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Escritos Repente 19 Dissertação.
Escritos Repente 19 Dissertação.
Recife
Março / 2017
CÍCERO RENAN NASCIMENTO FILGUEIRA
Orientadora:
Prof.ª Dra. Maria Ângela de Faria Grillo.
Recife
Março / 2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Sistema Integrado de Bibliotecas da UFRPE
Biblioteca Central, Recife-PE, Brasil
CDD
907
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
Banca Examinadora
________________________________________________
Prof.ª Dra. Maria Ângela de Faria Grillo – PPGH-UFRPE
(Orientadora)
________________________________________________
Prof. Dr. Rômulo José Francisco de Oliveira Junior – Faculdade Joaquim Nabuco
(Examinador externo)
________________________________________________
Prof.ª Dra. Isabel Cristina Martins Guillen – PPGH-UFPE/PPGH-UFRPE
(Examinadora externa)
________________________________________________
Prof.ª Dra. Ana Lucia do Nascimento Oliveira – PPGH-UFRPE
(Examinadora interna)
Recife
Março / 2017
Aos meus avós: Rafael Filgueira, Ana
“Rosalva” Cabral (in memoriam),
Antônio Tota do Nascimento (in
memoriam) e Irene Bezerra (in
memoriam).
Sem vocês eu não seria essa mistura de
sertões...
AGRADECIMENTOS
Dimas Batista
RESUMO
O repente de viola passou por modificações no seu mecanismo de atuação entre o fim
do século XIX até por volta do início de 1950, identificadas, assim, em uma série de
mudanças que corroborou para um projeto de profissionalização do repentista. Para a
análise e construção da narrativa de como esse processo se deu foi necessário criar um
diálogo entre fontes escassas (periódicos, escritos de folcloristas e folhetos) e a
historiografia da História Cultural, em especial autores como Roger Chartier, Michel de
Certeau, Carlo Ginzburg e Pierre Bourdieu. Foram identificados vários momentos de
rupturas e continuidades na prática dos repentistas. Em um momento ainda bastante
ruralizado, aqui chamado de “Geração Clássica de Cantadores”, viu-se a anexação de
novos gêneros métricos, a vitória da viola dentre outros instrumentos e a solidificação
de duplas de poetas fixas levando, assim, às formas canônicas da cantoria pé-de-parede.
A partir da década de 1920 é identificada uma migração acentuada de repentistas para as
grandes cidades, na qual esse momento de chegada foi visto por três óticas: os trabalhos
dos folcloristas em defesa do cantador como símbolo de um Nordeste que surgia e como
estes representavam aqueles em suas obras; a reconstrução do cotidiano dos cantadores
entre os mercados e ruas do Recife pelos jornais, principalmente ao longo dos anos
1930 e início da década de 1940; por fim, nas capas dos folhetos em circulação neste
período foi identificada mudanças das representações dos cantadores entre as feiras e os
teatros. Para a construção do novo campo dos repentistas na década de 1940, foi
discernido, a partir de estudos biográficos, o surgimento da “Geração Moderna de
Cantadores”, que ganhou uma série de novas características que levou os repentistas das
feiras aos grandes palcos. Diante disto, analisa-se o processo ocorrido até a construção
do I Congresso de Cantadores do Nordeste alicerçado na analisada das experiências de
Ariano Suassuna na primeira cantoria “oficial” do Recife e os primeiros congressos de
sucesso midiático organizados pelo jornalista e poeta Rogaciano Leite.
The “repente de viola” underwent modifications in its mechanism of action between the
end of the nineteenth century until around the beginning of the 1950s, identified, thus,
in a series of changes that corroborated for a project of professionalization of the
“repentista”. For the analysis and construction of the narrative of how this process took
place, it was necessary to create a dialogue between scarce sources (periodicals,
writings of folklorists and “folhetos”) and the historiography of Cultural History,
especially authors such as Roger Chartier, Michel de Certeau, Carlo Ginzburg and
Pierre Bourdieu. Several moments of rupture were identified in the practice of the
"repentista". In a still quite ruralized moment, here called "Classical Generation of
Cantadores", it was seen the annexation of new metrical genres, the victory of the viola
among other instruments and the solidification of fixed poet pairs, leading, thus, to the
canonical forms of the "cantoria pé-de-parede". From the 1920s onwards a sharp
migration of “repentistas” to large cities was identified, in which this moment of arrival
was seen by three optics: the works of the folklorists in defense of the “cantador” as a
symbol of a rising Nordeste and how they represented those In their works; The
reconstruction of the “cantadores” daily life among the markets and streets of Recife in
the newspapers, especially during the 1930s and early 1940s; Finally, on the covers of
the “folhetos” circulating in this period, changes were made between the representations
of the “cantadores” between the fairs and the theaters. For the construction of the new
field of the “repentista” in the 1940s, the emergence of the "Modern Generation of
Cantadores" was discerned from biographical studies, which gained a series of new
characteristics that led the fairs “repentistas” to the big stages. Before this, it is analyzed
the process that took place before the construction of the First Congress of “Cantadores
do Nordeste”, based on the analysis of the experiences of Ariano Suassuna in the first
"official" “cantoria” of Recife and the first congresses with media success organized by
the journalist and poet Rogaciano Leite.
BN – Biblioteca Nacional
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 14
Estudos folclóricos e o folclorista como fonte .................................................. 25
INTRODUÇÃO
Por que motivo estudar os cantadores de viola? Desde minha infância vi o papel
que os cantadores de viola têm na construção do cotidiano da região que nasci, no
Sertão do Pajeú pernambucano, em especial na cidade de Tabira. Indo de cantorias em
bares até congressos (como são chamados os torneios) ou até mesmo grandes eventos,
de vários dias, como a Missa do Poeta1, em Tabira, e as festas dedicadas aos famosos
poetas de outrora, como a festa em homenagem a Lourival (Louro) do Pajeú, em São
José do Egito.
Perdi a conta das vezes em que fui à praça central de minha cidade e vi amigos
improvisando versos por diversão. As rimas saíam praticamente de forma natural, quase
sem esforço. Nunca tive habilidades para acompanhá-los nas rodas de poesia
improvisada e de alguma forma sentia inveja. Para suprir essa necessidade, encontrei
nos estudos, na pesquisa, a maneira de contribuir na apreciação e divulgação dessas
figuras que fazem parte da história daquela região. Já na academia, cursando História,
comecei a analisar essa prática cultural, que por muitas vezes encontrava-se nas
entrelinhas dos folcloristas, periódicos e folhetos.
Mas, a ideia específica de estudar as cantorias e os congressos surgiu a partir de
uma experiência que tive em um certo dia que desencadeou a curiosidade por um
momento histórico, que os repentistas viveram. Neste dia, de férias da graduação em
História, estava em Tabira. Na ocasião, ocorreu um congresso de cantadores locais,
1
Festividade de quatro dias em memória do poeta e compositor Zé Marcolino, na qual ocorrem várias
atrações, desde congressos a mesas de glosas, saraus, vendas de livros e a própria missa. Ocorre no mês
setembro, normalmente na segunda semana.
15
2
Fazendo alusão a forma como os cantadores se apresentam em bares, festas particulares, etc. Encostados
junto à parede.
3
A data exata do evento foge a memória minha e dos amigos que lá estiveram comigo, porém, ocorreu no
decorrer de 2009.
16
gente, às vezes mais do que as pessoas. O historiador, assim como os cantadores, faz
representações do mundo em seus textos: mundo parcialmente representado nos
documentos que contam uma história fragmentada, como uma estrofe sempre a ser
concluída. Logo, pode-se entender que o historiador está fadado a escrever uma história
pelos retalhos deixados nas linhas, ou melhor, entrelinhas dos fatos registrados ao longo
do tempo.
Como toda pesquisa, deve-se inicialmente estudar os que tratarem o tema para
então delimitar uma forma de ação. Como será visto adiante, foco em três folcloristas
para trabalhar os primeiros momentos da cantoria de viola, que são: Rodrigues de
Carvalho, Leonardo Mota e Câmara Cascudo. Ao lê-los, obtive as primeiras noções das
práticas dos cantadores na virada do século XIX e como esta começou a ganhar novas
formas nas primeiras décadas do século XX. Ao estudar esses autores foi possível
conhecer um pouco sobre a vida itinerante dos poetas que caminham sozinhos pelos
sertões a procura de outros repentistas para se apresentarem nas casas de fazendeiros e
que cantavam, principalmente, em forma de quadras. Somente em fins do século XIX
que é visto a anexação das sextilhas e outros gêneros no mundo do repente. Mas como
as tradições nos sertões dos folcloristas chegaram ao palco do teatro da cidade grande?
Na busca por trabalhos atuais, produzidos sobre essa temática, encontrei em
pesquisas algumas respostas que me levaram a análise historiográfica pretendida. A
grande maioria destes trabalhos sobre a cantoria de viola pertence à área de Letras,
Ciências Sociais ou Antropologia, porém, pouquíssimos eram focados nos aspectos
históricos do repente de viola antes da primeira metade do século XX. Os que chegam a
trabalhar com este período dedicam apenas um pequeno espaço em suas dissertações e
teses.
Francisco José Gomes Damasceno, que foi bastante utilizado no presente
trabalho, em Versos quentes e baiões de viola: cantoria e cantadores do/no Nordeste
Brasileiro no século XX, traz uma pesquisa voltada principalmente para segunda metade
do século XX, ou como o próprio chama, a segunda fase-geração de cantadores4. O
espaço dedicado para a primeira fase-geração, que são exatamente os cantadores que
pesquiso, ou seja, os que circularam com maior intensidade entre os anos de 1920-1940.
4
DAMASCENO, Francisco José Gomes. Versos quentes e bailões de viola: cantorias e cantadores
do/no Nordeste Brasileiro no século XX. Campina Grande (PB): EDUFCG, 2012. p,223-252.
17
O fato do autor trabalhar menor o período aqui explanado está ligado a fonte escassa
usada por Damasceno, que é principalmente os relatos orais de cantadores.
O trabalho de Karlla Souza5 mostra um panorama no tempo presente o que são
os congressos e para tal, procurou rebuscar, mesmo que por alto, os primeiros eventos
deste tipo e inserir a discussão no papel dos congressos na relação cantador profissional
e amador. Recentemente, Andréa Silva6, em sua tese de doutorado, trabalhou próximo a
minha pesquisa, ao passo que centrada na concepção dos festivais7. A autora foca em
uma pesquisa calcada em entrevistas com cantadores que fazem parte dessa geração dos
festivais e da difusão deste tipo de evento. Porém, a autora não atenta em sua pesquisa
para os eventos antes de 1950. Assim como Damasceno, Andréa Silva e Karlla Souza
exploram os congressos antes de 1950 apenas pelos relatos dos antigos cantadores em
entrevistas, em especial as informações obtidas através José Alves Sobrinho (1921-
2011). No entanto, os dados por vezes são confusos até mesmo quando se refere às
datações.
Com isso, procuro entender como se deu o processo que Marcia Abreu8 aponta
como as formas definitivas que a cantoria de viola tomou nos fins dos anos de 1920:
uma gama maior de gêneros (esquemas de rimas e métricas) surgem deixando os
desafios (pelejas) apenas como mais um momento da apresentação; ao passo que os
poetas começam a fixar-se em duplas. Aliado a isso, como será visto, há um abandono
progressivo do uso de folhetos entre os cantadores impulsionados por novas gerações de
improvisadores que procuram abandonar o costume de reproduzir versos decorados
numa tentativa de legitimar a profissão de repentista a partir da década de 1940. É neste
momento, entre os anos de 1920 e 1940, que os cantadores passam a fazer parte cada
vez mais do cotidiano das ruas, mercados e festas populares nos grandes centros
urbanos (para tal, foco a pesquisa na cidade do Recife).
Esses novos cantadores, aqui designados como Geração Moderna de Cantadores,
reinventam as antigas pelejas do século XIX e chegaram aos grandes palcos dos teatros.
5
SOUZA, Karlla Christine A. A Poesia de Repente volta para casa: Itapetim no circuito dos
Congressos de violeiros. Campina Grande, 2006. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Programa de
Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Campina Grande, 2006.
6
SILVA, Andréa Betânia da. Entre pés-de-parede e festivais : rota(s) das poéticas orais na cantoria de
improviso. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Prof. Milton Santos. I’Université Paris Ouest Nanterre, 2014.
7
Eventos maiores com duração mais extensa que os congressos. Surgem com maior notoriedade a partir
de 1970.
8
ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado das letras, 1999.
18
9
Cf. BURKE, Peter. A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). Ed.
Unesp, 1991.
10
Cf. BURKE, Peter. O que é história cultural?. Zahar, 2008.
11
Cf. BARROS, J. D. O campo da História: Especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
20
Tal conceito é aplicável à realidade aqui trabalhada, pois, o repentista não foi
considerado pelo Estado como uma profissão por anos, fato que só veio a ocorrer
oficialmente em 2010. Aliado a isto, a noção de patrimônio também não é aplicável, já
que estou utilizando um momento que começou a fortalecer a ideia do movimento
folclórico do repente como símbolo do Nordeste.
O filósofo Pierre Bourdieu não escreveu para a historiografia, mas teve seu
pensamento fortemente ligado à construção do pensamento historiográfico. Sua maior
influência está relacionada à noção de “reprodução cultural”,
[...] processo pelo qual um grupo, como por exemplo a burguesia francesa,
mantém sua posição na sociedade por meio de um sistema educacional que
12
Cf. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Ver prefácio à edição italiana.
13
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: EDUSP, 2008, p. 205.
21
[...] segundo Bourdieu, têm suas próprias regras, princípios e hierarquias. São
definidos a partir dos conflitos e das tensões no que diz respeito à sua própria
delimitação e construídos por redes de relações ou de oposições entre os
atores sociais que são seus membros.18
14
BURKE, 2008. p. 77.
15
Ibidem.
16
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 191.
17
Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
18
CHARTIER, Roger. Pierre Bourdieu e a história. In: Topoi (Rio de Janeiro), v. 3, n. 4, p. 139-182,
2002. p. 140.
22
Com isso, procuro ao longo do texto demonstrar como o campo do repentista foi
sendo (re)criado ao longo das primeiras décadas do século XX. Para tal, tenho como
principal fonte de pesquisa os periódicos e os registros dos folcloristas, do mesmo modo
que uma análise iconográfica nas capas de folhetos e fotos, na qual tento observar as
representações e apropriações da cantoria de viola e de seus praticantes, os violeiros.
Logo, entende-se tais produções não como uma realidade fixa e imutável, mas sim
como uma representação da realidade. Concordando com Chartier, busco:
[...] uma história cultural do social que tome por objetivo a compreensão das
formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo
social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e
interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a
sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse. 19.
19
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro/Lisboa:
Bertrand/Difel, 1990. p. 19.
20
“Biblioteca Azul”, como era chamada a coleção de pequenos livros de baixo custo de produção. O
nome “azul” é dado devido ao papel (o mesmo utilizado para embrulhar pão) utilizado na capa destes
pequenos livros de bolso.
21
Ibidem. p, 63.
22
HUNT, Lynn. A Nova História Cultural – O Homem e a História. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
p. 25.
23
A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social
das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que
são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as
produzem27.
23
CHARTIER, 1990. p, 16-17.
24
. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – Vol 1: arte de fazer. 3ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
p. 99.
25
Ibidem.
26
Essa diferenciação é trabalhada no Capítulo 1.
27
CHARTIER,1990. p, 26.
24
28
CHARTIER, Roger. “The world as representation (1989)”. p. 555. Apud CARDOSO, Ciro Flamarion
& Malerba, Jurandir (orgs.). Representações: Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas:
Papirus, 2002. p,12. Optei pela tradução de Ciro Flamarion Cardoso, porém, pode ser encontrada a
publicação completa em CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. In: Estudos Avançados,
São Paulo, 11(5), 1991, pp. 173-191.
25
29
THOMPSON, Edward Palmer. Folclore, Antropologia e História Social. In: ______; NEGRO, Antonio
Luigi; SILVA, Sergio (orgs.). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. São Paulo: Editora da
Unicamp, 2012. p. 231.
30
CERTEAU, Michel de. A beleza do morto. In: _______. A cultura no plural. São Paulo: Papirus,
1995. pp. 55-86.
26
são reinseridas no seu contexto total”31. Historiadores, como Durval Muniz, na análise
da formação do movimento folclórico no Nordeste também atentam para fato da
“salvação” do popular. Segundo este, o mundo oral era potencialmente perigoso para as
elites e, ao passo que este mundo é transferido para a linguagem escrita (registro dos
folcloristas) significava uma tradução dos gestos, das atitudes, dos rituais, etc., portanto,
o trabalho folclórico representava atividades de seleção e censura 32.
Para estudar o discurso dos folcloristas aqui analisados é necessário explanar
como se deu o desenvolvimento desta prática no Brasil. O movimento folclórico já
vinha forte no Brasil desde a metade do século XIX, no que Renato Ortiz 33 chama de
Período Romântico do folclore brasileiro. A chegada do folclorismo no Brasil remete,
em parte, a grande atuação dos Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm Grimm), linguistas e
poetas alemães que, sob forte influência do movimento romântico alemão, registraram
contos populares, principalmente infantis, e ganharam grande notoriedade internacional.
O termo "folclore" fora adotado pela primeira vez em meados do século XIX pelo
arqueólogo inglês Willian John Thoms e é construído na junção de folk (povo) e lore
(saber). Logo, o novo termo passa a ser adotado e substitui outras expressões, como
"literatura popular" e "antiguidades populares", que representavam a prática do registro
das tradições transmitidas oralmente no campesinato34. Portanto, o termo “folclore” não
pode ser naturalizado, logo, se encaixa dentro de uma concepção de história dos
conceitos, ou seja, longe de ser um elemento fixo e estático, o conceito reflete uma
noção política atual no espaço e tempo da sociedade que a cria 35. Já no início do século
XX os estudos do folclore se concentravam basicamente na poesia de origem popular, a
chamada literatura oral. Somente por volta dos anos de 1950 que os folguedos populares
ganham maior notoriedade nos estudos folclóricos.
O período romântico é caracterizado pela valorização do positivismo, em alta
entre fins do século XVIII e início do século XIX. Os intelectuais deste período tinham
um grande interesse pelo que consideravam pitoresco. Os que se dedicaram a esse tema
foram os responsáveis pela criação de um popular ingênuo e anônimo, alma da
31
THOMPSON, 2012, p. 238.
32
Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “O morto vestido para um ato inaugural":
procedimentos e práticas dos estudos de folclore e cultura popular. São Paulo: Intermeios, 2013b.
33
ORTIZ, Renato. Românticos e folcloristas: cultura popular. Olho d'água, 1992. p. 36.
34
VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro, 1947-1964. Fundação
Getulio Vargas Editora, 1997. pp. 24-25.
35
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuições à semântica dos tempos históricos. Puc-Rio.
2006. p. 98.
27
36
VILHENA, 1997, p. 25.
37
ORTIZ, 1992, p. 40.
38
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013b. p. 154.
39
ORTIZ, Op. Cit. (grifo meu).
40
Ibidem. p. 76.
28
41
Esse tipo de prática crítica era comum no final do século XIX. Silvio Romero dedica quatro dos dez
capítulos de Estudos sobre a poesia popular no Brasil a analisar escritores que trabalharam o tema da
poesia popular. Cf. MATOS, Cláudia. A poesia popular na República das Letras: Sílvio Romero
folclorista. Editora UFRJ, 1994. p. 39 et. seq.
42
ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. 2ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 59.
43
ORTIZ, 1992. p. 79.
29
44
GRILLO, Maria Ângela de Faria. A Arte do Povo: Histórias na Literatura de Cordel (1900-1940).
Jundiaí: Paco Editorial, 2015. pp. 128-131.
45
Ibidem. p. 130.
46
ROMERO, 1977. pp. 32-35.
30
Com isso, entre o dedilhar do violeiro, a pena dos folcloristas e jornalista e as artes dos
cordelistas, é visto no Capítulo 1, A Cantoria e o Sertão: antigas tradições, trabalho a
cantoria de viola nas tradições na virada do século XIX para o XX, aqui chamado de
clássicos, ao passo que traço uma análise do surgimento de novos gêneros da cantoria
como forma de mudança na prática dos repentistas. Aliado a isso, busco trazer na
discussão elementos constituintes do momento em que a viola se fixou na prática do
repente e como se sobrepôs a outros instrumentos tornando-se, então, a “cantoria de
viola”. Em um segundo momento situo a cantoria em Pernambuco espacialmente na
região aqui chamada de “Polígono da Poesia” e como os cantadores circulavam nesses
espaços até o processo de migração para os grandes centros urbanos no litoral.
No Capítulo 2, A Cantoria e a Cidade: tradições e representações, discuto a
chegada dos cantadores a Recife, a partir de 1920, por três perspectivas. Na primeira, o
surgimento de uma demanda regionalista e tradicionalista, que propõe o aparecimento
de uma noção de Nordeste e como para os folcloristas do início do século XX é criado a
perspectiva de cantador como símbolo de Nordeste. Para tal faço uma análise dos
trabalhos dos três folcloristas citados anteriormente e, em seguida, estudo como estes
caracterizavam os cantadores em suas obras. A segunda perspectiva consiste em
remontar quais eram os desafios dos repentistas nas ruas e mercados do Recife
utilizando como fonte principal os periódicos das décadas de 1930 e início da década de
1940. Por fim, traço as mudanças e diferenciações que houve das representações das
pelejas nas capas dos folhetos atribuídos a João Martins de Athayde, que tinha grande
circulação no período estudado, com o objetivo de demonstrar as mudanças no campo e
habitus dos repentistas.
No Capítulo 3, Ariano Suassuna e a Geração Moderna de Cantadores, começo
a trabalhar a chegada dos cantadores aos teatros. Este e o capítulo subsequente são
focados em eventos da década de 1940. De início apresento o papel que o jovem Ariano
Suassuna teve ao realizar o que este chamou de “primeira cantoria ‘oficial’ do Recife”,
em 1946, e qual a importância da relação da cantoria e Ariano no que este viria a
encabeçar o Movimento Armorial anos mais tarde. Em seguida, traço as características
da nova leva de cantadores, ao qual Ariano chamou de “Escola ‘Moderna’ de
Cantadores”. Para realizar tal intuito uso de estudos dirigidos nas biografias dos
seguintes repentistas: Antônio Marinho, Severino Pinto, Lourival Batista, Dimas
33
CAPÍTULO 1
A CANTORIA E O SERTÃO: ANTIGAS TRADIÇÕES
Quem é o cantador de viola e o que ele faz? O que o torna tão peculiar? De onde
vieram os cantadores que percorriam os mercados do Recife? Quais os desafios do
repentista na cidade grande? Sem a intenção de propor uma epopeia ou a construção de
uma origem, este capítulo tem como desafio procurar os cantadores. Estes homens que
desenvolveram uma prática única e que se reinventaram na cidade grande.
Encaixando os cantadores que construíram famas históricas nas pequenas
cidades dos sertões, no qual, perambulavam a cavalo entre as vilas com uma viola de
fitas amarradas no braço e guardadas em sacos de pano, durante os fins do século XIX e
início do século XX, recebem aqui uma ligação em comum: são os repentistas da
Geração Clássica de Cantadores50. Para isso, é identificado características deste grupo
nas antigas tradições rurais neste período. Um momento de transição que é observado a
anexação de novos gêneros métricos como forma de superar o uso das quadras e
dinamizar o espetáculo. Também é visto neste momento a vitória da viola dentre outros
instrumentos, tais como a rabeca e o pandeiro. Por fim, a solidificação de duplas de
repentistas fixas.
50
Conforme será visto no Capítulo 3, essa nomenclatura segue a lógica da denominação dada a Geração
Moderna de Cantadores.
35
Rimar é fazer dar certo, isto é, escrever uma linha em cima e outra em baixo,
mas com a condição de a segunda terminar por uma palavra cujo final tenha o
mesmo som do final da sétima palavra da linha que ficou em cima 51.
A autora ainda observa que nos momentos de lazer os espaços eram reservados
às trocas de experiências diárias. São nessas circunstâncias que a cantoria de viola
brasileira se desenvolve, ganhando formas no final do século XIX com os primeiros
cantadores54 até os anos finais da década de 1920, com alguns repentistas adquirindo
fama nacional nas mãos dos registros dos folcloristas e nos folhetos de cordel. Período
este em que a cantoria começa a ganhar suas formas canônicas 55, ou seja, estipulando
regras, dentre as quais, o uso fixo das sextilhas, as duplas começam a torna-se fixas, as
51
MOTA, Leonardo. No tempo de Lampião. Livraria Editora Cátedra, 1976. p. 62.
52
Cf. AYALA, Maria Ignez Novais. No arranco do grito: (aspectos da cantoria nordestina). Ática, 1988.
53
SILVA, Andréa, 2014. p. 25.
54
Aqui chamo de primeiros cantadores os que ficaram no conhecimento popular, apontados pelos
folcloristas, como sendo os pioneiros. A literatura apresenta como o mais antigo cantador Agostinho
Nunes da Costa (1797-1858). Cf. ALMEIDA, Átila. Notas sobre a poesia popular. Campina
Grande:[s.n], 1984.
55
ABREU, Márcia, 1999. pp. 73-90.
36
pelejas passam a ser somente um momento do espetáculo, onde, há abertura para novos
gêneros poéticos no repente.
As formas de narrativas de transmissão oral não são unanimidades da região do
Nordeste brasileiro, todos os povos as conhecem, principalmente as civilizações onde a
escrita não se desenvolveu predominantemente, como entre os índios e tribos africanas.
E, no Brasil, com a colonização, as práticas das narrativas rítmicas ganharam várias
formas de acordo com as regiões56. Logo, pode-se observar que o ritmo desempenha um
papel importante nas narrativas, pois,
56
Ibidem.
57
SILVA, Andréa, 2014. p. 28.
58
Cf. CASCUDO, Luiz da Câmara. Vaqueiro e Cantadores. São Paulo: Global, 2005. Ver subtópico
“Antecedentes” no capítulo dedicado aos desafios.
59
Ibidem. p. 188.
60
São chamados também, simplesmente, de “repentistas” ou “violeiros”.
37
Uma das definições mais aceitas no início do século passado é dada por
Leonardo Mota em Cantadores, de 1921. Nessa obra, o folclorista afirma logo nas
primeiras páginas do capítulo inicial: “cantadores são os poetas populares que
perambulam pelos sertões, cantando versos próprios e alheios” 62. Esta é a tradição
antiga dos cantadores da Geração Clássica que, como será visto mais a frente, definiu a
cantoria por boa parte do século XIX e início do século XX, quando o repente de viola
começa a popularizar-se nos grandes centros urbanos e, com isso, muda sua dinâmica.
Os cantadores em geral se apresentavam nas casas dos fazendeiros, em
residências urbanas, em festejos públicos ou privados e palcos em feiras, normalmente
encostados à parede63. As disputas poéticas, representadas no desafio entre os
repentistas, começavam normalmente com os cantadores fazendo a autopromoção de
suas habilidades e em seguida partiam para as agressões em forma de “desaforo”
(provocação). Neste sentido, nem todos os repentistas gostavam de fazer pelejas, mas
“[...], mormente os que não desdenham ou temem o desafio, peleja intelectual em que,
perante o auditório ordinariamente numeroso, são postos em evidência os dotes de
improvisação de dois ou mais vates” 64.
Rodrigues de Carvalho registrou um desses momentos que os cantadores por
vezes acabavam entrando em uma briga devido aos xingamentos trocados. A peleja
entre Manuel Cabeceira e Manuel Caetano começou com o convite de um ao outro para
animar a festa em questão.
Cabeceira:
Cavaleiro, pega esta,
Toma esta e volta já,
Vai dizer ao Caetano
Que mandei-o chamar
61
AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil: perspectiva de análise.
Ática, 1987. p. 69.
62
MOTA, Leonardo. Cantadores: Poesia e linguagem do sertão cearense. Livraria Editora Cátedra,
1976a. p. 3.
63
Por isso a denominação “Cantoria pé-de-parede”.
64
Ibidem.
38
Após este início, Cabeceira começa com as provocações para incitar o desafio
entre eles e o seu adversário também declama suas provocações.
Cabeceira:
Senhor Manuel Caetano
Alu [sic] vai, me trate bem,
No pilão que eu piso milho
Pinto não come xerém,
Nem vou engordar capão
Para dar mimo a ninguém.
Caetano:
Eu Manuel, você Manuel,
Cuidemos em ser xarapim,
Que mais vale um negro bom
Do que cem brancos ruins.
[...]
Cabeceira:
Senhor Manuel Caetano,
Negro do pé de rebolo,
Se passo a mão, vejo a queda,
Se passo o pé, vejo o rôlo;
Na ponta da minha língua,
Há quatro mil desaforos67.
O embate entre os poetas continua por mais algumas rimas até que os dois
começam a brigar depois das seguintes estrofes:
65
CARVALHO, José Rodrigues de. Cancioneiro do Norte. 3 ed. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do
Livro, 1967. p. 343.
66
Ibidem.
67
Ibidem. p. 345-347. Como visto mais à frente os desafios não seguiam uma estrutura fixa de versos,
sendo somente no início do século XX que as estruturas do embate ficam mais rígidas.
39
Cabeceira:
Minha mãe bem me dizia,
E agora acabei de crer,
Quem com porcos se mistura,
Farelos vem a comer.
Caetano:
Quanto eu vim lá de cima
Que passei lá no Brejinho,
Deixei tua mãe parida
Com um bando de bacorinho
Com uma corrente no pé
E uma argola no fucinho.
Cabeceira:
Quando eu vim de lá de cima
Que passei em Mato Grosso,
Deixei tua mãe parida
Com um chocalho no pescoço,
Olhe, não bula comigo,
Senão o barulho é grosso.
Caetano:
Nas profundas do inferno
Tem uma caldeira fervendo,
Com tua mãe de uma banda,
Com uma colher mexendo
E os diabos todos do inferno
Nas suas costelas comendo 68.
Nos chamados tempos heroicos da cantoria, durante o século 19, grande parte
das cantorias eram os chamados desafios, uma disputa declarada que muitas
vezes se transformava numa guerra sem quartel entre os poetas e suas
torcidas. 69
A violência presente nas cantorias foi vista também por Leonardo Mota, em
Sertão Alegre, ao falar do alcoolismo entre os cantadores, retrata um episódio em que
68
Ibidem.
69
TAVARES, Braulio. Arte e ciência da cantoria de viola. Vol.1: cantoria: regras e estilos. Recife:
Bagaço, 2016. p. 12. (grifo do autor).
40
duas moças e um rapaz teriam ido a uma cantoria e uma delas teria sido morta no local
por estar sob o efeito do álcool “a dizer rebarbativas inconveniências” 70.
No entanto, os registros que tive acesso levaram a crer que em sua maioria os
desafios partiam para troca de provocações de forma pacífica. Artifício comum eram os
embates na forma de conhecimentos gerais, ou seja, um poeta perguntando ao outro
sobre temas referentes a mitologia, história, geografia, etc. como maneira de ganhar a
disputa e o outro não conseguir prosseguir. Após um sair vitorioso, poderia, a sua
vontade, declamar versos para demonstrar sua superioridade em relação ao derrotado. O
vencedor proferia rimas de sua autoria nos mais diversos temas, motes, ABC’s71,
sátiras, louvações, narrativas, etc72. As histórias preferidas entre os poetas e o público
eram quando as narrativas assumiam a voz de um boi e suas proezas. Várias narrativas
de bois ficaram famosas, como a do Boi Moleque, Boi Mandingueiro, Boi Surubim,
Vaca do Burel73.
A definição anteriormente apontada por Maria Ayala e Marcos Ayala
caracteriza, primordialmente, este primeiro momento da cantoria de viola, em fins do
século XIX, nas mãos dos repentistas clássicos. Pela necessidade de continuar o
espetáculo e de atrair a atenção do público vão surgindo novas formas e estruturas.
Neste momento, a cantoria vai ganhando suas formas mais canônicas em regras, ou seja,
na sua estrutura definitiva no fim da década de 1920 passou a denominar “desafio”
somente a situação do espetáculo em que os poetas entravam em debates. A partir disto,
o campo dos cantadores começa a se organizar em duplas fixas amigas, no qual, alguns
momentos da apresentação já eram previamente ensaiados74 ou de fácil dedução devido
ao convívio constante com o parceiro.
70
MOTA, Leonardo. Sertão Alegre: Poesia e linguagem do serão nordestino. Livraria Editora Cátedra,
1976c. p. 95.
71
Apesar de serem registrados em vários países, como Portugal e Espanha. Os ABC’s ganharam no Brasil
uma característica diferente. Normalmente os poemas eram feitos falando das proezas de animais (bois,
touro, bode, onça, etc.). A primeira palavra da primeira estrofe começa com a letra “A” e as demais
seguiam a ordem do alfabeto, ou seja, a primeira palavra da segunda estrofe começa com “B” e assim
sucessivamente. Cf. CASCUDO, 2005.
72
ABREU, Márcia. 1999. pp. 73-90.
73
Cf. CASCUDO, 2005. Ver “Ciclo do Gado”.
74
ABREU, Márcia. Op. Cit. 1999. pp. 73-90. Essa mudança na dinâmica da cantoria é compreendida
dentro de uma série de apropriações que uma leva de cantadores, que chamo aqui de “Geração Moderna”
fizeram das antigas tradições. Esse tipo de conduta, mesmo que involuntariamente, significa causar uma
distinção entre os novos praticantes e os praticantes aqui chamados de clássicos. Concordando com Roger
Chartier quando este afirma: “[...] em toda sociedade, as formas de apropriação dos textos, dos códigos,
dos modelos compartilhados são tão ou mais geradoras de distinção que as práticas próprias de cada
41
grupo social” CHARTIER, Roger. Cultura Popular revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, no. 16, 1995, p. 184.
75
ALMEIDA, Átila Augusto F. de; SOBRINHO, José Alves. Dicionário bio-bibliográfico de
repentistas e poetas de bancada. Ed. Universitária, 1978. p. 45.
42
76
Tais informações foram colhidas principalmente em ALMEIDA; SOBRINHO, Op. Cit. 1978.
77
Comumente usado para se referir ao refrão.
43
Observa-se que em cada linha do mote "Há versos de cantadores/ No meu batel
de saudades" há a marcação de sete sílabas sonoras (ou poéticas) terminadas na tônica
da última palavra da linha, desprezando as sílabas seguintes. Nota-se também que não é
o mesmo que separação silábica, pois, no exemplo teriam oito sílabas por linha. No
momento, o folclorista recebeu de imediato alguns versos dos poetas José Alves
Sobrinho e Agostinho Lopes (1906-1972), entre eles:
78
A nomenclatura varia de acordo com autores entre Grangeiro e Granjeiro.
79
Cf. CASCUDO, Luiz da Câmara. Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3 ed. São Paulo: Ed.
USP, 1984. Ver Capítulo X.
80
SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. Publ. Europa-América, 1995. pp. 33-36.
81
Mote equivale, em geral, às duas últimas linhas da estrofe, no qual, os poetas deveriam além de
encaixar a temática, fazer o arranjo de rimas de acordo com as palavras finais de cada linha do mote.
82
COUTINHO FILHO, Francisco. Violas e Repentes: repentes populares em prosa e verso. 2ed.
Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972. p. 311. (grifo meu).
44
Agostinho Lopes:
Não deixarei de lembrar
As violas sonoras
As canções melodiosas,
Os modelos de rimar...
Estilos de glosar
Em diversas qualidades!
Dos poetas das cidades
Fazendo versos de amores...
Há versos de cantadores
No meu batel de saudade83.
Além do esquema métrico que deve seguir cada linha, há também o esquema de
rimas de cada linha na formulação da estrofe. A quadra apresenta um esquema de rima
bastante simples, onde, rima as linhas pares da estrofe ficando a quadra com o esquema
"ABCB". Em desafio em quadra, Manuel Carneiro e Romano do Teixeira debateram:
Manuel Carneiro:
A - Romano, num pingo d'água
B - Eu quero ver se afundo,
C - Diga lá em quatro pés
A - As coisas leves do mundo.
Romano do Teixeira:
A- Sendo coisa aqui da terra,
B - Pena, papel e algodão,
C - Sendo coisa do outro mundo,
A - Alma, fantasma e visão.84
83
Ibidem. (grifo meu).
84
WILSON, Luís. Roteiro de velhos cantadores e poetas populares do sertão. 2 ed. Recife: CEHM,
1986. p. 41. (grifo meu).
85
MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: Poesia e linguagem do Sertão Nordestino. 3ed. Imprensa
Universitária do Ceará, 1962. p. 102.
45
iniciado seu processo de definição nesse espaço oral, muito antes que a impressão fosse
possível”86. Márcia Abreu87 aponta que a maior contribuição lusitana à literatura de
folhetos foi exatamente o uso da quadra que começou a cair em desuso no fim do século
XIX. Para Átila Abreu e José Alves Sobrinho88, a criação da sextilha como forma de
substituição das quadras foi responsabilidade dos poetas Silvino Pirauá, quando
acrescentou dois pés89 (linhas) ao antigo gênero português, ficando o esquema de rimas
ABCBDB. As sextilhas ganharam grande notoriedade entre os cantadores e os
cordelistas tendo como principal explicação para seu surgimento:
Nos desafios, cada cantador dispunha de uma – e apenas uma – estrofe para
responder às perguntas e provocações de seu oponente, tendo ainda que
devolvê-las caso não quisesse ficar todo tempo na defensiva. Tarefa difícil
quando se dispõe de apenas quatro versos90.
Elísio Félix:
A - Doutor, sua proteção
B - É coisa que me convém!
C - Cantador só passa mal,
B - Governador passa bem!
D - De mim ao governador
B - Grande diferença tem!92
86
ABREU, Márcia. 1999. p. 74.
87
Ibidem.
88
ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p. 45.
89
Importante observar que, nas primeiras cantorias do século XX, a denominação “pé quebrado”
equivaleria a uma mudança no esquema de rimas, ou seja, na quadra no lugar de rimar a linha dois com a
linha quatro, rimaria as linhas dois e três (ABBC). No entanto, hoje em dia a denominação “pé quebrado”
ganhou novo significado, quando o poeta erra a métrica naquela linha.
90
ABREU, Márcia. Op. Cit., p. 85.
91
O Cruzeiro, 25 jun.1949. Matéria assinada por José Leal. Acervo BN.
92
COUTINHO FILHO, 1972. p. 24. (grifo meu).
46
Lourival Batista:
A - A diferença que vem
B - De ti ao Governador,
C - É que ele é formado e rico,
B - Tu és pobre e cantador!
D - Ele trigueiro no nome,
B - E tu trigueiro na cor.94
Outra forma muito comum de poesia que surge nas cantorias do início do século
XX são os “mourões” (ou “moirões”), também chamada/ligada a forma de “trocado”,
pois podiam ser de cinco ou sete pés. O primeiro cantador começava improvisando dois
versos e o segundo fazia o mesmo. Por fim, o primeiro cantador encerrava a estrofe com
três versos. No caso dos mourões de cinco pés, o primeiro cantador improvisava um
verso, o segundo também e, ao fim, o primeiro cantador finalizava a estrofe com três
versos. O esquema de rimas nos mourões de cinco e sete pés são, respectivamente,
AABBA e ABABCCB. Por exemplo:
93
A "deixa" equivale ao poeta começar a sua estrofe rimando a primeira linha com a última linha do
verso que sua dupla acabara de declamar (em negrito). Não se sabe ao certo quem criou a deixa, alguns
folcloristas desconfiam de Silvino Pirauá, mas somente na peleja entre Pinto do Monteiro e Antônio
Marinho, em 1926, que se tem registrado o uso oficial do termo "deixa". Cf. VIEIRA, Rui Carlos Gomes.
Poesia popular nordestina: Dicionário Temático. Campina Grande: Maxgraf, 2012. p. 339.
94
COUTINHO FILHO, Op. Cit. (grifo meu).
95
CASCUDO, 1984. p.342.
96
Também conhecido como “oito pés em quadrão”, ou "oitavo arrebatido" (bastante usado no estado de
Alagoas).
47
97
Diário de Notícias, 08 out. 1950. Matéria assinada por Manuel Diégues Júnior com o título “Gêneros
da Cantoria”. Acervo BN.
98
O Cruzeiro, 25 jun. 1949. Matéria assinada por José Leal. Acervo BN.
99
A chamada Revolução Constitucionalista. Após a tomada do poder central do Brasil por Getúlio
Vargas, em 1930, causou desconforto em São Paulo, pois, Vargas não permitiu que Júlio Prestes
(paulista) assumisse a presidência. Após uma série de medidas do governo central, a elite paulista (com
apoio de grande parcela da população) não aceitando as medidas inicia uma série de embates que
culminam no uso de armas.
100
SANTOS, Brás Ivan Costa (Padre). No altar da poesia. Recife; Teresina: Gráfica e Editora Halley,
2016. p. 217.
48
como nas décimas tradicionais, o Martelo tem uma peculiaridade que dificulta ainda
mais o trabalho de improvisação, em cada linha as sílabas fortes são sempre a terceira, a
sexta e a décima. O estilo fora também inserido por Silvino Pirauá que, na ocasião,
nomeou esse estilo de Martelo Agalopado por lembrar o galope de uma tropa de
cavalos. Muitos difundem a ideia que o nome do gênero faz referência ao fato dos
poetas estarem "se martelando" em desafio, mas é mais provável que se refira ao
literário francês Pedro Jaime Martelo (1665-1727) que o criou a partir de uma releitura
das oitavas camonianas101, porém com o esquema de rimas alternado e sem limites de
linhas. Com Silvino Pirauá, o estilo ganhou uma nova estrutura ficando em forma de
décima102.
Há outra variação da décima que também é muito comum em meio às cantorias,
sendo o terceiro estilo mais difícil, o Galope à Beira-do-mar103. Criado por José
Pretinho do Crato-CE, que teria iniciado o estilo depois de ser derrotado pelo poeta
Manuel Vieira Machado (????-????) no estilo Martelo Galopado e, após este fato, se
retirou para a praia, onde, declamou um verso junto ao mar, em Fortaleza-CE. O nome
está relacionado ao movimento das ondas e, ao mesmo tempo, os galopes de uma tropa
de cavalos. Mais tarde, o estilo foi aprimorado por João Siqueira Amorim 104 (1913-
19??) e José Virgulino de Souza (????-????), em 1939.
Diferentemente do Martelo Agalopado, o Galope na Beira-do-mar é composto
por onze sílabas e sempre termina com o refrão "Nos dez de galope à beira-do-mar" ou
"Cantando galope à beira-do-mar" ou ainda “Só canto galope na beira do mar”. Assim
como o martelo, o Galope na beira-do-mar segue um esquema de tônicas por cada linha
da estrofe. Sendo então necessário manter a tônica na segunda, quinta, oitava e décima
primeira sílabas de cada linha. Inicialmente, quando foi anexado no mundo da cantoria,
o estilo era usado para falar de façanhas heroicas - lembrando um pouco a poesia
101
Referente a leituras das obras de Camões.
102
O Martelo Agalopado ganhou diferentes variações, como o “Martelo Alagoano” que basicamente
diferencia pela terminação da estrofe em “nos dez pés de martelo alagoano”. Outra variação comum é o
“Martelo Solto”, ou “Martelo de Sextilha”, no qual seriam sextilhas decassilábicas. Cf. LINHARES,
Francisco; BATISTA, Otacílio. Antologia ilustrada dos cantadores. 3ªed. João Pessoa: Editora da
UFPB, 2013. Ver “Gêneros da Poesia Popular”. Alento ainda para o fato de o estilo não tenha sido
necessariamente criado por Pirauá, podendo este ter apropriado de alguma outra prática poética.
103
Assim como outros gêneros, o Galope à beira-do-mar ganha algumas variações entre os cantadores. A
mais famosa é com a estrofe terminando em “galope por dentro do mato”. Este gênero é muito reconte em
temáticas sertanejas.
104
Sobre o poeta Domingos Fonseca uma parte do Capitulo 3 é dedicada devido a sua importância na
criação da primeira associação de cantadore.
49
105
WILSON, 1986. p. 63.
106
TEJO, Orlando. Zé Limeira, poeta do absurdo. 6ªed. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
p. 173. (grifo meu). Zé Limeira foi uma figura controversa sendo considerado louco andarilho por muitos
entusiastas. Nas mãos de Tejo, tornou-se mitológico: Limeira, famoso por suas poesias esdruxulas, se se
acredita que muitas das poesias contidas no livro de Tejo não tenham sido criadas por Zé Limeira, mas
por outros poetas que lhe deram a autoria do verso. Esse tipo de prática era comum em folhetos, quando
os autores recriavam pelejas inexistentes entre repentistas.
107
TAVARES, 2016. pp. 58-59.
50
“ai! ai! ui! ui!” ou “ai! ai! hum! hum!”, por fim, na sétima linha o poeta conclui como
na sextilha tradicional. Geralmente o repentista tem que justificar o “gemido” no fim do
verso, portanto, normalmente é usado em versos jocosos.
Não caberia aqui atenção a todos os gêneros que existem nas cantorias, ou até
mesmo a outros famosos no meio da cantoria como o “gabinete”, “martelo alagoano”,
entre outros, quase incalculáveis. O apologista Pedro Ernesto Filho 108 fez um vasto
levantamento de gêneros chegando a estipular por volta de 140 a 200 estilos de poemas.
Enquanto em fins do século XIX praticamente só se tinha a quadra, com a aurora do
século XX foram introduzidos novos gêneros que mudaram a dinâmica do espetáculo,
passando de pelejas para cantorias.
O foco neste momento não é prender-se aos elementos literários do estudo da
cantoria, mas sim na cantoria e seus agentes inseridos em uma prática cultural
contextualizada. Neste ponto, a proposta deste trabalho é explicar a função do repente
de viola, bem como as principais modalidades de versos rimados de improviso.
Portanto, a construção da cantoria é encarada como uma série apropriações e
representações da/na cantoria.
A união dos ritos com os gêneros e a interação dos cantadores com o público
formam a performance da cantoria de viola. Os ritos são as sequencias, os passo-a-
passos que os cantadores devem desenvolver perante a plateia: começando com
sextilhas, partindo para motes em décimas, martelos, galopes à beira-mar, etc. A noção
de performance na cantoria se encaixa no conceito de Paul Zumthor109. Para este, a
performance é construída a partir de uma relação vocal (oralidade) e auditiva em que o
comunicador (repentistas) transmite a poesia (voz) juntamente com uma expressão
corporal – interpretação, dedilhar da viola e desenvolvimento do gênero improvisado
requer entonação e forma de cantar diferentes. O ouvinte (plateia) neste caso não é um
agente da ação passivo, ou seja, dentro da performance, este desenvolve um papel
atuante, seja com motes, aplausos, etc. Concordando com o pensamento de Zumthor de
uma plateia ativa, Maria Ayala assim descreve o papel do publico nas cantorias:
108
Cf. ERNESTO FILHO, Pedro. Por dentro da cantoria. Ed. Banco do Nordeste do Brasil, Fortaleza,
2013. Ver Parte II.
109
Cf. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. EDUC-Editora da PUC-SP, 2000. Ver
Capítulo 1.
51
110
AYALA, 1988. p. 21.
111
Exemplo do famoso apologista Zé de Cazuza (José Nunes Filho) de Monteiro-PB, ganhou fama por
decorar cantorias inteiras. Reuniu todo o seu acervo mental e anotações no livro NUNES FILHO, José.
Poetas Encantadores. Campina Grande: Gráfica Marcone, 2009.
112
MOTA, 1976a. pp. 202-203.
113
Será visto no Capítulo 2. As transformações sociais dentro de um ritual são trabalhadas pelo
antropólogo Vitor Turner, no qual, este vê momentos pacíficos de transformações sociais dentro de um
ritual. Os atores sociais em interação com a plateia podem construir interações que fazem a performance
mudar, causando assim uma mudança no rito. Cf. TURNER, Victor Witter; DA ROCHA PINTO, Paulo
Gabriel Hilu; VOGEL, Arno. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EdUFF, 2005.
pp. 137-158.
52
114
CASCUDO, 1984. p. 349.
115
SILVA, Andréa, 2014. p. 73.
116
SOLER, Luis. Origens árabes no folclore do Sertão Brasileiro. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 1995.
p. 28.
53
Fig. 1
Fonte: Cantigas de Santa Maria, por Alfonso X, “O Sábio” In: GOODY, Jack. Islam in Europe. John
Wiley & Sons, 2013. A imagem também ilustra com alterações a capa de SOLER, 1995.
117
São pequenas divisões de metal no braço do instrumento de corda que servem para separar as “casas”
no braço. Quando um músico toca uma corda livre, esta produz uma nota musical e se o mesmo desejar
tirar uma variante mais aguda desta nota, basta “reduzir” o tamanho da corda, ou seja, deve apoiar o dedo
em uma das casas separadas pelo traste para que a onda formada ao tocar a corda seja menor que a onda
formada ao tocar a corda livre.
118
Ibidem. p. 108.
54
119
Ibidem. p. 109.
120
Profissional que trabalha com a construção e manutenção dos instrumentos musicais.
121
Ibidem. p. 111.
122
Ibidem.
123
Também chamado de coco-de-improviso.
124
Percussionistas nas danças de coco.
55
125
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 12 ed. São Paulo: Global, 2012. p.
214.
126
AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil: perspectiva de análise.
Ática, 1987. p. 70.
127
TAVARES, 2016. p. 14.
56
Fig. 2
Fonte: Da esquerda para a direita: Serrador; Cego Sinfrônio; Cego Aderaldo; Jacó Passarinho. De pé:
Leonardo Mota In: MOTA, 1976a. n.p.
Na imagem nota-se uma postura comum nos registros dos cantadores nas obras
dos folcloristas. Aqueles sempre enfileirados, sentados e mostrando seus instrumentos
transversalmente ao peito, enquanto o folclorista ficava em pé – por vezes com uma
caderneta na mão, representando o seu ofício –, expondo os poetas como peças de
museu. A vitória da viola pode ser demonstrada no seu progresso de transformação ao
longo dos anos. Logo, a viola que ilustra a imagem acima nas mãos do poeta Serrador
(Figura 2) se assemelha muito a Viola de Queluz, muito comum no Brasil até o fim da
década de 1920128. As antigas violas foram romantizadas nas letras de Rodrigues de
Carvalho ao descrevê-las, em 1903,
128
VILELA, Ivan. Cantando a própria história: Música Caipira e Enraizamento. São Paulo: Editora da
USP, 2015. pp. 31-45. O autor faz uma reconstrução dos tipos de viola que existiam em Portugal e quais
se enraizaram no Brasil. Apesar de, quando se refere ao Nordeste, o autor parta diretamente para a Viola
de Cantoria, os modelos da Figura 2 se assemelham muito a estilo Queluz, que ganhou muita fama no
início do Século XX. Hoje se sabe que muitas violas eram feitas artesanalmente pelos violeiros. Ver
também CORRÊA, Roberto. A arte de pontear viola. Edição do Autor, 2000. Ver “Parte Especulativa”.
129
CARVALHO, 1963. p. 342.
57
metal e com uma organização, normalmente, fixa com doze cordas (Figura 3).
Observa-se que, comparada com a viola da Figura 2, a caixa130 do instrumento teve um
aumento considerável.
Fig. 3
Fonte: Repentistas em congresso de cantadores realizado no Rio de Janeiro, em 1959, usando a Viola
Nordestina In: LINHARES; BATISTA, 2013. p. 327. (Grifo meu).
130
Também chamada de Caixa de Ressonância, principal parte do violão e responsável pela formação e
saída do som.
58
131
Ibidem. p. 336-337.
132
Os historiógrafos eram responsáveis por um órgão ou pelo estado para escrever a história através da
pesquisa, basicamente um trabalho técnico.
133
Cf. COSTA, Marcos; PASSOS, Saulo. Itapetim: “Ventre Imortal da Poesia”. 2 ed. Recife: Ed.
CEHM/CONDEPE/FIDEM, 2013. pp. 27-44.
59
Traz em sua introdução o estudo, no qual, parece bem substancial para elucidar este
questionamento.
A temática aqui trabalhada não procura criar ou alimentar um mito da origem da
cantoria de viola em Pernambuco, até porque, como visto nos folcloristas nas primeiras
décadas do século XX, a prática do repente estava presente em quase todos os estados
do atual Nordeste. Com isso, esta parte da pesquisa se preocupa em dissertar sobre uma
fenomenologia de uma prática cultural no intuito de ajudar na argumentação acerca da
dinâmica dos cantadores entre o campo e o litoral, bem como entre a feira e o teatro.
A cantoria de viola teria se amadurecido na região do Pajeú e Moxotó
pernambucano e no Cariri e Serra do Teixeira paraibano. Ocorrendo, principalmente,
entre as cidades de Itapetim, São José do Egito, Tabira, chegando a Serra Talhada e
Sertânia, em Pernambuco; Monteiro, Patos e Teixeira, na Paraíba, assim como outras
cidades do entorno destas que formam o “Polígono da Poesia” 134.
134
Tais cidades sofrem direta ou indiretamente a influência do Rio Pajeú, tanto no que se refere ao fator
econômico da região em agropecuária, como no imaginário da população e, portanto, dos poetas. O rio
nasce aos pés da Serra da Borborema nas imediações da cidade de Itapetim (1) e Brejinho, se une ao Rio
da Custódia na cidade de Floresta e nesta deságua no Rio São Francisco, na divisa com a Bahia. As
cidades margeadas são: Itapetim, Tuparetama, Ingazeira, Afogados da Ingazeira, Carnaíba, Flores,
Calumbi, Serra Talhada e Floresta. Seus principais afluentes são os riachos: Tigre, Barreira, Brejo, São
Cristóvão, Belém Cedro, Quixaba, São Domingos, Poço Negro e Navio. O seu vale constitui uma das
maiores bacias do estado de Pernambuco, com um pouco mais de dezesseis mil quilômetros quadrados,
cerca de 16,7% do território pernambucano. Sua área rural de influência direta corresponde a vinte
municípios, que são: Brejinho, Itapetim, São José do Egito, Tuparetama, Santa Terezinha, Ingazeira,
Tabira, Solidão, Afogados da Ingazeira, Iguaraci, Carnaíba e Quixaba, Flores, Triunfo, Calumbi, Santa
Cruz da Baixa Verde, Serra Talhada, São José do Belmonte, Mirandiba e Sertânia. Cf. MDA/SDT. Plano
Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Sertão do Pajeú, 2011.
60
Fig. 4
Fonte: Algumas cidades que formam o "Polígono da Poesia". Mapa editado a partir da Base Cartográfica
do IBGE.
136
Cf. COSTA; PASSOS, 2013, pp. 27-44.
137
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Três roteiros de penetração do território pernambucano
(1738-1802). Monografia nº3. Recife: Imprensa Universtitária, 1966. pp. 7-12.
138
Ibidem. p. 9-10.
62
Fig. 5
Fonte: Recorte do mapa do "Caminho do Capibaribe", que mostra as localidades saindo de Recife e
seguindo contra o curso do Rio Capibaribe até chegar ao Rio Pajeú (destaque) e, por fim, encontrando o
Rio São Francisco em Cabrobó-PE. In. MELLO, 1966, n.p. (Grifo meu).
139
Uma alusão a cidade de onde eles viviam, São José do Egito.
140
As estradas de ferro, ao longo do início do século XX também desenvolveram uma importância
fundamental na comunicação (leia-se também “migração”) entre o sertão e o litoral.
63
A vila de Teixeira foi criada em 1861 e, apesar de ter tido todo um ambiente
favorável para o desenvolvimento agropecuário, acabou por cair em declínio, devido em
parte a três motivos, como nos aponta Irineu Joffily: “além da dificuldade de
comunicações com centros maiores, eram [...] a politicagem e o banditismo [que
transferiram] o polo comercial e político para outras regiões [...]”143. Talvez este tenha
sido o grande motivo que algumas famílias migraram para a região do Pajeú
pernambucano, como concluem Marcos Costa e Saulo Passos. O declínio do Teixeira se
deve em muito aos conflitos entre as famílias dominantes da região, entre elas a mais
forte politicamente, os Dantas144. Apesar dos entraves político-sociais que a vila sofreu,
a vida cultural foi intensa. Após analisar cartas e reportagens sobre a região do Teixeira
141
COSTA; PASSOS, 2013, p. 37.
142
DANTAS, Fábio Lafaiete; DANTAS, Maria Leda de Resende. Uma família na Serra do Teixeira:
elenco e fatos. Liber, 2008. p. 76-80.
143
FRAGOSO, Hugo (Frei). O vigário Bernardo: Reflexo da face do povo teixeirense. In: SILVA,
Severino Vicente da (org.). A Igreja e a questão agrária no Nordeste, p. 92. Apud DANTAS;
DANTAS, op. cit., p. 81.
144
Ibidem. Segundo os autores o declínio se deve em parte as brigas políticas travadas entre os opositores
da família Dantas para desvalorizar a região para favorecer outras localidades. Muitos dessas disputas
foram mostradas em jornais de época, onde, alguns opositores faziam matérias de cunho depreciativo da
região.
64
com o objetivo de reconstruir uma história desta região, Fábio Dantas e Maria Dantas,
observaram que,
Os primeiros poetas que se tem registro são todos nascidos na região do Teixeira
e que, em boa parte da vida, circularam pela região do Polígono da Poesia. Luís Wilson
fez um levantamento dos principais cantadores (os mais famosos) que circularam na
segunda metade do século XX, porém, dedica parte do livro para escrever sobre os
primeiros expoentes do repente e, em sua fala, a região do Teixeira é o núcleo que
começou toda a história da poesia de repente no Polígono da Poesia. Para ele,
145
Ibidem. p. 88.
146
WILSON, 1986 p. 31. Nota-se que o autor se equivocou ao incluir Francisco da Chagas Batista como
sendo um violeiro, já que o poeta é conhecido apenas por ser cordelista.
147
COSTA; PASSOS, 2013. p. 34.
148
ABREU, Márcia, 1999. p. 84.
65
tendo como discípulos vários nomes que mantiveram a chamada cantoria acesa, como
Josué Romano (seu filho, 1877-1913), Silvino Pirauá. Outros que também não eram
cantadores acabaram mais tarde fazendo fama com a venda de folhetos contando ou
criando histórias sobre as pelejas dos famosos poetas da região, eram: Leandro Gomes
de Barros e Francisco da Chagas Batista149.
Rodrigues de Carvalho foi o responsável pelo que seria o primeiro registro em
livro (1903) de um desafio naquela região, protagonizado com Inácio da Catingueira e
Romano da Mãe D’água. Segundo aponta o autor, o desafio entre Romano e Inácio foi
o primeiro registrado pela oralidade popular e, como nos diz Cascudo, ocorreu na vila
de Patos na Paraíba, em 1870150. A mitologia criada nesta famosa cantoria abriu espaço
para a comercialização de folhetos contando tal história. O trecho registrado por
Rodrigues de Carvalho consta:
Romano do Teixeira:
Sou Romano da Mãe D’água,
Mato com porva sorturna;
Para vencer inleição,
Não meto chapa na urna,
Salto da ponta da pedra,
E tomo a boca da furna.
Inácio da Catingueira:
Sou Inácio da Catingueira
Aparador de catombos,
Dou três trapaz, são três quedas
Dou três tiros, são três rombos,
Negro velho cachaceiro,
Bebo, mas não dou um tombo.
Romano do Teixeira:
Inácio ainda não cortaste
Miolo de pau musisso,
Ainda não viste agora,
O Romano mais veríssimo:
Um, é o relâmpago de fogo.
Outro o trovão inteiriço.
Inácio da Catingueira:
Seu Romano inda não viu
Do Catingueira o arranco:
Se está neste pensar, me fale,
Se não está, me seja franco,
Abra os olhos, limpe as vistas,
Que seu negro dá em branco
149
Cf. GRILLO, 2015. pp. 46-84.
150
CASCUDO, 2005. p. 338.
66
Romano do Teixeira:
Inácio tu reconheces,
Que eu sou o rei cantado,
Prá cantar estou aprovado,
Em qualquer lugar que estou
Prá tomar a Catingueira,
Só te afirmo ainda vou.
Inácio da Catingueira:
Branco, dou-lhe um parecer,
Vossa mercê me atenda,
Se for lá para brincarmos
Possa ser que lhe ofenda.
Para tomar a Catingueira,
Pode ser que se arrependa.
Romano do Teixeira:
Quem quer ferir inimigo,
Não faz ponto nem avisa;
Quando eu for à Catingueira.
Nesse dia o sol incrisa;
Eu só vou a Catingueira,
Somente dar-te uma pisa.
Inácio da Catingueira:
Me diga o dia em que vai,
Quais são os seus companheiros,
Que o senhor pode levar
Dez ou doze cangaceiros.
Que a todos eu saio a peito
Como um valente guerreiro.
Romano do Teixeira:
Não digo dia nem hora,
Nem te digo quando vou
Só, sim, quando eu chegar lá
Tu hás de ser sabedor.
Irei topar-te o riacho
E tomar-te o sangrador151.
151
CARVALHO, 1967. p. 258-260.
67
152
Cf. OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo J. F. de. Antonio Silvino: “de governador dos sertões a governador
da Detenção”: 1875-1944. Recife: Bagaço, 2012. O autor discute ao longo do livro as facetas, bem como
as representações de cangaceiros na figura de Antônio Silvino. Ver também FAORO, Raymundo. Os
donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2013.
153
GRILLO, 2015. p. 165.
154
Microrregião do Sertão do Moxotó no interior pernambucano é composta por sete cidades (Arcoverde,
Betânia, Custódia, Ibimirim, Inajá, Manari e Sertânia), no qual, faz divisa com o Sertão do Pajeú.
155
ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de. Um sertanejo e o sertão. Moxotó brabo. Três ribeiras;
reminiscências e episódios do quotidiano no interior de Pernambuco. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. p. 27.
68
156
CARVALHO, 1967. p. 354-355.
69
157
MOTA, 1976a. p. 233.
158
AYALA, 1988. pp. 23-33.
70
Essa prática itinerante dos cantadores em muito contribuiu para sua migração
para a capital, ainda assim, muitos são os motivos que levaram os cantadores a chegar
no litoral. A ida dos cantadores para a capital em busca de novas oportunidades
acompanhou um processo de crescimento populacional acelerado na capital
pernambucana, por exemplo. Assim Câmara Cascudo afirma:
[...] cada região não ignorava os nomes mas estes não passavam para as
memórias afastadas. Havia, realmente, uma comunicação dos cantadores
pelos sertões nordestinos, viajando a pé, viola no saco de algodãozinho,
aproveitando as festas religiosas, cantando nos casamentos e apartações de
gado, aceitando os encontros com os companheiros, numa batalha feroz pelo
renome. Não atingiam à pancada do mar, como se dizia nas velhas sesmarias
que tinham por limites o oceano. Não chegavam esses heróis às cidades do
litoral. A maioria dos príncipes da cantoria sertaneja desapareceu sem ter
visto o Atlântico. Muitos gabavam-se de ter cantado em terras com duas
igrejas. Era um orgulho. Duas igrejas denunciavam população desenvolvida,
interesses maiores, dinamismo social159.
159
CASCUDO, Luís da Câmara In: MOTA, 1976a. pp. XLIV-XLV.
160
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013b. pp. 220-245.
161
CASCUDO, Luís da Câmara In: MOTA, 1976ª, p. XLVIII. Leonardo Mota, de fato contribuiu para
que a população da capital pernambucana, bem como de outras capitais, conhecessem mais os cantadores.
Após o lançamento de seu livro, em 1921, fez uma série de conferências comentando seus livros. Ao
longo dos anos de 1920, o Diario de Pernambuco fez propagandas de conferências do folclorista
Leonardo Mota. Muitas dessas conferências ocorreram no mês de setembro de 1924, tanto no Teatro de
Santa Isabel, no Gabinete Português, como também no auditório do Diario de Pernambuco. Suas
conferências baseavam-se em explicar o seus livros e mostrar um pouco dos trabalhos recolhidos pelo
interior cearense, declamando estrofes dos poetas.
71
162
Agamenon Magalhães assumiu o governo em 1937, como interventor de Getúlio Vargas,
permanecendo no poder até 1945 para assumir a pasta do Ministério da Justiça e comandar a transição
para a democracia. Torna-se deputado pelo Partido Social Democrático (PSD) e voltou ao governo
pernambucano através das eleições diretas em 1950. Seu governo é interrompido com sua morte em 1952.
Durante seu governo algumas medidas de mudança urbana foram tomadas dentre elas, chama atenção o
que pode ser denominar de "limpeza urbana", ou seja, medidas de maqueamento da cidade na tentativa de
tornar a Recife nos moldes de cidade moderna. Cf. FELDHUES, Paulo Raphael Pires. Tradição e
modernidade no Recife do Estado Novo: considerações à luz das propagandas políticas e comercial.
2010. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História da UNB, 2010.
163
OJIMA, Ricardo; FUSCO, Wilson. Migrações e nordestinos pelo Brasil: uma breve contextualização,
p.11-26. In: RICARDO OJIMA, Wilson Fusco. Migrações Nordestinas no Século 21 - Um Panorama
Recente. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2015. p. 13.
164
Boletim da Cidade e do Porto do Recife. Jan-Dez, 1946-1949. Nºs 19-34. Acervo FUNDAJ. Este
periódico era fornecido pela Diretoria de Documentação e Cultura da Cidade do Recife e continha
colunas de algumas personalidades locais, como, por exemplo, José Estelita, Waldemar de Oliveira, Josué
de Castro e outros. Ao fim continha dados estatísticos, entre eles: densidade demográfica, migrações,
natalidade, mortalidade, construções, demolições e valores da alimentação básica. Também continham em
ordem cronológica alguns eventos que ocorreram nos anos abordados, dentre eles o I Congresso de
Cantadores do Recife em 1948.
72
Como nota-se (em destaque) o poeta atenta para o fato das regiões estarem com
um grande contingente populacional. Em outro trecho, o cordelista fala que não
encontra muitos agricultores na cidade, mas que outras profissões são mais atrativas,
vistos mais nas ruas recifenses, como os artistas.
Aqui na capital moram
Bem poucos agricultores;
Moram mais commerciantes,
Artistas e carregadores;
Empregados, jornalistas,
Almocreves, pescadores.166
A migração de poetas para a capital do Estado pode ser explicada não somente
por uma tendência de mudança, mas também, por um mercado para as cantorias
crescente no litoral. Ivo Leitão, em reportagem para o Diario de Pernambuco, fica
surpreso ao chegar em São José do Egito e quase não encontrar mais poetas por lá. Este
começa assim a matéria intitulada “Literatura popular do sertão”:
165
“O Recife – Paródia” de Leandro Gomes de Barros. Tipografia do Jornal do Recife, 1908. Acervo
FCRB. (grifo meu).
166
Ibidem.
73
167
Diario de Pernambuco, 21 ago. 1946. Acervo BN.
168
Neste momento pode-se usar o exemplo de Rogaciano Leite no Capítulo 4.
74
CAPÍTULO 2
A CANTORIA E A CIDADE: TRADIÇÕES E REPRESENTAÇÕES
A cantoria foi trazida para a grande cidade. O cantador seguiu o fluxo migratório
dos sertões e começou a vir cada vez mais para a cidade grande do litoral. O trabalho
dos folcloristas é intensificado a partir da década de 1920. Surge uma emergência
regionalista em nome de um Nordeste com propostas político-culturais voltadas na
criação de uma imagem de Nordeste e uma identidade coletiva voltada para um
sentimento de pertencimento a região. Nos trabalhos folclóricos surge o cantador como
símbolo de Nordeste. As figuras de Leonardo Mota e Câmara Cascudo começam a
surgir nesse cenário, assim como o rebuscamento de folcloristas de outrora, a exemplo
de Rodrigues de Carvalho. Nesse meio, o cantador é apresentado nas palestras e livros
destes, mas como o sujeito cantador era representado nas obras dos citados folcloristas?
Com as migrações o número de cantadores cresceu por entre as ruas do Recife,
mas como era o dia-a-dia desses que perambulavam pelas ruas, mercados e festas
populares da capital? Nos mercados, por entre o aglomerado de transeuntes que iam
fazer a feira do lar, lá estavam os folhetos estendidos e repletos de representações dos
desafios. O diziam as representações nos folhetos sobre a dinâmica do cantador? O que
capítulo está direcionado na tentativa de estabelecer uma discussão sobre o cotidiano
dos repentistas em Recife entre as décadas de 1920 e início dos anos 1940, bem como as
representações destes entre os folhetos de pelejas e os livros de folcloristas.
75
169
Há um menor destaque de início ao estado de Alagoas. Já Sergipe, Bahia, Piauí e Maranhão tiveram
uma adesão no projeto mais tardiamente. Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Feira dos
Mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste, 1920-1950). São Paulo: Intermeios,
2013a. p. 171.
170
Ibidem. p. 179.
171
Foi aluno e, posteriormente, professor na Faculdade de Direito do Recife sendo, também, poeta,
jornalista e deputado federal.
76
172
Cf. FREYRE, Fernando de Mello. O Movimento Regionalista e Tradicionalista e a seu modo
também modernista: Algumas Considerações. Ci. & Tróp.. Recife, (5(2): 175-188 jul/dez. 1977. pp.
175-188.
173
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5.ed. São
Paulo: Cortez, 2011. p. 81.
174
Ibidem. p. 81 et. seq.
175
Ibidem. pp. 86-87.
176
Principalmente pela forte visibilidade que a cultura nordestina ganha na década de 1930 com, por
exemplo, a publicação de Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, em 1933.
177
Casa Grande & Senzala (1933), Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife (1934),
Sobrados e Mocambos (1936), Nordeste: Aspectos da Influência da Cana Sobre a Vida e a Paisagem
(1937), Açúcar (1939), Olinda (1939).
77
repente de viola, três folcloristas se destacam para este trabalho: Rodrigues de Carvalho,
Leonardo Mota e Câmara Cascudo. Neste ínterim, os cantadores e o folclore nordestino
já tinha certa divulgação, principalmente em propagandas de festas, mas também
quando os repentistas eram temas acadêmicos, como,
178
Diario de Pernambuco, 01 jun. 1944. Acervo BN. (grifo meu). Notícia exatamente semelhante fora
publicada no Jornal Pequeno (01 dez. 1944). O único dado acrescentado foi que a Diretoria de Estatística,
Propaganda e Turismo teve ajuda da Rádio Clube de Pernambuco na gravação. Acervo BN.
179
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a. p. 124.
78
180
Ibidem. p. 123.
181
CARVALHO, 1967. p. 336.
182
Ibidem. p. 342. (grifo meu).
79
Nota-se que, em seu texto, o uso de termo como “invariavelmente” remete a uma
imagem fixa, predeterminada, do repentista. Um conceito estigmatizado de boêmio
alcoólatra, arruaceiro, etc. Esse tipo de postura começou a ser abandonada com mais
assiduidade em meados do século XX, com a entrada de novos cantadores no cenário
nacional que, em alguns casos, chegam a ser comparados a famosos artistas eruditos.
O segundo aqui destacado em ordem de produção é o cearense Leonardo Mota.
Este é peculiarmente importante na construção da ideia de Nordeste. Tendo como
principais obras: Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense (1921), Violeiros
do Note: Poesia e linguagem do Sertão Nordestino (1925) e Sertão Alegre: Poesia e
linguagem do Sertão Nordestino (1928).
O pioneirismo de Leonardo Mota está no trato com os cantadores, pois, fez suas
pesquisas convivendo com os poetas, entrevistando-os, levando-os para sua residência,
etc. Câmara Cascudo, no prefácio de Cantadores, disserta sobre o fato de, apesar de já
terem existidos outros trabalhos que se referiam ao cancioneiro popular, somente com a
contribuição de Leota (como era chamado pelos amigos), que tais cantadores saem
“detrás da cantoria”, afirmou Cascudo:
183
MOTA, 1976a. p. XLIV. (grifos do autor).
184
Como visto na Figura 2 no Capítulo 1.
185
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a. pp. 94-96.
80
186
Ibidem.
187
Ibidem. Cogitou-se a possibilidade do livro se chamar “Violeiros do Nordeste”, mas como foi
publicado pela Cia. Gráfico-Editora Moteiro Lobato, sedia em São Paulo e de propriedade do próprio
Monteiro Lobato. O editou pareceu receoso em adotar o título já que a espacialidade “Nordeste” ainda
estava em formação.
188
Ibidem.
189
MOTA, 1976c. p. 95.
81
referindo a um dos maiores repentistas do século XX, Severino Pinto, e o fato deste
gostar de bebidas alcóolicas não é levado em consideração ao estipular seu caráter190.
Leonardo Mota ao longo dos anos 1920 e 1930 apresentou-se inúmeras vezes no
Recife. Suas palestras o tornaram cada vez mais famoso por entre a elite. Essas
palestras, lembra Durval Muniz191, proferidas por Mota foram responsável pela
urbanização (trazer à cidades) a figura do cantador, de apresenta-los as elites letradas
dos grandes centros. Constantemente, os jornais da capital pernambucana expunham
propagandas das audições do folclorista assim como notas sobre de suas viagens pelo
sul do país. Chegou-se, inclusive, a ser publicado resumo de seus livros, principalmente,
do pioneiro Cantadores.
Leota, em uma de suas apresentações, assumiu tom em defesa dos repentistas.
Em Violeiros do Norte, onde transcreveu trechos dessa palestra proferida em Fortaleza,
fez duras críticas às populações litorâneas, principalmente, das regiões mais ao sul do
Nordeste do Brasil que tratavam com preconceitos os cantadores e a população sertaneja
em geral.
Mota ao referir-se das palestras proferidas por vários estados, nas quais,
procurou quebrar a ideia de sertanejos como inferiores, bêbados, lerdos, inúteis, etc.
Nota-se ainda na sua fala a defesa do jeca caricaturado nas obras de Monteiro Lobato,
quando este referia-se ao sertão (interior) paulista e não ao interior do Nordeste. Mais a
frente, em seu discurso, Leota deixou claro seus objetivos nas palestras:
“[...]reivindicando o bom nome dos habitantes do Interior, estigmatizei o fato de
sòmente cair no gosto das multidões o julgamento pejorativo da raça, mercê das
‘generalizações estouvadas’ e dos ‘erros de sociologia leviana’”.193
190
O tópico Geração Moderna de Cantadores é dedicado, em parte, a este poeta e lá é citado quase que em
tom jocoso o gosto de Severino Pinto pela cachaça em uma entrevista.
191
Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013b.
192
MOTA, 1962. p. 25.
193
Ibidem.
82
Leonardo Mota propôs uma nova imagem do sertanejo (repentista) trazendo este
à tona e quebrando estigmas, “que nos sertões do Nordeste não vegeta molemente uma
patuléia de inúteis”194. Desenvolveu em seu texto argumentos que levam a defesa dos
sertanejos, a uma nova visão sem preconceitos, enumerando pensadores e escritores que
comungavam de sua ideia: de que o “Jeca Tatu não é uma síntese nem fisiológica, nem
psíquica, nem econômica, nem política”195. Encerrando sua linha de pensamento, o
folclorista em tom de desabafo afirmou:
Fui assim, meus Srs., fui, como estais vendo, fui intransigente na defesa do
sertão esquecido, do sertão ridicularizado, do sertão caluniado e só lembrado
quando dêle se quer o imposto nos tempos de paz ou o soldado nos tempos de
guerra. E foi, sobretudo, contra o labéu de cretinice do sertanejo nordestino
que orientei a minha documenta contradita: em todo o meu “Cantadores” e
nas conferências que proferi, de Norte a Sul, pus o melhor dos meus
empenhos em fazer ressaltar a acuidade, a destreza de espírito, a vivacidade
da desaproveitada inteligência sertaneja, de que os menestréis plebeus são a
expressão bizarra e esquecida, apesar de digna de estudos.196
Mota, ao longo dos seus textos, evita fazer julgamentos como os de Rodrigues
de Carvalho, até mesmo quando se distancia dos repentistas com o olhar de estrangeiro
ao expressar-se em relação às poesias sertanejas como sendo bizarras, pitorescas, etc. O
autor se concentra, ao longo de sua narrativa, descrevendo os fatos ouvidos ou
presenciados em suas viagens, assim como a análise das poesias, sempre destacando a
inteligência e presunção dos poetas. Esse tipo de postura que o folclorista mantém é
compreendido dentro de um contexto, no qual, a elite rural (a qual ele pertencia) viu no
elemento popular (o cantador) um aliado na defesa do modo vida que desejava
manter.197
Por fim e não menos importante, destaco Câmara Cascudo. Este, ao contrário de
Mota, demorou um pouco mais para lançar um livro dedicado ao folclore. Somente em
1939 lança Vaqueiros e Cantadores: folclore poético do sertão do Ceará, Paraíba, Rio
Grande do Norte e Pernambuco. Nota-se que, diferentemente de Leota, não anexa de
194
Ibidem.
195
Ibidem.
196
Ibidem. p. 27.
197
Durval Muniz parte por essa perspectiva ao analisar, por exemplo, que Leonardo Mota utiliza do
pressuposto do cancioneiro popular sendo representado como um elemento dignificador da sociedade
continha à defesa de tradições e repudiaria transformações sociais, a exemplo da prática do divorcio que
vinha se tornando comum a partir da década de 1920. Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a. p. 43 et.
seq.
83
início o termo Nordeste nos seus escritos198, como pôde-se notar no subtítulo da
primeira edição da citada obra.
Em Vaqueiros e Cantadores, Cascudo fez um levantamento de materiais
separando-os por tipo: Romances, Pé-quebrado, Os A.B.C., Pelo-Sinais, Ciclo do Gado,
Ciclo Social (Pe. Cícero, Louvor e Deslouvor das Damas, O Cangaceiro), etc. Ainda
promove um longo estudo sobre o que considera ser os antecedentes da cantoria, os
instrumentos, temas, etc. Ao fim deste livro dedicou biografias aos famosos cantadores
do século XIX.
Cascudo fez uma vasta produção escrita sobre o folclore. No tocante da cantoria,
lança também, em 1952, Literatura Oral no Brasil. Ao longo de suas produções o
folclorista mantém um tom que deixa os agentes do folclore estáticos, como peça de
museu199, no qual, a sociedade deveria se espelhar como elemento dignificador. Com
relação a isso, Durval Muniz afirma:
198
Ibidem. p. 97. Segundo o historiador, Cascudo alterna em seus artigos os termos “Norte”,
“nordestino”, “nortista”, nos escritos da década de 1920. Doravante, se refere a nordestino como sendo o
morador do sertão. O Nordeste seria, então, o cancioneiro popular e não o lugar o qual pertencia o
folclorista.
199
Note que esse tipo de postura é comum entre os folcloristas. Ver Figura 2.
200
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, 91.
84
sertões se deu em muito com as entradas e com os conflitos com os indígenas locais 201,
é quase impossível dizer que as regiões onde se proliferou a cultura do repente de viola,
as populações não sofreram trocas mútuas de experiências e costumes.
O mesmo se aplica a influência africana. Ao afirmar que não havia entre os
africanos nada de semelhante com a cantoria do sertão nordestino, Cascudo caí no
mesmo engano, pois, quando este leva em consideração a forte influência moura nas
formas poéticas brasileiras, não se atentou ao fato de que a invasão moura à Península
Ibérica se deu pelo norte da África, no qual, cem anos foi o tempo que os árabes
começaram a expandir seus domínios políticos na África até que começou a penetrar na
Península Ibérica, em 711.202
Por fim, destaca-se ainda em Cascudo como este representava a figura do
repentista em suas obras. Em Vaqueiros e Cantadores, os poetas do improviso são
retratados semelhante a visão de Rodrigues de Carvalho. No capítulo “Cantador”,
Cascudo repassa toda sua impressão eurocentrista do que seria o cantador: o
descendente dos aedos grego, do rapsodo ambulante, metris árabes em Al-Andalus, etc.
Em dado momento, se remeteu aos cantadores nordestinos da seguinte maneira:
“curiosa é a figura do cantador. Tem ele todo orgulho do seu estado. Sabe que é uma
marca de superioridade ambiental, um sinal de elevação, de supremacia, de
predomínio”203. Mesmo que elevando a importância do repentista por entre a população
interiorana, o folclorista em Dicionário do Folclore Brasileiro204, acrescentou ao
pensamento acima: “analfabetos ou semiletrados, têm domínio do povo que os ama e
compreende”205, mesmo que, em sua obra anterior, tenha amenizado o analfabetismo
entre os repentistas, onde “a percentagem hoje é inferior a 20%”206, isso em 1939, ano
do lançamento do livro.
A cantoria de viola, em Câmara Cascudo, foi promovida ao elemento
dignificador da cultura popular. Mesmo assim, não deixou de pré-julgar seus
praticantes, pejorativamente, classificando-os com uma série de adjetivos, tais como:
201
Cf. PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência indígena e conflitos no Nordeste
colonial. Recife: Fundarpe, 1990. Ver também PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros. Ed. USP,
2002.
202
Cf. GOMES, Salatiel Ribeiro. Vaqueiros e Cantadores: a desafricanizada cantoria sertaneja de Luiz da
Câmara Cascudo. In: Padê, Brasília, v. 2, n. 1, p. 47-70, jan./jun. 2008.
203
CASCUDO, 2005, p.129.
204
Publicado pela primeira vez em 1969.
205
CASCUDO, 2012, p.170.
206
CASCUDO, 2005, p.129.
85
207
Ibidem.
86
2.2 Os repentistas das ruas: tradições nas ruas e nos mercados do Recife
208
GUILLEN, Isabel C. M. (org.); GRILLO, Maria Ângela de F.; FARIAS, Rosilene G. Mercado de São
José: Memória e História. Recife: IPHAN/FADURPE, 2010. p. 9.
209
Ibidem. p.12.
210
Diario de Pernambuco, 16 jun. 1935. Acervo BN.
211
Ibidem.
87
Doutor Jurubeba tem dias que não vende nada. Então pede ao fiscal para
deixar para outro dia o imposto de 1$600. O fiscal vê que o doutor Jurebeba
vae mal de negócios, é um pae de familia e está com duzentos réis no bolso.
E como o doutor há muito annos, em seu comercio humilde, pega dez tostões
por dia á Prefeitura, o fiscal disça e deixa o doutor Jurubeba em paz: -
“Vamos vêr amanhã...”213
Trabalho nisso porque não tenho outro geito [sic]. Quase sempre vendo bruto
3 ou 4 mil reis. Sabbado vendo uns 10 mil reis. O lucro é pequeno, não vale
nada. Nas feiras dos arrabaldes é onde vendo mais. Leio em voz alta os
versos para que o pessoal compre.214
Pode-se perceber que, em muitos casos, o vendedor de folhetos não tem como
ofício único a venda deste material. Na citação, ainda observa-se a prática de venda dos
vendedores de folhetos, a qual declamam os primeiros versos para chamar atenção dos
compradores. Forma semelhante, como será visto adiante, era utilizada pelos cantadores
que andavam com folhetos e declamavam para chamar atenção dos transeuntes para
vender algum folheto ou ganhar algum dinheiro por improvisos ou versos decorados
dirigidos ao espectador.
A prática de leitura dos folhetos em voz alta entre os transeuntes do mercado é
uma prática que pode ser entendida como a noção de performance teatral em Paul
212
Ibidem.
213
Ibidem.
214
Ibidem.
88
Zumthor215. Para este, o texto teatral por si só não tem a funcionalidade se não com o
somatório de voz, gesto e cenário. A entonação dos cordelistas e/ou violeiros ao
declamarem os versos e as formas de lidar com cada gênero, aliado aos gestos que
chamam atenção de quem os vê nos cenários peculiares de mercados e feiras tornam
todo esse contexto um desempenho do hábito de declamador popular. Ângela Grillo
contribui para tal pensamento a medida que, “mesmo sendo uma literatura impressa
oferecida a uma população em grande parte analfabeta, encontra um grande público”216.
Este público que, como afirmou em citação acima exposta, assimila com facilidade os
versos devido ao tom poético capaz de sintetizar as histórias, ou seja, “há certa
facilidade em se aprender essas histórias narradas, pois, como são feitas em forma de
rima, com palavras que combinam entre si, facilita a memorização” 217.
Em matéria especial para o Diario de Pernambuco, Fernando de Barros redigiu
uma longa matéria, quase toda em entrevista com o cordelista João Martins de
Athayde218, intitulada “A vida ao gemido da viola”. Alguns pontos são importantes para
o entendimento de parte da vida desses poetas que tentavam ganhar a vida no Recife da
década de 1930. Primeiramente, o repórter procurou explicar o motivo de sua pesquisa
para a matéria.
215
ZUMTHOR, 2000. p. 62 et. seq.
216
GRILLO, 2015. p. 21.
217
Ibidem.
218
Athayde, paraibano nascido em Cachoeira da Cebola, município de Ingá do Bacamarte, em 1880. Teve
sua primeira grande experiência com a cantoria ao ver o poeta Pedra Azul. Muda-se para Pernambuco em
1898 e em 1908, já estabelecido em Recife, começa a produzir folhetos. O sucesso veio logo em seguida
e, com sua publicação Discussão de Leandro Gomes com João Athayde, causou muita polêmica, logo
que, Leandro Gomes afirmou que desconhecia Athayde. Mais tarde, os dois ficam amigos, a admiração de
Athayde por Leandro Gomes é visível em vários folhetos no qual homenageava o famoso cordelista.
Após a morte deste, a viúva vende os direitos das obras do mesmo para Athayde, em 1921.
219
Diario de Pernambuco, 19 abr. 1936. Acervo BN.
89
[...] Lá p’ras bandas de Pao d’Alho, ali, ainda na zona da matta, eu estava
cançado de ouvir uns negros pela madrugada, que depois do trabalho da
padaria, se ajuntavam pelas calçadas, debaixo de um posto orgulhoso da sua
lâmpada de dez velas. Liam os versos do cantador Leandro, com entonação
nas ultimas syllabas, para se confundir com os gemidos de um violão quasi
sem cordas, “pinicado” pelos dedos sensíveis de um preto cégo. Isso fazia
com que muita gente não dormisse. [...]220
220
Ibidem.
221
Segundo ALMEIDA; SOBRINHO, 1984. p. 227. ao citar os poetas que não usavam da viola, ou seja,
não praticam a cantoria, afirma que, “Ora, Athayde escrevia, glosava, mas não cantava”.
222
Diario de Pernambuco, 19 abr. 1936. Acervo BN.
223
Como discutido na introdução, Bourdier propões uma jogo de articulações dentro dos praticantes
culturais. Para ele: “O campo, no seu conjunto, define-se como um sistema de desvio de níveis diferentes
e nada, nem nas instituições ou nos agentes, nem nos actos ou nos discursos que eles produzem, têm
sentido senão relacionalmente, por meio do jogo das oposições e das distinções.” BOURDIEU, 2003.
p. 179
90
Ao exaltar que os cantadores escreviam para serem lidos “de com força” remete
a um aumento da prática de leitores de cordel, já que, como apontou Grillo
anteriormente, a maioria do público alvo eram de analfabetos. Logo, com a urbanização
dos cantadores e, consequentemente, cordelistas promovida pelos folcloristas a partir da
década de 1920, levou a aumento do número de leitores, podendo ser a parcela letrada
da população citadina225.
Mais a frente em seu texto, o jornalista falou da experiência do encontro com
um cantador que peregrinava pelas ruas e mercados do Recife.
Num desses dias desci de um bond no Pateo do Mercado para ouvir as trovas
recitadas a dois violões, por um cantador sertanejo.
O homem cantava as trovas, dando uma entonação na ultima palavra de cada
verso, o que me lembrou um padre cantando latim pelo missal.
Pouco mais e o cantador embrulhava os folhetos, os seus dois ajudantes
puzeram as violas nos sacos e “pegaram” o bond.
Subi no mesmo electrico e tratei de puxar conversa comprida com o homem,
que se fez logo camarada, como todos os sertanejos.
˗ Aquella sua entonação, quando lê...
Elle atalha, dando explicação:
˗ o verso é mais comprehensivel para todo o matuto e sertanejo. E essa
entonação é coisa de importancia. Enquanto eles entoam descançam. E como
eles não sabem ler muito direito “por cima” teem tempo de ir reparando “por
baixo” as palavras do verso seguinte.
O matuto só lê verso, porque é o que ele entende e aprecia. – Quando ouvi
isso, fiquei imaginando um jornal para sertanejos escripto em emboladas,
mortes, “a galope” e, para descrever um crime passional, um romance em
versos á la Zezinho e Mariquinha 226.
A entonação na última sílaba das palavras de cada linha é uma prática ainda hoje
utilizada pelos repentistas, como se o último vocábulo demorasse um pouco na garganta
do cantador. No entanto, não se pode confirmar que, como o poeta anônimo acima
afirmou, tal maneira de declamar (prática) tenha surgido e perpetuado como forma de
facilitar a leitura dos folhetos para os que tinham dificuldade, bem como, uma maneira
224
Ibidem.
225
Segundo Grillo houve no Brasil um aumento considerável de leitores de jornais, na virada do século
XIX. E ao longo das primeiras décadas do século XX o número de tipografias de folhetos cresce bastante
no Nordeste, refletindo um número crescente de leitores. GRILLO, 2015. passim.
226
Diario de Pernambuco, 19 abr. 1936. Acervo BN.
91
de descansar para prosseguir nas glosas. Outro fato que chama atenção é exatamente
sobre os ajudantes, que não é um privilégio somente dos poetas cegos, que auxiliavam
embrulhando as violas e os folhetos, tanto para leitura em declamações como para
venda.
“O matuto só lê verso, porque é o que ele entende e aprecia ”227. Tais palavras
fazem toda uma construção da importância dos folhetos e da cantoria no mundo
interiorano. O poeta itinerante dos sertões funciona como jornalista aos que viviam no
isolamento das fazendas e vilas levando as histórias das outras regiões, dos embates do
cangaço, etc. Assim, como aponta Ângela Grillo,
Há muitos que não sabem nem o A. Se querem publicar, ditam p’ra outra
pessoa escrever.
Os que sabem ler, leem algum livro – leitura muito diminuta e não se
preocupam com estudos, não. Eles dizem coisas assim, porque ouvem dizer e
o que bate na cabeça de um cantador deixe está que nunca mais sâe. Tem u’a
memoria mais forte que a pedra. E nos desafios nem teem tempo de pensar.
As trovas vão saindo tão depressa... Ah! Sâe todo pensamento dele e se vê
qual é o bonzinho229.
227
Ibidem.
228
GRILLO, 2015. p. 79.
229
Diario de Pernambuco, 19 abr. 1936. Acervo BN.
92
poeta (ou o personagem criado dele) passou a apropriar as temáticas que recorriam na
primeira metade do século XX e a distorcê-las,
Napoleão era um
Bom capitão de navio:
Sofria de tosse braba
No tempo em que era sadio,
Foi poeta e demagogo,
Numa coivara de fogo
Morreu tremendo de frio.
230
TEJO, 1988. p. 28.
231
Ibidem.
93
excesso durante a prática cultural pode ser entendida como uma estratégia na construção
do campo do repentista profissional. Pedroza pontua no no texto do subtítulo “A
cantoria vai morrendo” na matéria para o Diario de Pernambuco:
O motivo dos cantadores andarem com folhetos e os declamar era também uma
exigência do público, como nos diz Átila Almeira e José Alves Sobrinho:
232
Diario de Pernambuco, 16 jan. 1944. Acervo BN.
233
ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p.12.
234
Como já citado, ganhou grande notoriedade nacional ao lado dos seus irmãos, “Irmãos Batista”. Fez
parte do grupo de poetas que circularam entre os primeiros congressos a partir da década de 1940, o que
contribuiu para o seu reconhecimento e popularidade.
94
235
LINHARES; BATISTA, p. 329.
236
Também chamado de “trabalho”.
237
AYALA, 1988. pp. 117-118.
238
Diario de Pernambuco, 09 dez. 1936. Título da matéria: “Encerrou-se com brilhantismo a novena de
N. S. da Conceição”. Acervo BN.
95
O desafio dos cantadores era o que mais vendia sua arte. Apesar de outros
gêneros terem sidos criados como forma de dinamizar a cantoria de viola, os desafios e
pelejas ainda continuavam a ser mais atrativo entre o público, logo, é em competições
como esta que se vê o embrião dos futuros torneios de cantadores, como será visto no
próximo capítulo. Ademais, há muito se faz presente algum tipo de premiação aos
cantadores que venciam os desafios. Em 1931, houve uma exposição de produtos
variados no Colégio Salesiano. Na ocasião, foram colocados stands onde os expositores
mostraram seus produtos. Parte do evento constituiu em ser dedicado a festividades,
dentre elas, uma competição de cantadores. Assim constava:
Um cantador, sosinho, sem ter admiradores, cantava qualquer coisa tão baixo
que a voz se enrolava com o vibrar do violão.
Aproximámo-nos delle e entendemos:
- O pobre trabalhadô
Tem três horas de alegria
Quando almoça e quando janta
Quando arrecebe a “mumbia”
Quando vae chegando a tarde
Que vae se vencendo o dia. 240
Barros continuou: “cantam versos sem saber que cantam a propria vida”241. O
cantador já cansado da lida diária, ˗ as festividades estavam no fim visto que o jornalista
afirma que estava anoitecendo ˗, triste por estar sem um público foi, para o repórter, um
simples transmissor dos versos, anônimo e sem personalidade nas poesias.
No entanto, ao contrário desta fala, os poetas, em especial cantadores e
cordelistas transmitem seus sentimentos e mágoas também nos versos. No momento de
239
Idem., 01 dez. 1931. Título da matéria: “Grande Exposição de Produtos”. Acervo BN.
240
Idem., 09 dez. 1936. Título da matéria: “Encerrou-se com brilhantismo a novena de N. S. da
Conceição”. Acervo BN.
241
Ibidem.
96
Alguém já me perguntou:
O que são mesmo os poetas?
Eu respondi: são crianças
Dessas rebeldes, inquietas,
Que juntam as dores do mundo
242
Às suas dores secretas.
Eu me chamo Zé Vicente
Zinebra, mercado quente
Do territoria legá...244
O poeta respondeu: “Seu moço, esses nomes todos que eu disse: ‘Zinebra,
mercado quente’, é de verso...”, denotando a apropriação dos versos, provavelmente de
folhetos ou de outros cantadores. O público começou a sair do entorno do cantador
devido aos gritos dos vendedores da barraca de prenda e, ao ver o público saindo, o
cantador protestou em verso se referindo aos que o atrapalharam como sendo urtigas e
formigas:
Eu nasci de madrugada
Eu trouxe uma mão fechada
Era o signal do ganzá
242
AMÂNCIO, Geraldo; PEREIRA, Wanderley. Gênios da Cantoria. [s.n.]. Fortaleza, 2004. p. 26.
243
Diario de Pernambuco, 09 dez. 1936. Acervo BN.
244
Idem, 19 jan.1937. Título da matéria: “Encerrou-se a novena de Santo Amaro das Salinas”. Acervo
BN.
97
A vida dos poetas ambulantes pelas ruas do Recife estava, assim como outras
atividades, sujeita a violência. Passar o dia entre mercados ou festas para, então, voltar
para casa no subúrbio já a noite, poderia os tornar alvo de algum tipo de agressão, desde
um assalto ou algum motivo carregado de estigma, como o “ser matuto” ou o “ser
cego”, ou seja, uma gama de significações e estereótipos aos marginalizados. Os
interioranos que vieram tentar a vida em Recife em muitos casos tornaram-se
ambulantes ou desenvolveram atividades vistas como inferiores comparadas com
outras. O cego carregava o rótulo de pedinte: os cegos de porta de igreja, por exemplo.
Os cantadores, comumente eram chamados de mendigos, como diz matéria do
Diario de Pernambuco de 1933, onde, “certamente que temos em Recife o tipo de
mendigo profissional [...]. Possuímos os cantadores de rua, estereotipados, mendigos de
igreja e exploradores de crianças [...]”246. Para o jornalista anônimo, o Estado deveria
tomar medidas de amparo para que a mendicância tivesse fim. Não são muitos os relatos
de agressões aos poetas, mas dois posso destacar.
O Diario de Pernambuco publicou, em 1936, uma matéria sobre um cantador
que foi agredido juntamente com sua dupla na Rua Augusta 247, em Recife. Com o título:
“O trovador Antonio Silvino sofreu aggressão: invadiu o lar alheio para espancar a
victima”248. A matéria explica que o poeta Antonio Silvino, vulgo “Bahiano”, estava
caminhando junto com seu parceiro, Severino Cirillo de Lima, e “foi apupado por um
grupo de rapazes e logo depois alvo de insultos e doestos”249. Em seguida, os cantadores
correram em direção a Rua São João, mas foram alcançados pelos rapazes que
continuaram a espanca-los até que Bahiano conseguiu entrar em uma casa para se
abrigar. No entanto, um dos agressores invadiu a residência para continuar com a
245
Ibidem.
246
Diario de Pernambuco, 26 set. 1933. Acervo BN. Título da matéria: “O problema moral e jurídico da
esmola”. Refere-se ao estudo de Louis Paulian “Paris qui Mendie” sobre os mendigos de Paris, pelo qual,
identificou o que chamou de verdadeiro e falso mendigo, através de uma pesquisa de campo, onde fingia
ser um mendigo, na virada para o século XX.
247
Hoje, uma das ruas que deu origem a Av. Dantas Barreto; na mesma rua ficava a já demolida Igreja
dos Martírios, também demolida para a abertura da referida avenida.
248
Diario de Pernambuco, 13 mar. 1936. Acervo BN. Não confundir o repentista Antônio Silvino com o
famoso cangaceiro de mesmo nome.
249
Ibidem.
98
violência, até que desistiram e foram embora antes que a polícia chegasse, deixando o
poeta muito ferido no chão.
Outro caso, que foi registrado por estudiosos e folcloristas, se refere ao poeta
cego Cesário José de Pontes250. O poeta Cego Cesário, como era conhecido, nasceu em
Patos-PB, em 1875, vindo a falecer em 1947. Perdeu a visão ainda cedo, aos sete anos, e
era famoso por suas estrofes irônicas e um humor crítico. José Sobrinho e Átila
Almeida251 observam que muitos cegos decoravam versos para simplesmente chamar
atenção na rua e ganhar dinheiro, no entanto, para eles, o fato de Cego Cesário ser um
improvisador garantia não ser considerado pedinte por entre os praticantes do
improviso. Coutinho Filho252 assim descreveu o que teria ocorrido com o poeta Cego
Cesário:
250
As fontes fornecidas por COUTINHO FILHO, 1972., bem como por Luís WILSON, 1986. não
puderam ser confirmadas, pois, nada foi encontrado sobre a prisão do poeta Cesário. Já em ALMEIDA;
SOBRINHO, 1978. o poeta é dito como não sendo pedinte. Por outro lado, LINHARES; BATISTA,
2013. há o registro de uma estrofe do poeta Cesário se declarando pedinte.
251
ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. passim.
252
Francisco Coutinho Filho (1891-1975). O paraibano Coutinho Filho recolheu informações bastante
substanciais sobre os poetas que ganharam fama a partir da década de 1940, os que aqui são chamados da
Geração Moderna de Cantadores, tema discutido nos Capítulos 3 e 4.
253
COUTINHO FILHO, 1972. p. 168.
99
O guia, que também era seu filho, neste momento, o interrompeu dizendo que os
militares haviam saído. De imediato, com sua ironia característica, continuou o verso
que havia começado.
Os militares correram...
Meu Deus, que homens nervosos:
Correm com medo de um cego,
Quanto mais dos revoltosos!257
O medo de ser preso por pedir esmolas assolou a vida do poeta Cesário. Em
outro momento, ainda no Recife, um policial tentara levá-lo preso acusando-o de
pedinte. Ao ver o filho, seu guia, em desespero, faz um verso para tentar convencer os
policiais de livrar a criança.
O cantador repentista até a década de 1940 não fez dos palcos dos teatros um
local de apresentação. Percorreu as feiras e festas populares pelas ruas do Recife a
254
Ibidem.
255
LINHARES; BATISTA, 2013 p. 108.
256
Ibidem.
257
Ibidem. p. 109.
258
Ibidem.
100
procura de ouvintes para as glosas, por muitas vezes padecem por serem tachados de
mendigos, ou até mesmo sofrendo agressões. No entanto, os cantadores ganharam fama
pelas mãos dos cordelistas e esses foram, também, responsáveis por mostrar nas capas
de suas obras as mudanças na dinâmica da cantoria de viola.
Fig. 6
Fonte: Peleja de Ulysses Bahiano com José do Braço, 1940259. Acervo FCRB.
259
Observa-se neste folheto e nos outros que a data de publicação não indica propriamente a primeira vez
que foi publicado com tal representação na capa, mas sim o ano que este folheto foi publicado, podendo
ter a capa sido reutilizada em outras oportunidades.
260
Sabe-se que o cantador faleceu antes de 1930.
261
Em ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p. 94. aparece somente a informação de que o poeta ainda estava
vivo em 1935 e residindo em Currais Novos-RN.
102
[...]
J: Colega gostei de vêr
Seu sítio mistificado,
Eu tambem tenho mucambo
Em chão proprio edificado,
Dê-me licença a dizer
Onde mora seu criado
262
Peleja de Ulysses Bahiano com José do Braço. Acervo FCRB. Ano de publicação deste folheto: 1940.
263
Ibidem.
103
uso do mocambo como moradia reflete uma realidade comum no dia-a-dia destes, ou até
mesmo dos leitores, sendo este um artifício que o cordelista utiliza para tenta atrair o
leitor para os seus folhetos buscando retratar de alguma forma a realidade local. Em
seguida, vê-se outro folheto de Athayde com uma construção da representação da peleja
um pouco parecida com a vista anteriormente.
Fig. 7
264
Manoel da Luz Ventania, única informação encontrada, tanto nos primeiros versos do folheto, quanto
em ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p. 309, é que residia na cidade de Bananeiras-PB.
265
João Pedra Azul, poeta nascido em Belo Jardim-PE. Sobre ele, o cordelista Athayde tem uma especial
atenção devido ao fato de ter sido Pedra Azul a primeira vez que viu um cantador. GRILLO, 2015. p. 60.
104
Duas temáticas aparecem neste trecho: em primeiro lugar, o poeta Pedra Azul se
remete a um ambiente aristocrático, provavelmente uma tentativa do autor do folheto
em representar os repentistas em um local urbanizado. Em seguida, na mesma estrofe,
Pedra Azul provoca o seu adversário o tarjando de analfabeto, denotando o letramento
como uma vantagem na construção do saber do poeta repentista. Os cantadores
continuam:
[...]
V: A gramatica é cinecia
Da remota antiguidade
Por ser a chave da língua
Mostra com realidade
A origem da palavra.
E sua propriedade.
266
Peleja de Ventania com Pedra Azul. Acervo FCRB. Ano de publicação deste folheto: 1940. João
Faustino, conhecido como Serrador. Faleceu em 1924, na cidade de Maranacanaú-PE.
267
Ibidem.
105
Fig. 8
Fonte: Peleja de Laurindo Gato com Marcolino Cobra Verde, 1941. Acervo FCRB
Na Paraíba do Norte
Entre o Crato e Batalhão,
Morava Laurindo Gato
Cantador de profissão
Foi ele o melhor poeta
Que andou no alto sertão.
268
Poeta falecido antes de 1930.
269
Poeta cearense falecido antes da década de 1930.
270
Provavelmente se referindo ao estilo “Coqueiro da Bahia”, no qual, o verso é organizado pela forma
ABBCCDDC e finalizado com o refrão: Coqueiro da Bahia / Quero ver meu bem agora” e em seguida
uma estrofe, onde, ambos afirmam “Quer ir mais eu vamos / Que ir vamos embora / Coqueiro da Bahia /
Quero ver meu bem agora”. Cf. ERNESTO FILHO, 2013. p. 117.
271
Peleja de Laurindo Gato com Marcolino Cobra Verde, Acervo FCRB. Publicado em 1941.
106
Fig. 9
Título: Peleja de Patricio 272 com Inacio da Catingueira, 1954. Fonte: Acervo FCRB
272
José Patrício Ferreira de Siqueira Patriota. Assim como o poeta Pirauá, foi discípulo de Romano do
Teixeira. Consta que cantou até por volta de 1920.
273
Nota-se que neste folheto os direitos autorais de Athayde foram passados a José Bernardo da Silva.
107
Fig. 10
Fonte: Peleja do Cego Aderaldo 274 com Zé Pretinho275, 1973. Acervo FCRB.
274
Aderaldo Ferreira de Araújo, nascido no Crato-CE, em 1882. Ganhou grande notoriedade com as
publicações de Leonardo Mota. Cantou por toda sua vida e, como consta no Capítulo 4, saiu vitorioso ao
lado de Otacílio Batista no congresso de cantadores promovido, em Fortaleza, pelo repórter e poeta
Rogaciano Leite. Veio a falecer em 1967.
275
Há vários registros de cantores com este nome, porém, segundo ALMEIDA; SOBRINHO, 1978. p.
62., o poeta representado neste folheto é fictício e foi criado pelo cunhado de Cego Aderaldo, o piauiense
Firmino Teixeira Amaral.
108
Eu tirei a rabequinha
Dum pobre saco de meia
Um pouco desconfiado
Por estar em terra alheia
Ouvi as moças dizendo:
Meu deus, que rabeca feia!276
Com isso, nota-se que a cantoria de viola ao longo da primeira metade do século
XX foi adquirindo novas práticas. Estas, refletidas nas representações dos cantadores
nos folhetos e nas palavras dos folcloristas. Ora estão trajados com trapos, ora trajados
com paletó, debatendo sobre o outro ser analfabeto ou que entende das ciências. Por
vezes, os poetas começam a ser retratados criticando os que decoram os versos e os que
usam instrumentos velhos em desuso, como a rabeca.
O cantador de viola passa, então, aos poucos a ser encarado como símbolo de
uma identidade nordestina e, começa a utilizar novas práticas a partir da apropriação da
cantoria de viola, tais como: aumento da quantidade de gêneros nos eventos; forma de
se trajar nos palcos; tornar a linguagem usada nas improvisações mais acessíveis as
mais diferentes parcelas da sociedade; começar a usar duplas fixas. Surgem os grandes
torneios nos teatros (congressos). O repentista do torneio deveria ser diferente do
cantador de rua ambulante e dos representados em alguns livros de folcloristas.
Os novos cantadores que iram para os teatros eram diferentes e, para tal,
aderiram a moda citadina (travestiram-se de poder): usar o linho e a gravata, abandonar
o chapéu de palha ou couro. Passaram a trabalhar o vocabulário para agradar, não
somente os populares e conterrâneos das cidades do interior, mas também, a elite do
litoral frequentadora de teatro a aberta as novas propostas ideológicas do movimento
folclórico277. A cantoria de viola toma novas dinâmicas nas mãos dos improvisadores da
rima que começam a ganhar fama a partir da década de 1940, através dos organizadores
de cantorias em teatros, como será visto a seguir, na figura de Ariano Suassuna e, mais
adiante, com Rogaciano Leite – organizador do I Congresso de Cantadores do Nordeste.
276
Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho. Acervo FCRB, publicado em 1973.
277
O mesmo pode ser observado no caso dos sambistas que começaram a ser encarados como símbolo de
uma nacionalidade à medida que “desciam” os morros do Rio de Janeiro começaram a se adaptar aos
palcos que lhes eram entregues para apresentações. Cf. VIANNA, Hermano. O mistério do samba.
Zahar, 1995.
109
CAPÍTULO 3
ARIANO SUASSUNA E A GERAÇÃO MODERNA DE
CANTADORES
A década de 1940 levou a cantoria de viola a uma nova forma, uma releitura das
antigas pelejas e desafios. Agora os holofotes estavam ligados para os poetas do repente
nos palcos de teatros. Surgiu uma gama de cantadores para introduzir essa diferente
estratégia de atuação dos repentistas, a Geração Moderna de Cantadores, que tem como
características básicas: estímulo à improvisação como característica do profissional do
repente; maior diálogo entre a literatura erudita e a popular, consequentemente um
letramento mais acentuado nos repentistas; início do contato com o rádio e os jornais
impresso, os repentista-jornalistas; e, conforme dito, o surgimento dos torneios de
cantadores. Poetas são estimulados a produzir versos mais articulados, abertos para as
mais diversas temáticas que os novos públicos do litoral iriam exigir.
A viagem que os repentistas deram das feiras aos teatros não foi rápida, menos
ainda fácil. Ariano Suassuna ao propor, em 1946, uma cantoria no Teatro Santa Isabel
(Recife-PE) desencadeou um novo rumo aos poetas que o mesmo chamou de “Escola
‘Moderna’ de Cantadores”. Inspirado em seu pai, Ariano abriu uma nova discussão com
os administradores do teatro para mostrar as improvisações dos cantadores sertanejos,
ressignificando o espaço, transformando-o em uma cantoria sertaneja. Com a chegada
aos grandes palcos, os cantadores promoveram uma mudança nas antigas pelejas de pé-
de-parede, relendo seus modus operandi dentro da sua prática cultura, ou seja, recriando
110
A chegada dos poetas aos teatros não se deu de forma repentina, houve um
processo até a organização dos torneios nos palcos teatrais. O advento dos cantadores
em grandes salões, sedes de governos, etc. dependeu de uma espécie de organizador.
Organizador não no sentido de patrocinar ou pagar para os cantadores irem (como os
mecenas renascentistas), mas no sentido de incentivar e fazer a propaganda do evento.
O registro mais antigo sobre a atuação dos músicos da rima improvisada em
Pernambuco está intimamente ligado aos eventos de 1946 e 1948, no Teatro Santa
Isabel. Uma leva de cantadores apresentou-se no Palácio da Redenção, sede do governo
paraibano, graças ao apoio do Presidente do Estado, João Suassuna (1886-1930), na
década de 1920. Ariano, filho do então Presidente da Paraíba sob influência da atitude
do pai decide mostrar os violeiros para um público diversificado em meados dos anos
1940.
O relato pessoal foi dado por Ariano Suassuna, em matéria que este sempre
fornecia para o Jornal da Semana, entre dezembro de 1972 e junho de 1974. O meio de
comunicação foi um semanário recifense de pouca tiragem e baixo custo que abriu
espaço para uma coluna chamada "Almanaque Armorial do Nordeste" redigida por
Ariano. Os seus relatos nesta coluna, mais tarde deram origem ao volume O Movimento
Armorial, publicado pela editora da UFPE em 1974278. Ainda no cabeçalho, logo abaixo
de uma xilogravura, que sempre vinha na coluna, havia:
278
JÚNIOR, Carlos Newton. Prefácio. In: SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2008. p. 9.
279
Jornal da Semana, 21-27 jan. 1973. Acervo pessoal do Prof. Dr. Carlos Newton Júnior (UFPE).
111
280
O Prof. Dr. Carlos Newton Júnior (UFRPE) dedicou grande parte de sua vida ao estudo do Movimento
Armorial, em sua obra O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna (inicialmente para
dissertação de mestrado) há um longo estudo sobre os pressupostos do Movimento Armorial, bem como
análises das obras de Ariano e suas ligações com o Movimento. Destaque para a O Romance d’A Pedra
do Reino, de 1971, obra que expõe a conjectura de ideias do Movimento. Cf. JÚNIOR, Carlos Newton. O
pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna. Editora Universitária UFPE, 1999.
281
SUASSUNA, 2008. p. 44. Texto escrito por Ariano Suassuna, em 1962, intitulado “Teatro, região e
tradição”.
282
Ibidem. p. 60.
112
Quais as referências que Ariano teve para seus trabalhos? Uma resposta extensa,
como o próprio afirmou, “mas isso tudo é um capítulo muito grande de que, a rigor,
deveria incluir nomes de poetas populares, como Leandro Gomes de Barros, de
pesquisadores modestos e limitados, como Leonardo Mota, [...]” 283. E esse tipo de
literatura estava presente na sua vida desde criança.
Ariano Vilar Suassuna nasceu, em 1927, na atual João Pessoa-PB. Apesar de ter
nascido na capital do Estado, teve boa parte de sua vida ligada ao sertão, principalmente
após o seu pai deixar de ser o Presidente do Estado da Paraíba; residiu principalmente
em Souza-PB e Taperoá-PB. O sertão paraibano influenciou as obras de Ariano
Suassuna, desde textos para jornal até peças de teatros e romances. Muito de seu
pensamento veio de seu pai, João Suassuna, e seu apreço pelos poetas populares. Daí
vem seu contato com Leonardo Mota, onde,
O próprio Leota relembra de sua relação com João Suassuna nos encontros
durante suas viagens pelo Sertão. Das conversas com o então Presidente da Paraíba,
Mota recolheu diversas anotações, algumas das quais, confrontou com outros escritos
para testar veracidade de autoria. Sobre João Suassuna, escreveu, em 1928:
Sua Excelência, o Sr. Dr. João Suassuna, jovem, bravo, ilustre Presidente da
Paraíba e estadista que se orgulha de ser filho do sertão, é emérito
conhecedor de episódios da vida dos cantadores nordestinos. Vezes muitas, o
distintíssimo democrata me honrou com sua fascinante conversação,
ministrando-me preciosos informes acerca de vários menestréis plebeus. Pena
é que se não decida a compendiar em livro, que seria de alto valor, o muito
que sabe a respeito do folclore do Nordeste.285
Leonardo Mota e o Barão de Itararé – visto que ele sempre declamava algumas estrofes
que havia ouvido de poetas no sertão, quando não contava causos populares. Em dado
momento, no subtópico "Cantadores no Palácio do governo", o escritor afirma:
Pois bem, se o ambiente era esse em 1946, avaliem como não era em 1924! É
verdade que havia alguma diferença: em 1946, o Suassuna que iria realizar a
cantoria no Santa Isabel era apenas primeiroanista de Direito, e o outro, que
levava Cantadores para o Palácio do Governo era Presidente da Paraíba,
como dizia naquele tempo. Ora, tem sempre uma porção de gente pronta a
achar que tudo o que o Governador faz é interessante. De modo que, apesar
das estranhezas, havia uma porção da chamada "gente da melhor sociedade"
pronta a ouvir, certa noite, no Palácio, os cantadores José Batista e José
Clementino, trazidos pelo Presidente Suassuna do Alto Sertão Paraibano,
terra sua, a fim de exibirem, na capital, seus dotes improvisadores287.
Como o próprio Ariano afirma em seu texto, o fato de seu pai levar cantadores
para o Palácio, o incentivou a propor uma apresentação de repentistas no maior teatro
do Recife, em muito, para mostrar ao grande público que não estava acostumado a esse
tipo de arte como a capacidade de fazer versos em improviso era uma forma sublime e
tão completa como os versos acadêmicos, assim pode-se dizer.
Para o evento de 1946, o ainda estudante Ariano Suassuna encontrou alguns
problemas para execução. Em vários momentos o mesmo falou sobre as dificuldades
para a realização do evento no Santa Isabel. A primeira situação na matéria
anteriormente exposta e, a segunda ocasião no discurso de abertura do II Congresso de
Cantadores do Recife, em 1987. Os textos são bem semelhantes e apontam para a
286
Jornal da Semana, 21-27 jan. 1973. Acervo pessoal do Prof. Dr. Carlos Newton Júnior (UFPE).
287
Ibidem.
114
[...] O fato causava, como é de se pensar, uma certa estranheza [se refere ao
ocorrido com o João Suassuna e os cantadores no Palácio]. Lembro-me bem
de que, em 1946, quando realizei, no Santa Isabel, uma cantoria coletiva, que
foi o embrião dos futuros Festivais de Violeiros e que foi o início da fama
nacional dos irmãos Batistas - Lourival, Dimas e Otacílio - tive que lutar
contra aqueles que se escandalizavam com o fato de eu querer levar
"Cantadores populares para o Santa Isabel"! Lembro-me bem de que o diretor
do Teatro naquele ano, Waldemar de Oliveira, me dizia, desolado:
"Cantadores e violeiros no mesmo ambiente em que falaram ou recitaram
versos Joaquim Nabuco, Castro Alves e Tobias Barreto"!288
288
Ibidem.
289
Ibidem.
290
BEZERRA, Jaci; RAFAEL, Ésio (org.). Livro dos Repentes: Congressos de cantadores do Recife.
Recife: FUNDARPE, 1990. p. 13.
115
292
O que Ariano chama de “Escola Moderna” de cantadores é o que Francisco
293
Damascena denomina de primeira fase-geração do século XX, momento em que os
cantadores começam a ganhar fama nacional, programas de rádio e os palcos dos
teatros, em um processo de urbanização da cantoria (migração para os grandes centros
urbanos) e maior contato com os veículos de mídia. No próximo tópico serão abordados
com maiores detalhes tais cantadores. Para este momento procuro fazer uma mescla
entre a concepção de Ariano Suassuna e Damascena, ou seja, o que chamo de Geração
Moderna294. Suassuna prosseguiu em seu texto,
Com êles virá Dionísio, o maior violeiro cearense, em cuja viola teremos
oportunidade de notar a extraordinária semelhança das melodias sertanejas
com as fugas de Bach e dos compositores pré-clássicos295.
291
Jornal do Commercio, 01 set. 1946. Acervo APEJE. (grifo meu).
292
Um tópico dedicado à chamada Geração Moderna de Cantadores será visto em seguida.
293
DAMASCENO, 2012, pp. 215-223.
294
Os motivos da escolha do termo serão elucidados no referido tópico.
295
Jornal do Commercio, 01 set. 1946. Acervo APEJE.
116
P.S. – Depois de escritas estas notas, tive notícia de que vai haver em São
José do Egito, um congresso de repentistas. É uma iniciativa notável que não
tem precedentes no Brasil. Na Idade Média, reuniam-se os trovadores
alemães num monte, o que deu assunto a Wagner para a ópera “Os Mestres
Cantores”. Até nisto nota-se a semelhança dos nossos cantadores com os
provençais e alemães da Idade Média299.
296
Ibidem.
297
Tal noção é vista por Roger Chartier em Cultura Popular revisitando um conceito historiográfico. Para
o historiador significa “caracterizar e nomear práticas que nunca são designadas pelos seus atores como
pertencendo à ‘cultura popular’. Produzido como uma categoria erudita destinada a circunscrever e
descrever produções e condutas situadas fora da cultura erudita.” CHARTIER, Roger. Cultura Popular
revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, no. 16, 1995, p.
179
298
Jornal do Commercio, 01 set. 1946. Acervo APEJE.
299
Ibidem.
117
Fig. 11
Fonte: Manchete de primeira página. In: Jornal Pequeno, 24 set. 1946. Acervo BN.
300
Jornal Pequeno, 24 set. 1946. Acervo BN.
118
Uma das poesias declamadas no evento do Santa Isabel, organizado por Ariano
Suassuna em parceria com o Diretório da Faculdade de Direito, ficou registrada. Ariano
deu o mote para ser feito em décima: “Zé Américo de Almeida,/O salvador do sertão”.
A estrofe, feita em homenagem à José Américo de Almeida, famoso político paraibano,
ex-aluno da Faculdade de Direito do Recife, fundador da UFPB e que havia sido
interventor da Paraíba por um breve período em 1930 que, segundo os poetas, teria
ajudado os sertanejos nas secas recentes. Dimas Batista recebeu o mote e declamou:
Ainda foi possível resgatar o registro feito pelo Jornal Pequeno da entrevista
com os irmãos poetas e Ariano Suassuna.
301
Idem.
302
LINHARES; BATISTA, Op. Cit. p. 332.
119
Fig. 12
Fonte: Da esquerda para direita: o repórter (não identificado), Dimas Batista, Ariano Suassuna, Otacílio
Batista. In: Jornal Pequeno, 24 set. 1946. Acervo BN.
Durante o levantamento de dados para esta pesquisa, foi possível notar, no que
se refere aos cantadores de viola, que os jornais se expressam usando de adjetivos
pejorativos e que varia tanto de veículo, como dentro do próprio jornal. Percebe-se que
isso teve maior abertura para ocorrer devido às matérias serem feitas por diversos
jornalistas, a maioria sem referência de autoria nos textos, mas também, pelo fato do
periódico assumir duas posturas; ora apoiando os repentistas como elemento de nossa
cultura que deve ser preservado e prestigiado em eventos, ora se referindo aos
cantadores como sendo inferiores, produtores de uma poesia inferior à erudita. Esse tipo
de discurso foi recorrente nos jornais de época promovendo, por vezes, uma hierarquia
cultural. No entanto, tal distinção entre popular e erudito torna-se impossível de ser
radicalmente estratificado, ao passo que os diálogos culturais na formação de práticas
culturais são construídos a partir de mesclas constantes entre os vários estamentos
sociais.
Dimas Batista e Otacílio Batista, nesta entrevista ao Jornal Pequeno, não deixam
e até fazem questão de citar o poeta, já falecido na ocasião, Antônio Marinho que,
segundo eles, foi o grande mestre da cantoria do Pajeú pernambucano. Assim como os
poetas do início do século, Antônio Marinho dedicou-se a vida dupla de poeta e
agricultor. É perceptível durante o encontro, a exaltação que Dimas Batista faz a seu
mestre (como ele próprio considera) ao fato deste ter cantado em um teatro da capital
pela primeira vez. O respeito por Marinho era tão grande que ao ser perguntado se já
havia entrado em desafio com ele, afirmou categoricamente: “Qual nada! Quem podia
120
com aquele homem?”. O repórter aproveita este momento em seu texto para dissertar
sobre os novos caminhos que a cantoria vinha tomando e sob o subtítulo “Marinho se
foi”, pontua:
Eu saí do Ceará
Conduzindo um pobre pinho
Dizendo pelo caminho
O que é que eu vou ver lá?
Assim que saltei por cá
De voltar tive vontade
Um homem de certa idade
Me disse na estação:
Matuto lá do sertão
Que quer aqui na cidade?304
303
Jornal Pequeno, 24 set.1946. Acervo BN.
304
Ibidem. Possivelmente o repórter não registrou bem o verso e acabou publicando fora da métrica,
mesmo assim, mantive a forma publicada originalmente no jornal.
121
Dimas Batista:
Vim da terra de Iracema
Mostrar, como violeiro,
O abôio do vaqueiro,
305
Ibidem.
306
Ibidem.
307
Ibidem.
122
Otacílio Batista:
Eu venho de outra serra
Mostrar outra natureza
E apresentar a “Veneza”
Poesia da outra terra.
Quem fala certo não erra
Diz o antigo rifão
E eu, com toda perfeição,
Declaro a santa verdade:
Vamos mostrar à cidade
A poesia do sertão.308
308
Ibidem. Neste período, Dimas morava no Ceará, enquanto Otacílio morava em São José do Egito.
123
309
Autores que dedicaram vasta obra em dois volumes na busca por um dicionário bio-blibliográfico
bastante utilizada nesta pesquisa. Cf. ALMEIDA; SOBRINHO, 1978.
310
STONE, Laurence. Prosopography. Deadalus, V. 100. N. 1, pp.46-79, 1971. p. 46. A construção das
prosopografias é elaborada em parte a partir de trabalhos biográficos já escritos e, também, de matérias de
jornais, principalmente, no Capítulo 4 ao analisar Rogaciano Leite. Com isso, é preciso ter o cuidado de
não cair no que Bourdieu conceitua de “ilusão biográfica”, que consiste na tentativa de construir uma
biografia firmada na complexidade do sujeito estudado. Cf. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In:
FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2006. pp. 183-191.
311
No Capítulo 4 há um tópico dedicado ao I Congresso de Cantadores do Nordeste.
124
Pinto, os Irmãos Batista (Lourival Batista, Dimas Batista e Otacílio Batista) e, por fim,
Domingo Fonseca312.
O trabalho aqui proposto tem apenas como objetivo analisar a primeira fase da
chamada Geração Moderna de Cantadores. Apesar de obter a alcunha de Geração
Moderna existem outros nomes nas obras de estudiosos da cantoria de viola para definir
este momento vivido pelos repentistas. Francisco Damasceno313, como havia citado
anteriormente, chama de Primeira Fase-Geração do século XX; Já Braulio Tavares
refere-se aos poetas deste período como uma Era de Ouro da cantoria de viola 314. Um
consenso sobre quem deveria ser integrado a determinada fase é quase impossível de se
mensurar. Logo, nessa sessão a intenção é mostrar como eram os cantadores que
fizeram parte dos primeiros congressos e contribuíram fundamentalmente para
desenvolvimento do repente como profissão. Já que não há um movimento organizado
ou até mesmo um estatuto que definisse no período quem seriam ou o que seria
necessário para ser encaixado neste grupo, por este motivo que a alcunha dada por
Ariano (Escola) seria inviável de ser aplicada. Ou seja, nem mesmo um manifesto foi
escrito para determinar a inauguração de uma nova maneira de se fazer o repente. Com
isso, neste trabalho, assim como em outros que se preocupam em estabelecer fases é
somente devido a uma série de posturas e características que causaram rupturas e
permanências dentro da prática do repente.
A princípio, na primeira fase da Geração Moderna se encontra entre 1930 e 1960
e tem como características básicas: introdução nos meios de comunicação, em especial
o rádio e o jornal impresso; poetas de modo geral letrados; surgimento dos grandes
torneios, os congressos. A segunda fase do movimento, que ganha força a partir de
1970, tem como aspectos principais: desenvolvimento das propostas da primeira fase,
expandindo para a TV e outras mídias fonográficas (LP, por exemplo, foi bastante
difundido neste período); estatutos definitivos de profissional do repente, encabeçado
pelo poeta Ivanildo Vila Nova (1945-); surgimento dos grandes festivais de violeiros de
cunho interestadual. A terceira fase da Geração Moderna, situada por volta dos anos de
1990 em diante, acompanha o ritmo das outras fases: tem a maioria dos seus “membros”
312
Rogaciano Leite também está incluso nesta primeira leva de repentistas que foram aos palcos dos
teatros, porém, no Capítulo 4 que é dissertado sobre este devido a seu envolvimento na elaboração do I
Congresso de Cantadores do Nordeste.
313
DAMASCENO, 2012. pp. 203-259.
314
TAVARES, 2016. pp. 29-32. O autor se refere não somente a uma localização temporal como sendo a
Era de Ouro, mas um momento onde se deu o boom de novos gêneros e estilos na cantoria de viola.
125
315
Aqui divido como pode observar em fases de uma única Geração, da Geração Moderna de Cantadores.
316
Discurso rimado que surgiu nos EUA no fim do século XX e está inserido na cultura do Hip Hop.
Pode ser cantado com ou sem acompanhamento musical (beatbox ou Dj mixer). Há ainda os momentos de
duelo entre os praticantes (MC’s).
126
maioria de agricultura, comércio, etc. Para viver da cantoria, antes dos festivais e
grandes congressos, era necessário, mais do que hoje, fazer grandes deslocamentos para
vender a arte do improviso317. O letramento básico era importante neste meio em que os
cantadores viviam, pois, em muitos casos, eles migravam para a manufatura de folhetos.
Com isso, “o cantador sabe que está inserido numa sociedade em que, para a classe e
cultura dominantes (e também em grande parte para os dominados, inclusive os
analfabetos), só é considerado ‘cultura’ o que é veiculado pela escrita”. 318
Os violeiros com prestígio, de um modo geral, viajavam centenas de quilômetros
para as mais variadas apresentações e tal fato é mostrado com a participação de alguns
consagrados poetas como os Irmãos Batista319, Severino Pinto (1896-1990) e Domingos
Fonseca (1913-1958), Agostinho Lopes (1906-1972), Vicente Grangeiro (1901-?), José
Alves Sobrinho320 e outros poucos, que estavam circulando no período aqui estudado
entre, principalmente, São Paulo, Rio de Janeiro (então capital do país), Recife,
Fortaleza e João Pessoa. Participaram, senão de todos, da maioria dos congressos de
cantadores organizados entre 1946 e 1960321.
Como se deu tal prestígio? Acredita-se que foi a grande capacidade de
improvisação e de articulação, que ao estreitar a relação destes com o público, teve,
como consequência, uma aproximação com veículos de divulgação que não fosse os
folhetos para dar continuidade a sua renda familiar. Segundo Damasceno:
317
O antropólogo fez uma pesquisa prática de campo para trabalhar as facetas da cantoria de viola
procurando analisar a relação entre ação e estrutura dentro do campo social da cantoria. SAUTCHUK,
João Miguel Manzolillo. A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino. Brasília,
2009. Tese (Doutorado em Antropologia), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Universidade de Brasília, 2009. Ver capítulo III.
318
AYALA, 1988. p. 20.
319
Lourival Batista (1915-1995), Dimas Batista (1921-1985) e Otacílio Batista (1923-2004).
320
Nome artístico de José Clementino de Souto (1921-2011). Importante cantador no que se refere ao
levantamento de dados biográficos e antologias poéticas.
321
DAMASCENO, 2012. p. 223.
322
Ibidem.
127
Os homens trazidos ao Recife pelo poeta Rogaciano Leite não nos davam a
impressão de estarmos ouvindo matutos analfabetos, com indumentaria
falsificada. O aspecto e a linguagem dos atuais cantadores nordestinos estão
sofrendo a influência da civilização hodierna. Todos os violeiros são rapazes
apresentáveis, usando roupas de linho, óculos e gravatas da moda. [...]
Raramente se nota um ou outro erro de concordância no linguajar do
cantador. Isso, sem dúvida, nasce do rápido processo verificado na
civilização nos últimos dez anos.323
323
O Globo, 18 out. 1948. Acervo digital de O Globo.
324
Ângela Grillo trabalha os momentos de mudança de representação na imagem do cangaceiro nos
folhetos no início do século XX, onde de início, “vê os homens humildes diante do poder dos coronéis,
para em seguida analisar a inserção do bandido – herói nesse contexto”. GRILLO, 2015. p. 165 et. seq.
Rômulo Oliveira trabalha igualmente o projeto de “travestir-se de poder”, porém nos membros que
promoveriam a criação da Academia Pernambucana de Letras, no qual, há um tom nos jornais de os
caracterizá-los pertencendo a um status de elite, vê-se quando o historiador analisa as imagens publicadas
dos literatos: “Elas distinguem os homens pelo traje de casemira, geralmente um fraque no lugar da
sobrecasaca, o porte suntuoso e elegante, a gravata borboleta ou tradicional, os bigodes ou barbas
tratadas, a expressão de seriedade, como se fossem incapazes de representar o sorriso da sociedade. São
figuras que imprimem a imagem de ser civilizado, culto, erudito, de fino trato, bom gosto e cortês.
Elementos como o pince-nez ao invés dos óculos completam a construção dos modismos que aderiam tais
sujeitos.” Cf. OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo José Francisco. “OS OPERÁRIOS DAS LETRAS”: O
campo literário no Recife (1889-1910). Recife, 2016. Tese (Doutorado em História), Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, 2016. p. 157.
325
O mesmo é identificado na figura dos sambistas cariocas no processo de “descer” o morro e ganhar os
salões da elite no Rio de Janeiro.
128
que pode ser normal de jovens que passam a morar ou frequentar com mais as cidades
grandes e, com isso, passam a ser influenciados pela moda local, que também não muito
diferente do que era visto nos interiores com a diminuição das fronteiras com estradas,
trens, rádio, etc.
Os congressos e festivais trouxeram o pagamento por contrato e premiações aos
cantadores; ao passo que na cantoria tradicional de pé-de-parede, a bandeja foi uma
importante forma de interlocução entre o cantador e seu público. Ao contrário de um
espetáculo de música, por exemplo, os quais existem distanciamento entre artista e
quem o prestigia, a interação do público com os cantadores é expressiva, sendo sentida
desde as exageradas palmas para as boas poesias, ou "pagar o verso" quando um
membro da plateia gosta do verso e deposita o valor justo por ela na bandeja. E, em
meio a esse público surgiu os apologistas, ou seja, críticos e grandes divulgadores da
arte de improvisar.
Notadamente, em muitos casos tais apologistas viraram os chamados folcloristas
e passaram a registrar e estudar os cantadores, em especial, na primeira metade do
século XX. De acordo com Ayala:
326
AYALA, 1988. p.21.
327
Roger Chartier trabalha essa noção de construção do popular como construção de uma elite intelectual
em, “as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais "representantes" (instâncias
coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da
comunidade ou da classe.” CHARTIER, 1991, p. 183.
129
A relação dos artistas com o público nos festivais mesmo que tenha sido, de
certa forma, fragilizada tornando-se indireta com o não uso da bandeja e a adoção de
cachês e premiações, ainda se mantinha através das palmas, como acima afirmado, mas
também, como visto em alguns eventos e congressos, por meio da interação criada pela
possibilidade dos presentes em fornecerem motes para os cantadores improvisarem. Até
mesmo quando os repentistas migraram para o rádio – muitos em grande parte sendo os
próprios locutores dos programas –, a proximidade entre violeiro e seu público se dava
através dos ouvintes ligando (ou enviando cartas) para oferecer motes. O que estimulava
maior participação de quem acompanhava os programas, pois, sempre que era dito o
tema também era anunciado quem o pediu/fez.
Já na década de 1940, a relação jornal impresso-rádio era uma grande forma de
divulgação da poesia, além de propaganda para os eventos. O Jornal do Commercio
aproveitando a vinda dos poetas para o I Congresso de Cantadores do Nordeste, em
1948, anuncia uma apresentação dos mesmos no auditório da Rádio Jornal do
Commercio, que fora ouvida pelos ouvintes da emissora radiofônica.
Fig. 13
Fonte: Anúncio que ocupava toda parte inferior da página In: Jornal do Commercio, 08 de outubro de
1948. Acervo FUNDAJ.
para a final as três melhores integrando o processo de tornar a cantoria de viola em uma
prática cotidiana das pessoas que moram nos centros urbanos 333. Assim, Pedro Filho
completa, "festival é, portanto, a cantoria moderna, que sai do ambiente rústico dos
sertões para ocupar espaço nos clubes, teatros e ginásios esportivos dos grandes centros.
É a fase de urbanização da cantoria"334. Os congressos, desta forma, assumem a forma
de apropriação da cantoria de viola, dentro da própria prática, buscando uma nova
leitura dos antigos desafios do século XIX. Evangelista e Souza corroboram o
pensamento da seguinte maneira:
333
Ibidem.
334
Ibidem.
335
EVANGELISTA, Jucieude. L.; SOUZA, Karlla C. A. A poesia em movimento: enraizamento e
itinerância no repente. In: XV Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste e Pré-Alas Brasil,
2012. pp. 3-4.
336
ERNESTO FILHO, 2013. p. 32.
132
337
WILSON, 1986. pp. 34-37.
338
Ibidem. p. 37.
339
Para Ginzburg, esse tipo de postura de considerar um determinado elemento da cultura como sendo
inovador, quebra com a noção de dialogo entre as classes e as práticas culturais. Logo, “Insistindo nos
133
cultural, seja ela de origem popular ou de elite, tende com o tempo a sofrer um diálogo
entre elas, podendo, inclusive, chegar a um ponto onde não se distingue de onde surgiu
determinado elemento constitutivo de seu legado. Pereira da Costa registra os chamados
Oiteiros Poéticos: grupos de poetas que se apresentavam com bastante semelhança aos
congressos de repentistas. Segundo o mesmo, tal prática é longínqua, havendo registros
dela no século XVI no estado de Pernambuco, a qual ganhou forte prestígio até o início
do século XIX, onde, por volta de meados deste mesmo século caiu em total desuso. Os
oiteiros consistiam,
Esse tipo de prática é apontada por Rômulo Oliveira Júnior como reflexo de um
letramento crescente na capital do estado, bem como um progresso intelectual:
Dois pontos se assemelham com o que foi visto nos primeiros congressos. No
primeiro, diferente da prática da musa, eram fornecidos aos competidores motes ou pela
assistência, ou pelo público. Por fim, ainda sem existir uma mesa julgadora nos moldes
dos contemporâneos congressos, a aclamação do público definia o vencedor. Um
método comum entre os repentistas do fim do século XIX, e até mesmo ao longo da
primeira metade do século XX, consistia no uso de absurdos em suas poesias ou mesmo
uma mudança da temática, muito em voga pelo desenrolar da cantoria. Tal tipo de
prática também foi observada por Pereira da Costa nos saraus dos oiteiros, onde:
Nesse poético passatempo, que tinha por cenário quase sempre a praça
pública, diz Pacífico do Amaral, não era raro ver-se os poetas repentistas
empenhados em levar de vendida uns aos outros, na pugna das consoantes e
rimas, desviarem-se reciprocamente do assunto principal e atirarem-se ao
desconhecido, completando muitas vezes em sentido inteiramente contrário
ao pensamento apenas enunciado pelo colega in frente, como também
aproveitarem-se do ensejo para ferirem com epigramas e indiretas este ou
aquele indivíduo, costume ou uso.342
Batista:
Ao nascer este menino
Que o império governará
Camões:
Para o banquete dará
Dona Maria o pepino
Batista:
Oh! Que presente mofino
O tal do pepino ofertado
Camões:
Batista, estás enganado
Porque o pepino dela,
Cozido em gorda panela
É excelente bocado!343
342
PEREIRA DA COSTA, 2004. p. 294.
343
Ibidem. pp. 294-295.
135
344
Ibidem. p. 295.
345
A admiração dos poetas deste período por Marinho é observada na ocasião, em 1946, da instalação do
busto do repentista em São José do Egito com o epigrama em forma de verso: “Em novecentos e onze/
Tremulou seu estandarte/ Quando este peito de bronze/ Deu início a esta arte.”
136
O profissionalismo de Marinho, a que Ivo Mascena se refere, foi uma busca mais
consistente por cantorias em sua região e, por vezes em outros cenários viajando pelo
Nordeste. Mas a agricultura e outros trabalhos sempre estiveram presente. Começou sua
carreira em 1911 e poucos anos depois, em 1915, viajou de trem de Rio Branco (atual
Arcoverde-PE) para o Recife, onde enfrentou Zé Duda (1866-1931), famoso repentista
da época. Sobre este encontro um folheto foi produzido, Encontro de Antônio Marinho
com José Duda, no Recife em 1915348. Casou-se em 1918 com Isabel Neves Marinho
com quem teve cinco filhos.
Sua vida de repentista ganhou maior notoriedade a partir da década de 1930
quando se mudou com a família por algum tempo para Alagoa de Baixo (atual Sertânia-
PE). De lá passou um tempo morando sozinho em Caruaru, onde criou renome fazendo
cantorias na Feira do Gado349 local. A importância de Marinho em Caruaru é apontada
por Mascena da seguinte forma:
346
WILSON, 1986, p. 159.
347
VERAS, Ivo Mascenas. Antônio Marinho do Nascimento: o precursor dos repentistas de São José do
Egito: história de uma vida. Recife, Bagaço, 2007. p. 33.
348
Apesar de o folheto afirmar em seu título que o encontro tenha sido no Recife, em uma dada estrofe do
mesmo o poeta afirma que foi até Moreno-PE (Na Vila de Natã) para fazer a peleja com Zé Duda. Luís
Wilson (WILSON, 1986. p. 164) põe a autoria do folheto a Antônio Marinho, porém, também é possível
ver na contra capa do folheto “Os milagres ou curas de Madame Jael em Recife” de João Ferreira Lima
afirmar que o encontro de Antônio Marinho e Zé Duda era de autoria deste. Tais folhetos podem ser
encontrados na Cordelteca Digital do CNFCP.
349
Local de comercialização de animais por fazendeiros da região. Tal tipo de feira é comum nas cidades
do agreste e sertão pernambucano.
137
A vida itinerante dos poetas do repente, como visto anteriormente, era algo
bastante comum nos no final do século XIX e início do século XX. A dedicação aos
versos foi inspiração para muitos cantadores, sendo uma verdadeira forma de vida.
Entre os vários violeiros que declamaram, junto com Marinho, grandes desafios,
destaca-se Severino Lourenço da Silva Pinto, conhecido como Pinto do Monteiro
350
VERAS, op. cit., pp. 42-43.
351
Ibidem. p. 69.
352
VERAS, Ivo Mascena. Pinto Velho do Monteiro: o maior repentista do século. Ed. do Autor, Recife,
2002. p. 119.
138
(devido ao seu local de nascimento, Monteiro-PB), pelo qual alguns estudiosos dizem
que só foi derrotado em uma peleja pelo poeta acima mencionado.
Severino Pinto ganhou fama devido à rapidez com a qual processava
improvisações, bem como seu humor ácido em desafios com outros cantadores. Ivo
Mascena353 estipula que ao longo da vida, Pinto do Monteiro tenha cantado junto com
cerca de cem cantadores. Teve sua infância e parte da vida adulta ligada ao campo,
crescendo no Sítio Carnaubinha, no município de Monteiro-PB. Viveu com os pais até
que se mudou para a Fazenda do Feijão (pertencente ao Cel. Sizenando Rafael de Deus),
em 1910, para trabalhar de vaqueiro, ficando lá até seus 20 anos, em 1916.354 Em
entrevista concedida à Orlando Tejo (1935-)355, em 1975, Pinto falou um pouco de sua
trajetória na Fazenda do Feijão e como decidiu entrar para o mundo da cantoria. Ao ser
perguntado como começou com a cantoria, o poeta afirmou:
De imediato, Pinto não tentou a profissão do repente para seu único meio de
vida. Ficou “manzanzando... fui para Floresta do Navio e no dia 05.08.1916 me alistei
no 3º Batalhão da Polícia. Saí de lá em 09.01.1919, em Serra Talhada” 357. Neste tempo
o recrutamento para o combate ao cangaço estava em alta, por isso a facilidade de
alistamento. O pouco tempo que ficou na polícia foi marcado por insegurança e medo
de uma profissão mais perigosa que de vaqueiro. Chegou a ser fichado e preso por
353
Ibidem. pp. 97-100.
354
Ibidem. p. 127.
355
Construiu fama como repórter e principalmente por escrever o livro Zé Limeira: o poeta do absurdo.
356
NUNES, Joselito. Pinto Velho do Monteiro: um cantador sem parelha. Bagaço, Recife, 2009. p.45.
357
Ibidem. p.46.
139
entrar em uma briga contra um colega de farda que espancava uma mulher. Até que se
esgotou e pediu afastamento.358
De volta a sua terra natal, teve a oportunidade de cantar com Manoel Clementino
Leite na ausência de Antônio Marinho, que não pôde comparecer. Disse: “Clementino
pegou a cantar com um tal de Saturnino Mandu... aí eu disse: - Se for para cantar desse
jeito, eu também canto!”359. A partir daí sempre que possível, participou de cantorias.
Segundo Ivo Mascena, sobre o episódio com Manoel Clementino, este varreu elogios ao
iniciante no repente:
Pinto, ao contrário de outros cantadores que fizeram parte desta fase da cantoria,
não tinha um nível escolar alto361 e tentou suprir desenvolvendo mais suas estratégias de
improvisação, bem como construir um arcabouço temático para os debates com outros
repentistas. Do sertão, seguiu o rumo de muitos retirantes para tentar a sorte na capital
pernambucana. Morou no bairro do Arruda, subúrbio do Recife, e nesta cidade tentou
ser novamente policial, mas com sua ficha manchada não teve sucesso. Em 1930, tentou
instalar uma fábrica de cuscuz ao mesmo tempo em que fazia cantorias no Mercado de
São José362, muitas delas com o Cego Cesário (já citado). Segundo Pinto, ainda na
entrevista concedida a Orlando Tejo, disse que ganhava “duzentos bem cedo, cem de
noite, a cem réis..., ganhava dinheiro como o diabo”363. Nota-se que a tarde o mesmo
fazia cantorias pelo mercado, pois, o número de pessoas comprando era menor e os
comerciantes teriam mais tempo de ouvi-los.
358
VERAS, 2002. p. 128.
359
Ibidem.
360
Ibidem. p.129.
361
Segundo VERAS, 2002, p. 80, Pinto do Monteiro não teve educação básica e média, recebeu apenas
aulas particulares – não fica claro com que idade foram tais aulas, se ainda criança ou já adulto, quando
melhorava sua prática de cantoria –, onde aprendeu a escreve e ler, porém, criou o hábito de ler. Cantando
com o poeta José Faustino Vilanova foi incentivado a ler os manuais escolares para desenvolver tanto a
escrita e leitura, quanto a sua caixa mental de rimas e temas.
362
Segundo WILSON, 1986. p. 374, Pinto do Monteiro tentou neste período que morou na capital ser
enfermeiro no Hospital da Tamarineira no Recife.
363
NUNES, 2009. p. 46.
140
Lourival Batista:
Pinto foi pra o Amazonas
Pensando que enriquecia,
Além de não arrumar nada,
Se esqueceu do que sabia;
Nem canta como cantava,
Nem bebe como bebia...
Pinto do Monteiro:
Essa sua cantoria
Não me deixou satisfeito,
Nunca me faltou lembrança
E muita força no peito,
E a boca de beber
Ainda está do mesmo jeito.367
Ao voltar para o Nordeste, Pinto começou a cantar sem parar até que foi
chamado para participar do I Congresso de Cantadores do Nordeste, em 1948. A fama
cresceu e, juntamente com os Irmãos Batista, viajou no ano seguinte para o Rio de
Janeiro para uma série de apresentações. Sobre sua vida a partir da década de 1950,
finalizou, aproveitando sua fama de ser imbatível, a entrevista com Orlando Tejo
afirmando: “Depois de 1950, a minha vida é essa mesma. De cantoria em cantoria,
364
Ibidem. p. 47.
365
Ibidem. Pinto, constantemente, em suas falas e versos tinha um tom irônico. Pode ser que essa resposta
dada ao jornalista seja uma metáfora para “casa” ou “viola”
366
Formaram duplas depois da morte de Antônio Marinho, com quem Pinto tinha muito apreço na
profissão.
367
VERAS, 2002. p. 137.
141
cantando com cantadores bons e ruins. Os bons são poucos. Agora os ruins... ‘é uma
frasqueira que não tem prateleira que guarde’”368.
Pinto do Monteiro é um bom exemplo do poeta itinerante que se
profissionalizou, mas para tal algumas características foram fundamentais para
prosseguir tirando sobrevivência apenas da poesia. Primeiramente, teve os
conhecimentos, assim como o português, testados por poetas com uma escolaridade
maior que a dele. Certa vez cantou com o poeta José Tota, que improvisou tentando se
sobrepor a rapidez de Pinto com os conhecimentos temáticos:
368
NUNES, 2009. p. 48.
369
VERAS, 2002. p. 136.
370
Ibidem.
371
Ibidem. p. 133.
372
Termo usado para denominar versos decorados.
142
Fig. 14
Fonte: Pedro Bandeira (à esquerda) e Pinto do Monteiro, em 1946. NUNES, 2009. p. 126.
373
NUNES, 2009. p. 43.
143
Fig. 15
Fonte: Pinto do Monteiro em foto de página inteira In: O Cruzeiro, 25 jun. 1949. Matéria “Poesia,
Feijoada e Viola” assinada por José Leal e fotografias de José Medeiros . Acervo BN. (grifo meu na
legenda “Severino Pinto, o maior”).
Assim como nas capas dos folhetos, a representação dos cantadores de viola
também é modificada ao longo do tempo. Na Figura 14, um registro de 1946, dois anos
antes do I Congresso de Cantadores do Nordeste, percebe-se que os cantadores posaram
para a foto com chapéus típicos de couro usados por vaqueiros no sertão e vestimenta
mais simples. Ao mesmo tempo, foram registrados em uma posição típica usada pelos
folcloristas (vide Figura 2), sentados como peças de museu. Já na Figura 15 vê-se um
poeta que se preocupou em mudar a aparência com a alteração do público alvo.
Também nota-se a forma como o fotografo procurou retratar o repentista de baixo para
cima, ao mesmo tempo que humaniza as expressões faciais do cantador. No próprio
subtítulo da matéria da revista O Cruzeiro pode-se observar sutis traços desta nova fase:
“Os cantadores nordestinos reúnem-se na residência do Prof. Nehemias Gueiros – Tarde
144
festiva para uma assistência de elite”374. Além dos familiares do dito professor, estavam
presentes na ocasião jornalistas famosos, o poeta Augusto Schmidt e Gilberto Freire.
Na cantoria organizada na casa do professor Nehemias Gueiros estavam, além
de Pinto, os Irmãos Batista. Estes caracterizam, não é à toa, a Geração Moderna de
Cantadores, a qual, Ariano Suassuna chamou de Escola em reportagem para o Jornal do
Commercio, em 1946.
O mais velho dos Irmãos Batista, Lourival Batista Patriota (conhecido como
Louro do Pajeú), nasceu em 1915, no povoado de Umburanas, hoje município de
Itapetim-PE, mas que na época fazia parte do território de São José do Egito-PE. Faz
parte de uma família de longa tradição de cantadores, remetendo aos irmãos Nicodeno
Nunes da Costa, Nicandro Nunes da Costa e Ugolino Nunes da Costa, famosos
cantadores do início do século XIX 375. Ainda muito jovem residiu em Recife com seus
pais, onde completou os estudos básicos376.
Assim como, Severino Pinto, em 1930, substitui Antônio Marinho em uma
cantoria, sendo esta uma das suas primeiras cantorias. Em outra passagem por Recife,
em 1932, “o pai o surpreendeu cantando com um cego no Mercado de São José.
Temendo a reação do patriarca, fugiu para João Pessoa e depois para o Rio Grande do
Norte”377, iniciando sua carreira como repentista. O receio do pai talvez esteja no
estigma do cantador ser encarado como pedinte, por isso, Lourival viajou para longe
para começar sua carreira. Casa-se com Maria Honorina das Neves, em 1938, porém, a
mesma falece em menos de dois anos de casamento. Volta a casar em 1948, com a filha
de Antônio Marinho, Helena Neves Marinho, com quem teve nove filhos.
Desde cedo resolveu viver unicamente da arte de improvisar e por isso viajava
bastante participando de quase todos os congressos de cantadores entre 1940 e 1960,
escreveu bastantes folhetos, mas nenhum livro, ao contrário de seu irmão Otacílio. O
maior destaque da vida de Lourival como cantador, foi ser conhecido por seus
trocadilhos na hora de improvisar, fazendo-o ser chamado de “Rei dos Trocadilhos”.
Exemplo bastante conhecido de um dos trocadilhos de Louro ocorreu quando cantava
com o violeiro João Andorinha, no Recife, onde improvisou:
374
O Cruzeiro, 25 jun. 1949. Matéria “Poesia, Feijoada e Viola” assinada por José Leal e Fotos de José
Medeiros. Acervo BN.
375
Já citados no Primeiro Capítulo e pertencentes à Geração Clássica de Cantadores.
376
WILSON, 1986. p. 292. Frequentou o Juvenato D. Vital, no bairro da Boa Vista, onde foi aluno da
professora Beatriz Ferreira de Lima, filha de um famoso cordelista de São José do Egito, José de Lima.
377
Ibidem.
145
378
VERAS, Ivo Mascena. Lourival Batista Patriota. Recife: Ed. do autor, 2004. p. 300.
379
COSTA; PASSOS, 2013, p. 120.
380
Ibidem. p. 67.
381
Referente ao poeta italiano Petrarca (1304-1374), a estrutura é composta de dois quartetos e dois
tercetos.
146
O sucesso que o poeta Dimas fez em 1948 no Teatro Santa Isabel garantiu-o
fama nacional, o que o possibilitou viajar para o sul em várias audições, como já
afirmado acima. Gustavo Barroso (1888-1959)383, o então diretor do Museu Histórico
Nacional, no prefácio de Violas e Repentes384, denomina umas das estrofes
improvisadas por Dimas no I Congresso como estando entre as mais clássicas de todos
os tempos na história da cantoria. Ao ser pedido para improvisar no mote “A saudade é
companheira / De quem não tem companhia”, improvisou Dimas Batista:
Fraqueza da humanidade,
Alguém dirá, mas não é!
Diz a tradição que, até
Jesus chorou, de saudade!
Seu coração de bondade,
Da virgem se despedia!
Chorava, olhando a Maria,
À sombra de uma oliveira!
A saudade é companheira
De quem não tem companhia!385
A estrofe foi posta ao lado de famosos poetas, como Nicandro Nunes, Romano
do Teixeira e Antônio Pereira386 (1911-1983).
O mais novo no trio de irmãos cantadores foi Otacílio Batista Patriota, nascido
em 1923, onde hoje é Itapetim-PE. Trabalhou até os dezessete anos como agricultor
juntamente com a família e em uma Festa de Reis, em São José do Egito-PE, no ano de
1940, cantou pela primeira vez e decidiu tomar o repente como profissão 387. Seus dois
irmãos mais velhos já eram cantadores o que facilitou sua entrada no meio, porém, foi o
382
Ibidem. pp. 72-73.
383
Além de folclorista e membro da Academia Brasileira de Letra, Gustavo Barroso era museólogo,
cronista, romancista e advogado.
384
COUTINHO FILHO, 1972. p. 11.
385
LINHARES; BATISTA, 2013, p. 331.
386
O poeta analfabeto foi considerado um grande lírico das coisas simples, capaz de descrever com
genialidade e encantamento a “saudade”, as “flores”, etc. um de seus versos mais famosos diz: “Quem
quiser plantar saudade,/ Primeiro escalde a semente,/ Depois plante em lugar seco/ Onde bata o sol mais
quente, / Pois se plantar no molhado/ Quando nascer mata gente.”
387
Ibidem. p.17.
147
seu talento na improvisação que o fez ganhar ao longo da vida inúmeros torneios de
cantadores.
Boa parte de sua trajetória foi vivida em Limoeiro do Norte-CE, onde teve seu
contato com Ariano Suassuna, quando este passava férias no local. Em 1946, como
visto, veio junto de seu irmão para cantar no Teatro Santa Isabel pela primeira vez.
Cantou para várias autoridades ao longo da vida, a exemplo dos ex-presidentes: Eurico
Dutra, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Jânio Quadros, Figueiredo e Sarney. Em
1993, cantou para o Papa João Paulo II, quando este visitou Fortaleza.
Sem dúvidas, o que tem suma importância ao longo de sua vida foi a extensa
produção de trabalhos escritos contendo diversificados tipos de repentes. Inúmeros
folhetos foram escritos estando, entre eles: A morte do ex-governador Dixcept Rosado,
Zé Américo em versos, Versos a Câmara Cascudo, A Criança abandonada, O Caçador
de veado, Versão apimentada do Velho João Mandioca, O que é que me falta fazer
mais, O valor que o chifre tem, Peleja de D. Pedro I com Pelé, Peleja de Zé Limeira
com João Mandioca, além de outros. Gravou dez LPs com inúmeros cantadores entre a
década de 1970 e 1980.
No decorrer de sua carreira reuniu em livros seus versos e cantorias, entre eles:
Poemas que o povo pede, Poemas e Canções (1976), Rir até cair de costas (1979),
Poemas escolhidos (1993) e em parceria com Oliveira de Panelas, 1996, escreveu
Poetas do Povo e da Viola388. Uma de suas produções, em companhia de Francisco
Linhares, tornou-se referência para todos os pesquisadores da história da cantoria de
viola, a Antologia Ilustrada dos Cantadores, tendo sua primeira edição em 1976,
fazendo parte de qualquer bibliografia básica sobre a cantoria de viola.
Três de seus poemas ganharam fama nacional ao serem utilizadas como letras de
músicas por artistas ou bandas. O Dólar e o Cruzado, por Pinto do Acordeon389;
Martelo Agalopado, pelo Quinteto Violado, em 1979; e, a de maior sucesso, criada em
cima do mote em martelo “Mulher nova, bonita e carinhosa / Faz o homem gemer sem
sentir dor”390, musicado por Zé Ramalho em 1979 e gravada por Amelinha, em 1982,
que por sua vez foi trilha sonora para o seriado da Rede Globo Lampião e Maria Bonita,
sendo conhecida do público em geral inclusive na atualidade. O poeta usou da temática
388
COSTA; PASSOS, 2013, p. 138.
389
Não confundir com Pinto do Monteiro.
390
Lançou essa poesia em um disco feito juntamente com Clodomiro Paes, em 1973, intitulado Cantador,
verso e viola.
148
para falar de personagens históricos e suas relações com as mulheres. Em cinco estrofes,
cada uma dedicada a um momento da história, Otacílio Batista escreveu:
Esse tipo de verso fez alguns poetas se destacarem por sua genialidade. Por
vezes, em cantoria é dado um mote simples ou que busque uma determinada temática e
que o poeta contorna e faz uma poesia além do tema proposto, como foi o caso do verso
acima. Otacílio se destacou no cenário nacional por seus trabalhos bem elaborados que
remontam a um estudo excessivo do poeta em aprimorar a rima ao máximo. Sinal de seu
reconhecimento no meio artístico foram as inúmeras matérias produzidas em jornais
impressos e televisivos, bem como um documentário intitulado Otacílio Batista: a voz
do Uirapuru391.
O último poeta aqui explanado não nasceu no Polígono da Poesia, mas tem um
papel fundamental no desenvolvimento do repente de viola como profissão. Domingos
Martins da Fonseca392, além de ser um dos vitoriosos no I Congresso de Cantadores do
Nordeste, contribuiu para a criação de uma das primeiras associações de cantadores.
Nascido no povoado de Santa Luzia, pertencente a cidade de Miguel Alves-PI,
em 1913, o poeta teve uma morte prematura, em 1958, devido a complicações derivadas
da diabetes.393 Viveu a maior parte de sua história em Fortaleza-CE, onde teve contato
com os cantadores da região, como Dimas Batista, Rogaciano Leite e Siqueira Amorim,
este último com quem formou dupla por muitos anos, inclusive no congresso
organizado por Rogaciano, em 1947, no Teatro José de Alencar, localizado na capital
cearense. Fonseca é considerado por Joaquim Mendes, organizador da Antologia dos
cantadores e poetas populares do Piauí, como o maior cantador da história do
Estado.394
Com as mudanças ocorridas ao longo dos anos e fortalecimento do
profissionalismo dos repentistas a partir de 1940, houve a necessidade de união do
grupo em forma de uma associação. A primeira que surge foi por iniciativa do poeta
piauiense, em Fortaleza no ano de 1951. A ideia surgiu alguns anos antes, em 1949,
quando Domingos Fonseca lançou, por intermédio de amigos jornalistas, no jornal O
391
Otacílio Batista: a voz do Uirapuru. Direção Geral: Mislene Santos. TV Cidade de João Pessoa. s.d.
Documentário dividido em duas partes e disponível em youtube.com.
392
Conhecido como o “Armazém do Improviso”.
393
O registro é que o poeta tenha morrido pobre e sem recursos de uma doença popularmente chamada de
fremon (não foi encontrado o nome científico da doença). BARRETO, Antônio Carlos. O Dossiê do
Fonseca. Teresina: ed. do autor, 1991. n.p.
394
MENDES, Joaquim Sobrinho. Antologia dos Cantadores e Poetas Populares do Piauí. Teresina: ed.
do autor, 2006. p. 85.
150
395
BARRETO, 1991, p. 56.
396
A Casa do Cantador ainda existe em Fortaleza-CE, na Rua Coelho Fonseca, 195. Em 1986, é
construída outra Casa do Cantador, em Ceilândia-DF. Esta teve mais investimentos do governo, inclusive
o projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer. Hoje é considerada o “Palácio da Poesia e da Literatura de
Cordel no Distrito Federal”.
151
CAPÍTULO 4
ROGACIANO LEITE E O I CONGRESSO DE CANTADORES DO
NORDESTE
397
Cf. LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Civilização
Brasileira, 2006. Ver Parte II, Capítulo II.
398
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. pp.
176-177.
154
poeta sertanejo, anda espalhando, pelas terras brasileiras, o brilho intenso da poesia do
sertão”399, o jornalista Antônio Freire afirmou,
Tinha razão alguém quando disse que “a poesia não morre, enquanto houver
na terra um coração que ame”.
Há indivíduos que têm procurado denegrir, matar, aniquilar a poesia, criando
os tais poemas modernos, que não são modernos, porque são poemas
logogrifos, poemas verdadeiramente charadísticos...
Poemas, que não têm poesia, porque ninguém entende, porque é diferente,
muito difícil, interpretá-los.
Esses indivíduos, felizmente, estão saindo da circulação e a gente vê, com
alegria, um verdadeiro poeta que surge.
É o caso de Rogaciano Leite, um jovem sertanejo, que hoje completa 22 anos
de idade400.
Vê-se que Rogaciano, desde cedo, não se contentou somente com o repente e
seus gêneros procurando se intercalar conhecer e explorar toda e qualquer forma de
poesia, pois, “leu Camões, Castro Alves, Casimiro de Abreu. Releu o Lusíadas, decorou
os versos de Espumas flutuantes e sofreu a dor de Casemiro, recitando sempre os “Meus
399
Jornal do Commercio, 24 set. 1946. Acervo APEJE.
400
Ibidem.
401
Movimento inaugurado em fevereiro de 1922, em São Paulo. A partir dele foi incentivado a liberdade
artística, promovendo novas experimentações, tendência que estava ocorrendo também na Europa. Com a
liberdade artística, criticada pelo jornalista, surgem as novas formas de poesia de versos livres. Cf. TÉO,
Marcelo Robson. O tocador pelo pincel: o sonoro, o visual e a sensorialidade, do Modernismo à Era
Vargas. (Tese de Doutorado em História Social). São Paulo: USP, 2011.
402
Jornal Pequeno, 01 set. 1942. Acervo BN.
156
oito anos”403. O mistério da fala do repórter foi explicado logo em seguida. Por volta da
meia noite, na festa no Clube Náutico Capibaribe, o poeta foi chamado ao centro do
salão para declamar algumas estrofes. Começou com uma sextilha:
O panorama tá lindo
A noite tá muito fria
E assopra a ventania
Nas fôia dos vergetá...404
403
Ibidem.
404
Ibidem.
405
Ibidem.
406
Ibidem.
157
Rogaciano estudou para fazer os versos, ou seja, a sua elaboração foi engajada
em procurar as rimas ideais para manter a ideia constante na estrofe. Para tal, leu e foi
em busca de novas palavras para manter um intenso diálogo entre sua experiência no
repente com a poesia clássica e erudita, adaptando-a e transformando-a em uma peculiar
poesia sertaneja. Ao finalizar seu texto, o jornalista Antônio Freite destacou que,
“deixando São José do Egito, Rogaciano Leite não teve a ambição de cavar o ouro da
terra dadivosa, e, novo garimpeiro do sonho, veio até o litoral brasileiro, espalhando as
pedras preciosas da poesia do sertão”407. Rogaciano sintetiza esse novo cantador de
viola que migra para o litoral, para os teatros, um poeta preocupado em fazer do repente
uma profissão por excelência.
Suas audições no rádio o tornou famoso. O sucesso foi crescente e surgiu um
público cada vez mais presente a prestigiá-lo. Pequenas notas são publicadas no Jornal
Pequeno referidas ao poeta. Em uma delas, “com destino ao alto sertão, via Caruaru,
segue hoje o aplaudido poeta repentista Rogaciano Leite, que já se fez ouvir, com
sucesso, nesta cidade, em vários recitais”408. Rogaciano soube aproveitar de seus amigos
nos jornais para, constantemente, esse tipo de nota e até mesmo telegramas tendo ele
como referência fossem publicadas. No teor de uma dessas mensagens continha:
407
Ibidem.
408
Ibidem.
409
Jornal Pequeno, 18 mar. 1943. Acervo BN.
158
Rogaciano demonstrava com frequência seu amor por Caruaru. Certa vez, em
uma entrevista bastante informal concedida do Jornal Pequeno falou de sua paixão por
morar na cidade citada.
Caruarú é a minha coqueluche. Boa terra. Boa gente. Mestre Pedro, o dono
da emprêsa telefônica, com o coração do tamanho do Brasil. Sensível. Amigo
dos artistas. Dr. José Carlos Florêncio, advogado e dirigindo o nosso Jornal
“Vanguarda” que dá conta de tudo; Dr. Silva Filho, que, além de médico,
também é poeta. A propósito: sabe que em Caruarú se realizou, ha pouco
tempo, um concurso de Quadras?411
Do Rosário ao pé do Monte;
Do Comércio ao Bairro Novo,
O Natal tem sido a fonte
Das alegrias do povo.412
410
Ibidem.
411
Jornal Pequeno, 12 jan. 1944. Título: “Caruarú, poesia, busmuto e agradecimentos...: o poeta
Rogaciano Leite no JORNAL PEQUENO... Radicalmente curado... Trocas e concursos”. Acervo BN.
412
Ibidem.
413
Jornal Pequeno, 24 jan. 1945. Acervo BN.
159
Fig. 16
Fonte: Rogaciano Leite (à esquerda) e João Siqueira de Amorim. In: Jornal Pequeno, 24 jan. 1945.
Acervo BN.
Em 1945, volta a sua cidade natal em Pernambuco e o repórter Ivo Leitão 415 que
no período fazia uma reportagem sobre a cidade de São José do Egito aproveitou para
falar de Rogaciano. Na ocasião, o repórter crivou elogios ao poeta que, ao contrário de
outros jovens que saiam do sertão para se tornarem bacharéis, não esquecia sua terra e
seu amor pela poesia do repente. A visita de Rogaciano a sua cidade também estava
relacionada a um congresso de cantadores416 que iria ocorrer em São José do Egito para
a inauguração do busto do poeta Antônio Marinho.
Entre 1945 e 1950, viajou por várias cidades nordestinas, principalmente por
Recife, onde realizou o I Congresso dos Cantadores do Nordeste, em 1948. Neste
período contribui com matérias especiais para alguns jornais pernambucanos. Um ano
antes do congresso em Pernambuco participou de outro no Ceará, no Teatro José de
Alencar, com poetas locais e de cunho competitivo. É certo que, o sucesso deste o
incentivou a fazer o grande evento na capital pernambucana que obteve maior
repercussão com poetas vindos de todos os estados do Nordeste. Entre 1948 e 1950,
414
Ibidem.
415
Diario de Pernambuco, 21 ago. 1946. Acervo BN.
416
Também apontado por Ariano Suassuna em matéria já citada (Jornal do Commercio, 01 de setembro
de 1946). Nesta ocasião, acredito que o termo “congresso” não se referiu a uma modalidade de
competição, mas sim a um encontro em homenagem ao poeta Antônio Marinho.
160
Rogaciano correu o país com os amigos violeiros, em especial com Cego Aderaldo,
Domingos Fonseca e os Irmãos Batista. Em 1949, bacharelou-se em Letras Clássicas,
pela Faculdade de Filosofia do Ceará. E, neste mesmo ano, com apoio da Comissão
Nacional do Folclore, levou poetas para um congresso no Rio de Janeiro causando
grande euforia, como mostraram os jornais locais. Chegou, inclusive, a levar os
cantadores para apresentação com o Presidente da República Jânio Quadros e o
Governador Ademar de Barros, de São Paulo417.
Entre suas matérias publicadas nos jornais pernambucanos, desta-se uma escrita
para o Diario de Pernambuco intitulada: “Os cantadores são privilégio do Nordeste”.
Nela, o jornalista destaca algumas poesias de produção dos poetas nordestinos,
principalmente de Cego Aderaldo. No entanto, no início de seu texto consta:
417
COSTA In: LEITE, 2009. n.p.
418
Diario de Pernambuco, 20 jun. 1948. Acervo BN.
161
mais a profissão de repórter, publicando para Gazeta de Notícias, Jornal Última Hora e
para Revista da Semana. Seus trabalhos de reportagens com publicações sobre temas
sociais o fizeram ganhar dois Prêmios Esso de Reportagem. Dentre as temáticas estão:
as reportagens sobre a usina Hidrelétrica Boa Esperança no Piauí (“Boa esperança é
sonho transformado em Realidade”); sobre a Amazônia e Roraima (“A Fronteira do Fim
do Mundo”); e a vida dos trabalhadores nos engenhos de açúcar pernambucanos (“No
Mundo Amargo do açúcar”). Grande parte de suas matérias tem relação a temas locais,
como assassinatos, problemas com drogas, pobres nas ruas, etc. sempre mantendo um
foco nas questões sociais. Duas publicações para a Revista da Semana se sobressaem. A
primeira, no qual tinha como título “O trem do folclore”419, onde, destaca-se sua visita
ao Recife. A segunda, sobre a Associação dos Cantadores do Nordeste420; ambas de
1954, ano de maior produção de Rogaciano para essa revista.
A primeira matéria saiu em uma edição especial da Revista da Semana sobre o
centenário do trem de ferro no Brasil. Na ocasião, Rogaciano se propõe a falar sobre o
trem no nordeste, introduziu no texto algumas poesias que envolvem a temática “trem”,
também sobre a relação que a população da cidade de Ipu no Ceará teve com a
inauguração da linha férrea naquela localidade. Destaca-se nesta publicação uma foto de
sua visita ao Mercado de São José onde foi para prestigiar a dupla de emboladores
“Preto Limão e Curiol”. Na imagem, observa-se um Rogaciano diferente, repórter,
destoante com o ambiente e o público do Mercado.
419
Revista da Semana, edição nº 27 de 1954. A data de publicação está ilegível. Acervo BN.
420
Revista da Semana, edição nº 34 de 21 ago. 1954. Acervo BN.
162
Fig. 17
Fonte: Rogaciano observando os emboladores no Mercado de S. José. In: Revista da Semana, edição nº
27 de 1954. Acervo BN.
421
Ibidem.
163
como uma evolução em que, ao mesmo tempo, o cantador “civiliza-se” e continua com
sua poesia característica. Porém, a poesia também mudou, os versos ganharam novas
roupagens, cobertas com um lirismo e um arranjo mais trabalhado, como táticas para
cativar a atenção do público.
Leite voltou a morar no Ceará após seu casamento com Maria José Ramos
Cavalcante, em 1954, com quem teve seis filhos. Na capital cearense passou a trabalhar
para o Banco do Nordeste do Brasil, mas, depois de um período, pediu licença do Banco
para dedicar-se exclusivamente à poesia e aos jornais, suas duas paixões. Começou a
fazer séries de turnês pelo país se apresentando em teatros com suas poesias, fez isso até
o último dia de sua vida, em 1969, vítima de derrame. Um ano antes de sua morte
chegou a passar um período na França e em outros países europeus indo, inclusive na
União Soviética onde, em um monumento na Praça de Moscou, deixou registrado um de
seus poemas, Os Trabalhadores422, que se refere aos trabalhos duros nas fábricas.
Destaco um trecho no qual pode-se observar como o verso de Rogaciano Leite
articulou-se entre o popular e o erudito:
[...]
Trabalhar! Que o Trabalho é sacrifício santo,
Estaleiro de amor que as almas purica!
Onde o pólen fecunda, o pão se multiplica
E em flores se transforma a lágrima do pranto!
422
Cf. CARDOSO, Paulo. Rogaciano Leite: do cordel ao erudito. Recife: [s.n], 2001. Apud LEITE,
2009. n.p.
423
LEITE, 2009. p. 74.
424
Gizburg trabalhou a Circularidade Cultural para elaborar o estudo sobre o processo inquisitório do
moleiro italiano Domenico Scandella, conhecido por Menocchio, que foi condenado por pregar ideias
contrárias pela elite vigente. Tais ideias foram sendo construídas ao passo que o moleiro Menocchio tinha
contato com leituras e as interpretava com seu olhar de camponês inserido em uma realidade cultural
diferente da que se projetava pela elite, no caso, a Igreja. Ideias como que a vida teria sido gerada da
putrefação, do caos, etc. Assim, o historiador nos fala das leituras feitas pelo moleiro: “[...] pelo menos
um livro o inquietara profundamente, levando-o, com suas afirmações inesperadas, a ter pensamentos
novos. Foi o choque entre a página impressa e a cultura oral”. GINZBURG, 2006. p. 89.
164
Todavia, o diálogo cultural em sua poesia o fez ser elogiado por muitos. Entre
outros, assim se referiu ao poeta Rogaciano Leite, Câmara Cascudo,
425
Jornal do Commercio, 16 jul. 1955. Acervo APEJE.
426
CASCUDO, Câmara. Prefácio. In LEITE, Rogaciano. Carne e Alma. 3 ed. Recife: FUNDARPE,
1988. p. 13.
427
COSTA In: LEITE, 2009. n.p.
165
Nunca mais pode se libertar do desejo de andar espalhando por tôda a parte, a
sua poesia, uma poesia que canta a sua terra e a sua gente, mas uma poesia
que não se expressa naquela linguagem comum dos cantadores do sertão. É
428
LEITE, 2009. pp.19-22. (grifo meu).
429
Silvino Lopes, natural de Itambé-PE, foi jornalista, cronista, poeta e teatrólogo. No próximo tópico,
Silvino Lopes terá um destaque, ao passo que este foi responsável pela mais longa reportagem narrando o
dia-a-dia do I Congresso de Cantadores do Nordeste, em 1948.
430
Jornal Pequeno, 29 jul. 1948. Acervo BN.
431
Ibidem.
167
uma poesia que entra nas academias de letras, como aconteceu no Maranhão,
no Pará e no Amazonas. 432
Sou também um poeta conquistado pelo sertão, a minha terra que não a
esqueço, que vive em mim por onde vou. No Santa Isabel, terei a
oportunidade de mostrar ao povo da capital como o sertão é belo e diferente,
uma terra feira do sofrimento do homem e do abandono de si mesma. 434
Esse tipo de postura acompanhou muitos poetas, como Dimas Batistas e outros
que vieram depois dele. Há uma atitude nesses novos poetas da Geração Moderna, que
procurou outros horizontes poéticos, novos desafios, temas e estruturas em suas estrofes
a metrificar. No entanto, mesmo que por vezes partam para o lirismo, sempre estão se
remetendo a poesia popular dos repentistas como sendo o berço que foram criados em
meio às rimas.
Assim como diz nos seus versos, Rogaciano quis mostrar ao mundo “civilizado”
a grandeza da poesia sertaneja. Queria que os grandes públicos vissem nos teatros o que
o cantador conseguia fazer nos improvisos da viola. Em 02 de junho de 1947 fez sua
primeira experiência em um grande palco com apresentação de, aproximadamente, dez
duplas de cantadores no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, durante três dias. Os
vitoriosos, por aclamação do público foram os poetas Cego Aderaldo e Otacílio Batista,
este estreava em congressos.
O próprio Rogaciano Leite deixou o registro do que ocorreu neste. Em uma
matéria escrita um ano depois do Congresso, como se estivesse tentando incentivar o
432
Ibidem.
433
Ibidem.
434
Ibidem.
168
435
Diario de Pernambuco, 08 mai. 1948. Acervo BN.
436
Ibidem.
437
Ibidem.
169
O jornalista poeta mandou que taquigrafassem os repentes, mas nem todos foram
possíveis devido a velocidade que saiam os versos. Algumas estrofes foram expostas na
matéria realizada sobre o evento, as quais destaco algumas a seguir. Já a premiação não
foi escolhida pelos organizadores, os comerciantes locais que se reuniram para “os
valiosos premios [sic]”439. O congresso começou como no formato das antigas pelejas,
os poetas se apresentaram, “mas o povo queria ouvir era o desafio ‘brabo’, os insultos
picantes”440. Entre os versos, destacam-se:
Zé Batista:
Eu na fé sou igual Abraão,
Na prudência sou mais do que Jacó,
Na paciência passei lição a Jó,
Mas na força sou mais do que Sansão
Cantador que cair na minha mão
Se despeça de mãe, padrinho e pai,
De um supapo que eu dou o couro cai,
Desconjunta a cabeça de enchaço,
Oa! Os pés, seca as mãos, queima o espinhaço
Apodrece a cabeça, a língua cai.
Vicente Grangeiro:
Eu hoje lhe dou um pescoção
Que da pancada corre daqui o povo,
Você cai, se levanta e cai de novo,
Quebra os ossos da cara pelo chão;
Fasto o pé e depois solto-lhe a mão
Acabando o róço que você tem;
Quem vier lhe acudir leva também
Tapa, sôco e bofete de punhado;
Não grite, não chore, apanhe calado
Que eu não posso ouvir grito de ninguem. 441
438
Ibidem.
439
Ibidem.
440
Ibidem.
441
Ibidem.
170
os mais letrados do plantel de cantadores no dia. Ao contrário dos poetas que iniciaram,
esses dois se apresentaram em sextilhas.
José Siqueira:
O Ceará é um jardim
Cheio de rosas e cravos,
O berço dos escritores,
A terra dos homens bravos,
Foi ela, primeiramente,
Que libertou seus escravos.
Domingos Martins:
O Piauí é um recanto
De pas e tranquilidade,
O ninho do sentimento,
Do amor e da soledade,
Terra de Da Costa e Silva,
O poeta da Saudade. 442
Otacílio Batista:
A tua boca é tão grande
Que causa admiração,
A gente olhando por ela
Vê até o coração,
E se procurar direito
Avista a China e o Japão.
Cego Aderaldo:
Tu fala da minha boca
Mas num convem fala dela
Que a tua tombem é grande
Que parece uma cancela,
Se tu num tive cuidado
Tu breve cai dentro dela.
Cego Aderaldo:
Danei-me uma certa ocasião,
Fiz o vento perder o seu açoite,
Fiz o sol se pôr á meia noite,
Fiz o dia ficar na escuridão;
Já corri escanchado num trovão,
Um corisco me viu e se escondeu,
Um raio ia descendo e não desceu,
Contei todas estrelas num segundo,
Já botei quatro rodas neste mundo,
442
Ibidem.
171
Otacílio Batista:
Na cabeça uma vez botei um gorro,
Transportei vinte e três canhões de guerra,
Dei um chute na base de uma serra,
Que São Pedro no céu pediu socorro;
Fiz um gato casar-se com uma cachorra,
Transformei uma velha num rapaz,
Virei o lado da frente pra traz,
Fiz um santo no céu viver de jogo,
De uma pedra de gelo fiz um fogo,
E que o diabo me falta fazer mais? 443
443
Ibidem.
444
Ibidem.
445
Ibidem.
172
446
Organizada por Ariano Suassuna, em 1946, como visto no Capítulo 3.
447
BEZERRA; RAFAEL, 1990. P. 13.
448
Interessantemente, Santa Cruz Valadares era da cidade de São José do Egito, a mesma de Rogaciano
Leite até a emancipação de Itapetim, em 1953, com projeto de lei do próprio Santa Cruz Valadares. A
família Valadares teve forte influência política na região do Pajeú, tendo ganhado força quando Inácio
Mariano Valadares (1896-1966), irmão de Santa Cruz, assume a prefeitura de São José do Egito na
década de 1930, com o Estado Novo. O mesmo Santa Cruz Valadares foi o primeiro juiz de direito da
comarca de Itapetim. Não obtive mais dados biográficos do deputado Valadares. Cf. WILSON, Luís.
Roteiro de velhos e grandes sertanejos. Centro de Estudos de História Municipal, 1978.
449
União Democrática Nacional.
450
Conforme explanado no Capítulo 2.
173
Como será visto mais adiante, o congresso assumiu vários nomes nos periódicos:
“Congresso do Recife”, “Congresso do Nordeste”, “Torneio de Cantadores”, etc. Nesse
segundo momento de seu discurso, assim como no exposto anteriormente, o deputado
Valadares insiste na necessidade de manter a cultura (símbolo de uma nordestinidade 453)
viva e, para tal, a necessidade da continuação dos trabalhos dos folcloristas.
Continuando com sua defesa do projeto de lei, o político prosseguiu:
Neste momento, fica evidente que o evento pioneiro tinha tudo para ganhar
grande visibilidade devido ao seu tamanho. Finalizou seu texto com os dizeres:
451
Diário Oficial do Poder Legislativo de Pernambuco, 30 set. 1948. p. 1567. Acervo CEPE.
452
Ibidem.
453
Referente ao que propunha a demanda regionalista da década de 1920, no qual, propôs a criação de
uma identidade ou características que identificariam o que hoje é a região Nordeste, ou parte dela.
454
Ibidem.
174
Vencido. Por mais entusiasmo que tenha pelos nossos “cantadores” forçoso
reconhecer o estado de responsabilidade de nossos hospitais e o desamparo
de nossos agricultores.
Devemos atender as necessidades urgentes.
Quando formos um povo rico cuidaremos de nossos cantadores.457
455
Ibidem.
456
Durante minha pesquisa procurei de algumas formas recolher tais registros, mas como a Prefeitura do
Recife não tem um Arquivo, não houve como resgatar os registros até o momento, se é que sobreviveram.
O fato da não existência mais do órgão abriu-se a possibilidade de terem sido doados para outros órgãos
como a Fundação Joaquim Nabuco ou o Museu da Cidade do Recife, porém, ao contatar tais órgãos, não
obtive resposta positiva. Em compensação, segundo o jornalista Silvino Lopes, para o Jornal Pequeno (06
out. 1948), durante a cobertura do Congresso, observou que a equipe de taquígrafos estava por trás do
palco, porém, não conseguiam recolher os versos devido à velocidade com que os poetas declamavam.
457
Ibidem.
458
Ibidem.
175
poesia interiorana, que agora era caracterizada como sendo símbolo de um Nordeste
provedor de belas e inteligentes rimas.
Pouco se conhece especificamente sobre o público presente durante os três dias
de evento (5, 6 e 7 de Outubro, de 1948). Sabe-se, através das notícias dos jornais
locais, que o sucesso fora tamanho, que houve pessoas que ficaram em pé por falta de
espaço. Mas quem era esse público? A elite ou populares acostumados a assistir os
cantadores nos mercados, praças e festas religiosas? Os cantadores em muito ganharam
a atenção do público da elite econômica da capital pernambucana, muito pela influência
que os intelectuais transmitiram, principalmente, os que estudavam o folclore. Assim
Silvino Lopes, escrevendo pelo Jornal Pequeno, dissertou sobre o início do Congresso,
no subtítulo “Ainda era cedo”:
Em relação a afirmação feita pelo jornalista “tudo o que o Recife tem de fino e
elegante” pode-se inferir que foi alusiva a parte do público que lá esteve presente,
integrantes da alta sociedade. Tal fato demonstra uma circularidade cultural atuante
entre costumes populares se apresentando no palco e a elite citadina na plateia.
Encontrava-se no local, também, uma grande quantidade de espectadores populares
acostumados com a cantoria de viola nas feiras, no interior, festas populares, etc., pois,
houve uma grande assistência do público através do oferecimento de motes aos
cantadores.
462
Jornal Pequeno, 06 de Outubro de 1948. Acervo BN. Balduína de Oliveira Sayão, conhecida como
Bidu Sayão, foi uma famosa brasileira e intérprete da música clássica e cantora de ópera.
177
Em sua matéria sobre o fim do evento, Silvino Lopes voltou a falar sobre o
público que lá esteve presente. Na ocasião, o jornalista apontou que no último dia
haviam menos pessoas que no início das apresentações. Entre os presentes, estavam
personalidades importantes da sociedade recifense, como o famoso poeta Bebé
Seixas463. Sobre este, o jornalista afirmou: “O poeta que tão bem tem interpretado
Proust, que vive à Baudelaire, não se continha aplaudindo os Irmãos Batista e o
imaginoso Fonseca, [...]”464. Estavam também “magistrados, professores, jornalista,
comerciantes prósperos e amarfanhados”465.
De uma forma geral, nota-se que não somente as camadas populares
acostumadas com os cantadores nas feiras estavam presentes, mas também uma parcela
da elite econômica, política e intelectual da cidade do Recife. O único registro
fotográfico que foi encontrado acerca do público que prestigiou o evento do Teatro
Santa Isabel Registro integrou a matéria de capa do jornal O Globo, em 18 de outubro
de 1948.
463
Tomás Seixas (1916-1993). Segundo matéria do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Estado de
Pernambuco, o poeta era “dedicado a fazer de sua vida a vida de um dândi na esteira de Baudelaire e
Rimbaud, que representavam algumas de suas paixões literárias fundamentais, ao lado de Rilke, Kafka,
Joyce, entre outros”. Produziu algumas obras, que acabaram por ficar esquecidas até mesmo em manuais
como a antologia Pernambuco: terra da poesia, organizada por Antônio Campos. Disponível em: <
http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/93-especial/895-tomas-
seixas-a-fusao-entre-critica-e-criacao.html >. Acesso em 06 jan. 2017.
464
Jornal Pequeno, 8 out. 1948. Acervo BN. O título principal da matéria “Murilo Mendes perdeu o
melhor: O Congresso dos Cantadores foi encerrado ontem”.
465
Ibidem.
178
Fig. 18
Fonte: Registro do público presente no Congresso de Cantadores, em 1948, no Teatro Santa Isabel In: O
Globo, 18 out. 1948. Acervo de O Globo.
Como observado na imagem, o teatro ficou lotado até mesmo nos camarotes e
com pessoas em pé nas entradas. Ainda segundo O Globo:
Os cantadores recebiam da assistencia infindaveis aplausos, como se fossem
senhores de toda aquela reunião. Nada de acanhamento. Parecia-nos que o
teatro nada significava para eles mais que uma casa de fazenda no sertão.466
O palco do teatro a partir daí passou a significar uma representação das cantorias
de outrora nas fazendas do interior, houve toda uma apropriação do que seria o
espetáculo no sertão. Agora com uma nova roupagem, tanto na maneira como se
apresentam, como na forma de lidar com o público, que também mudou na região
litorânea, nas capitais. A quantidade de poetas se apresentando em forma de
campeonato também cresce, comparado com uma cantoria normal vista pelo interior do
estado naquele tempo. Mais a frente será visto como foi (em parte) o dia-a-dia do
evento, bem como algumas temáticas e gêneros improvisadas no cenário do Santa
Isabel.
Quatorze poetas se apresentaram durante as três noites do evento, alguns dos
quais ganhariam fama e entraram para o rol da fama dentre os melhores poetas
repentistas de todos os tempos. Estavam presentes no Congresso: Severino Pinto (Pinto
466
O Globo, 18 out. 1948. Acervo de O Globo.
179
467
Residia no Ceará na ocasião do evento, acredito que fora o representante deste estado no evento.
468
Não encontrei referências sobre o poeta Bola do Norte.
469
Também grafado “Milanês”.
470
Como, por exemplo, registrado pelo jornal A Noite do Rio de Janeiro em telegrama do dia 01 de
outubro, daquele ano. A edição do jornal, no qual afirmou: “reina grande entusiasmo pelo certame, que é
o primeiro que se realiza com caráter interestadual”.
471
Folha da Manhã, 28 set. 1948. Título da matéria: “Chegarão, hoje, ao Recife Os Cantadores e
Violeiros Cearenses”. Acervo CNFCP.
472
Na matéria, Rogaciano Leite afirma que Cego Aderaldo iria chegar no dia 05 de outubro, dia de
abertura do evento.
180
Rogaciano Leite, esse homem que já nasceu poeta em São José do Egito,
depois de realizar com êxito em Fortaleza um Congresso de Cantadores, veio
para o Recife e aqui está realizando um outro. Para tanto, mobilizou violeiros
de quasi todo o nordeste e levou-os ao palco do Santa Isabel, num desfile
inédito e original para os olhos virgens dos citadinos; de nós outros que só
estamos acostumados à poesia academica ou modernista, ambas guiadas
pela instrução e pela cultura, com que os vates da beira do atlântico
exteriorizam seu mundo íntimo.
Razão porque o ineditismo do Congresso tem levado multidões ao velho
teatro, cujas tabuas dos corredores, meio soltas e talvez apodrecidas, gemem
sob os pés dos espectadores, fazendo côro ao gemido dos poetas matutos,
acompanhados por suas violas afinadas e tambem chorosas.
Nesses espetáculos promovidos pelo poeta Rogaciano Leite temos visto o
que é a musa do sertanejo, de homens incultos, que não frequentou
escolas e que não assina o nome; porém que sabe fazer versos como
ninguem, pela expontaneidade e riqueza de pensamento, numa mobilidade
espantosa. [...].
Creio que nunca tivemos no Recife espetáculos iguais a esses promovidos
pelo vate de São José do Egito, trazendo para a capital a alma sertaneja,
pujante e bela, na voz e na agilidade mental de nossos cantadores humildes,
mas gigantescos no astro vigoroso e no repente inigualável. [...]. 474
473
Ibidem.
474
Diario de Pernambuco, 08 out. 1948. Acervo BN. (grifo meu).
181
475
Partindo das obras de Carlo Ginzburg, no qual, este trabalha a partir de um influxo constante e
horizontal de influências entre as camadas sociais de um povo. Debate apresentado na Introdução.
476
Conforme OLIVEIRA JÚNIOR, 2016, o campo literário recifense para poesias de gabinete é bastante
no final do século XIX o que desencadeou a formação da Academia Pernambucana de Letras, em 1901,
sendo uma das primeiras do Brasil. Agora nota-se que, com o congresso, também é da cantoria de viola.
182
Mesmo que a reportagem tenha sido feita oito anos após o evento que está sendo
aqui descrita, pode-se ter uma noção da influência que as migrações tiveram na
mudança da dinâmica da cantoria, demonstrando uma representação cultural de fato
ocorrida. As articulações das práticas culturais da cidade grande/litorânea teve com o
elemento chamado “virgem” da cultura popular, o cantador, vindo dos sertões.
Decerto, muitos poetas chegaram antes do Congresso e participaram de
festividades ou apresentações para a elite pernambucana, e, até mesmo permaneceram
algum tempo após o evento478. Os primeiros cantadores a chegar ao solo recifense antes
do esperado encontro de pronto foram convidados a participar de alguns eventos, como
a visita da Duquesa de La Rochefoucauld479. Na ocasião, os poetas trajados de paletó
(imagem a seguir) posaram para o Diario de Pernambuco, que colocou como legenda
na foto:
477
Diário da Noite, 10 jan. 1956. Acervo CNFCP.
478
Segundo matéria de O Globo (18 out. 1948) alguns poetas permaneceram após o evento fazendo
audições particulares até receber a verba prometida pelo estado.
479
Edmée de Fels (1895-1991). Famosa nobre francesa, a qual foi largamente divulgada sua visita pelo
Diario de Pernambuco.
183
Fig. 19
Fonte: Da direita para esquerda: João Francisco de Oliveira, Agostinho Lopes, Severino Pinto (Pinto do
Monteiro) e Otacílio Batista. In: Diario de Pernambuco, 13 ago. 1948. Acervo BN.
480
Diario de Pernambuco, 13 ago. 1948. Acervo BN. Assis Chateubriand (1892-1968), foi jornalista,
empresário, advogado e membro da Academia Brasileira de Letras. A partir da década de 1920 construiu
um verdadeiro império das comunicações, tornando-se dono do Diários Associados, no qual o Diario de
Pernambuco fazia parte.
184
Fig. 20 481
Fonte: Rogaciano apresentando a maioria dos repentistas que participaram da competição. In: O Globo,
18 out. 1948. Acervo de O Globo (grifo meu).
Nesta imagem, vê-se Rogaciano Leite (à esquerda na Figura 20) de paletó preto
apresentando os repentistas que, em contrapartida, estavam à maioria de terno branco,
posicionando as violas encostadas à frente como forma de exibi-las, causando uma
imagem impactante para o público presente. Esse tipo de padronização pode demonstrar
uma contextualização de uniformidade do grupo, levando a acreditar que são
diferenciados de outros repentistas, ou que fazem parte de grupo de profissionais. Em
frente a eles, duas cadeiras, nas quais, cada dupla se apresentaria ao “pé-da-parede” do
teatro. O momento da chegada dos poetas ao Congresso foi descrito da seguinte forma
pelo jornalista Silvino Lopes:
481
Imagem editada. Foi dado um destaque no contorno de Rogaciano Leite, pois, o paletó preto se
confundia com o fundo do palco.
482
Jornal Pequeno, 06 Out. 1948. Acervo BN.
185
[...] Quem aprendeu a cantar para viver, sertanejo e quase menino, possuindo
dom poético, que é um privilégio raro, e o gosto pelo canto popular, cujo
cultivo imortaliza. [...] Esse cantador foi Rogaciano Leite, com sua visão
realista, perspicaz e habilidoso, levando a bom termo o aplaudido certame,
coroando de êxito uma iniciativa prejulgada de temerária pelos descrentes e
desavisados.485
483
Idem.
484
Por se encaixarem nos moldes das Academias de Letras, tanto a Brasileira quanto a Pernambucana. Cf.
OLIVEIRA JÚNIOR, 2016, pp. 44-48.
485
COUTINHO FILHO, 1972. p. 112.
186
486
Ibidem.
487
Jornal Pequeno, 06 out. 1948. Acervo BN.
187
quais, o jornalista escreveu que Dimas Batista produz uma poesia (mesmo que dita
popular) com o enriquecimento esperado na poesia erudita sendo enfático em sua
afirmação: “Dimas é um erudito”. Nos poucos versos declamados no Congresso e que
foram registrados, encontram-se rimas feitas pelos Irmãos Batista, Severino Pinto e
Domingos Fonseca. Em uma dessas anotações estão as palavras ditas pelo violeiro
Dimas, que ao ser pedido para glosar o mote “A saudade é companheira/De quem não
tem companhia!”, improvisou:
Fraqueza da humanidade,
Alguém dirá, mas não é!
Diz a tradição que, até
Jesus chorou, de saudade!
Seu coração de bondade,
Da virgem se despidia!
Chorava, olhando a Maria,
À sombra duma oliveira!
A saudade é companheira
De quem não tem companhia!488
488
COUTINHO FILHO, 1972. pp. 42-43.
188
Fig. 21
Vêm, depois, Lourival Batista, outro de São José do Egito, e Francisco Pinto
[sic], da Parahyba. Este é um velho cantador que só não contou vitória nas
mãos do dentista Valadares, que lhe arrancou todos os dentes.
Essa falta de dentes dá motivo a motejos do seu contendor. Mas, o poeta
Pinto explica não lhe ser possível como “pinto”, usar dentadura.
Lourival Batista é assombroso no “repente” e não esconde ritmo. Tem a sua
frente um veterano que já se bateu com os maiores. Mas, Lourival está
eufórico. Derrama-se num lirismo que é de deixar tontos os líricos da cidade
que quebram a cabeça para de lá arrancar quatorze versos. Assim, chegam á
realidade do soneto que ainda sofre retoques para poder ser mastigado por
uma litotipo ou ir para o Salão de Poesia.
Mas, Lourival e Pinto tem minutos improvisando décimas. Não falha uma
rima, não aparece um verso quebrado. Vem da plateia um mote. “O amor é
ave que canta na gaiola da saudade”.
Desses dois versos arrancam Lourival e Pinto coisas que enternecem os
ouvintes.
Um pobre de espírito assoviou das “torrinhas”. Lourival glosa o assovio num
esplendida lição de bom comportamento ao maleducado. Aí é que se viu a
189
força do repentista. Depois, foi o fotografo Arlindo que, de tanto bater chapas
de Cuquita, aprendeu posições dificílimas quando trabalha. 489
489
Jornal Pequeno, 06 out. 1948. Acervo BN.
490
Esse tipo de postura é comum entre os que escrevem sobre o repente de viola. Muitos escritores não se
preocupam com o local e quando foi declamada determinada poesia, se retendo a afirmar, por exemplo,
“Lourival cantando com Severino Pinto, declamaram...”.
491
Correio da Manhã, Almanaque de 1949, XI ano, p. 205. Arquivo BN. O artigo intitulado “O que é
nosso” faz alusão ao discurso do movimento folclórico, no qual, projeta o popular para uma referência
mais globalizante, como que pertencente a cultura da nação. Por outro lado, segundo a matéria, o título
faz uma aproximação da ideia de Rogaciano Leite em organizar um Torneio com o que o Correio da
Manhã havia organizado décadas antes com um torneio de música popular regional.
190
Nesse momento, o fotógrafo se agacha para tentar tirar uma fotografia dos
poetas. Então, o poeta aproveita para direcionar seu verso para o fato, finalizando sua
sextilha assim:
Lourival Batista:
Pinto, na vida dos versos.
O cantor vive oprimido!
O riso parece pranto,
O canto é como um gemido!
Padece mais que viúva...
Ai! Ai! Hum! Hum!
Com saudade do marido!
Severino Pinto:
492
Ibidem. Mantive o verso da última linha como no publicado, mesmo estando fora da métrica (tem mais
de sete sílabas poéticas).
493
Quando se rima o primeiro verso com o último que seu companheiro acaba de improvisar.
494
Ibidem.
495
Ibidem.
191
A terceira dupla do dia, Dimas Batista e Domingos Fonseca, foi a que mais
ganhou registros. Além disso, foi a vencedora do torneio por aclamação do público. O
jornalista Silvino Lopes assim descreveu a apresentação dos poetas:
Note que Dimas já havia cantado antes com seu irmão Otacílio na abertura do
evento. Esse tipo de prática não é comum nos congressos, principalmente a partir da
década de 1960, onde, os eventos tornam-se cada vez mais estruturados com
regimentos, banca julgadora, etc. Já em eventos informais, como apresentação em bares,
fazendas, etc., é mais comum ocorrer tal fato. A apresentação dessa dupla ganhou
algumas páginas do folclorista Coutinho Filho que registrou algumas improvisações na
sessão do seu livro que trata dos gêneros do repente de viola. Os versos a seguir
demonstram a liberdade dos poetas nos exageros e conhecimento da História como
forma de atrair o público e atestar conhecimento durante a improvisação. Assim foi
anotado em Martelo Agalopado:
Domingos Fonseca:
Recordo Castro Alves na versagem,
Tiradentes na sua história pública,
Lembro Deodoro na República,
E vivo Miguel Ângelo na imagem;
Imitando Oliveiros na coragem,
Ou um ferrebrás de Alexandria,
Comparando-me a Nero em soberba,
E na ciência a Tales de Mileto,
Sou Augusto dos Anjos no soneto,
Luiz Vaz de Camões na poesia!
496
COUTINHO FILHO, 1972. pp. 25-26.
497
Jornal Pequeno, 06 out. 1948. Acervo BN.
192
Dimas Batista:
Assisti a tragédia do dilúvio,
Contemplei o incêndio de Sodoma,
Fui ministro dos Césares, em Roma,
Penetrei nas crateras do Vesúvio;
Comovido senti o doce eflúvio
Dos sermões de Jesus da Galiléia,
Escavei as ruínas de Pompéia,
Sondei rodas as grutas netuninas,
Tomei parte nas lutas herculinas,
Fui criado com o leite de Amaltéia!498
Dimas Batista:
Com Apolo estudei a poesia,
Com Minerva aprendi toda a arte fina,
Esculápio ofereceu-me a Medicina,
Com Urano estudei a Astronomia;
Euterpe me entregou toda harmonia,
Pesquisei com Netuno e Oceano,
Fui amante de Vênus mais de um ano,
Percorri com Cibele toda a Terra
Com deus Marte tomei lições de guerra,
Já fui mestre nas tendas de Vulcano.
Domingos Fonseca:
Estudei o espaço com Urano,
Com Vesta, castidade e inocência.
Consegui de Mercúrio a eloquência,
Estudei com Netuno o Oceano,
Aprendi mecanismo com Vulcano,
Consegui de Orfeu a melodia
Arranjei de Cupido a simpatia
Com Minerva estudei Ciência e Arte,
Fui colega de aula do deus Marte,
E aprendi com Apolo a Poesia.500
498
COUTINHO FILHO, 1972. p. 45.
499
Como visto no Capítulo 2 ao ser citado entrevista com Athayde, esse tipo de faceta em estudar
manuais tornou-se comum no aprimoramento temático dos violeiros.
500
O Globo, 18 out. 1948. Acervo digital de O Globo.
193
501
COUTINHO FILHO, 1972. p. 46.
502
Ibidem.
194
O Congresso durou por três dias. No entanto, apenas pude captar alguns aspectos
do primeiro dia com maior detalhe, principalmente pelas palavras do jornalista Silvino
Lopes. O mesmo jornalista, em matéria para o Jornal Pequeno do dia dez de outubro
daquele ano, descreveu como foi o último dia de apresentações e suas impressões sobre
o fim do evento. Silvino, sempre muito exaltado em seu texto quando o assunto é
cultura popular do repente de viola, começou o texto:
503
Correio da Manhã, Almanaque de 1949, XI ano, p. 205. Arquivo BN. Como observado em outras
reportagens as poesias perdem a métrica. Nesta não é diferente, porém, quase imperceptível na última
linha, no qual passa das sete sílabas obrigatórias. Muito se deu pela rapidez dos versos e a
despreocupação dos repórteres em registrar com a métrica, por exemplo, no jornal O Globo (18 out.
1948), este mesmo verso foi registrado, “Perdeu a pétala e o cheiro”. Acredito que a forma improvisada
pelo poeta tenha sito “Perdeu pétala e cheiro”.
195
Grangeiro. Ao fim do evento houve a disputa pelo prêmio de três mil cruzeiros dados
aos vencedores. “Como foi o julgamento? Pela expontanea manifestação do povo que
aplaudiu os dois poetas, durante mais de dez minutos”504. E os mais aplaudidos e,
portanto, vitoriosos foram os poetas Dimas Batista e Domingos Fonseca que, “quando
pisam no palco recebe uma consagração da plateia. São os maiores” 505. O jornalista
rasgou elogios aos vencedores e levantou o que poderia ser uma polêmica para época
quando afirmou:
Pessoas que nunca viram o sertão, que nem pretendem ver a lua surgir,
vermelha e enorme, por detraz [sic] da serra, com receio das onças que são
muito mais ternas do que uma enormidade de criaturas humanas, essas
pessoas tinham ouvido falar em cantadores, porém, não poderiam nunca ter
uma idéia da faculdade imaginativa dessa gente que lhe parecia muito mais
rústica. E, assim, sempre duvidaram que ao som da viola, o mais precário dos
instrumentos, pudesse um homem improvisar coisas que pudessem ser
ouvidas. Mesmo que vários escritores já se houvessem ocupado de
cantadores, e que a Parahyba já houvesse festejado o centenário de um deles
– o Inácio da Catingueira, e Pernambuco imortalizasse no bronze o Antônio
Marinho, muita gente considerava insipida uma “cantoria”, como êles
chamam as suas declamações. 507
504
Jornal Pequeno, 08 out. 1948. Acervo BN.
505
Ibidem.
506
Ibidem.
507
Ibidem.
196
Os cantadores há muito já eram conhecidos nos jornais onde, pelo menos desde
a década de 1930, ganharam cada vez mais as páginas dos periódicos. Os folhetos
vendidos nos mercados públicos tinham as famosas pelejas que tornaram o mundo da
cantoria mais familiarizado entre a população da capital pernambucana. Mas são os
congressos que materializam esses personagens e os fazem ganhar nomes e presença
constante nos periódicos. Em outro trecho da sua reportagem, subtitulado “lição de
poesia”, Silvino Lopes, escreveu:
Mas o Congresso de Cantadores, cá para nós, veio ensinar muita gente como
aprender a amar á poesia. Se os portadores de falsa erudição não mais
impressionam, se calejaram os dedos na contagem dos alexandrinos,
cantando amores que nunca tiveram e auroras que nunca viram; falando da
Grécia, quando nem conhecem o interior de seu Estado [...].508
508
Ibidem.
509
COUTINHO FILHO, 1972. p. 114.
197
510
Durval Muniz aponta, conforme visto na Introdução, que os folclorista ao propor o popular como
elemento dignificar estava por certo trazendo um aliado para si, ou seja, “Parece ser neste contexto que as
elites agrárias ou seus descendentes citadinos vão descobrir no camponês ou no artesão, seus semelhantes,
seus aliados na defesa de um modo de vida, de uma cultura, de uma forma de organização social, onde
prevaleciam a cidade, a indústria e o comércio”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a. p. 43.
511
Assim como Silvino Lopes, Melchiades Montenegro comumente fazia colunas no qual expunha seu
pensamento sobre os mais variados temas, principalmente culturais e populares. Não consegui obter
dados biográficos do jornalista.
512
Jornal Pequeno, 12 out. 1948. Acervo BN. Matéria intitulada “Imbú e Sapotí”
513
Ibidem.
514
Ibidem.
515
Tal evento ocorreu no dia 22 de setembro de 1948, no Gabinete Português de Leitura. Um encontro de
poetas e seu público, onde, puderam declamar e discutir as poesias dos poetas eruditos. Também foram
198
ocasião, o jornalista também observou algumas críticas a outro evento, que ocorreu um
mês antes do Congresso. Em seguida dissertou:
Muita gente acha que nas cidades não há poetas, que o verso não deve ser
escrito, mas cantado; não ser lapidado, como o diamante exposto na vitrine
da joalheria, mas oferecido no estado primitivo em que saiu do seio da terra
para as mãos calosas do garimpeiro. Nada mais injusto e mais errado. O que
admiramos e aplaudimos no versejador de improviso não é a perfeição, a
sublimidade da arte poética, mas a qualidade de poeta que nele desponta
como o raio de luz ferindo a obscuridade de sua vida e fluminando as
profundezas da sua inspiração. O Congresso de Cantadores não nos ofereceu
nenhuma obra prima. Nem veio velar o que seja a poesia. Há muita gente boa
por ai dizendo: “os cantadores sim, são os poetas de verdade, os outros fazem
versos torturados, cheirando a longas e penosas vigílias de gabinete”. 516
previamente enviados poemas por cartas para que houvesse uma competição do melhor. O evento ainda
teve como um dos órgãos apoiadores a Academia Pernambucana de Letras.
516
Jornal Pequeno, 12 out. 1948. Matéria intitulada “Imbú e Sapotí”. Acervo BN.
199
517
DAMASCENO, 2012. p. 221.
200
CONSIDERAÇÕES FINAIS
suas tradições aqui chamadas de clássicas. Neste período, é perceptível observar através
das fontes que os versos eram basicamente em quadras até que as sextilhas entram como
modalidade para o jogo da rima já em fins do século XIX. Neste intervalo nota-se
também o desenvolvimento dos instrumentos marginalizados que entram em território
brasileiro com a colonização. Com isso, vê-se a adoção definitiva da viola em
detrimento da rabeca e pandeiro diferenciando, tendo então, a formação da tradição da
cantoria de viola ou cantoria de pé-de-parede.
Neste momento, percebe-se que os cantadores perambulavam pelas vilas e
pequenas cidades do sertão essencialmente a procura de parceiros locais ou de outro
repentista que viria também em itinerância pela região. O trabalho focou em analisar a
região chamada de “Polígono da Poesia” por dois motivos: primeiro, é dada a região os
registros mais antigos da prática da cantoria, bem como surgiram de lá os famosos
poetas que começam a circular em meados do século XIX; em segundo, a região
também se torna importante, pois, saem desta localidade importantes violeiros da
chamada Geração Moderna. Neste momento houve a preocupação de não estabelecer
um mito (ou reproduzir o discurso) da origem, mas sim, além de tudo, construir a
geografia do fenômeno no sertão de Pernambuco e regiões circunvizinhas.
A partir de 1870 começam a aparecer personagens que povoariam o imaginário
dos amantes da poesia improvisada, tais como: Inácio da Catingueira, Germano da Mãe
D’água e Silvino Pirauá. Aos dois primeiros é dado o registro mais antigo de uma
peleja, já o último ficou famoso por anexar novos gêneros, como a sextilha, ao
espetáculo. A partir da década de 1920, a cantoria sofreu uma nova mudança na sua
dinâmica. Os estudos folclóricos em concomitância à política, pretendida com a
emergência regionalista, visaram “trazer” o cantador para a elite letrada da capital sob a
égide de símbolo de um Nordeste que surgia rico em produção de versos inteligentes e
grandiosos em sua imponência; uma alusão, também, a região que tinha com este
elemento cultural uma prova da multifacetação de seu povo.
No entanto, no que se refere ao trato com os folcloristas, pude observar certa
dualidade. À medida que o repente de viola passou a ser encarado como símbolo da
identidade nordestina, o sujeito cantador, até certo ponto, não seguiu esse fluxo. Há um
distanciamento do sujeito repentista do sujeito folclorista e isso é refletido ao passo que
estes, por exemplo, caracterizam o repentista com estigmas, tais como: alcoolizados,
incultos e brigões. Mesmo que os folcloristas considerassem o termo “inculto” como
202
significando “falta de leitura” não estaria correto, pois, como mostrado ao longo do
Capitulo 2, o repentista sentiu-se estimulado a ler cada vez mais para dinamizar seu
imaginário de temas ou, como afirmou Athayde, “para ser lido de com força”.
Ao passo que a representação do repentista pelos folcloristas ganhava a atenção
por parte da elite, o cantador seguia o fluxo migratório crescente para o litoral. O
violeiro travava desafios constantes com o estigma de mendigo e o estranhamento por
parte da população na labuta diária para sobreviver na pobreza. Com isso, passam a ser
itinerantes pelas ruas, praças, festas populares e mercados da capital. Os mercados
ganham destaque, pois, foi em reportagens se referindo a estes espaços públicos que
mais encontrei o cantador sendo citado em periódicos da década de 1930.
Os mercados tornam-se particularmente importantes, também, por serem nos
tabuleiros dos cordelistas que se vê um jogo de mudança nas representações dos
cantadores, em destaque nas gravuras das capas dos folhetos. Aqui focados nos folhetos,
há uma mudança nas ilustrações que demonstra a arte do repente adquirindo novas
práticas entre as feiras e o teatro, entre o rural e o urbano.
Ao trabalhar a chegada dos cantadores aos teatros de início foi preciso focar em
dois pontos: a importância da figura de Ariano Suassuna ao promover uma cantoria
“oficial” no Teatro Santa Isabel, em Recife, e ao elemento cultural do qual tanto se
apropriou na construção de seus escritos literários e na promoção do Movimento
Armorial. A figura de Ariano é igualmente importante nos registros deixados por ele
acerca de sua relação com a cantoria de viola que vinha desde a infância com seu pai
(João Suassuna) levando cantadores a se apresentar na sede do governo paraibano, bem
como demonstrando a relação de seu pai com o folclorista Leonardo Mota, quando este
estava em viagem colhendo registros para os seus escritos.
Em fins dos anos 1930 e início dos anos 1940 surgiu uma gama de repentistas
que iniciariam a cantoria nas formas profissionais, como se tem hoje. Identifico, então,
as principais características destes que integraram este momento como sendo a
introdução nos meios de comunicação, em especial o rádio e o jornal impresso, além de
outras características como: poetas de modo geral letrados; repúdio ao verso decorado;
surgimento dos grandes torneios, os congressos. A repulsa a versos decorados é
evidente na própria Lei nº 12.198, de janeiro de 2010, que estabelece o repentista como
profissão ao afirmar no artigo 2º: “Repentista é o profissional que utiliza o improviso
rimado como meio de expressão artística cantada, falada ou escrita, compondo de
203
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Poetas do Repente. Direção Geral: Hilton Lacerda. MEC; TV Escola; FUNDAJ;
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