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Capa
COELHO DE MORAES
edição: 8 mil / distribuídos via mail
coelhodemoraes@terra.com.br
Cidade de Mococa
São Paulo
Março / 2010
Coelho De Moraes 2
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
HISTÓRIAS
DA ARCA DO VELHO
Para
José Coelho De Moraes
meu pai
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Palavra primeira
Coelho De Moraes 4
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
RELATOS DE
MATRIMONIO E PATRIMONIO
(uma novela indomável)
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
3) Havia três sujeitos que estavam afinzões (se o distinto leitor me permite a
invencionice) de Chiamba e ficaram paus–da-vida quando souberam da arcaica lei;
um absurdo que enfrentava a modernidade de Canarita e, enquanto o pobre
mercador se transformava em pobretão, os três possíveis noivos articulavam
mumunhas e traquinagens para, um dia, surrupiar Chiamba e casarem com ela, uma
vez que era muito difícil encontrar empregada igual na praça.
O mais esperto era um tal Luzivaldo; um sujeito magro que quando tinha quinze
anos era muito mais baixo do que quando tinha vinte e um, o que lhe valeu a
alcunha de Lulu – Rabicho, já que ele andava atrás das saias de mulheres e padres,
sem deixar nada no olvido.
Lulu–Rabicho, fazendo-se de professor de línguas, – a dele não parava dentro da
boca, - foi levado à casa do pobretão mercador, que não tendo com o que pagar,
dava-lhe quilos de batata e peixe salgado, enquanto o professor ensinava as
funções da língua para as moças.
Havia um segundo, chamado Crebio, que se oferecia como jardineiro, trabalhando
gratuitamente; o intuito era o de se aproximar da bela Chiamba, levando-lhe flores e
poupadas de terra cobertas de estrume de boi com que cuidava das plantas.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
6) Todo mundo foi convidado para o casamento, e, mesmo que não fossem,
pelo menos os rapazes apareceriam para ver qual o trouxa que levaria para casa a
vassourinha da Canarita.
Na festa encontramos de tudo. Toda a fauna de uma sociedade bem instituída: as
galinhas das senhoras que ditam a moral mutável de acordo com o mancebo que
lhes aparecessem entre as cochas. Os advogados e juízes marmotas que
vomitavam leis difíceis de cumprir, arrotando poemas para todos os lados. Os
ratazanas industriais e empresários que consumiam a vida de seus operários dando-
lhe latas e geléias como bônus. Os abutres médicos donos de planos de saúde, que
adoravam entranhas, que tomavam bebidinhas com papagaios, araras, periquitos,
psitacídeos sociais em geral. Os loroteiros com PhD que se julgavam professores e
ensinavam modos e maneiras de bem copiar o raciocínio alheio. Enfim, uma
cambada de bichos profissionais que valorizavam a festa com suas opiniões lidas
em revistas ou repetidas de livros lidos como quem vai ao banheiro depositar sub-
produto no vaso privado de belo branco porcelânico.
No entanto, Canarita apareceu toda desmazelada, falando enrolado como quem
bebeu. A verdade era que o cachimbo atrapalhava a parlatória; cabelos
desajeitados, roupas rotas e rosto pintado de qualquer jeito.
Perúquio ficava louco de vida e falou que aquilo é um ultraje.
- Isto é um ultraje!
- E, você queria o que? Os três neo-patetas me atacaram lá no quarto enquanto eu
me vestia! – Disse ela.
- Que patetas?
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
- Os possíveis noivos de minha irmãzinha, que neste momento esta com a cabeça
dentro do saco.
- E, por que você não gritou, sua megera?
- Porque eles ainda não tinham terminado, meu caro. Você acha que eu vou perder
a chance das penetrações e rosnados, a troco de nada?
Perúquio estrilou: - Como, a troco de nada? Por acaso eu sou nada?
E, a resposta veio rápida: - Isso veremos após o casamento.
O pai pobretão–miserável estava perplexo com o desenrolar dos acontecimentos,
mas feliz, pois aquilo não era coisa que desse prejuízo. A festa já era paga pela
vizinhança que daria tudo para ver o casamento da reles Canarita, abandalhada dos
cinco costados. E, gostaram, pois o espetáculo estava dos bons.
Nesse momento desciam as escadas os três-neopatetas (possíveis noivos),
dizendo que não queriam mais o casamento com a menina Chiamba, uma vez que
ela não retirava, de jeito nenhum, o saco da cabeça, limitando-se a dizer palavrões
de todos os tipos e variedades.
Contudo, o pai paupérrimo explicou, e fez questão, que teriam que se casar com a
mais moça, já que ele, – pai obstinado, - agüentou noites e noites de uma cantoria
chata pra cachorro; não ia, por mais nem por menos, permitir que a pequena filha
Chiamba também ficasse frustrada por ouvir todas aquelas baboseiras em forma
musical e agora a espiar navios saírem e entrarem na baía.
Os três amigos, intimidados pelos vizinhos, tiraram par ou impar e a vitória acabou
recaindo sobre Luzivaldo que começou, imediatamente, a chorar.
Perúquio, que já chorava a um tempo, consolou o amigo. Caíram em uma arapuca e
não havai maneira de escapar. Todos da cidade foram testemunhas e, o pior,
testemunhas idôneas, pelo menos, lá entre eles.
Crebio e Mortencio sairam de fininho, pela janela, levando alfenins, biscoitinhos de
gengibre, pedaços de bolo Xanxerê, pecan pies, gugelhupf, brioches, sayarin,
churros, mufins, trufas de chocolate, ravióli doce, petit carré, rocamboles, pudim
Molotoff, menchikof, bavarois e pedaços furtivos de torta klamotte, nos bolsos e no
bojo do alaúde.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
PERIPÉCIAS ROCAMBOLESCAS
DE OSÍRIS.
(uma novela do cão)
1) Osíris era um gato siamês que vivia entre ladeiras do bairro niteroiense do
Ingá, e, os muros das casas, porém, maior prazer não tirava se não aparecesse
enfronhado em lençóis e braços de sua senhora-amiga–confidente. A particularidade
maior, no entanto, estava no fato de que Osíris identificava-se como um gato oriundo
do Sião, das terrosas áreas do Entre–Rios, de requintado gosto judaico, apesar do
nome divino e egípcio. Era muito chegado a mordomias, como se ainda acostumado
a perambular pelos antigos palácios de Tebas ou Karnac, lado a lado a Faraó, ou
então, pelos luxuosos salões de propriedades dos Tetrarcas de Galiléia, antes da
invasão dos Romanos, se ainda fosse possível. Osíris sonhava com tudo isso, como
a relembrar uma de suas vidas.
Mas, na realidade, Osíris tinha que se conformar com os muros das ruas sujas de
Niterói, bem como os braços pegajosos de sua eternamente–deleitosa–transtornada
mãe artificial e, de vez em quando cair de lambidas sobre sua paixão: a Gata Kristh,
de origem germânica, apesar de inocente em Nuremberg, mas, evidentemente,
causadora de dissabores e alguns trissabores ao nosso herói, como veremos no
transcurso da história.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
aos rés do solo, se bem que prestasse atenção no caso de novidades ímpares como
bocas cheias de dentes que muito se aproximassem. Passava e ia pisando pelica,
sobre as almofadinhas de suas patas; quando muito, parava para dar uma lambida
na cauda, arrumar os bigodes; em seguida retornava o caminho que o levaria para
os pelos de Kristh, a bichana.
Muita gente pediu para que não se contasse o tal segredo, mas, o escritor em
questão não pode privar os leitores das verdades que se propõe a contar. E, o
segredo escondia, por sua vez, o seguinte: “Havia no bairro muitos outros gatos os
quais se dispunham a cortejar Kristh felpuda, que não lhes dava corda para tanto.
Ela estava caída pela elegância, pelas cores, pela origem e descendência do gato
Osíris” - consta que ele tinha lá seus arvoredos genealógicos: toda linhagem desde
Tutmés II até os dias atuais, quando suas tribos tiveram que escapar do cão nazista,
ou seja, um certo pastor alemão que alvoroçou a Germânia), enfim, o que sabe ao
certo é que uma horda de felinos inamistosos percebeu que só teriam a Gata Kristh
caso Osíris falecesse e, para abreviar o caminho até a pulverização do gato odiado,
os inimigos contrataram os serviços – olhe e atemorize-se, caro leitor! Pasme! Até
onde pode ir a animalidade! – e, eu dizia, contratou os desatinados serviços de um
canil cheinho de cães, é óbvio, mas, daqueles que comem até o osso do vizinho e,
não digo o osso da alimentação, mas, o da perna mesmo, tamanha a ruindade.
Por motivos de pura inveja e recalque, Osíris viu-se em palpos de aranha, se bem
que aranha mesmo não houvesse uma, mas tal é o que se ganha quando se utiliza
expressão idiomática num texto. Subia ele a Rua Presidente Pedreira, voltando do
escandaloso namoro, ainda lambendo os beiços e se arrepiando de vez em quando
com as lembranças, quando se viu cara a caras. A sua cara de gato olhava
fixamente as caras de nada menos do que doze cães, que o observavam
atentamente. De cima do muro, o sorriso escarninho dos inimigos. Da frincha do
portão de madeira, o riso maroto dos dálmatas que adivinhavam e se divertiam com
o perigo que Osíris corria. Da janela, o pranto copioso de sua senhora-adorada-
emudecida-lacimosa, assobiando cantigas de ninar enquanto o pranto derreava em
borbotões... brotava a cântaros. Mais atrás, em sua casa, já alimentada, preparando-
se para dormir, pensando oniricamente em Osíris e futuros gatinhos, a pequena
Kristh pressentiu que algo não ia bem.
Osíris percebeu que só um milagre o colocaria fora das mandíbulas destruidoras
daqueles irascíveis mercenários e, foi com os nervos à flor da pele que ele esperou
pelo pior.
3) Os anais não garantem se foi pior, ou melhor, mas, o fato é que não se sabe
como, nem se a aparição era terrestre ou não, no entanto, a aparição apareceu. Um
milagre... um Ser... Um alienígena... veio, caminhando, à medida que os doentios
olhos dos cães foram se abrindo desmesuradas! O sombrio ser se aproximava e, os
cães o temiam, e ele vinha, dormindo ou acordado (era difícil de saber), se em
estado sonambúlico (aparentemente), se bem que muita gente dizia, as más línguas,
que não havia diferença entre a vigília e o sono para tal ser. As boas concordavam
com o argumento. Surgiu das trevas da noite, para a salvação de Osíris, para
desrespeito dos felinos traidores, para horror do mastim venal, eis (!) que surgiu o
Leviatã adormecido, o gigante tépido, muito mais conhecido como Anselmo,
candidato consorte da Tetê, que muitas vezes se fazia passar pela irmã da
extasiada-edípica-electra-amantíssima-mãe do gato herói, como já sabemos.
“Ah! Felicidade. Onde estás que não te vejo?” Juro que tais foram os
pensamentos que passaram pela mente arguta do gato. Num triz ele zarpou pela
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Canaz caiu de mordidas sobre o pêlo brilhante de Osíris, o qual pêlo, em poucos
segundos ficou empapado de vermelho. Cão, o do meio, seguindo as pegadas do
irmão mais velho, puxou Osíris usando as orelhas do gato, girando-o no ar, para em
seguida largá-lo e vê-lo cair sobre o tanque de lavar roupa, previamente preparado
com sal, aguarrás e soda caustica. Osíris não sabia nadar e, enquanto se afogava,
como é de praxe nestas circunstancias de desencarne, tudo o que foi vivido passou
pelos pensamentos de Osíris, pesando seus erros e correções, rememorando os
dias e as noites, suas ações e miadas, seus saltos mal dados e seus namoros
imorais; memorava os inúmeros filhotes espalhados pela vizinhança e orou para que
o deus gato, o Felis catus maximus, pedindo para os seus inimigos não se
vingassem nos petizes. Apesar da flagrante exteriorização de bondade, Osíris fez a
chantagem usual; barganha cósmica; suplicava pela vida (na sua conta ainda
faltavam três, das sete) em troca do que, ele mudaria de conduta, diria preces para a
lua todas as quintas-feiras; a lua, mãe dos poetas e lunáticos, dos notívagos e
vagamundos, clareava as noites e não deixava que Osíris enfiasse a pata em telhas
soltas.
Mas, os cães não pretendiam vê-lo afogado, pelo menos, por enquanto.
Canicho, o caçulinha e, diziam, o pior dos três pois estava na fase de auto-
afirmação, pescou, por assim dizer, Osíris do tanque antes que esse pudesse
perceber o gosto do Terebinto e, enquanto enchia-o de palmadas e pequenas
mordidelas só para treinar, carregava-o para os lados de um formigueiro, sob a
ovação da gataria inimiga, platéia, sobre o muro.
Era um formigueiro de saúvas graúdas, sob umas pedras pintadas de branco. O
interesse de Canicho, no entanto, não eram as formigas, mas, as pedras. Umas
pontudas, outras rombudas. Sua intenção era, definitivamente, acabar com a
brincadeira e calcar uma pedrada na cachola do gato. Osíris percebeu e foi com
desespero que lutou sua última batalha.
Os gatos inimigos o vaiavam.
Retirando, porém, energias suficientes para ser considerado o Gato do Ano, Osíris
crispara os dedos das patinhas, arrepiou os pêlos, contraiu a musculatura, riscou o
ar com suas unhas afiadas e, num movimento convulsivo, rabiscou a cara de todos
os cachorros que apareceram na sua frente. Havia três, mas Osíris, à essa altura do
campeonato já via uns quinze.
A platéia estatificou-se. Era impossível que ainda se salvasse aquele biltre! Se não
fossem inimigos até aplaudiriam o arroubo! Depois de tanto apanhar ainda reunia
forças para a luta! Gatuno!
Osíris, sem perder sua constante ingenuidade, subindo pelo muro com loucura
selvagem, estendeu as patas para os gatos que o olhavam lá do alto, supondo que a
espécie falasse mais profundamente no coração. Contudo, a única coisa que fizeram
foi segurarem suas patas apenas o tempo suficiente para Osíris perder o pique da
arrancada. Após, uma bela chacota, largaram o herói dentro da boca de Canaz, que
não perdeu mais tempo e o mastigou, assim como quem não quer nada.
Mas, parecia, a divindade estava ao lado, imensamente protetora. Os pródigos
sempre serão exaltados e os destruídos serão... destituídos. No alto, sobre o peitoral
da janela, fazendo menção de pular, a modos de quem limpa vidraça, uma sublime
visão! No momento em que Canaz se preparava para a segunda mastigada, tendo
aberto a boca ao máximo, com olhos voltados para o céu, saboreando o manjar com
prazer inaudito... Vê... Sim, ele vê... Vê e para... seus irmãos acompanham seus
olhos medrosos... Osíris cai-lhe da boca que não mais se fecha e sai,
manquitolando, com as patas nos quadris. Bem sabem que os cães pararam porque
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
a excelsa criatura enviada por Felis catus maximus, o Leviatã adormecido, não lhes
saia da pupila canina de cada um. O horror chegara aos três dálmatas que se não
sabiam se fugiam ou se prostravam ali mesmo, em adoração ao deus supremo - ou
àquilo que julgaram ser a deidade máxima, que perambulava a esmo, batendo a
cabeça numa e noutra parede.
E, é no atônito da cena, sob o olhar boquiaberto dos gatos inimigos que Osíris
escorregou, indo para longe, esconder seu corpo alquebrado e mal tratado, num
desses socavões de terreno, somente conhecido por ele e Kristh.
Afinal, o que levou essa turba de felinos a odiá-lo? Uma única resposta é esperada.
O amor integral de Kristh, votado totalmente ao nosso herói. A gata ronronante, de
pêlos longos e sedosos... Kristh com a boca cheirando a sardinha... Kristh das
lambidas úmidas e movediças... Kristh dos encontros fortuitos e noitadas festivas.
Kristh dos bigodes sensíveis e dos abraços que o aga(ta)rravam fortemente... Kristh
bela... Num último pensamento Osíris quase sucumbe... “Kristh, querida Kristh...
(com as patas erguidas) Não tome todo o leite...”, e, desfalece.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
1 de outubro – o paciente sofreu melhora, uma vez que depositou suas produções
orgânicas sobre o tapete do consultório, o que é muito natural. Ainda assim ele
confunde o bom auxiliar lapão e, é preciso muitas vezes retirar o auxiliar da gaiola,
por três motivos: ter sido perseguido pelo paciente, a necessidade que tenho de
seus serviços e, para que não acabe com meu estoque de queijo.
18 de outubro – cometi um erro. Deixei o auxiliar lapão dentro da mesma sala e após
algumas horas de sessão com hipnose, em que já teria atingido a idade embrionária
do gato, o auxiliar iniciou uma série de miados em língua estranha. Joguei água fria
em seu rosto, mas, ele continua se lambendo. Fazendo Osíris voltar ao estado
normal de vigília, o lapão também retornou, o que me levou a concluir que as duas
criaturas são ligadas por associação sensitiva paranormal, que não é o meu campo.
Ou o lapão ou o gato é um médium poderoso. Apesar de normal, o lapão continua
irremovível em sua atitude de beber leite no pires, debaixo do fogão. Mais de uma
vez pude vê-lo retirando pulgas com a pata trasei... (desculpe), com o pé.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
uma senhora moradora do andar de cima, que tricotava, e, no fim, o gato me fora
devolvido engastado em uma bonita blusa. Fiquei tentado a deixá-lo assim,
confesso. A ética, no entanto, essa maldita consciência exterior, falou muito mais
alto. Hoje porém, está muito melhor (falo do gato e não da ética). De vez em quando
dá gargalhadas insuportáveis, mas, é só. O lapão não fora mais visto. Espero que
tenha fugido, assim não preciso pagar seus honorários.
Ah! – NOTA - Descobri o auxiliar: estava preso no guarda-roupa e disse que não
gritou que era para não incomodar os vizinhos.
Ainda não sei por qual razão contratei esta personagem.
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esta deve estar boiando entre porcarias orgânicas variadas no meio desta imensa
baía de Guanabara, onde outrora baleias vinham dar à luz.
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O TRISTE FIM DE UM
FUMANTE INVERTEBRADO
(uma novela do pigarro)
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razão?! – eram idéias que chegavam à boca, pois uma intensa raiva se apossava de
Cruzsouza naqueles momentos, mas, não passava daí, não se formavam em vozes
ou palavras inteligíveis, uma vez que a raiva de Cruzsouza passava logo.
Mas, pergunto, o que levou Cruzsouza a adquirir vontade de fumar?
Com a palavra, o seu analista.
4) “Bem... pelas anotações secretas que aqui tenho – por favor, não publique o que
lhes conto pois sempre pensam que nós, analistas, psiquiatras, confessores,
párocos, psicólogos e prestidigitadores somos pessoas em que se pode confiar e,
não é verdade. Não publique se não pega muito mal para mim, tá? –, continuando...
(o analista folheia alguns cartões)... nas anotações que tenho tirado desses trinta
anos de pesquisas, o fumante tem um problema na esfera sexual, e, o cigarro
representaria para ele o pênis perdido”
– Não entendi.
“Bem, meu caro, é o desejo interior que se manifesta. Apesar de uma ou outra
pessoa ser ativa sexualmente não significa que não seja impotente. Aí está o caso.
Falando sobre Cruzsouza, que representa a maioria, aquele que fuma, só é potente
enquanto fuma. Há um problema na afetividade, na autoconfiança, algo como o
intenso desejo de ter sempre a mão um pênis, daí o ato, de manipular o cilindro. No
caso das mulheres...”
– Ia perguntar sobre isso.
“Bem, no caso das mulheres, é mais aceitável o interesse pelo falo, digo, pelo fato
de manusear o cigarro. Apesar de doentio ainda mantém a ligação heterossexual...
já no caso dos homens, (e, aqui o analista faz um muxoxo), o confronto
homossexualidade versus normalidade, lá na cabeça dos fumantes, é o que os leva
a usar o cigarro como atenuante dos apetites, uma vez que não assumem a sua
condição de homossexuais”.
- E, aqueles que deixam de fumar?
“Você já ouviu falar em ex-viado? Encontramos muitos deles nas igrejas
evangélicas... aí é fácil entender que já resolveram seus problemas. Assumiram: não
mais o jogo homossexual e passaram a trilhar um caminho hétero. É uma opção que
fazem. E, além de decidirem seus caminhos, pois já não terão a sensação de
adultério, quando são homens casados, respirarão muito melhor, já que
inteligentemente escolherão o ar como gás respiratório e não a nuvem cinza-
pardacenta dos fumos”.
“Os que não conseguiram deixar de fumar sabem que estão no dilema do Hamlet:
Ser ou não ser. Eis a questão. Não sabem se preferem os braços da companheira
ou do garotão da esquina. Daí a pose, a falsa impressão de autoconfiança, e de
segurança que os fumantes tentam passar. Por dentro tremem e rangem os dentes”.
- Você tem alguma saída para estas pessoas?
“Bem, tenho sim. A mesma que eu disse para o paciente Cruzsouza. Tome
vergonha na cara. Ou assume ou para de fumar. Porque de outra forma me
encontrará pela frente. Eu também sou membro dos caçadores e a minha meta é a
solução final. Não pelo fato de serem ou não homossexuais, mas pela porcaria
daquela fumaça nojenta que me dá ânsia de vomito. Acautelem-se, dragões!”.
5) Naquele dia, Cruzsouza foi para casa e lá, somente lá, fumou quatro cigarros de
uma vez. Completamente deprimido, pois não sabia da gravidade psicológica do seu
caso. A ciência da mente estava muita adiantada. Descobria o desajuste sexual de
um indivíduo pela largura do seu cigarro.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
7) No fim de semana sentiu dores no peito e foi passar por observação no hospital
do câncer onde se constatou anomalia pulmonar e pouco tempo de vida. À medida
que caminhava pela rua, vendo as pessoas caídas na calçada, relembrava
neuroticamente quando o leitor da radiografia fez cara de quem não gosta, ao notar
os problemas. O radiologista olhou para Cruzsouza, deu a volta à mesa e perguntou:
- É fumante?
- Sim, sou. Mea culpa, mea culpa, mea culpa – disse, batendo no peito magro.
O radiologista sentou-se para escrever a sentença, ou melhor, o laudo da futura
morte e falou:
- Bem feito palhaço! – e ainda riu.
Enquanto caminhava pela rua, Cruzsouza pensava sobre isso, mas via, como já foi
dito, muita gente deitada, sufocada, desmaiada: violetas e púrpuras faces voltadas
para o céu. Nisso... Nisso o cerco formou-se. Eram os caçadores de fumantes. Eles
não descansavam. Um deles, irônico, falou:
- Temos uma surpresinha pra você, dragão. – E, sorriu com a ponta dos lábios.
- Que tipo de surpresa? – perguntou Cruzsouza esperando pelo pior.
- Já que gosta tanto de fumaça, resolvemos colocá-lo em seu habitat, caro dragão.
- Não estou entendendo.
- Mas já vai entender.
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O HOMEM
QUE CAÇAVA KERTETSZIA
(Uma Novela Febril)
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
A história.
A fome de kertetszias apareceu-lhe aos onze anos de idade, quando seu pai, um
fabricante de botões, mostrara-lhe fotos do anofelínio. Dessa época para frente
esqueceu completamente o assunto. Um surto de amnésia galopante, por ocasião
dos vários casamentos, auxiliou na introspecção da idéia, enterrada que foi nos
recônditos insondáveis da cabeça de Sanvae. Só voltou à sua memória em relação
ao inseto kertetszia após certo sonho que teve com uma das suas sogras.
Hoje.
As famílias ficaram decepcionadas e muito choraram quando perceberam que
Sanvae partia, mas, Sanvae, empedernido como ele só, partiu num dia de chuva
grossa. O navio balançava e o almoço de Sanvae, a muito custo, se manteve no
estômago. Sua cabeça queimava de ansiedade e, por momentos viu-se em palcos
de conferências, adulado, coberto de medalhas pró-isso, pró-aquilo, recebendo
prêmios científicos.
Chegou ao Amazonas na quarta-feira.
Na Quinta de um amigo, velho conhecido, tomou vinho e mordeu carne de pirarucu,
em tempos de descanso. Esperou que a barba tomasse seu rosto completamente,
desejou feliz Páscoa para o amigo e, munido de arcabuz, embornal e sapiquás,
atolou suas botas de couro de jacaré-aligátor-crocodilo nas lamas da floresta
comedora de gente e outros bichos, na incessante busca de kertetszias.
Ia ele ladeado por cinco guias bem pagos que, infelizmente, perderam-se no meio
da jornada, levando os javalis.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Sanvae enfrentou um milhão de seres voadores adentrando sua barraca, como uma
tempestade nasal. Reflexo esternutatório às avessas.
Sanvae ficou alucinado, com as riquezas pululantes por toda parte, parecendo que
se esquecia que na escuridão e em massa, muito inseto alienígena e covarde podia
se entranhar na multidão e fazer das suas. Portanto, em meio a picadas, sopapos,
garatujas de braços, pernilongos e pernicurtos de várias espécies, desmaiados,
fugitivos, tontos, ouviu-se gritos, zumbido de moscas que perderam o rumo... o que
sobrou? Sobrou, como saldo da batalha, uma kertetszia presa em saco plástico
(uma pata quebrada) e, uns quinhentos e cinqüenta pontos vermelhos só no rosto de
Sanvae, o caçador.
Ai é que o mal estava feito, definitivamente.
7) Do jeito que as coisas estavam não poderiam ficar piores, mas ficaram.
Era manhã de torpor e lassidão quando três mulheres montadas em fogosos ginetes
adentraram o quarto de Sanvae. Elas bateram as patas dos cavalos contra a parede
e pediram de volta a kertetszia, num idioma caprichoso. Sanvae escondeu-se atrás
das esposas, cheio de pavor. Nunca vira coisa igual, nem sentira tanto medo desde
que fora apanhado roubando jabuticaba no quintal da tia solteirona. As mulheres dos
cavalos, com a facilidade que a falta do seio direito dava, puxaram arco e flecha e
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
apontaram para o peito do caçador frustrado. Pediam, pela última vez, que lhes
devolvessem o acrídeo preso no plástico. Um cavalo cuspiu na cara do homem que
engatinhou para os baixios da cama, entre pó e chinelos esquecidos.
No entanto, nada de kertetszia aparecer.
As cavaleiras desceram dos potros coloridos e arrancaram o doente do esconderijo
e fizeram-no jurar que o pequeno anofelínio estava em correta situação de saúde,
bem estar alimentício, e, moral elevada; pediam, também, pressão arterial e variação
no peso corporal do inseto desde o início dos eventos.
Quando Sanvae sorriu concordando tiram-lhe um molar.
Sanvae benzeu-se quando as cavaleiras saíram – elas cantavam melodias
sincopadas que imitavam corridas de formigas. As esposas abraçaram-se e
maldisseram o dia em que se casaram com o poltrão caçador; já começavam a
sentir pena do inseto prisioneiro. As sogras resmungaram contra as cavaleiras,
tomadas de ciúmes, por duas razões: a primeira, menos importante, o fato de não
terem cavalos tão bonitos para pisotear o pobre Sanvae e, a segunda, talvez a mais
importante das razões, que era o sentimento de inferioridade. As selvagens eram
donas de um seio farto e interessante cada uma, enquanto as sogras não tinham
nem um para contar historia. Além disso, elas é que queriam desmoleculalizar o
genro. O doente, inútil e desacreditado Sanvae.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
saco plástico onde uma kertetszia ressonava qual anjinho. Olhou com olhos de
lagarto para as cavaleiras que lhe devolveram com olhos de águia. Sanvae dobrou
os supercílios e ficou parecendo um sabujo que tivesse levado um belo pontapé. O
dardo escreveu-lhe na testa palavras só inteligíveis para cavaleiras, centauros,
faunos e uirapurus alfabetizados. Enquanto isso a kertetszia despertava, abrindo a
boca (boca de inseto?) num bocejo incorreto.
A um sinal de mão, dado por uma das cavaleiras que também se mostrava como
líder, Sanvae abriu o saco (o plástico) e o inseto voou para a atmosfera, fazendo
questão de mostrar que já estava sufocado, puxando, em imitação perfeita, o
colarinho do casaco. Essa atitude deixou as cavaleiras bastante irritadas, de modo
que esporearam os corcéis e estes acabaram cuspindo na cara de Sanvae, numa
falta de educação das maiores que já se viu. O pobre enfermo caçador baixou a
cabeça, tristonho, mas, aproveitando para notar se tinha alguém olhando;
repentinamente, sem que as amazonas percebessem o intento, pulou no ar, segurou
o inseto incauto que ria a valer e mergulhou com ele de cima da ponte.
As cavaleiras entreolharam-se espantadas.
Os cavalos ficaram de queixo caído e foi um custo levantá-los. Mas, de nada
adiantou todo o trabalho mandibular. Sanvae e a kertetszia debochada haviam
sumido nas profundezas das águas.
10) Muito anos mais tarde soube-se que um circense fazia demonstração de um
certo animalejo considerado por todos como fenômeno voador. Tratava-se de um
homem barbudo dono de um pernilongo dançarino; fora tais boatos, nada mais
serviu para por em claro a existência da dupla. A não ser... a não ser um fato que
acabou citado nos jornais, sobre um anofelínio paranóico que assolava os casais
perdidos nos matos, nas moitas ou no escuros dos cinemas do interior, onde valia
tudo, inclusive assistir a filmes. Dizia o texto que de um circo sumira certo dia, o
pernilongo assaltante (com coleira e tudo) e, que a partir daquele momento uma
série de febres terçãs, quartãs e anãs, mais os estremecimentos, foram compilados.
Além disso, havia em hospital categorizado, uma guia de internação para o
tratamento de nervos em nome de Sanvae Kertetszia da Silva. O texto fora assinado
por um tal de Zaromeu que se dizia da estirpe de doutores da mente; soubesse
depois que não era mais do que um pobre sorveteiro especialista em distribuir
resfriados para todas as crianças do bairro. Sorveteiro e aposentado, jurava que
havia escrito para o jornal local sobre a tal história... que tinha ouvido falar não
sabia quando nem onde e, que realmente não se preocupava com a saúde dos
protagonistas da história, mesmo porque achava que não era historia e sim estória.
Vá saber!
Dizem que no fim ele teria dito, como já dizia seu José Coelho: - De qualquer forma,
fica o dito pelo não dito. Se não gostou, vá reclamar com o Benedito! – sendo, em
ato contínuo, encarcerado em célula privativa no hospital psiquiátrico, onde até hoje
caça pulgas domesticáveis, preparando-se para um espetáculo beneficente.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
O CAPETA ARREPENDIDO
(uma novela dos quintos)
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Benedes, no reflexo, quase que disse, “eu também e daí?”, mas se conteve.
Tinha um papel a desempenhar, papel decorado arduamente em anos de seminário.
- De que forma o filho tem pecado? – o padre perguntou, ajustando os botões.
- De muitas formas... eu... por exemplo, acho que governo metade do mundo... mas,
a principal delas, que eu acho, é a ocultação de criminosos.
- O filho precisa entregar os criminosos para a justiça. – Benedes aconselhou
piamente sem atinar muito com a coisa.
- Qual justiça? – apesar de tudo a dúvida continuava.
- A justiça dos homens... é claro.
- E na justiça de Deus, não vai nada?
- Deus já terá julgado tais criminosos, mas mesmo assim eles precisam prestar
contas à comunidade onde vivem. Precisam ir a julgamento.
- Mas, isso já aconteceu. Foram punidos, foram condenados e coube a mim, sob
ordens de Deus, ocultar pra sempre tais criminosos!
O padre Benedes pensou: “De todos... esse é o mais louco”!
- Não estou entendendo.
- Mas vai entender já já!
Durante alguns segundos o padre Benedes ficou entre sair do confessionário
ou esperar, mas, repentinamente a cortina abriu e uma alegoria vermelha começou
a saltar em sua frente, abrindo um tridente e chacoalhando o rabo, rindo de gaiato.
Benedes, estupefato, levantou-se, cenho franzido.
-E, agora, entendeu?
- Ainda não. Quem é você? Ainda não estamos em fevereiro.
O Gênio parou, desalentado. Baixou o tridente. Comentou consigo mesmo: -
Sem moral! Completamente desmoralizado! E, ainda, com essa roupa de palhaço
medieval!
- Quem é o senhor, se me pode dizer? – pediu Benedes, saindo do confessionário e
fechando o breviário com certo barulho brusco.
- Eu sou... – estufou o peito para dizer pomposamente – Lúcifer!
O padre Benedes olhou lentamente, de cabo a rabo, para assim dizer,
aprumou os óculos, passou as mãos pelos cabelos pintados, coçou a ilharga e
começou a rir, desbragadamente, às bandeiras soltas, às escâncaras.
- Lúcifer! Rá, rá, rá, rá, rá Lúcifer? Essa foi muito boa, conta outra! Que coisa de
louco, mesmo; louco, louco! – De repente ficou sério. – Quer brincar comigo, seu
palhaço? Pensa que tenho tempo pra perder?
Mas, o Gênio não se fez de rogado, pegou a deixa e não aceitou a
reprimenda.
- Ah! Então ficou nervozinho, heim? Vai mesmo me esnobar, padreco? pois fique
sabendo que Tonica acaba de se levantar, está se lavando, limpando o que ficou
preso nos pelos...
O padre ficou lívido. Perguntou:
- Como é que você sabe?
- Já falei o meu nome. Mas você custa a acreditar... ainda... posso garantir que o
seu pedido de empréstimo ao governo não passa na câmara. Será rejeitado, pois
descobriram que o seu interesse é aliviar os cofres públicos de recheio, não é? Além
do que a cidade ficaria com uma dívida até o ano 2010.
O Padre Benedes retrocedeu um passo.
- Você deve ser agente dos fiscais!
- Não, meu inimigo, não! Sou o anjo das trevas! – e sua voz tremeu.
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- Baixíssimo. É, Gênio, você tem razão. Os inimigos sempre tiveram a mídia nas
mãos.
- No entanto, de qualquer forma, estou pensando num caminho.
- Aconselho a falar com o Chefe. Direto com ele. Afinal, você era o segundo na
hierarquia, não era?
- Estão ocorrendo reformas nas alturas.
- Quem disse?
- O Queruba.
- O Queruba é um reaça dos piores. Conservador! Cuidado com ele. Porque é que
você pensa que ele agora carrega o lixo lá para baixo?
O Gênio fez cara de espanto e ares de ignorante. O outro passou o braço
sobre o ombro do gênio, dirigindo-o ladeira acima, na direção de um agrupamento
de pecadores em potencial.
- As reformas estão acontecendo, sim, mas, é na burocracia inteira. – o outro parou
para olhar e balançou as mãos. – Lá estão os outros. Temos programa de ação para
hoje. Quer observar?
Logo, uma multidão de anjos decaídos, pés-de-meia, zarapelhos, capirotos,
cramulhanos, dubás e entidades menos aquinhoadas de inteligência, compareceram
à porta do cinema onde passava filme pornográfico. Todos os integrantes da
comitiva principiaram a insuflar no pensamento dos jovens e das moçoilas idéias
para que se sentassem nos bancos da praça, e, discutissem as más ações do padre
Benedes e sua turma, um grupelho boquirroto que vivia num cercado de madeira
sobre o Museu; o padre, além de vigário, era o prefeito da cidade, ao mesmo tempo
em que vigário e vigarista conhecido e reconhecido por suas mulheres e filhos,
inclusive pelo Bispo, que era outro da turma.
No entanto, a imagem do erotismo estampado nas fotografias da propaganda
do filme foi mais forte e aos magotes, os jovens e as moçoilas penetraram no
cinema, muito menos pelo filme e muito mais pelo escuro onde se traficava e se
vendia gene e alma... escolhendo lugares bem escondido nos fundos e sob as
poltronas. Mesclando as ações do filme com as ações do relacionamento acalorado
na escuridão da sala de projeção, às vezes um acabava fazendo xixi na mão do
outro.
- Mas, o que foi? – o Gênio perguntou, abrindo os braços. – Sexo é proibido? Sexo é
alguma coisa de Mal?
- Aí é que está o fio do novelo. Temos poucos poderes sobre estas pessoas. Quase
poder nenhum sobre a cidade. No nosso planejamento tentamos mudar as feições
do modo de vida das pessoas, no entanto, eles preferem somente os prazeres da
carne. E nada dos prazeres da mente.
- Ante a face do espanto do gênio, o primo do Pererê falou: - E, olha que eu não sou
puritano. O erotismo esta aí mesmo, é para ser usado, abusado e acusado, como já
foi dito em outras histórias e outros tempos... mas, há outras coisas pra se fazer, não
acha? Uma revoluçãozinha ou duas!
- Pois é. Panis et circus et coitus.
6) E foi assim, que o Gênio, completamente desatinado, pronto para uma rebelião
maior do que no inicio dos tempos, partiu em vôo rasante na direção do céu.
Chamou Virgilio e Dante para o auxiliarem e não se perder pelo caminho, uma
vez que jogado nas profundas e tendo ficado durante milênios enterrado em meio a
fogo e crepitar de almas inglórias, não saberia mais como se dirigir ao grande
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O ANÃO GIGANTE
(uma novela de altos e baixos)
1) Não me leve a mal o leitor se inicio a história de maneira tão, aparentemente
sobrenatural. Mas, como o ocorrido foi real, as rimas bem calham para a abertura
deste simples conto. E, convenhamos, é só aparência.
No entanto, da maneira como se conta se passou. Eu acho. RUPERTO, esse
o seu gentil nome, percebeu que morava em um estranho país. Quem acaba de
nascer acha tudo estranho. Tal país estava construído no interior de um buraco. Na
verdade uma buraca.
Talvez o leitor encontre pequena desconfiança penetrando em seu cérebro e
venha a se perguntar o porquê de anões e repolhos. Esclareço impondo a voz de
escritor e digo que não estou aqui para brincadeiras e sim para contar um caso
deveras importante que pode ser visto de vários prismas, mesmo que não se trate
de uma aula física óptica. O leitor sábio bem poderá discernir sobre o enredo usando
recursos das Metáforas, da Hipérbole, quiçá da Parábola (instrumento ideal segundo
alguns exegetas), mas, poderá usar noções de Fábula, Geometria Analítica ou
Biologia Marinha. Recomendo a literatura mística, ou da hebdomadária infantil.
Mesmo assim acredito piamente que a resposta aos problemas será encontrada no
mais profundo da vida de cada um de vocês. Sei bem que o caso ocorreu em certa
época do futuro, mas, não acho lícito dizer em que época do passado eu estou.
Pode haver algum dedo–duro entre os caros leitores honestos. Honestos dedos–
duros.
2) O país onde morava RUPERTO era (des) governado por uma multidão de Reis e,
dos Reis, muita gente boa (o inimigo, obviamente) dizia que não passavam de
testas-de–ferro de outros Reis, de outros países, de outras línguas e outros hábitos,
inclusive os de higiene. Era notória a calúnia, pois os mendigos – que se contavam
aos milhões, e os miseráveis – conhecidos como povo – estavam em longas filas
pedindo emprego ou comida. O que viesse primeiro.
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brilhantes e seus mantos de arminho. A cada dia que passava um deles se sentava
na cadeira do trono e ditava as ordens. Às vezes uma ordem era contrária à do Rei
antecessor, mas tal era a tônica da brincadeira, causando emoções e muita dor de
cabeça aos funcionários – súditos – públicos que teimavam, por todo preço,
obedecer ao absurdo.
A população (leia–se “os zero à esquerda”) vivia para trabalhar. Mas, uma das
regras do jogo era não haver trabalho para todos. Existia até uma Lei que permitia
que um aposentado se matasse de brincadeira. Só se quisesse, é claro.
Outros diziam: “Eis um país que já foi rico”, ou “ainda será”. Diziam.
No começo faziam fila para ver o garoto, se bem que de longe já era possível
gozar a vista de suas perninhas e bracinhos ciclópicos destruindo montes e serras,
mesmo quem nunca tivesse visto um filhote de Ciclope. Parece que os Ciclopes são
tão monogâmicos que vivem sozinhos.
4) Cresceu tanto, o jovem, que pode observar de muito alto, com muita clareza e
exatidão, por quais caminhos tortuosos o homem comum de seu país tendia a seguir
para poder se considerar um ser digno ao próprio coração.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Dessa maneira, de ano para ano os Reis foram se instalando como quem não
quer nada e tomando tudo.
E ele gritou.
Um abalo e tanto.
Nesse momento os Reis, filhos d’algo, alguns filhos d’isso e muito filho
d’aquilo, além de valetes, vedetes, damas, ministros avulsos e oficiais, além da corja
menos cotada no Palácio, perceberam que tinha um levante às suas digníssimas
frentes. E, não era o do SOL. Perceberam que, em pé, RUPERTO ficava muito mais
alto, apesar do notável nanismo. Um altíssimo levante. O perigo imenso estava ali
mesmo, debaixo de suas barbas, executando suas damas e correlatas de escritório
que causavam bons levantes e não tinham barbas (segundo fontes do Palácio), a
não ser touceiras escondidas de modo púbico.
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parou a poder de muita cacetada, como diria um nobre escritor de Campos, muita
cacetada naquelas muitas cabeças e muitas rasteiras naqueles variados pés.
Era necessário - para o bem do povo e do polvo (apelido dos Reis) - livrar a
todos daquele homenzarrão nanico que andava aos gritos, alvoroços e exclamações
e reticências intermináveis.
6) Abre parênteses.
O leitor querido e amado estará tarado para saber qual a forma usada pelo Anão
Gigante para se alimentar, não é? Pois bem. Tenho documentos que comprovam
que “RUPERTUS, o Ynssygne, comya hyerbas (naturalysta, poys sym?), ou seja,
árbore de médyo porte, completado o lauto prato com fructos de una angyosperma
qualquiera. Serbya o lyquydo precyoso utylyzando o méthodo de aspyrar nubens
pejadas. Una naryzada só e la sede morta estaba. Só se tornaba ymportuno quan
descydya dar corrydynhas y saltos pympolhos – a modos de beadynhos lépydos -
por las cercanyas, que fazyam pular em sus bases a los prédyos, aas bezes barryos
ynteyros, sendo ysso, samicas, outro assunto que nan aquylo. Detestaba o abate de
anymalyas e era muy amygo do petcho de un bando de bundalhones de quynze
orellas, moradores todos do alto ryo. Un São Francysco desses or d’aquellos. Eram
gyrafas y passaralhos; cupyns y paremécyos ynfymus cuja marcante
unycelularydade coberta de pelynhos fazya brotar lágrymas cascateantes de los ojos
de RUPERTO. Preferya uba a romã; aynda preparaba su própryo pã, juntando sal
maryno obtydo da ebaporação de las águas dryades y de algumas anáguas
hamadryades sobre las pyedras, ao trygo. Além dysso, água fluyente dos ryos,
fungos fermentadoyres de los pyés, y calor dos bulcões ou calor del sol para
termynar o cozymento.”
Parte era seu alimento. Parte era dividido com o pessoal do buraco, os
buracas.
Fecha perênteses.
Aos olhos dos (des) governadores era tudo ultraje, - tal ato o de fabricar
comida tão naturalmente – relegado em nível de ações criminosas contra o
patrimônio estatal, podendo enquadrar o infrator nas Normas de Defesa da Pátria,
por motivos de subversão e outras regalias próprias de criminosos sem crime.
7) RUPERTO percebeu que era pessoa malquista pelos Reis quando sua imagem
apareceu em péssimas e mal-retocadas fotografias, espalhadas por todos os postes
do país dando–lhe notoriedade e fama das mais danadas, espalhadas por paredes
onde se dizia que RUPERTO era inimigo público ad aeternum.
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que comiam pedras e deitavam em espinhos) e, por fim, uma infindável quantidade
de cordas. Eram exímios caçadores. Planejavam pegar RUPERTO seguindo um
truque sugerido por Jonas, o Andorinhão, em tempos idos, cujo truque será
comentado a seguir a critérios de logística e estratégia.
Cumpre dizer que os GULIVERIANOS eram muito altos quando perto dos
nativos do buraco. Tinham cabelo cortado à la Príncipe Valente de uma cor muito
negra como que pintado a mão. Se bem que fossem pintadas á mão com tinta
marrom. Mas, não eram. Eram pretos. Logo, pareciam pintados com tinta preta,
repito.
Do prisma de RUPERTO (lá vem esse tal de prisma de novo) era como
brincar com folhas secas ao vento.
Porém, durante a ação propriamente agida, tal não seu deu corretamente,
uma vez que o dorminhoco não era do tipo quieto; caía mais para o sonambúlico,
de maneira que foi muito difícil, quase impossível, diria e podendo dizer, – a bem da
verdade – que a coisa se deu sem qualquer resultado; um fracasso na realidade,
para não dizer que tal do truque era uma tremenda porcaria que só podia ter saído
da cabeça do Andorinhão, uma vez que RUPERTO não parava no mesmo lugar no
mesmo instante. Mexia dali, mexia daqui. Lançava GULIVERIANO por todo lado
enquanto reclamava sons incoerentes e cantava trechos dos Nibelungos. Num dos
agudos mais empolgados do Siegfried, esmagou, com apenas uma lapada de mão,
uma penca de hominídeos que pugnavam no intuito de conter o imenso braço.
Adentrando pelo Lohengrin, pode, com certa facilidade..., - se o cara que me contou
isso não tiver mentido, – ...pode arremessar, a léguas de distância, dúzias de
GULIVERIANOS, cachos de mercenários que nunca mais seriam achados a não ser
como fósseis ou, no máximo, como peça de um estranho quebra-cabeça, sem
qualquer tipo de trocadilho. No êxtase final de Tristão e Isolda, com uma rodada de
corpo na direção do litoral RUPERTO esmigalhou porções homéricas de pequeninos
que, de uma hora para outra, passaram a fazer parte dos sais minerais e nutrientes
do solo, numa clara manifestação de amor à terra onde não nascestes, jamais vista.
Um deles tinha terra até na boca, tamanha a devoção.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
9) Nem foi preciso dizer que os GULIVERIANOS, os restantes, partiram a todo vapor
para outras terras, outro mar, sem mesmo levar o prêmio de consolação. O leitor
facilmente concluiu sem precisar da minha humilde se bem que onipotente ajuda.
Ah..., Violenta... digo eu. Mesmo que tal não seja o desejo do autor os (des)
governantes acabaram por imprimir ao escrito um véu assaz necrofílico. Peço
perdão por não ter mais tino e talento para alterar os cursos das aventuras, mas,
prometo, atenuarei ao máximo o horror dos fatos. Sigamos, pois.
10) Ainda não sei se a população gostava daquele vai e vem de gente estranha.
Alguma vez deve ter reclamado, mas isso e nada eram a mesma coisa,
principalmente num país sob o império da corrupção. Tudo devidamente arquivado
em distritos federais e cinzentos cofres das repartições do próprio nacional. De
qualquer forma, vindos pelo mar (os GÁRGULAS não saboreavam muito bem as
viagens de avião – tinham medo das nuvens), vindos pelo mar, num belo dia tornado
em mau dia chegaram os CORCUNDAS DE NOTREDAME. Uns mais arqueados
que os outros, donos de roupagem amarronada a modos de modelito capuchiniano
da Idade Média com toques da tesoura ou navalha de Ockham; Vinham de capuz,
com sacolas para carregar farelos de cereais, embornal feito com pele de camelo
macho e matula para a concentração de matérias vis e outras quinquilharias de
menor valor. Os GÁRGULAS, escrotos para dedéu, vinham sem roupa; simples
animalejos grotescos munidos de carrancas feíssimas, próximas das dos símios,
com dentes afiados e expostos numa orbital arcada. Tais personagens saltavam por
toda à parte e todo o descuidado observador poderia tomá-los por felizes
bacurinhos, não fosse o odor nauseabundo. Eram presos por coleiras e domados
pelos trinta gibosos clericais. No todo somavam noventa figuras desprezíveis. Muita
era a vez em que não se distinguia entre uns e outros, inda mais após a bebedeira.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Chegando ao litoral, entre areias e estrelas marinhas, sal, gente nua, vagas e
mundos, decidiram que a primeira peça do jogo tivesse que ser a ação do magnífico
rapto de APHRODITHERMES.
11) Olha a cara de espanto do leitor. (ponto de exclamação) Quem será isso?
APHRODITHERMES? Quem será? Talvez perguntem a seus zíperes. Devo dizer:
pouca gente tinha conhecimento do fato sendo que esses poucos eram antigos
habitantes dos infinitamente invisíveis, para além da lâmpada de Aladim.
“... entregue–se, enorme anão de tigela inteira. Ou, por outro lado, poremos
Aphrodithermes na nossa sopa. Não somos de brincadeira e os gárgulas estão com
fome e saco cheio das lingüiças de soja. Há três dias que só se alimentam de tal
carne de isopor. Fique sabendo que já tivemos ocasião de comer pernas com
melhor sabor, num outro país. Entregue-se pois! Ou no menos seremos obrigados a
transformar Aphrodithermes em eunuco... eunuca... eunuco... eunuca...
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
se–lhe a testa. Não podia permitir que algo acontecesse com a elaborada pessoa de
APHRODITHERMES. Daria sua vida pelo seu ente consagrado ao profundo amor. O
nascimento de um repolho não emocionaria tanto mais do que perceber tamanha
malignidade das letras corcundenses.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
13) Vinha com mais dois gigantes, amigos seus de outros recantos do planeta, onde
também havia Reis, onde o povo também era oprimido, mas, que sob o poder
popular, os párias ominosos foram banidos com a ajuda enorme de NIMEL e
ARAVEGUE.
Então, veja bem, caríssimo leitor que a todo o momento me empresta a sua
inteligência invejável, veja bem: Eram os TRES GEMINADOS, mais o enorme bando
de GULIVERIANOS, mais os GÁRGULAS nojentos muito bem armados pelo
horrendo CORCUNDA DE NOTREDAME, todos, enfim, em posição de ataque e
defesa, tendo como refém a pessoa encapuzada da ou do querida ou querido
APHRODITHERMES.
Devo, no entanto, retificar a frase acima, isso sim, para o bem da verdade.
Não houve briga (já disse sobre a disposição pacifica de RUPERTO), nem
alterações, nem discussões, pois afinal, amigo leitor, caro leitor, quem é, pergunto
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
eu, louco suficiente para encarar aqueles gigantes cara a cara, sendo que cada cara
de cada gigante era do tamanho de um prédio de cinco andares? E olha que
RUPERTO era um anão gigantesco, mas os outros eram gigantes gigantescos.
Hecatombes em forma de gente e ainda mais, fedendo daquela maneira a perfume.
Logo após, constataram que a personagem presa pelos bandidos não era a
musa de RUPERTO, mas, apenas dois GÁRGULAS, amarrados um sobre o outro,
tentando imitar requebros e manejo de gente sensível. Soou ridículo, inda mais se
tratando de GÁRGULAS já tarimbados nas lides de monstros do mais alto gabarito e
zelo. No entanto a coisa ficou como o contado.
14) Resta dizer que o povo do buraco pode dele sair e passar para a margem. Viram
que o sol anda durante mais tempo. Quem pensava que o buraquismo fosse uma
característica de tal povo, enganou–se redondamente. Era, na verdade, se bem que
relativa verdade, conseqüência de uma turba espúria que se sentara onde não
devera, no trono, trono que não era seu e de onde não quisera sair.
Com o Delfim principesco eu nem digo o que rolou, pois é possível que jovens
venham a ler estas histórias, mas se o leitor se interessar deve procurar nos escritos
de Artaud, onde ele fala sobre um imperador que chega de costas em uma cidade
ocupada por suas falanges. De qualquer forma todo mundo sabe como ficam
assanhadas as populações que se levantam. Atiça neles a concupiscência.
Aquele memorável dia ficou celebrado como o DIA da GUERRA que não
HOUVE, sendo comemorado e bebemorado com largueza e afabilidade doentia. A
partir daí muita gente nasceu e muita gente morreu, mas, o primeiro fenômeno
mostrou–se muito mais intenso do que o segundo, já que se tem bastante prova
sobre o aumento de fertilidade após a quebra de cativeiros. Inda mais ao sabor de
festas e adjutórios de beberismos dos mais intensos.
Quanto a RUPERTO, sabe–se que ele viveu muito tempo, curtindo seu amor
platônico por APHRODITHERMES, até que um dia, farto do planeta, por puro tédio -
ele era um anão, mas não era dois - acabou dando um pulo e foi morar na LUA,
onde confabula com Jorge e seu eterno dragão.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Júpiter Secundus adentrava o salão, não por vontade própria, mas, por insistência
de sua esposa coberta de lentejoulas e perfumes nauseabundos. Todos na cidade
sabiam quando Júpiter Secundus saía à rua, pois, a brisa vespertina carregava litros
de gases envenenados com a fragrância da Senhora Saturnia; assim, os pudicos
habitantes daquela cidade decidiam por voltar, rapidamente, às suas casas; ou
preferiam mesmo esconder seus corpos numa loja qualquer, uma vez que não
pensavam em olhar mais do que dois segundos para o imenso rabo da mulher de
Júpiter. Não havia peixe que ali botasse defeito.
Muita gente dizia que o excesso de perfume era para cobrir o aroma de bacalhau
que, intempestivamente, exalava da Senhora, mas, não provavam. Agora, que ela
morava num aquário, lá isso era verdade, pois via-se a estrutura de vidro do alto de
moro, sem dificuldade alguma, e, mais de uma vez o próprio Secundus teria dito,
com sua notável elegância e honradez:
- Há algum inconveniente nisso? Ela incomoda algum dos senhores?
- Não é isso, Júpiter, mas é muito estranho, – dizia um.
- Por acaso os senhores não acham estranho que se coma carne de animais
mortos? É natural deglutir cadáveres em estado de putrefação? - Os interlocutores
se entreolhavam, - pois os senhores o fazem, - Júpiter concluiu, mordiscando um
naco de cenoura.
Mas, eu dizia, Júpiter Secundus adentrava o salão, ladeado por Saturnia, que
distribuía sorrisos por todo lado. As pessoas se cumprimentavam e os que tocavam
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Tendo o casal saído às presas daquele salão, foi muito difícil provar para o guarda
de trânsito que não eram fugitivos, nem ladrões, nem bêbedos, se bem que a
Senhora Saturnia, entupigaitada de tanto vinho, assolava o quarteirão com um
soluço homérico.
Júpiter Secundus, assoando o nariz, retirou do bolso duas balas de hortelã,
depositando-as na mão do policial que imediatamente abriu passagem para o
veículo. Coisa rara encontrar balas de hortelã, naqueles dias. Obviamente o guarda
teria concluído que o casal emergia da alta sociedade Cassiopena, forçando-se a
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
aceitar o óbolo convincente, a modos de corrupção atenuada pela avidez com que
as pessoas lutavam por balas de hortelã. Além do mais, estava uma noite quente e o
refresco chegava em belíssima hora.
Duas luas no céu. Uma terceira que subia no momento, em minguante, mas longe
do grande amarelo das duas outras. As montanhas de ferro no horizonte e aquela
sensação de calor que brotava do solo.
O guarda, obsequioso, beijou a mão da alcoolizada Senhora, sorvendo no ímpeto,
centigramas de vinho do porto (Porto Mordoqueu em Lira dos Sextantes), olores
que saltavam da boca da mulher, misturado com jorro de vômito e bile. Algo
imperdível. Mesmo, assim ele riu. Vômito de rico é outra coisa.
O casal, porquanto, chegou à casa e aconteceu aquilo já contado no capitulo
anterior.
Na tarde do dia seguinte o mesmo casal se dirigiu à praia e lá, rabo para um lado e
cabeça derramada no colo de Júpiter, Saturnia, desenfreada, vexava a população
praieira com seus dotes físicos exuberantes. Um esperto gritou: - Cetácea! - E se
viu com a boca cheia de areia.
Mesmo assim, outros dois espertos, dois rapazes se aproximaram, apesar e com
pesar da presença de Júpiter. Apesar, pois ainda não haviam notado o marido sob
os cabelos alourados e cobertos de caracóis da já falada Senhora Saturnia e, pesar
dele, pois os dois rapazes já sentiam dó do marido; achavam que o mesmo seria
extirpado do reino praiano a poder de rabos de arraia e sopapos. Os jovens
decidiram jantar a Sereia, quando notaram o marido e tiveram pena dele. E,
sentaram, ao lado dela, suas infames pessoas.
- Como é, peixona, não quer cair na nossa frigideira?
- Não seja escamosa, lagosta do meu sonho, somos “n” vezes melhores do que este
bagre aí do lado, – falou o outro, lançando um sorriso de mofa para o belo Júpiter
Secundus, que tomou a palavra.
- O senhor, me parece, é estudante de engenharia, não é?
- Sou sim, por quê?
- Bem que percebi. Esse negócio de “n” vezes é jargão típico de estudante de
engenharia. “N” vezes pra cá, “n” vezes pra lá. –Secundus pensou um pouco: - Acho
que é a única coisa que conseguem aprender nos quatro anos, já que teem um
raciocínio diminuto e limitado.
- Como é?
- E retardado, é claro. Mas, há coisas piores.
- Ei! Você está nos insultando, seu bubble! - Gritava o outro, que demonstrava a sua
origem latina, dos do Sul. Come back, seu cachorro, come back!
- Mas, eu nem saí do lugar, meu amigo. - Dizia Secundus.
- Você é out, meu velho. Deu tilt no seu aparelho, careta!
Secundus virou-se para a esposa e disse baixinho: - Esse outro deve ser um desses
gênios da informática. Realmente, minha querida, você conseguiu duas espécies
raras, duas figurinhas difíceis para o nosso álbum de enchedores de saco. Que
fazer?
- Deixa comigo, amor, – e a Sereia levantou-se. Busto altivo, seleto par de seios,
ouro em forma de cabelos descendo pelo corpo, escamas que brilhavam refletindo
cinza-rubro-esverdeado e voz de soprano misturada com um pouco de ira e rispidez.
De repente, no ar, o rabo.
De repente, as mãos dos jovens socorrem a região dos frágeis escrotos, atingidos
com rapidez e correção. Júpiter só se preocupou em jogar um pouco de areia na
boca dos inusitados rapazolas, como já o fizera com o esperto anterior,
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ele não gritou, nem proferiu um ai, impossibilitado que estava de efetuar qualquer
movimento bucal, por motivos de sufocação.
- Dessa vez ele desiste. – Dizia, assim, Júpiter, no ouvido de sua Senhora Sereia,
enquanto deitados na rede balouçante dormitavam um sobre o outro a ouvir peças
de velho Claude, envolvidos em temas Sacros e Profanos.
Mas, Júpiter estava errado, pois R.S.V.P. tentou novamente e, desta vez por
telefone. Começou assim:
- Alô! É da residência de Senhora Sereia?
- Sim. É ela quem fala.
- Eu gostaria de que você me conhecesse melhor. Verá que tenho mais predicados
e virtudes do que o seu marido.
- Começa que meu marido é belo e você...
- E, eu?... Não tenha medo... Estou acostumado a elogios.
A Senhora Sereia olhou para o marido e disse: - No mínimo, é louco!
- Está louca por mim, não é? – Completou o letrado.
- Não, não foi o que eu disse. Sinto muito.
- Sei que sente... Não desligue! Não desligue! Eu sou seu. Quero me entregar para
você, – dizia o tarado R.S.V.P., desajeitado e com um trovão de cinismo na voz.
- Azar o seu! Não quero recebê-lo. Você não é para o meu tamanho e necessidade.
Além do mais, amo Júpiter Secundus. Você nem nome têm. Algumas letras e nada
mais.
- É que eu sou um sujeito neutro, quase impessoal. Represento a mediocridade da
população. Não, não desligue! Quero fazê-la mulher.
Sereia segurou o riso, apertando as mãos contra a boca. Falou baixinho para o
marido que, cheio de tédio, ressonava: - Ainda por cima, é uma besta declarada.
E, bateu o fone.
Júpiter Secundus tomou um apito de porcelana e usou-o. Não houve barulho, mas,
em seguida ouviu-se o som de aviões sobre pairando a casa de Júpiter. O teto solar
abriu-se em duas fendas e por ali, numa padiola elegante, o casal sumiu, na direção
do avião.
O aparelho assumiu postura de vôo e alou, sempre para cima, penetrando
velozmente no espaço, com meta apontada para o cinturão de Van Hallen.
O casal saía para férias em Mercúrio.
Na residência, porém, ficava uma ordem. Chamar para a casa o tal do R.S.V.P.,
fazê-lo comer todo o talharim; obrigá-lo a beber o gosmento suco de graviola,
sempre com o pretexto de que a Senhora Sereia de preparava para ele; estava tudo
isso determinado no aparelho de fita magnética pela voz de Júpiter; caso o tarado
não aceitasse o convite, que fosse devidamente expatriado e pudesse praticar, no
exílio, o insigne esporte de contar aves de arribação durante os momentos de
espanto.
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melhor terno, saiu para a rua, adentrou em seu automóvel movido a plasma e
circundou o jardim de plástico emoldurado, tentando obter pistas de sua esposa e,
foi no meio de um canteiro de polietileno que encontrou brilhosa, uma escama
salpicada de orvalho.
- Passaram por aqui, os vermes, - falou para si mesmo. Falou alto, para correta
captação do microfone.
Nisso, um coreto passou a emitir som, através de uma banda que se encontrava em
seu interior, deixando todo mundo pasmo, uma vez que assinalava a presença de
cortejo fúnebre nas imediações.
Para azar da moçada, no mesmo instante, uma raridade. Um casamento. A igreja, –
outra raridade, – bimbalhava suas marchas sineiras, apregoando a novidade do
casamento entre dois seres semelhantes a orangotangos, mas que eram da classe
superior dos primatas originados da estrela 349, para quem olha Andrômeda de
esguelha.
Júpiter observou e sorriu. A morte e o casamento se encontravam na mesma praça.
Houve um momento de mal estar. Os parentes do defunto olhavam os nubentes e
deitavam chispas de inveja, já que a alegria dos noivos era contagiante. A harmonia
da banda, funérea e desalentada se confundia a raio laser. Os noivos e convidados
pararam, num momento, persignando-se, – outro detalhe raro, – assim como quem
evita a má sorte logo no primeiro dia de consórcio matrimonial. Algo similar a um
transtorno obsessivo compulsivo.
Júpiter Secundus observava atentamente.
Houve um bate boca generalizado entre os motoristas dos carros que transportavam
o caixão de metal, e, o casal de pombinhos simiescos, mas em breve, em vez de
fecharem suas bocas respectivas, a multidão de convidados começou a deblaterar,
pois a passagem estava interrompida. Evidente que um acusava o outro de
atrapalhar a sua passagem.
- Morto tem privilégios. Morto tem prioridade para passar!
- O tempo do morto já passou! – gritava outro. – Ele próprio já passou. Agora é a vez
da vida.
- O morto já viveu muito. Agora tem que descansar, canalhas.
- Se ele viveu cansado foi porque não soube viver. Aposto que ele nem liga de
esperar um pouco para ser enterrado, porcos.
- Não será enterrado! Será cremado, seus vadios cara de macaco!
- Pior para ele, morsas dentuças! Sentirá, com todo respeito, antecipadamente, as
labaredas do inferno! (Que também era outra dessas coisas folclóricas, lendas
urbanas, em que só crianças e oligofrênicos acreditavam).
Júpiter Secundus não tirava os olhos, até divertido, do acontecimento e notou, então
um luzir de jóias bastante conhecido.
Empertigou-se na poltrona do automóvel e notou nitidamente que o morto estava
vivo! Mexia-se. Levantava do caixão de metal, derrubava a água do seu interior e
levantava os braços femininos, que se agitavam. Os cabelos dourados cheios de
mechas balançavam dentro da cabine; então, a repentina aceleração do carro, o
jato, a espumante faixa esbranquiçada que torrou três postes, fez com que o
aparelho subisse para o espaço, sob o olhar abobalhado do casal de micos gigantes
e parentela movida a empadinhas das bodas.
A Senhora Sereia estava naquele carro, nas Júpiter Secundus não pode agir em seu
favor.
Estalou os dedos e voltou.
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- Ela é minha, já disse! – Gritava o insigne R;S;V;P; sem tirar os olhos da moça que
dormia.
- Sua coisa nenhuma, seu trapalhão! – Esperneava um dos engenheiros, fazendo
imensa força para parecer inteligente e sagaz. Andavam sempre em dupla para que
as falhas de um fossem sanadas pela do outro, se pudessem. Semi-pessoas.
- Calem essa boca, seus animais. Ela não é de ninguém. Ela é nossa! Ela é produto
comum. Ela pertence a todos nós, igualmente! – Exalava berros fóbicos a Dona
Cacatua de Souza, enquanto distribuía, também igualmente, uma torrente de
pontapés e pauladas em variadas cabeças, principalmente na do marido que estava
quieto no canto, apenas a babar.
- Porém com isso, seus birutas! Todo mundo vai perceber que estamos roubando a
peixa! – Gritou o guarda.
- Não grite você, velhusca! Gritou o marido ainda alisando o belo garnizé que lhe
nascia na cabeça.
- Porra! Mas que gritaria é essa. Calem as bocas nojentas ou vão descobrir nosso
esconderijo! - Gritaram os engenheiros, calibrando o braço para apagar as mãos
volantes do galanteador R;S;V;P;.
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E, com toda a gritaria que se amou naquele circo, a Senhora Sereia acordou, mais
do que nunca e aproveitou para escapulir e pular nas águas do mar Tramulian, logo
ali em frente, dando um salto sobre o rochedo escarpado.
As águas lhe davam forças.
No entanto, na sua cola, seis personagens ganhavam o violeta das águas e, por
tudo do mundo, tentavam agarrar a cauda de escamas, mas, era quase impossível,
uma vez que escorregava como se estivesse recoberta com óleo.
De repente, deslizando na superfície do mar, um surfista surge; esbelto, barbas ao
vento, desparafinado, – afinal ele achava coisa de palhaço, esse negócio de
parafinar o cabelo, – usando uma roupa similar à de Tarzã, Rei dos Macacos, eis
que aparece, tridente na mão, olhar arguto, óculos de tartaruga, prancha cadilac,
cercado de golfinhos e caranguejos vorazes, Netuno Possidônio, que aos apelos de
Júpiter Secundus, seu primo Olímpio, aparecia para auxiliar no salvamento da
esposa do último.
Avassaladoramente Netuno encarregou os botos de levarem os sequestradores para
mais longe, enquanto ele, completamente alheio aos avolumados e alisáveis da
Sereia, erguia a peixa, a prima, da água e zarpava para a esquerda mergulhando
em volumes de oceano.
Os perseguidos retornaram para a cabana.
Exaustos. Combalidos. Sorvendo o ar com dificuldade.
Mas, o policial, sempre prestando atenção, apontou para o horizonte.
- O que foi? - perguntou um dos engenheiros.
- Ali? Na direção daquela luz.
- Lavandeiras.
- Não! Mais além. - Apontou o policial.
- Já olhei “n” vezes e não vejo nada. Alguém vê alguma coisa?
- Aonde? – Dona Cacauta de Souza pretendeu participar da observação, arrotando
bons olhares e percepção aguçada, valores que trazia desde criança. Coisa de
quatro séculos.
- Já mudou de lugar. No céu. Vem deslizando.
- Estou vendo! Estou vendo! Ali, no meio de “n” estrelas.
- É um foguete?
- Não, é um avião.
- Não, é um passaralho!
- Passaralho, o catso, - gritou Júpiter, viajando com um voador–surfante, e, não
sabendo como parar a prancha arrebentou a cara contra as paredes do casebre.
Quando os seis se aproximaram encontraram o bem apessoado homem fora de
combate, dentro de um dos guarda-roupas.
A contra gosto, Júpiter Secundus, cognominado o Belo, teve que ficar e, preso
naquele lugar durante horas e horas, mesmo porque estava amarrado até os dentes.
Isso tudo apenas três dias depois da aterragem forçada a que se viu obrigado, por
obra e mérito da incompetência sua mesma na condução de voadores–surfantes.
Durante os três dias ninguém soube a que espécie de ultrajes teria sido subordinado
o Júpiter, mesmo sabendo que estava desnudo e uma leve sensação de
embriagues. Além do mais, todo momento que olhava para Dona Cacatua de Souza
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percebia que ela passava a língua pelos lábios assim como quem diz: - E, você nem
percebeu...
De qualquer forma pensava em sair, mas foi ficando, pois esperava o inexplicável. A
índole de Júpiter era a daqueles que confiam na natureza e suas leis sábias.
Quando vinha surfando pelo espaço notou que uma enxurrada de meteoritos
deslanchava suas pétreas presenças na direção do pequeno astro; mais dia, menos
dia a superfície da lua de Rorpal ficaria crivada de buracos, incluindo seus
habitantes que certamente seriam aniquilados com a violência do enxame de
pedras.
Era óbvio que gostaria de ser testemunha do evento estando já em órbita e nunca
sob a chuva que se aproximava. Calculou que Dona Cacatua seria de ótima ajuda,
então.
Contudo, Pavão Misterioso, cheio de enigmas e artimanhas aprendidas com
R;:S;:V;:P;: (dono agora de dois pontos e uma singela virgula e nenhum ponto de
vista), ousou tocar no ombro esquerdo de Júpiter, tendo que imediatamente que
desistir da idéia, amolecido subitamente pela guarda–chuvada muito bem aplicada
pela indigna esposa Cacatua de Souza, mulher dominada pelos lúbricos desejos de
Vênus, tomada de indiscutível paixão pelo prisioneiro Júpiter, cognominado o Lindo.
Um dos engenheiros entrou correndo no casebre, no momento em que o Pavão,
estatelado no chão, declamava Os Amores de Bocage, de trás para frente dando
soluços a cada soneto terminado.
- Eu vi! Eu vi! “N” bolinhas brancas no céu. Todas com rabo!
- Bolinha branca com rabo?
O da Informática olhou para todos e disse:- Não sabem do que se trata, seus
“inguinorantes”? São fenômenos atmosféricos. “N” deles. “Inguinorantes”.
Imediatamente Júpiter Secundus, cognominado O Bonitão, chamou para o lado
Dona Cacatua de Souza e disse: - Preciso de sua ajuda.
- Qual? De que forma? De que maneira? Tem alguma idéia? – Sempre mantendo a
aparência de quem não se interessa, apesar da baba que escorria da sua boca
vermelha. Júpiter conteve o sorriso.
- É o seguinte. Eu gostaria de ver o fenômeno, cara senhora. Mas, veja bem. Estou
indefeso e amarrado. Porventura a senhora não gostaria que eu me livrasse dessas
amarras?
- Eu gostaria, mas..., – aparentemente sem querer ela desabotoou a parte de cima
da blusa cáqui. Não vale a pena citar o que surgiu daí, pois ofenderia todos.
- Pense bem, dona Falcatrua...
- Cacatua, por favor... Cacatua... Cacá... para você.
- Pois, bem, Dona Cacatua,... Caczinha... eu... Eu até lhe daria um... Um pirulito.
Ela arfou, fazendo desabotoar mais um botão (é claro, pois desabotoar zíper é muito
mais difícil); sentando-se ao lado de Júpiter Secundus, cognominado A Belezura
falou:- Quero outra coisa. Do seu pirulito eu já provei...
- Enquanto eu dormia sem consciência?
- ... E aprovei, – completou balançando a cabeça.
- O de hortelã?
- Por que, tem outro? – ela perguntou bruscamente.
- Tenho sim. Não quer?
Um filete de saliva desceu dos lábios de Dona Cacatua de Souza enquanto o senhor
Pavão Misterioso atravessava heróico o Barão assinalado, o engenho ardente e, o
valor alto se alevanta, já em continência então, diga-se, urinária.
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EXTERMINEM A PALPALIS
(uma novela letárgica)
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2)...dezesseis horas, dez minutos, oito segundos... TUN... TUN... TUN... e, Gabreol
olhava para dentro dos olhos solferinos da moça do balcão. Elizabeth era seu nome,
filha de um alfaiate de Arceburgo. Ela apertava e desapertava uma folha cheia de
nomes e números telefônicos, até que os amassou e jogou o bolo fora.
- O senhor, o que deseja?
- O avião para a Hungria... eu queria saber...
- Já partiu meu senhor, há exatamente....
- Como partiu? Não é possível!
- Acredite senhor, é bem possível.
- Ele não iria sair às quatro?
- Mas, são quatro e onze, meu senhor, se é que pode enxergar aquele relógio
instalado na...
- Sempre atrasa um pouco!
- Mas, hoje, saiu na hora. É melhor se conformar. Os tempos mudam e as horas
também. Eu mesmo o vi subindo como um alfinete veloz lá para o céu. Precisava ver
que bonito!
- O que eu faço, agora? – Gabreol falou alto, como quem não quer ser ouvido.
- Que tal um chocolate!? É lá no balcão... servem um delicioso chocolate quente,
um chocolate alsaciano, muito delicioso mesmo, de ótimo sabor e poder alimentício.
O senhor conhece as propriedades do chocolate?
Gabreol olho-a intensamente e percebeu que os lóbulos de suas orelhas eram
grudados (quer dizer, a mocinha além de chata era recessiva) o que o fez lembrar
perdidos conhecimentos de biologia. Sempre ficava importunando o professor na
hora de fazer o heredograma, atrás da ascendência, atrás do pedigree,
questionando sobre seus olhos castanhos, uma vez que seus pais tinham
puríssimos olhos azuis. Mesmo assim respondeu para a mocinha do balcão:
- Com esse calor? – e, orlado de fragrância aveludada dos que dizem frases sábias,
saiu apressado para o outro lado do guichê. Decidiu-se pelas AeroLinhas Africanas.
Deixaram de lado os ares da Europa para identificar-se com as plagas ressequidas
da África Tropical – Equatorial. Compreendeu que ao perder o avião recebera um
aviso inequívoco. Era preciso mudar de tática.
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rapidamente como que temendo que Umla pudesse perceber sua ignorância em
termos de PALPALIS. Só mais tarde pode lembrar que um dia conhecera aquela
peste nos laboratórios do grande mestre Otílio, um misto de poeta-parasitólogo ou
parasito–poetista, que lhe ministrara rudimentos do mosquito Glossina palpalis. Mas,
já se fazia tarde, como eu já disse. E, para deixar bem claro aos leitores, era tarde
demais.
7) A pior parte no sonho era quando Gabreol se via obrigado a ceder seu lugar para
a velhinha no ônibus. Do resto nada mais trazia mal estar, apesar de que muitas
vezes ele, com mesuras, saia dançando com uma foca em pleno vendaval.
Pospichal o acusava de ter enganado vários surdos–mudos dizendo que aqueles
fones de ouvido não permitiriam a entrada de formigas em suas cabeças. De resto,
reintero aqui, nada mais o alarmava. O sono era propício e parecia não mais acabar.
A letargia adormecia o corpo de Gabreol e levantava-o em levitações do tipo pérfuro-
cortantes em relação ao teto do quarto, o que fazia correr um boato sobre a
existência de um novo místico ocupando o quarto 543 daquele hotel. Apenas Umla
estava triste, pois muito bem ela sabia que seu amado caíra num poço quase sem
fundo e, ela nada podia fazer a não ser segurá-lo quando levitasse pelo quarto.
As vacinas eram distribuídas pelo corpo de viajantes, tentando criar um sistema de
defesa contra alguma coisa que ninguém sabia direito o que era. Puro chute. Nem
mesmo uma boa buchada áspera passando pelo corpo de Gabreol poderia retirá-lo
da imensa nuvem sonífera em que se escondia.
Parecia o fim. A tragédia final de todas as tragédias. Extrema judiação para quem
não esboçou nada a favor da libertação mundial ou da ascensão do nazifacismo. E,
além do mais, como ficariam os banhos caso não existissem as buchas tão leves e
portáteis que agradavam a todos e quaisquer hindustanês?
Umla pensou numa saída. E, saiu. Dirigiu-se ao escritório de Dada Tunke, que era
um feiticeiro formado em Cambridge, justamente para dar um valor, ou melhor,
dizendo, uma conotação mais científica às suas invocações. Contou-lhe a história.
Normalmente o curandeiro pediria para que a jovem dormisse com ele, mas, devido
a próspera educação britânica recebida, evitou tocar no assunto, o que aliviou a
moça, mas não chegou a aliviar o feiticeiro.
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Dada prometeu ajudá-la contanto que ganhasse, por baixo do pano, algumas
buchas a mais. Umla concordou prontamente, saindo do escritório com um sorriso
nos lábios e um visível sinal de contentamento na face e no modo de andar dirigiu-
se ao quarto do doente.
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10) É escusado dizer que, restabelecido Gabreol (agora sempre junto de Umla) o
casal tomou seu avião para a Hungria onde tentariam encontrar o dedo–duro do
Pospichal e, sim, viveriam livres para sempre. No entanto, é necessário afirmar que
a junta de Conselheiros de Cambridge, - sabendo do ocorrido em terras d’África, -
caçaram a licença do inescrupuloso Dada Tunke que, atualmente, trabalha como
engraxate na Rodésia onde esporadicamente faz mágicas para a criançada do
gueto. E, finalmente parece que a PALPALIS medonha permanece imbatível até o
momento; espera-se que as autoridades sanitárias venham a descobrir que tipo de
papalicida encontra-se embutido nos líquidos salivares das pessoas como Umla, já
que aplicações diárias, via oral varias vezes ao dia, parece ser a posologia
adequada, ate o clímax chegar.
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AULAS DE DIREITO
DO DOUTOR BUSTAMANTE
(uma novela legal)
2) “Por outro lado temos um assunto deveras importante que é o Jus Pudendi que se
explica pelo direito de se punir um Estado que teima em abaixar as calças para outro
Estado, segundo, o dito popular que é mais enfático nesses casos (os alunos riram)!,
ou seja, quem abaixa a cabeça acaba mostrando a bunda... e bunda descoberta... já
viu, n’é?! - (o professor Bustamante fez um estranho movimento com um taco que
ele usava para apontar frases na lousa):
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- Vejam só! - disse ele, todo engraçadinho, com as bochechas refletindo um tanto
de rubor senil, - vejam só! Tudo isso está ligado às fórmulas da política
internacional, - e, depois de uma coleção de pigarros tonalizados no cromatismo, -
finalmente, caros alunos, devemos, por hoje, falar em Direito Penal Verbal e
Adverbial. O Verbal é transcendente, aplicado pelo Divino Espírito Santo, apenas
nos casos em que o Réu acredita Nele.
Bustamante elevou o dedou minguinho para o céu.
- Conjuga-se em uma e total pessoa. O Adverbial, por seu turno é relativo aos
demais que gritam ao redor do Uno (a voz de mil águas) e, é aplicado por Anjos,
Arcanjos, Querubins, Serafins, Tronos e Potestades e demais poderes celestes,
guardando a devida hierarquia. Por hoje, então, é só. Se ninguém tiver dúvida, um
abraço e até amanhã.
Doutor Bustamante saiu com ares de pavão e passo de ganso nobre.
4) Jogando bridge com seu grupo de velhos amigos da faculdade, fósseis da época
de formatura, dinossauros oculares e bigodulares metidos em fungosas roupas, uma
e outra múmia com charutos e cachimbos dependurados na dentadura, o nosso
falso herói, falso fidalgo, saiu-se com esta, para espanto dos interlocutores:
- Dia desses bolei um sistema de estudos forenses que recebeu o nome de
Tricotêmico. Explico o por quê da cousa. Dividi o tal sistema em crime, delito e
contraversão penal. No sistema tricotêmico, o crime é cometido com o uso de
agulhas de tricô. No delito ocorre quando o criminoso empunha pedras pontudas,
por causa do radical grego e, finalmente, no caso da contraversão penal, tem a ver
com relações e intercursos íntimos com galinhas...
- As alunas?
- Galinhalunas?
- Que aulas, Bustamante? – um amigo das antigas falou.
- Na minha aula de ontem.
- Não é aquela que você vem repetindo todo semestre, desde mil novecentos e
nada?
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6) - Crime preter boloso: o agente quer um pedaço de bolo, mas não tem intenção
de fazer o bolo. Muitas vezes pó alergia a farinha. Existe bolo no antecedente e
desculpa no conseqüente.
- O que é dolo, mesmo, professor Busta...
- Não é dolo, paquiderme! É bolo... Bolo... e, vai me dizer que você não sabe que é
bolo? Continuemos. Não sei o que vocês fazem aqui! Não estudam? Continuemos.
Bustamante parou, pensou, pigarreou.
- Bolo eventual: o agente não quer o bolo, mas aceita-o assim mesmo, é um egoísta.
Se recebe como óbolo é um oboísta. E, temos, finalmente, o bolo direto, quando o
agente quer o bolo na boca, sem precisar por as mãos nele. Alguma pergunta?
- Professor Bustamante, o que é crime putativo?
- Olha, senhorita, é bom nem falar nele. Imoral! Imoral! Não é assunto para meninas
de sua idade... aliás, nem sei o que é que mulheres fazem na minha aula..., – virou-
se para a sala. – Mais alguma coisa, morcegos? – um rapaz levantou a mão.
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A história seria muito mais comprida se, num ato de bravura, o vento vindo não se
sabe de onde, não tivesse tirando metade das folhas das mãos de Bustamante. Para
ser exato, em torno de duzentos e cinqüenta e sete folhas que sobrevoavam o
recinto numa festa.
De qualquer forma, o advogado, brandindo o dedo no ar como Cícero, solapando o
ar com seu braço amortalhado de roupas negras como Nero ensandecido, um
mortalha desenhada em bonito negro gótico, cuspindo no ar a sua salivar
verborréia, gritou alucinadamente:
- Capitis diminutis! Eu exijo a volta da tribal diminuição de cabeças, para o
aprimoramento da moral comburida. (e sem perder a compostura) Capitis diminutis
máximus! A perda total da mesma, horrenda cabeça pecadora fomentadora de
idéias e rebeldias.
Pigarreou.
- Caros amigos, confrades, colegas de profissão, lutadores do supremo Bem e da
legalidade. Conclamo-os a se prenderem aos dias de Pompéia, da grande Roma,
dos Césares. As origens, quando o crime era realmente punido, com rigor, com
veemência. Naquela época, o crime de “falo” era claro: o criminoso matava a cobra e
mostrava o pau e ia preso, sem condições. Não é como hoje, quando até as
mulheres são machos e matam a pau!
Bustamante ainda limpou um pouco do suor que descia como cascata, se bem que
se uma cascata fosse como o suor seria uma pequena cascata. E o doutor
continuava:
–Aqueles casos interessantes do homem que matava lendo muito, nos termos do
crime plurilesivos ou, então, nos crimes da animalidade, onde citamos os criminosos
como se fossem terríveis monstros que matavam com o nariz, na forma veríssima de
tucanos alucinados, são formas que não encontramos mais; aqueles casos,
senhores, estavam sob a lei; a Lei se impunha com a mão de ferro! O corpo
estranho na urina do civil, nas formas do Corpus uris civis, eram fatos de clara
concisão para o magistrado, para o próprio promotor, fosse ele urubano – com
autoridade indubitável sobre urubus, - fosse ele questor. Naquela época não havia
diferença entre questores, mas apenas entre os castores. Os primeiros eram
magistrados encarregados em relações às finanças do estado e os últimos, tanto
dantes, como atualmente, simples mamíferos roedores. Tudo claro, límpido,
cristalino!
Bustamante pigarreou e alguns convivas aproveitaram para enfiar a cabeça debaixo
da mesa.
- O direito púbico se interpretava à luz vermelha das casas das meretrizes... (olhou
para o alto como em devaneio)... nestas casas os juízes se reuniam... todos os
famosos togados da época, mãos esparramadas nas tetas das mulheres públicas,
coisa altamente púbica, meus amigos, onde todo mundo podia por a mão, se
quisesse, apesar de íntimo. Um direito privado, no entanto, era o que todo mundo
devia usar por si só e no recôndito de seus lares... puramente cúbico.
A essa altura muita gente saia do recinto e outros pediram telefone ou taxi.
Bustamante, porém, era puro ardor, vento puro de palavras e letras que escorriam
copiosas da cabeça fundida em gesso do passado e, o que era pior, não parava um
segundo de falar.
- A Lex Catuléia, companheiros de Leis, permitiu o casamento entre cães e gatos,
num ato puro de evolução zoológica da jurisprudência. Notório! Numa época onde
havia muito boi da ralé, os conhecidos pleibois, era necessário que não se ficasse
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
em teorias, mas, também, que se fizesse o acionar das Leis e promulgação delas,
impondo-as com, braço forte.
Bustamante atingi o ápice da palratória. A calça molhada de suor e sêmen, num
clímax que durava já um quarto de honra.
– Em pleno século IV A.C. aparecia para nós as maravilhas da Leis das V Tabuadas
que diziam assim, meus irmãos: I- Se for chamado a juízo, vá. Se ninguém for
chamado, por que se fez tanto barulho, então? II – Se por acaso não quiser ir, não
vá, mas, depois não reclame se o apedrejarem. III - Se por acaso quiser fugir, fuja.
Não faz mais do que a obrigação. IV – Se está doente ou é doido e ainda comete
crime, é um jumento. Três chibatas no lombo. V - Se no caminho da prisão o
criminoso acordar, cacete nele.
Nesse momento, vindos através das paredes, de todos os lugares, vários seres
vestidos de branco pousaram sobre o irrequieto Bustamante. Não, não eram anjos,
nem ninjas do bem, mas, enfermeiros. Eram os comandos de Henrique, o Bom,
psiquiatra, médico, acupunturista e podólogo que mantinha um campo de concen...
ou melhor, um hospício comum para os lados da praia de Jurubeba, em local de
difícil acesso, a não ser que se soubesse manipular uma asa delta ascensora. Coisa
de louco, mesmo!
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A VOLTA
DO FANTASMA ELESBÃO
(uma novela bárbara)
1) O conto que hora vai e hora vem nunca termina tem seu início neste momento
de modo que pedimos aos caríssimos leitores que marquem em seus relógios o
horário de início da leitura.
O folhear calmo, sem exasperações, pode ser precioso para o bom entendimento
desta história de uma personagem fictícia, às vezes sobrenatural, às vezes sub-
natural, às vezes semi-desnatada. Queremos falar de Tartamunduel-Elesbão, o
espírito das cavernas e das covas escuras; dos cantos ignotos e das grimpas
soturnas; das locas febris e das frinchas agudas. Espírito que hoje prefere vagar
pelas ruas das cidades, que no final das contas, é a mesma coisa.
Não se envergonhem de dizer que gostaram do conto.
O escritor está acostumado com isso.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Por essa razão, Elesbão, o Mefítico, como gostava de ser chamado, desprendeu-se
dos amigos e companheiros para sobremorrer nas dependências do castelo abadia,
pois não suportava choro de vivos. O Sr. e Sra. De Birrostrat eram os privilegiados
donos do castelo-abadia cuja face principal dava de cara com o Mar da Noruega.
Vale também dizer que no começo da aparição do fantasmagórico Tartamunduel, o
Porco, como gostava de ser chamado, o Sr. De Birrostrat tentou vender o castelo
muitas vezes pois não suportava mais o cheiro de cebola que exalava do periespírito
do recém-morto e, não poucos foram os momentos... - talvez com o propósito de
ofender Elesbão- ... que o Exmo Sr. De Birrostrat dizia ter conhecido várias falanges
de fantasmas sem que nenhum deles fosse tão fedido àquele ponto. Fato que
impossibilitava a convivência. Outros sugeriram que periespírito era coisa de índio,
em especial do índio Peri, mas ninguém acreditou numa bobagem dessas.
Tartamunduel-Elesbão, o Moqueado, como gostava de ser chamado não se fez de
rogado: parou de exalar o cebolóide aroma e passou a espalhar um forte cheiro de
alho que impregnou cada recanto da abadia. Isso, em 1545, foi chamado de
“Movimento Revolucionário Allium cepa mutandis Allium sativum” que logo caiu no
esquecimento tanto por causa do latinório como por causa da Inquisição.
É, no entanto, importante que o leitor conheça porque Elesbão havia escolhido tal
abadia para passar o resto de seus séculos. E isso eu conto agora,
Alguém disse que pretendia, Tartamunduel-Elesbão, o Jumento, como ele gostava
de ser carinhosamente chamado, tornar-se herdeiro daquelas terras, quatrocentos e
cinqüenta anos depois, levantando bom lucro com a especulação imobiliária dos
tempos modernos, inda mais, de frente para o Mar do Caminho do Norte; eu, por
meu turno, sem tomar partidos, fico obrigado a desmentir tais boatos já que sei o
verdadeiro interesse de Tartamunduel. Algo nada menos do que certa dívida, sim,
mas de outra origem, com outros valores e SPCs diferentes. Valores cósmicos e
cármicos. Resgate de erros pretéritos como queria o irascível Tartamunduel, o
Irascível, como ele não gostava de ser chamado.
O destino batia à porta de Elesbão.
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comiseração. A certa mulher logo viu que aquele especialista era seu ideal para
cônjuge e propôs-lhe consórcio marital.
Birrostrat pensou muitas vezes, comparou valores de passado e futuro longínquos,
propôs idéias importantes e decidiu que o consórcio tinha lá a sua razão de ser;
para, no entanto, não deixar seu trabalho de observador ao léu, pediu àquela certa
mulher que escrevesse o pedido de modo mais formal, numa daquelas pedras boas
fabricadas no pais de Chêmi onde o barro chega a ser sagrado.
Laboriosamente, durante algumas luas, a certa mulher debateu-se com o
pensamento até ordenar adequadamente uma série de frases que soassem entre o
jurídico e o amoroso, de modo que a petição-carta começava dessa maneira:
- Venho por estas mal traçadas linhas ousar reclamar junto ao emérito observador
da natureza... (algum termo jurídico)... de modo que, apesar do espírito frio da
escrita cuneiforme, pretendo expressar aqui o quanto me aproxima o meu pensar do
pensar de vossa pessoa... (algum outro termo jurídico)... porquanto hei de lembrar-
vos das minhas virtudes orgânicas e espirituais, as quais serão completamente
compartilhadas com o excelso senhor... (mais algum termo jurídico)... reafirmando
grande respeito e alta estima. Nestes termos pede deferimento. Data. Assinatura.
Ora, tal trabalho foi dispendioso, se bem que um escriba renomado a ajudasse no
mister; via-se pelas olheiras que orlavam, evidentemente, os olhos da certa mulher,
que ela estava exausta, coisa que somente seria recuperada com dieta bem
balanceada e reforçada com leite de búfala e muito trigo. O problema surgiu quando
Birrostrat, através de um lacaio, mandou devolver o requerimento com um carimbo
de indeferido.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
que de maneira nenhuma significava que o rei estava no calabouço, como era de se
esperar).
Lá ela poderia refrear seus ânimos e colocar a cabeça no lugar, mas, não foi isso
que ocorreu. Na verdade ela perdeu a cabeça. A certa mulher optou pela loucura.
Antes, porém, deixou bem claro que um dia e, repetiu, um dia voltaria para vingar–se
(o de sempre) de Birrostrat (claro, de quem mais?), e sua descendência (aí já era
exagero da pobre), estivesse onde pudesse, fosse como acontecesse.
Após longas peregrinações pelo Cosmo, de vida em vida, na captura do observador
da natureza, deparamos a certa mulher renascendo, vivendo e morrendo sob a pele
de Tartamunduel – Elesbão, o Sujo, como gostava de ser chamado, fomentador de
nojos e imprecações dos mais variados tipos que, naquela época de 1545 A.D.,
assombrava magnificamente o castelo do Sr. e da Sra. de Birrostrat, como um
abantesma da mais baixa qualidade.
Nem correntes o vagabundo carregava.
5) – Eu sou o Elesbão!
A voz ecoou pelos corredores úmidos da Abadia. O Sr. de Birrostrat começou a rir
sem peias. Nunca se divertira tanto desde que empalaram o Conde no meio da
floresta cinzenta.
- Eu sou Elesbão, cacete!! É surdo, miserável?
Birrostrat parou de rir porque aquilo já ia longe de mais. Uma evidente falta de
respeito para com os demais fantasmas da casa, fantasmas doutos, fantasmas
espiritualizados... muitos espectros antigos, ali aposentados. Crias do castelo
através de custosas e longas noites de tortura e sofrimento no esticador de
membros, ou no garrote vil; alguns desencarnados sob simples machadadas nos
dedos. Não se podia permitir que o intruso agisse de tal forma. Birrostrat resolveu
interceder a favor da organização tumular, berrou no meio do salão:
- E daí o que você quer que eu faça?
O eco perdeu-se nos corredores.
Houve um silêncio, como se o fantasma de Tartamunduel rabiscasse em sua mente
sinais miraculosos de lembranças e planos. Então disse, com a característica voz
dos espíritos melodramáticos, novelescos, rochesterianos:
- Por acaso o Sr. não se lembra do episódio dos Silurídios?
- Silurídios? Não... Nem sei o que que é isso.
- É bagre... bagre! Seu palhaço. Nunca comeu bagre na vida?
- Aaaaaanh! - gemeu Birrostrat, fazendo uma daquelas faces de entendedor que
nem mil palavras bastam. – Bagre? Claro... Claro que comi. Aqui mesmo no mar da
Noruega...
- Tem muito, não é?
- É.
- Mentiroso!
Ato contínuo Elesbão cuspilhou um pouco de vento com aroma de alho no rosto de
Birrostrat e continuou:
- Meu caro observador da natureza com sentidos embotados, como vai sua esposa?
O enfeite que perambula diariamente pelo castelo, não lhe dá trabalho algum, não
é? O enfeite só se desrecalca quando há diversões no pelourinho do burgo, não é?
Ou, então, solitariamente, enroscada no meio de tantos vestidos e saiotes,
escondidinha no banheiro. Mas, digo a você, verme, que foi através dela que
preparei minha arapuca. A arapuca que o manterá sob minha custódia durante uns
bons pares de anos.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Neste momento Elesbão deu uma sonora gargalhada. Birrostrat encheu–se de terror
e, bem baixinho, pôs-se a rezar um salmo, tentando se safar de tormenta tão
embaraçosa. Ainda teve força para dizer:
- Mas o que é que eu tenho a ver com o peixe?
- Muito bem meu caro.
É desnecessário dizer que Tartamunduel – Elesbão, o Grosso, como ele gostava de
ser chamado, ficou espantado com a perspicácia do amedrontado abade.
– Sim, o peixe, o bagre já referido. Ele servirá como garantia de que cumprirei
minhas ameaças. Lembra-se dos vassalos de Alekssander? Lembra–se? Que teriam
eles comido a mesa? Naquela ceia para caírem intoxicados à beira da estrada?
- Sim, eu me lembro. Todos os coscuvilheiros da Europa espalharam a notícia.
- Peraí. Agora você me pegou. Que que é coscuvilheiro?
- Intrigantes, mexeriqueiros, boateiros, Seu Fantasma, - Birrostrat respondia com
perito ar servil.
- Muito bem, minha cara vítima. Só que não foi boato, coisa nenhuma. Nem mentira.
Saiba que à minha mesa os vassalos foram obrigados a comer bagre, meu caro,
bagres crus; tenros, frescos... mas, crus. Com olhinhos e tudo. Com escamas, cauda
e buchada, meu caro, como manda o figurino ou cardápio do melhor abutre –
gourmê.
Birrostrat sentiu que a saliva chegava mais espessa ao seu paladar; que algumas
pequenas gotas de suor frio faziam cócegas no seu queixo, no entanto, continuou a
ouvir a arenga de Tartamunduel–Elesbão, o Psicopata, como gostava de ser
chamado; não tinha força suficiente, nem coragem a bem verdade, para escapulir
dali, daquela presença invisível, graças ao medo e também ao imenso bolo de
matéria fecal que se havia formado sob a calça de veludo.
- Foi por isso, meu caro perseguido, que havendo os vassalos vomitando sobre a
mesa, no começo da refeição, até se adaptarem ao novo pasto, ganhei a alcunha de
Mefítico, que pega bem paca; acreditando que você venha a acreditar nesta história
uma vez que sou, nesse momento, assessorado pela conveniente argumentação
que lentamente se instala debaixo de suas distintas vestimentas. Estou certo?
Nova gargalhada provocou um esvaziamento total e completo de tubo intestinal do
Sr. de Birrostrat que já não tinha outro remédio a não ser pedir antecipado perdão.
- Mas para que tanto ódio, Seu Fantasma?
- Pergunte ao seu dromedário predileto abade banana.
- Juro que não estou entendendo!
- E, ai de você! se ousar levantar a voz contra minha espectralidade outra vez.
Começaremos uma sessão de alimentação a partir de toda a fauna do lago aqui
perto, sem esquecer dos crocodilianos. Saiba, Birrostrat, que você só ganha
enquanto espera sua vez chegar.
- Não!
- Sim!
- Não!
- Sim!
- Não!
- Sim!
E ficariam nisso se o escritor não interferisse.
- Não! Misericórdia!
- É tarde, é muito tarde, eu já vou indo. Eu preciso ir embora. T’ é manhã. Mas não é
plágio. É citação.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
7) E por falar em manhã, o dia seguinte chegou trazendo também para os lábios de
madame de Birrostrat um doce sorriso por causa dos acontecimentos da noite. É
que após a tempestuosa conversa do mortal com o morto, como sabemos, o Sr. de
Birrostrat foi presa de ligeiro transtorno entérico, o que o levou rapidamente para a
alcova e, dali para o reservado nauseabundo no fundo do corredor. Ocorre que a
partir daí surgiu um imprevisto na rotina do casal.
Toda a noite a madame de Birrostrat era a última a se recolher ao leito, pois ela se
perdia em arranjos que mais adornassem os seu castelo; como o desarranjo do
marido fora de ampla magnitude, ocorreu uma troca de horários, de modo que ao
deitar-se a mulher do Sr. de Birrostrat apercebeu–se sozinha sobre a cama,
levando–a a pensar no consorte, o que era raro.
Ora, na solidão do castelo o que mais se ouvia era um grupamento de barulhos
desde os infernais gritos de almas danadas até o coaxar de sapos perdidos na
umidade da masmorra. No entanto, a madame, por bem, apurado o ouvido, pôs–se
a discriminar uma nova gama de vibrações desconhecidas. Vinham do fundo do
corredor e ela podia notar que eram sons emitidos pela boca de seu marido; algo
entre lamentoso e lúbrico, constrito e profundo; às vezes agudo e animalesco.
Imediatamente lembrou–se – algo perdido na memória - de que só ouvira tais sinais
e sintomas a noite de núpcias com o Sr. de Birrostrat, o que a colocou
respectivamente fora de si, prevendo que o marido preparava-lhe uma de suas
surpresas anuais.
- Mas, ainda é tão cedo... – falou para si mesma, entre sorrisos e vermelhidões. –
Geralmente só acontece no Inverno.
Concluiu, por fim, que seria melhor não se preocupar, repetindo para si que à cavalo
dado não se olha os dentes, monta–se e (rindo) cavalga–se. Aproveitou e treinou
relinchos e jogos de anca.
Cá entre nós, deve–se acrescentar que o problema de Birrostrat era bem outro; não
pretendo me introduzir muito na questão, o leitor é bastante arguto para entender
que o observador da natureza gemia por causa dos estertores e dos borborigmos
flatulentos que acometiam suas misera constituição; não pouca vez, pensou em ser
pilhado por um e outro fantasma amigável opinando sobre o mau cheiro que exalava
continuamente de tão incompreendido tubo gástrico.
Uma hora mais tarde, pouco melhor das cólicas, e após ter tomado um bom copázio
de Boldo fragrans; vê–mo-lo de volta ao quarto com a completa certeza de que
encontraria a mulher deitada e livremente flutuante nos braços de Morfeu. Porém,
péssima surpresa o tomou quando ao pisar no tapete do quarto e subir os degraus
da alcova percebeu que sua esposa estava nua!
Ó! Nua!
O autor fica nesse momento com o direito de omitir descrições que talvez devam ser
indeléveis para as mentes de alguns que venham a tomar contato com a história de
Tartamunduel-Elesbão, o Josta, como ele gostava de ser chamado. Sabemos de
antemão que é possível que pessoas dotadas de calças curtas mentais ou pés
descalços morais, no descuido, passem a ler tal romântico enlevo, o que seria
pernicioso para a formação juvenil, quiçá, adulta.
Outrossim, fica aqui a opinião do renomado barão de Itararé, já valorizado em outro
conto, que dizia ser muito melhor ter um galo no terreiro do que dois na testa, de
modo que ousamos dizer em paralelo que é melhor sonhar com o que se gosta do
que constatar, na realidade, que o que se gosta não presta.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
Podemos dizer que foi uma noite agradável para ambos, ou seja, para os três: Sr. e
Sra. Birrostrat e, Elesbão, que ficou olhando a pugna.
8) Não só olhando.
Com a ajuda de outros desencarnados vagabundos por ali, Elesbão, o Sujo, como
gostava de ser chamado, procurava o máximo possível interferir no coito. Diga–se
de passagem, o conseguiu. Aproveitou o momento propício do encontro celular fatal
para promover uma nova formação germinativa e enveredou zigoto adentro,
habitando definitivamente o que mais tarde seria um corpo humano. Ele,
Tartamunduel, antiga apaixonada de Birrostrat, seria nada mais nada menos do que
seu filho, herdeiro de tudo e de todos.
- Não é assim que se vinga adulador de camelo?, - ecoou nos espaço a voz
tronitroante de Elesbão, o Encarnado.
Para júbilo dos moradores do castelo, desaparecido aquele fedor de cebola
misturado com alho, os visitantes começaram a se apresentar com maior freqüência
do que antes. As festas se repetiram ao longo do Inverno, enchendo os cômodos,
salões, andares com a presença de Cortesãs, Quimeras, Dissimuláveis, Rapazes
Alegres outros Alegres Mesmo. No entanto ninguém era capaz de perceber o grande
efeito palingenético que ocorria no interior matricial da Sra. Birrostrat. O abade
estranhou a desaparição da aparição aquela, mais foi dúvida que durou no máximo
alguns centímetros em uma ampulheta de hora.
- Às favas o fantasma!
Passaram muitos dias observando atentamente o sol–da–meia– noite, junto a
convivas e comensais, beberantes e noctívagos, vampiros e codornizes que, no
meio daquela bagunça toda passaram desapercebidos.
No entanto, Tartamunduel–Elesbão, o Perebento, como gostava de ser chamado
nas tarde idílicas, senhor de quilates emurchecidos, virtudes opacas e suavidade
evaporada não contava, com um pequeno detalhe. Pequeno como ele, em seu
segundo mês de crescimento intra -uterino. A Sra. de Birrostrat não queria ter filhos.
Ela, tão logo constatou a terrível possibilidade com a primeira vomitada, chamou seu
médico familiar, sempre apto na sua função de contraceptivo medieval.
Tartamunduel alarmou–se. Seu plano ia para o derradeiro brejo.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
... Elesbão juntou as finais forças que tinha; começou a tirar de si mesmo uma serie
de peles e tecidos que, lentamente, moldou numa estrutura similar ao seu corpo
embrionário, levando-o a crer que tinha perdido o talento de escultor quando um dia
fazia dobradinhas com Fídias, seu mestre nas exposições da Polis.
Afastando–se um pouco para poder visualizar melhor a sua obra caiu em si de
contentamento. Em seguida trabalhou para que se manifestasse uma hemorragia
importante, através da qual faria sair a maçaroca produzida como embuste.
Enquanto isso deveria permanecer e agüentar até que o momento mais tranqüilo da
batalha se apresentasse.
Cá do lado de fora, o Sr. De Birrostrat começou a tremer quando a hemorragia foi
percebida e, ele, o desmaiável De Birrostrat, começou a dar cotoveladas no rosto do
médico, mas era apenas um ataque epiléptico.
Por outro lado, de branca a madame se transformava em verde muito claro.
Sofrendo um ataque importuno do marido da vitima, o doutor, imediatamente,
misturou–lhe outro liquido, cor de âmbar, o qual tinha a sublime propriedade de
parar o processo; virando–se para o marido, o facultativo descerrou poderoso soco
na barriga abacial, a qual arrotou de chofre os quatro frangos, os bacalhaus, os
molhos tártaros, as tortas vienenses (já havia Viena?), as nove colheradas de
morango em calda, os cinco litros de cerveja da Germânia, além dos condimentos e
petiscos que participava do opíparo almoço à la carte.
Para suprema alegria do terapeuta, com a hemorragia saiu um retalho de tecido
avermelhado que foi rotulado de embrião indesejado prontamente extirpado, de
modo a deixar os futuros–ex–papais bem livres do incômodo aquele.
Tartamunduel, o empecilho, como não gostava de ser chamado, passou um lenço
na testa, mas sorriu, vitorioso.
Houve festa.
10) Ah... a verve literária é pouca para definir com exatidão todo o drama que se
desenrolou para aquelas vidas conturbadas. Cada um fazendo a justiça por próprias
mãos, decidindo destinos pelos próprios desejos, plantando assim germes de
discórdias futuras. Não é impossível continuar tal história, uma vez que ela já raia o
extremo da incredibilidade. No entanto recebo cartas e cartas pedindo para que
venha à tona a moral desses sacrílegos acontecimentos e eu, cansado, fico com
dificuldades, para dizer que a moral é variável de lugar para lugar; que no máximo, o
que posso fazer é relatar o fim que tantas personagens alcançaram após o
emaranhado de erros e danações.
Se não gostarem da historia e seu desfecho, que fechem o livro em uma sólida
gaveta da cômoda e esqueçam o ocorrido, ora essa!
Já me basta aceitar as críticas dos falsos entendidos... já me basta, é o que digo.
Então, meu filho, não adianta reclamar! Creia, você também, que não há outro fim
para tal historia, coberta de lances macabros e fantasmagóricos. Lembre–se sempre
da implacável Nêmesis; ela regula o movimento dos homens sobre a Terra. A culpa
não é minha, gente! Eu sei que apesar de Mefítico, – alcunha que lhe caía tão bem,
sua mãe intuía algo nesse sentido quando o viu brincando na pocilga ao lado dos
porquinhos, Elesbão tinha seu quêsinho de charme com qualquer ser invisível do
tipo brincalhão (tá bem, brincadeira de mau gosto!). Mas, eu bem sei, muita gente
ficou do lado dele. E, especial os que têm em realce o lado feminino. Devem ter
sofrido quando Tartamunduel fora trocado pelo dromedário talentoso; sempre com
aquela grotesca corcova.
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No entanto é preciso dizer: A Nêmesis não perdoa porque ela é apenas uma
situação estabelecida e não uma causa. Não tenho culpa se Elesbão não percebeu
que para montar o artefato que faria o papel de falso embrião ele arrancava pedaços
importantes de si mesmo. Não tenho culpa se Tartamunduel nasceu um tanto
quanto amorfo. Quasimodo. É bem verdade que a alcunha terá de ser trocada para
o... Feiudo, por exemplo, mas, é a vida... ou... a morte...
Outros leitores, ainda bem o sei, estarão a favor de Birrostrat e sua mulher/ mas ela
também tinha suas dívidas para resgate. Basta alterar a natureza que ela logo
responde. Filosofias à parte, a mulher atentou contra uma vida e o marido, omisso,
cúmplice, no mínimo, não valia grande coisa, mesmo. Há gosto para tudo. Eu, por
mim, muito bem me identifico com o braço da Nêmesis, no papel de anjo interventor.
Afinal das contas são dez capítulos!
11) A Sra. de Birrostrat pensou que tinha um tumor terrível. Não era tumor nenhum.
O que era ela não queria que fosse, mas acabou por ser. Um filho. Houve quem
dissesse:
- Isso foi a causa necessária e suficiente para que o pequerrucho nascesse
deformado.
Mas, não se sabe.
Curiosamente recebeu o nome de Renato. Na verdade, Renatus Aquareulus Vômer
de Birrostrat, o herdeiro. A pompa do nome compensava a comprovada destruição
anatômica de que era dono.
Enquanto a mãe fugia de casa caindo na conversa de um domador de taturanas,
deixando o abacaxi na mão do pai Birrostrat, Renatus Vômer, mais tarde conhecido
como Capivara, pelos coleguinhas de folguedo, nunca aprendeu a ler, limitando–se
a praticar no uso da colher.
Precisava, então, da ajuda de um preceptor vindo da Normandia, veterinário,
apicultor, além de exímio caçador de elefantes em África, aclamado como o melhor
domesticador de cães do Oriente. Sendo assim, a herança dos Birrostrat acabou
passando para um familiar que não chegou a entrar nessa historia, mas se saiu
muito bem dela, pelo visto, deixando nos papéis do juiz assinado o nome de Charles
de Drummond.
O Sr. de Birrostrat completamente desestruturado com os últimos acontecimentos
imprevistos e desalentadores, deixou a criança sob a tutela do padre franco–suíço
Jamoreau, o qual, por sua vez, permitiu que um coroinha desconhecido fizesse o
uso... ou melhor, cuidasse de Tartamunduel–Elesbão, renascido Renatus de
Birrostrat, o que não durou muito tempo, pois o tal coroinha cansou de tentar fazer o
pobre Vômer compreender que não se comia cabelos, muito menos o das pernas e,
muito menos ainda o das pernas alheias.
Naturalmente que a vida de Renatus foi dramática, já que muitas vezes era
esquecido no reservado, em posição de devolução; quando o coitado já se
encontrava, às vezes, à deriva, dentro da latrina, a mercê de fedores e objetos
orgânicos, lá vinham com cordas e caçambas e balaios para retirá–lo do local, muito
a contra gosto, o que acarretava uma orquestra de vômitos e exclamações
nauseabundas.
Renatus Aquareulus Vômer de Birrostrat morreu nas mãos de uma indulgente
velhinha que o empregava como espantalho em sua hortinha, mas, isso já era em
torno do importante ano de 1563, um ano antes da morte de Michelangelo
Buonarroti.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
A VERDADEIRA HISTÓRIA
DO INFER - HOMEM
(uma novela zeróis à esquerda)
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
- Foram contratadas por uma rede de televisão para provar que amor materno
existe, que é inerente à raça dos racionais, que é intuitivo, parará, pirirí, pão duro,
mas, não vai nessa que é a pura mentira, meu chapa.
Explicava a mãe de Cau–Eu para o espantado pai cientista.
– A única coisa que nos faz cuidar da criança quando é pequena é a idéia de transar
com ela quando crescer, nada mais.
- O que você me diz, mulher!?
- Só que a gente fica velha e não dá. Eis o amor materno, meu caro cientista.
E, foi assim no meio de tanto amor e carinho que Cau–Eu foi expelido do seu
planeta de origem, o Tripton, tentando escapar de um cataclismo que nunca ocorreu,
para infortúnio de Juão–Eu, que perdeu o posto de meteorologista–chefe, a mulher e
o filho atirado no espaço, indefeso, indo cair por azar, na maior porcaria
interplanetária denominada pelos estudiosos de: Planeta Terra.
2) Uma vez aterrissado, pronto para uso e tendo abiscoitado a atenção de dois
velhacos que por ali passavam, Cau–Eu, imitando um cachorrinho, pateava no chão,
abrindo um buraco e latindo, tudo ao mesmo tempo e com a mesma expressão
facial.
- Que inteligência invulgar! – disse o velhaco macho.
- Um serzinho perdido deveras útil. – disse a velhaca fêmea.
- Poderíamos levá-lo para casa. Lá ele teria onde comer e dormir e nas horas vagas
limparia a latrina nauseabunda, que acha? – falou o macho.
- A idéia não poderia ser melhor, ainda mais vindo de você, caro senhor Quente. Eu
já não suporto mais o cheiro do lugar. Alguém precisa tomar a iniciativa de limpá-lo,
pois sim, – concordou a fêmea, dando um jeito no cabelo que lhe caía na testa.
Cau–Eu, completamente ignorante e analfabeto tanto do linguajar de Tripton quanto
da verborréia terrestre, viu-se a sorrir quando o casal de velhacos o tomou e o
carregou para a residência. Cumpre dizer que a espaçonave cristalina de Cau–Eu
havia descido num país da América do Sul cujas rádios só transmitiam música em
língua inglesa, apesar de seus habitantes muito porcamente saberem a língua natal.
Dessa maneira, o pequeno Cau–Eu foi tomando corpo e um aroma horrível por
limpar continuamente a latrina dos velhacos Jonastão e Emestruz Quente em
pagamento da hospitalidade e das hospitalizações constantes a que o pequeno
estava subjugado; vírus e bactérias, inóspitos aos habitantes daquele país, não o
eram para Cau. Os médicos, a cada tempo, aliados às indústria das farmácias,
propagandeavam que vírus e bactérias eram agentes causadores de doenças e
safavam os governos de resolverem o problema da fome e da burrice alimentar dos
habitantes aqueles, safados que eram, então. Mesmo assim, Cau-Eu vingou e
cresceu e se tornou jovem e, um belo dia, estando Emestruz Quente olhando pela
janela, ele atacou-a por trás, levantando-lhe a saia e fazendo-lhe cócegas nos bens
íntimos da não tão nova mulher que gritou:
- Continua! Continua!
Mas, aí ele parou, não se sabe se inibido pelas exclamações da mulher ou pela
paulada recebida na cabeça, donde um belo galo subiu, cacarejou, bateu asas e
voou, levando a memória e a consciência de Cau – Eu.
O autor da paulada bem que foi Jonastão. Quente de raiva e ciúmes.
- Como a senhora permite uma coisa dessas?
- Ora, são os novos tempos, meu caro Quente, – disse a mulher.
- Que novos tempos que nada! É pouca vergonha sim.
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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO
- Foi o que eu disse. Até parece que você não assiste novela e não vê televisão,
meu caro. Não percebe que a moda agora é assim? – e, apontou-lhe o dedinho. – O
que aparece na televisão é o que devemos seguir! São ordens, meu velho. Todos no
país fazem isso, principalmente os jovens e os que se fingem de jovens. Você não
percebe?
- Acabo com as modas com muita cacetada, – Jonastão enfatizou.
No entanto, a mulher, ajeitando o cabelo que lhe escorria pelos ombros, deu de
ombros e saiu para o umbroso tempo que prenunciava chuva.
Jonastão jogou água no rosto risonho de Cau–Eu, puxou-o para o lado e cantarolou
outras ordens em seu ouvido:
- De hoje em diante não precisamos mais de seus serviços, meu jovem. Você está
convidado a se retirar desta casa e ir mexer nos fundilhos de outras pessoas. Ouviu
bem?
- O que?
- Você vai embora! – Jonastão gritou em plenos pulmões.
- Mas, pra onde? Não conheço ninguém. Não sei fazer nada.
- Você é um exímio limpador de latrinas. Trabalhe nisso.
Cau–Eu, após a pancada nos altos do cocuruto, acordara diferente e disse assim:
- Só que você, meu velho Jonastão Quente, perdeu a chance de se aproveitar de
mim.
- Como assim? Mais ainda?
- Mais ainda. Eu tenho identidade secreta.
Jonastão passou a rir desbragadamente. Quando parou, perguntou:
- E qual é a sua identidade secreta?
- Ainda não sei. É segredo, mais um dia eu saberei, pois tenho uma missão a
cumprir. – Mostrou para o velhaco macho uma figa de Guiné. – Com esse símbolo
vencerei.
- In hoc signus vinces.
- Inhoc, o que?
Mas, Jonastão não queria mais conversa e deu as costas. Na porta,
cinematograficamente, voltou-se e disse olhando para o chão:
- Se não quer sair daqui com essa figa enfiada em local indevido, saia hoje, ate o por
do sol, – frase essa dita para que se enfatizasse o aspecto romântico da cena.
Cresceu a música e a grua elevou a câmera até vermos a planície sob o vendaval
que formava. Bonito.
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- Meu papi!
Novamente o escritor onisciente, sábio e cônscio, interfere na coisa.
- Meu... Vamos parar com essa palhaçada, que eu tenho um troço pra te falar, filho
único.
- Sim, papito. Sou todo audiência...
- Meu querido rebento, – pigarro bustamânico, – você cresceu tanto que nem o
reconheço.
- E, como é que sabe que sou eu, papelho?
- Por causa desse olhar canino, essa narina arquejante de símio adestrado, esses
ombros de tamanduá que corre atrás de formiga, por essas olheiras de viciado em
coca-cola... Eu o saberia mesmo debaixo d’água. Enquanto tivéssemos fôlego meu
filho.
- O que veio fazer aqui papalvo? Qual o meu destino?
Juão pareceu sério. Levou o dedo ao nariz e enquanto catava secreções passou a
dizer:
- Infelizmente, ou felizmente, já nem sei, Tripton não explodiu, como eu esperava, ou
não esperava... Estamos vivos e o lançamos ao espaço inutilmente, - Juão–Eu
começou a chorar. – Peço perdão... perdão. Mesmo porque estou punido pela
mentira, incompetência e destruição da ordem pública. Sua mãe sumiu, tendo
levado um de seus filhos como amante, apesar dele só ter treze anos, mas é um
safado assim mesmo. Eu estou só. Aprisionado, torturado e sem filho...
- Você sofre?
- Sim, meu adorado filho.
- Você chora?
- Estou chorando meu querido filho único.
- Você está preso mesmo?
- Prisão perpétua, amado Cau–Eu.
- Então... Bem feito... ninguém mandou trabalhar errado. Trabalhasse direito e nada
disto teria aconteceria. Agora estou aqui, longe às pampas e sem o que fazer. A
única coisa que me sobrou foi essa mãozinha preta aqui, com o polegar preso entre
o indicador e o dedo médio. Grande riqueza!
- Perdoe-me meu filho! Perdoe-me! Há uma saída.
E, foi assim que Juão–Eu contou para o filho da figuinha e a predestinação de sua
vida.
Daquele dia em diante Cau–Eu percebeu que bem podia ser uma outra pessoa.
Adotou uma identidade secreta que já intuía e chamou-se Carlos Quente, numa
triste homenagem à família que o adotou durante anos e anos permitindo que ele,
intimamente, limpasse a latrina da casa. E, como Carlos Quente ele escondia o
destino de sua missão na Terra. A existência do enfermeiro, ou melhor, do Infer-
Man.
No primeiro vôo que deu pela janela da Fortaleza da Confusão, quebrou um braço.
Mas não era pessoa de esmorecer.
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5) O povo, apesar de sofrer sem reagir, já não agüentava mais, mas, esperava
que alguém, algum estrangeiro, alguma alma salvadora, viesse livrá-los das sanhas
do Infer-Man, que já não tinha por onde infernar mais a vida de todo mundo.
Quando um navio estava afundando com milhares de pessoas a bordo, o Infer-
Homem trazia mais gente para a nave e ainda por cima empurrava o navio para
mais fundo aumentando a velocidade do afundamento.
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Quando uma nuvem de chuva se aproximava a Noroeste do país, o qual era regido
por gordos e porcóides políticos que não diziam onde ia parar o dinheiro de
investimento da região, Infer-Homem assoprava até que a nuvem tomasse outros
rumos e despisse seus arroubos aquosos em outro lugar.
Muitas vezes o mesmo Infer-Homem, com a mesma nuvem de chuva, aproveitava
para arruinar plantações e encher os rios que transbordariam, fazendo com que num
único lugar chovesse mais que o necessário.
Enfim, trazendo ao país toda a sorte de transtornos, o Infer-Homem escreveu com
letras excrementícias o seu nome nas piores páginas da história do planeta, sendo
então condecorado com a medalha de Honra ao Mérito Nacional, dada aos homens
mais atuantes.
Mas o poviléu já não agüentava mais e resolveu eleger um procurador do Norte
como salvador; o tal era do time de Infer-Man e logo deixou perceber que não podia
agir contra seus aliados, mas, isso, só depois de dilapidar os cofres públicos.
Mesmo assim o poviléu, ainda, não desistiu, – uma vez que desistir é o próprio
desses povinhos medíocres que não têm orgulho, mas fingem que têm, inventando
heróis e frases galantes, – e, contratou a ajuda de alguns Ursos Siberianos, os quais
não agüentaram o calor imenso dos trópicos e disseram:
– Ainda se fosse na Patagônia! – tendo logo partido de retorno.
Aparentemente não havia mais escapatória para aquele povo duplamente miserável,
quando uma insurreição brotou do seio da nação, – bonita esse frase não leitor? – e,
se ampliou tomando conta de todos os recantos do país.
O alquimista Amon-de-Rá liderava o levante e pedia a cabeça de Infer-Homem.
Assim... sem mais nem menos.
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A SÁTIRA E O AMOR
(uma novela medieval)
1) Tartarassa ni voututr.
- Ficam assim, pois, determinado, senhores críticos, que não percam tempo
tentando encontrar defeitos nos escritos que começam neste momento e se
estendem, inteligentemente, pelas folhas em branco. Não encontrarão erros e, se
porventura encontrarem, serão relegados, erros e opiniões, para as profundezas do
Orço, cujo local, apesar de quente é o que há de mais correto para a instalação de
inutilidades como críticas e opiniões não pedidas. Ou então ponham na conta do
revisor e do tradutor. Em mim, não!
- Peço, também, o perdão para tais homens e mulheres que não podendo ou
não tendo o talento para escrever se determinam sábios e expertos de vários
matizes, analisando e descrevendo coisas que, provavelmente, nunca tenham
passado pela cabeça do criador. Lancem seus esputos de falso intelectual para
outras vizinhanças, pois não há obra que seja criada paciente de observações e
julgamentos. O que aqui se construiu, e, o que aqui se fez, assim fica. Críticos e
analistas de sistemas não terão lugar no espaço, uma vez que não são donos de
capacidade e idoneidade para veredictos benéficos ou maléficos endereçados a tal
e qual obra. Que criem as suas próprias! Mas, se quiserem se divertir passem a
visitar um tal Francisco de uma tal faculdade de tecnologia. Ganas de rir.
- Cuidado, leitor, com críticos. Se encontrar com algum deles pela rua, cace-o!
Não permita que escape. Cortaremos seu rabinho e colocaremos nos papagaios e
nas pipas. Cortaremos suas orelhas e as poremos nos burrinhos zambetas.
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5) Ce fu en mai.
No meio do burgo havia uma fonte. No meio da fonte havia um chafariz
elaborado em arquitetura por um certo Luigi Giordano, que viera de Roma apenas
para martelar uns mármores. Luigi Giordano também era marceneiro. Passara uma
temporada em Paris com a mulher Vicenza e os filhos Rafaelo, Maria, Gerardo,
Francesco e Tereza. Foi através de cartas entre eles que soube da maioria dos
detalhes desta história. Mas, voltando, o tal chafariz soltava água natural,
levemente, sem violência. No meio da água estava a cabeleira do trovador.
Era manhã. Um coro de bêbados rodopiava pela fonte e cantava canções onde
se desenhavam os amores não correspondidos. A amada desprezando o amante e
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um báculo. Inda mais daquele tamanho. (pausa sacana) No máximo uma flauta...
Em seguida, sem terminar o jantar, ele dormiu.
- É, isso mesmo o que interessa, – o trovador alisou a colcha de lã que envolvia
as pernas e os lençóis de seda sobre a cama.
- Trouxe a flauta, minnesinger?
- Trouxe as duas.
- Uau!
- A soprano e a tenor. Queria mais alguma, querida?
- Só você artista franco atirador. Só você. Estou esquentando lentamente. Meus
volumes e rotundidades estão em ponto de bala... se tocar eu entro em êxtase...
para que você se gaste, me gaste e desgaste. Vem poçucar de mim, vem? – ela
pedia como olhar pio. - Tem muita coisa sobrando. Poçuqueia, poçuqueia!
E, o trovador, não tendo mais do que falar, poçucou da senhora, não tão
tranqüilamente como ela gostaria, mas, o suficiente para transformarem o leito da
alcova em salão de baile. Quase que quebram as flautas.
7) Hipocritae, pseudontifices.
Eis que, no momento exato em que a ejaculação se processava, adentram no
quarto da senhora os dois cães seguidos de soldados. Flagrante maior não houve
em centúrias. Junto vinha o padre do burgo, comissionado e assalariado do Barão.
Começou a falar sobre moral e cívica:
- Abutres que conspurcam o santo leito do matrimônio, ouçam! Ouçam, abutres!
Arrependam-se das imoralidades pensadas e praticadas! Sujos, pecadores, que
querem destruir a dignidade de uma pessoa de bem como o nosso Barão.
A senhora abraçou mais sofregamente as costas do travador e ele se
posicionou mais profundamente, enquanto sua boca babava saliva generosa sobre o
ombro da mulher. Os soldados olhavam estarrecidos.
- Porcos! Fazem do quarto conjugal a sua pocilga! Vilipendiando a nobre
estatura do Barão com achincalhes de baixa importância. Preferem o pecado maior
aos prazeres da espiritualidade. Preferem se esconder a praticar o ato imundo
publicamente. Preferem a sordidez dessa sujeira de salivas, esperma e suor, do que
o frescor da água benta! Arrependam-se, corruptos, ou o látego do Barão...
- O báculo!
- O que?
- O báculo, o báculo!
- Ou o báculo do Barão descerá sobre suas miseráveis cabeças!
A senhora virou-se, ficando de costas para o trovador que se enfronhou
mansamente entre os volumes macios, carnosos do alto das coxas, podendo ali
depositar seus produtos animais, a modos de anticoncepcional medievo. Ela, em
seguida, tomou da flauta, enfiou inteira na boca e soprou bastante; como um código
entre eles, isso significava recomeço dos embates.
Os soldados lambiam os lábios, ouvindo a maviosa canção. Vendo a adorável
encenação, o padre venal olhou para o Barão e continuou com cara de quem já não
agüenta mais:
- Inconseqüentes! Traidores da confiança alheia... excomungo vocês, deixando-
os a arder para sempre nas chamas do Orco, do Hades, do Inferno, da Geena...
- Pode parar! – Gritou o Barão. – Não adianta nada. – Só tenho uma saída.
O Barão, decididamente, apontou para o enorme cachorro a seus pés que abriu
a boca com, desmesurados, dentes oblíquos.
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9) Kalenda Maia.
Conta-se que o trovador, depois de cinco anos, montou um grupo de música
que passou a viajar pelo Languedoc, pela Provence, favorecendo o florescimento da
lírica profana de língua vernácula, coisa que foi possível graças a ajuda de sua
senhora, que o acompanhava por toda parte e era boa de letra. Pobres, mas
adequadamente engatados, em todos os sentidos. Participavam de festejos,
cantando e dançando o amor das cortes e seus objetivos. Receberam influência dos
andaluzes, mouriscos, especializando os cantos em culto à mulher. O Trovador era
rico nesse ponto, como já foi dito. Fica também dito que sorrisos e beijos não mais
deixaram a boca do casal; a cada beijo surgia inspiração para 10 melodias ímpares;
convém dizer, ainda, que é preciso complemento total em espírito e em corpo, para
que não se formem conflitos de qualquer espécie. Não há santos. Não há demônios.
Enquanto isso o Barão, descobrindo suas verdadeiras tendências zoofílicas,
não se importou de que o entrelaçamento do trovador com a sua senhora se desse
durante mais alguns dias dentro de sua própria casa. Não se sabe se ainda estava
sob a influência da Cannabis ou não, o Barão deu as costas para o soldado e o
padre, puxou seu cão para os longevos campos da propriedade e sumiu ali.
O que lá aconteceu ninguém sabe, mas, dizem que o Barão e o cão dividem a
mesma cama; há quem diga mais, mas, deixa-se isso na conta da calúnia grotesca
e mentira de inimigos, que os há por toda parte, ou, ainda, por conta da perversão
e promiscuidade, bem a gosto dos críticos.
De qualquer modo, era Maio. Primavera. Fim do gelo. Fim do inverno.
O trovador e a senhora tinham um quinteto de filhos tocadores de rabeca:
Guillermo, Cecilia, Miranda, Dayananda e Alicia Valeriana.
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