a tarde o mesmo
fazia cantorias pelo mercado, pois, o número de pessoas comprando era menor e os
comerciantes teriam mais tempo de ouvi-los.

358
VERAS, 2002. p. 128.
359
Ibidem.
360
Ibidem. p.129.
361
Segundo VERAS, 2002, p. 80, Pinto do Monteiro não teve educação básica e média, recebeu apenas
aulas particulares – não fica claro com que idade foram tais aulas, se ainda criança ou já adulto, quando
melhorava sua prática de cantoria –, onde aprendeu a escreve e ler, porém, criou o hábito de ler. Cantando
com o poeta José Faustino Vilanova foi incentivado a ler os manuais escolares para desenvolver tanto a
escrita e leitura, quanto a sua caixa mental de rimas e temas.
362
Segundo WILSON, 1986. p. 374, Pinto do Monteiro tentou neste período que morou na capital ser
enfermeiro no Hospital da Tamarineira no Recife.
363
NUNES, 2009. p. 46.
140

Com o tempo o empreendimento do cuscuz não o estava lhe satisfazendo como


antes e resolveu largar. Ficou por um tempo só de cantoria pelo Mercado, porém,
acabou por não lhe agradar a vida de (quase) pedinte que muitos cantadores tiveram
pelos mercados públicos. Viu que o comércio da borracha estava crescendo e, “meti o
pé para Fortaleza, Belém do Pará, Manaus, Porto Velho, Guajará-Mirim, voltei para
Belém, fui de novo para Manaus...”364.
No início dos anos 1940, foi para o Acre onde trabalhou como guia dos rios da
região. Fico na localidade até o fim da II Guerra Mundial, em 1945, quando volta para o
sertão nordestino devido, segundo fala do mesmo na entrevista a Orlando Tejo, “a
saudade da cachaça daqui era danada, aí eu voltei” 365. Em seu retorno, começou a cantar
com Lourival Batista366, vinte anos mais jovem, com quem teve uma parceria de
décadas. Em um desafio com o Lourival, os poetas comentaram a viagem de Pinto ao
Norte do país. Glosaram:

Lourival Batista:
Pinto foi pra o Amazonas
Pensando que enriquecia,
Além de não arrumar nada,
Se esqueceu do que sabia;
Nem canta como cantava,
Nem bebe como bebia...

Pinto do Monteiro:
Essa sua cantoria
Não me deixou satisfeito,
Nunca me faltou lembrança
E muita força no peito,
E a boca de beber
Ainda está do mesmo jeito.367

Ao voltar para o Nordeste, Pinto começou a cantar sem parar até que foi
chamado para participar do I Congresso de Cantadores do Nordeste, em 1948. A fama
cresceu e, juntamente com os Irmãos Batista, viajou no ano seguinte para o Rio de
Janeiro para uma série de apresentações. Sobre sua vida a partir da década de 1950,
finalizou, aproveitando sua fama de ser imbatível, a entrevista com Orlando Tejo
afirmando: “Depois de 1950, a minha vida é essa mesma. De cantoria em cantoria,
364
Ibidem. p. 47.
365
Ibidem. Pinto, constantemente, em suas falas e versos tinha um tom irônico. Pode ser que essa resposta
dada ao jornalista seja uma metáfora para “casa” ou “viola”
366
Formaram duplas depois da morte de Antônio Marinho, com quem Pinto tinha muito apreço na
profissão.
367
VERAS, 2002. p. 137.
141

cantando com cantadores bons e ruins. Os bons são poucos. Agora os ruins... ‘é uma
frasqueira que não tem prateleira que guarde’”368.
Pinto do Monteiro é um bom exemplo do poeta itinerante que se
profissionalizou, mas para tal algumas características foram fundamentais para
prosseguir tirando sobrevivência apenas da poesia. Primeiramente, teve os
conhecimentos, assim como o português, testados por poetas com uma escolaridade
maior que a dele. Certa vez cantou com o poeta José Tota, que improvisou tentando se
sobrepor a rapidez de Pinto com os conhecimentos temáticos:

Não tenho no improviso


Uma certa rapidez
Mas em História Geral
Eu posso cantar um mês
Como canto em Geografia
E discuto em Português.369

Em seguida, Pinto do Monteiro respondeu com seu humor característico:

O verso que você faz


Profundos defeitos tem
Tratando de uma matéria
Que de nós dois está além
Pois só um vernaculista
Conhece Português bem. 370

Outro ponto importante sobre a trajetória dos cantadores é que, a exemplo de


Pinto do Monteiro, os poetas que buscavam uma profissionalização no repente de viola
tinham aversão aos versos decorados. Mascena observa que, apesar de Pinto ter passado
bom tempo cantando no Mercado de São José, não procurou se reportar a versos feitos
em folhetos para os desafios que travava com os cantadores. Assim, relatou o entusiasta
e estudioso do repente: “acompanhei durante sessenta anos a trajetória poética de Pinto
e nunca ouvi um colega dizer que ele tivesse usado versos de outros cantadores
inclusive os romanceados”371. Dado momento, em uma reportagem feita por Felisardo
Moura, Pinto, já idoso, foi questionado se já havia feito balaio372 na vida e para quem.
Respondeu o velho repentista: “Pra Rogaciano Leite. Eu soube que ele estava cantando

368
NUNES, 2009. p. 48.
369
VERAS, 2002. p. 136.
370
Ibidem.
371
Ibidem. p. 133.
372
Termo usado para denominar versos decorados.
142

uns martelos lá em Fortaleza e dando em todo mundo, aí eu reparei oitenta ‘balaios’ e


fui lá cantar com ele”373. O poeta ainda acrescentou que se lembrava de todos os versos,
mas que não diria, pois, ainda poderia precisar com outro poeta. Somente forneceu
como terminam suas estrofes: Desmanche agora o pacote que fiz/ Nos dez de galope da
beira do mar”.
Analisando o material iconográfico encontrado de Severino Pinto, nota-se uma
mudança na forma como se apresentava para o público, sendo visível que tal
diversidade muito se deve a entrada dos poetas nos grandes palcos e a busca por novos
públicos. Nas imagens abaixo percebe-se a diferença com a qual muitos poetas
encararam tais mudanças, tanto de cenário de apresentação quanto ao tipo de plateia
com as quais estavam lidando, principalmente a partir da década de 1940.

Fig. 14

Fonte: Pedro Bandeira (à esquerda) e Pinto do Monteiro, em 1946. NUNES, 2009. p. 126.

373
NUNES, 2009. p. 43.
143

Fig. 15

Fonte: Pinto do Monteiro em foto de página inteira In: O Cruzeiro, 25 jun. 1949. Matéria “Poesia,
Feijoada e Viola” assinada por José Leal e fotografias de José Medeiros . Acervo BN. (grifo meu na
legenda “Severino Pinto, o maior”).

Assim como nas capas dos folhetos, a representação dos cantadores de viola
também é modificada ao longo do tempo. Na Figura 14, um registro de 1946, dois anos
antes do I Congresso de Cantadores do Nordeste, percebe-se que os cantadores posaram
para a foto com chapéus típicos de couro usados por vaqueiros no sertão e vestimenta
mais simples. Ao mesmo tempo, foram registrados em uma posição típica usada pelos
folcloristas (vide Figura 2), sentados como peças de museu. Já na Figura 15 vê-se um
poeta que se preocupou em mudar a aparência com a alteração do público alvo.
Também nota-se a forma como o fotografo procurou retratar o repentista de baixo para
cima, ao mesmo tempo que humaniza as expressões faciais do cantador. No próprio
subtítulo da matéria da revista O Cruzeiro pode-se observar sutis traços desta nova fase:
“Os cantadores nordestinos reúnem-se na residência do Prof. Nehemias Gueiros – Tarde
144

festiva para uma assistência de elite”374. Além dos familiares do dito professor, estavam
presentes na ocasião jornalistas famosos, o poeta Augusto Schmidt e Gilberto Freire.
Na cantoria organizada na casa do professor Nehemias Gueiros estavam, além
de Pinto, os Irmãos Batista. Estes caracterizam, não é à toa, a Geração Moderna de
Cantadores, a qual, Ariano Suassuna chamou de Escola em reportagem para o Jornal do
Commercio, em 1946.
O mais velho dos Irmãos Batista, Lourival Batista Patriota (conhecido como
Louro do Pajeú), nasceu em 1915, no povoado de Umburanas, hoje município de
Itapetim-PE, mas que na época fazia parte do território de São José do Egito-PE. Faz
parte de uma família de longa tradição de cantadores, remetendo aos irmãos Nicodeno
Nunes da Costa, Nicandro Nunes da Costa e Ugolino Nunes da Costa, famosos
cantadores do início do século XIX 375. Ainda muito jovem residiu em Recife com seus
pais, onde completou os estudos básicos376.
Assim como, Severino Pinto, em 1930, substitui Antônio Marinho em uma
cantoria, sendo esta uma das suas primeiras cantorias. Em outra passagem por Recife,
em 1932, “o pai o surpreendeu cantando com um cego no Mercado de São José.
Temendo a reação do patriarca, fugiu para João Pessoa e depois para o Rio Grande do
Norte”377, iniciando sua carreira como repentista. O receio do pai talvez esteja no
estigma do cantador ser encarado como pedinte, por isso, Lourival viajou para longe
para começar sua carreira. Casa-se com Maria Honorina das Neves, em 1938, porém, a
mesma falece em menos de dois anos de casamento. Volta a casar em 1948, com a filha
de Antônio Marinho, Helena Neves Marinho, com quem teve nove filhos.
Desde cedo resolveu viver unicamente da arte de improvisar e por isso viajava
bastante participando de quase todos os congressos de cantadores entre 1940 e 1960,
escreveu bastantes folhetos, mas nenhum livro, ao contrário de seu irmão Otacílio. O
maior destaque da vida de Lourival como cantador, foi ser conhecido por seus
trocadilhos na hora de improvisar, fazendo-o ser chamado de “Rei dos Trocadilhos”.
Exemplo bastante conhecido de um dos trocadilhos de Louro ocorreu quando cantava
com o violeiro João Andorinha, no Recife, onde improvisou:

374
O Cruzeiro, 25 jun. 1949. Matéria “Poesia, Feijoada e Viola” assinada por José Leal e Fotos de José
Medeiros. Acervo BN.
375
Já citados no Primeiro Capítulo e pertencentes à Geração Clássica de Cantadores.
376
WILSON, 1986. p. 292. Frequentou o Juvenato D. Vital, no bairro da Boa Vista, onde foi aluno da
professora Beatriz Ferreira de Lima, filha de um famoso cordelista de São José do Egito, José de Lima.
377
Ibidem.
145

Pra ser dragão estás errado


Mas Lourival te explica
Tira letra, apaga letra,
Bota letra, metrifica
Tira o “d” e apaga o “r”
Bota o “c”, ver como fica.378

O poeta Louro fez a transição da Geração Clássica para a moderna de


cantadores. Tal fato é notado em sua produção artística. Começou produzindo alguns
folhetos, alguns ganharam fama como Juscelino Kubitschek de Oliveira: vida,
progresso e morte do grande brasileiro. E, ao mesmo tempo, gravou dois LPs, um com
seus irmãos e outro com Pinto do Monteiro e Mocinha de Passira379.
O segundo irmão do trio de cantadores que compunham os Irmãos Batista era
Dimas Batista Patriota, nascido na mesma região que seu irmão mais velho, em 1921.
Viveu como cantador por volta de quinze anos e, assim como Rogaciano Leite, foi
considerado um dos maiores eruditos entre os repentistas. Participou de inúmeros
congressos, saindo vitorioso na maioria deles, inclusive no I Congresso de Cantadores
do Nordeste, em 1948.380 Aos 50 anos de idade, em 1972, formou-se em Letras
Clássicas pela Faculdade de Filosofia Dom Aurélio Matos, em Limoeiro do Norte-CE,
cidade onde passou quase toda sua vida. Em 1979, conclui o curso de Direito, pela
Faculdade de Souza-PB e, em 1983, graduou-se em Pedagogia, pela mesma
universidade na qual estudou Letras Clássicas, onde já atuava como professor da
disciplina de Português.
O lirismo de Dimas era bastante conhecido entre os repentistas. Alguns sonetos
ganharam fama, a exemplo de O Mundo, feito em estrutura petrarquiana381:

Não me conformo toda vez que penso


Em ser a vida tão misteriosa
Mas mesmo assim nesse negrume intenso
Há quem o veja sempre cor de rosa.

A Terra, um globo, vai no azul supremo


Acompanhando grande nebulosa,
Quem pôs o homem nesse denso?
Por qual motivo é que sofre e goza?

378
VERAS, Ivo Mascena. Lourival Batista Patriota. Recife: Ed. do autor, 2004. p. 300.
379
COSTA; PASSOS, 2013, p. 120.
380
Ibidem. p. 67.
381
Referente ao poeta italiano Petrarca (1304-1374), a estrutura é composta de dois quartetos e dois
tercetos.
146

Busco a verdade mas me desiludo


Como é que a vida foi originada!
Debalde é longo e cansativo o estudo,

A realidade nunca foi provada


Pois se do nada originou-se tudo
Justo é que um dia volva, tudo ao nada.382

O sucesso que o poeta Dimas fez em 1948 no Teatro Santa Isabel garantiu-o
fama nacional, o que o possibilitou viajar para o sul em várias audições, como já
afirmado acima. Gustavo Barroso (1888-1959)383, o então diretor do Museu Histórico
Nacional, no prefácio de Violas e Repentes384, denomina umas das estrofes
improvisadas por Dimas no I Congresso como estando entre as mais clássicas de todos
os tempos na história da cantoria. Ao ser pedido para improvisar no mote “A saudade é
companheira / De quem não tem companhia”, improvisou Dimas Batista:

Fraqueza da humanidade,
Alguém dirá, mas não é!
Diz a tradição que, até
Jesus chorou, de saudade!
Seu coração de bondade,
Da virgem se despedia!
Chorava, olhando a Maria,
À sombra de uma oliveira!
A saudade é companheira
De quem não tem companhia!385

A estrofe foi posta ao lado de famosos poetas, como Nicandro Nunes, Romano
do Teixeira e Antônio Pereira386 (1911-1983).
O mais novo no trio de irmãos cantadores foi Otacílio Batista Patriota, nascido
em 1923, onde hoje é Itapetim-PE. Trabalhou até os dezessete anos como agricultor
juntamente com a família e em uma Festa de Reis, em São José do Egito-PE, no ano de
1940, cantou pela primeira vez e decidiu tomar o repente como profissão 387. Seus dois
irmãos mais velhos já eram cantadores o que facilitou sua entrada no meio, porém, foi o

382
Ibidem. pp. 72-73.
383
Além de folclorista e membro da Academia Brasileira de Letra, Gustavo Barroso era museólogo,
cronista, romancista e advogado.
384
COUTINHO FILHO, 1972. p. 11.
385
LINHARES; BATISTA, 2013, p. 331.
386
O poeta analfabeto foi considerado um grande lírico das coisas simples, capaz de descrever com
genialidade e encantamento a “saudade”, as “flores”, etc. um de seus versos mais famosos diz: “Quem
quiser plantar saudade,/ Primeiro escalde a semente,/ Depois plante em lugar seco/ Onde bata o sol mais
quente, / Pois se plantar no molhado/ Quando nascer mata gente.”
387
Ibidem. p.17.
147

seu talento na improvisação que o fez ganhar ao longo da vida inúmeros torneios de
cantadores.
Boa parte de sua trajetória foi vivida em Limoeiro do Norte-CE, onde teve seu
contato com Ariano Suassuna, quando este passava férias no local. Em 1946, como
visto, veio junto de seu irmão para cantar no Teatro Santa Isabel pela primeira vez.
Cantou para várias autoridades ao longo da vida, a exemplo dos ex-presidentes: Eurico
Dutra, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Jânio Quadros, Figueiredo e Sarney. Em
1993, cantou para o Papa João Paulo II, quando este visitou Fortaleza.
Sem dúvidas, o que tem suma importância ao longo de sua vida foi a extensa
produção de trabalhos escritos contendo diversificados tipos de repentes. Inúmeros
folhetos foram escritos estando, entre eles: A morte do ex-governador Dixcept Rosado,
Zé Américo em versos, Versos a Câmara Cascudo, A Criança abandonada, O Caçador
de veado, Versão apimentada do Velho João Mandioca, O que é que me falta fazer
mais, O valor que o chifre tem, Peleja de D. Pedro I com Pelé, Peleja de Zé Limeira
com João Mandioca, além de outros. Gravou dez LPs com inúmeros cantadores entre a
década de 1970 e 1980.
No decorrer de sua carreira reuniu em livros seus versos e cantorias, entre eles:
Poemas que o povo pede, Poemas e Canções (1976), Rir até cair de costas (1979),
Poemas escolhidos (1993) e em parceria com Oliveira de Panelas, 1996, escreveu
Poetas do Povo e da Viola388. Uma de suas produções, em companhia de Francisco
Linhares, tornou-se referência para todos os pesquisadores da história da cantoria de
viola, a Antologia Ilustrada dos Cantadores, tendo sua primeira edição em 1976,
fazendo parte de qualquer bibliografia básica sobre a cantoria de viola.
Três de seus poemas ganharam fama nacional ao serem utilizadas como letras de
músicas por artistas ou bandas. O Dólar e o Cruzado, por Pinto do Acordeon389;
Martelo Agalopado, pelo Quinteto Violado, em 1979; e, a de maior sucesso, criada em
cima do mote em martelo “Mulher nova, bonita e carinhosa / Faz o homem gemer sem
sentir dor”390, musicado por Zé Ramalho em 1979 e gravada por Amelinha, em 1982,
que por sua vez foi trilha sonora para o seriado da Rede Globo Lampião e Maria Bonita,
sendo conhecida do público em geral inclusive na atualidade. O poeta usou da temática

388
COSTA; PASSOS, 2013, p. 138.
389
Não confundir com Pinto do Monteiro.
390
Lançou essa poesia em um disco feito juntamente com Clodomiro Paes, em 1973, intitulado Cantador,
verso e viola.
148

para falar de personagens históricos e suas relações com as mulheres. Em cinco estrofes,
cada uma dedicada a um momento da história, Otacílio Batista escreveu:

Numa luta de gregos e troianos


Por Helena, a mulher de Menelau,
Conta a história de um cavalo de pau
Terminava uma guerra de dez anos.
Menelau, o maior dos espartanos,
Venceu Páris, o grande sedutor,
E Humilhou a família de Heitor,
Em defesa da honra caprichosa.
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor.

Alexandre, figura desumana,


Fundador da famosa Alexandria,
Conquistava, na Grécia, e destruía
Quase toda a população Tebana.
A beleza atrativa de Roxana
Dominava o maior conquistador;
E depois de vencê-la, o vencedor
Entregou-se à pagã mais que formosa!
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz um homem gemer sem sentir dor.

A mulher tem, na face, dois brilhantes,


Condutores fiéis do seu destino;
Quem não ama o sorriso feminino,
Desconhece a poesia de Cervantes,
A bravura dos grandes navegantes,
Enfrentando a procela em seu furor.
Se não fosse a mulher mimosa flor,
A História seria mentirosa!
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor.

Virgulino Ferreira, o Lampião,


Bandoleiro das selvas nordestinas,
Sem temer a perigo nem ruínas,
Foi o rei do cangaço no sertão;
Mas um dia sentiu, no coração,
O feitiço atrativo do amor:
A mulata da terra do condor
Dominava uma fera perigosa!
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor.

Na velhice, o sujeito, nada faz...


A não ser uma igreja que visita;
Mas, se acaso encontrar mulher bonita,
Ele troca Jesus por Satanás;
Pensa logo no tempo de rapaz,
Diz pra ela: “Me ame, por favor”
A resposta que vem: “É não senhor.
Sua idade passou, deixe de prosa.”
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor.
149

Esse tipo de verso fez alguns poetas se destacarem por sua genialidade. Por
vezes, em cantoria é dado um mote simples ou que busque uma determinada temática e
que o poeta contorna e faz uma poesia além do tema proposto, como foi o caso do verso
acima. Otacílio se destacou no cenário nacional por seus trabalhos bem elaborados que
remontam a um estudo excessivo do poeta em aprimorar a rima ao máximo. Sinal de seu
reconhecimento no meio artístico foram as inúmeras matérias produzidas em jornais
impressos e televisivos, bem como um documentário intitulado Otacílio Batista: a voz
do Uirapuru391.
O último poeta aqui explanado não nasceu no Polígono da Poesia, mas tem um
papel fundamental no desenvolvimento do repente de viola como profissão. Domingos
Martins da Fonseca392, além de ser um dos vitoriosos no I Congresso de Cantadores do
Nordeste, contribuiu para a criação de uma das primeiras associações de cantadores.
Nascido no povoado de Santa Luzia, pertencente a cidade de Miguel Alves-PI,
em 1913, o poeta teve uma morte prematura, em 1958, devido a complicações derivadas
da diabetes.393 Viveu a maior parte de sua história em Fortaleza-CE, onde teve contato
com os cantadores da região, como Dimas Batista, Rogaciano Leite e Siqueira Amorim,
este último com quem formou dupla por muitos anos, inclusive no congresso
organizado por Rogaciano, em 1947, no Teatro José de Alencar, localizado na capital
cearense. Fonseca é considerado por Joaquim Mendes, organizador da Antologia dos
cantadores e poetas populares do Piauí, como o maior cantador da história do
Estado.394
Com as mudanças ocorridas ao longo dos anos e fortalecimento do
profissionalismo dos repentistas a partir de 1940, houve a necessidade de união do
grupo em forma de uma associação. A primeira que surge foi por iniciativa do poeta
piauiense, em Fortaleza no ano de 1951. A ideia surgiu alguns anos antes, em 1949,
quando Domingos Fonseca lançou, por intermédio de amigos jornalistas, no jornal O

391
Otacílio Batista: a voz do Uirapuru. Direção Geral: Mislene Santos. TV Cidade de João Pessoa. s.d.
Documentário dividido em duas partes e disponível em youtube.com.
392
Conhecido como o “Armazém do Improviso”.
393
O registro é que o poeta tenha morrido pobre e sem recursos de uma doença popularmente chamada de
fremon (não foi encontrado o nome científico da doença). BARRETO, Antônio Carlos. O Dossiê do
Fonseca. Teresina: ed. do autor, 1991. n.p.
394
MENDES, Joaquim Sobrinho. Antologia dos Cantadores e Poetas Populares do Piauí. Teresina: ed.
do autor, 2006. p. 85.
150

Mundo, o plano do mesmo de criar a Associação dos Cantadores do Nordeste com o


título de A Casa do Cantador. Segundo o próprio repentista:

Já tenho no Ceará terreno suficiente para a construção, como também cem


contos dados pelo Governador Raul Barbosa, empregados em casa e terrenos
para que sejam vendidos para esse mesmo fim. Mas a casa foi orçada em 700
mil cruzeiros, apresar de humilde. Desejo que na casa exista uma biblioteca
de pesquisar folclóricas, uma escola de curso primário para os filhos de
cantadores e meninos pobres. Salão de diversões populares, um abrigo para
cantadores e artistas populares sem recurso. 395

Para levantar a quantia financeira necessária na obtenção deste ideal, o poeta


viajou para São Paulo, Rio de Janeiro e, em seguida, Lisboa; ocorreu a promoção de
cantorias, doações, etc., todas com destinação para angariar recursos para a construção
da Casa. Domingos Fonseca inclusive lançou um livro intitulado Poemas e Canções, no
qual, o dinheiro da venda foi convertido em fundos para a Casa do Cantador, em
1951396.
Mantive uma breve biografia desses seis repentistas com o objetivo de criar uma
prosopografia voltada a explanação do momento em que se deu a mudança na dinâmica
da cantoria com a entrada destes nos meios de comunicações, bem como, o advento dos
congressos. Foca-se, também, nestes eventos, pois, como será visto adiante, foram os
mais relatados nos jornais que trouxeram, tanto a título de informação quanto
divulgação, momentos únicos no legado dos violeiros, como o I Congresso de
Cantadores do Nordeste, no Recife em 1948.
Cantadores anônimos das páginas dos jornais do final da década de 1930
transformam-se em figuras com nomes e individualidades na década de 1940. O longo
processo de apresentação nas capitais nordestinas deu-se com o trabalho dos folcloristas
fortemente atuantes, principalmente, entre 1900 e o início de 1930. Igualmente a estes
fatos, a postura de alguns entusiastas como Ariano Suassuna e Rogaciano Leite, que
será trabalhado no próximo capítulo, ajudou a interceder usando de influências para
tornar a chegada dos repentistas nos grandes palcos de teatro. No entanto, nada desses
personagens que mediaram o processo do repente se tornar uma prática cotidiana entre
as elites citadinas seria possível sem o papel transformador que a Geração Moderna de

395
BARRETO, 1991, p. 56.
396
A Casa do Cantador ainda existe em Fortaleza-CE, na Rua Coelho Fonseca, 195. Em 1986, é
construída outra Casa do Cantador, em Ceilândia-DF. Esta teve mais investimentos do governo, inclusive
o projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer. Hoje é considerada o “Palácio da Poesia e da Literatura de
Cordel no Distrito Federal”.
151

Cantadores propôs na mudança das práticas de atuação e desenvolvimento das cantorias


de viola.
Esse tipo de postura levou a uma nova dinâmica da cantoria de viola em um
processo de fortalecimento, desde o surgimento de um leque maior de gêneros até a
formação de duplas fixas. Com isso, o que mais se sobressai nesse momento é a entrada
dos poetas nos veículos de comunicação de massa e o surgimento dos grandes torneios,
dando visibilidade a uma série de improvisadores que ganharam fama nacional.
152

CAPÍTULO 4
ROGACIANO LEITE E O I CONGRESSO DE CANTADORES DO
NORDESTE

“A minha viola é fria,


É feita só de trabalho,
Se tiver um ponto falho
Não é da minha autoria.
Coloquei a cantoria
Como primeiro lugar,
No dia que eu me acabar,
Ela também vai morrer,
Esse é meu jeito de ser,
Ninguém consegue mudar.”
Ivanildo Vila Nova

A chegada de novos cantadores na chamada Geração Moderna fez surgir outras


formas de se praticar, assim como novas estratégias, a cantoria de viola. Uma das
características desse movimento vivenciado pelos repentistas nos grandes palcos. Agora
os holofotes seriam ligados para os poetas do repente. Poetas esses estimulados a
produzir uma poesia com elementos diferentes do que estavam acostumados e, para tal,
iriam manter um diálogo constante entre o erudito e o popular.
Dessas novas formas de apresentar o repente, as antigas pelejas seriam
representadas nos palcos, com uma nova roupagem, uma roupagem citadina, urbana,
litorânea. Não há como estabelecer quantos foram os congressos realizados entre 1940 e
1950, sequer afirmar com total certeza qual foi o primeiro. Porém, dois congressos
foram fundamentais para as mudanças de toada que a cantoria de viola adquiriu a partir
da segunda metade do século XX: a experiência do Congresso de Cantadores do Ceará
(1947) e o I Congresso de Cantadores do Nordeste (1948), ambos organizados por
Rogaciano Leite. A importância desses eventos está intimamente ligada a possibilidade
de abertura de portas para os poetas Brasil a fora. Além disso, ao fato de um início de
organização, criando associações que levariam o repentista a profissionalização (vide
Domingos Fonseca no Capítulo 3).
153

4.1 Rogaciano Leite: entre o popular e o erudito

Após o grande sucesso da cantoria promovida por Ariano Suassuna no Teatro de


Santa Isabel, parece que os cantadores ganhariam os palcos de vez. Neste momento
inicial, a figura de Rogaciano Leite foi de fundamental importância no que diz respeito
à chegada dos poetas aos teatros. Durante a pesquisa, é visto que Rogaciano realizou
algumas experiências antes de promover o famoso torneio na capital pernambucana.
Rogaciano Leite e outros (vide Dimas Batista no Capítulo 3) que começaram a
vida de repentistas e tornam-se conhecidos como poetas excelentes eruditos podem ser
encaixados numa perspectiva cunhada por Edoardo Grendi397, no qual, são chamados de
“excepcional normal”. Dentro dessa proposta, tais sujeitos que aparentemente são
considerados excepcionais, mas que de fato fazem parte do cotidiano de alguma prática
– no caso, repentistas da Geração Moderna. Mesmo que as construções de biografias
desses sujeitos não possam de fato representar a realidade do fato estudado, ajudam a
construir a noção de uma prática que viria a se tornar comum em determinado momento
histórico. Dentro dessa perspectiva, Grendi afirma que o excepcional normal pode
exatamente os documentos, já Carlo Ginzburg parte da noção que o excepcional normal
encontra-se nos sujeitos. Este último, ao analisar o pensamento de Grendi afirma:

[...] existe também aquilo que Edoardo Grendi chamou, sugestivamente, o


“excepcional normal”. A esta expressão podemos atribuir pelo menos dois
significados. Antes de mais nada, ela designa a documentação que só
aparentemente é excepcional. [...] Mas, o “excepcional normal” pode ter
ainda outro significado. Se as fontes silenciam e/ou distorcem
sistematicamente a realidade social das classes subalternas, um documento
que seja realmente excepcional (e, portanto, estatisticamente não frequente)
pode ser muito mais revelador do que mil documentos estereotipados. [...]
Quer dizer, funcionam como espias ou indícios de uma realidade oculta que a
documentação, de um modo geral, não deixa transparecer. Partindo de
experiências diversificadas e trabalhando em temas diversificados, os dois
autores deste escrito são unânimes em reconhecer a importância decisiva
daqueles traços, aquelas espias, aqueles erros que perturbam, desordenando-
a, a superfície da documentação. Para além dela é possível atingir aquele
nível mais profundo, invisível, que é constituído pelas regras do jogo, “a
história que os homens não sabem que fazem”. 398

397
Cf. LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Civilização
Brasileira, 2006. Ver Parte II, Capítulo II.
398
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. pp.
176-177.
154

Neste sentido procuro, concordando com Ginzburg, essencialmente fazer a


construção da biografia de Rogaciano antes de me prender totalmente ao que as fontes
dizem sobre o sujeito. No entanto, as fontes, por vezes, nos auxiliam na análise do
sujeito histórico, bem como em uma reconstituição da gama de novos cantadores de
viola que apareceram no cenário nacional a partir da década de 1940. A construção da
biografia de Rogaciano torna-se uma tarefa difícil devido a escassez de fontes que
retratem o momento proposto. Basicamente, as informações biográficas nessa sessão
foram retiradas de três livros. O primeiro deles corresponde a parte introdutória da
quarta edição de Carne e Alma (2009) de Rogaciano, no qual, o Prof. Dr. Marcos
Roberto Nunes Costa (UFPE) fez o levantamento biográfico a partir relatos e outras
fontes escritas. Marcos Nunes, ao lado Saulo Passos, escreveu a segunda fonte usada
aqui; corresponde a antologia Itapetim: “Ventre Imortal da Poesia” (2013). Além
dessas duas obras, o livro de Luís Wilson Roteiro de velhos cantadores e poetas
populares do sertão (1986) finaliza os trabalhos escritos usados nesta dissertação acerca
do poeta. Somando os dados biográficos estão as matérias jornalísticas escritas por
Rogaciano e as que se referiam ao mesmo na tentativa de reconstruir uma biografia
analítica do mesmo.
Rogaciano Bezerra Leite nasceu no sítio Cacimba Nova, atualmente município
de Itapetim, em 1 de julho de 1920. Desde cedo, despertou interesse para a poesia, tendo
seu primeiro desafio aos 15 anos com o poeta Amaro Bernardino, assim como Antônio
Marinho, com quem tivera grande estima.
Com a maior idade, saiu para ganhar o mundo à procura de novas oportunidades.
Nestas andanças começou sua vida de cantador na cidade de Patos-PB, onde conheceu o
grande improvisador Pinto do Monteiro. Posteriormente, já no Rio Grande do Norte,
conheceu o poeta modernista pernambucano Manuel Bandeira. Aos 23 anos, mudou-se
para Caruaru-PE, iniciando sua carreira como apresentador de programa de rádio na
Amplificadora Caruaruense. Seu reconhecimento pelo público da capital pernambucana
também se dá neste período, sendo chamado para animar festas particulares ou glosar
em palcos. Seu contato com poetas eruditos começa nesta época e já possui certa
visibilidade na mídia, conforme mostra uma reportagem sobre Rogaciano realizada pelo
Jornal Pequeno, em 1942. Com o título “A poesia não morre: Rogaciano Leite, jovem
155

poeta sertanejo, anda espalhando, pelas terras brasileiras, o brilho intenso da poesia do
sertão”399, o jornalista Antônio Freire afirmou,

Tinha razão alguém quando disse que “a poesia não morre, enquanto houver
na terra um coração que ame”.
Há indivíduos que têm procurado denegrir, matar, aniquilar a poesia, criando
os tais poemas modernos, que não são modernos, porque são poemas
logogrifos, poemas verdadeiramente charadísticos...
Poemas, que não têm poesia, porque ninguém entende, porque é diferente,
muito difícil, interpretá-los.
Esses indivíduos, felizmente, estão saindo da circulação e a gente vê, com
alegria, um verdadeiro poeta que surge.
É o caso de Rogaciano Leite, um jovem sertanejo, que hoje completa 22 anos
de idade400.

Novamente, nota-se na fala do jornalista a presença do discurso da “beleza do


morto”, ao mesmo tempo em que há uma necessidade de salvar a poesia que
supostamente estava sumindo, chamando-o de “verdadeiro poeta”. Possivelmente, tal
comparação foi uma crítica aos representantes da Semana de arte Moderna de 1922 401,
os quais, para Freire, estavam em declínio . Após uma breve biografia do repentista, o
jornalista continuou:

Visitou Rogaciano várias cidades brasileiras, alcançando sucesso a sua arte.


Faz sonetos, glosas e outras espécies de poesia, mas sua especialidade é o
repente.
Está, há dias no Recife. Contratado pelo “Clube Náutico Capibaribe”,
concorreu para o brilho da “Festa da cangica”, realizada anteontem pela
conceituada agremiação.
Há, dessa festa, um flagrante que não nos furtamos de revelar e que tão bem
demonstra o valor da poesia repentista do poeta402.

Vê-se que Rogaciano, desde cedo, não se contentou somente com o repente e
seus gêneros procurando se intercalar conhecer e explorar toda e qualquer forma de
poesia, pois, “leu Camões, Castro Alves, Casimiro de Abreu. Releu o Lusíadas, decorou
os versos de Espumas flutuantes e sofreu a dor de Casemiro, recitando sempre os “Meus

399
Jornal do Commercio, 24 set. 1946. Acervo APEJE.
400
Ibidem.
401
Movimento inaugurado em fevereiro de 1922, em São Paulo. A partir dele foi incentivado a liberdade
artística, promovendo novas experimentações, tendência que estava ocorrendo também na Europa. Com a
liberdade artística, criticada pelo jornalista, surgem as novas formas de poesia de versos livres. Cf. TÉO,
Marcelo Robson. O tocador pelo pincel: o sonoro, o visual e a sensorialidade, do Modernismo à Era
Vargas. (Tese de Doutorado em História Social). São Paulo: USP, 2011.
402
Jornal Pequeno, 01 set. 1942. Acervo BN.
156

oito anos”403. O mistério da fala do repórter foi explicado logo em seguida. Por volta da
meia noite, na festa no Clube Náutico Capibaribe, o poeta foi chamado ao centro do
salão para declamar algumas estrofes. Começou com uma sextilha:

O panorama tá lindo
A noite tá muito fria
E assopra a ventania
Nas fôia dos vergetá...404

Antes que pudesse terminar sua estrofe, um membro da plateia jocosamente


grita: “Cala a boca, burro”. De prontidão, mostrando rapidez de pensamento, Leite
improvisa de forma a quebrar, o que o repórter chamou “o gaiato da plateia”, ganhando
prolongados aplausos no recinto:

Antes de calar a bôca,


Tu cala a tua, animá...
Já tem um burro falando,
Não precisa outro fala.405

Falando sobre a chegada do cantador ao Recife, o jornalista mostrou um dos


versos em oitavas do poeta dedicado a referida cidade:

Recife – cidade bela,


Princesinha nordestina
Que dorme sob a cortina
Dessas noites de luar;
Noiva que sonha sorrindo,
Soltando beijos vibrantes
Nos lábios espumejantes
Da boca negra do mar.

Como são belas, tão belas,


Essas frondosas palmeiras
Que se levantam fagueiras
Tocando a face do céus!
Parecem santas da terra,
Mimosas noivas divinas,
Que tentam ver as retinas,
Dos olhos brancos de Deus.406

403
Ibidem.
404
Ibidem.
405
Ibidem.
406
Ibidem.
157

Rogaciano estudou para fazer os versos, ou seja, a sua elaboração foi engajada
em procurar as rimas ideais para manter a ideia constante na estrofe. Para tal, leu e foi
em busca de novas palavras para manter um intenso diálogo entre sua experiência no
repente com a poesia clássica e erudita, adaptando-a e transformando-a em uma peculiar
poesia sertaneja. Ao finalizar seu texto, o jornalista Antônio Freite destacou que,
“deixando São José do Egito, Rogaciano Leite não teve a ambição de cavar o ouro da
terra dadivosa, e, novo garimpeiro do sonho, veio até o litoral brasileiro, espalhando as
pedras preciosas da poesia do sertão”407. Rogaciano sintetiza esse novo cantador de
viola que migra para o litoral, para os teatros, um poeta preocupado em fazer do repente
uma profissão por excelência.
Suas audições no rádio o tornou famoso. O sucesso foi crescente e surgiu um
público cada vez mais presente a prestigiá-lo. Pequenas notas são publicadas no Jornal
Pequeno referidas ao poeta. Em uma delas, “com destino ao alto sertão, via Caruaru,
segue hoje o aplaudido poeta repentista Rogaciano Leite, que já se fez ouvir, com
sucesso, nesta cidade, em vários recitais”408. Rogaciano soube aproveitar de seus amigos
nos jornais para, constantemente, esse tipo de nota e até mesmo telegramas tendo ele
como referência fossem publicadas. No teor de uma dessas mensagens continha:

O inspirado e repentista trovador pernambucano, que o nosso público


conhece através de várias audições nesta capital, excursiona atualmente pelo
interior deste e de outros Estados, sempre com sucesso.
E, de onde está, não esquece os seus amigos e admiradores do Recife,
enviando-lhes e pedindo-lhes notícias através do JORNAL PEQUENO.
Agora mesmo, escreve-nos Rogaciano Leite, de Viçosa, em Alagôas.
E, aproveitando a oportunidade, mandou-nos os versos abaixo que
improvisou por ocasião do natalício do eminente Getúlio Vargas. 409

Os versos, em oitavas heptassilábicas, continham :

Brasil, meu Brasil que és forte,


Ergue teu formoso porte
Desde os penhascos do norte
Aos lindos campos do sul;
Num sorriso de alegria,
Num gesto de simpatia,
Festeje, pois, este dia
Que brilha em teu céu azul!

Brasil de graça e delícia,

407
Ibidem.
408
Ibidem.
409
Jornal Pequeno, 18 mar. 1943. Acervo BN.
158

Festeja, com carícia,


Esta data natalícia
De teu grande protetor;
Suplica a Deus que essa glória,
Repetida em nossa história,
Seja o triunfo do amor!410

Rogaciano demonstrava com frequência seu amor por Caruaru. Certa vez, em
uma entrevista bastante informal concedida do Jornal Pequeno falou de sua paixão por
morar na cidade citada.

Caruarú é a minha coqueluche. Boa terra. Boa gente. Mestre Pedro, o dono
da emprêsa telefônica, com o coração do tamanho do Brasil. Sensível. Amigo
dos artistas. Dr. José Carlos Florêncio, advogado e dirigindo o nosso Jornal
“Vanguarda” que dá conta de tudo; Dr. Silva Filho, que, além de médico,
também é poeta. A propósito: sabe que em Caruarú se realizou, ha pouco
tempo, um concurso de Quadras?411

As quadras de Rogaciano são famosas e um de seus trabalhos foi o vencedor no


concurso acima retratado:

Do Rosário ao pé do Monte;
Do Comércio ao Bairro Novo,
O Natal tem sido a fonte
Das alegrias do povo.412

Com o rádio, o poeta passou a se aproximar do jornal impresso, onde,


igualmente começou a fazer carreira. Em 1944, fixou residência em Fortaleza-CE.
Passou a trabalhar como correspondente de jornais publicando, principalmente para
Gazeta do Ceará, mas também colaborou com o A Tribuna e O Povo. Curiosamente,
tanto neste momento, como quando vai morar no Rio de Janeiro, quase nenhuma
matéria sobre os cantadores foi feita por ele, dedicou-se praticamente a escrever sobre
problemas sociais. Mas, sua pretensão como repentista não parou por aí. Em matéria do
Jornal Pequeno intitulada “Um repentista pernambucano em Fortaleza” 413, falou de
suas atividades como repentista na capital cearense. Promovendo apresentações
juntamente com João Siqueira, que tornou-se sua dupla neste período, Leite realizou

410
Ibidem.
411
Jornal Pequeno, 12 jan. 1944. Título: “Caruarú, poesia, busmuto e agradecimentos...: o poeta
Rogaciano Leite no JORNAL PEQUENO... Radicalmente curado... Trocas e concursos”. Acervo BN.
412
Ibidem.
413
Jornal Pequeno, 24 jan. 1945. Acervo BN.
159

eventos em praças, teatros (Pio X), “deliciando o auditorio com improvisações e


desafio, canções, emboladas, declamações e sólos de viola”414.

Fig. 16

Fonte: Rogaciano Leite (à esquerda) e João Siqueira de Amorim. In: Jornal Pequeno, 24 jan. 1945.
Acervo BN.

Em 1945, volta a sua cidade natal em Pernambuco e o repórter Ivo Leitão 415 que
no período fazia uma reportagem sobre a cidade de São José do Egito aproveitou para
falar de Rogaciano. Na ocasião, o repórter crivou elogios ao poeta que, ao contrário de
outros jovens que saiam do sertão para se tornarem bacharéis, não esquecia sua terra e
seu amor pela poesia do repente. A visita de Rogaciano a sua cidade também estava
relacionada a um congresso de cantadores416 que iria ocorrer em São José do Egito para
a inauguração do busto do poeta Antônio Marinho.
Entre 1945 e 1950, viajou por várias cidades nordestinas, principalmente por
Recife, onde realizou o I Congresso dos Cantadores do Nordeste, em 1948. Neste
período contribui com matérias especiais para alguns jornais pernambucanos. Um ano
antes do congresso em Pernambuco participou de outro no Ceará, no Teatro José de
Alencar, com poetas locais e de cunho competitivo. É certo que, o sucesso deste o
incentivou a fazer o grande evento na capital pernambucana que obteve maior
repercussão com poetas vindos de todos os estados do Nordeste. Entre 1948 e 1950,
414
Ibidem.
415
Diario de Pernambuco, 21 ago. 1946. Acervo BN.
416
Também apontado por Ariano Suassuna em matéria já citada (Jornal do Commercio, 01 de setembro
de 1946). Nesta ocasião, acredito que o termo “congresso” não se referiu a uma modalidade de
competição, mas sim a um encontro em homenagem ao poeta Antônio Marinho.
160

Rogaciano correu o país com os amigos violeiros, em especial com Cego Aderaldo,
Domingos Fonseca e os Irmãos Batista. Em 1949, bacharelou-se em Letras Clássicas,
pela Faculdade de Filosofia do Ceará. E, neste mesmo ano, com apoio da Comissão
Nacional do Folclore, levou poetas para um congresso no Rio de Janeiro causando
grande euforia, como mostraram os jornais locais. Chegou, inclusive, a levar os
cantadores para apresentação com o Presidente da República Jânio Quadros e o
Governador Ademar de Barros, de São Paulo417.
Entre suas matérias publicadas nos jornais pernambucanos, desta-se uma escrita
para o Diario de Pernambuco intitulada: “Os cantadores são privilégio do Nordeste”.
Nela, o jornalista destaca algumas poesias de produção dos poetas nordestinos,
principalmente de Cego Aderaldo. No entanto, no início de seu texto consta:

Por ocasião da minha recente viagem ao extremo norte do país, pude


observar que os cantadores são um privilégio único do Nordeste. Desde o
Maranhão até Manaus, não ouvi nenhum cantador, a não ser dois cegos que
encontrei num dia de feira na cidade de Caxias, cantando ao som de violas
porém num ritmo diverso e sem o fulgor da poesia dos nossos bardos
nordestinos.
É interessante notar que os cantadores sertanejos estão ressurgindo e que sua
presença constitue, hoje, algo de muito atrativo nos meios citadinos. Aqui,
em Fortaleza, tenho assistido inúmeros torneios desses surpreendentes poetas
incultos, que são frequentemente convidados, mesmo por gente alta, afim de
encherem o espaço de uma noite com seus “repentes” e o som mavioso de
suas violas bárbaras...418

Nota-se um discurso um pouco destoante de Rogaciano Leite. Ao passo que em


toda sua vida defende os poetas, os julga sem cultura. Muito se deve a sua aproximação
com a poesia erudita ao referir-se que aos repentistas falta cultura por não serem
letrados. Também se observa nas palavras de Rogaciano o que este chama de
urbanização dos cantadores de viola; o público das cidades (litorâneas) estava cada vez
mais atraído pelos violeiros. No entanto, vale salientar que a presença dos repentistas
nas grandes cidades não era um fato recente; os mercados populares estavam sempre
abarrotados de cantadores de viola. Mas, uma leva de improvisadores ganhou o público,
ou melhor, a elite das cidades grandes no período da publicação de Rogaciano.
Rogaciano, entre 1950 e 1955, residiu em São Paulo e no Rio de Janeiro onde se
apresentou com declamações ao Governador Ademar de Barros. Porém, dedicou-se

417
COSTA In: LEITE, 2009. n.p.
418
Diario de Pernambuco, 20 jun. 1948. Acervo BN.
161

mais a profissão de repórter, publicando para Gazeta de Notícias, Jornal Última Hora e
para Revista da Semana. Seus trabalhos de reportagens com publicações sobre temas
sociais o fizeram ganhar dois Prêmios Esso de Reportagem. Dentre as temáticas estão:
as reportagens sobre a usina Hidrelétrica Boa Esperança no Piauí (“Boa esperança é
sonho transformado em Realidade”); sobre a Amazônia e Roraima (“A Fronteira do Fim
do Mundo”); e a vida dos trabalhadores nos engenhos de açúcar pernambucanos (“No
Mundo Amargo do açúcar”). Grande parte de suas matérias tem relação a temas locais,
como assassinatos, problemas com drogas, pobres nas ruas, etc. sempre mantendo um
foco nas questões sociais. Duas publicações para a Revista da Semana se sobressaem. A
primeira, no qual tinha como título “O trem do folclore”419, onde, destaca-se sua visita
ao Recife. A segunda, sobre a Associação dos Cantadores do Nordeste420; ambas de
1954, ano de maior produção de Rogaciano para essa revista.
A primeira matéria saiu em uma edição especial da Revista da Semana sobre o
centenário do trem de ferro no Brasil. Na ocasião, Rogaciano se propõe a falar sobre o
trem no nordeste, introduziu no texto algumas poesias que envolvem a temática “trem”,
também sobre a relação que a população da cidade de Ipu no Ceará teve com a
inauguração da linha férrea naquela localidade. Destaca-se nesta publicação uma foto de
sua visita ao Mercado de São José onde foi para prestigiar a dupla de emboladores
“Preto Limão e Curiol”. Na imagem, observa-se um Rogaciano diferente, repórter,
destoante com o ambiente e o público do Mercado.

419
Revista da Semana, edição nº 27 de 1954. A data de publicação está ilegível. Acervo BN.
420
Revista da Semana, edição nº 34 de 21 ago. 1954. Acervo BN.
162

Fig. 17

Fonte: Rogaciano observando os emboladores no Mercado de S. José. In: Revista da Semana, edição nº
27 de 1954. Acervo BN.

Em sua matéria sobre a Associação dos Cantadores do Nordeste, Rogaciano


escreveu sobre a criação da mesma, que foi construída com o incentivo do Governo do
Estado do Ceará, através da doação de cem mil cruzeiros, e da Prefeitura de Fortaleza
com a doação do terreno. A ideia foi do poeta Domingos Fonseca, como já visto, em
1950, mas somente quatro anos depois do projeto que a Casa do Cantador foi entregue
totalmente construída. Domingos Fonseca tornou-se o presidente da associação e seu
antigo companheiro de repente, Siqueira de Amorim assumiu o secretariado ficando sob
responsabilidade da Casa prestar assistência aos cantadores e promover eventos.
Novamente, ao longo do texto, observa-se que Rogaciano Leite chamou atenção para o
novo cantador citadino, onde,

Essa é a poesia simples e espontânea dos cantadores do Nordeste [...]. A


civilização ainda não conseguiu destruí-los. Transformou-se, apenas, como
transformado está o seu meio ambiente. Os caminhões, o trem, o rádio, o
jornal e até mesmo o cinema imprimiram feição nova à paisagem humana e
social do Nordeste. As vias de comunicação facilitaram o êxodo e
confundiram o sertão com o litoral. Os cantadores [...] vestem-se com apuro,
falam corretamente e discutem certas matérias como qualquer professor.
Apesar de evoluídos social e intelectualmente, sua poesia é a mesma:
arrojada e pitoresca [...].421

Rogaciano viu esse momento de transição da cantoria de viola para os grandes


centros não como uma forma de estratégia para ganhar a cidade e o novo público, mas

421
Ibidem.
163

como uma evolução em que, ao mesmo tempo, o cantador “civiliza-se” e continua com
sua poesia característica. Porém, a poesia também mudou, os versos ganharam novas
roupagens, cobertas com um lirismo e um arranjo mais trabalhado, como táticas para
cativar a atenção do público.
Leite voltou a morar no Ceará após seu casamento com Maria José Ramos
Cavalcante, em 1954, com quem teve seis filhos. Na capital cearense passou a trabalhar
para o Banco do Nordeste do Brasil, mas, depois de um período, pediu licença do Banco
para dedicar-se exclusivamente à poesia e aos jornais, suas duas paixões. Começou a
fazer séries de turnês pelo país se apresentando em teatros com suas poesias, fez isso até
o último dia de sua vida, em 1969, vítima de derrame. Um ano antes de sua morte
chegou a passar um período na França e em outros países europeus indo, inclusive na
União Soviética onde, em um monumento na Praça de Moscou, deixou registrado um de
seus poemas, Os Trabalhadores422, que se refere aos trabalhos duros nas fábricas.
Destaco um trecho no qual pode-se observar como o verso de Rogaciano Leite
articulou-se entre o popular e o erudito:

[...]
Trabalhar! Que o Trabalho é sacrifício santo,
Estaleiro de amor que as almas purica!
Onde o pólen fecunda, o pão se multiplica
E em flores se transforma a lágrima do pranto!

Mas não vale o Trabalho andar a passo largo


Quando a estrada é forrada de injustiça e crime...
Porque em vez de dar frutos dúlcidos, sublimes,
Gera bagos mortais e de sabor amargo!
[...]423

Assim como o moleiro Menocchio de Ginzburg 424, Rogaciano teceu o contato


com a cultura erudita e a popular. Caminhou entre o pinho da viola e a pena dos sonetos
no estilo de Castro Alves, pelo quem tinha muita admiração. Por muitos, criticado,

422
Cf. CARDOSO, Paulo. Rogaciano Leite: do cordel ao erudito. Recife: [s.n], 2001. Apud LEITE,
2009. n.p.
423
LEITE, 2009. p. 74.
424
Gizburg trabalhou a Circularidade Cultural para elaborar o estudo sobre o processo inquisitório do
moleiro italiano Domenico Scandella, conhecido por Menocchio, que foi condenado por pregar ideias
contrárias pela elite vigente. Tais ideias foram sendo construídas ao passo que o moleiro Menocchio tinha
contato com leituras e as interpretava com seu olhar de camponês inserido em uma realidade cultural
diferente da que se projetava pela elite, no caso, a Igreja. Ideias como que a vida teria sido gerada da
putrefação, do caos, etc. Assim, o historiador nos fala das leituras feitas pelo moleiro: “[...] pelo menos
um livro o inquietara profundamente, levando-o, com suas afirmações inesperadas, a ter pensamentos
novos. Foi o choque entre a página impressa e a cultura oral”. GINZBURG, 2006. p. 89.
164

principalmente nos anos de 1940-50, pois, a manutenção do popular como um objeto


estático de museu era a ideia recorrente. A exemplo das críticas que recebia, cito a de
Clovis de Melo pelo Jornal do Commercio em 1955 ao se referir a Rogaciano como um
ex-cantador,
Tenho diante de nós numerosos exemplos de poetas que foram outrora bons
trovadores populares e depois passaram a s maus poetas eruditos. A exemplo
de Rogaciano Leite é clássico Cantador dos bons, discípulo de Severino
Pinto, teve pelejas históricas, [...] ingressou no jornalismo, venceu em toda
linha. [...] em 48 transferiu-se para o Rio, de onde tem enviado à imprensa
pernambucana maus versos eruditos.425

Todavia, o diálogo cultural em sua poesia o fez ser elogiado por muitos. Entre
outros, assim se referiu ao poeta Rogaciano Leite, Câmara Cascudo,

Rogaciano é apenas, única, funcional, realmente, o poeta. É o título, função,


credencial. A poesia não lhe é somente o conteúdo mas o continente.
Desaparecendo o motivo, evaporar-se-ia como uma ampola de perfume
pulverizada. 426

Ou como afirma o filósofo Marcos Roberto Nunes Costa:

A produção literária de Rogaciano, como poeta erudito, assemelha-se à de


Castro Alves, em quem se espelhou, [...]. Já como poeta popular, Rogaciano
recebeu influência de vários poetas populares, especialmente do Cego
Aderaldo, de quem foi grande amigo, parceiro e admirador.427

Em determinada altura de sua vida, Rogaciano passou a fazer versos livres em


estilo modernista e sonetos, ou seja, versos ditos eruditos. Porém, mesmo tendo
deixado, por momentos, a viola de lado, nunca deixou de prestar homenagem e respeito
aos poetas que o fez entrar no mundo da poesia. Um dos seus trabalhos mais famosos,
Aos Críticos, reflete bem essa ideia que trabalho aqui. Rogaciano, em oitavas, glosou:

Senhores críticos, basta!


Deixai-me passar sem pejo,
Que o trovador sertanejo
Vai seu pinho dedilhar...
Eu sou da terra onde as almas
São todas de cantadores
-Sou do Pajeú das Flores

425
Jornal do Commercio, 16 jul. 1955. Acervo APEJE.
426
CASCUDO, Câmara. Prefácio. In LEITE, Rogaciano. Carne e Alma. 3 ed. Recife: FUNDARPE,
1988. p. 13.
427
COSTA In: LEITE, 2009. n.p.
165

Tenho razão de cantar!

Não sou Manuel Bandeira,


Drummond, nem Jorge de Lima;
Não espereis obra-prima
Deste matuto plebeu!...
Eles cantam suas praias,
Palácios de porcelana,
Eu canto a roça, a cabana,
Canto o sertão... que ele é meu!

Pede, ó lira inexpressiva,


(Antes que o tempo empoeire)
Piedade a Gilberto Freyre,
Lins do Rêgo e Alvaro Lins!
Carpeaux! Rachel! Milliet!
Ó donos de suplementos,
Cem folhosas de versos ruins!
[...]
Comecei cantando trovas
Com repentistas nativos;
Depois, por vários motivos,
Vim para Cidade – de vez.
Troquei a calça riscada
E o meu peletó de “roda”
Pelo jaquetão da moda,
Colarinho e pince-nez!

Quando deixei as caastingas


E cheguei cá na Cidade,
Diante da Civilidade
Quase morri de um “ataque”
Comecei a ler Castro Alves,
Guerra Junqueira e Tobias,
Catulo, Gonçalves Dias,
Varela, Cruz e Bilac!

E de todos esses mestres


Tive uma influência forte:
Deixei as várzeas do Norte,
Quis subir como um Condor...
Muito mais antes guardasse
Meu estilo e minha escola
Com o mesmo som da Viola
De quando fui cantador!

Agora é tarde... impossível!


O contágio da Cidade
Mara a originalidade
E impõe-nos mais pecado
De ficarmos no entremeio
Deste e daquele reduto,
Com o complexo de matuto
Que quer ser civilizado!

Resultado: não sei como


Publico meu “Carne e Alma”...
Os modernistas, sem calma,
Hão de dizer, mesmo assim:
166

“-Isso não se usa mais hoje!


Isso é puro anacronismo,
Péssimo condoreirismo,
Pastiche muito ruim!..” 428.

Vários momentos em seu poema há elementos que denotam a circularidade


cultural que Rogaciano desenvolveu ao longo de sua vida. O poeta iniciou se
apresentando com oriundo do Pajeú dos cantadores, depois, já na segunda estrofe, ele
separa o que considera popular e erudito, bem como os temas que cada um trabalha. Na
estrofe seguinte, o poeta pediu autorização e mostrou que conhece a cultura erudita. Vê-
se que Rogaciano não era um defensor qualquer dos poetas do repente; ele era
escolarizado, “erudizado”. Lia de tudo: dos eruditos aos folhetos. Com isso, fez
apropriações do erudito para o popular e vice-versa. Em sua penúltima estrofe aqui
citada, o poeta notadamente assumiu sua circularidade cultural, “agora é tarde”.
Em julho de 1948, poucos meses antes de organizar o I Congresso de Cantadores
do Nordeste, Rogaciano esteve em Recife para uma audição no mesmo teatro que iria
ocorrer o congresso, Teatro Santa Isabel. Na ocasião, o jornalista Guerra de Holanda fez
uma longa entrevista com Rogaciano onde este comentou um pouco sobre esta
dualidade que aqui vem sendo exposta. O jornalista citando outro colega de profissão,
Silvino Lopes (1892-1951)429, falou das impressões deste último sobre Rogaciano Leite,
onde, afirmou: “Está na cidade, um poeta maior do que Castro Alves. Um poeta que
conseguiu fazer com as rimas e com a métrica o que Castro Alves não conseguiu com a
‘Cachoeira de Paulo Afonso’: ganhar dinheiro!” 430.
Segundo o texto, Rogaciano já havia acumulado 78 mil cruzeiros em suas
apresentações pelos estados do Norte e Nordeste: “um lucro extraordinário para um
capital desvalorizado como é a poesia, entre nós” 431. O jornalista já identificava essa
veia lírica de Rogaciano Leite ao passo que, ao citar sobre a vida de andarilho que o
poeta vivera, igualmente as de outros cantadores, afirmou:

Nunca mais pode se libertar do desejo de andar espalhando por tôda a parte, a
sua poesia, uma poesia que canta a sua terra e a sua gente, mas uma poesia
que não se expressa naquela linguagem comum dos cantadores do sertão. É

428
LEITE, 2009. pp.19-22. (grifo meu).
429
Silvino Lopes, natural de Itambé-PE, foi jornalista, cronista, poeta e teatrólogo. No próximo tópico,
Silvino Lopes terá um destaque, ao passo que este foi responsável pela mais longa reportagem narrando o
dia-a-dia do I Congresso de Cantadores do Nordeste, em 1948.
430
Jornal Pequeno, 29 jul. 1948. Acervo BN.
431
Ibidem.
167

uma poesia que entra nas academias de letras, como aconteceu no Maranhão,
no Pará e no Amazonas. 432

Notadamente, os trabalhos de Leite estavam absorvendo um lirismo


característico das poesias de gabinete (adotadas pela elite) e, portanto, pelas academias
de letras. Em outro momento da entrevista, já perto do fim, o próprio Rogaciano admitiu
sua paixão pelos líricos ao afirmar: “Sou doente por lirismo. Sempre fui um menino
triste, impressionado com o sofrimento de meu povo em luta contra a terra. Refletindo
433
esse estado de alma, apresentarei poesias como esta – ‘Os Trabalhadores’” . Ao
mesmo tempo em que foi crescente sua necessidade de produzir com um lirismo mais
acentuado – espelhado em Castro Alves –, Rogaciano procurou chamar atenção para as
suas raízes poéticas: o sertão. Tal fato é visto quando declara,

Sou também um poeta conquistado pelo sertão, a minha terra que não a
esqueço, que vive em mim por onde vou. No Santa Isabel, terei a
oportunidade de mostrar ao povo da capital como o sertão é belo e diferente,
uma terra feira do sofrimento do homem e do abandono de si mesma. 434

Esse tipo de postura acompanhou muitos poetas, como Dimas Batistas e outros
que vieram depois dele. Há uma atitude nesses novos poetas da Geração Moderna, que
procurou outros horizontes poéticos, novos desafios, temas e estruturas em suas estrofes
a metrificar. No entanto, mesmo que por vezes partam para o lirismo, sempre estão se
remetendo a poesia popular dos repentistas como sendo o berço que foram criados em
meio às rimas.
Assim como diz nos seus versos, Rogaciano quis mostrar ao mundo “civilizado”
a grandeza da poesia sertaneja. Queria que os grandes públicos vissem nos teatros o que
o cantador conseguia fazer nos improvisos da viola. Em 02 de junho de 1947 fez sua
primeira experiência em um grande palco com apresentação de, aproximadamente, dez
duplas de cantadores no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, durante três dias. Os
vitoriosos, por aclamação do público foram os poetas Cego Aderaldo e Otacílio Batista,
este estreava em congressos.
O próprio Rogaciano Leite deixou o registro do que ocorreu neste. Em uma
matéria escrita um ano depois do Congresso, como se estivesse tentando incentivar o

432
Ibidem.
433
Ibidem.
434
Ibidem.
168

apoio para a organização do evento em Recife. Com o título “Congresso de Cantadores


em Fortaleza”435, Rogaciano expõe sua alegria em levar os cantadores para uma audição
no teatro cearense.
O radio, o teatro, e até mesmo o cinema já não constituem atrações originais.
Ainda mesmo que a sociedade moderna admita circunstancialmente os meios
requintados, não quer isso dizer que o espírito popular não se ressinta da falta
de uma novidade na qual possa sentir outra face da vida.
Essa face nova e desconhecida o homem da capital só encontra se
transportar-se para o sertão ou levar muito do sertão para a capital. 436

Rogaciano transmitiu em seu texto explicando o que seria, para ele, a


importância de trazer a poesia do sertão para a capital. Pois, o cinema e o teatro não
demonstrariam uma originalidade vista na poesia popular. Tal tipo de crítica também foi
feita aos modernistas, que para muitos defensores da poesia popular, não demonstravam
a “alma do povo”. Portanto, o “homem da capital” precisava conhecer um novo meio
original de entretenimento. Deviriam aproveitar o momento, pois,

As estradas de ferro, o radio, os jornais e os aviões não conseguiram ainda


desvirtuar essa poesia do matuto romantico. Os cantadores, levemente
contagiados pela mota atual, poderão usar óculos “modernos” e sapatos de
“dois andares”. Mas sua alma permanece virgem.437

Interessante notar na fala de Rogaciano que o que ele propõe de novo


entretimento para o “homem da capital” pode influenciar a dinâmica do repente até
certo ponto, ou seja, o cantador mudou, urbanizou, mas a prática de improvisação deve
se manter estática, imóvel como uma obra de arte no museu. O repente, como um
elemento cultural, está sujeito a mudanças, pois, os homens que a fazem não são os
mesmo; estão carregados de novas visões de mudo, novas representações e apropriações
do que deve ser o seu trabalho. A alma do cantador não deve permanecer virgem, como
as pepitas não lapidadas do jornalista Fernando de Barros. Tal fato é observado, por
exemplo, na constante mudança que o repente vem adquirindo ao longo das gerações no
século XX.
O congresso que Rogaciano organizou contou com mais de vinte poetas
(residentes no Ceará), tendo destaques na participação de: Zé Batista, Vicente

435
Diario de Pernambuco, 08 mai. 1948. Acervo BN.
436
Ibidem.
437
Ibidem.
169

Grangeiro, João Siqueira, Domingo Martins, Cego Aderaldo e Otacílio Batista. Na


ocasião,

O Teatro José de Alencar ficou repleto. Era um grande e original torneio. Os


cantadores subiram ao palco sem o menor acanhamento. Uns de óculos,
outros cegos, outro vestidos de “finos ternos de borracha” – a roupa mais
granfina – dizem eles438.

O jornalista poeta mandou que taquigrafassem os repentes, mas nem todos foram
possíveis devido a velocidade que saiam os versos. Algumas estrofes foram expostas na
matéria realizada sobre o evento, as quais destaco algumas a seguir. Já a premiação não
foi escolhida pelos organizadores, os comerciantes locais que se reuniram para “os
valiosos premios [sic]”439. O congresso começou como no formato das antigas pelejas,
os poetas se apresentaram, “mas o povo queria ouvir era o desafio ‘brabo’, os insultos
picantes”440. Entre os versos, destacam-se:

Zé Batista:
Eu na fé sou igual Abraão,
Na prudência sou mais do que Jacó,
Na paciência passei lição a Jó,
Mas na força sou mais do que Sansão
Cantador que cair na minha mão
Se despeça de mãe, padrinho e pai,
De um supapo que eu dou o couro cai,
Desconjunta a cabeça de enchaço,
Oa! Os pés, seca as mãos, queima o espinhaço
Apodrece a cabeça, a língua cai.

Vicente Grangeiro:
Eu hoje lhe dou um pescoção
Que da pancada corre daqui o povo,
Você cai, se levanta e cai de novo,
Quebra os ossos da cara pelo chão;
Fasto o pé e depois solto-lhe a mão
Acabando o róço que você tem;
Quem vier lhe acudir leva também
Tapa, sôco e bofete de punhado;
Não grite, não chore, apanhe calado
Que eu não posso ouvir grito de ninguem. 441

Após um tempo de disputa, as duplas eram trocadas. Rogaciano atentou para o


fato da dupla que se apresentaria em seguida, João Siqueira e Domingo Martins, serem

438
Ibidem.
439
Ibidem.
440
Ibidem.
441
Ibidem.
170

os mais letrados do plantel de cantadores no dia. Ao contrário dos poetas que iniciaram,
esses dois se apresentaram em sextilhas.

José Siqueira:
O Ceará é um jardim
Cheio de rosas e cravos,
O berço dos escritores,
A terra dos homens bravos,
Foi ela, primeiramente,
Que libertou seus escravos.

Domingos Martins:
O Piauí é um recanto
De pas e tranquilidade,
O ninho do sentimento,
Do amor e da soledade,
Terra de Da Costa e Silva,
O poeta da Saudade. 442

Depois de um longo desafio entre os cantadores do Ceará e Piauí, chegou a vez


de Cego Aderaldo e Otacílio Batista. Estes empolgaram a plateia o suficiente para levar
as premiações. Iniciaram em sextilhas, depois partiram para o Martelo Agalopado:

Otacílio Batista:
A tua boca é tão grande
Que causa admiração,
A gente olhando por ela
Vê até o coração,
E se procurar direito
Avista a China e o Japão.

Cego Aderaldo:
Tu fala da minha boca
Mas num convem fala dela
Que a tua tombem é grande
Que parece uma cancela,
Se tu num tive cuidado
Tu breve cai dentro dela.

Cego Aderaldo:
Danei-me uma certa ocasião,
Fiz o vento perder o seu açoite,
Fiz o sol se pôr á meia noite,
Fiz o dia ficar na escuridão;
Já corri escanchado num trovão,
Um corisco me viu e se escondeu,
Um raio ia descendo e não desceu,
Contei todas estrelas num segundo,
Já botei quatro rodas neste mundo,

442
Ibidem.
171

Mandei a terra correr e ela correu.

Otacílio Batista:
Na cabeça uma vez botei um gorro,
Transportei vinte e três canhões de guerra,
Dei um chute na base de uma serra,
Que São Pedro no céu pediu socorro;
Fiz um gato casar-se com uma cachorra,
Transformei uma velha num rapaz,
Virei o lado da frente pra traz,
Fiz um santo no céu viver de jogo,
De uma pedra de gelo fiz um fogo,
E que o diabo me falta fazer mais? 443

Rogaciano, no fim da matéria, frisou a importância que o Congresso teve, pois,


“O congresso de Cantadores foi um espetáculo inédito no Ceará e no Brasil” 444. Em
seguida, o jornalista poeta afirmou que viria a Pernambuco para a entrega do Busto de
Antônio Marinho a cidade de São José do Egito e que, “talvez seja possível realizar um
congresso semelhante no Recife”445. Mal o poeta sabia que o evento que iria organizar
em Recife seria chamado de I Congresso de Cantadores do Nordeste, por ter a presença
de cantadores de todos os estados do Nordeste, chamando atenção de vários veículos de
mídia do Brasil.
Dentro da construção biográfica de Rogaciano pode-se notar a complexidade
que é o sujeito dentro de um grupo social. Rogaciano pareceu ser uma pessoa que se
reinventou todos os dias de sua vida, mas vários questionamentos entram no limbo do
desconhecimento biográfico, tais como, os motivos de sua escolha em abandonar o
jornalismo promissor pela vida de um poeta que, por vezes foi bastante criticado por
abandonar a poesia popular na busca por uma poesia clássica que, por sua vez, também
foi bastante criticado por dar preferência ao oitocentista (apesar de também produzir
muitas poesias ditas modernistas) em um período de sucesso das poesias modernistas.

443
Ibidem.
444
Ibidem.
445
Ibidem.
172

4.2 O I Congresso de Cantadores do Nordeste

Devido ao sucesso ocorrido com o evento organizado por Rogaciano Leite em


Fortaleza, ele seguiu (como afirmado em matéria escrita pelo mesmo e exposta acima)
empenhado em desenvolver um encontro de cantadores mais forte, com mais
repercussão e, ao mesmo tempo, com um maior número de participantes. Agora, a ideia
era reunir violeiros de vários estados do então Nordeste. Em 1987, na abertura do II
Congresso de Cantadores do Recife que, na prática, foi programado como uma
sequência ao ocorrido de 1948, no mesmo local, Ariano Suassuna afirmou ao lembrar
de seu evento no Teatro de Santa Isabel, em 1946, quanto trouxe dois dos Irmãos
Batistas: “[...] Através de Lourival e dos outros Batista, o poeta e Cantador Rogaciano
Leite tomou conhecimento do êxito da Cantoria446, e teve a idéia e a coragem, que eu
não teria, de realizar, em 1948, o Congresso de Cantadores do Nordeste.[...]” 447. O
desafio para promover o acontecimento que se pretendia não estava somente em
convencer os administradores do local a usar o Santa Isabel, mas em toda uma logística
e investimento para deslocar os cantadores de seus estados e alocá-los na capital
pernambucana.
Para a realização do evento pretendido seriam necessários investimentos
financeiros, principalmente advindos do Estado. Quem encabeçou o projeto de lei com
tal intuito na Câmara dos Deputados de Pernambuco foi o deputado Manuel da Santa
Cruz Valadares448 (eleito pela UDN449). Partindo da perspectiva das exigências
regionalistas450, visto anteriormente, o discurso do deputado teve como embasamento a
noção do repentista como símbolo de um Nordeste aliado á retórica do morto de
Certeau. Publicado no Diário Oficial, o texto de Santa Cruz Valadares (projeto de lei nº
302 de 1948) afirmava:

446
Organizada por Ariano Suassuna, em 1946, como visto no Capítulo 3.
447
BEZERRA; RAFAEL, 1990. P. 13.
448
Interessantemente, Santa Cruz Valadares era da cidade de São José do Egito, a mesma de Rogaciano
Leite até a emancipação de Itapetim, em 1953, com projeto de lei do próprio Santa Cruz Valadares. A
família Valadares teve forte influência política na região do Pajeú, tendo ganhado força quando Inácio
Mariano Valadares (1896-1966), irmão de Santa Cruz, assume a prefeitura de São José do Egito na
década de 1930, com o Estado Novo. O mesmo Santa Cruz Valadares foi o primeiro juiz de direito da
comarca de Itapetim. Não obtive mais dados biográficos do deputado Valadares. Cf. WILSON, Luís.
Roteiro de velhos e grandes sertanejos. Centro de Estudos de História Municipal, 1978.
449
União Democrática Nacional.
450
Conforme explanado no Capítulo 2.
173

Os cantadores sertanejos são autênticos porta-vozes dos nossos costumes e


das nossas tradições, mantendo viva a nossa mais alta sensibilidade de
brasileiros, propagando a verdadeira poesia popular e oferecendo o mais
vasto material a estudiosos do Folclore, como Leonardo Mota, Rodrigues de
Carvalho, Luiz da Camara Cascudo e tantos outros451.

O discurso dos folcloristas mantém-se também na esfera política remetendo a


uma ideia compartilhada pela elite intelectual e política. Objetivando a ideia de
promover o evento como forma de salvaguardar o popular como elemento “porta-voz
dos nossos costumes”. Por conseguinte, o deputado Valadares, que propôs a doação de
trinta mil cruzeiros para a organização do evento, continuou:

Destarte, o congresso de Cantadores do Recife é um original acontecimento


que trará grandes proveitos ao panorama cultural da região nordestina,
constituindo, ao mesmo tempo, um motivo de propagação e divulgação do
nosso Folclore, que deve ser cuidadosamente estudado.452

Como será visto mais adiante, o congresso assumiu vários nomes nos periódicos:
“Congresso do Recife”, “Congresso do Nordeste”, “Torneio de Cantadores”, etc. Nesse
segundo momento de seu discurso, assim como no exposto anteriormente, o deputado
Valadares insiste na necessidade de manter a cultura (símbolo de uma nordestinidade 453)
viva e, para tal, a necessidade da continuação dos trabalhos dos folcloristas.
Continuando com sua defesa do projeto de lei, o político prosseguiu:

Cantadores de todo o Nordeste estarão reunidos no Teatro de Santa Izabel, no


dia 5 de Outubro, cantando as suas trovas e os seus desafios. E para trazer
toda essa gente dos mais longinquos recantos nordestinos, o poeta Rogaciano
Leite, promotor e organizador do congresso, está lutando com grandes
sacrifícios e arcando com enorme despesa para a hospedagem dos referidos
elementos.454

Neste momento, fica evidente que o evento pioneiro tinha tudo para ganhar
grande visibilidade devido ao seu tamanho. Finalizou seu texto com os dizeres:

Todos os improvisos e cantorias interprestadas durante o Congresso de


Cantadores, serão taquigrafados e enfeixados em volume, que deverá ser

451
Diário Oficial do Poder Legislativo de Pernambuco, 30 set. 1948. p. 1567. Acervo CEPE.
452
Ibidem.
453
Referente ao que propunha a demanda regionalista da década de 1920, no qual, propôs a criação de
uma identidade ou características que identificariam o que hoje é a região Nordeste, ou parte dela.
454
Ibidem.
174

imediatamente publicado como documentário da interessante festa regional.


Mais uma justificação para que o Estado ampare essa oportuna iniciativa. 455

O órgão responsável pela taquigrafia e registros fotográficos do Congresso de


Cantadores foi a Diretoria de Documentação e Cultura da Prefeitura do Recife, porém se
realmente ocorreu tal averbação não se pôde recolhê-los até então456. Três dias após a
publicação do projeto de lei, a Comissão de Finanças, Orçamento e Tomadas de Contas,
chegou a conclusão que seriam doados 20 mil cruzeiros (não mais 30 mil cruzeiros,
como havia solicitado o deputado Valadares) para a organização do evento. No texto
encontra-se:

Vencido. Por mais entusiasmo que tenha pelos nossos “cantadores” forçoso
reconhecer o estado de responsabilidade de nossos hospitais e o desamparo
de nossos agricultores.
Devemos atender as necessidades urgentes.
Quando formos um povo rico cuidaremos de nossos cantadores.457

Usando do pressuposto que a doação não poderia ser na quantidade estipulada, a


Comissão utilizou um discurso cauteloso com relação às necessidades primeiras do
Estado, mas sem desmerecer a importância que o evento tinha para a propagação de
elementos culturais. Tal fato pode justificar o motivo que levou ao valor investido no
evento ser próximo ao solicitado no projeto de Santa Cruz Valadares. O presidente da
Câmara dos Deputados, Pontes Vieira, em seguida fez um longo pronunciamento para
justificar a atitude da Comissão. Começou:
O projeto n. 302 do Sr. Deputado Santa Cruz Valadares e outros ilustres
deputados, autorizando o Poder Executivo auxiliar o Congresso de
Cantadores do Nordeste a ser realizado no próximo mês de outubro, nesta
capital, com CR$ 30.000.00 submetido á apreciação desta Comissão de
Finanças, Orçamento e Tomadas de Contas, e a mim distribuído para dar
parecer, merece sem duvida alguma, toda simpatia e apoio.458

455
Ibidem.
456
Durante minha pesquisa procurei de algumas formas recolher tais registros, mas como a Prefeitura do
Recife não tem um Arquivo, não houve como resgatar os registros até o momento, se é que sobreviveram.
O fato da não existência mais do órgão abriu-se a possibilidade de terem sido doados para outros órgãos
como a Fundação Joaquim Nabuco ou o Museu da Cidade do Recife, porém, ao contatar tais órgãos, não
obtive resposta positiva. Em compensação, segundo o jornalista Silvino Lopes, para o Jornal Pequeno (06
out. 1948), durante a cobertura do Congresso, observou que a equipe de taquígrafos estava por trás do
palco, porém, não conseguiam recolher os versos devido à velocidade com que os poetas declamavam.
457
Ibidem.
458
Ibidem.
175

Diferente do que foi visto anteriormente, pode-se observar que o nome do


congresso mudou novamente, de “congresso de Cantadores do Recife” para “Congresso
de Cantadores do Nordeste”. Em seguida, Pontes Viera continuou:

Anunciado há muitos dias o Congresso de cantadores do nordeste está sendo


esperado com ansiedade e grande interesse pela população desta Capital, cuja
imprensa o vem exaltando com entusiasmo.
Trata-se de um aspecto muito interessante da Cultura nacional relacionado
com a poética popular, que traduz nas trovas e versos improvisados dos
poetas e violeiros matutos, o mais profundo sentimento da roça que se forma
nesta parte do país.459

Como será exposto em seguida, aparentemente esse evento tornou-se pioneiro


quando comparado com o organizado pelo próprio Rogaciano em Fortaleza e o pequeno
campeonato que houve, em 1931, no Colégio Salesiano, no Recife 460. O texto seguiu
justificando que a poesia dos cantadores é reflexo de uma cultura nacional, identidade
do povo sertanejo e, consequentemente, nordestina como um todo. Prosseguiu ainda o
presidente da Câmara dos Deputados,

O conjunto dessas canções populares, que desabrocham da alma do povo em


ritimos falados e musicados tão expotaneo como o perfume das flores e o mel
que nos dão as abelhas é o que se chama folk-lore que define o caráter
personalistico de cada povo, pois através dele se manifestam os seus traços
psicológicos mais característicos.
O Congresso dos Cantadores e poetas populares do Nordeste, não nos trará
nenhuma solução para os angustiantes problemas que afligem o nosso povo,
Mas nem só de pão vive o homem.
[...] Serão eles portadores de uma mensagem da musica sertaneja nordestina
aos seus irmãos do litoral – mensagens de exaltação às nossas tradições e de
preservação dos nossos costumes. 461

No fim da fala de Pontes Vieira percebe-se uma reprodução do discurso presente


na época e em outros momentos, como visto, anteriormente, em algumas citações de
periódicos. A questão apontada na decisão do político de aceitar o pedido de liberação
de fundos para a realização do evento passou a ser tratada pela perspectiva de que nem
só de alimento e saúde (“pão”) vive a sociedade, mas também, as manifestações
culturais são importantes para divertir o público e, propiciar bem estar social (“circo”).
Além disso, o discurso exposto acima colocou na baila da discussão o contato do sertão
com o litoral, como uma forma de apresentar a um novo público, citadino do litoral, a
459
Ibidem.
460
Conforme exposto no Capítulo 2.
461
Ibidem.
176

poesia interiorana, que agora era caracterizada como sendo símbolo de um Nordeste
provedor de belas e inteligentes rimas.
Pouco se conhece especificamente sobre o público presente durante os três dias
de evento (5, 6 e 7 de Outubro, de 1948). Sabe-se, através das notícias dos jornais
locais, que o sucesso fora tamanho, que houve pessoas que ficaram em pé por falta de
espaço. Mas quem era esse público? A elite ou populares acostumados a assistir os
cantadores nos mercados, praças e festas religiosas? Os cantadores em muito ganharam
a atenção do público da elite econômica da capital pernambucana, muito pela influência
que os intelectuais transmitiram, principalmente, os que estudavam o folclore. Assim
Silvino Lopes, escrevendo pelo Jornal Pequeno, dissertou sobre o início do Congresso,
no subtítulo “Ainda era cedo”:

O inicio do Congresso de Cantadores do Nordeste, ontem à noite, no Santa


Isabel, foi alguma coisa de surpreendente, pois, não se poderia provar o êxito
do certame, sobretudo, porque a propaganda não excedeu os limites do
noticiário dos jornais.
[...] Ás 19 horas, eram inumeros os vultos que se dirigiam ao teatro, na ansia
de se munirem cedo dos seus ingressos.
A fila era enorme. De instante a instante paravam carros que despejavam
gente bonita e limpa.
Quando as portas se abriram entrou a onda e esta vai se espraiando, para
dentro de poucos minutos não ter um lugarzinho vago. Varias frisas e
camarotes apresentam-se com dez pessoas e até mais.
A noite faz lembrar aquela em que Bidú Sayão cantou, quando por um triz
não ruíram os velhos paredões, com a força dos aplausos.
Tudo que o Recife tem de fino e elegante lá estava para ouvir os violeiros.
Quem tinha ouvido queria ouvir. Quando o veleiro se abriu, viam-se em fila
os cantadores, empunhando as suas violas 462.

Em relação a afirmação feita pelo jornalista “tudo o que o Recife tem de fino e
elegante” pode-se inferir que foi alusiva a parte do público que lá esteve presente,
integrantes da alta sociedade. Tal fato demonstra uma circularidade cultural atuante
entre costumes populares se apresentando no palco e a elite citadina na plateia.
Encontrava-se no local, também, uma grande quantidade de espectadores populares
acostumados com a cantoria de viola nas feiras, no interior, festas populares, etc., pois,
houve uma grande assistência do público através do oferecimento de motes aos
cantadores.

462
Jornal Pequeno, 06 de Outubro de 1948. Acervo BN. Balduína de Oliveira Sayão, conhecida como
Bidu Sayão, foi uma famosa brasileira e intérprete da música clássica e cantora de ópera.
177

Em sua matéria sobre o fim do evento, Silvino Lopes voltou a falar sobre o
público que lá esteve presente. Na ocasião, o jornalista apontou que no último dia
haviam menos pessoas que no início das apresentações. Entre os presentes, estavam
personalidades importantes da sociedade recifense, como o famoso poeta Bebé
Seixas463. Sobre este, o jornalista afirmou: “O poeta que tão bem tem interpretado
Proust, que vive à Baudelaire, não se continha aplaudindo os Irmãos Batista e o
imaginoso Fonseca, [...]”464. Estavam também “magistrados, professores, jornalista,
comerciantes prósperos e amarfanhados”465.
De uma forma geral, nota-se que não somente as camadas populares
acostumadas com os cantadores nas feiras estavam presentes, mas também uma parcela
da elite econômica, política e intelectual da cidade do Recife. O único registro
fotográfico que foi encontrado acerca do público que prestigiou o evento do Teatro
Santa Isabel Registro integrou a matéria de capa do jornal O Globo, em 18 de outubro
de 1948.

463
Tomás Seixas (1916-1993). Segundo matéria do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Estado de
Pernambuco, o poeta era “dedicado a fazer de sua vida a vida de um dândi na esteira de Baudelaire e
Rimbaud, que representavam algumas de suas paixões literárias fundamentais, ao lado de Rilke, Kafka,
Joyce, entre outros”. Produziu algumas obras, que acabaram por ficar esquecidas até mesmo em manuais
como a antologia Pernambuco: terra da poesia, organizada por Antônio Campos. Disponível em: <
http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/93-especial/895-tomas-
seixas-a-fusao-entre-critica-e-criacao.html >. Acesso em 06 jan. 2017.
464
Jornal Pequeno, 8 out. 1948. Acervo BN. O título principal da matéria “Murilo Mendes perdeu o
melhor: O Congresso dos Cantadores foi encerrado ontem”.
465
Ibidem.
178

Fig. 18

Fonte: Registro do público presente no Congresso de Cantadores, em 1948, no Teatro Santa Isabel In: O
Globo, 18 out. 1948. Acervo de O Globo.

Como observado na imagem, o teatro ficou lotado até mesmo nos camarotes e
com pessoas em pé nas entradas. Ainda segundo O Globo:
Os cantadores recebiam da assistencia infindaveis aplausos, como se fossem
senhores de toda aquela reunião. Nada de acanhamento. Parecia-nos que o
teatro nada significava para eles mais que uma casa de fazenda no sertão.466

O palco do teatro a partir daí passou a significar uma representação das cantorias
de outrora nas fazendas do interior, houve toda uma apropriação do que seria o
espetáculo no sertão. Agora com uma nova roupagem, tanto na maneira como se
apresentam, como na forma de lidar com o público, que também mudou na região
litorânea, nas capitais. A quantidade de poetas se apresentando em forma de
campeonato também cresce, comparado com uma cantoria normal vista pelo interior do
estado naquele tempo. Mais a frente será visto como foi (em parte) o dia-a-dia do
evento, bem como algumas temáticas e gêneros improvisadas no cenário do Santa
Isabel.
Quatorze poetas se apresentaram durante as três noites do evento, alguns dos
quais ganhariam fama e entraram para o rol da fama dentre os melhores poetas
repentistas de todos os tempos. Estavam presentes no Congresso: Severino Pinto (Pinto

466
O Globo, 18 out. 1948. Acervo de O Globo.
179

do Monteiro, paraibano), Lourival Batista (Louro do Pajeú, pernambucano), Dimas


Batista (pernambucano)467, Otacílio Batista (pernambucano), Vicente Grangeiro
(alagoano), Domingos Fonseca (piauiense), Agostinho Lopes (pernambucano), Manoel
Domingos (paraibano), Manoel Nogueira (pernambucano), Josué da Cruz (paraibano),
João de Natália (pernambucano), Bola do Norte 468, Apolônio Souto (alagoano) e
Severino Milanez469 (pernambucano). Destacam-se neste primeiro momento os Irmãos
Batista, Pinto do Monteiro e Domingos Fonseca, que entre todos foram os que mais se
ganharam as páginas dos jornais da época. Apesar da maioria ser de pernambucanos,
não se sabe se residiam todos no estado naquela época, porém, os jornais trataram o
evento como sendo o primeiro interestadual470.
Comparado com outros momentos da poesia sertaneja nos periódicos até aqui
expostos, este sem dúvida trouxe uma grande visibilidade para os cantadores e,
logicamente, para esse tipo de evento. O organizador do Congresso e poeta Rogaciano
Leite, em uma matéria para o Folha da Manhã (São Paulo)471, um pouco antes do
espetáculo, comentou a chegada da “delegação” de poetas vindos do Ceará. Em seu
texto, Rogaciano agradeceu à FAB (Força Aérea Brasileira) por ajudar a trazer os
repentistas. O autor ainda expressou a dificuldade que era reunir os mais afamados
cantadores sertanejos em um único momento, principalmente no número que ele
pretendia levar ao teatro, nas capitais. O que chamou atenção, ainda, é que alguns poetas
não são citados como participantes do evento em outros periódicos. Como é o caso do
poeta Cego Aderaldo472, citado por Rogaciano e não por outros jornais. No subtítulo da
matéria “Perspectiva do Congresso”, o poeta contou, em linhas gerais, como seria o
evento que estava para acontecer em Recife. Rogaciano colocou em sua matéria:

Com a presença de mais de 20 cantadores nordestinos, o congresso de


violeiros será uma festa de cunho empolgante. Desafios os mais acirrados,
trovas as mais mimosas, improvisos os mais surpreendentes, eles nos trarão
da ribalta do Santa Isabel. Desde o Estado de Alagoas até o Piauí, virão

467
Residia no Ceará na ocasião do evento, acredito que fora o representante deste estado no evento.
468
Não encontrei referências sobre o poeta Bola do Norte.
469
Também grafado “Milanês”.
470
Como, por exemplo, registrado pelo jornal A Noite do Rio de Janeiro em telegrama do dia 01 de
outubro, daquele ano. A edição do jornal, no qual afirmou: “reina grande entusiasmo pelo certame, que é
o primeiro que se realiza com caráter interestadual”.
471
Folha da Manhã, 28 set. 1948. Título da matéria: “Chegarão, hoje, ao Recife Os Cantadores e
Violeiros Cearenses”. Acervo CNFCP.
472
Na matéria, Rogaciano Leite afirma que Cego Aderaldo iria chegar no dia 05 de outubro, dia de
abertura do evento.
180

representantes da poesia dos estados queimados, encher os murmúrios da


capital com a harmonia e a beleza virgem das almas simples 473.

Após esse breve resumo de como seria o congresso, Rogaciano complementou


afirmando que alguns estudiosos compareceriam as apresentações, a exemplo do
folclorista Câmara Cascudo. Sabe-se, através da matéria anteriormente exposta em O
Globo, que o folclorista paraibano Coutinho Filho esteve presente e fez uma pequena
palestra na abertura do evento. Outro ponto no texto de Rogaciano Leite salienta-se a
forma, na qual, tanto poesia quanto poetas eram tratados pelos periódicos. Termos como
“beleza virgem” e “almas simples” eram constantemente reproduzidos nos jornais ao se
referir à ideia do movimento folclórico de que os elementos culturais seriam a alma
simples da nação, a pérola não lapidada pelos tempos modernos. Tal fato ficou evidente
no subtítulo da matéria, “A 5 de Outubro, A Grande Festa Da Poesia Folclórica”, onde
se vê a importância dada ao aproximar a poesia dos cantadores ao folclore brasileiro.
Ainda sobre a maneira como expressavam-se os meios de informação ao se
referirem aos poetas e a poesia, pode-se complementar com o exemplo da matéria
divulgada na sessão “Teatro” do Diario de Pernambuco, que tinha como título
“Cantadores”. A publicação mencionava o fim do congresso, bem como as impressões
sobre os cantadores. Assim afirmou:

Rogaciano Leite, esse homem que já nasceu poeta em São José do Egito,
depois de realizar com êxito em Fortaleza um Congresso de Cantadores, veio
para o Recife e aqui está realizando um outro. Para tanto, mobilizou violeiros
de quasi todo o nordeste e levou-os ao palco do Santa Isabel, num desfile
inédito e original para os olhos virgens dos citadinos; de nós outros que só
estamos acostumados à poesia academica ou modernista, ambas guiadas
pela instrução e pela cultura, com que os vates da beira do atlântico
exteriorizam seu mundo íntimo.
Razão porque o ineditismo do Congresso tem levado multidões ao velho
teatro, cujas tabuas dos corredores, meio soltas e talvez apodrecidas, gemem
sob os pés dos espectadores, fazendo côro ao gemido dos poetas matutos,
acompanhados por suas violas afinadas e tambem chorosas.
Nesses espetáculos promovidos pelo poeta Rogaciano Leite temos visto o
que é a musa do sertanejo, de homens incultos, que não frequentou
escolas e que não assina o nome; porém que sabe fazer versos como
ninguem, pela expontaneidade e riqueza de pensamento, numa mobilidade
espantosa. [...].
Creio que nunca tivemos no Recife espetáculos iguais a esses promovidos
pelo vate de São José do Egito, trazendo para a capital a alma sertaneja,
pujante e bela, na voz e na agilidade mental de nossos cantadores humildes,
mas gigantescos no astro vigoroso e no repente inigualável. [...]. 474

473
Ibidem.
474
Diario de Pernambuco, 08 out. 1948. Acervo BN. (grifo meu).
181

Observa-se no primeiro destaque que a poesia do improviso sertanejo não era de


costume nos ambientes de câmara, como relatou Ariano Suassuna ao se referir do seu
problema para fazer o evento no Santa Isabel, em 1946. Porém, se evidencia uma
intenção de superioridade da poesia erudita com relação a popular, no qual, vê-se a
dicotomia: “cultura”-“inculto”; “beira do atlântico”-“sertanejo”; “instrução”-“não
frequentou escola”. Nesse caso, observa-se a clara vontade do autor, mesmo que em
momentos “sabe fazer versos como ninguém”, de elogiar a capacidade poética dos
repentistas e, com isso, vê à necessidade de retratar tais apresentações como peças de
museus partindo da premissa de estabelecer uma relação vertical entre a poesia erudita e
popular. No entanto, tal relação não pode ser estabelecida se partimos para a concepção
de circularidade cultural475 entre as várias camadas da sociedade. Logo,
impossibilitando estabelecer até que ponto a poesia erudita foi influenciada pela popular
e vice-versa.
Por fim, a quem se referia o jornal ao escrever “nós outros que só estamos
acostumados à poesia academica”? Por vezes, pode-se destinar determinada matéria ao
pensamento do autor, como feito com Rogaciano Leite, porém, neste caso faz parte do
editorial do jornal, podendo então refletir uma ideia mais ampla dos leitores do Diario
de Pernambuco (sem autos definido), em especial a página designada para publicar
informações sobre o teatro e poesia476. Tais consumidores dos assuntos tratados em
questão faziam parte de uma parcela da sociedade que não estava acostumada com
elementos da cultura popular apresentados em teatros. No entanto, se a elite econômica
e intelectual integrava parte desses leitores, começou a mudar, como observado mais a
frente. Esses iniciaram um contato mais profundo com a cantoria de viola e o poeta
popular “que sabe fazer versos como ninguem, pela expontaneidade e riqueza de
pensamento”.
Outro ponto identificado no texto é a incapacidade do jornal de levantar dados
sobre os poetas que estiveram presentes no evento, partindo de uma visão pejorativa por
ser poeta do repente, logo, não frequentavam escolas. Muito pelo contrário, essa nova

475
Partindo das obras de Carlo Ginzburg, no qual, este trabalha a partir de um influxo constante e
horizontal de influências entre as camadas sociais de um povo. Debate apresentado na Introdução.
476
Conforme OLIVEIRA JÚNIOR, 2016, o campo literário recifense para poesias de gabinete é bastante
no final do século XIX o que desencadeou a formação da Academia Pernambucana de Letras, em 1901,
sendo uma das primeiras do Brasil. Agora nota-se que, com o congresso, também é da cantoria de viola.
182

gama de poetas da Geração Moderna procurou desenvolver o estudo para maximizar a


profissão. Não somente é o caso de Rogaciano Leite que se tornou repórter, mas outros,
como o de Lourival Batista, que ainda jovem morou em Recife para estudar.
Rogaciano, como observado anteriormente, já havia comentado acerca do
contato que o cantador estava tendo com o meio citadino e, com o novo público que tal
ambiente proporcionara. Tal temática é uma constante na fala do poeta, como pode ser
visto em matéria escrita pelo mesmo para o Diário da Noite (Pernambuco), em 1956,
intitulada “Invadidas as cidades pela poesia do sertão”. Em um trecho, Rogaciano
afirmou:

Merece bastante atenção por parte dos sociólogos e folcloristas o fenômeno


evolutivo desses poetas anônimos que tanto enriquecem o patrimônio de
nossas tradições. O êxodo para as cidades não se restringiu às camadas
humanas que vivem exclusivamente de trabalhar a terra. Êle afetou também a
própria alma dos sertões, isto é, o conteúdo emocional de sua virginalidade,
então emanada daquele espírito displicente, filosófico e sentimental dos
homens rudes. [...] O sertão vai ficando deserto até mesmo de seus
cantadores, que hoje estão completamente absorvidos pela cidade, onde se
constata, a qualquer instante, uma espécie de invasão da musa campesina. As
estradas vasaram os campos e os grandes centros os roubaram ao seu
ambiente nativo477.

Mesmo que a reportagem tenha sido feita oito anos após o evento que está sendo
aqui descrita, pode-se ter uma noção da influência que as migrações tiveram na
mudança da dinâmica da cantoria, demonstrando uma representação cultural de fato
ocorrida. As articulações das práticas culturais da cidade grande/litorânea teve com o
elemento chamado “virgem” da cultura popular, o cantador, vindo dos sertões.
Decerto, muitos poetas chegaram antes do Congresso e participaram de
festividades ou apresentações para a elite pernambucana, e, até mesmo permaneceram
algum tempo após o evento478. Os primeiros cantadores a chegar ao solo recifense antes
do esperado encontro de pronto foram convidados a participar de alguns eventos, como
a visita da Duquesa de La Rochefoucauld479. Na ocasião, os poetas trajados de paletó
(imagem a seguir) posaram para o Diario de Pernambuco, que colocou como legenda
na foto:

477
Diário da Noite, 10 jan. 1956. Acervo CNFCP.
478
Segundo matéria de O Globo (18 out. 1948) alguns poetas permaneceram após o evento fazendo
audições particulares até receber a verba prometida pelo estado.
479
Edmée de Fels (1895-1991). Famosa nobre francesa, a qual foi largamente divulgada sua visita pelo
Diario de Pernambuco.
183

[...] Estão no Recife se exibindo em vários lugares e cantarão para a Duquesa


de La Rochefoucauld, jornalista Assis Chateubriand e membros de sua
comitiva, bem como tomarão parte em programas de radiofônicos sob
patrocínio de firmas e comerciais. Também estão em andamento negociações
para a realização de um congresso de cantadores repentistas no Recife, a
exemplo do que foi feito na capital cearense. [...]480

Fig. 19

Fonte: Da direita para esquerda: João Francisco de Oliveira, Agostinho Lopes, Severino Pinto (Pinto do
Monteiro) e Otacílio Batista. In: Diario de Pernambuco, 13 ago. 1948. Acervo BN.

Segundo o Diario de Pernambuco, o primeiro poeta da foto, João Oliveira, não


participaria da competição no Santa Isabel. Isso demostra que, apesar de nem todos os
cantadores puderam participar, o acontecimento trouxe boa visibilidade para os
repentistas que tentavam melhores ganhos financeiros na arte de improvisar.
Na abertura do Congresso, o organizador do evento, Rogaciano Leite (imagem
abaixo), apresentou ao público os cantadores que iriam participar de tal momento único
no legado deste elemento da cultura popular, visto que seria o maior encontro, até então,
de famosos poetas repentistas. Poetas esses que, de certa forma, contribuíram para a
construção de uma imagem nacional que se tem hoje do que seria a profissão do
cantador sertanejo improvisador, que estuda, leva sua arte ao máximo patamar. A
aparência e vestimenta mais cuidada dos repentistas foi fundamental, bem como
trabalhar o vocabulário, para quebrar o estigma de cantador de viola ser mendigo, além
de causar boa impressão para um público desacostumado com a poesia do repente.

480
Diario de Pernambuco, 13 ago. 1948. Acervo BN. Assis Chateubriand (1892-1968), foi jornalista,
empresário, advogado e membro da Academia Brasileira de Letras. A partir da década de 1920 construiu
um verdadeiro império das comunicações, tornando-se dono do Diários Associados, no qual o Diario de
Pernambuco fazia parte.
184

Fig. 20 481

Fonte: Rogaciano apresentando a maioria dos repentistas que participaram da competição. In: O Globo,
18 out. 1948. Acervo de O Globo (grifo meu).

Nesta imagem, vê-se Rogaciano Leite (à esquerda na Figura 20) de paletó preto
apresentando os repentistas que, em contrapartida, estavam à maioria de terno branco,
posicionando as violas encostadas à frente como forma de exibi-las, causando uma
imagem impactante para o público presente. Esse tipo de padronização pode demonstrar
uma contextualização de uniformidade do grupo, levando a acreditar que são
diferenciados de outros repentistas, ou que fazem parte de grupo de profissionais. Em
frente a eles, duas cadeiras, nas quais, cada dupla se apresentaria ao “pé-da-parede” do
teatro. O momento da chegada dos poetas ao Congresso foi descrito da seguinte forma
pelo jornalista Silvino Lopes:

Os poetas que iam chegando limitavam-se a procurar os seus cômodos, com


cuidado de não se separarem de suas violas. Não procuravam as redações dos
jornais a mexer os bolsos, dizendo que talvez encontrassem uma
fotografiazinha, como é comum acontecer com os poetas, da elite que, quanto
mais amigos, mais atormentam os jornais.
Pela simplicidade com que se apresentavam difícil, muito difícil, seria
identifica-los.
Não se interessavam pela topografia da cidade. Familiares das serras,
poderiam sentir qualquer impressão estranha, pisando a planície, mas, nada
lhes acontecia de estranho. Estavam aqui para cantar, sem nenhum assombro
certos de que os poetas são êles mesmo. 482

481
Imagem editada. Foi dado um destaque no contorno de Rogaciano Leite, pois, o paletó preto se
confundia com o fundo do palco.
482
Jornal Pequeno, 06 Out. 1948. Acervo BN.
185

Nas palavras de Silvino pode-se notar que alguns poetas já estavam


familiarizados com a impressa, tornando-se amigos dos jornalistas, ou como vimos, no
caso de Rogaciano, um colega de profissão. Também percebe-se a familiaridade dos
poetas com a “planície” (litoral), não estranhando a “topografia” (aspectos urbanos da
capital). Após a exposição dos poetas ao público, teve início a palestra do folclorista e
entusiasta Coutinho Filho. O conteúdo da palestra foi, segundo Silvino Lopes:

O palestrador surgiu e falou, dizendo da vida dos grandes poetas-cantadores,


a lembrar os maiores: Inácio da Catingueira, o parahibano Antônio Marinho,
Zé Pretinho e outros que se celebrizaram por todo o Nordeste, colocados na
mesma plana de Cassimiro de Abreu, Fagundes, Alveres de Azevedo e
Gonçalves Dias.
De fato, na expontaneidade [sic], na força imaginativa, Inácio da Catingueira
e Antonio Marinho não têm por que fugir à consagração nacional. 483

No texto nota-se uma tentativa, por parte de Coutinho Filho, de aproximar o


popular do erudito, ao mesmo tempo que, o jornalista do Jornal Pequeno reforça tal
ideia ao relatar que, na espontaneidade e capacidade imaginativa, os poetas poderiam
ser comparados aos poetas eruditos484. Coutinho Filho, em seu livro Violas e Repentes
publicado em 1953, tem um bom acervo de versos cantados entre os três dias do
Congresso, além de um capítulo dedicado especialmente para falar do evento. O curto
capítulo, “Maiorais do Congresso”, inicia-se exaltando o papel de Rogaciano Leite na
organização do certame, o retratando como jovem poeta que nasceu no sertão e chegou
ainda rapaz nos palcos dos teatros e nas folhas dos jornais. Assim, escreveu Coutinho:

[...] Quem aprendeu a cantar para viver, sertanejo e quase menino, possuindo
dom poético, que é um privilégio raro, e o gosto pelo canto popular, cujo
cultivo imortaliza. [...] Esse cantador foi Rogaciano Leite, com sua visão
realista, perspicaz e habilidoso, levando a bom termo o aplaudido certame,
coroando de êxito uma iniciativa prejulgada de temerária pelos descrentes e
desavisados.485

Na fala do folclorista observa-se a retomada da necessidade de imortalizar a


prática poética dos repentistas. Deixam de ser simples e humanos para serem dotados de
uma série de adjetivos que os levam a serem homens (e por assim dizer, poetas)
perfeitos. Além disso, chama atenção para o fato do evento não ter sido bem recebido de

483
Idem.
484
Por se encaixarem nos moldes das Academias de Letras, tanto a Brasileira quanto a Pernambucana. Cf.
OLIVEIRA JÚNIOR, 2016, pp. 44-48.
485
COUTINHO FILHO, 1972. p. 112.
186

imediato, havendo um prejulgamento dos “descrentes e desavisados”. Em seguida, o


autor focaliza nos cantadores que, para ele, foram os melhores no campeonato.
Coutinho já os conhecia por suas viagens pelo sertão obtendo material para a produção
de seus escritos. Para ele,

Salientaram-se nas audições do histórico Congresso, distinguindo-se nos


aplausos da assistência, e nos votos da classificação para a legítima conquista
de prêmios, os repentistas Domingos Martins da Fonseca, Severino Lourenço
da Silva Pinto [Pinto do Monteiro] e os três irmãos Batista Patriota –
Lourival [Louro], Dimas e Otacílio. Estes, e seu digno comandante, o poeta
Rogaciano Leite, foram os maiorais do Conclave. 486

O primeiro dia do Congresso foi reservado para as apresentações dos Irmãos


Batista, Pinto do Monteiro, Domingos Fonseca, Agostinho Lopes e Vicente Grangeiro,
além de outros poetas possivelmente não mencionados. As primeiras duplas formadas
foram de Dimas-Otacílio e Severino-Lourival, sendo a primeira quem iniciou o evento.
Segundo Silvino Lopes,

Os primeiros que se apresentaram foram Dimas e Otacílio Batista, filhos de


São José do Egito.
Ao som das violas êles começam a cantar, com o teatro no mais absoluto
silêncio. Mas, logo vêm os aplausos frenéticos que interrompem os
cantadores. A assistência não se contém. Os homens são assombrosos,
notadamente Dimas. Neste a imaginação é rica e a técnica nada fica a dever
aos poetas eruditos.
Dimas é um erudito. Mergulha na história do Brasil, como qualquer professor
dessa disciplina, mais do que esse, porque a sua história é rimada e
metrificada.
Insultam-se reciprocamente, como os deputados na Assembléia, porém, não
largam as violas para segurar na coronha da garrucha ou no cabo da
“peixeira”.
Quando encerraram o bate-papo sonoríssimo, o Teatro dava a impressão de
vir abaixo.
Como o nosso povo gosta de poesia!487

Claramente o repórter ficou impressionado com o que presenciou no teatro e


buscou maneiras de legitimar o trabalho dos repentistas à medida que os aproxima do
patamar de professores ao dialogarem como deputados em assembleia. O público fez
parte do espetáculo, não somente com o fornecimento de motes e temáticas em geral,
mas também com um entusiasmo peculiar que estimulou os cantadores no debate
poético. Novamente, vê-se a tentativa de quebrar os limites entre popular e erudito, os

486
Ibidem.
487
Jornal Pequeno, 06 out. 1948. Acervo BN.
187

quais, o jornalista escreveu que Dimas Batista produz uma poesia (mesmo que dita
popular) com o enriquecimento esperado na poesia erudita sendo enfático em sua
afirmação: “Dimas é um erudito”. Nos poucos versos declamados no Congresso e que
foram registrados, encontram-se rimas feitas pelos Irmãos Batista, Severino Pinto e
Domingos Fonseca. Em uma dessas anotações estão as palavras ditas pelo violeiro
Dimas, que ao ser pedido para glosar o mote “A saudade é companheira/De quem não
tem companhia!”, improvisou:

Fraqueza da humanidade,
Alguém dirá, mas não é!
Diz a tradição que, até
Jesus chorou, de saudade!
Seu coração de bondade,
Da virgem se despidia!
Chorava, olhando a Maria,
À sombra duma oliveira!
A saudade é companheira
De quem não tem companhia!488

Em frente ao palco, alguns fotógrafos se posicionaram para registrar diferentes


aspectos da apresentação. No entanto, das apresentações das duplas somente foi
possível recolher a da primeira.

488
COUTINHO FILHO, 1972. pp. 42-43.
188

Fig. 21

Fonte: Dimas (à esquerda) e Otacílio Batista, primeiras duplas do I Congresso de Cantadores do


Nordeste, em 1948. In: Jornal Pequeno, 06 out. 1948. Acervo BN.

A cantoria se reinventa no dedilhar dos cantadores e daqueles que a tiveram em


contato direta ou indiretamente: o público, os folcloristas e os entusiastas. A dupla se
apresentou junto à “parede”; parede de poetas que esperam ser chamados para substituí-
los nas cadeiras. A dupla subsequente, Lourival Batista e Severino Pinto, este último
famoso por seus versos jocosos e sarcásticos, empolgaram os que lá estiveram, segundo
Silvino Lopes. Este, assim, descreveu enfático a apresentação destes:

Vêm, depois, Lourival Batista, outro de São José do Egito, e Francisco Pinto
[sic], da Parahyba. Este é um velho cantador que só não contou vitória nas
mãos do dentista Valadares, que lhe arrancou todos os dentes.
Essa falta de dentes dá motivo a motejos do seu contendor. Mas, o poeta
Pinto explica não lhe ser possível como “pinto”, usar dentadura.
Lourival Batista é assombroso no “repente” e não esconde ritmo. Tem a sua
frente um veterano que já se bateu com os maiores. Mas, Lourival está
eufórico. Derrama-se num lirismo que é de deixar tontos os líricos da cidade
que quebram a cabeça para de lá arrancar quatorze versos. Assim, chegam á
realidade do soneto que ainda sofre retoques para poder ser mastigado por
uma litotipo ou ir para o Salão de Poesia.
Mas, Lourival e Pinto tem minutos improvisando décimas. Não falha uma
rima, não aparece um verso quebrado. Vem da plateia um mote. “O amor é
ave que canta na gaiola da saudade”.
Desses dois versos arrancam Lourival e Pinto coisas que enternecem os
ouvintes.
Um pobre de espírito assoviou das “torrinhas”. Lourival glosa o assovio num
esplendida lição de bom comportamento ao maleducado. Aí é que se viu a
189

força do repentista. Depois, foi o fotografo Arlindo que, de tanto bater chapas
de Cuquita, aprendeu posições dificílimas quando trabalha. 489

O jornalista comentou, também, sobre algumas passagens temáticas da disputa


entre Pinto e Louro. Possivelmente não conseguiu redigir nenhuma poesia, ou pelos
poetas falarem rápido demais, ou por sua empolgação em assistir admirado aquele
espetáculo incomum em escala no Recife. A dupla, que se manteve por anos, estava
bem entrosada e Silvino Lopes soube identificar a capacidade de improvisar de Lourival
declamando com um poeta mais veterano, Severino. Silvino aproximou, igualmente ao
que houvera feito com o outro irmão Batista, Louro dos poetas de gabinete. E, ao fazê-
lo procurou engradecer a capacidade lírica do poeta improvisador em detrimento do
tempo que um literato levaria para elaborar um verso e expô-lo.
O caso do fotógrafo Arlindo que, ao bater muitas “chapas”, o flash acabou
chamando atenção dos poetas e, até mesmo os incomodando, fez com que fosse motivo
de improvisação dos poetas. Os versos que a dupla Severino-Louro realizou com
relação a esse acontecido acabou se tornando famoso não somente na literatura sobre o
repente, mas também, entre os mais assíduos entusiastas da poesia do improviso da
atualidade. Porém, quase sempre, se referem ao fato como um acontecimento
corriqueiro sem expressar o local e data da improvisação490.
O jornal Correio da Manhã (Rio de Janeiro) deu um destaque ao evento em uma
de suas páginas do seu almanaque anual de 1949. De duas improvisações publicadas,
uma delas se referia ao improviso acerca do fotógrafo Arlindo. Tal fato ocorreu quando,
em meio às improvisações, Lourival começou um verso afirmando:

A cantoria vai boa


E os versos são colossais.491

489
Jornal Pequeno, 06 out. 1948. Acervo BN.
490
Esse tipo de postura é comum entre os que escrevem sobre o repente de viola. Muitos escritores não se
preocupam com o local e quando foi declamada determinada poesia, se retendo a afirmar, por exemplo,
“Lourival cantando com Severino Pinto, declamaram...”.
491
Correio da Manhã, Almanaque de 1949, XI ano, p. 205. Arquivo BN. O artigo intitulado “O que é
nosso” faz alusão ao discurso do movimento folclórico, no qual, projeta o popular para uma referência
mais globalizante, como que pertencente a cultura da nação. Por outro lado, segundo a matéria, o título
faz uma aproximação da ideia de Rogaciano Leite em organizar um Torneio com o que o Correio da
Manhã havia organizado décadas antes com um torneio de música popular regional.
190

Nesse momento, o fotógrafo se agacha para tentar tirar uma fotografia dos
poetas. Então, o poeta aproveita para direcionar seu verso para o fato, finalizando sua
sextilha assim:

Pinto, aí da tua banda


Acocorou-se um rapaz,
Assim nessa posição
Eu nem sei o que é que ele faz. 492

Aproveitando a “deixa”493 de Lourival, Pinto do Monteiro acrescentou à cantoria


a improvisação:
Acocorou-se o rapaz,
Começou a se bolir,
Focou na cara da gente
E eu vi a luz explodir
Pensei até que era um bicho
Que me queria engolir. 494

Por fim, Lourival Batista improvisou continuando a falar do fotógrafo Arlindo:

Eu não posso distinguir


Se êle é da praça ou da aldeia
Porém quando acocorou-se
Meu sangue subiu na veia,
Que a foto pode ser boa
Mas a posição foi feia. 495

O nível de improvisação dos poetas surpreendeu o público lá presente em


outubro de 1948. Além de gêneros antigos, os poetas improvisaram novos estilos, como
a “gemedeira”. Assim declamou os poetas Pinto e Louro naquela noite:

Lourival Batista:
Pinto, na vida dos versos.
O cantor vive oprimido!
O riso parece pranto,
O canto é como um gemido!
Padece mais que viúva...
Ai! Ai! Hum! Hum!
Com saudade do marido!

Severino Pinto:

492
Ibidem. Mantive o verso da última linha como no publicado, mesmo estando fora da métrica (tem mais
de sete sílabas poéticas).
493
Quando se rima o primeiro verso com o último que seu companheiro acaba de improvisar.
494
Ibidem.
495
Ibidem.
191

Tendo ele no sentido


Lhe falta até o assunto...
Mas, na hora que um rapaz,
Dela se chega bem junto,
Ela, pensando no vivo...
Ai! Ai! Hum! Hum!
Nem se lembra do defunto!496

A terceira dupla do dia, Dimas Batista e Domingos Fonseca, foi a que mais
ganhou registros. Além disso, foi a vencedora do torneio por aclamação do público. O
jornalista Silvino Lopes assim descreveu a apresentação dos poetas:

Anuncia-se que vai aparecer o poeta piauiense Fonseca. Para enfrentá-lo,


volta ao palco Dimas Batista.
Pareceu a assistência que aquele seria o momento mais sério do congresso.
E foi mesmo. Dimas reconhece que está em frente de um peso pesado.
Apresenta-o como filho da terra de Da Costa e Silva.
E o barulho começou com o arrulho das violas. [...].497

Note que Dimas já havia cantado antes com seu irmão Otacílio na abertura do
evento. Esse tipo de prática não é comum nos congressos, principalmente a partir da
década de 1960, onde, os eventos tornam-se cada vez mais estruturados com
regimentos, banca julgadora, etc. Já em eventos informais, como apresentação em bares,
fazendas, etc., é mais comum ocorrer tal fato. A apresentação dessa dupla ganhou
algumas páginas do folclorista Coutinho Filho que registrou algumas improvisações na
sessão do seu livro que trata dos gêneros do repente de viola. Os versos a seguir
demonstram a liberdade dos poetas nos exageros e conhecimento da História como
forma de atrair o público e atestar conhecimento durante a improvisação. Assim foi
anotado em Martelo Agalopado:

Domingos Fonseca:
Recordo Castro Alves na versagem,
Tiradentes na sua história pública,
Lembro Deodoro na República,
E vivo Miguel Ângelo na imagem;
Imitando Oliveiros na coragem,
Ou um ferrebrás de Alexandria,
Comparando-me a Nero em soberba,
E na ciência a Tales de Mileto,
Sou Augusto dos Anjos no soneto,
Luiz Vaz de Camões na poesia!

496
COUTINHO FILHO, 1972. pp. 25-26.
497
Jornal Pequeno, 06 out. 1948. Acervo BN.
192

Dimas Batista:
Assisti a tragédia do dilúvio,
Contemplei o incêndio de Sodoma,
Fui ministro dos Césares, em Roma,
Penetrei nas crateras do Vesúvio;
Comovido senti o doce eflúvio
Dos sermões de Jesus da Galiléia,
Escavei as ruínas de Pompéia,
Sondei rodas as grutas netuninas,
Tomei parte nas lutas herculinas,
Fui criado com o leite de Amaltéia!498

Forma comum desde o início do século, os cantadores demonstravam


conhecimento e estudo durante os desafios. Com uma intensa profissionalização cada
vez mais forte a partir da década de 1930 e intensificada na década de 1940, ficou
evidente a necessidade dos poetas de serem íntimos dos mais diversos temas499. Isso
para não fazer feio perante o público, julgadores e, principalmente, seus companheiros
de profissão, pois, nada pior para um cantador do que ficar mal visto entre os seus
próximos. Em um dado momento da cantoria em décimas entre Dimas e Domingos, vê-
se um bom exemplo dessa técnica:

Dimas Batista:
Com Apolo estudei a poesia,
Com Minerva aprendi toda a arte fina,
Esculápio ofereceu-me a Medicina,
Com Urano estudei a Astronomia;
Euterpe me entregou toda harmonia,
Pesquisei com Netuno e Oceano,
Fui amante de Vênus mais de um ano,
Percorri com Cibele toda a Terra
Com deus Marte tomei lições de guerra,
Já fui mestre nas tendas de Vulcano.

Domingos Fonseca:
Estudei o espaço com Urano,
Com Vesta, castidade e inocência.
Consegui de Mercúrio a eloquência,
Estudei com Netuno o Oceano,
Aprendi mecanismo com Vulcano,
Consegui de Orfeu a melodia
Arranjei de Cupido a simpatia
Com Minerva estudei Ciência e Arte,
Fui colega de aula do deus Marte,
E aprendi com Apolo a Poesia.500

498
COUTINHO FILHO, 1972. p. 45.
499
Como visto no Capítulo 2 ao ser citado entrevista com Athayde, esse tipo de faceta em estudar
manuais tornou-se comum no aprimoramento temático dos violeiros.
500
O Globo, 18 out. 1948. Acervo digital de O Globo.
193

Além disso, os poetas declamaram em outro tipo de técnica, o Galope na Beira


do Mar, também registrado por Coutinho Filho. Igual ao verso anteriormente exposto,
os violeiros tentavam, em desafio, provar sua superioridade ao improvisar. Dimas
Batista iniciou entoando:

Eu cantando a galope ninguém me humilha,


Tudo que existe no mar eu aproveito,
Na ilha, no cabo, península, estreito,
Estreio, península, no cabo, na ilham
Em navio, em proa, em bússola e milha!
Medindo a distância para viajar,
Não quero, na rota, jamais me afastar,
Porque me afastando o destino sai torto;
Confio em Deus avistar o meu porto,
Cantando galope na beira do mar!501

Domingos Fonseca continuou usando da mesma estratégia de Dimas Batista,


técnica comum entre os violeiros para buscar e manter a atenção do público ao glosar
exageros em seus improvisos:

Em galope eu posso subir à tribuna,


Eu tenho certeza ninguém dar-me vaia!
Na duna, no golfo, na areia e na praia,
Na praia, na areia, no golfo e praia;
Se eu errar no estilo o colega me puna,
Que eu prometo, na vez, melhor caprichar;
Sentido, no verso, não quero faltar,
Fazendo a viagem, entoando meu cântico,
No Índico, Antártico, Pacífico e Atlântico,
Cantando a galope na beira do mar!502

O verso do poeta Domingos demonstra bem alguns aspectos que o violeiro


enfrenta em seus desafios da profissão. Sempre há o medo ou a possibilidade de não
conseguir improvisar bem ou não saber determinado estilo durante uma cantoria.
Logicamente, o martelo ou o galope tinha determinada fama e preferência entre os
poetas, impossibilitando algum não saber ao entrar em um congresso. No entanto,
quando há um estilo solicitado que o poeta não consegue improvisar ou não sabe como
é o esquema de rimas, acaba por causar constrangimento com os colegas de profissão e
com o público.

501
COUTINHO FILHO, 1972. p. 46.
502
Ibidem.
194

A plateia, então, ao contrário de outras apresentações artísticas fez parte do


espetáculo, tanto na interação (vaias, aplausos, etc.), como fornecendo motes ou sendo
tema de improvisos, a exemplo do fotógrafo Arlindo. O público e a assistência dos
poetas forneciam os motes para que os cantadores improvisassem sobre o assunto. Um
dos temas expostos foi registrado pelo jornal Correio da Manhã em seu almanaque
anual: “A flor da minha existência/ Perdeu a pétala do cheiro” improvisada por
Domingos Fonseca:

Eu tinha para guiar-me


A mais refulgente estrela
Mas um ano e seis meses
Que nunca mais pude vê-la
Tenho nessa vida escura
Por abrigo e sepultura
O caixão por companheiro
E o mau hálito por essência:
A flor da minha vida
Perdeu a pétala do cheiro.503

O Congresso durou por três dias. No entanto, apenas pude captar alguns aspectos
do primeiro dia com maior detalhe, principalmente pelas palavras do jornalista Silvino
Lopes. O mesmo jornalista, em matéria para o Jornal Pequeno do dia dez de outubro
daquele ano, descreveu como foi o último dia de apresentações e suas impressões sobre
o fim do evento. Silvino, sempre muito exaltado em seu texto quando o assunto é
cultura popular do repente de viola, começou o texto:

Encerrou-se, ontem, o Congresso de Cantadores Nordestinos.


Esse acontecimento, inédito para nós, há de permanecer por muito tempo na
memória dos que quiseram sentir a poesia dos violeiros, com toda a pureza
que ela nos veio e, com as ardências do sol que no sertão se faz bárbaro.

No último dia do Congresso, alguns poetas que já haviam se apresentado


voltaram ao palco perante forte aplauso, a exemplo de Severino Pinto que novamente
cantou com Lourival Batista; e Otacílio, que dessa vez veio a cantar com Vicente

503
Correio da Manhã, Almanaque de 1949, XI ano, p. 205. Arquivo BN. Como observado em outras
reportagens as poesias perdem a métrica. Nesta não é diferente, porém, quase imperceptível na última
linha, no qual passa das sete sílabas obrigatórias. Muito se deu pela rapidez dos versos e a
despreocupação dos repórteres em registrar com a métrica, por exemplo, no jornal O Globo (18 out.
1948), este mesmo verso foi registrado, “Perdeu a pétala e o cheiro”. Acredito que a forma improvisada
pelo poeta tenha sito “Perdeu pétala e cheiro”.
195

Grangeiro. Ao fim do evento houve a disputa pelo prêmio de três mil cruzeiros dados
aos vencedores. “Como foi o julgamento? Pela expontanea manifestação do povo que
aplaudiu os dois poetas, durante mais de dez minutos”504. E os mais aplaudidos e,
portanto, vitoriosos foram os poetas Dimas Batista e Domingos Fonseca que, “quando
pisam no palco recebe uma consagração da plateia. São os maiores” 505. O jornalista
rasgou elogios aos vencedores e levantou o que poderia ser uma polêmica para época
quando afirmou:

Foi assim o fim do Congresso de Cantadores. Dimas devia no mínimo ser


sócio honorário da Academia Pernambucana de Letras. E que o Piauí faça o
mesmo com o Fonseca. Este para mim vale mais do que o governador [do
Piauí] Rocha Furtado.506

Imagina-se que propor a entrada de um poeta popular – por algumas vezes


taxado de analfabeto pelos veículos de mídia, por outras vezes menosprezado por
diretor do teatro por pisar no mesmo palco que tivera pisado Castro Alves – em uma
Academia de Letras tenha causado certo desconforto. O jornalista Silvino Lopes não se
retém apenas a sugerir a entrada de um poeta em uma Academia de Letras ou afirmar
que outro poeta valha mais que o governador de seu estado, mas, como visto a seguir,
fez uma releitura, uma representação do mundo sertanejo ao tenta repassar para o leitor
o que viu no Teatro Santa Isabel. A forma como o Congresso foi construído está
intimamente ligado a uma apropriação da cantoria tradicional dos sertões. Com isso, o
autor prosseguiu:

Pessoas que nunca viram o sertão, que nem pretendem ver a lua surgir,
vermelha e enorme, por detraz [sic] da serra, com receio das onças que são
muito mais ternas do que uma enormidade de criaturas humanas, essas
pessoas tinham ouvido falar em cantadores, porém, não poderiam nunca ter
uma idéia da faculdade imaginativa dessa gente que lhe parecia muito mais
rústica. E, assim, sempre duvidaram que ao som da viola, o mais precário dos
instrumentos, pudesse um homem improvisar coisas que pudessem ser
ouvidas. Mesmo que vários escritores já se houvessem ocupado de
cantadores, e que a Parahyba já houvesse festejado o centenário de um deles
– o Inácio da Catingueira, e Pernambuco imortalizasse no bronze o Antônio
Marinho, muita gente considerava insipida uma “cantoria”, como êles
chamam as suas declamações. 507

504
Jornal Pequeno, 08 out. 1948. Acervo BN.
505
Ibidem.
506
Ibidem.
507
Ibidem.
196

Os cantadores há muito já eram conhecidos nos jornais onde, pelo menos desde
a década de 1930, ganharam cada vez mais as páginas dos periódicos. Os folhetos
vendidos nos mercados públicos tinham as famosas pelejas que tornaram o mundo da
cantoria mais familiarizado entre a população da capital pernambucana. Mas são os
congressos que materializam esses personagens e os fazem ganhar nomes e presença
constante nos periódicos. Em outro trecho da sua reportagem, subtitulado “lição de
poesia”, Silvino Lopes, escreveu:

Mas o Congresso de Cantadores, cá para nós, veio ensinar muita gente como
aprender a amar á poesia. Se os portadores de falsa erudição não mais
impressionam, se calejaram os dedos na contagem dos alexandrinos,
cantando amores que nunca tiveram e auroras que nunca viram; falando da
Grécia, quando nem conhecem o interior de seu Estado [...].508

Como visto mais anteriormente, o Diario de Pernambuco publicou uma matéria


em sua sessão dedicada ao teatro, no qual, mantém um discurso mais conservador que o
de Silvino Lopes sustentando, por vezes, uma superioridade entre os eruditos e os
populares. No entanto, Silvino percorreu o caminho contrário criticando os “portadores
de falsa erudição”. Ao mesmo tempo, é visto uma crítica ao eurocentrismo nas
temáticas de alguns poetas, onde, o jornalista viu a necessidade de uma atenção maior
nos elementos da cultura regional. Interessantemente, esse tipo de fala contradiz, em
parte, alguns folcloristas como Câmara Cascudo. Este, ao mesmo tempo, em que
procura estabelecer na cultura regional uma identidade nacional ou local (no caso,
nordestina), também busca estabelecer um fio condutor da cultura local com a Europa.
O poeta como símbolo ou representante da identidade cultural do Nordeste também é
visto em Coutinho Filho que fala de suas impressões finais sobre o Congresso.
Assegurou:

Assim, chistosos, delicadamente irônicos, escalando por todos os gêneros e


formas da poesia popular, em noites seguidas, sempre improvisando a
contento dos mais exigentes discorrendo sobre temas apresentado pelo
auditório, deslumbraram a população recifense, revivendo uma tradição da
inteligência sertaneja. Ontem como hoje, pelo engenho e pela arte, o cantador
repentista tem sido um elemento dignificador da terra e do povo, que
representa.509

508
Ibidem.
509
COUTINHO FILHO, 1972. p. 114.
197

A última sentença da citação de Coutinho Filho demonstra o que os cantadores,


principalmente os que vinham da aqui chamada “Geração Moderna”, passaram a
representar, segundo uma parcela intelectual: o elemento puro e dignificador, símbolo
de um povo510. Tal discurso podia levar a algum tipo de radicalismo por parte de
entusiastas da poesia popular, de tal forma que poderia ser proposto que a única forma
de poesia possível seja a popular ou até mesmo a improvisada pelos repentistas. Esse
tipo de postura foi observado por Melchiades Montenegro 511 em seu texto sobre o
Congresso publicado pelo Jornal Pequeno. O jornalista começou seu texto afirmando
que estava nervoso quando foi à abertura do evento, “quase tão nervoso quanto um
estudante para banca de exame”512. Temia o fracasso dos cantadores, pois,

Na minha vida de magistrado no sertão, ouvi cantadores em salões nobres de


paço municipal e em salinhas de chão preto e batido, com paiol de algodão
no recanto da parede, atilhos de milho seco pendurados do teto e uma galinha
choca deitada num balaio, tudo iluminado por um candeeiro de querosene
espetado na ponta de um inxamé [sic]. Era justamente ali que a cantoria me
parecia mais inspirada e sugestiva. 513

Aparentemente, o temor do jornalista era exatamente o local do evento, bem


como, o público que ali iria acompanhar as apresentações. Todavia, o seu medo cessa
logo que as exibições começam. O temor de que o público novo, a elite da capital, não
goste das apresentações se dissipa, visto que “a alta sociedade recifense, pelo que tem
de mais genuino na cultura e no bom gôsto, aplaudiu delirantemente os poetas
matutos”514. No entanto, o que difere em parte no texto de Silvino Lopes é exatamente
a ode aos poetas populares, uma vez que para Melchiades não deveria ser construído um
ódio aos eruditos em detrimento do popular. Sua reflexão começa quando da plateia um
bilhete é mandado ao palco pedindo um mote recriminando o Salão de Poesia515. Na

510
Durval Muniz aponta, conforme visto na Introdução, que os folclorista ao propor o popular como
elemento dignificar estava por certo trazendo um aliado para si, ou seja, “Parece ser neste contexto que as
elites agrárias ou seus descendentes citadinos vão descobrir no camponês ou no artesão, seus semelhantes,
seus aliados na defesa de um modo de vida, de uma cultura, de uma forma de organização social, onde
prevaleciam a cidade, a indústria e o comércio”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a. p. 43.
511
Assim como Silvino Lopes, Melchiades Montenegro comumente fazia colunas no qual expunha seu
pensamento sobre os mais variados temas, principalmente culturais e populares. Não consegui obter
dados biográficos do jornalista.
512
Jornal Pequeno, 12 out. 1948. Acervo BN. Matéria intitulada “Imbú e Sapotí”
513
Ibidem.
514
Ibidem.
515
Tal evento ocorreu no dia 22 de setembro de 1948, no Gabinete Português de Leitura. Um encontro de
poetas e seu público, onde, puderam declamar e discutir as poesias dos poetas eruditos. Também foram
198

ocasião, o jornalista também observou algumas críticas a outro evento, que ocorreu um
mês antes do Congresso. Em seguida dissertou:

Muita gente acha que nas cidades não há poetas, que o verso não deve ser
escrito, mas cantado; não ser lapidado, como o diamante exposto na vitrine
da joalheria, mas oferecido no estado primitivo em que saiu do seio da terra
para as mãos calosas do garimpeiro. Nada mais injusto e mais errado. O que
admiramos e aplaudimos no versejador de improviso não é a perfeição, a
sublimidade da arte poética, mas a qualidade de poeta que nele desponta
como o raio de luz ferindo a obscuridade de sua vida e fluminando as
profundezas da sua inspiração. O Congresso de Cantadores não nos ofereceu
nenhuma obra prima. Nem veio velar o que seja a poesia. Há muita gente boa
por ai dizendo: “os cantadores sim, são os poetas de verdade, os outros fazem
versos torturados, cheirando a longas e penosas vigílias de gabinete”. 516

Alguns elementos na fala do jornalista chamam atenção. Logo de início, têm-se


a aproximação da poesia do repente como sendo uma poesia primitiva “que saiu do seio
da terra”. Neste ponto, “terra” também se refere a sertão, de onde os cantadores que
estiveram presentes no Congresso vieram, em sua maioria. No entanto, novamente há
uma continuidade do discurso de que a poesia sertaneja do repentista não sofreu
influências, não existiu uma circularidade no processo cultural na qual foi construída, da
qual foi dada a ler. O autor da matéria procurou amenizar a euforia de alguns com a
cantoria de viola ao mostrar que o cantador é um poeta assim como os de gabinete. Com
isso, rebate em seguida no seu texto mostrando exemplos de poetas que passaram
longos períodos trabalhando em versos memoráveis, como a Eneida de Virgílio.
Ao longo de toda a dinâmica que os cantadores de viola passaram, desde as
gerações clássicas – que vagavam sertão a fora com suas violas nas costas, espalhando
notícias em forma poesias e divertindo os moradores das pequenas vilas com os seus
desafios –, até os da geração moderna que se reinventaram dentro dos costumes de
improvisar e deram os primeiros passos para a vida custeada pela poesia, ocorreu a
“plantação” da semente do profissionalização dos repentistas na busca por alcançar
novos patamares para a cantoria da improvisação.
Dentro de todo esse processo em que o repente de viola dialogou, releu e recriou
a si próprio com apropriações advindas de um campo que foi sendo construído por seus
protagonistas, os cantadores repentistas, e os seus coadjuvantes e não menos influentes,

previamente enviados poemas por cartas para que houvesse uma competição do melhor. O evento ainda
teve como um dos órgãos apoiadores a Academia Pernambucana de Letras.
516
Jornal Pequeno, 12 out. 1948. Matéria intitulada “Imbú e Sapotí”. Acervo BN.
199

os folcloristas, entusiastas, etc, há uma pergunta: Qual a contribuição do I Congresso


neste processo? Damasceno ao fazer o levantamento de informações com cantadores
sobre os congressos de 1948, no Santa Isabel, e o de 1947, no José de Alencar, obteve
respostas vagas “e a grande maioria seque consegue lembrar-se destes eventos”517. E, ao
serem provocados, remetem-se ao congresso de 1959, no Rio de Janeiro, como maior
em importância, já que teve uma amplitude maior por ser na capital do país. Importante
observar que, no entanto, o I Congresso de Cantadores do Nordeste elevou a cantoria de
viola a uma aceitação social nunca antes vista. Esse fato pode ser mostrado, a título de
informação, em jornais de maior circulação no âmbito nacional ao enviarem
correspondentes para registrar o acontecimento em Recife, a exemplo de O Globo e
Correio da Manhã, este último registrando o episódio no seu almanaque anual.
Portanto, o processo que vem sendo desencadeado desde a primeira cantoria
“oficial” do Recife, organizada por Ariano Suassuna, passando pelos outros dois
eventos subsequentes organizados por Rogaciano Leite, abriu as portas para o
conhecimento nacional do fenômeno da cantoria de viola. Talvez, por esse motivo, os
congressos começam a migrar para cidades de maior influência política, como Rio de
Janeiro e São Paulo, que passam a receber com frequência congressos e cantadores
vindos do Nordeste já no início da segunda metade do século XX.

517
DAMASCENO, 2012. p. 221.
200

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da dinâmica cultural na cantoria de viola exige uma profunda análise


de fontes diversas. Uma temática de múltiplas abordagens que teve em seus
participantes uma forma motriz de atualização e reinventação constante das formas de
se fazer o repente ao longo dos anos, mostrando uma (re)construção do campo
profissional. Nesse ínterim, uma série de práticas são apropriadas e representadas tanto
dentro da própria tradição como por aqueles que os referenciam, estudando tal elemento
da tradição popular nordestina.
O repentista é objeto de pesquisa desde o fim do século XIX, inicialmente, sendo
foco dos estudos folclóricos. Todavia, a forma como eles eram representados nas laudas
de seus estudiosos, ainda no século XIX, foi vaga, sendo os dados colhidos de forma
genérica com um ideal de povo anônimo, além de estabelecido com bases ideológicas
bem estabelecidas que adentraram nas produções dos folcloristas do século XX. Tal
embasamento ideológico foi calcado basicamente na valorização de tradições populares
ligadas a uma noção de perda (criar o discurso embasado no que estar por morrer).
Grande parte das abordagens estavam entrelaçadas às manifestações rurais, conforme
elas representavam simbolicamente um povo e, por vezes, também um sentimento de
manutenção de normas sociais que estavam em mudança com a modernidade.
Com a virada do século XIX para o XX, surgiram trabalhos mais direcionados
ao mundo dos repentistas. Diferentemente das pesquisas de outrora, esses novos
folcloristas, trazem em seus escritos a quebra do anonimato dos violeiros, identificando-
os de forma clara, além de apontarem seus feitos para o mundo da cantoria de viola. Foi
na leitura destes textos que obtive uma melhor noção das práticas culturais dos
cantadores da virada e primeiras décadas do século XX, porém mantendo o devido
distanciamento entre o pesquisador e o folclorista para não cair nas armadilhas
discursivas da “beleza do morto”. Escritores como Rodrigues Carvalho, Leonardo Mota
e Câmara Cascudo foram fundamentais para a análise aqui proposta das mudanças que
ocorreram na dinâmica da cantoria da década de 1920.
Para dissertar acerca deste momento vivenciado tanto pela prática em si como
por seus adeptos, sejam eles os violeiros ou estudiosos, na mudança na dinâmica da
cantoria de viola no início do século XX, fez-se necessário situar a cantoria de viola em
201

suas tradições aqui chamadas de clássicas. Neste período, é perceptível observar através
das fontes que os versos eram basicamente em quadras até que as sextilhas entram como
modalidade para o jogo da rima já em fins do século XIX. Neste intervalo nota-se
também o desenvolvimento dos instrumentos marginalizados que entram em território
brasileiro com a colonização. Com isso, vê-se a adoção definitiva da viola em
detrimento da rabeca e pandeiro diferenciando, tendo então, a formação da tradição da
cantoria de viola ou cantoria de pé-de-parede.
Neste momento, percebe-se que os cantadores perambulavam pelas vilas e
pequenas cidades do sertão essencialmente a procura de parceiros locais ou de outro
repentista que viria também em itinerância pela região. O trabalho focou em analisar a
região chamada de “Polígono da Poesia” por dois motivos: primeiro, é dada a região os
registros mais antigos da prática da cantoria, bem como surgiram de lá os famosos
poetas que começam a circular em meados do século XIX; em segundo, a região
também se torna importante, pois, saem desta localidade importantes violeiros da
chamada Geração Moderna. Neste momento houve a preocupação de não estabelecer
um mito (ou reproduzir o discurso) da origem, mas sim, além de tudo, construir a
geografia do fenômeno no sertão de Pernambuco e regiões circunvizinhas.
A partir de 1870 começam a aparecer personagens que povoariam o imaginário
dos amantes da poesia improvisada, tais como: Inácio da Catingueira, Germano da Mãe
D’água e Silvino Pirauá. Aos dois primeiros é dado o registro mais antigo de uma
peleja, já o último ficou famoso por anexar novos gêneros, como a sextilha, ao
espetáculo. A partir da década de 1920, a cantoria sofreu uma nova mudança na sua
dinâmica. Os estudos folclóricos em concomitância à política, pretendida com a
emergência regionalista, visaram “trazer” o cantador para a elite letrada da capital sob a
égide de símbolo de um Nordeste que surgia rico em produção de versos inteligentes e
grandiosos em sua imponência; uma alusão, também, a região que tinha com este
elemento cultural uma prova da multifacetação de seu povo.
No entanto, no que se refere ao trato com os folcloristas, pude observar certa
dualidade. À medida que o repente de viola passou a ser encarado como símbolo da
identidade nordestina, o sujeito cantador, até certo ponto, não seguiu esse fluxo. Há um
distanciamento do sujeito repentista do sujeito folclorista e isso é refletido ao passo que
estes, por exemplo, caracterizam o repentista com estigmas, tais como: alcoolizados,
incultos e brigões. Mesmo que os folcloristas considerassem o termo “inculto” como
202

significando “falta de leitura” não estaria correto, pois, como mostrado ao longo do
Capitulo 2, o repentista sentiu-se estimulado a ler cada vez mais para dinamizar seu
imaginário de temas ou, como afirmou Athayde, “para ser lido de com força”.
Ao passo que a representação do repentista pelos folcloristas ganhava a atenção
por parte da elite, o cantador seguia o fluxo migratório crescente para o litoral. O
violeiro travava desafios constantes com o estigma de mendigo e o estranhamento por
parte da população na labuta diária para sobreviver na pobreza. Com isso, passam a ser
itinerantes pelas ruas, praças, festas populares e mercados da capital. Os mercados
ganham destaque, pois, foi em reportagens se referindo a estes espaços públicos que
mais encontrei o cantador sendo citado em periódicos da década de 1930.
Os mercados tornam-se particularmente importantes, também, por serem nos
tabuleiros dos cordelistas que se vê um jogo de mudança nas representações dos
cantadores, em destaque nas gravuras das capas dos folhetos. Aqui focados nos folhetos,
há uma mudança nas ilustrações que demonstra a arte do repente adquirindo novas
práticas entre as feiras e o teatro, entre o rural e o urbano.
Ao trabalhar a chegada dos cantadores aos teatros de início foi preciso focar em
dois pontos: a importância da figura de Ariano Suassuna ao promover uma cantoria
“oficial” no Teatro Santa Isabel, em Recife, e ao elemento cultural do qual tanto se
apropriou na construção de seus escritos literários e na promoção do Movimento
Armorial. A figura de Ariano é igualmente importante nos registros deixados por ele
acerca de sua relação com a cantoria de viola que vinha desde a infância com seu pai
(João Suassuna) levando cantadores a se apresentar na sede do governo paraibano, bem
como demonstrando a relação de seu pai com o folclorista Leonardo Mota, quando este
estava em viagem colhendo registros para os seus escritos.
Em fins dos anos 1930 e início dos anos 1940 surgiu uma gama de repentistas
que iniciariam a cantoria nas formas profissionais, como se tem hoje. Identifico, então,
as principais características destes que integraram este momento como sendo a
introdução nos meios de comunicação, em especial o rádio e o jornal impresso, além de
outras características como: poetas de modo geral letrados; repúdio ao verso decorado;
surgimento dos grandes torneios, os congressos. A repulsa a versos decorados é
evidente na própria Lei nº 12.198, de janeiro de 2010, que estabelece o repentista como
profissão ao afirmar no artigo 2º: “Repentista é o profissional que utiliza o improviso
rimado como meio de expressão artística cantada, falada ou escrita, compondo de
203

imediato ou recolhendo composições de origem anônima ou da tradição popular”. Com


isso, os cordelistas, emboladores e declamadores são também considerados repentistas.
Ao passo que ao referir-se especificamente ao cantador de viola, no artigo 3º, inciso I,
afirma categoricamente como pertencente à profissão: “cantadores e violeiros
improvisadores”. Para tal também utilizo de seis biografias (Antônio Marinho, Pinto do
Monteiro, Lourival Batista, Dimas Batista, Otacílio Batista e Domingos Fonseca) para
auxiliar na construção das características da nova leva de cantadores, a Geração
Moderna.
Dentre os que fizeram parte deste momento inicial da Geração Moderna, destaco
a figura de Rogaciano Leite, no qual, focalizo duas importâncias. Em primeiro lugar, os
elementos da sua biografia que o tornam um “excepcional normal”, no que tange tornar-
se um profissional da mídia e o percurso de sua produção poética, calcada em
apropriações da poesia erudita e releituras da arte do repente que, por vezes, o fez se
distanciar do popular. Em segundo lugar, o seu empenho em levar as disputas poéticas
entre os cantadores para o palco do teatro, promovendo os dois primeiros congressos de
sucesso na mídia, em Fortaleza (1947) e Recife (1948).
Estes dois congressos se diferenciam, principalmente, no número de
participantes e o destaque dado pela mídia nacional. O de 1947 foi elaborado somente
com repentistas que residiam no Ceará e teve pouca importância nas páginas dos
jornais. Em contrapartida, o congresso do Recife (I Congresso de Cantadores do
Nordeste) trouxe representantes de vários estados e teve a presença de correspondentes
de vários periódicos de expressão nacional.
Encaro o surgimento dos congressos como uma forma de ressignificar a cantoria
de viola que, por sua vez, é fundamentada em uma série de apropriações e
representações da/na tradição do pé-de-parede. Com isso, a criação do I Congresso de
Cantadores do Nordeste é vista como o desencadeamento da estruturação da
profissionalização dos repentistas.
O sucesso do certame de 1948 pode ser demonstrado, logo de imediato, com a
ida, em 1949, de alguns repentistas que participaram daquele para uma série de audições
no Rio de Janeiro, inclusive um torneio organizado pela Comissão Nacional do
Folclore, que havia sido fundada em 1947. Em 1955, houve em Salvador outro
congresso (I Congresso Nacional de Trovadores e Violeiros), organizado pelo cordelista
Rodolfo Coelho. Diferentemente dos outros, neste houve reuniões para promover uma
204

maior associação entre os trovadores (aqui incluso os cordelistas) e os repentistas com a


intenção de criar uma luta por direitos em conjunto. Em 1959, há outro certame de
destaque no Rio de Janeiro, com uma grande gama de repentistas e já estruturando o
congresso nos moldes atuais com uma banca de jurados bem estabelecidas contando até
com personalidades famosas, como é o caso do poeta pernambucano Manuel Bandeira.
O desenvolvimento deste tipo de estudos, aqui proposto, voltado para elucidar
momentos releituras dentro de uma prática cultural embasado na análise de práticas,
representações e apropriações abre espaço para o estudo de outros momentos de
ressignificações da cantoria de viola ao longo dos anos. Este estudo aqui foi direcionado
para o surgimento de uma gama de violeiros que deram início a Geração Moderna de
Cantadores, tão pouco abordado academicamente. Tais momentos de releitura das
práticas são perceptíveis ao longo dos anos à medida que os atores fazem diálogos com
novas manifestações culturais possibilitando, assim, o prosseguimento da dinâmica na
arte do improviso.
205

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 Acervos Pesquisados

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Biblioteca Nacional
Comissão Nacional de Folclore e Cultura Popular
Fundação Casa de Rui Barbosa
Fundação Joaquim Nabuco
Companhia Editorial de Pernambuco

 Periódicos

Boletim da Cidade e do Porto do Recife. Recife. Jan-Dez, 1946-1949. Nºs 19-34.


Correio da Manhã - Almanaque de 1949. Rio de Janeiro. XI ano.
Diário da Noite. Recife. 10 jan. 1956.
Diário de Notícias. Rio de Janeiro. 08 out. 1950.
Diario de Pernambuco. Recife. 26 set. 1933.
Diario de Pernambuco. Recife. 16 jun. 1935.
Diario de Pernambuco. Recife. 19 abr. 1936.
Diario de Pernambuco. Recife. 09 dez. 1936.
Diario de Pernambuco. Recife. 16 jan. 1944.
Diario de Pernambuco. Recife. 01 jun. 1944.
Diario de Pernambuco. Recife. 21 ago. 1946.
Diario de Pernambuco. Recife. 08 mai. 1948.
Diario de Pernambuco. Recife. 20 jun. 1948.
Diario de Pernambuco. Recife. 13 ago. 1948.
Diario de Pernambuco. Recife. 08 out. 1948.
Diário Oficial do Poder Legislativo de Pernambuco. Recife. 30 set. 1948.
Folha da Manhã. São Paulo. 28 set. 1948.
Jornal da Semana. Recife. 21-27 jan. 1973.
Jornal do Commercio. Recife. 01 set. 1946.
Jornal do Commercio. Recife. 24 set. 1946.
Jornal do Commercio. Recife. 16 jul. 1955.
O Globo (Jornal). Rio de Janeiro. 18 out. 1948.
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Jornal Pequeno. Recife. 24 jan. 1945.


Jornal Pequeno. Recife. 24 set. 1946.
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Jornal Pequeno. Recife. 06 out. 1948.
Jornal Pequeno. Recife. 08 out. 1948.
Jornal Pequeno. Recife. 12 out. 1948.
Revista da Semana. Ed. nº 27 de 1954.
Revista da Semana. Ed. nº 34 de 21 ago. 1954.
O Cruzeiro (Revista), 25 jun. 1949.

 Folheto de Leandro Gomes de Barros

O Recife - Paródia

 Folhetos de João Martins de Athayde

Peleja de Ulysses Bahiano com José do Braço


Peleja de Ventania com Pedra Azul
Peleja de Laurindo Gato com Marcolino Cobra Verde
Peleja de Patrício com Inácio da Catingueira
Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho

 Multimídia

Otacílio Batista: a voz do Uirapuru. Direção Geral: Mislene Santos. TV Cidade de João
Pessoa, s.d.
Poetas do Repente. Direção Geral: Hilton Lacerda. MEC; TV Escola; FUNDAJ;
Massangana Multimidia, 2008.

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