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Ease) STOR Cea CCG Sond eo 18 edicao iP be A indisciplina e 0 processo educativo: uma analise na perspectiva vygotskiana Teresa Cristina R. Rego* ‘A questao da indisciplina nas salas de aula é um dos temas que atual- ‘mente mais mobilizam professores, técnicos e pais (e, em alguns casos, ‘até 0s alunos) de diversas escolas brasileiras (publicas e particulares, de ‘educacdo infantil, de 12 ou de 2° graus) inseridas em contextos dis tos. Entretanto, apesar de ser objeto de crescente preocupasdo, no meio educacional este assunto é, de um modo geral, superficialmente deba- tido, Além da falta de clareza e consenso a respeito do significado do termo indisciplina ou disciplina, a maior parte das andlises parece ex- pressar as marcas de um discurso fortemente impregnado pelos dogmas © mitos do senso comum (nem sempre de bom senso). Isto se agrava ‘na medida em que os estudos e pesquisas sobre a indisciptina (natureza, caracteristicas, identificagao de possiveis causas, o papel da escola e da familia na produedo da indisciplina, a questao da indisciplina na socie- dade contemporanea etc.) além de parciais, ainda so relativamente escassos Neste artigo! procuraremos fazer uma teflexdo, ainda que breve, sobre o assunto inspirados nas teses elaboradas pelo psicdlogo russo Lev ‘Semenovich Vygotsky, autor interessado em compreender a génese do psiquismo humano em seu contexto histérico-cultural. Sem pretender presentar uma sintese que faga justiga & complexidade e & abrangéncia da obra vygotskiana, nos limitaremos aqueles aspectos que tém especial relevancia para a andlise do tema em pauta. importante ressaltar que ndo é possivel encontrar em sua obra referencias explicitas & questdo da indisciplina. Todavia, o fato de atri- 7 Pedayopa, mestre e doutoranda pela Faculdade de Fducagdo da usr. Autora de vynotsty une perspective hstric-cultural da educayo (Vores 1988). Atuou como pro- Feaetnrcoordenadors« dirtora pedagdaica em escolas de educegio infantil, de primsiro segundo graus, Atualmente € profesora da UNES? aa gradccemos 2 Profa, Dra. Marta Kohl de Otivera pea valiosa letora critica dos originals deste texto. 3 buir em suas teses um lugar central a nosdo de construgo social do su- jeito permite que facamos algumas relacdes com o plano educacional. Mais do que responder as intimeras questdes relacionadas a este com- plexo tema, os postulados vygotskianos instigam algumas inquietacdes, nos levam a formular melhor nossas perguntas, a ampliar nosso olhar sobre o problema, bem como a questionar falsas certezas, jé que contri- bbuem para a compreensao das caracteristicas psicolégicas e sociocultu- rais do aluno e de como se dao as relagdes entre aprendizado, desenvol- vimento, ensino ¢ educagao. ‘Antes de nos determos nas contribuigdes da abordagem vygotskia- 1na para a anélise da indisciplina, gostariamos de observar alguns aspec- tos preliminares que consideramos importantes na discussio do proble- ‘ma em foco. O primeiro diz respeito as intimeras configuragées e enfo- ques que a nogdo de indisciplina pode assumir ou suscitar. O segundo se refere & tentativa de analisar os pressupostos subjacentes as idéias ¢ ‘explicagdes sobre o fen6meno da indisciplina geralmente presentes no meio educacional. Affinal, o que entendemos por indisciplina e quais sio as suas causas? Conforme jé mencionamos, as idéias acerca da indisciplina esto onge de serem consensuais. Isto se deve ndo somente @ complexidade do assunto e & marcante auséncia de pesquisas que contribuam no refi- namento do estudo deste problema, mas também & multiplicidade de in- terpretades que o tema encerra. O préprio conceito de indisciplina, co- mo toda criagdo cultural, nao ¢ estatico, uniforme, nem tampouco uni- versal. Ele se relaciona com 0 conjunto de valores e expectativas que variam ao longo da histéria, entre as diferentes culturas e numa mesma sociedade: nas diversas classes sociais, nas diferentes instituigées e até ‘mesmo dentro de uma mesma camada social ou organismo. Também no plano individual a palavra indisciplina pode ter diferentes sentidos que dependerio das vivéncias de cada sujeito e do contexto em que fo- rem aplicadas. Como decorréncia, os padrées de disciplina que pautam a educagdo das criangas e jovens, assim como os critérios adotados para identificar um comportamento indisciplinado, no somente se transfor- mam ao longo do tempo como também se diferenciam no interior da dinamica social. ‘Ao chamarmos atencdo para o processo dindmico de formacao € transformacdo do conceito de indisciplina na historia humana e as di- vversas conotagdes que o termo pode sugerir na sociedade atual, nao es- tamos postulando, obviamente, a impossibilidade de admitir um niicleo relativamente estavel de aspectos e relagdes que designam a nocto de indisciplina, compartilhavel por todas as pessoas que a utilizam. Entre- 84 | I ae : tanto, mesmo este nticleo comum esté sujeito a intimeros enfoques, in- terpretagdes ¢ redefinigdes. Por esta raziio, consideramos relevante re- fletirmos sobre os significados geralmente atribuidos na nossa socieda- de, especialmente no meio educacional, & palavra indisciplina. Segundo 0 diciondrio o termo disciplina pode ser definido como “re- ssime de ordem imposta ou livremente consentida, Ordem que convém a0 funcionamento regular de uma organizacdo (militar, escolar, etc.). Relagdes de subordinagao do aluno ao mestre ou ao instrutor. Obser- vvancia de preceitos ow normas. Submissdo a um regulamento”. E, dis- ciplinar, o ato de ‘‘sujeitar ou submeter & disciplina: disciplinar uma tro- pa. Fazer obedecer ou ceder; acomodar, sujeitar; corrigir: Procurou dis- ciplinar os instintos selvagens da crianca’”. E ainda, disciplinavel como “‘aquele que pode ser disciplinado”’. J4 o termo indiseiplina refere-se ‘20 “‘procedimento, ato ou dito contrério & disciplina; desobediéncia; de- sordem; rebeligo”’. Sendo assim, indisciplinado € aquele que “se insur- ‘ge contra a disciplina’” (Ferreira, 1986, p.595). Estas definigdes podem ser interpretadas de diversas formas. E pos- sivel, por exemplo, entender que disciplindvel € aquele que se deixa sub- meter, que se sujeita, de modo passivo, ao conjunto de prescrigdes nor- mativas geralmente estabelecidas por outrem ¢ relacionadas a necessi ‘dades externas a este. Disciplinado é, portanto, aquele que obedece, que cede, sem questionar, 8s regras e preceitos vigentes em determinada or- ganizagio. Disciplinador é, nesta perspectiva, aquele que molda, mode- Ia, leva 0 individuo ou o conjunto de individuos & submissao, & obe- digncia e & acomodacao. J4 o indisciplinado € o que se rebela, que no acata e nao se submete, nem tampouco se acomoda, ¢, agindo assim, provoca rupturas ¢ questionamentos. ‘No meio educacional esta visto é bastante difundida. Costuma-se compreender a indisciplina, manifesta por um individuo ou um grupo, como um comportamento inadequado, um sinal de rebeldia, intransi- géncia, desacato, traduzida na “falta de educacio ou de respeito pelas autoridades”, na bagunga ou agitagdo motora. Como uma espécie de incapacidade do aluno (ou de um grupo) em se ajustar &s normas e pa- ddrdes de comportamento esperados. A disciplina parece ser vista como obediéncia cega a um conjunto de prescrigées ¢, principalmente, como um pré-requisito para o bom aproveitamento do que é oferecido na es- cola. Nessa visio, as regras sdo imprescindiveis ao desejado ordenamento, ajustamento, controle e coeredo de cada aluno ¢ da classe como um to- do. E curioso observar que, nesta perspectiva, qualquer manifestagao de inquietagao, questionamento, discordancia, conversa ou desatencéo por parte dos alunos ¢ entendida como indiscipiina, ja que se busca ‘‘ob- ter a trangililidade, o silencio, a docilidade, a passividade das criangas de tal forma que nao haja nada nelas nem fora delas que as possa dis- 85 trair dos exercicios passados pelo professor, nem fazer sombra & sua pa- lavra.”” (Wallon, 1975, p.379) ‘Uma outra tendéncia presente no campo da educagio & a de asso- ciar a disciplina & tirania. Qualquer tentativa de elaboracao de parame- tuos ou definigdo de diretrizes ¢ vista como prética autoritéria, defor- madora ou restritiva, que ameaga o espirito democritico e cereeia a li= berdade e espontaneidade das criangas e jovens. A disciplina assume uma conotacdo de opressiio e enquadramento. Portanto, todas as regras e normas existentes na escola devem ser subvertidas, abolidas ou ignora- das. Sendo assim, apresentar condutas indisciplinadas pode ser entendi- do como uma virtude, jé que pressupde a “'coragem de ousar”, de desa- fiar os padrées vigentes, de se opor & tirania muitas vezes presente no cotidiano escolar. Entendemos, todavia, que estes temas podem (e devem) ser inter- pretados de uma outra mancira, j que, vista sob aqueles angulos, a ques- ‘fo da indisciplina (ou da disciplina) pode servir, de um lado, para jus- tificar praticas despoticas e, de outro, para estimular uma espécie de ti- rania &s avessas, na qual o projeto pedagégico fica submetido & vonta- de da crianga ou do adolescente. AA vida em sociedade pressupde a criagao e 0 cumprimento de re- ras ¢ preceitos capazes de nortear as relagées, possibilitar 0 didlogo, 8 cooperacio ¢ a troca entre membros deste grupo social (sobretudo mu- ma sociedade complexa como a nossa). A escola, por sua vez, também precisa de regras e normas orientadoras do seu funcionamento e da con- vivencia entre os diferentes elementos que nela atuam, Nesse sentido, as normas deixam de ser vistas apenas como prescrigées castradoras, ¢ passam a ser compreendidas como condigao necessaria ao convivio so- cial. Mais do que subservincia cega, a internalizacdo ¢ a obediéncia a determinadas regras pode levar 0 individuo a uma atitude aut@noma e, como conseqiiéncia, libertadora, jé que orienta e baliza suas relagdes sociais. Neste paradigma, o disciplinador 6 aquele que educa, oferece pardmetros ¢ estabelece limites A indisciplina, nesta dtica, passa a ser vista como uma atitude de desrespeito, de intolerancia aos acordos firmados, de intransigéncia, do ‘do cumprimento de regras capazes de pautar a conduta de um indi duo ou de um grupo. Como analisa La Taille: “(...) criangas precisam sim aderir a regras (que implicam valores ¢ formas de conduta) e estas somente podem vir de seus educadores, pais ou professores. Os ‘limites? implicados por estas regras ndo devem ser apenas interpretados no seu sentido negativo: o que nao pode ser feito ou ultrapassado, Devem tam- bbém ser entendidos no seu sentido positivo: o limite sirua, dé conscién- cia de posiedo ocupada dentro de algum espago social — a familia, a escola, ¢ a Sociedade como um todo.” (La Taille, 1994, p.9, grifos do autor) 86 Partindo destas premissas, no plano educativo, um aluno indisci- plinado nao é entendido como aquele que questiona, pergunta, se in- quieta e se movimenta na sala,? mas sim como aquele que ndo tem mites, que ndo respeita a opinido ¢ sentimentos alheios, que apresenta Aificuldades em entender 0 ponto de vista do outro e de se autogovernar (no sentido expresso por Vygotsky, 1984), que nao consegue compart. thar, dialogar e conviver de modo cooperativo com seus pares. Neste caso, a disciplina ndo é compreendida como mecanismo de repressio ‘econtrole, mas como um conjunto de pardmetros (claborados pelos adul- tos ou em conjunto com os alunos, mas principalmente internalizados por todos), que dever ser obedecidos no contexto educativo, visando a uma convivencia e produgio escolar de melhor qualidade. Deste pon- to de vista, a disciplina & concebida como uma qualidade, uma virtude (do individuo ou de um grupo de alunos) e, principalmente, como um objetivo a ser trabalhado e alcancado pela escola, Como decorréncia, a disciplina, ao invés de ser compreendida como um pré-requisito para © aproveitamento escolar, & encarada como resultado (ainda que ndo exclusivo) da prdtica educativa realizada na escola. ‘A andlise destes termos, longe de ser diletantismo, pode nos sugerir importantes aspectos que merecem ser examinados na discussio sobre a indisciplina na sala de aula. O modo como interpretamos a indiscipli- na (ou @ disciplina), sem chivida, acarreta uma série de implicagdes pratica pedagdgica, j4 que fornece elementos capazes de interferir néo somente nos tipos de interacdes estabelecidas com os alunos e na defini- 40 de critérios para avaliar seus desempenhos na escola, como também no estabelecimento dos objetivos que se quer alcancar. Um outro aspecto capaz de influenciar significativamente 0 proces- s0 educativo desenvolvido na instituicdo escolar diz respeito a visio dos diferentes elementos da comunidade escolar (professores, técnicos, pais ¢ alunos) sobre as causas da indiseiplina. Entendemos que € necessario identificar, principalmente, os pressupostos subjacentes as explicacBes, zgeralmente manifestas pelos educadores, que acabam por revelar, ain- da que de maneira implicita, determinadas visdes sobre 0 processo de desenvolvimento ¢ aprendizagem do individuo e, como decorréncia, 0 papel desenvolvido pela escola (Rego, 1995b). ‘No cotidiano escolar, os educadores, aturdidos e perplexos com 0 fendmeno da indisciplina, tentam buscar, ainda que de modo impreciso pouco aprofundado, explicagdes para a existéncia de tal manifestagao. Muito freqiientemente véem a indisciplina como um “‘sinal dos tempos 2. Isto porque entendemos que, no processo de construglo de conhecimento, 08 al- pos eva et parkas at, Sendo in, angus, a movimento em 1a, as interagoes entre as eriancas, ndo se confundem com ato indssplinados jf que 0 ‘ndicadoras de envalvimento por parte dos alunos 87 modemnos”, revelando uma certa saudade das priticas escolares e sociais de outrora, que nio davam margem’ & desobediéncia e inquietagao por parte das criangas e adolescentes: “No meu tempo 0 professor era auto- Tidade; ele era respeitado nao s6 ma escola mas em toda a sociedade!”” “Bu sou da época em que crianca era crianga e adulto era adulto, ndo era essa bagunga de hoje!” "Nesse caso, parecem ignorar que a obediéncia e a nfo contestago da autoridade eram conseguidas, muitas vezes, através de priticas despoti- ‘cas © coercitivas. Estes argumentos acabam por revelar ainda, entre ‘outros aspectos, uma grande dificuldade (ou resisténcia) de atualizar o projeto pedagégico diante das demandas apresentadas pela sociedade atual. Arroyo (1995) faz um agudo questionamento deste olhar para 0 passado, que ele define como “um saudosismo romantico misturado a0 ‘medo e & prevengio quanto ao futuro”, ainda tao predominante no meio educativo: “(..) Como educar para 0 futuro, para a realidade sociopoliti- ca, com esse olhar constante voltado para o pasado mitificado? Se dependesse da concepeao pedagégica, se etemizaria 0 passado. Nio 0 passado real, mas 0 passado idealizado: vottar a infancia da hist6ria social € politica como o ideal do convivio humano” (Arroyo, 1995, p.64) 'B comum também verem a indisciplina na sala de aula como reflexo da pobreza e da violéncia presentes de um modo geral na sociedade & fomentadas, de modo particular, nos meios de comunicagao, especialmen- tena TV. Nessa perspectiva, parecem compartlhar a idéia de que os alu- nos slo o retrato de uma sociedade injusta, opressora e violenta, e a esco- la, por decorréncia, vitima de uma clientela inadequada (Moysés; Collares, 1993). O pressuposto dessa visdo € o de que 0 individuo € um “recepticu- Jo vazio” que se modela, passivamente, as pressGes do meio. A escola se desse modo, impotente diante do aluno, principalmente dos que pro- vyém de ambientes economicamente e culturalmente desfavorecidos. Muitos atribuem a culpa pelo “comportamento indisciplinado” do aluno a educagio recebida na familia, assim como a dissolu¢ao do mode Jo nuclear familiar: “Esta crianga tem uma criagdo familiar totalmen- te autoritéria, esta acostumada a apanhar e a receber severos castigos, por essa razio nao consegue viver em ambientes democraticos”; “Se os Pr6prios pais nao sabem dar limites eu & que ndo vou dar!”; “A maior Parte dos meus alunos vem de lares desestruturados, so filhos de pais, separados, por isso apresentam este comportamento to agressivo”. Ou ainda a falta de interesse (ou possibilidade) dos pais em conhecer e acompanhar a vida escolar de seus filhos:“O problema da indisciplina est 3. Os comentirios dos educadores apresentados neste artigo foram coletados fem insimerassituages que vivenciei ao longo de minha vida profissional: em reu- niges pedaggicas, em cursos de formagao de professores et. 88 associado & desvalorizacdo da escola por parte dos pais: eles nunca apa~ recem na escola, muito menos nas reunides, nao acompanham as ligdes nem assinam as adverténcias!”. Neste caso, a responsabilidade pelo comportamento do aluno na escola parece ser tinica e exclusivamente da familia, Novamente a escola se isenta de uma revisao interna, ja que © problema é deslocado para fora de seu dominio. Outros parecem compreender que a manifestacio de maior ou me- nor indisciplina no cotidiano escolar esté relacionada aos tragos de per- sonalidade de cada aluno: “Fulano é terrivel, nfo tem jeito! Sierano nas- ceu rebelde, o que eu posso fazer?””. Deste modo, atribuem a responsa- bilidade & propria crianca ou adolescente, deixando transparecer uma concepgao de desenvolvimento inatista. Em outras palavras, entendem que as caracteristcas individuais so definidas por fatores endégenos, independentes, portanto, da aprendizagem e das influéncias do univer- so cultural. Os tragos comportamentais de cada aluno no poderdo ser ‘modificados pois jé estdo definidos desde o nascimento, fazem parte da “natureza de cada individuo”’. Conseqiientemente, a experiéncia esco- lar no tem nenhum poder de influéncia e intérferéncia no comporta- ‘mento individual ‘Uma outra maneira de justificar as causas da indisciplina na escola, ‘bastante presente no idedrio educacional, se refere a tentativa de associar ‘© comportamento indisciplinado a alguns “tracos inerentes”” a infancia € 8 adolescéncia: “Os adolescentes so, de um modo geral, revoltados € questionadores, nao adianta querer lutar contra isto”; “As criangas sto egocentradas, por isso apresentam tanta dificuldade em entender as re- ‘gras € necessidades do grupo”; “Crianga ¢ indisciplinada e desobediente por natureza, precisa ser domada”. Neste paradigma, as caracteristicas individuais também sao dadas a priori, pois estdo relacionadas & etapa da vida em que o aluno se encontra. Podemos afirmar que esta ¢ uma ‘outa versio do inatismo j que pressupde a existéncia de caracteristicas, universais que se manifestarao em estdgios previstos, independentemente ddas vivéncias realizadas em determinada cultura. Ja os profissionais da educacdo (diretores, coordenadores, técni- ‘cos ete.) € muitos pais, quando provocados a analisar as posstveis cau- sas da incidéncia deste comportamento nas escolas, muitas vezes aca- bam por atribuir a responsabilidade ao professor. Deste modo, a cul- pa que geralmente ¢ atribuida ao aluno, entendido como portador de defeitos ou qualidades morais e psiquicas definidas independentemen- te da escola (Patto, 1993) ou & sua familia, passa a ser do professor. Nesta dtica, a origem da indisciplina esta relacionada exclusivamente a falta de autoridade do professor, de seu poder de controle e aplica- sao de sangées. O problema parece se reduzir & presenga de maior ow menor “‘pulso” para edministrar controlar a turma de alunos, assim 89 como aplicar medidas punitivas mais ou menos rigorosas.* Nem € pre- ciso ressaltar que, neste caso, a disciplina é sindnimo de ordem, submis- so e respeito & hierarquia, ¢ a idéia de autoridade se confunde com au- toritarismo (Davis; Luna, 1991). E interessante observar que, do ponto de vista do aluno indiscipli- nado, os motives alegados costumam ser um tanto diferentes. Com bas- tante freqiiéncia, dirigem suas criticas ao sistema escolar. Reclamam nao somente do autoritarismo ainda t&o presente nas relagdes escolares, mas também da qualidade das aulas, da maneira que os hordrios e os espa- ‘908 sao organizados, do pouco tempo de recreio, da quantidade de ma- térias incompreensiveis, pouco significativas e desinteressantes, da as- ppereza de determinado professor, do espontanefsmo de outro, da falta de clareza dos educadores, das aulas mondtonas, da obrigacao de per- ‘manecerem horas sentados, da escassez de materiais e propostas desa- fiadoras, da auséncia de regras claras etc. 5 limites deste artigo nao permitem que facamos uma andlise mais aprofundada das idéias e visoes recorrentes entre os diferentes protago- nistas do sistema educativo. Embora estas opinides comportem varias possibilidades de interpretago e sintese, nos limitaremos a alguns as- pectos que consideramos relevantes. Primeiramente, € possivel observar que o lugar ocupado por cada ‘um destes elementos no sistema educacional parece alterar significativa~ ‘mente 0 seu modo de explicar as razbes da incidéncia da indisciplina na escola. Apesar destas diferengas, predomina, entre a maior parte dos ‘envolvidos no processo educativo, um olhar parcial e pouco fundamen- tado sobre o problema. As complexas relagdes entre o individuo, a es- cola, a familia ¢ a sociedade nao parecem suficientemente debatidas € aprofundadas. As justificativas, além de pouco criticas e abrangentes, ‘se mostram impregnadas de meias-verdades, de explicagdes do senso co- mum ou pseudocientificas (uma espécie de “psicologizacao" ou “'socio- logizacdo’” das questdes educacionais e pedagdgicas). Em segundo lugar, gostariamos de chamar a atencdo para o fato de que, na busca dos determinantes da indisciplina, a influencia de fa ‘ores extra-escolares no comportamento dos alunos, na visio de muitos educadores, parece ocupar o primeiro plano. O comportamento do alu- no (indisciplinado ou nao) ndo tem nenhuma relacdo com 0 que é vivi- do na escola,’ ja que as caracteristicas individuais (rebeldia, passividade, 4, curioso notar que, muitas vezs, os pais apresentam muita dficuldade em en- tender o papel edcativo da familia. F bastante comum delegarem A escola, especialmente tte profestor, uma série de responmabilidades anseie quanto & educngie de vous Filhon, info somente relacionados 2 questdo da (inydiscplina, E108 Unicos a estabelecerrelagdes mals brangentes entre 0 comportamento indisciplinado ¢ ot fatores intra-escolares 90 intransigéncia, (in)eapacidade de cooperacio, agressividade etc.) so vistas como resultado de fatores inerentes a cada aluno ou das pres- s6es recebidas no universo social (familia, televisio etc.). Deste modo, a soluco para o problema da indisciplina nao estaria ao alcance dos educadores.* Podemos concluir que as concepedes dle desenvolvimento humano predominantes no meio educacional trazem sérias conseqiiéncias & pré- tica pedagésica, pois “(...) reforcam a idéia de um determinismo prévio (por razdes inatas ou adquiridas), que acarreta uma espécie de perplex dade e imobilismo do sistema educacional. A escola se vé, assim, desva- lorizada e isenta de cumprir 0 seu papel de possibilitadora e desafiadora (ainda que ndo exclusiva) do processo de constituico do sujeito, do ponto de vista de seu comportamento de um modo geral ¢ da construcéo de conhecimentos.”” (Rego, 1995, p.92) Entendemos que estas posigdes devem ser revistas, jd que as expli- ccagdes, mitos ¢ crencas sobre o fendmeno da indisciplina na sala de aula difundidos no meio educacional, além de acarretarem preocupantes im- plicagdes a pratica pedagégica, sc embasam em pressupostos preconcei ‘tu0s0s, superados e equivocados sobre as bases psicoldgicas do desen- volvimento ¢ aprendizagem do ser humano, sobre as dimens6es biol6gi- cae cultural envolvidas na formagao de cada pessoa. Conforme afirma Quijano (1986, p.45): ‘tas idéias sao prisdes duradouras, mas niio preci- samos permanecer nelas para sempre’. ‘Vygotsky ¢ o desenvolvimento humano Embora a questdo da constituigdo humana ainda seja objeto de po- lemicas e controvérsias no campo da Psicologia, podemos afirmar que, do ponto de vista tedrico, as abordagens inatistas,”inspiradas nas pre- missas da filosofia racionalista e idealista (que postulam a existéncia de caracteristicas inatas, independentes das influéncias culturais) e, ambien- talistas,* bascadas nas teses da filosofia empirista e positivista (que, a0 enfatizar os fatores externos no processo de desenvolvimento, entende © sujeito como sendo um mero resultado da modelagem e condiciona- mento social), estao praticamente superadas. ‘A psicologia contempordinea, apesar de comportar uma pluralidade de enfoques tedricos e uma grande variedade de métodos de investiga- 6, Apesar de alguns profisionais da educacdoe pais admitirem a possibilidade de relagdo entra postura do educador ea incidéncia da indiseipina na sala de aula €poss- ‘el notar que a anise fia é bastante simplista: tudo parece depender Unica e exclu monte d "7. "Tamibém chamadas de apriorisas, organicistas ou nativsas 8. Também conhecidas como associacionsias, mecanicstas, comportamentalistas ou behaviorsas a1 ‘do sobre 0 assunto, tende a admitir que as caracteristicas de cada indi- viduo nao so dadas a priori, nem tampouco determinadas pelas pres- ses sociais. Elas vao sendo formadas a partir das imimeras ¢ constan- tes interagdes do individuo com 0 meio, compreendido como contexto fisicoe social, que inclui as dimenses interpessoal e cultural. Nesse pro-

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