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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

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COELHO DE MORAES
edição: 8 mil / distribuídos via mail
coelhodemoraes@terra.com.br

Cidade de Mococa
São Paulo
Março / 2010

Coelho De Moraes 2
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

HISTÓRIAS
DA ARCA DO VELHO

Para
José Coelho De Moraes
meu pai

Coelho De Moraes 3
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Palavra primeira

As HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO são novelas confusas e defasadas na


cronologia e na lógica, muitas vezes. Tentam um ar de Contos da Carochinha para
adultos e se impressionam com as arcas de memórias que são as lembranças de
nossos velhos familiares – nesse caso, meu pai de 90 e tantos anos de idade.
A vida dele confluída numa memória única que quer ou sair ao mesmo tempo ou
desaparecer em fatos e acontecimentos únicos.
Muitos dos contos surgiram sobre reciclagem de peças e/ou contados tradicionais;
outros foram de invencionice pura. Outros vieram do que meu pai falava lá no
entendimento dele como bom memorialista e, ao seguir dos anos, as repetidas
histórias, lembranças bagunçadas por ação da Alzheimer ou velhice pura (nem sei
se os médicos sabem realmente do que se trata). O fato é que o pai continuou a
estimular a memória mesmo depois que a cronologia lhe fugiu; as regras da
civilização desapareceram sob um manto de esquecimento e de que os médicos, –
ou seus medicamentos, - atuaram sobre ele. Vai saber...
Tudo tem utilidade nessa co-autoria.
A parte do leitor é o prazer de ler e corrigir. Sim. Trata-se da tal da interatividade.
Corrijam os erros, enviem a errata, hifenizem, acentuem ou não... enfim, interajam.
...
Assim, surgem as novelas retiradas da ARCA DO VELHO.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

RELATOS DE
MATRIMONIO E PATRIMONIO
(uma novela indomável)

1) Era uma vez um mercador bastante pobre que tinha o dom de


fazer maus negócios por vários motivos seguidos e inapropriados. Um deles era a
honestidade, pois é sabido que uma pessoa para atingir os píncaros da riqueza tem
que, necessariamente, roubar. Não há rico que não tenha roubado, dizia o sábio
Aricanduva de Freitas, enquanto bebia gole sobre gole de chá mate com goiabada
e, completava cuspinhando no chão do bar: - Se pensa que não roubou ou está
melindrado, basta ver o lucro que obteve perto da inflação e responda com cuidado
de gente consciente, se não aproveitou que a inflação minava os bolsos (ele diz “os
borso”) enquanto o mercador aumentava os preços das coisas. E, Aricanduva ainda
dava exemplos de especulação, que no meio mercantil era conhecida como
“negócios” e era coisa certa e aceita por todos.
Mas, dizia eu, o mercador da historia era pobre e amicíssimo do tal Aricanduva, seu
conselheiro em assuntos de moral comerciaria, de modo a levar o amigo mercador à
bancarrota em pouquíssimo tempo, o que deixou o mesmo mercador bastante feliz,
uma vez que não roubara um tiquinho que fosse, apesar de sofrer constantes
atentados dos outros mercadores e do próprio governo do seu país – aliás, principal
condutor dos negócios desonestos e dos ricos empresários que o apoiavam, os
quais também representavam o papel de políticos, que também defendiam

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

interesses particulares, que também enganavam a população besta com chavões e


palavreados mentirosos e viviam impunes, com garbo e chapa branca nos
automóveis.
Tinha, o mercador honesto, duas filhas: Canarita e Chiamba (lê-se Quiamba, por
favor), obviamente, diferentes uma da outra, pois se assim não fosse as duas se
chamariam Canarita, ou quem sabe (?), Chiamba, sendo que as duas seriam uma
só, o que a Física não permite, já que não ocupavam o mesmo lugar no mesmo
espaço ao mesmo tempo.

2) Chiamba era bonita, inteligente, prendada, obediente, só falava palavrão


escondida no quarto, mesmo assim, com a cabeça enfiada num saco, com vergonha
de si mesma, por descer tanto na escala da civilização e parecer com as mulheres
chulas e inescrupulosas do burgo.
Por outro lado, Canarita, que também era bonita, tinha certas prioridades: quando
queria ficava feia, só de brincadeira e, isso acontecia muitas vezes, pois tinha um
mau gênio – não o da garrafa, mas, o da personalidade individual, – repetidas faltas
de educação que muitos relegaram a uma falta de memória e, era muito
desobediente, aproveitando o ensejo para xingar todo mundo e contar as mais
cabeludas das piadas de salão de prostíbulo, de tal forma que nunca tinha a
amizade de ninguém, exceto a de um papagaio que adorava suas piadas e as
repetia fora de ordem.
Por isso, Chiamba possuía inúmeros admiradores; tarados todos para se casarem
com ela, levarem-na para casa, dormirem com ela, fazerem filhos nela, fazerem com
que ela limpasse suas casas, suas roupas, limpassem o chão, desse de comer para
os inúmeros filhos; que ela ainda tivesse a honra de sentir o cheiro azedo da
cerveja e do cigarro no mais afundado de suas camas de crina de cavalo, os quais
cavalos, mesmo não tendo entrado diretamente para a história, sairam perdendo,
pois ficaram sem as crinas. Rá, rá, rá ...
Mas, a pobre besta do pai, seguindo as normas da sociedade, só consentiria que
Chiamba se casasse após o casamento da mais velha, que era Canarita que, diga-
se de passagem, nem pensava em tamanho disparate.

3) Havia três sujeitos que estavam afinzões (se o distinto leitor me permite a
invencionice) de Chiamba e ficaram paus–da-vida quando souberam da arcaica lei;
um absurdo que enfrentava a modernidade de Canarita e, enquanto o pobre
mercador se transformava em pobretão, os três possíveis noivos articulavam
mumunhas e traquinagens para, um dia, surrupiar Chiamba e casarem com ela, uma
vez que era muito difícil encontrar empregada igual na praça.
O mais esperto era um tal Luzivaldo; um sujeito magro que quando tinha quinze
anos era muito mais baixo do que quando tinha vinte e um, o que lhe valeu a
alcunha de Lulu – Rabicho, já que ele andava atrás das saias de mulheres e padres,
sem deixar nada no olvido.
Lulu–Rabicho, fazendo-se de professor de línguas, – a dele não parava dentro da
boca, - foi levado à casa do pobretão mercador, que não tendo com o que pagar,
dava-lhe quilos de batata e peixe salgado, enquanto o professor ensinava as
funções da língua para as moças.
Havia um segundo, chamado Crebio, que se oferecia como jardineiro, trabalhando
gratuitamente; o intuito era o de se aproximar da bela Chiamba, levando-lhe flores e
poupadas de terra cobertas de estrume de boi com que cuidava das plantas.

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O terceiro era Mortencio, professor de música que se propôs a transformar as


donzelas (assim acreditavam), em primas–donas, o que seria muito interessante se
as duas irmãs fossem as primeiras, caso a Física não aparecesse novamente para
impedir que o absurdo se fizesse presente. Este Mortencio era o mais apaixonado.
Várias e várias vezes eram vistos fazendo serenata sob a janela das garotas e não
poucas vezes tomaram banhos de urina que o pobretão mercador (já então em
campos de pauperismo desenfreado), os presenteava, já nos confins da madrugada,
tratando-se então de uma urina muito velha. Não por cantarem para as filhas, mas,
por não permitirem que ele dormisse, esquecendo-se das dividas que se
avolumavam.
Chiamba não tinha preferência. Qualquer um serviria, o que nos dá uma idéia da
mentalidade da menina. A primeira impressão é a de uma garota fútil que só quer se
casar, ter filhos, engordar e ver televisão se queixando das varizes, depositando
toda a culpa nos hormônios. Saberia ela que a mutação em monstro – fenômeno
que ocorre com a maioria das mulheres com o passar do tempo, se dá por causa do
relaxamento e, não por uma conseqüência natural do envelhecimento?
Canarita a aconselha a dormir com os três, não ao mesmo tempo, mas, se possível
na mesma noite, de modo a ter uma maneira de se decidir. Chiamba corre para o
quarto, enfia o saco na cabeça e xinga a irmã.

4) Então, chega ao burgo certo Perúquio, andarilho e vendedor de elásticos,


presilhas, alfinetes, lixas para calo, xampus, fivelas, pedra-pome, não sendo careca
nem tendo parentesco com o legendário Pinóquio.
Perúquio era amigo de Mortencio, tendo já cantado juntos na grande cidade,
fazendo a dupla “Saltimbancos das Estrelas”, sempre vestidos de jardineira e
chapéu de três bicos. Perúquio queria encontrar uma moça rica para se casar, por
isso, Mortencio, mancomunado com Crebio e Luzivaldo, tentavam fazer com que o
viajante e caixeiro, se decidisse a casar com a vulgar Canarita, sem que ele desse
conta de que ela era uma quase mendiga.
- Vocês não escutaram direito. Quero mulher rica, meus chapas!
- Você é que é cego meu chapa, – Mortencio completava o dialogo edificante. – Já a
viu de costa?
- Realmente, é uma coisa que não me interessa.
- Ô! – Gritaram os três possíveis noivos – Nem parece o velho Perúquio. Não se
interessa por mulher, chapa?
- Vocês me entenderam, – afirmou categórico.
- Vamos lá, – falavam ao mesmo tempo os três novos–patetas. - Conversemos com
o pai mercador
A palavra soou bem aos ouvidos de Perúquio e uma bem delineada sobrancelha se
ergueu.
- Pai... Mercador?
- Exatamente, - teriam dito os três, caso não baixassem e levantassem a cabeça
inúmeras vezes, munida bocas de sorriso abobalhado e olhar de tatu com doença de
Chagas.
Perúquio, então, concluiu, levantado o dedo:
- Precisamos conhecer tal donzela.
Os três riram às costas do outro, o contentão.

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5) Combinaram uma visita de Perúquio ao velho quase indigente mercador


que poria a sua melhor roupa; brindaria com uma cusparada os sapatos e esperaria
no alpendre.

Perúquio apareceria, sobraçando fitas, dedais, grampos e placas de gumex, doando


tudo como presente para a possível noiva. Os possíveis noivos de Chiamba
estariam sob a janela, enquanto ela ouviria as melodias que lhe cantavam, piscando
os olhos para todos ao mesmo tempo, e sentindo úmidas as partes mucosas muito
bem enterradas nas roupas de mulher pudica.
Canarita, por sua vez, não recebera bem o possível noivo e muitas vezes deixou,
segundo ela, sem querer, que um vaso caísse sobre os pés andarilhos do
famigerado Perúquio, o jovem que o pai mercador e pobretão perceberia ser um
exemplar espécime que tomaria conta da moça, já que ele, com toda a devoção
paterna não agüentava mais; pretendia vendê-la ao primeiro circo que aparecesse
no burgo. Na falta do circo, o caixeiro – viajante.
Bom... tudo isso aconteceu assim mesmo.
Perúquio adivinhou no velho um usurário, sovina e malandrão que guardava tudo e
não gastava nunca nada, deixando a família a passar fome, se bem que as formas
bojudas e protuberantes de Canarita desmentiam a inanição. E, de olho nos
almofadados da moça, na bolsa alhures escondida, resolveu que se casaria na
semana entrante, mesmo Canarita não querendo, afinal, o que era ela se não uma
mulher... ou seja, nada; mulher não dá palpites. Só pensa que dá..., pensou
Perúquio, cofiando o bigode basto.
Os amigos exultaram. Mortencio, Crebio e Luzivaldo pularam de alegria e cantaram
“Ultima Canção” para Chiamba, enquanto a noite chegava e o sereno da madrugada
descia devagar.

6) Todo mundo foi convidado para o casamento, e, mesmo que não fossem,
pelo menos os rapazes apareceriam para ver qual o trouxa que levaria para casa a
vassourinha da Canarita.
Na festa encontramos de tudo. Toda a fauna de uma sociedade bem instituída: as
galinhas das senhoras que ditam a moral mutável de acordo com o mancebo que
lhes aparecessem entre as cochas. Os advogados e juízes marmotas que
vomitavam leis difíceis de cumprir, arrotando poemas para todos os lados. Os
ratazanas industriais e empresários que consumiam a vida de seus operários dando-
lhe latas e geléias como bônus. Os abutres médicos donos de planos de saúde, que
adoravam entranhas, que tomavam bebidinhas com papagaios, araras, periquitos,
psitacídeos sociais em geral. Os loroteiros com PhD que se julgavam professores e
ensinavam modos e maneiras de bem copiar o raciocínio alheio. Enfim, uma
cambada de bichos profissionais que valorizavam a festa com suas opiniões lidas
em revistas ou repetidas de livros lidos como quem vai ao banheiro depositar sub-
produto no vaso privado de belo branco porcelânico.
No entanto, Canarita apareceu toda desmazelada, falando enrolado como quem
bebeu. A verdade era que o cachimbo atrapalhava a parlatória; cabelos
desajeitados, roupas rotas e rosto pintado de qualquer jeito.
Perúquio ficava louco de vida e falou que aquilo é um ultraje.
- Isto é um ultraje!
- E, você queria o que? Os três neo-patetas me atacaram lá no quarto enquanto eu
me vestia! – Disse ela.
- Que patetas?

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

- Os possíveis noivos de minha irmãzinha, que neste momento esta com a cabeça
dentro do saco.
- E, por que você não gritou, sua megera?
- Porque eles ainda não tinham terminado, meu caro. Você acha que eu vou perder
a chance das penetrações e rosnados, a troco de nada?
Perúquio estrilou: - Como, a troco de nada? Por acaso eu sou nada?
E, a resposta veio rápida: - Isso veremos após o casamento.
O pai pobretão–miserável estava perplexo com o desenrolar dos acontecimentos,
mas feliz, pois aquilo não era coisa que desse prejuízo. A festa já era paga pela
vizinhança que daria tudo para ver o casamento da reles Canarita, abandalhada dos
cinco costados. E, gostaram, pois o espetáculo estava dos bons.
Nesse momento desciam as escadas os três-neopatetas (possíveis noivos),
dizendo que não queriam mais o casamento com a menina Chiamba, uma vez que
ela não retirava, de jeito nenhum, o saco da cabeça, limitando-se a dizer palavrões
de todos os tipos e variedades.
Contudo, o pai paupérrimo explicou, e fez questão, que teriam que se casar com a
mais moça, já que ele, – pai obstinado, - agüentou noites e noites de uma cantoria
chata pra cachorro; não ia, por mais nem por menos, permitir que a pequena filha
Chiamba também ficasse frustrada por ouvir todas aquelas baboseiras em forma
musical e agora a espiar navios saírem e entrarem na baía.
Os três amigos, intimidados pelos vizinhos, tiraram par ou impar e a vitória acabou
recaindo sobre Luzivaldo que começou, imediatamente, a chorar.
Perúquio, que já chorava a um tempo, consolou o amigo. Caíram em uma arapuca e
não havai maneira de escapar. Todos da cidade foram testemunhas e, o pior,
testemunhas idôneas, pelo menos, lá entre eles.
Crebio e Mortencio sairam de fininho, pela janela, levando alfenins, biscoitinhos de
gengibre, pedaços de bolo Xanxerê, pecan pies, gugelhupf, brioches, sayarin,
churros, mufins, trufas de chocolate, ravióli doce, petit carré, rocamboles, pudim
Molotoff, menchikof, bavarois e pedaços furtivos de torta klamotte, nos bolsos e no
bojo do alaúde.

7) Deu-se o duplo casamento e os convidados começaram


desesperadamente a rir, sem parar, das caras de bunda dos respectivos noivos que
herdaram, sem mais o que reclamar, um culatrão daqueles, no que tangesse à
popular Canarita e uma donzela–de–candeeiro que, enquanto encabeçava sacos
para não ver, amarrava das suas com as velas da casa, não vendo, enfiando aqui e
ali.
Assim, amigos leitores, todos ficaram insatisfeitos com as núpcias, menos o pai
pobre e mercador falido que lucrou, enfim, não mais tendo que alimentar duas
bocas; a vizinhança, então, lucrou demais, teve o seu quinhão de fofocas e motivos
para comentário amplos e irrestritos, como convém um povo civilizado e moderno.

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PERIPÉCIAS ROCAMBOLESCAS
DE OSÍRIS.
(uma novela do cão)

1) Osíris era um gato siamês que vivia entre ladeiras do bairro niteroiense do
Ingá, e, os muros das casas, porém, maior prazer não tirava se não aparecesse
enfronhado em lençóis e braços de sua senhora-amiga–confidente. A particularidade
maior, no entanto, estava no fato de que Osíris identificava-se como um gato oriundo
do Sião, das terrosas áreas do Entre–Rios, de requintado gosto judaico, apesar do
nome divino e egípcio. Era muito chegado a mordomias, como se ainda acostumado
a perambular pelos antigos palácios de Tebas ou Karnac, lado a lado a Faraó, ou
então, pelos luxuosos salões de propriedades dos Tetrarcas de Galiléia, antes da
invasão dos Romanos, se ainda fosse possível. Osíris sonhava com tudo isso, como
a relembrar uma de suas vidas.
Mas, na realidade, Osíris tinha que se conformar com os muros das ruas sujas de
Niterói, bem como os braços pegajosos de sua eternamente–deleitosa–transtornada
mãe artificial e, de vez em quando cair de lambidas sobre sua paixão: a Gata Kristh,
de origem germânica, apesar de inocente em Nuremberg, mas, evidentemente,
causadora de dissabores e alguns trissabores ao nosso herói, como veremos no
transcurso da história.

2) Nesta aventura aparecerão uns cães de má índole que moravam na


residência ao lado. Várias vezes foram observadas por Osíris. Da mesma forma, os
três dálmatas olhavam o passeio do felino, como um gatuno, sobre os muros, com
passadas leves que deixavam a platéia canina em polvorosa. Latidos e ranger de
dentes eram o que mais se ouvia por aquelas plagas, mas, o gato, nem ai. Osíris
nem se dava ao luxo de olhar a azáfama no meio da cachorrada pintalgada de preto

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aos rés do solo, se bem que prestasse atenção no caso de novidades ímpares como
bocas cheias de dentes que muito se aproximassem. Passava e ia pisando pelica,
sobre as almofadinhas de suas patas; quando muito, parava para dar uma lambida
na cauda, arrumar os bigodes; em seguida retornava o caminho que o levaria para
os pelos de Kristh, a bichana.
Muita gente pediu para que não se contasse o tal segredo, mas, o escritor em
questão não pode privar os leitores das verdades que se propõe a contar. E, o
segredo escondia, por sua vez, o seguinte: “Havia no bairro muitos outros gatos os
quais se dispunham a cortejar Kristh felpuda, que não lhes dava corda para tanto.
Ela estava caída pela elegância, pelas cores, pela origem e descendência do gato
Osíris” - consta que ele tinha lá seus arvoredos genealógicos: toda linhagem desde
Tutmés II até os dias atuais, quando suas tribos tiveram que escapar do cão nazista,
ou seja, um certo pastor alemão que alvoroçou a Germânia), enfim, o que sabe ao
certo é que uma horda de felinos inamistosos percebeu que só teriam a Gata Kristh
caso Osíris falecesse e, para abreviar o caminho até a pulverização do gato odiado,
os inimigos contrataram os serviços – olhe e atemorize-se, caro leitor! Pasme! Até
onde pode ir a animalidade! – e, eu dizia, contratou os desatinados serviços de um
canil cheinho de cães, é óbvio, mas, daqueles que comem até o osso do vizinho e,
não digo o osso da alimentação, mas, o da perna mesmo, tamanha a ruindade.
Por motivos de pura inveja e recalque, Osíris viu-se em palpos de aranha, se bem
que aranha mesmo não houvesse uma, mas tal é o que se ganha quando se utiliza
expressão idiomática num texto. Subia ele a Rua Presidente Pedreira, voltando do
escandaloso namoro, ainda lambendo os beiços e se arrepiando de vez em quando
com as lembranças, quando se viu cara a caras. A sua cara de gato olhava
fixamente as caras de nada menos do que doze cães, que o observavam
atentamente. De cima do muro, o sorriso escarninho dos inimigos. Da frincha do
portão de madeira, o riso maroto dos dálmatas que adivinhavam e se divertiam com
o perigo que Osíris corria. Da janela, o pranto copioso de sua senhora-adorada-
emudecida-lacimosa, assobiando cantigas de ninar enquanto o pranto derreava em
borbotões... brotava a cântaros. Mais atrás, em sua casa, já alimentada, preparando-
se para dormir, pensando oniricamente em Osíris e futuros gatinhos, a pequena
Kristh pressentiu que algo não ia bem.
Osíris percebeu que só um milagre o colocaria fora das mandíbulas destruidoras
daqueles irascíveis mercenários e, foi com os nervos à flor da pele que ele esperou
pelo pior.

3) Os anais não garantem se foi pior, ou melhor, mas, o fato é que não se sabe
como, nem se a aparição era terrestre ou não, no entanto, a aparição apareceu. Um
milagre... um Ser... Um alienígena... veio, caminhando, à medida que os doentios
olhos dos cães foram se abrindo desmesuradas! O sombrio ser se aproximava e, os
cães o temiam, e ele vinha, dormindo ou acordado (era difícil de saber), se em
estado sonambúlico (aparentemente), se bem que muita gente dizia, as más línguas,
que não havia diferença entre a vigília e o sono para tal ser. As boas concordavam
com o argumento. Surgiu das trevas da noite, para a salvação de Osíris, para
desrespeito dos felinos traidores, para horror do mastim venal, eis (!) que surgiu o
Leviatã adormecido, o gigante tépido, muito mais conhecido como Anselmo,
candidato consorte da Tetê, que muitas vezes se fazia passar pela irmã da
extasiada-edípica-electra-amantíssima-mãe do gato herói, como já sabemos.
“Ah! Felicidade. Onde estás que não te vejo?” Juro que tais foram os
pensamentos que passaram pela mente arguta do gato. Num triz ele zarpou pela

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rua, pulando montículos de barro e crateras de asfalto, para finalmente sorver o


oxigênio puro à janela do apartamento de um casal muito simpático e amigo que
morava na rua perpendicular. Como que agradecido pela presença, pelo menos em
espírito, do Leviatã, Osíris desejou dar-lhe algumas lambidas e pôs-se a contar
estrelas, enquanto tal momento não chegava.
É escusado dizer que a cachorrada desapareceu na noite, ganindo horrorizada,
fato que ratificava, sem intenção de enfiar qualquer rato na história, mas, sim no
sentido de garantir a lenda popular de que os cães têm uma sensibilidade bastante
apurada, de modo que podem sentir vibrações, energias e fantasmagorias diversas
no recôndito das trevas e dos corpos dos seres, coisa que para o humano não passa
de invencionice de quem é portador de terrível deformidade mental. Podemos até
aventar a hipótese de que teriam, os cães, identificado na criatura Anselmo um
ascendente, o qual superior e sábio viesse para os punir. Nunca se saberá. Mas a
preocupação maior, sim, e, era necessário, muita cautela, cuidados, visto que os
felinos logrados, ao mesmo tempo que bradavam contra os quadrúpedes fujões e
suas mães prediletas, já arquitetavam a desforra, com sutis imagens da violência.

3) A história poderia parar por aqui, livrando o leitor insigne de conhecimentos


atrozes. Mas, de que vale o poder e a iniciativa de escrever, se não se conta tudo?
Não posso favorecer o leitor mais fraco evitando os acontecimentos agros, em
detrimento da verdade. Custando o que custasse, eis a verdade, fria e crua, como se
me apareceu.
Osíris, descuidado como um animal felino, enquanto tentava pegar uma borboleta
amarela no jardim, não percebeu a origem dos psius e psilius. Não percebeu que
quem fazia psiu-psiu, era um dos dálmatas. Ora, junte-se um pouco de curiosidade
de gatuno ao descuido e temos o desastre. Osíris foi ver o que era. Saltou sobre o
muro e sorriu. Lá embaixo, numa bela clareira no meio do jardim do vizinho, havia
uma aglomeração que foi facilmente identificada como um congresso ou simpósio
entre artrópodes. Sim. Com jeito era possível perceber que, se não fosse invasão de
insetos de Urano, com certeza tratar-se-ia do desfile anual das Taturanas; era uma
das coisas que deixava Osíris bastante embevecido, sempre esperançoso de que
algum dia tivesse a honra de ver o nascimento de taturanas sem aquele horrível
manto ardente, inibidor de abocanhações e similares ações. Ingênuo, pulou e juntou
as patinhas, olhando o grupamento ali parado.
Parado. Realmente parados. Taturanas, Taturanões, Taturaltos e outros da
parentalha, não se moviam! “Algo estranho por estas bandas”, pensou Osíris. A sua
cabeça dava tratos e permitia que as orelhas tentassem captar sons suspeitos. ”Não
estou gostan...”
TABÉFE!!
Tabefe foi o barulho que fez apenas uma patolada e, o pequeno gato foi parar contra
o muro, para ele o das lamentações, deixando uns pelos colados na parede caiada.
Estava tonto. Não notara que fora uma cilada. E, olha que não despregava os olhos
da televisão. Devia conhecer todos os truques.
Os três dálmatas – Cão, Canicho e Canaz, – armaram uma arapuca onde o herói
caiu como um passarinho, para ficar mais irônico. Enquanto se erguia, ou pelo
menos tentava, pensou nas taturanas que serviram de isca para a captura, mas, não
teve tempo de terminar o pensamento... TABÉFE! Outra bofeteada bem dada fez o
gato rodopiar mil vezes ao som das gargalhadas incessantes dos dálmatas e dos
gatos, funâmbulos, sobre o muro.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Canaz caiu de mordidas sobre o pêlo brilhante de Osíris, o qual pêlo, em poucos
segundos ficou empapado de vermelho. Cão, o do meio, seguindo as pegadas do
irmão mais velho, puxou Osíris usando as orelhas do gato, girando-o no ar, para em
seguida largá-lo e vê-lo cair sobre o tanque de lavar roupa, previamente preparado
com sal, aguarrás e soda caustica. Osíris não sabia nadar e, enquanto se afogava,
como é de praxe nestas circunstancias de desencarne, tudo o que foi vivido passou
pelos pensamentos de Osíris, pesando seus erros e correções, rememorando os
dias e as noites, suas ações e miadas, seus saltos mal dados e seus namoros
imorais; memorava os inúmeros filhotes espalhados pela vizinhança e orou para que
o deus gato, o Felis catus maximus, pedindo para os seus inimigos não se
vingassem nos petizes. Apesar da flagrante exteriorização de bondade, Osíris fez a
chantagem usual; barganha cósmica; suplicava pela vida (na sua conta ainda
faltavam três, das sete) em troca do que, ele mudaria de conduta, diria preces para a
lua todas as quintas-feiras; a lua, mãe dos poetas e lunáticos, dos notívagos e
vagamundos, clareava as noites e não deixava que Osíris enfiasse a pata em telhas
soltas.
Mas, os cães não pretendiam vê-lo afogado, pelo menos, por enquanto.
Canicho, o caçulinha e, diziam, o pior dos três pois estava na fase de auto-
afirmação, pescou, por assim dizer, Osíris do tanque antes que esse pudesse
perceber o gosto do Terebinto e, enquanto enchia-o de palmadas e pequenas
mordidelas só para treinar, carregava-o para os lados de um formigueiro, sob a
ovação da gataria inimiga, platéia, sobre o muro.
Era um formigueiro de saúvas graúdas, sob umas pedras pintadas de branco. O
interesse de Canicho, no entanto, não eram as formigas, mas, as pedras. Umas
pontudas, outras rombudas. Sua intenção era, definitivamente, acabar com a
brincadeira e calcar uma pedrada na cachola do gato. Osíris percebeu e foi com
desespero que lutou sua última batalha.
Os gatos inimigos o vaiavam.
Retirando, porém, energias suficientes para ser considerado o Gato do Ano, Osíris
crispara os dedos das patinhas, arrepiou os pêlos, contraiu a musculatura, riscou o
ar com suas unhas afiadas e, num movimento convulsivo, rabiscou a cara de todos
os cachorros que apareceram na sua frente. Havia três, mas Osíris, à essa altura do
campeonato já via uns quinze.
A platéia estatificou-se. Era impossível que ainda se salvasse aquele biltre! Se não
fossem inimigos até aplaudiriam o arroubo! Depois de tanto apanhar ainda reunia
forças para a luta! Gatuno!
Osíris, sem perder sua constante ingenuidade, subindo pelo muro com loucura
selvagem, estendeu as patas para os gatos que o olhavam lá do alto, supondo que a
espécie falasse mais profundamente no coração. Contudo, a única coisa que fizeram
foi segurarem suas patas apenas o tempo suficiente para Osíris perder o pique da
arrancada. Após, uma bela chacota, largaram o herói dentro da boca de Canaz, que
não perdeu mais tempo e o mastigou, assim como quem não quer nada.
Mas, parecia, a divindade estava ao lado, imensamente protetora. Os pródigos
sempre serão exaltados e os destruídos serão... destituídos. No alto, sobre o peitoral
da janela, fazendo menção de pular, a modos de quem limpa vidraça, uma sublime
visão! No momento em que Canaz se preparava para a segunda mastigada, tendo
aberto a boca ao máximo, com olhos voltados para o céu, saboreando o manjar com
prazer inaudito... Vê... Sim, ele vê... Vê e para... seus irmãos acompanham seus
olhos medrosos... Osíris cai-lhe da boca que não mais se fecha e sai,
manquitolando, com as patas nos quadris. Bem sabem que os cães pararam porque

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

a excelsa criatura enviada por Felis catus maximus, o Leviatã adormecido, não lhes
saia da pupila canina de cada um. O horror chegara aos três dálmatas que se não
sabiam se fugiam ou se prostravam ali mesmo, em adoração ao deus supremo - ou
àquilo que julgaram ser a deidade máxima, que perambulava a esmo, batendo a
cabeça numa e noutra parede.
E, é no atônito da cena, sob o olhar boquiaberto dos gatos inimigos que Osíris
escorregou, indo para longe, esconder seu corpo alquebrado e mal tratado, num
desses socavões de terreno, somente conhecido por ele e Kristh.
Afinal, o que levou essa turba de felinos a odiá-lo? Uma única resposta é esperada.
O amor integral de Kristh, votado totalmente ao nosso herói. A gata ronronante, de
pêlos longos e sedosos... Kristh com a boca cheirando a sardinha... Kristh das
lambidas úmidas e movediças... Kristh dos encontros fortuitos e noitadas festivas.
Kristh dos bigodes sensíveis e dos abraços que o aga(ta)rravam fortemente... Kristh
bela... Num último pensamento Osíris quase sucumbe... “Kristh, querida Kristh...
(com as patas erguidas) Não tome todo o leite...”, e, desfalece.

5) De fato, Kristh foi encontrá-lo pela manhã, e lá estava o gato no buraco,


gemendo de imensas dores ferinas. Rapidamente, com ajuda de amigos, Kristh
levou-o para junto de sua senhora-mãe-eternecida-protetora já por nós conhecida.
Contar o sentimento profundo e a sensação pungente que atracou, esta é bem a
palavra, na alma da mãe adotiva de Osíris é impossível. Podemos dizer que várias
baldes de plástico, usados em limpeza, não poucos, foram completos até a boca só
com o pranto cascateante vertido pela mãe-adorada-importuna-repressora, por
ocasião do encontro ao mesmo tempo terno e doloroso. Não se sabia sobre a
gravidade do estado do animalejo infeliz. Era necessário que um douto fosse
chamado para as devidas consultas.
Assim foi. Apesar disso, Osíris foi perdendo, lentamente, e de certa forma, fácies de
enfermo do corpo para ganhar, aos poucos, um semblante de enfermo da mente.
Para a materna-suplicante-ensinesmada-pranteante, isso não podia ser, afinal, é do
conhecimento de todos que o chamado amor imenso e sublimado leva as pessoas à
não raciocinarem, ao mesmo tempo em que pensam ajudar, quando na verdade
atrapalham. E, ela, mãe-senhora-sublime-fervorosa, não acreditava, por
conveniência própria também, que o bichano predileto estivesse abestalhado.
Desculpe, leitor, mas eu diria, sucumbindo em seu estado psíquico. De moribundo a
alienado, não havia escolha. Que se fizesse o desenlace vital, o trespasse desta
para melhor o mais rápido possível, mas, louco (?), ela se perguntava, louco não (!),
ela se respondia e, o caso ficava sem definição. Para a mãe, o fato de usar brincos
no rabo (falo do gato), não era sinal de loucura, mas, talvez ele apenas estivesse
assumindo uma postura moral diferente, apenas. Contudo ela percebia que tentar o
menor contato com ele, Osíris se tornava arisco, apimentado, salobro ao extremo,
evitando o relacionamento familiar e íntimo, de modo que a mãe permanecia com as
pernas abertas à toa.
Mesmo a namorada-amante, a macia Kristh, ficou desapontada ao notar
modificações no caráter do gato. Seu amor por ele não diminuiu, não morreu, é
claro, mas ela se preocupava; havia muitos gatos pelas redondezas, o que não
seria de importância maior caso o período do cio não estivesse próximo.
Osíris, medroso e estremecido, via dálmata por todo lado e não poucas vezes
testemunhou-se brigas homéricas entre Osíris e a vassoura de pelos.
Enquanto isso, a mãe-avassalada-insatisfeita, pensava que apenas seu rim (falo do
gato) é que estava fora do lugar. Nem mesmo a presença do Leviatã adormecido

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

ajudava na melhoria do felino. É bem verdade que as ataduras que enrolavam a


cabeça do Leviatã modificasse um pouco as suas feições; a cabeça totalmente
enfaixada e os óculos desequilibrados sobre os panos, de modo que o gato
dificilmente reconheceria o seu salvador através dos óculos. É que o Leviatã caíra
da escada. Não tivesse o Leviatã caído da escada, numa das suas incursões
noturnas e seria possível pensar em salvação para Osíris.
Em poucos dias ficou demonstrada a traumatizante verdade de que Osíris penetrara
nos recônditos da psicose-maniaco-depressiva, – um bipolar de peso. Todos
esperavam que de um momento pra o outro ocorresse o suicídio, principalmente
profetizado pela mãe-abnegada-chorosa-lacrimejante, moradora da Rua Maestro
Ricardo Ferreira, cujo perfume favorito deveria aromatizar segundo o Musgo,
domestico e selvagem, mas, que se fosse presente poderia ser qualquer um.

6) Finalmente marcou-se o dia da consulta com um medico psicanalista de gatos


que, por coincidência, visitava o Brasil, país dos gatos, gatunos, gaturamos, mãos–
de–gato, para passar as férias de verão, que para ele eram de inverno.
No começo o medico tentou se esgueirar, fugir da responsabilidade, copiando os
nativos, dizendo que não entendia a língua do gato, uma vez que o paciente era
morador de terras tupiniquins desde muito tempo. Deixou perceber que tinha certa
ojeriza por gatos judeus, apesar do nome egípcio para confundir, já que ele, o tal
doutor, era de origem teutônica e, não ficava bem cuidar de um de seus
arquiinimigos de política e de raça. Por outro lado, o doutor Duerf, deixou bem claro
que dissera tudo aquilo para que os jornais não propalassem que um Austríaco da
Moravia havia se entendido com um israelita tropical e, ele não corresse perigo de
uma vez voltando à sua terra se visse marginalizado, com reputação abaixo de zero,
solidificada pela descoberta de que ele, Duerf, que estudou a muito custo em Viena,
também era hebreu e, que na volta à sua terra natal o pau comeria.
Mais tarde o renomado doutor confessou que adorava gatos siameses, no entanto
não mudaria de idéia, por dinheiro nenhum.
Mais tarde ainda disse que tinha dúzias de gatos em casa. De qualquer tipo e raça.
Gostava de ficar respirando ácaros de pelos, quando os pelos se amontoavam em
seu travesseiro e adentravam pelo nariz durante o sono. Concordou, por fim, em
tratar do Osíris, mas exigiu rapadura e curau.
Aceitou o caso e, no dia 23 de setembro, ano de 1983, o aloprado bichano foi
conduzido para o apartamento do médico, sob todos os cuidados; narcotizado,
amarrado com uma leve camiseta–de-força no estilo “vem cá, meu puto” e uma
viseira, sob um belo capacete metálico de motociclista, para que seus inimigos não o
reconhecessem, e, vice-versa.
Para não prolongarmos a historia temos de fazer um sumario do tratamento aplicado
e as importantes conclusões deixadas pelo doutor Duerf Freiberg, retiradas do diário
do médico.

26 de setembro – o paciente continua arisco. Mas, foi possível ganhar um pouco da


sua confiança no momento em que o coloquei frente a frente a meu fiel auxiliar vindo
da Lapônia, o qual, não sei se vale dizer, parece um verdadeiro cão São Bernardo,
cujo barrilzinho de conhaque esta representado pela própria barriga, que de vez em
quando arrota. Fisiológico. Mas, ao vê-lo, Osíris acalma-se. Contudo faz dez horas
que canta pirulito-que-bate-bate e ainda não parou.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

1 de outubro – o paciente sofreu melhora, uma vez que depositou suas produções
orgânicas sobre o tapete do consultório, o que é muito natural. Ainda assim ele
confunde o bom auxiliar lapão e, é preciso muitas vezes retirar o auxiliar da gaiola,
por três motivos: ter sido perseguido pelo paciente, a necessidade que tenho de
seus serviços e, para que não acabe com meu estoque de queijo.

2 de outubro – é domingo fui a praia. O lapão ficou tomando conta do bichano em


tratamento. Quando saí os dois estavam trancados no banheiro escovando os
dentes, o que me pareceu de bom alvitre. O tratamento seguia bem.

2 de outubro – noite. Terrível desastre. Osíris quase afoga o auxiliar na banheira,


depois de ter-lhe cortado a barba, a sobrancelha direita, os cabelos em nível
occipital, os cílios da parte de baixo, os pelos do ouvido, tudo isso usando uma lixa
de calos. Tentei desesperadamente fazer o auxiliar contar como aquilo tudo
aconteceu, mas, só depois percebi que ele tinha um sabonete incrustado no larinx, o
que explicava as bolhas que saiam do ouvido esquerdo da vitima. Não entendi o
sorriso sacana de Osíris.

5 de outubro – o tratamento de choque não alterou a disposição do paciente... é


bem verdade que um olho pisca alternado ao outro, mas, isso não interfere no
processo de re/associação mental que tento empregar para a cura. Estou quase
certo que a histeria ora instalada é oriunda de um acometimento traumático ocorrido
no passado. Digo isso, pois o futuro ainda é desconhecido pela ciência. De outra
forma eu diria que a causa ainda está para acontecer, porém os professores de
sintaxe e conjugação verbal me atacariam pelas costas; tamanha a complexidade do
caso. Ainda não descobri porque o animal tem medo da geladeira.

13 de outubro – à minha revelia o lapão carregou o Osíris para um banho de mar


pelas imediações. Na volta o auxiliar, sem perceber, trouxe um peixe na coleira que
levara o gato. Mandei-o de volta, preocupado e com uma leve ponta de irritação.
Como explicar a perda do gato? O auxiliar trouxe de volta o peixe e retirou o gato
famigerado de dentro do peixe. Inconclusivo. No dia seguinte, à minha revelia,
refizeram o passeio mas, quem veio na coleira foi o lapão... Não sei mais onde esta
minha cabeça. Só espero que Adler não saiba desse episodio em minha vida. Acho
que começarei com a hipnose imediatamente. Esse animal é impossível e, quanto
mais ele ficar desacordado, melhor. Marquei hora com um analista do Brasil para
que me reequilibre desta enfermidade tropical. Creio que foi a carambola.

18 de outubro – cometi um erro. Deixei o auxiliar lapão dentro da mesma sala e após
algumas horas de sessão com hipnose, em que já teria atingido a idade embrionária
do gato, o auxiliar iniciou uma série de miados em língua estranha. Joguei água fria
em seu rosto, mas, ele continua se lambendo. Fazendo Osíris voltar ao estado
normal de vigília, o lapão também retornou, o que me levou a concluir que as duas
criaturas são ligadas por associação sensitiva paranormal, que não é o meu campo.
Ou o lapão ou o gato é um médium poderoso. Apesar de normal, o lapão continua
irremovível em sua atitude de beber leite no pires, debaixo do fogão. Mais de uma
vez pude vê-lo retirando pulgas com a pata trasei... (desculpe), com o pé.

25 de outubro – um mês de tratamento e Osíris já consegue receber carinhos sem


se exaltar e sem pular como se fosse de borracha. Da ultima vez, caiu no colo de

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

uma senhora moradora do andar de cima, que tricotava, e, no fim, o gato me fora
devolvido engastado em uma bonita blusa. Fiquei tentado a deixá-lo assim,
confesso. A ética, no entanto, essa maldita consciência exterior, falou muito mais
alto. Hoje porém, está muito melhor (falo do gato e não da ética). De vez em quando
dá gargalhadas insuportáveis, mas, é só. O lapão não fora mais visto. Espero que
tenha fugido, assim não preciso pagar seus honorários.

29 de outubro – trabalho incessantemente. Utilizo o método da associação livre,


desconfio e descubro alguns traumas causadores dos distúrbios. Tem fundo
puramente sexual. Sexual reprimido, talvez. Pelo que pude constatar, Osíris ama
certa gata, mas, ao mesmo tempo é obsidiado pelo amor da mãe-adotiva-
eternecida-encantadora-dramatúrgica. Sendo assim, impossibilitando de levar a
termo a relação com a mãe, por motivos óbvios de incongruência anatômico-genitais
- se bem que a mãe-obsequiosa-defensora-masturbadora não ligue para os pelos na
boca, ele se liberta sendo infiel com muitas gatas ao mesmo tempo, com o fito de
inibir o sentimento de castração que o persegue. A gata que ele ama é a sublimação
do amor. A mãe é o amor carnal inatingível. Na verdade ambos inatingíveis... Caso a
cura se faça, a tendência será alcançar a monogamia, com Kristh ou com a Mãe.
Por outro lado sei que se formou o conhecido triplexo temporal:
a) o de Édipo, quando o gato tenta manifestar seu amor pela mãe, mas, apenas
recebe palmadinhas e tapinhas nas costas: ele queria outra coisa. Isso o frustra em
demasia.
b) Em seguida o de Éradipo, tendo o gato se apaixonado pela mãe-adorada-
maravilhosa-tribúrsica desde pequeno, confundindo o amor carnal com o amor filial.
c) Por fim, Serádipo, relacionado com o futuro, ou seja, a manutenção da
descendência, coisa que só acontecera com seres da sua própria espécie,
objetivado o interesse em Kristh, numa tentativa de integridade especifica o que não
consegue como individuo.

Ah! – NOTA - Descobri o auxiliar: estava preso no guarda-roupa e disse que não
gritou que era para não incomodar os vizinhos.
Ainda não sei por qual razão contratei esta personagem.

2 de novembro – finados. Dia de finados. Os dias chuvosos, o ambiente triste,


talvez, influenciaram sobre Osíris e houve uma recaída. Um ameaço. Seu moral só
se elevou quando o auxiliar esqueceu o dedo na tomada de força da televisão,
mudando de cor em vários canais, passando em segundos do verde mais intenso
para o adorável roxo, aterrissando no azul da Prússia numa elegante voltagem.
Alexandre Volta dar-se-ia por realizado. Aproveitei o ensejo e coloquei Osíris num
processo de catarse acentuada, visando uma melhora definitiva. Acho que estava
correto. O gato parece completamente curado. Antes de devolvê-lo à sua senhora-
ama-amada-amante-cunilínguica preciso fazê-lo desistir de usar capa preta e a
ridícula mascara de Zorro que conseguiu não sei onde. Coisa do lapão.

7 de novembro – parto amanhã consciente de terminar um trabalho. Cumpri


adequadamente a missão, espero. O avião leva minha douta pessoa para a velha
Áustria e, eu mesmo levo folhas e mais folhas de um relatório importante que
apresentarei no congresso de Copenhague, no ano bissexto de 84. O lapão sumiu
novamente, mas desta vez eu o vi sumir pelo ralo da cozinha e, numa hora como

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

esta deve estar boiando entre porcarias orgânicas variadas no meio desta imensa
baía de Guanabara, onde outrora baleias vinham dar à luz.

7) Voltando ao lar, após despedir-se do doutor Duerf, Osíris não poderia se


preocupar com outra coisa a não ser rever Kristh, que não aguentava mais o assédio
de outros gatos. Uma vez Osíris sempre Osíris e, foi com amor aparado pelas
fabulosas técnicas da psiquiatria e muita relação, que se encontravam no socavão
de interlúdios, à meia – noite de uma época quente e tentadora. A mãe-adorada-
idolatrada-confidente-esperançosa-arfante passou a dormir bem, uma vez que o
gato, não raro, se instalava entre suas pernas durante as madrugadas. Quando isso
não acontecia ela comprava o biscoito Língua e Gato, lambia-os e se esfregava
neles.
Cães e gatos, sabedores do relacionamento e cura total do felino herói, armaram
novo golpe, alicerçados em planos e estratégias dos melhores generais, mas,
desistiram quando se lembraram da constante presença, quase divinal, onírica,
soporífica, tetraóptica, do fantasmagoricamente alvo ser, que sempre exercia peso a
favor do gato Osíris. No momento oportuno lá estaria ele, o Leviatã adormecido, com
seu passeio sonambúlico, assombrando, suas ínfimas vidas de animais.
Resolveram, cães e gatos, confraternizarem e esquecer. Discutir, sim, mas, outros
assuntos de menor importância, deixando de lado Osíris e Kristh. Resolveram
encher a cara num barzinho chamado, ironicamente, “Quatro Gatos”, na esquina e
aproveitaram para cantar jingo-bel, uma vez que já era natal e, o que ia sobrar de
perna de peru por ali, não era brincadeira.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

O TRISTE FIM DE UM
FUMANTE INVERTEBRADO
(uma novela do pigarro)

1) Inicia-se a história quando um desses tabagistas convictos, Cruzsouza,


adentra com toda a pompa e circunstância o hospital dos cancerosos, com o instituto
de salvar a sua vida de suicida a longo prazo; após passar por milhares de cigarros,
além de cachimbos, charutos, cigarrilhas, enfim, todo o arsenal que se utiliza para
ter charme, segurança em si mesmo, status, pose, e o divertido ar intelectualóide
que acompanha a pose dos que usam óculos e soltam fumaça pelas ventas,
Cruzsouza preferiu entrar na faca.
Cruzsouza era um desses. Digo era, pois, conto já o fim da história, apesar da
sua tentativa de tratamento, Cruzsouza veio a falecer meses depois. Câncer no
pulmão. Em compensação foi enterrado sob o som da marcha fúnebre de Chopin e
discretamente forrado por um tumor brônquico dos mais malignos. Graças,
exclusivamente ao cilindro branco do prazer inaudito. Como se diz? Numa ponta
uma brasa na outra um idiota.

2) Mas, voltemos no tempo e encontraremos Cruzsouza subindo em um ônibus


em São Paulo. Ele fuma, mas, ao pisar os degraus do coletivo atira a guimba do
cigarro para o chão. Ouviu alguém gritar:
– Fumante porco! Não viu a lata de lixo, dragão?

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Era um caçador de fumantes. Cruzsouza manteve-se quieto, pois é sabido


que alguns desses caçadores são iracundos ao extremo e não poucas vezes já
desandaram dragões, digo, fumantes a tapa. Mas, continuando, em São Paulo,
Cruzsouza jogou o toco do cigarro no chão, antes de penetrar no ônibus.
No Rio de Janeiro, no entanto, o mesmo anti-herói subiria na locomoção
levando no meio dos dedos o símbolo fálico do cigarro e, em largas aspiradas,
soltaria rolos de fumaça branca para a atmosfera fechada do coletivo. Novamente
ouviria uma voz:
– Não tem respeito, dragão-porco-fumante? Passa pela sua cabeça de esfumaçado
que muita gente não quer ter fumaça nos pulmões? – enquanto o homem falava,
Cruzsouza passava pela roleta, temeroso de tomar um tapa na cara. – Já basta a
atmosfera poluída da cidade. Não precisamos de mais uma fonte de sujeira por aqui.
Não houve reação, pois, evidente, era mais um daqueles caçadores.
Cruzsouza teve que ouvi-lo durante toda a viagem. Às vezes, um grupo de fumantes
se reunia e não permitia que os caçadores se manifestassem, no entanto, naquele
ônibus o acaso permitiu, ele sim, que Cruzsouza subisse sozinho e tivesse que
agüentar olhares de repulsa e esgares de ódio por parte da vizinhança. É claro que
jogou o cigarro todo no chão.

3) – O fumante, antes de tudo, é um basbaque! – gritava na rua um associado


do Movimento de Caçadores aos Fumantes Invertebrados, parafraseando o
Euclides. As pessoas que passavam sentiam medo, pois os caçadores tinham se
tornado de ativistas políticos a perigosos exterminadores de fumantes. Surgiu a
Nova e Mística Irmandade Contra os Adoradores do Tabaco.
Fumantes e adoradores do Tabaco formavam um grupamento religioso que,
ao longo dos séculos, dominou os povos com sua opressão desmedida, se bem que
sutil. Tudo começou quando Phillipe Maurício Camelo fundou a primeira igreja da
seita. Daí em diante, os adeptos, que já existiam apesar de esparsos (a diáspora
fumígena) aglutinaram-se para praticar suas ações mesquinhas, ou seja, andar com
aquele troço pendurado na boca (como se já fizessem muito e se achando os tais)
originando um dos maiores movimentos religiosos dos últimos tempos. Receberam o
nome de Adoradores do Tabaco.
A fundação da nova seita desmembrou as outras, uma vez que adorador de
Tabaco tem em qualquer religião. Fez-se a ruptura dos fiéis que passaram a
freqüentar a nova organização.
O fumante, antes de tudo, é uma besta! Uma besta suicida! – uma pedrada
fê-lo calar a boca. O homem desabou do alto do pedestal e uma batalha campal foi
iniciada no meio da praça, alimentada pelo pretexto da pedrada. Fumantes e não-
fumantes se desancavam em sovas e catiripapos homéricos.
A polícia chegou para serenar os ânimos distribuindo cacetada para todo
lado. Mas não conseguiu.
Cruzsouza, no entanto, apesar da seita, e do seu amplo desejo religioso, não
era um fiel Adorador do Tabaco. Quer dizer, era um livre pensador, um livre fumador,
experimentava de tudo, até bosta de cavalo; fumante, mas não filiado a seitas de
espécie alguma. Mas, para quem não fumava, todo aquele que se mostrava em
público manipulando um nocivo aparelho, aparelho de cabeça esbraseada, era logo
rotulado e devidamente escorraçado, se não em pensamento, em palavras ou
ações.
– Discriminadores! – gritava em seus pensamentos para a turba de não-fumantes. –
Pensam que são os donos do mundo!? Pensam que tem todo o direito a toda a

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

razão?! – eram idéias que chegavam à boca, pois uma intensa raiva se apossava de
Cruzsouza naqueles momentos, mas, não passava daí, não se formavam em vozes
ou palavras inteligíveis, uma vez que a raiva de Cruzsouza passava logo.
Mas, pergunto, o que levou Cruzsouza a adquirir vontade de fumar?
Com a palavra, o seu analista.

4) “Bem... pelas anotações secretas que aqui tenho – por favor, não publique o que
lhes conto pois sempre pensam que nós, analistas, psiquiatras, confessores,
párocos, psicólogos e prestidigitadores somos pessoas em que se pode confiar e,
não é verdade. Não publique se não pega muito mal para mim, tá? –, continuando...
(o analista folheia alguns cartões)... nas anotações que tenho tirado desses trinta
anos de pesquisas, o fumante tem um problema na esfera sexual, e, o cigarro
representaria para ele o pênis perdido”
– Não entendi.
“Bem, meu caro, é o desejo interior que se manifesta. Apesar de uma ou outra
pessoa ser ativa sexualmente não significa que não seja impotente. Aí está o caso.
Falando sobre Cruzsouza, que representa a maioria, aquele que fuma, só é potente
enquanto fuma. Há um problema na afetividade, na autoconfiança, algo como o
intenso desejo de ter sempre a mão um pênis, daí o ato, de manipular o cilindro. No
caso das mulheres...”
– Ia perguntar sobre isso.
“Bem, no caso das mulheres, é mais aceitável o interesse pelo falo, digo, pelo fato
de manusear o cigarro. Apesar de doentio ainda mantém a ligação heterossexual...
já no caso dos homens, (e, aqui o analista faz um muxoxo), o confronto
homossexualidade versus normalidade, lá na cabeça dos fumantes, é o que os leva
a usar o cigarro como atenuante dos apetites, uma vez que não assumem a sua
condição de homossexuais”.
- E, aqueles que deixam de fumar?
“Você já ouviu falar em ex-viado? Encontramos muitos deles nas igrejas
evangélicas... aí é fácil entender que já resolveram seus problemas. Assumiram: não
mais o jogo homossexual e passaram a trilhar um caminho hétero. É uma opção que
fazem. E, além de decidirem seus caminhos, pois já não terão a sensação de
adultério, quando são homens casados, respirarão muito melhor, já que
inteligentemente escolherão o ar como gás respiratório e não a nuvem cinza-
pardacenta dos fumos”.
“Os que não conseguiram deixar de fumar sabem que estão no dilema do Hamlet:
Ser ou não ser. Eis a questão. Não sabem se preferem os braços da companheira
ou do garotão da esquina. Daí a pose, a falsa impressão de autoconfiança, e de
segurança que os fumantes tentam passar. Por dentro tremem e rangem os dentes”.
- Você tem alguma saída para estas pessoas?
“Bem, tenho sim. A mesma que eu disse para o paciente Cruzsouza. Tome
vergonha na cara. Ou assume ou para de fumar. Porque de outra forma me
encontrará pela frente. Eu também sou membro dos caçadores e a minha meta é a
solução final. Não pelo fato de serem ou não homossexuais, mas pela porcaria
daquela fumaça nojenta que me dá ânsia de vomito. Acautelem-se, dragões!”.

5) Naquele dia, Cruzsouza foi para casa e lá, somente lá, fumou quatro cigarros de
uma vez. Completamente deprimido, pois não sabia da gravidade psicológica do seu
caso. A ciência da mente estava muita adiantada. Descobria o desajuste sexual de
um indivíduo pela largura do seu cigarro.

Coelho De Moraes 21
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Naquela noite, Cruzsouza pensou em todos os chamados grandes homens que


fumavam charutões; refletiu na complexidade dos casos dos cachimbeiros –
excetuando as angiospermas, - de boca torta. Seria o detetive Holmes um
problemático? E, Watson, que apito tocava, naquela situação? Seria, o médico,
analista do detetive inglês ou... Apenas a manutenção de uma chama platônica
naquelas vidas sem amor, correndo atrás de criminosos comuns e cães
madrugadores? Churchill, Fidel, Stalin, os capitães de indústria, seriam produtos
doentios oriundos da busca do poder, em detrimento do emocional?
Na manhã seguinte Cruzsouza tinha fumado para quarenta dias, então teve a sua
grande crise de dificuldade respiratória. Foi parar no hospital do bairro, já roxo,
locupletado de fumaça, atingindo, suponho, um orgasmo fumífero.
À tarde recebeu a visita da noiva. Muito chorosa. Abraçou-o.
- Mas, o que foi que aconteceu? – pergunta típica das pobres pessoas que, leigas
em questões médicas, se atemorizam antes a visão de um bisturi ou de uma roupa
de paciente hospitalar, ambos fedendo a formol.
- Querido, o que aconteceu com você? Esperei-o a noite toda. Meus pais saíram e
pensei que fossemos aproveitar a noite para que pudéssemos por pra fora todas as
nossas frustrações íntimas e, você ficou aqui, deitado, dormindo?
- Desculpe-me, Diocréia, mas, não foi minha a culpa. Saí muito deprimido da análise
e acabei tomando uma fumarada. Vim parar aqui para equilibrar com oxigênio. Já
não respirava mais.
- É claro que puseram a culpa no cigarro, - disse Diocréia.
- Foi o que me disseram... isso mesmo. Mas, o que mais me deprimiu foi a sentença
de morte que ouvi da boca do analista. Percebi que era um réprobo. Mesmo em
relação a você. Já nem sei se quando nos encontramos à noite toda a quinta-feira
enquanto seus pais se retiram para o cinema, se sou eu ou meu cigarro quem
“pratica as práticas” imundas que os íncubos e súcubos nos fazem cometer.
- Claro que é você, Cruzeta querido. Eu sei por causa do cheiro.
Diocréia sentou-se na cama e abraçou o noivo entristecido.
- Por que você..., – dizia ela, calmamente, como quem tenta seduzir uma pessoa, –
não se filia aos Adoradores do Tabaco? Lá você terá suporte psicológico e um grupo
que o defenderá contra os ataques dos caçadores de fumantes. Qualquer igreja é
corporativista.
- Não sei..., – Cruzsouza hesitava.
- Acho, até, que você deveria deixar de ir a essas análises. De nada adiantam, pois
se os analistas soubessem alguma coisa... (sorriu ingênua). Mas, nesse instante,
uns rapazes e moças adentraram violentamente o quarto de Cruzsouza.
- É aquele ali, chefe! – gritou uma jovem, apontando o enfermo.
- Muito bem... – foi o começo da ordem de um dos mais velhos. – Empunhem suas
máquinas e FUMO!
Uma rajada de gases alcançou o casal desalentado, jorro que saía dos ventiladores
que os jovens seguravam galhardamente; e, aos gritos de “Desapareçam
fumantes!”, ou então, “Chaminés desequilibradas, fora”, e ainda, “Dragões
devassos!”, os caçadores de fumantes desapareceram pelo corredor, sob o apoio do
diretor do hospital, o qual permitiu a ação somente após o pagamento de seus
honorários pelo “tratamento” do Cruzsouza.

6) Sai de uma, entra em outra.


A pneumonia o avassalou. Com suas defesas diminuídas, o anti-herói nosso, ia e
voltava dos hospitais. Cruzsouza antevia a morte. Por isso chamou seu tabelião

Coelho De Moraes 22
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

preferido e ditou, em papel adequado, o seu testamento que aqui transcrevemos: -


Deixo para Diocréia minhas piteiras de ouro maciço e a coleção Cinzeiros Roubados
dos Hotéis. Deixo vinte mil folhas de papel especial para a Fundação pelo Estar do
Fumante..., – mal sabia ele que naquela mesma semana uma guarnição de
caçadores tinha invadido a Fundação, depredando-a por completo. Tomaram do
presidente, enrolaram-no em folhas de papel bem grosso e, após formarem uma
fogueira com os quilos de rolo ali encontrados para se fazer pito, moquearam o
presidente, defumando junto as paredes do local destruído. No entanto, Cruzsouza
continuou com seu manifesto..., – Deixo as garrafinhas com fumaça expelida por
pessoas famosas, compradas na zona franca... para os meus amigos em
dificuldade... econômica, impossibilitados de conhecerem... pessoalmente... seus
ídolos. E, por fim... deixo todos os meus cigarros para as... gestantes que pretendem
fazer de... seus filhos... bons fumantes, o que compensará... a inferioridade mental
com... a qual... eles... fatalmente nascerão...
E tombou para o lado.

7) No fim de semana sentiu dores no peito e foi passar por observação no hospital
do câncer onde se constatou anomalia pulmonar e pouco tempo de vida. À medida
que caminhava pela rua, vendo as pessoas caídas na calçada, relembrava
neuroticamente quando o leitor da radiografia fez cara de quem não gosta, ao notar
os problemas. O radiologista olhou para Cruzsouza, deu a volta à mesa e perguntou:
- É fumante?
- Sim, sou. Mea culpa, mea culpa, mea culpa – disse, batendo no peito magro.
O radiologista sentou-se para escrever a sentença, ou melhor, o laudo da futura
morte e falou:
- Bem feito palhaço! – e ainda riu.
Enquanto caminhava pela rua, Cruzsouza pensava sobre isso, mas via, como já foi
dito, muita gente deitada, sufocada, desmaiada: violetas e púrpuras faces voltadas
para o céu. Nisso... Nisso o cerco formou-se. Eram os caçadores de fumantes. Eles
não descansavam. Um deles, irônico, falou:
- Temos uma surpresinha pra você, dragão. – E, sorriu com a ponta dos lábios.
- Que tipo de surpresa? – perguntou Cruzsouza esperando pelo pior.
- Já que gosta tanto de fumaça, resolvemos colocá-lo em seu habitat, caro dragão.
- Não estou entendendo.
- Mas já vai entender.

A um certo e combinado sinal, todos puseram máscaras respiratórias e apertaram os


gatilhos de seus aparelhos fumigadores. Cruzsouza ficou envolto durante quinze
minutos, numa espessa nuvem de fumo. Conseguiu distinguir vários sabores e
texturas, adivinhou marcas, descobriu misturas interessantes, mas, o que parecia
prazer no inicio, foi se transformando em verdadeiro suplicio. A asfixia tomou conta
do seu ser.
- Não é de fumaça que vocês gostam? Então engulam tudo! – Gritavam atrás da
parede de gases. Tonto, muito mais que peru em véspera de natal, Cruzsouza
cambaleou, tropeçou, tombou.
Era mais um na calçada.
Os caçadores de fumantes estavam bem equipados e bastante decididos em
exterminar os fracassados engolidores de fumaça. Ao derrubarem Cruzsouza,
tomaram forma e cantaram o hino: “DURA LEX FUMUS FAGATUS EST”.
Constataram que faltava um soprano para manter o equilíbrio dos naipes.

Coelho De Moraes 23
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

O HOMEM
QUE CAÇAVA KERTETSZIA
(Uma Novela Febril)

1) Antes de que tudo houvesse acontecido e, sem que os familiares soubessem,


Sanvae deixou o emprego muito bem remunerado-mordomíaco-faraônico e partiu
para o Amazonas em busca das famosíssimas Kertetszias, – animais relativamente
raros, pequenos, mas, elegantes, – habitantes de altas copas das árvores pejadas
de chuvas, cujos paladares preferiam o suculento sangue de macaco. Isso, no
começo, quando os verões eram vermelhos e os invernos dormiam em forma de
azul. Antes de que toda a tragédia acontecesse.

2) Sanvae era robusto e pesava em torno de noventa quilos bem


proporcionados. Era alto, coisa que se percebia claramente quando Sanvae se
punha em pé. Usava barba postiça quando deixou as mulheres e os filhos
pequenos, hipnotizado pelas imagens das Kertetszias, no entanto, nem bem
chegava ao Amazonas e já era dono de bonita sombra azulada em torno do queixo
oval e, uma outra, não tão bonita, que o acompanhava por toda parte, especialmente
nos dias de sol e, somente na rua. A partir daí, deixou de lado o disfarce e assumiu
a sua posição de exímio caçador de Kertetszias, se bem que fosse aquela a primeira
vez que Sanvae se enfronhava em mataria braba e se transformava em predador.

Coelho De Moraes 24
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

A história.
A fome de kertetszias apareceu-lhe aos onze anos de idade, quando seu pai, um
fabricante de botões, mostrara-lhe fotos do anofelínio. Dessa época para frente
esqueceu completamente o assunto. Um surto de amnésia galopante, por ocasião
dos vários casamentos, auxiliou na introspecção da idéia, enterrada que foi nos
recônditos insondáveis da cabeça de Sanvae. Só voltou à sua memória em relação
ao inseto kertetszia após certo sonho que teve com uma das suas sogras.
Hoje.
As famílias ficaram decepcionadas e muito choraram quando perceberam que
Sanvae partia, mas, Sanvae, empedernido como ele só, partiu num dia de chuva
grossa. O navio balançava e o almoço de Sanvae, a muito custo, se manteve no
estômago. Sua cabeça queimava de ansiedade e, por momentos viu-se em palcos
de conferências, adulado, coberto de medalhas pró-isso, pró-aquilo, recebendo
prêmios científicos.
Chegou ao Amazonas na quarta-feira.
Na Quinta de um amigo, velho conhecido, tomou vinho e mordeu carne de pirarucu,
em tempos de descanso. Esperou que a barba tomasse seu rosto completamente,
desejou feliz Páscoa para o amigo e, munido de arcabuz, embornal e sapiquás,
atolou suas botas de couro de jacaré-aligátor-crocodilo nas lamas da floresta
comedora de gente e outros bichos, na incessante busca de kertetszias.
Ia ele ladeado por cinco guias bem pagos que, infelizmente, perderam-se no meio
da jornada, levando os javalis.

3) Sanvae percebeu que adentrava reinos de kertetszias quando viu os


macacos.
Eles desciam correndo o arvoredo, em algazarra perene, mas, o detalhe mais
emocionante, muito bem explicado pelos almanaques, era de que muito macaco
tremia incessantemente e, além disso, ficavam banhados de suor – pêlos
completamente molhados!
Sanvae ria de dobrar a barriga, pois á sua mente vinha lembranças do dia em que
esguichou água sobre uma de suas sogras (a adotiva) e ela, em desespero, sentou-
se no chão aos brados e berros. Riu, também, pois o passeio pela floresta já o
esgotava, levando a esperança de encontrar o inseto para bem longe. Mas, parou de
rir quando os macacos olharam para ele... rindo também – micaretas.
Sanvae montou barraca esperando a noite.
Os almanaques diziam que o anofelínio era notívago; mais ainda, explicavam os
técnicos, era necessário capturá-lo com todas as asas, pois, determinado estudioso
levantara a hipótese de que o inseto sofreria problemas de ordem psíquica caso
fosse colocado em ridículo, sem asas; assim, seu corpo, de verde com listas
douradas se transformaria em cinzento salpicado de cor de rosa. A tese do
estudioso defendia a opinião hipotética de que kertetszias se sentiriam, então,
vexadas e extremamente indóceis, necessitando elas de tratamento com Diazepan.

4) A primeira técnica era baseada nos ensinos do sábio Barão de Itararé,


renomado bípede. A segunda era a própria idéia de Sanvae, por isso, não muito
boa: consistia em descer um prato de ouro no meio das folhagens e esperar que os
alados se sentassem na superfície fria, de modo que ficassem presos por causa de
uma possível interação eletrostática entre as patas e o ouro. Só que, ou isso não
dava resultado mesmo, ou as kertetszias já conheciam o truque, nem a mais infantil
delas ficou presa no prato de ouro e, a coisa teve que ser resolvida no tapa.

Coelho De Moraes 25
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Sanvae enfrentou um milhão de seres voadores adentrando sua barraca, como uma
tempestade nasal. Reflexo esternutatório às avessas.
Sanvae ficou alucinado, com as riquezas pululantes por toda parte, parecendo que
se esquecia que na escuridão e em massa, muito inseto alienígena e covarde podia
se entranhar na multidão e fazer das suas. Portanto, em meio a picadas, sopapos,
garatujas de braços, pernilongos e pernicurtos de várias espécies, desmaiados,
fugitivos, tontos, ouviu-se gritos, zumbido de moscas que perderam o rumo... o que
sobrou? Sobrou, como saldo da batalha, uma kertetszia presa em saco plástico
(uma pata quebrada) e, uns quinhentos e cinqüenta pontos vermelhos só no rosto de
Sanvae, o caçador.
Ai é que o mal estava feito, definitivamente.

5) Sanvae não se lembrava de nada mais terrível do que as febres que o


acossavam de tempos em tempos. Até o sangue se alterava, parecendo se
modificar em líquido movediço misturado às porcarias das mais variadas origens,
desde cocos de bactérias até protistas em decomposição. A pele amarela
combinava com o verde limão do pijama - pelo menos havia essa compensação –
mas... as febres pontuais, a tremedeira em terremoto, o suor copioso que enchia
bacias e mais bacias, tudo isso não constava dos planos de Sanvae. A kertetszia,
por sua vez, dormia tranqüilamente em seu saco plástico, tendo se restabelecido da
perna; as sogras riam a valer observando os dentes do genro comum a baterem.
Punham a mão na barriga e gargalhavam quase até desmaiarem, principalmente
quando viam Sanvae prostrado no fim dos acontecimentos.
As velhas desmontavam-se na hilariante desopilação figadal, quando o frio
desaparecia do caçador e uma febre torrencial o destruía durante horas seguidas.
Sanvae tomava forma de um barril esponjoso.

6) Sanvae passou a sonhar que uma cobrinha em forma de anel rubídico


penetrava em suas células. As mulheres já tomavam o marido por louco completo.
No desjejum ele relatava tais onirismos ao mesmo tempo em que tocava com a
destra a face morena de uma e, com a sinistra, a boca de pêssego da outra. Do
sonho, as sogras riam e dançavam quadrilha, pensando na herança e no dinheiro
que ganhariam com a venda da kertetszia sobrevivente. E, enquanto isso, Sanvae
sonhava e, ele contava que via mais cobrinhas se multiplicando velozmente até
formarem uma flor caleidoscópica que de repente, explodia, despejando pequenos
ofídios para todos os lados. Aí vinham kertetszias que tomavam as cobrinhas pelo
bico (bico de inseto?) e, saíam em direção aos macacos displicentes que sempre
existem. Então, ele acordava, com os olhos esbugalhados. As sogras se debatiam
de tanta risada justamente por causa dos olhos medrosos e desesperados. As
mulheres se abraçavam e dominavam o pavor que sentiam, bem como a ansiedade.
As crianças jogavam bola com o vizinho.

7) Do jeito que as coisas estavam não poderiam ficar piores, mas ficaram.
Era manhã de torpor e lassidão quando três mulheres montadas em fogosos ginetes
adentraram o quarto de Sanvae. Elas bateram as patas dos cavalos contra a parede
e pediram de volta a kertetszia, num idioma caprichoso. Sanvae escondeu-se atrás
das esposas, cheio de pavor. Nunca vira coisa igual, nem sentira tanto medo desde
que fora apanhado roubando jabuticaba no quintal da tia solteirona. As mulheres dos
cavalos, com a facilidade que a falta do seio direito dava, puxaram arco e flecha e

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

apontaram para o peito do caçador frustrado. Pediam, pela última vez, que lhes
devolvessem o acrídeo preso no plástico. Um cavalo cuspiu na cara do homem que
engatinhou para os baixios da cama, entre pó e chinelos esquecidos.
No entanto, nada de kertetszia aparecer.
As cavaleiras desceram dos potros coloridos e arrancaram o doente do esconderijo
e fizeram-no jurar que o pequeno anofelínio estava em correta situação de saúde,
bem estar alimentício, e, moral elevada; pediam, também, pressão arterial e variação
no peso corporal do inseto desde o início dos eventos.
Quando Sanvae sorriu concordando tiram-lhe um molar.
Sanvae benzeu-se quando as cavaleiras saíram – elas cantavam melodias
sincopadas que imitavam corridas de formigas. As esposas abraçaram-se e
maldisseram o dia em que se casaram com o poltrão caçador; já começavam a
sentir pena do inseto prisioneiro. As sogras resmungaram contra as cavaleiras,
tomadas de ciúmes, por duas razões: a primeira, menos importante, o fato de não
terem cavalos tão bonitos para pisotear o pobre Sanvae e, a segunda, talvez a mais
importante das razões, que era o sentimento de inferioridade. As selvagens eram
donas de um seio farto e interessante cada uma, enquanto as sogras não tinham
nem um para contar historia. Além disso, elas é que queriam desmoleculalizar o
genro. O doente, inútil e desacreditado Sanvae.

8) Um dia, o paciente do Dr. Zaromeu ergueu-se decididamente. Mas, logo se


deitou porque foi acometido de vertigem e dores nos artelhos. Na segunda tentativa,
três semanas depois, percebeu que estava sozinho em casa e percebeu que teias
de aranha se formavam em torno de si. Apesar do mal-estar, pôs-se em pé e
telefonou para seu amigo o Dr. Zaromeu, tendo porém de desligar, uma vez que era
domingo e o doutor não atendia, mesmo que sua mãe precisasse transfundir
sangue. Sanvae tentou no dia seguinte. Contudo, ele se perdeu nas contas dos dias.
Resolveu telefonar naquele mesmo dia, mas, já era sexta-feira; nas sextas-feiras o
insigne Dr. Zaromeu ficava em estado de animação suspensa assistindo televisão,
ou dando aulas sobre Teoria do Comportamento, baseando-se na Constituição
Federal de dez anos atrás, matéria muito interessante para sua idosa esposa, tanto
que ela dormia rapidinho.
Sanvae estava num impasse. Sozinho, pois as esposas haviam fugido com três
maridos e doze filhos agregados, mais cinco sogras de várias nacionalidades, sendo
duas de estimação; tonto, abatido, ele calçou os chinelos de tecido multi/estranho,
rumou direto para o banheiro, onde com dedos ágeis apertou furiosamente, a bem
dizer, esmagou uma bisnaga de pasta de dentes sabor lagosta, e, pôs-se,
completamente fora de si, a escovar sua boca, ate que conseguiu que o branco
fosse realmente branco e seu hálito estivesse agradável. Trocou de roupa e saiu.

9) Parado sobre a ponte, mirando as águas dos bebedouros e as correntes de


ferro que prendiam os cães, Sanvae analisou sua vida e resolveu se afundar em
pensamentos, palavras e obras. Afinal, era sua culpa, máxima culpa, por tudo aquilo
que acontecera. E, ainda teria de devolver a fabulosa Kertetszia tão bravamente
conseguida nas grotas da Amazônia!
Às suas costas sentiu passos de cavalos. Depois, a ponta de sua orelha foi
rabiscada por pontiaguda conformação em forma de dardo. Um sorriso idiota
desenhou-se-lhe no rosto, mas isso não era novidade; o ar de covardia absoluta
robusteceu-lhe a mímica facial. Foi obrigado a levar a mão ao bolso e retirar de lá o

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

saco plástico onde uma kertetszia ressonava qual anjinho. Olhou com olhos de
lagarto para as cavaleiras que lhe devolveram com olhos de águia. Sanvae dobrou
os supercílios e ficou parecendo um sabujo que tivesse levado um belo pontapé. O
dardo escreveu-lhe na testa palavras só inteligíveis para cavaleiras, centauros,
faunos e uirapurus alfabetizados. Enquanto isso a kertetszia despertava, abrindo a
boca (boca de inseto?) num bocejo incorreto.
A um sinal de mão, dado por uma das cavaleiras que também se mostrava como
líder, Sanvae abriu o saco (o plástico) e o inseto voou para a atmosfera, fazendo
questão de mostrar que já estava sufocado, puxando, em imitação perfeita, o
colarinho do casaco. Essa atitude deixou as cavaleiras bastante irritadas, de modo
que esporearam os corcéis e estes acabaram cuspindo na cara de Sanvae, numa
falta de educação das maiores que já se viu. O pobre enfermo caçador baixou a
cabeça, tristonho, mas, aproveitando para notar se tinha alguém olhando;
repentinamente, sem que as amazonas percebessem o intento, pulou no ar, segurou
o inseto incauto que ria a valer e mergulhou com ele de cima da ponte.
As cavaleiras entreolharam-se espantadas.
Os cavalos ficaram de queixo caído e foi um custo levantá-los. Mas, de nada
adiantou todo o trabalho mandibular. Sanvae e a kertetszia debochada haviam
sumido nas profundezas das águas.

10) Muito anos mais tarde soube-se que um circense fazia demonstração de um
certo animalejo considerado por todos como fenômeno voador. Tratava-se de um
homem barbudo dono de um pernilongo dançarino; fora tais boatos, nada mais
serviu para por em claro a existência da dupla. A não ser... a não ser um fato que
acabou citado nos jornais, sobre um anofelínio paranóico que assolava os casais
perdidos nos matos, nas moitas ou no escuros dos cinemas do interior, onde valia
tudo, inclusive assistir a filmes. Dizia o texto que de um circo sumira certo dia, o
pernilongo assaltante (com coleira e tudo) e, que a partir daquele momento uma
série de febres terçãs, quartãs e anãs, mais os estremecimentos, foram compilados.
Além disso, havia em hospital categorizado, uma guia de internação para o
tratamento de nervos em nome de Sanvae Kertetszia da Silva. O texto fora assinado
por um tal de Zaromeu que se dizia da estirpe de doutores da mente; soubesse
depois que não era mais do que um pobre sorveteiro especialista em distribuir
resfriados para todas as crianças do bairro. Sorveteiro e aposentado, jurava que
havia escrito para o jornal local sobre a tal história... que tinha ouvido falar não
sabia quando nem onde e, que realmente não se preocupava com a saúde dos
protagonistas da história, mesmo porque achava que não era historia e sim estória.
Vá saber!
Dizem que no fim ele teria dito, como já dizia seu José Coelho: - De qualquer forma,
fica o dito pelo não dito. Se não gostou, vá reclamar com o Benedito! – sendo, em
ato contínuo, encarcerado em célula privativa no hospital psiquiátrico, onde até hoje
caça pulgas domesticáveis, preparando-se para um espetáculo beneficente.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

O CAPETA ARREPENDIDO
(uma novela dos quintos)

1) O Gênio do Mal, pensabundo, ensimesmado lia, voraz, alguns contos do


Machado de Assis, quando um de seus ajudantes adentrou na vetusta câmara
principesca, à direita do palácio de rocha vulcânica, como quem vem dos ínferos,
aos berros:
- Oh Senhor! Oh Senhor!
- Não é preciso gritar, palerma, não sou surdo. Esses cornos não são auriculares,
mula! O que quer?
- Mas, Senhor...
- E, não me chame desta maneira se não me confundem com... o outro.
- Como chamá-lo, então?
- Que tal... Dragão... Dragãozão... Que tal? – e girou a mão no ar, em pose, exibindo
certo panache, - e estalou os dedos.
- Não sei não..., - fez o outro, - Dragãozão...? Acho que pega mal.
- Então, tudo bem. Vire-se. Chega de papo! – o Gênio do Mal falou rispidamente –
Qual o problema, afinal? Abre esse focinho e despeja.
- Avisaram da portaria que chegaram mais pessoas!
- Mais pessoas? Que jeito?
- Almas, quero dizer... alminhas...
O Gênio pulou no trono.
- Mais almas! Pombas! – ele estava, decididamente, enraivecido. – O que o Pedro
pretende? Entupir de rebotalho isso aqui? Não há mais controle sobre esta
gentama!?

Coelho De Moraes 29
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

- Pois é, caro mestre... do Mal.


- Puxa saco! Mestre do que?
- Do Mal, mestre... do Mal.
- Eu, heim?! Vai de retro Arrenegado! – falou bem alto o Gênio. Depois, dirigiu-se a
um telefone e se entendeu com a portaria do inferno.
- Alo! Aqui sou ele.
- Oi, ele. O que manda? – a vozinha através do fone perguntou.
- Seguinte: não deixa mais ninguém entrar.
- Não, mesmo?
- Não, mesmo! Manda tudo de volta para a Terra. É quase a mesma coisa. Tem
menos fogo que aqui, mas, é quase a mesma coisa.
- Por mim tudo bem, mas tem um Querubim aqui que não arreda pé enquanto não
depositar a encomenda no primeiro poço sulfuroso que aparecer.
O Gênio tapou o fone com a mão e virou-se sorrindo para o ajudante:
- Esses Querubins nem sabem que o enxofre já acabou faz tempo. São
completamente desatualizados esses velhos mensageiros. Muito bem! – virou-se
para falar no comunicador – vou já para ai, tá bom? – e virando-se para o
Arrenegado: - Vou lá numa asa e volto na outra. Fica de olho nesses pecadores. Já
passaram do ponto e eu os prefiro mau-passado. Ajoelhou não rezou o pau comeu...

2) Uma dezena de pessoas se deitava no salão de espera do inferno quando o


Gênio apareceu. Alguns se levantaram, mas, a maioria nem se deu ao trabalho.
Aliás, quando o Gênio apareceu começaram a vaiá-lo e jogar zombaria, coisa que o
desgostou deveras. Mesmo assim, aproximou-se do Homem de Asas.
- Queruba velho! Como vai? E o céu, gelado ainda?
- Diabolous! Tanto tempo não o vejo. Que história e essa de céu gelado? Anda
estudando os gregos?
- Ora, aqui um calor desgraçado, obviamente, pelo contraste, lá um frio do caramba,
não será assim?
- É que andamos passando por reformas, sabe? – e, o anjo sentou-se na poltrona de
vegetais secos. – Faz tempo que você não aparece por lá, estou certo? Não tem
saudades? Ou será que não resta uma certa... uma certa melancolia de fim de
tarde?
O Gênio torceu o rosto e disse: - Não sei, estou um pouco desorientado
quanto a esse negócio de religiosidade e fé. Olha aí, eu entrei na sala e fui vaiado.
Esses caras pensam que são piores do que eu?
- São novatos. Pecadores recentes. Desinformados... apesar da rede mundial.
- Tudo, tudo bem! Eu compreendo, mas, o pior é que continuam a fazer das suas lá
dentro, com ou sem piscina de lava ardente. Ninguém sofre aqui, a não ser eu! Em
vez de penarem seus erros, não! cometem mais. – O Gênio bateu a mão no joelho:
– São insuportáveis. Se não fosse a minha responsabilidade perante o Universo, já
teria pedido demissão.
Ficaram instantes em silêncio que foi quebrado pelo querubim.
- Lembra da revolução?
- Sempre. Como haveria de esquecer? Entrei pelo cano, – disse o Gênio.
- Penso sempre nela. Atualmente estamos chegando no ponto que você queria
alcançar já naquela época. Realmente, você estava muitos anos à frente, meu velho.
Tinha que botar um freio nisso, afinal as instituições...
- Que instituições, velho...
- Caramba... quase que o mundo fica de cabeça pro ar...

Coelho De Moraes 30
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

- Eu e o Chefe. Mas, o que faz aqui um anjo de primeiro escalão?


- Foi o que eu disse, estamos passando por reformas. Agora resolveram que somos
todos iguais, que esse negócio de hierarquia fica por conta da escolástica e, para
dar o exemplo, tenho de fazer um trabalho humilde... Coube a mim entregar essas...
porcarias pecadoras.
- O Chefe disse o que?
- Ele falou que deixamos correr frouxo... a criatura inventou a civilização e agora que
resolvêssemos o problema... Ele não tinha inventado aquilo... e foi saiu a cuidar de
suas orquídeas...
- Reformas, reformas, mas os pecados continuam os mesmos. No entanto... – o
Gênio dizia bem alto... – Não há vagas! Estamos lotados, Queruba velho.
- E, o que e que eu faço com esse lixo? – perguntou o anjo, mantendo a calma
notória de quem pouco se importa com o negócio.
- Leva de volta para a Terra. Joga num daqueles aterros sanitários...
- Nem toda cidade tem...
- Joga no rio... Ninguém vai perceber. Aquilo esta pior do que aqui. Além do mais, - o
Gênio completou, coçando a barbichela, – eu também preciso de sossego.
Reciclagem... reciclagem.,..
- Devo entender que não há negociação?!
- Não... não há... Você sabe que não há Queruba. Olha, fala para o Chefe mandar
doutrinadores de várias igrejas para desafogar um pouco o local! Liberei a
alfândega. Esse pessoal vai ficar assim até quando? Pra sempre, por acaso...?
- Segundo as escrituras...
- Eternamente, tá, eu sei, mas, reforme isso também.
O Querubim bateu nas costas do Gênio do Mal, levantou o polegar com a
intenção de se despedir, mais entediado do que insatisfeito.
- Voltando, pessoal. Não é aqui que ficam.
Muita gente começou a se lamuriar e pecadores desavisados não queriam
sair daquele antro, mas, alguns anjos auxiliares passaram a empurrar os pecadores
para fora do inferno. O Gênio sorria debochando, braços cruzados; quando o último
se retirou ele armou uma banana com os braços e pensou: - Vão amolar o boi-tatá!

3) Um dia, porém, o Gênio reuniu todo o plantel demoníaco e passou a discursar


dessa maneira:
- Senhores. A partir de hoje devo declinar da minha posição de Maior entre os
Maléficos, se bem que eu pessoalmente odeie essa denominação, afinal, não fui eu
quem mandou cortar as cabeças dos filisteus, fossem crianças, mulheres ou
velhos... (baixou a cabeça)... tergiverso... bem... (elevando a cabeça) A ordem veio
de cima... devo deixar isso bem claro. – e o Gênio estava sob aplausos e assobios
de apoio. - Deixo o meu cargo, enfim, abdico, em nome de Exu, uma vez que ele
está muito bem cotado nas bases populares e merece gozar desses direitos e
esquerdos do poder.
Exu recebeu acenos e polegares erguidos.
- Espero que mantenham a obediência a ele e mantenham aquela ordem que
sempre nos honrou.
- Mas, o que aconteceu, Gênio do Mal? Porque a mudança de idéia?
O Gênio olhou para o chão, pigarreou, passou levemente a mão na testa,
como quem tira gotículas de suor e continuou: - Devo esclarecer que estou em crise
ideológica. A minha fé esta abalada.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Os Satananases (demônios apreciadores de abacaxi), as Sapatãs (demônios


fêmeas cujo pecado era o lesbianismo explícito), Belzebus (os capetas bois-da-cara-
preta) e Anhangás (uns bichos perdidos dos índios), fizeram um Ó coletivo, com
suas ovaladas bocas, que mais pareciam cantantes em finales de peças corais a
capela. Estavam desolados. O Gênio das Trevas levantou os braços, fez um corte e
pediu calma.
- Acontece que não acredito mais em deus. Não acredito no Chefe!
Piorou. Todos estavam solidários com o conflito do líder; tentavam,
inutilmente, dar conselhos e caminhos para que o Gênio se posicionasse, mas,
falavam todos ao mesmo tempo, uma algaravia, e ninguém se entendia; a caverna
estava cheia e até terráqueos palpiteiros queriam dar opiniões tentando entender a
burocracia do tal processo da abdicação. O Gênio, percebendo a presença dos
pecadores gritou:
- Mas, não pensem vocês, – e apontava para os pecadores que retrocediam com as
chamas dos olhos do Gênio, – que as coisas ficarão moles por aqui. Exu será
devidamente assessorado por Ariel, o espírito do Ar e, ai de vocês desobedecerem
as recomendações dos dois. Eles soltam o Bicho-Preto encima de vocês, porcos
azedos!
- Não adianta Gênio... – o Arrenegado puxava-o pelo rabo, – fiquei sabendo que eles
adoram o Bicho-Preto... principalmente quando o Bicho-Preto morde a bunda deles.
Pausa imensa no recinto baforento.
- É, amigos. O inferno já não é mais como antes. Ainda bem! – o Gênio ainda falou,
– o problema é que em breve perderemos nossas conquistas. Eu queria transformar
o homem em deus, no entanto, ele prefere ser porco. Por isso, me vou.
- Para onde? – gritaram todos, – Para onde, Gênio?
- Para a Terra! – e sumiu na luz.

4) O padre Benedes acordara cedo. Era impossível dormir até tarde na


cidadezinha de Muganga, a Nordeste do Estado, por dois motivos: o primeiro: tinha
uma missa para rezar, e segundo: tinha de tratar de política todo dia. Eram as coisas
que mais lhe interessavam. Mas não mais do que uma terceira coisa. Espreguiçou-
se na cama e seu braço bateu nos ombros de sua secretária, a qual, por questão de
trabalho, fizera serão naquela noite. Ela imediatamente pediu benção, ajoelhou e
padre Benedes deu-lhe algo para chupar, e, como estava teso, aspergiu-a com
sêmen santo. Não se sabe até hoje se foi epifania ou orgasmo.
Padre Benedes se levantou, lavou o rosto com sabonete dos mais cheirosos,
aroma de Mel glicerinado, pôs os óculos, lançou uma pasta oleosa sobre os cabelos
pretos nº 32, tomou café puro e saiu para sacristia. Tomou da estola adequada e
rumou para o confessionário, ainda guardando lembranças da noite exemplar que a
secretária trouxe para ele. A moça ensinara-lhe truques desconhecidos, como por
exemplo, aquele do número.
Ao sentar-se no banco dos confessores, ainda cantarolando um salmo, após
fechar o cortinado, sentiu um hálito quente, através da janelinha gradeada. Achou
estranho, mas mesmo assim benzeu-se e benzeu o penitente através da janela e
perguntou:
- Qual o seu problema, meu filho?
Após uma breve pausa, uma voz resolveu se fazer perceber, mostrando uma
cor de tenor, contrariamente ao que dizem as lendas faustianas.
- Padre, eu pequei.

Coelho De Moraes 32
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Benedes, no reflexo, quase que disse, “eu também e daí?”, mas se conteve.
Tinha um papel a desempenhar, papel decorado arduamente em anos de seminário.
- De que forma o filho tem pecado? – o padre perguntou, ajustando os botões.
- De muitas formas... eu... por exemplo, acho que governo metade do mundo... mas,
a principal delas, que eu acho, é a ocultação de criminosos.
- O filho precisa entregar os criminosos para a justiça. – Benedes aconselhou
piamente sem atinar muito com a coisa.
- Qual justiça? – apesar de tudo a dúvida continuava.
- A justiça dos homens... é claro.
- E na justiça de Deus, não vai nada?
- Deus já terá julgado tais criminosos, mas mesmo assim eles precisam prestar
contas à comunidade onde vivem. Precisam ir a julgamento.
- Mas, isso já aconteceu. Foram punidos, foram condenados e coube a mim, sob
ordens de Deus, ocultar pra sempre tais criminosos!
O padre Benedes pensou: “De todos... esse é o mais louco”!
- Não estou entendendo.
- Mas vai entender já já!
Durante alguns segundos o padre Benedes ficou entre sair do confessionário
ou esperar, mas, repentinamente a cortina abriu e uma alegoria vermelha começou
a saltar em sua frente, abrindo um tridente e chacoalhando o rabo, rindo de gaiato.
Benedes, estupefato, levantou-se, cenho franzido.
-E, agora, entendeu?
- Ainda não. Quem é você? Ainda não estamos em fevereiro.
O Gênio parou, desalentado. Baixou o tridente. Comentou consigo mesmo: -
Sem moral! Completamente desmoralizado! E, ainda, com essa roupa de palhaço
medieval!
- Quem é o senhor, se me pode dizer? – pediu Benedes, saindo do confessionário e
fechando o breviário com certo barulho brusco.
- Eu sou... – estufou o peito para dizer pomposamente – Lúcifer!
O padre Benedes olhou lentamente, de cabo a rabo, para assim dizer,
aprumou os óculos, passou as mãos pelos cabelos pintados, coçou a ilharga e
começou a rir, desbragadamente, às bandeiras soltas, às escâncaras.
- Lúcifer! Rá, rá, rá, rá, rá Lúcifer? Essa foi muito boa, conta outra! Que coisa de
louco, mesmo; louco, louco! – De repente ficou sério. – Quer brincar comigo, seu
palhaço? Pensa que tenho tempo pra perder?
Mas, o Gênio não se fez de rogado, pegou a deixa e não aceitou a
reprimenda.
- Ah! Então ficou nervozinho, heim? Vai mesmo me esnobar, padreco? pois fique
sabendo que Tonica acaba de se levantar, está se lavando, limpando o que ficou
preso nos pelos...
O padre ficou lívido. Perguntou:
- Como é que você sabe?
- Já falei o meu nome. Mas você custa a acreditar... ainda... posso garantir que o
seu pedido de empréstimo ao governo não passa na câmara. Será rejeitado, pois
descobriram que o seu interesse é aliviar os cofres públicos de recheio, não é? Além
do que a cidade ficaria com uma dívida até o ano 2010.
O Padre Benedes retrocedeu um passo.
- Você deve ser agente dos fiscais!
- Não, meu inimigo, não! Sou o anjo das trevas! – e sua voz tremeu.

Coelho De Moraes 33
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Imediatamente o céu se fez negro, vestindo túnica de ventos e nuvens


cinzentas, lançando coriscos prateados por todos os lados. A chuva desabou
soturna sobre a igreja. Somente sobre a Igreja. O pároco não conseguiu fechar a
boca e benzeu-se.
- Não acredito em você! – Benedes gritou.
- Mas, eu acredito em você e sei que o inferno está lotado, por causa da existência
de pessoas do seu tipo – e, o sol voltou escandaloso, ardente e súbito. O Gênio
coçou a barbicha. O rabo, com um volteio se aproximou do padre, que retrocedeu
mais um passo, retirando o crucifixo e passando a rezar.
- O que você deseja... Anjo decaído?
- Nada. Apenas vim para me confessar, mas, parece que são poucos os que levam
suas funções a sério neste planeta. – e, a voz do Gênio pareceu a dos narradores
dos antigos filmes noir, meio anasalada e veludosa. - Os terrenos merecem!
Mostrei-lhes o fruto e me chamaram de Serpente Maldita. Quis esclarecê-los e me
prenderam na pedra para que Abutre comesse minhas entranhas, eternamente.
Sabia que o enxofre acabou há muito tempo? Desde que Sodoma e Gomorra foram
destruídas por aquelas bombas atômicas gastaram todo meu estoque.
Benedes já estava escorado entre a parede e a porta da sacristia perto do
altar.
- E, estou aqui, perambulando pela terra, tentando encontrar um motivo... um único
motivo que explique porque eu sou tão amaldiçoado o tempo todo, sendo que nada
fiz. Nunca matei ninguém. O primeiro assassino foi Caim. Eu apenas tinha dado um
fruto a dois pelados que encontrei no caminho. Falaram que se eles comessem do
tal fruto morreriam e, não morreram coisa nenhuma... por aí se vê que o mentiroso
não sou eu, no entanto fui chamado de Pai da Mentira. E aí! Como se explica isso?
- A culpa não é minha, Bruxo do Inferno.
- É sim... também... pois você propaga essa informação por todo canto. Ainda por
cima, na escondida, não cumpre o que prega, quer dizer, é um hipócrita! E, eu... – o
Gênio abaixara-se para pegar o tridente que estava no chão, – ... sou mandado
para as profundezas da terra, tomar desoladas ondas de calor e alojar bandos
irremediáveis de pecadores. – Virou-se para Benedes: – Afinal, você absolveu ou
não, aquela cambada?
- Alguns têm pecado mortal, seu pai do Mal.
- Detalhes Burocráticos. O Chefe está fazendo reformas, você sabia?
- Que Chefe?
- O nosso Chefe, Padre Benedes Pará Brasília Ruas; o nosso Chefe padreco!
Nisso, o Gênio se espreguiçou e pediu água. Estava com muita sede, uma
vez que falara demais. Concluiu que ia zanzar pela cidade para ver se encontrava
subsídio para a sua fé combalida, aproveitando para tirar a ridícula roupa. Devolveu
o copo e partiu.

5) Era bem tarde na tarde e o Gênio caminhava absorto e sorumbático, olhando


para uma ponte sobre o pequeno rio que cortava a cidade, chamado Ribeirão da
Enxente. Parou por ali e se pôs a jogar pedregulho sobre a água. Às suas costas, o
sol descia para a noite e ela, a noite, veio se aproximando cautelosa, mas, bem
escura. Não havia estrelas, somente névoas, nem lua, tão pouco. Breu solene
acampou sobre a cidade. O Gênio permanecia sobre a ponte e muitas vezes um
transeunte aconselhou-o a se retirar dali, pois a noite era de ninfas e duendes. O
gênio riu, mas, fingiu-se de assustado.
Mais tarde, um velho se aproximou.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Longas barbas, chapelão, cajado e voz gutural. Aproximou-se; falava sem


parar, olhos assustados, e apontava o dedo para o Gênio das trevas:
- Eu o conheço muito bem.
O reconhecido punha as mãos na cintura, olhando de lado.“Epa!”, pensou “
Não me deixam em paz!”
- Eu o conheço muito bem, você é o beiçudo... – instantaneamente o Gênio tomou
forma de um macaco que mostra os lábios com acinte, – você é o bicho, o bode-
preto... – e, novamente a transmutação em bode, mágica rápida e certeira, no
entanto o velho continuou: - O Bute, o Cafuzo, o Caneco, o Caneta...
- Eh! Péra lá. Ta legal que inventem um monte de apelidos, mas, Caneco... Caneta...
O que mais?
- Canheta!
- Essa é boa canheta... nunca tinha ouvido... Qual é?
- Você é aquele que destrói as famílias, os casamentos, os amores. Você é aquele
que acaba com a vida das pessoas... o Esquerdo, o Cão...
- Acho que o senhor me confundiu com algum bandido por aí...
- Não, não confundi coisa alguma. Você é o Canhim, o Diacho, o Futrico, o Grão
tinhoso...
- Tai! Grão-Tinhoso gostei: Tem o seu valor, a sua nobreza! Mas, e você é quem?
O outro começou a retirar a fantasia.
- Sou o Moleque de Surrão!
- Primo do Pererê.
- Exato! Às suas ordens. – Abraçaram-se. – Mas, me diga, senhor... O que é que o
Gênio faz por aqui?
- Peregrinação. Tento encontrar o caminho da nova costela de Adão. Abdiquei o
meu trono sub-terráqueo e me pus a procurar uma nova ideologia.
- Sempre soube que você era revolução pura, desde o começo dos tempos. Pau
puro... lenha na fogueira...
- Como... você nunca foi lá para baixo?
- Nunca... não é meu nível... não tenho permissão... Eu perambulo nesse nível de
Terra mesmo... Depois, fiquei sabendo que tinha ganhado um cargo no Hades.
Procurador Infernal e os cambáu, ou coisa que o valha. Eu e minha turma tiramos
você da nossa idéia, pois pensávamos que tinha traído a causa. Aburguesou,
pensamos...
- Nunca traí, na verdade. Mas, que eu me acomodei, lá isso também é verdade. – O
Gênio coçou a cabeça. Convidou o outro para andarem pelas ruas.
Tomaram a direção do cinema, perto da praça.
– Estou disposto a corromper todo mundo novamente. Dar maçã para todo mundo,
pelado ou não, e ver até que ponto, conhecendo as informações que temos, até que
ponto continuam viver como porcos.
- Isso tá difícil, Gênio, muito difícil. Vai por mim.
- Quero voltar pra ativa.
- Conte conosco.
- Obrigado. Mas, acredito que tenhamos de mudar a imagem. Assumir,
definitivamente a nossa posição de iluminados. Ser Lúcifer e ser o Guardião da Luz.
Uma volta às origens... Não é à toa que o inferno queima em luz...
- A luz da inteligência e do conhecimento... – o outro completou.
- Você quer coisa pior do que ser chamado de Dialho, Mafarrico, Rabudo, ou
mesmo, Pedro-Botelho? Baixo nível.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

- Baixíssimo. É, Gênio, você tem razão. Os inimigos sempre tiveram a mídia nas
mãos.
- No entanto, de qualquer forma, estou pensando num caminho.
- Aconselho a falar com o Chefe. Direto com ele. Afinal, você era o segundo na
hierarquia, não era?
- Estão ocorrendo reformas nas alturas.
- Quem disse?
- O Queruba.
- O Queruba é um reaça dos piores. Conservador! Cuidado com ele. Porque é que
você pensa que ele agora carrega o lixo lá para baixo?
O Gênio fez cara de espanto e ares de ignorante. O outro passou o braço
sobre o ombro do gênio, dirigindo-o ladeira acima, na direção de um agrupamento
de pecadores em potencial.
- As reformas estão acontecendo, sim, mas, é na burocracia inteira. – o outro parou
para olhar e balançou as mãos. – Lá estão os outros. Temos programa de ação para
hoje. Quer observar?
Logo, uma multidão de anjos decaídos, pés-de-meia, zarapelhos, capirotos,
cramulhanos, dubás e entidades menos aquinhoadas de inteligência, compareceram
à porta do cinema onde passava filme pornográfico. Todos os integrantes da
comitiva principiaram a insuflar no pensamento dos jovens e das moçoilas idéias
para que se sentassem nos bancos da praça, e, discutissem as más ações do padre
Benedes e sua turma, um grupelho boquirroto que vivia num cercado de madeira
sobre o Museu; o padre, além de vigário, era o prefeito da cidade, ao mesmo tempo
em que vigário e vigarista conhecido e reconhecido por suas mulheres e filhos,
inclusive pelo Bispo, que era outro da turma.
No entanto, a imagem do erotismo estampado nas fotografias da propaganda
do filme foi mais forte e aos magotes, os jovens e as moçoilas penetraram no
cinema, muito menos pelo filme e muito mais pelo escuro onde se traficava e se
vendia gene e alma... escolhendo lugares bem escondido nos fundos e sob as
poltronas. Mesclando as ações do filme com as ações do relacionamento acalorado
na escuridão da sala de projeção, às vezes um acabava fazendo xixi na mão do
outro.
- Mas, o que foi? – o Gênio perguntou, abrindo os braços. – Sexo é proibido? Sexo é
alguma coisa de Mal?
- Aí é que está o fio do novelo. Temos poucos poderes sobre estas pessoas. Quase
poder nenhum sobre a cidade. No nosso planejamento tentamos mudar as feições
do modo de vida das pessoas, no entanto, eles preferem somente os prazeres da
carne. E nada dos prazeres da mente.
- Ante a face do espanto do gênio, o primo do Pererê falou: - E, olha que eu não sou
puritano. O erotismo esta aí mesmo, é para ser usado, abusado e acusado, como já
foi dito em outras histórias e outros tempos... mas, há outras coisas pra se fazer, não
acha? Uma revoluçãozinha ou duas!
- Pois é. Panis et circus et coitus.

6) E foi assim, que o Gênio, completamente desatinado, pronto para uma rebelião
maior do que no inicio dos tempos, partiu em vôo rasante na direção do céu.
Chamou Virgilio e Dante para o auxiliarem e não se perder pelo caminho, uma
vez que jogado nas profundas e tendo ficado durante milênios enterrado em meio a
fogo e crepitar de almas inglórias, não saberia mais como se dirigir ao grande

Coelho De Moraes 36
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

palácio no céu, nos limites do Empíreo, e, além do mais, as versões da Divina


Comédia que lhe caíram nas mãos não eram confiáveis.
- Não há palácio no céu, - disse Virgilio – O Chefe não mora em palácios. Ele está
em toda parte, você sabe. Além disso, eu não posso passar do Purgatório. Meu
crachá é verde.
- Sei de um lugar onde ele nunca esteve.
- Duvido! – exclamou Dante Alighieri – De-o-do vê-i-vi, de-o-do Duvido!
- Ele nunca esteve no Inferno! – o Gênio gritou e Dante teve que calar a boquinha,
fingindo que lia versos para Beatrix ou então que analisava as configurações do
Cruzeiro do Sul com um sextante viking.
- Bom! De qualquer forma, não adianta brigar, Gênio. Sabemos da sua importância.
O Chefe só estava esperando que deixasse a raivinha de lado e aparecesse prum
papo.
-Porra! Eu fico comendo fumaça durante séculos, jogado lá embaixo pelos
querubins, invejosos por eu ter a boa idéia de carregar e espalhar a luz, e, agora
vem um sujeito qualquer pra me dizer que era pra eu não ter raivinha? – o Gênio
estava furibundo. – Não acredito nele.
- Você também sabe que não adianta não acreditar, não é?
Dante aparteou: - O Gênio... – estava desdenhoso, – não tem capacidade
para entender essas coisas, amigo Virgilio, essas nuances, caro Mentor, essas
veleidades poéticas, enfim... essas... deixa pra lá.
- Quem pediu sua opinião, oh velhote! Fique sabendo que a Beatrix não é para seu
bico.
- Ela trocou os óculos e nem me consultou, - choramingou Dante.
- Pra você ver... Hoje ela já gosta não de velhuscos. – E, virando-se para o Virgilio,
baixinho: - Manda esse cara embora.
- Não dá. Foi ele quem escreveu o livro... E, depois, foi você quem convidou. Eu não
o traria, mas agora é tarde. Já passei por isso uma vez.
- Como é? Vamos ou não vamos? Olha a hora. – gritou Dante, fechando o seu livro
e passando a contar estrelas.

7) Assim foram os três. Virgilio: de boa vontade; Dante: de má vontade; o Gênio,


sem vontade alguma, apenas querendo descobrir a verdade última, tediosamente
escondida, sempre fujona da mão de todos.
Galgaram os sete céus. Passaram através de milhares de Anjos, Arcanjos,
Potestades, Querubins, Serafim, sendo que todos olhavam para o Gênio e davam
tchauzinho para ele. Uns bem afoitos, outros olhando para os lados a modos de
medo e insegurança.
Passaram por arcos e pontes. Transpuseram rios de estrelas e vácuos
consagrados. Voaram sobre os anciães e santos, os quais não gostavam muito do
Gênio, pois este já nascera com o dom do entendimento e da mudança, enquanto
aqueles tiveram que viver na terra para compreender os mistérios da natureza e da
renovação.
Finalmente chegaram a lugar algum.

8) No entanto, o Gênio ficou lá. Sozinho, esperando. Ninguém apareceu e, para


não perder tempo, começou a pensar. Pensou muito e se absolveu de muita coisa,
culpando-se de outras. O Gênio fazia seu ato de contrição ao mesmo tempo em que
eliminava uma fonte de problemas que não fora criado por ele mas, apenas em seu
nome. Apenas.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Acabou descobrindo que era, realmente, o ser mais importante do universo,


depois do Chefe, é claro. Ele era o Conductor das vozes canoras do céu, o Guardião
da luz, Comander-in-Chief de legiões, Príncipe do planeta terra. Que culpa tinha ele
se a criação humana era algo de segunda categoria? Algo que veio depois e, que as
más línguas não nos ouçam, ainda por esclarecer, talvez tenha sido uma obra do
acaso. Qual a culpa do Gênio se o ser humano inventou a civilização? Ninguém
mandou... uma vez dono da ciência e do conhecimento, desandou a fazer bobagem
em cima de bobagem?
Não entanto, lá foi ele para as profundezas, como persona non grata, sob a língua
ferina da turma do Gabriel.
- Eles não queriam que eu governasse a Terra, mas acabaram eles a governar, não
é? Deus no que deu.
E, foi assim que, munido de mais entendimento e aproveitando que estava em
meio a antigos comandados seus, arrebanhou um milhar deles e voltou para Terra,
numa segunda carga, carregando a Luz e tudo o que tinha direito. Uma legião
descendo no planeta ao som grandioso da abertura Prometeu, de Beethoven.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

O ANÃO GIGANTE
(uma novela de altos e baixos)
1) Não me leve a mal o leitor se inicio a história de maneira tão, aparentemente
sobrenatural. Mas, como o ocorrido foi real, as rimas bem calham para a abertura
deste simples conto. E, convenhamos, é só aparência.
No entanto, da maneira como se conta se passou. Eu acho. RUPERTO, esse
o seu gentil nome, percebeu que morava em um estranho país. Quem acaba de
nascer acha tudo estranho. Tal país estava construído no interior de um buraco. Na
verdade uma buraca.
Talvez o leitor encontre pequena desconfiança penetrando em seu cérebro e
venha a se perguntar o porquê de anões e repolhos. Esclareço impondo a voz de
escritor e digo que não estou aqui para brincadeiras e sim para contar um caso
deveras importante que pode ser visto de vários prismas, mesmo que não se trate
de uma aula física óptica. O leitor sábio bem poderá discernir sobre o enredo usando
recursos das Metáforas, da Hipérbole, quiçá da Parábola (instrumento ideal segundo
alguns exegetas), mas, poderá usar noções de Fábula, Geometria Analítica ou
Biologia Marinha. Recomendo a literatura mística, ou da hebdomadária infantil.
Mesmo assim acredito piamente que a resposta aos problemas será encontrada no
mais profundo da vida de cada um de vocês. Sei bem que o caso ocorreu em certa
época do futuro, mas, não acho lícito dizer em que época do passado eu estou.
Pode haver algum dedo–duro entre os caros leitores honestos. Honestos dedos–
duros.

2) O país onde morava RUPERTO era (des) governado por uma multidão de Reis e,
dos Reis, muita gente boa (o inimigo, obviamente) dizia que não passavam de
testas-de–ferro de outros Reis, de outros países, de outras línguas e outros hábitos,
inclusive os de higiene. Era notória a calúnia, pois os mendigos – que se contavam
aos milhões, e os miseráveis – conhecidos como povo – estavam em longas filas
pedindo emprego ou comida. O que viesse primeiro.

Os Reis, por sua vez, habitavam em uma nova cidade recentemente


construída para eles se divertirem longe dos olhos alheios, com suas coroas

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

brilhantes e seus mantos de arminho. A cada dia que passava um deles se sentava
na cadeira do trono e ditava as ordens. Às vezes uma ordem era contrária à do Rei
antecessor, mas tal era a tônica da brincadeira, causando emoções e muita dor de
cabeça aos funcionários – súditos – públicos que teimavam, por todo preço,
obedecer ao absurdo.

Os Reis do país que estava no buraco armavam risos e pilhérias,


arrecadando riquezas e créditos, transferindo tudo para bancos do exterior: mas,
essa era outra faceta da tal brincadeira. Muita vez escolhiam asseclas
automatizados para governar os burgos. Um deles foi Saulo Maluco, longevo que
perdurou como gente fina durante um tempão.

A população (leia–se “os zero à esquerda”) vivia para trabalhar. Mas, uma das
regras do jogo era não haver trabalho para todos. Existia até uma Lei que permitia
que um aposentado se matasse de brincadeira. Só se quisesse, é claro.

Uns diziam: “Eis um país pobre”.

Outros diziam: “Eis um país que já foi rico”, ou “ainda será”. Diziam.

3) Ao lado de duendes, ninfas, grifos, basiliscos, faunos, nereidas, sílfides, tágides


minhas, omeletas, e outras entidades sobrenaturais, RUPERTO cresceu e tornou–se
um jovem gigante, composto de garbo e sintomas de honestidade. Seu rosto
escanhoado por fatias de rochas metálicas, brilhavam num tom azul com profunda
quietude de mares. Seus olhos espertos domesticavam a paisagem e com
piscadelas de razão clara equilibrava o dissabor da vida solitária.

A população do buraco se orgulhava de conter, em seu bojo, o gigantesco


anão RUPERTO, em quem depositavam carinho inexplicável; talvez fosse apenas
pelo fato – pitoresco detalhe de que o repolho maternal, também enorme, diga–se,
ao ao mesmo tempo em que dava à luz tão interessante criatura tornou–se potencial
fonte de alimentos para muita família buracalina. Em especial as que se propuseram
a tomar conta do bebezinhão.

No começo faziam fila para ver o garoto, se bem que de longe já era possível
gozar a vista de suas perninhas e bracinhos ciclópicos destruindo montes e serras,
mesmo quem nunca tivesse visto um filhote de Ciclope. Parece que os Ciclopes são
tão monogâmicos que vivem sozinhos.

Depois, com o passar do tempo, foi a aprendizagem escolar, onde RUPERTO


conheceu as operações, as identidades, as raízes, as hipóteses, as sintaxes, os
relevos, o processo histórico e o mais grave, a Educação de Civilismo, matéria que
os Reis depositavam sobre os habitantes que viviam no buraco, claramente sobre
pressão e compressões. As aulas eram dadas por homens fardados de verde-bosta,
cobertos de medalhas e cantando hinos.

No entanto, foi justamente isso que lhe abriu os olhos.

4) Cresceu tanto, o jovem, que pode observar de muito alto, com muita clareza e
exatidão, por quais caminhos tortuosos o homem comum de seu país tendia a seguir
para poder se considerar um ser digno ao próprio coração.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Houve um tempo em que as autoridades distribuíam elogios e méritos. Eram


aceitas e valiam pela sua honestidade e probidade.

Em seguida chegou uma época em que a autoridade se perdeu e os que


tornavam essa coisa perdida para si distribuíram medalhas e diplomas para qualquer
um e para todo lado. Aí o pau comeu.

Os Mascarados não gostaram da idéia e os Mascarados faziam parte de um


partido francamente submisso aos Reis. Não queriam interferência no estado da
coisa. Nem na coisa do Estado. Não queriam mudanças, nem reformas, nem nada
que os fizesse tirar o dedo do pudim. Havia um ritual que era o de enfiar o dedo no
pudim. Abriam bailes e dançarinagens. Os bailes não podiam acabar pois ainda
tinha muita confete para se jogar em muita cabeça coroada. Por isso, puseram seus
cães amestrados e fiéis, de mordida dura e sangrenta, com orelhas pontudas e
ativas (pelo menos era o que se via por debaixo da viseira), bem alimentados cães a
percorrer as ruas à procura de incautos. Cães cinzentos e famintos.

A multidão percebeu que só perdia. Em saúde, para os cães; em pernas (e as


pernas) para as máquinas boleadeiras explosivas; em visibilidade, pois, em
segundos o povo se tornava pó em corpo e pensamento.

Dessa maneira, de ano para ano os Reis foram se instalando como quem não
quer nada e tomando tudo.

O existir dos Reis, porém, determinava a tomada de consciência de


RUPERTO.

E ele gritou.

5) Um berro enorme. Estentóreo. Um berro que derrubou nuvens cinzentas como se


fossem polifórmicas nuvens; deslocou camadas de ar que causaram ribombos
terríveis; a vibração da voz dividiu o mar em fendas, líquidas fendas, que
abismaram os peixes, tornaram os quelônios irrequietos, puseram desconfiança
avessa nos poríferos, inculcaram suspeitas nas confabulações dos cetáceos. Sem
contar que um aparelho medidor de deslocamento de placas continentais na
Birmânia anotou 9 pontos na Richter.

Um abalo e tanto.

Nesse momento os Reis, filhos d’algo, alguns filhos d’isso e muito filho
d’aquilo, além de valetes, vedetes, damas, ministros avulsos e oficiais, além da corja
menos cotada no Palácio, perceberam que tinha um levante às suas digníssimas
frentes. E, não era o do SOL. Perceberam que, em pé, RUPERTO ficava muito mais
alto, apesar do notável nanismo. Um altíssimo levante. O perigo imenso estava ali
mesmo, debaixo de suas barbas, executando suas damas e correlatas de escritório
que causavam bons levantes e não tinham barbas (segundo fontes do Palácio), a
não ser touceiras escondidas de modo púbico.

O jovem homúnculo era o inimigo mais importante já aparecido no buraco


desde o advento do voto; muito mais do que a mítica centofalopéia, aquele imundo
ser que se metia no âmago dos matos sertanejos, andando sem parar e que só

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

parou a poder de muita cacetada, como diria um nobre escritor de Campos, muita
cacetada naquelas muitas cabeças e muitas rasteiras naqueles variados pés.

Era necessário - para o bem do povo e do polvo (apelido dos Reis) - livrar a
todos daquele homenzarrão nanico que andava aos gritos, alvoroços e exclamações
e reticências intermináveis.

6) Abre parênteses.

O leitor querido e amado estará tarado para saber qual a forma usada pelo Anão
Gigante para se alimentar, não é? Pois bem. Tenho documentos que comprovam
que “RUPERTUS, o Ynssygne, comya hyerbas (naturalysta, poys sym?), ou seja,
árbore de médyo porte, completado o lauto prato com fructos de una angyosperma
qualquiera. Serbya o lyquydo precyoso utylyzando o méthodo de aspyrar nubens
pejadas. Una naryzada só e la sede morta estaba. Só se tornaba ymportuno quan
descydya dar corrydynhas y saltos pympolhos – a modos de beadynhos lépydos -
por las cercanyas, que fazyam pular em sus bases a los prédyos, aas bezes barryos
ynteyros, sendo ysso, samicas, outro assunto que nan aquylo. Detestaba o abate de
anymalyas e era muy amygo do petcho de un bando de bundalhones de quynze
orellas, moradores todos do alto ryo. Un São Francysco desses or d’aquellos. Eram
gyrafas y passaralhos; cupyns y paremécyos ynfymus cuja marcante
unycelularydade coberta de pelynhos fazya brotar lágrymas cascateantes de los ojos
de RUPERTO. Preferya uba a romã; aynda preparaba su própryo pã, juntando sal
maryno obtydo da ebaporação de las águas dryades y de algumas anáguas
hamadryades sobre las pyedras, ao trygo. Além dysso, água fluyente dos ryos,
fungos fermentadoyres de los pyés, y calor dos bulcões ou calor del sol para
termynar o cozymento.”

Parte era seu alimento. Parte era dividido com o pessoal do buraco, os
buracas.

Fecha perênteses.

Aos olhos dos (des) governadores era tudo ultraje, - tal ato o de fabricar
comida tão naturalmente – relegado em nível de ações criminosas contra o
patrimônio estatal, podendo enquadrar o infrator nas Normas de Defesa da Pátria,
por motivos de subversão e outras regalias próprias de criminosos sem crime.

7) RUPERTO percebeu que era pessoa malquista pelos Reis quando sua imagem
apareceu em péssimas e mal-retocadas fotografias, espalhadas por todos os postes
do país dando–lhe notoriedade e fama das mais danadas, espalhadas por paredes
onde se dizia que RUPERTO era inimigo público ad aeternum.

Os Reis, então, contrataram mercenários para aniquilá-lo. Nem mais nem


menos do que os terríveis GULIVERIANOS.

Os GULIVERIANOS vinham armados de arnês, broqueis e correias de cipó –


pemba a modos de chicote; carregavam espelhos, pois, pensavam nos indígenas
ignaros do país do buraco; empunhavam, com elegância, é verdade, pedaços de
pizza quatro–fromaggi, aparentemente sem motivo; machadinhas, bestas,
arcabuzes, (acreditavam que encontrariam uns tais Bandeirolas, muito perigosos,

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

que comiam pedras e deitavam em espinhos) e, por fim, uma infindável quantidade
de cordas. Eram exímios caçadores. Planejavam pegar RUPERTO seguindo um
truque sugerido por Jonas, o Andorinhão, em tempos idos, cujo truque será
comentado a seguir a critérios de logística e estratégia.

Cumpre dizer que os GULIVERIANOS eram muito altos quando perto dos
nativos do buraco. Tinham cabelo cortado à la Príncipe Valente de uma cor muito
negra como que pintado a mão. Se bem que fossem pintadas á mão com tinta
marrom. Mas, não eram. Eram pretos. Logo, pareciam pintados com tinta preta,
repito.

Eram senhores de admirável peito de pombo e virtudes concordes com a


índole predatória dos gaviões. No entanto, perto de RUPERTO não passavam de
excelentes pinos ambulantes que tentavam escalar, como alpinistas, os enormes
pequenos membros do anão.

Aquela horda de mercenários pagos a peso de xisto betuminoso invadiu as


ruas do país como se o país deles fora, a pretexto de esquemas e enquadramentos
de combate. Alguém diria que não?

Do prisma de RUPERTO (lá vem esse tal de prisma de novo) era como
brincar com folhas secas ao vento.

8) Enquanto o herói dormia (eis o truque do Andorinhão) e de acordo com os


ensinos de Jonas, centenas de GULIVERIANOS, atacaram os flancos, da Capo al
Fine, amarrando o gigante nanico a estacas.

Porém, durante a ação propriamente agida, tal não seu deu corretamente,
uma vez que o dorminhoco não era do tipo quieto; caía mais para o sonambúlico,
de maneira que foi muito difícil, quase impossível, diria e podendo dizer, – a bem da
verdade – que a coisa se deu sem qualquer resultado; um fracasso na realidade,
para não dizer que tal do truque era uma tremenda porcaria que só podia ter saído
da cabeça do Andorinhão, uma vez que RUPERTO não parava no mesmo lugar no
mesmo instante. Mexia dali, mexia daqui. Lançava GULIVERIANO por todo lado
enquanto reclamava sons incoerentes e cantava trechos dos Nibelungos. Num dos
agudos mais empolgados do Siegfried, esmagou, com apenas uma lapada de mão,
uma penca de hominídeos que pugnavam no intuito de conter o imenso braço.
Adentrando pelo Lohengrin, pode, com certa facilidade..., - se o cara que me contou
isso não tiver mentido, – ...pode arremessar, a léguas de distância, dúzias de
GULIVERIANOS, cachos de mercenários que nunca mais seriam achados a não ser
como fósseis ou, no máximo, como peça de um estranho quebra-cabeça, sem
qualquer tipo de trocadilho. No êxtase final de Tristão e Isolda, com uma rodada de
corpo na direção do litoral RUPERTO esmigalhou porções homéricas de pequeninos
que, de uma hora para outra, passaram a fazer parte dos sais minerais e nutrientes
do solo, numa clara manifestação de amor à terra onde não nascestes, jamais vista.
Um deles tinha terra até na boca, tamanha a devoção.

E, RUPERTO, a despeito das muriçocas GULIVERIANAS, dormia, sonhando


com o trono vazio. Nem notou o alvoroço.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

9) Nem foi preciso dizer que os GULIVERIANOS, os restantes, partiram a todo vapor
para outras terras, outro mar, sem mesmo levar o prêmio de consolação. O leitor
facilmente concluiu sem precisar da minha humilde se bem que onipotente ajuda.

No entanto, ainda acredito que, o senhor e senhora, não atinaram que os


Reis ficariam impacientes. Atinaram? Ótimo. Economizo uns parágrafos. Então,
muito bem sabem que RUPERTO não dava mostras de raiva e nem deixava
transparecer algum plano revolucionário em mente. Mas, é sabido que RUPERTO
não gritara em vão.

A cabeça do Anão Gigante trabalhava incessantemente e, de mares, só


desejava o salgado. Explico. Não queria saber de derramamento de sangue, coisa
que fatalmente aconteceria se pura e simplesmente pisasse, sem querer, no palácio
realengo. RUPERTO queria melhores hipóteses para a sua ação demolidora, das
quais eu não saberia citar uma se quer. Os Reis, sim, atinavam com novos golpes e
querelas. Entraram em Conselho, saíram, discutiram, determinaram, pensaram,
puseram em dúvida, fizeram o contrário, até que um consenso veio à tona;
atacariam o RUPERTO com novas e temíveis armas.

Ah..., Violenta... digo eu. Mesmo que tal não seja o desejo do autor os (des)
governantes acabaram por imprimir ao escrito um véu assaz necrofílico. Peço
perdão por não ter mais tino e talento para alterar os cursos das aventuras, mas,
prometo, atenuarei ao máximo o horror dos fatos. Sigamos, pois.

Quando comeram o estômago daquela criancinha... Desculpem, não era isso


o que eu ia falar. Quando alguém levantou a mão e opinou viram todos que o poder
real só dependeria de um pestilento e famigerado grupo - os horrendos
CORCUNDAS DE NOTREDAME e os seus GÁRGULAS pegajosos.

10) Ainda não sei se a população gostava daquele vai e vem de gente estranha.
Alguma vez deve ter reclamado, mas isso e nada eram a mesma coisa,
principalmente num país sob o império da corrupção. Tudo devidamente arquivado
em distritos federais e cinzentos cofres das repartições do próprio nacional. De
qualquer forma, vindos pelo mar (os GÁRGULAS não saboreavam muito bem as
viagens de avião – tinham medo das nuvens), vindos pelo mar, num belo dia tornado
em mau dia chegaram os CORCUNDAS DE NOTREDAME. Uns mais arqueados
que os outros, donos de roupagem amarronada a modos de modelito capuchiniano
da Idade Média com toques da tesoura ou navalha de Ockham; Vinham de capuz,
com sacolas para carregar farelos de cereais, embornal feito com pele de camelo
macho e matula para a concentração de matérias vis e outras quinquilharias de
menor valor. Os GÁRGULAS, escrotos para dedéu, vinham sem roupa; simples
animalejos grotescos munidos de carrancas feíssimas, próximas das dos símios,
com dentes afiados e expostos numa orbital arcada. Tais personagens saltavam por
toda à parte e todo o descuidado observador poderia tomá-los por felizes
bacurinhos, não fosse o odor nauseabundo. Eram presos por coleiras e domados
pelos trinta gibosos clericais. No todo somavam noventa figuras desprezíveis. Muita
era a vez em que não se distinguia entre uns e outros, inda mais após a bebedeira.

Sentado sobre monte geograficamente importante, daqueles famosos que se


decora em sala de aula e esquecido logo após as provas, RUPERTO, o nosso herói,
coçava o queixo e arqueava as sobrancelhas, tirando da cabeça argúcia e

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

espertezas, mescladas com dúvidas, dívidas e bocejos cismarentos. Decidiu esperar


o primeiro movimento daquele novo jogo, enquanto virava o rosto e anotava as
posições da Alfa e Beta do Centauro no escuro do céu.

Muita estrela tremeluziu ao olhar do gigante e desejavam descer à Terra.


Mas, tal não se deu ou a história terminaria aqui mesmo dado a possível catástrofe
constelar.

Bem... Após contactos, em dias subsequentes, os mercenários deixaram o


palácio, também chamado em seu conjunto de Castelo do Crepúsculo e tomando
carros na direção do litoral passaram a se movimentar com alvoroço. Volta e meia os
GÁRGULAS armavam barulheira, querendo, por exemplo, mijarem todos ao mesmo
tempo e no mesmo sapato, quer dizer, um pandemônio. Isso obrigava aos
corcundas aplicarem medidas de repressão muito traumatizantes como: boas sovas
de tesouras de pontas rombudas bem nas costas dos bicharocos de bexiga solta;
em momento outro eram os CORCUNDAS nostálgicos que levantavam lamento e
canorismos desenfreados na direção da catedral longínqua que lhes dava o nome,
plantada no primeiro mundo, além de Gibraltar, o que, veramente, atrasava o
andamento do trabalho. Desse modo a língua francesa deitava palavrões europeus
do mais profundo requinte e dinastia o que impedia o germinar da alma poética dos
inimigos de RUPERTO.

Chegando ao litoral, entre areias e estrelas marinhas, sal, gente nua, vagas e
mundos, decidiram que a primeira peça do jogo tivesse que ser a ação do magnífico
rapto de APHRODITHERMES.

11) Olha a cara de espanto do leitor. (ponto de exclamação) Quem será isso?
APHRODITHERMES? Quem será? Talvez perguntem a seus zíperes. Devo dizer:
pouca gente tinha conhecimento do fato sendo que esses poucos eram antigos
habitantes dos infinitamente invisíveis, para além da lâmpada de Aladim.

Ninguém sabia que RUPERTO sentia avassaladora paixão por


APHRODITHERMES, terrível paixão que não cabia no peito. Ninguém sabia mais
nada era essa a verdade, a não ser que amar APHRODITHERMES era amara
macho/fêmea ao mesmo tempo, tipo Ubaldo. Um mistério completo que os
execráveis inimigos contavam resolver.

Mandaram um pergaminho para RUPERTO no qual escreviam o seguinte,


abaixo assinado:

“... entregue–se, enorme anão de tigela inteira. Ou, por outro lado, poremos
Aphrodithermes na nossa sopa. Não somos de brincadeira e os gárgulas estão com
fome e saco cheio das lingüiças de soja. Há três dias que só se alimentam de tal
carne de isopor. Fique sabendo que já tivemos ocasião de comer pernas com
melhor sabor, num outro país. Entregue-se pois! Ou no menos seremos obrigados a
transformar Aphrodithermes em eunuco... eunuca... eunuco... eunuca...

Receba nossas saudações democráticas “.

O sangue de RUPERTO gelou. O coração deu pinote pegou fogo no


estrondo. O cabelo do gigante arrepiou–se no átimo, e rápido momento febril atingiu-

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

se–lhe a testa. Não podia permitir que algo acontecesse com a elaborada pessoa de
APHRODITHERMES. Daria sua vida pelo seu ente consagrado ao profundo amor. O
nascimento de um repolho não emocionaria tanto mais do que perceber tamanha
malignidade das letras corcundenses.

Era preciso agir.

Ficaria à disposição dos carrascos.

12) Sabedores da decisão de RUPERTO, os CORCUNDAS e os GÁRGULAS


tomaram seus cacaréus, seus afavecos de baixíssima qualidade, sua cacaria toda,
as brogúncias indispensáveis, bandanas de boa qualidade, condimbás,
caraminguás, mucumbagem e tralhas; e, foram para o local onde se daria o
encontro. Levaram uma pessoa amarrada e envolta em panos, cujo rosto
permanecia dentro de um saco. Suspeitavam os que observavam a hediondo
procissão, que fosse APHRODITHERMES.

E, não é que o pior aconteceu?

Saídos do meio do matagal, sobraçando cipós de variadas espécies, eis que


retornavam à cena aqueles terríveis GULIVERIANOS, com suas atividades
peripatéticas, artimanhas e vassalagens sem fim. Finalmente os Reis, colocavam em
batalha um exército a altura do inimigo de modo que o desmonte de RUPERTO se
fizesse por um triz. O nanico gigante estava à mercê das bordundas e dos
chantagiotas. Planificações ímpares que só poderiam irradiar da cabeça do Ministro
Plenipotenciário, um magricela de ares de bom moço–em–dúvidas que desejava o
trono e fazia de tudo para que a herança do poder lhe fosse o presente máximo,
alcançando: – o de mero Delfin a Rei; aquele príncipe de fala mansa e perspicaz,
mulherengo desenfreado e hábil manipulador de ábacos e jogos de azar dos outros,
arquitetava colocar em terra as manifestações vocais e psicomotoras de RUPERTO,
o herói nosso que naquele momento angustiante se via em apuros. Preocupava–se
com a situação cáustica de APHRODITHERMES impossibilitada de se coçar.

O inescrupuloso (des)governante, cuja mente lépida se alternava com idéia


fixa de se manter no poder por decênio, com ajuda dos titios Reis e amigos do
exterior, exultou de alegria.

GULVERIANOS, CORCUNDAS e GÁRGULAS chegaram ao deserto que se


estendia a Nordeste do buraco, deserto esse artificial e construído ao longo dos
anos e de acordo com os interesses dos ricos da região, amantes da seca e da
pobreza alheia. As tropas do Mal chegaram lá.

A personagem amordaçada contorcia–se na tentativa de escapar, ou deixar


escapar o dedo minguinho, para que num esforço supremo e inaudito coçar
deliciosamente uma picada de inseto sorrateiramente instalada no cafofo de suas
nádegas. Trágica era sua situação.

Ia o fundo musical para os acordes de suspense e drama, modulando de


maior para menor, tendo os cellos a marcar em pizzicato as notas longas de violas e
clarinetes, quando trepidantes passadas timpânicas se fizeram ouvir. O chão tremeu
de leve e mais de uma GÁRGULA caiu sentado por desequilíbrio e falta de atenção,

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

mesmo porque não era aquele momento propício para a contabilidade de


formiguinhas que passavam pelo chão.

CORCUNDAS E GULIVERIANOS se preparavam para o combate de suas


vidas, mas, tiveram desagradáveis surpresas. RUPERTO não vinha só.

13) Vinha com mais dois gigantes, amigos seus de outros recantos do planeta, onde
também havia Reis, onde o povo também era oprimido, mas, que sob o poder
popular, os párias ominosos foram banidos com a ajuda enorme de NIMEL e
ARAVEGUE.

Um momento de colossos irmanados.

Os mercenários, os Reis, os delfins, os parasitas fantasiados e cobertos de


medalhas, os bancários, os bajuladores de casaca grossa (não que bajulasses
casacas, mas vestiam casaca para bajular outrem), os venais representantes de
parlatórios, vereadinhos, deputálios, seniladores, todos pasmaram com lágrimas e
suores.

NINEL e ARAVEGUE vieram com tudo encima. Grandes botinas de matar


cobras, roupa colorida recoberta por couro de Tricórnes da Bretanha (dizem que
nunca houve tricórne nenhum andando pela Bretanha), cabelos longos e besuntados
com perfumes oleosos desde Almíscar (aquele conhecido como Styrax glabratum),
até o velho Capim–de Cheiro (mais popularmente cheirado como Kilinga odorata),
passando suavemente pela floração dos Edelweis; além do arsenal cheirabundo,
como todo gigante que se presa, seja anão ou não, vinham aos gritos do tipo: “Pega
pra capá... Ranca fora as cabeça... Sai sinão eu piso, siô...” obviamente isso tudo lá
na língua deles e sem nenhuma concordância verbal.

Na espera, juntando–se aos capangas cá de baixo, os Reis mandavam para


luta seus asseclas mais comoventemente emocionantes e oficiais, a saber: os TRES
GEMINADOS. Um que tocava corneta e usava roupa verde-bosta aquela; outro que
usava asas falsas, como anjo diurno e demônio noturno, dono de cerúleo pijama; e o
terceiro, de fraldinha branca, com uma ridícula bóia de borracha cor–de–rosa.
Essas três figurinhas difíceis se aproximaram com gestos inequívocos de batalha,
balançando–se como monjolos e, a cada baixada de cabeça iam dizendo Sim–sim /
Sim–sim (sendo o primeiro sim entoado meio tom a cima do segundo e levemente
mais forte, apoiando–se por bemóis de estimação).

Então, veja bem, caríssimo leitor que a todo o momento me empresta a sua
inteligência invejável, veja bem: Eram os TRES GEMINADOS, mais o enorme bando
de GULIVERIANOS, mais os GÁRGULAS nojentos muito bem armados pelo
horrendo CORCUNDA DE NOTREDAME, todos, enfim, em posição de ataque e
defesa, tendo como refém a pessoa encapuzada da ou do querida ou querido
APHRODITHERMES.

Nem é preciso ratificar o fato que a briga foi feia também.

Devo, no entanto, retificar a frase acima, isso sim, para o bem da verdade.
Não houve briga (já disse sobre a disposição pacifica de RUPERTO), nem
alterações, nem discussões, pois afinal, amigo leitor, caro leitor, quem é, pergunto

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

eu, louco suficiente para encarar aqueles gigantes cara a cara, sendo que cada cara
de cada gigante era do tamanho de um prédio de cinco andares? E olha que
RUPERTO era um anão gigantesco, mas os outros eram gigantes gigantescos.
Hecatombes em forma de gente e ainda mais, fedendo daquela maneira a perfume.

Quando os pequenos insetos guerreiros viram as montanhas NINEL e


ARAVEGUE em aproximação cruzeiro, correndo feito búfalos enlouquecidos em
uma pradaria (a besta do Búfalo Bill que o diga); saíram em fuga, pulverizaram–se,
tornaram seus corpos em ar, numa das mais empolgantes façanhas alquímicas que
já ouvi falar. Pode ser que quem me contou isso fosse um tremendo mentiroso.
Além do mais RUPERTO não queria sangue derramado, mas os gigantes
convidados não tinham nada a ver com isso. O grupamento mercenário fez POP e
desapareceu na poeira.

Logo após, constataram que a personagem presa pelos bandidos não era a
musa de RUPERTO, mas, apenas dois GÁRGULAS, amarrados um sobre o outro,
tentando imitar requebros e manejo de gente sensível. Soou ridículo, inda mais se
tratando de GÁRGULAS já tarimbados nas lides de monstros do mais alto gabarito e
zelo. No entanto a coisa ficou como o contado.

14) Resta dizer que o povo do buraco pode dele sair e passar para a margem. Viram
que o sol anda durante mais tempo. Quem pensava que o buraquismo fosse uma
característica de tal povo, enganou–se redondamente. Era, na verdade, se bem que
relativa verdade, conseqüência de uma turba espúria que se sentara onde não
devera, no trono, trono que não era seu e de onde não quisera sair.

Com o Delfim principesco eu nem digo o que rolou, pois é possível que jovens
venham a ler estas histórias, mas se o leitor se interessar deve procurar nos escritos
de Artaud, onde ele fala sobre um imperador que chega de costas em uma cidade
ocupada por suas falanges. De qualquer forma todo mundo sabe como ficam
assanhadas as populações que se levantam. Atiça neles a concupiscência.

Aquele memorável dia ficou celebrado como o DIA da GUERRA que não
HOUVE, sendo comemorado e bebemorado com largueza e afabilidade doentia. A
partir daí muita gente nasceu e muita gente morreu, mas, o primeiro fenômeno
mostrou–se muito mais intenso do que o segundo, já que se tem bastante prova
sobre o aumento de fertilidade após a quebra de cativeiros. Inda mais ao sabor de
festas e adjutórios de beberismos dos mais intensos.

Quanto a RUPERTO, sabe–se que ele viveu muito tempo, curtindo seu amor
platônico por APHRODITHERMES, até que um dia, farto do planeta, por puro tédio -
ele era um anão, mas não era dois - acabou dando um pulo e foi morar na LUA,
onde confabula com Jorge e seu eterno dragão.

Há quem diga que sendo RUPERTO infatigável nessas coisas de luta e


libertação sua ida a LUA tem a ver com o fato de querer livrar Jorge do eterno
pelejar junto ao sáurio arrogante (mas, que porra esse dragão foi fazer lá na lua!),
aos pontapés, assunto este que para muitos será considerado pura heresia.

Não mais. Não menos.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

NOVELA DOS OITO


(a novela)

1) De como se apresentam com muito prazer e apertos, de mão, em


casos de faltar à memória em grupo, por carta ou por telefone.

Júpiter Secundus adentrava o salão, não por vontade própria, mas, por insistência
de sua esposa coberta de lentejoulas e perfumes nauseabundos. Todos na cidade
sabiam quando Júpiter Secundus saía à rua, pois, a brisa vespertina carregava litros
de gases envenenados com a fragrância da Senhora Saturnia; assim, os pudicos
habitantes daquela cidade decidiam por voltar, rapidamente, às suas casas; ou
preferiam mesmo esconder seus corpos numa loja qualquer, uma vez que não
pensavam em olhar mais do que dois segundos para o imenso rabo da mulher de
Júpiter. Não havia peixe que ali botasse defeito.
Muita gente dizia que o excesso de perfume era para cobrir o aroma de bacalhau
que, intempestivamente, exalava da Senhora, mas, não provavam. Agora, que ela
morava num aquário, lá isso era verdade, pois via-se a estrutura de vidro do alto de
moro, sem dificuldade alguma, e, mais de uma vez o próprio Secundus teria dito,
com sua notável elegância e honradez:
- Há algum inconveniente nisso? Ela incomoda algum dos senhores?
- Não é isso, Júpiter, mas é muito estranho, – dizia um.
- Por acaso os senhores não acham estranho que se coma carne de animais
mortos? É natural deglutir cadáveres em estado de putrefação? - Os interlocutores
se entreolhavam, - pois os senhores o fazem, - Júpiter concluiu, mordiscando um
naco de cenoura.
Mas, eu dizia, Júpiter Secundus adentrava o salão, ladeado por Saturnia, que
distribuía sorrisos por todo lado. As pessoas se cumprimentavam e os que tocavam

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

a mão da mulher de Júpiter, imediatamente a levavam ao nariz, para ali captarem


eflúvios finais de uma profundeza abissal qualquer.
Júpiter, por sua vez, se fazia de tolo e nunca lembrava o nome das pessoas,
fingindo de modo a se perceber um tédio e uma displicência por parte de Secundus,
no trato com o público que ele considerava abjeto e longínquo. Abantesmas. Mesmo
tendo recebido o convite com a lista dos outros convidados. Mesmo tendo sido
chamado ao telefone e falado com uma penca deles.
No entanto, a festa começou mal. A gafe foi terrível quando serviram canapé de
sardinha, fazendo com que a Senhora Saturnia tivesse engulhos e se escusasse de
nada comer.
Depois foi a vez do patê de camarão. A coleção de enchovas, os pratos com siri e
caranguejo transtornaram o humor da Senhora que começou a vituperar contra o
anfitrião que ria feito hiena. Ninguém entendia, no entanto, o linguajar promíscuo da
Senhora, de modo que de chulo passou a pitoresco e de vulgar a exótico.
Escândalo por fim.
A maionese voava de uma ponta a outra da mesa, e, alcançava, com ajuda da quina
da cadeira, o rosto de dona Cacatua de Souza; neste ato contínuo, ainda lambendo
as sobras de molho, dona Cacatua lascou uma profunda bofetada na cara de Pavão
Misterioso de Souza, seu marido, que nada tinha a ver com a questão. Aliás, vinha
ele de sorver um ínclito licor de jenipapo, portanto, completamente inocente quanto
ao incidente com a maionese voadora. Mesmo assim, contudo, foi vítima da refrega
e teve que se levantar rapidinho do chão, pois, a turba enfurecida, quase lhe quebra
os dedos já que por todos os motivos, teimavam em pisar na mão do Pavão de
Souza.
Vale dizer que a maionese alçara vôo por alvitre de Senhora Saturnia, que ainda
sem se fazer de rogada, despejou metade da tina de ponche no decote de uma certa
viúva Trombal, a qual, estando desejada de marido ria de qualquer bobagem e
falava qualquer besteira, sendo, portanto, a causadora do fomento do escândalo,
pois havia perguntado ao sisudo Júpiter o que é que ele não fazia com tanto rabo.
Recebeu como resposta uma imediata torcedura de sobrancelha.
Altas horas da noite todos já se encontravam em suas casas.
A Senhora Saturnia Sereia, em seu aquário soltava borbulhas de sonhos. Só saiu da
modorra quando sentiu vibrações na água e notou que seu belo marido mergulhava,
ornado de aqualungue e pés de pato vulcanizados.

2) De como não há reverência quando se beija a mão de uma senhora,


sendo anglo-saxão ou latino, estando no salão ou na praia, quando então,
na dúvida, mais vale um pontapé no saco do que amabilidades.

Tendo o casal saído às presas daquele salão, foi muito difícil provar para o guarda
de trânsito que não eram fugitivos, nem ladrões, nem bêbedos, se bem que a
Senhora Saturnia, entupigaitada de tanto vinho, assolava o quarteirão com um
soluço homérico.
Júpiter Secundus, assoando o nariz, retirou do bolso duas balas de hortelã,
depositando-as na mão do policial que imediatamente abriu passagem para o
veículo. Coisa rara encontrar balas de hortelã, naqueles dias. Obviamente o guarda
teria concluído que o casal emergia da alta sociedade Cassiopena, forçando-se a

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

aceitar o óbolo convincente, a modos de corrupção atenuada pela avidez com que
as pessoas lutavam por balas de hortelã. Além do mais, estava uma noite quente e o
refresco chegava em belíssima hora.
Duas luas no céu. Uma terceira que subia no momento, em minguante, mas longe
do grande amarelo das duas outras. As montanhas de ferro no horizonte e aquela
sensação de calor que brotava do solo.
O guarda, obsequioso, beijou a mão da alcoolizada Senhora, sorvendo no ímpeto,
centigramas de vinho do porto (Porto Mordoqueu em Lira dos Sextantes), olores
que saltavam da boca da mulher, misturado com jorro de vômito e bile. Algo
imperdível. Mesmo, assim ele riu. Vômito de rico é outra coisa.
O casal, porquanto, chegou à casa e aconteceu aquilo já contado no capitulo
anterior.
Na tarde do dia seguinte o mesmo casal se dirigiu à praia e lá, rabo para um lado e
cabeça derramada no colo de Júpiter, Saturnia, desenfreada, vexava a população
praieira com seus dotes físicos exuberantes. Um esperto gritou: - Cetácea! - E se
viu com a boca cheia de areia.
Mesmo assim, outros dois espertos, dois rapazes se aproximaram, apesar e com
pesar da presença de Júpiter. Apesar, pois ainda não haviam notado o marido sob
os cabelos alourados e cobertos de caracóis da já falada Senhora Saturnia e, pesar
dele, pois os dois rapazes já sentiam dó do marido; achavam que o mesmo seria
extirpado do reino praiano a poder de rabos de arraia e sopapos. Os jovens
decidiram jantar a Sereia, quando notaram o marido e tiveram pena dele. E,
sentaram, ao lado dela, suas infames pessoas.
- Como é, peixona, não quer cair na nossa frigideira?
- Não seja escamosa, lagosta do meu sonho, somos “n” vezes melhores do que este
bagre aí do lado, – falou o outro, lançando um sorriso de mofa para o belo Júpiter
Secundus, que tomou a palavra.
- O senhor, me parece, é estudante de engenharia, não é?
- Sou sim, por quê?
- Bem que percebi. Esse negócio de “n” vezes é jargão típico de estudante de
engenharia. “N” vezes pra cá, “n” vezes pra lá. –Secundus pensou um pouco: - Acho
que é a única coisa que conseguem aprender nos quatro anos, já que teem um
raciocínio diminuto e limitado.
- Como é?
- E retardado, é claro. Mas, há coisas piores.
- Ei! Você está nos insultando, seu bubble! - Gritava o outro, que demonstrava a sua
origem latina, dos do Sul. Come back, seu cachorro, come back!
- Mas, eu nem saí do lugar, meu amigo. - Dizia Secundus.
- Você é out, meu velho. Deu tilt no seu aparelho, careta!
Secundus virou-se para a esposa e disse baixinho: - Esse outro deve ser um desses
gênios da informática. Realmente, minha querida, você conseguiu duas espécies
raras, duas figurinhas difíceis para o nosso álbum de enchedores de saco. Que
fazer?
- Deixa comigo, amor, – e a Sereia levantou-se. Busto altivo, seleto par de seios,
ouro em forma de cabelos descendo pelo corpo, escamas que brilhavam refletindo
cinza-rubro-esverdeado e voz de soprano misturada com um pouco de ira e rispidez.
De repente, no ar, o rabo.
De repente, as mãos dos jovens socorrem a região dos frágeis escrotos, atingidos
com rapidez e correção. Júpiter só se preocupou em jogar um pouco de areia na
boca dos inusitados rapazolas, como já o fizera com o esperto anterior,

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

contorcionistas de muito talento, nadando em seco, tomando formas de bifes


milaneses que gritam.
O casal despediu-se do ar e das azuladas árvores, voltando para suas alamedas de
pedras roxas.

3) De como se usando os sistemas: pessoal, epístolas e telefônico


são feitos, convites pavorosos, sedo que R.S.V.P se entrega,
participa e ainda recusa, o que desagrada Júpiter Secundus.

Tendo falado em anglo-saxão e latino, no caso, americano e do Sul, facilmente


identificáveis pelo linguajar britânico, cumpre explicar de antemão que de rabo–de–
arraia nada entendiam. Senhora Sereia, sim, era expert. Em assuntos dessa
natureza, tendo, portanto, com tal facilidade, mandado exemplar chute nas azeitonas
espermatogênicas dos dois meliantes, queimados de sol, engenheiros, aptos a
vocalizarem “n vezes isto”, “n vezes aquilo”, como única doação cultural para a
humanidade.
Sendo assim, em continuação aos acontecidos, vemos R.S.V.P. indo pessoalmente
à casa de Júpiter com a precípua intenção de convidar a Senhora Saturnia para
noitadas e madrugadas que terminassem em amarfanhar de lençóis e
estremecimentos de prazer incontido, como dizia o próprio R.S.V.P.
É claro que foi dispensado com tremenda bofetada que, estalando na face do
indigitado tarado, proporcionou um desfilar de caretas e morisquetas das melhores
qualidades, sendo que o autor dessas teatralidades tenha sido o convidante sem
tato.
- Aparece cada um! - Argumentava Júpiter, balançando a cabeça e clara intenção
de se mudar da provinciana cidade, não por causa de ciúmes, mas para ter um
pouco de descanso. Abster-se de visitas contínuas e intermináveis.
No entanto, R.S.V.P, ainda não convicto da negativa na primeira tentativa e, não
convencido de que era persona non grata, resolveu numa nova investida, enviar
uma epístola obscena, coberta de interjeições, gemidos e promessas de
voluptuosidades marcantes.
- Olha o que tenho recebido, meu amor, - dizia para Júpiter Secundus a espetacular
Senhora Saturnia, enquanto repassava uma aula de canto, relembrando-se dos
tempos em que vivia nas águas do Rio Pardo, antes de se apaixonar pelas bordas
de Júpiter.
O marido recebeu a carta das mãos melífluas da esposa que, aproveitando a
distração do amigo-marido, passou as mesmas mãos pelos seus cabelos e beijou-
os.
- É carta daquele sujeito... O tal das letras, não é?
- Exatamente, - ela disse, - o pernicioso bufão que está a nos cercar diariamente.
- Convide-o para vir almoçar. – Falou Júpiter
- Para que? Basta esquecê-lo.
- Concordo. Só não quero que ele nos esqueça.
E, assim foi.
Seguro da vitória, R.S.V.P. se aproximou da residência, perfumada, munida de olhar
lagarteante, meloso, com modos de pelúcia e falares de pássaro dorminhoco.
Mas, não havia encostado o dedo na campainha sinaleira, quando vorazes corpos
revoluteantes de cobras imensas envolveram o organismo chinfrim do galanteador,
sendo que apertos e arrepios surgiam no seu organismo. No entanto, firmemente,

Coelho De Moraes 52
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

ele não gritou, nem proferiu um ai, impossibilitado que estava de efetuar qualquer
movimento bucal, por motivos de sufocação.
- Dessa vez ele desiste. – Dizia, assim, Júpiter, no ouvido de sua Senhora Sereia,
enquanto deitados na rede balouçante dormitavam um sobre o outro a ouvir peças
de velho Claude, envolvidos em temas Sacros e Profanos.
Mas, Júpiter estava errado, pois R.S.V.P. tentou novamente e, desta vez por
telefone. Começou assim:
- Alô! É da residência de Senhora Sereia?
- Sim. É ela quem fala.
- Eu gostaria de que você me conhecesse melhor. Verá que tenho mais predicados
e virtudes do que o seu marido.
- Começa que meu marido é belo e você...
- E, eu?... Não tenha medo... Estou acostumado a elogios.
A Senhora Sereia olhou para o marido e disse: - No mínimo, é louco!
- Está louca por mim, não é? – Completou o letrado.
- Não, não foi o que eu disse. Sinto muito.
- Sei que sente... Não desligue! Não desligue! Eu sou seu. Quero me entregar para
você, – dizia o tarado R.S.V.P., desajeitado e com um trovão de cinismo na voz.
- Azar o seu! Não quero recebê-lo. Você não é para o meu tamanho e necessidade.
Além do mais, amo Júpiter Secundus. Você nem nome têm. Algumas letras e nada
mais.
- É que eu sou um sujeito neutro, quase impessoal. Represento a mediocridade da
população. Não, não desligue! Quero fazê-la mulher.
Sereia segurou o riso, apertando as mãos contra a boca. Falou baixinho para o
marido que, cheio de tédio, ressonava: - Ainda por cima, é uma besta declarada.
E, bateu o fone.
Júpiter Secundus tomou um apito de porcelana e usou-o. Não houve barulho, mas,
em seguida ouviu-se o som de aviões sobre pairando a casa de Júpiter. O teto solar
abriu-se em duas fendas e por ali, numa padiola elegante, o casal sumiu, na direção
do avião.
O aparelho assumiu postura de vôo e alou, sempre para cima, penetrando
velozmente no espaço, com meta apontada para o cinturão de Van Hallen.
O casal saía para férias em Mercúrio.
Na residência, porém, ficava uma ordem. Chamar para a casa o tal do R.S.V.P.,
fazê-lo comer todo o talharim; obrigá-lo a beber o gosmento suco de graviola,
sempre com o pretexto de que a Senhora Sereia de preparava para ele; estava tudo
isso determinado no aparelho de fita magnética pela voz de Júpiter; caso o tarado
não aceitasse o convite, que fosse devidamente expatriado e pudesse praticar, no
exílio, o insigne esporte de contar aves de arribação durante os momentos de
espanto.

4) De como, após a leitura de um livro inóspito, Dona Cacatua de Souza e


marido, os dois engenheiros, o policial corrupto e, R.S.V.P. - fugitivo –
decidem pelo seqüestro de Sereia, unidos para o desgaste e provação dos
sentimentos vis.

A reunião ocorreu no iate do Pavão Misterioso, envolvendo as seis personagens,


todos invejosos, humilhados e ávidos de vingança, por sequência de motivos torpes.
Pavão de Souza deitava pela goela uma enormidade de blasfêmia contra Júpiter;
digo ao leitor que ocorria tal fato por ter Júpiter uma quantidade maior de riquezas

Coelho De Moraes 53
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

do que o Misterioso de Souza, sem contar as nozes e os queijos do tipo Brie de


Coulomiers, em estoque nos depósitos inferiores de Marte.
Dona Cacatua representava as mulheres do lugarejo, fartas dos dotes sexuais da
Senhora Sereia; dotes desfilados sob as narinas sôfregas de seus maridos que não
tinham força suficiente para se desfazerem de nó mágico da atração e, também,
pelo fato de que, na comparação, as mulheres de lugarejo, juntas, ficavam em ultimo
lugar na competição, sem recurso ou apelação a juízes maiores, sendo que a
Senhora Saturnia ocupava, desde o primeiro até o quadragésimo nono lugar,
sozinha.
O policial aquele, retrógrado e obcecado, queria dinheiro e crédito, levando como
argumento de que a classe dos guardas não era estimulada com pagamento
adequado; para tanto ocorrer, pensava no resgate possível, com o qual daria um
jeito na sua vida, além de poder financiar outros sequestros para sanar os
problemas dos seus amigos: a compra de hortelã.
Os dois engenheiros, obtusos, queriam a forra, o desconto, a revanche; durante
muito tempo tiveram que inibir suas funções ejaculatórias, pelo bem da manutenção
de seus respectivos aparelhos genitais, pois teria dito um médico sábio, dentre
outros sábios do local, que o uso, o abuso e o acuso dos membros desencadeariam
um processo de necrose cavalar, para não dizer também galopante.
Sobre o R.S.V.P., nem é preciso comentar. Batia as mãos e pensava contentamento
com o sonho de deitar-se na mesma cama aquática com a peixa exemplar.
Teriam apenas que esperar pelo retorno da viagem.
O casal estava por um fio.
Enquanto curtiam os ventos azuis da Troânia Nordeste, em uma das luas de Prócion
V, nem passava pelos seus pensares que uma onda maligna formava no berço na
origem.
Enquanto serviam sorvete de amêndoas leguminosas, lá pelos lados tardios da
Êpsilon-Eridani, suas cabeças não atinavam que um grupo de conceituados maus
elementos somava experiências no cometimento de um crime pouquíssimo perfeito.
Foi só ao barulho de cascatas e com a Aurora Boreal da madrugada fria que a nave
de Júpiter Secundus e Senhora Saturnia desceu na cidade, planando, antes, como
gaivota indolente.
Júpiter esteve atento o tempo e só dormiu, quando uma cacetada desvirtuou o seu
equilíbrio e fê-lo, desajeitado, adernar para a esquerda, rodopiar qual piorra
endoidecida, cantar a Marselhesa, – primeira estrofe, – perguntar o dia da semana e
desmaiar, mesmo não estando em maio.

5) De como um cortejo fúnebre da má impressão a um casamento,


enquanto os seqüestradores tentam por todo meio obter vantagens da
pobre vítima, que, totalmente indefesa se defende a poder de rabanadas.

O telegrama dizia da seguinte maneira: “Hemos vontade resguardar amotinações


desde outono pt favor não despejar conteúdo continente contenção rendas pt
atenciosamente nós seis pt”. E, evidentemente, Júpiter Secundus não entendeu
coisa alguma, como suponho, o leitor também não. Era um aviso bastante secreto,
passado por um dos jovens engenheiros que, tendo queimado todos os dáblius e
agás de seus limitados cérebros, procederam de modo a ocultar suas origens, o que
levou a se escrever um aviso inútil.
Júpiter Secundus amassou o papel e despretensiosamente atirou-o para a lata do
lixo, posando qual jogador de basquetebol num lance de três pontos. Vestiu seu

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

melhor terno, saiu para a rua, adentrou em seu automóvel movido a plasma e
circundou o jardim de plástico emoldurado, tentando obter pistas de sua esposa e,
foi no meio de um canteiro de polietileno que encontrou brilhosa, uma escama
salpicada de orvalho.
- Passaram por aqui, os vermes, - falou para si mesmo. Falou alto, para correta
captação do microfone.
Nisso, um coreto passou a emitir som, através de uma banda que se encontrava em
seu interior, deixando todo mundo pasmo, uma vez que assinalava a presença de
cortejo fúnebre nas imediações.
Para azar da moçada, no mesmo instante, uma raridade. Um casamento. A igreja, –
outra raridade, – bimbalhava suas marchas sineiras, apregoando a novidade do
casamento entre dois seres semelhantes a orangotangos, mas que eram da classe
superior dos primatas originados da estrela 349, para quem olha Andrômeda de
esguelha.
Júpiter observou e sorriu. A morte e o casamento se encontravam na mesma praça.
Houve um momento de mal estar. Os parentes do defunto olhavam os nubentes e
deitavam chispas de inveja, já que a alegria dos noivos era contagiante. A harmonia
da banda, funérea e desalentada se confundia a raio laser. Os noivos e convidados
pararam, num momento, persignando-se, – outro detalhe raro, – assim como quem
evita a má sorte logo no primeiro dia de consórcio matrimonial. Algo similar a um
transtorno obsessivo compulsivo.
Júpiter Secundus observava atentamente.
Houve um bate boca generalizado entre os motoristas dos carros que transportavam
o caixão de metal, e, o casal de pombinhos simiescos, mas em breve, em vez de
fecharem suas bocas respectivas, a multidão de convidados começou a deblaterar,
pois a passagem estava interrompida. Evidente que um acusava o outro de
atrapalhar a sua passagem.
- Morto tem privilégios. Morto tem prioridade para passar!
- O tempo do morto já passou! – gritava outro. – Ele próprio já passou. Agora é a vez
da vida.
- O morto já viveu muito. Agora tem que descansar, canalhas.
- Se ele viveu cansado foi porque não soube viver. Aposto que ele nem liga de
esperar um pouco para ser enterrado, porcos.
- Não será enterrado! Será cremado, seus vadios cara de macaco!
- Pior para ele, morsas dentuças! Sentirá, com todo respeito, antecipadamente, as
labaredas do inferno! (Que também era outra dessas coisas folclóricas, lendas
urbanas, em que só crianças e oligofrênicos acreditavam).
Júpiter Secundus não tirava os olhos, até divertido, do acontecimento e notou, então
um luzir de jóias bastante conhecido.
Empertigou-se na poltrona do automóvel e notou nitidamente que o morto estava
vivo! Mexia-se. Levantava do caixão de metal, derrubava a água do seu interior e
levantava os braços femininos, que se agitavam. Os cabelos dourados cheios de
mechas balançavam dentro da cabine; então, a repentina aceleração do carro, o
jato, a espumante faixa esbranquiçada que torrou três postes, fez com que o
aparelho subisse para o espaço, sob o olhar abobalhado do casal de micos gigantes
e parentela movida a empadinhas das bodas.
A Senhora Sereia estava naquele carro, nas Júpiter Secundus não pode agir em seu
favor.
Estalou os dedos e voltou.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

No esconderijo, dentro de uma fatia de rocha na lua Rorpal, os engenheiros


discutiam quantas vezes já teriam mantido junções carnais. As contas beirariam os
milhares, caso não mentissem para manterem o moral elevado, quanto baixa a
moral. Coisa própria dos mestres da régua e do computador. Conversavam sobre
isso, ao mesmo tempo em que lambiam os lábios e olhavam as rotundas formas de
Sereia, Senhora Júpiter, ensimesmada e encimada por linda cabeleira loira,
carregada de anéis sensuais que desciam em voluteios sobre o peito desnudo,
natural dos peixes e coligados.
A Dona Cacatua de Souza, longe de perder as estribeiras, ou seja, agindo com
cabeça fria, e pensamento glacial de dar medo, teimava aos bofetões, com o marido
Pavão Misterioso de Souza, para não ter mais ereções enquanto olhava o rabo
barbatanizado da mulher roubada. Mas, tal não acontecia e a todo o momento o
marido indiscreto trocava as elevações, sob o pano das calças, por um par de
tabefes bem dados nas dobras da orelha direita.
R;S;V;P;, agora munido de pontos e virgula, ou seja, tornado perigoso, tentava
inutilmente alisar os traseiros da Sereia que a poder de muita escama cortante,
tirava sangue das mãos chulas do criminoso tarado, deixando-o, paradoxalmente,
mais forte e mais tenso, apto, a qualquer instante, de agarrar a moça e ministrar-lhe
aulas de beijos e abraços apertadinhos.
O policial por sua vez, tomava conta do local, não permitindo a entrada de ninguém
e afastava, do esconderijo, qualquer turista desavisado do fato de que, naquele
momento, sequestro com intenções de rapto ali se realizava. Fazia o jogo, o guarda,
apenas pelo dinheiro. O do resgate e o do pagamento antecipado que os outros
conspiradores mandaram para sua casa, nos confins da galáxia.
Recebendo o ar durante toda a noite, veio que o sono e a falta de água alcançou o
corpo da mulher Saturnia; lentamente ela amoleceu, perdendo os sentidos.
Os insatisfeitos se preparavam para a refeição, limpando as mãos e cuspindo no
chão, como quem diz: É minha!

6) De como os golfinhos realmente entendem os chamados e a colossal


disposição atlética de Júpiter Secundus, que surfando no espaço, desabou
seus quilos sobre uma choupana na lua de Rorpal; algumas mulheres
comiam mangas e lavavam roupas.

- Ela é minha, já disse! – Gritava o insigne R;S;V;P; sem tirar os olhos da moça que
dormia.
- Sua coisa nenhuma, seu trapalhão! – Esperneava um dos engenheiros, fazendo
imensa força para parecer inteligente e sagaz. Andavam sempre em dupla para que
as falhas de um fossem sanadas pela do outro, se pudessem. Semi-pessoas.
- Calem essa boca, seus animais. Ela não é de ninguém. Ela é nossa! Ela é produto
comum. Ela pertence a todos nós, igualmente! – Exalava berros fóbicos a Dona
Cacatua de Souza, enquanto distribuía, também igualmente, uma torrente de
pontapés e pauladas em variadas cabeças, principalmente na do marido que estava
quieto no canto, apenas a babar.
- Porém com isso, seus birutas! Todo mundo vai perceber que estamos roubando a
peixa! – Gritou o guarda.
- Não grite você, velhusca! Gritou o marido ainda alisando o belo garnizé que lhe
nascia na cabeça.
- Porra! Mas que gritaria é essa. Calem as bocas nojentas ou vão descobrir nosso
esconderijo! - Gritaram os engenheiros, calibrando o braço para apagar as mãos
volantes do galanteador R;S;V;P;.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

E, com toda a gritaria que se amou naquele circo, a Senhora Sereia acordou, mais
do que nunca e aproveitou para escapulir e pular nas águas do mar Tramulian, logo
ali em frente, dando um salto sobre o rochedo escarpado.
As águas lhe davam forças.
No entanto, na sua cola, seis personagens ganhavam o violeta das águas e, por
tudo do mundo, tentavam agarrar a cauda de escamas, mas, era quase impossível,
uma vez que escorregava como se estivesse recoberta com óleo.
De repente, deslizando na superfície do mar, um surfista surge; esbelto, barbas ao
vento, desparafinado, – afinal ele achava coisa de palhaço, esse negócio de
parafinar o cabelo, – usando uma roupa similar à de Tarzã, Rei dos Macacos, eis
que aparece, tridente na mão, olhar arguto, óculos de tartaruga, prancha cadilac,
cercado de golfinhos e caranguejos vorazes, Netuno Possidônio, que aos apelos de
Júpiter Secundus, seu primo Olímpio, aparecia para auxiliar no salvamento da
esposa do último.
Avassaladoramente Netuno encarregou os botos de levarem os sequestradores para
mais longe, enquanto ele, completamente alheio aos avolumados e alisáveis da
Sereia, erguia a peixa, a prima, da água e zarpava para a esquerda mergulhando
em volumes de oceano.
Os perseguidos retornaram para a cabana.
Exaustos. Combalidos. Sorvendo o ar com dificuldade.
Mas, o policial, sempre prestando atenção, apontou para o horizonte.
- O que foi? - perguntou um dos engenheiros.
- Ali? Na direção daquela luz.
- Lavandeiras.
- Não! Mais além. - Apontou o policial.
- Já olhei “n” vezes e não vejo nada. Alguém vê alguma coisa?
- Aonde? – Dona Cacauta de Souza pretendeu participar da observação, arrotando
bons olhares e percepção aguçada, valores que trazia desde criança. Coisa de
quatro séculos.
- Já mudou de lugar. No céu. Vem deslizando.
- Estou vendo! Estou vendo! Ali, no meio de “n” estrelas.
- É um foguete?
- Não, é um avião.
- Não, é um passaralho!
- Passaralho, o catso, - gritou Júpiter, viajando com um voador–surfante, e, não
sabendo como parar a prancha arrebentou a cara contra as paredes do casebre.
Quando os seis se aproximaram encontraram o bem apessoado homem fora de
combate, dentro de um dos guarda-roupas.

7) de como o autor tenta explicar o inexplicável enquanto Júpiter desperta


ao som de gente se lambuzando, uma vez que nada disso foi relato em
capítulo anterior, como prometido.

A contra gosto, Júpiter Secundus, cognominado o Belo, teve que ficar e, preso
naquele lugar durante horas e horas, mesmo porque estava amarrado até os dentes.
Isso tudo apenas três dias depois da aterragem forçada a que se viu obrigado, por
obra e mérito da incompetência sua mesma na condução de voadores–surfantes.
Durante os três dias ninguém soube a que espécie de ultrajes teria sido subordinado
o Júpiter, mesmo sabendo que estava desnudo e uma leve sensação de
embriagues. Além do mais, todo momento que olhava para Dona Cacatua de Souza

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

percebia que ela passava a língua pelos lábios assim como quem diz: - E, você nem
percebeu...
De qualquer forma pensava em sair, mas foi ficando, pois esperava o inexplicável. A
índole de Júpiter era a daqueles que confiam na natureza e suas leis sábias.
Quando vinha surfando pelo espaço notou que uma enxurrada de meteoritos
deslanchava suas pétreas presenças na direção do pequeno astro; mais dia, menos
dia a superfície da lua de Rorpal ficaria crivada de buracos, incluindo seus
habitantes que certamente seriam aniquilados com a violência do enxame de
pedras.
Era óbvio que gostaria de ser testemunha do evento estando já em órbita e nunca
sob a chuva que se aproximava. Calculou que Dona Cacatua seria de ótima ajuda,
então.
Contudo, Pavão Misterioso, cheio de enigmas e artimanhas aprendidas com
R;:S;:V;:P;: (dono agora de dois pontos e uma singela virgula e nenhum ponto de
vista), ousou tocar no ombro esquerdo de Júpiter, tendo que imediatamente que
desistir da idéia, amolecido subitamente pela guarda–chuvada muito bem aplicada
pela indigna esposa Cacatua de Souza, mulher dominada pelos lúbricos desejos de
Vênus, tomada de indiscutível paixão pelo prisioneiro Júpiter, cognominado o Lindo.
Um dos engenheiros entrou correndo no casebre, no momento em que o Pavão,
estatelado no chão, declamava Os Amores de Bocage, de trás para frente dando
soluços a cada soneto terminado.
- Eu vi! Eu vi! “N” bolinhas brancas no céu. Todas com rabo!
- Bolinha branca com rabo?
O da Informática olhou para todos e disse:- Não sabem do que se trata, seus
“inguinorantes”? São fenômenos atmosféricos. “N” deles. “Inguinorantes”.
Imediatamente Júpiter Secundus, cognominado O Bonitão, chamou para o lado
Dona Cacatua de Souza e disse: - Preciso de sua ajuda.
- Qual? De que forma? De que maneira? Tem alguma idéia? – Sempre mantendo a
aparência de quem não se interessa, apesar da baba que escorria da sua boca
vermelha. Júpiter conteve o sorriso.
- É o seguinte. Eu gostaria de ver o fenômeno, cara senhora. Mas, veja bem. Estou
indefeso e amarrado. Porventura a senhora não gostaria que eu me livrasse dessas
amarras?
- Eu gostaria, mas..., – aparentemente sem querer ela desabotoou a parte de cima
da blusa cáqui. Não vale a pena citar o que surgiu daí, pois ofenderia todos.
- Pense bem, dona Falcatrua...
- Cacatua, por favor... Cacatua... Cacá... para você.
- Pois, bem, Dona Cacatua,... Caczinha... eu... Eu até lhe daria um... Um pirulito.
Ela arfou, fazendo desabotoar mais um botão (é claro, pois desabotoar zíper é muito
mais difícil); sentando-se ao lado de Júpiter Secundus, cognominado A Belezura
falou:- Quero outra coisa. Do seu pirulito eu já provei...
- Enquanto eu dormia sem consciência?
- ... E aprovei, – completou balançando a cabeça.
- O de hortelã?
- Por que, tem outro? – ela perguntou bruscamente.
- Tenho sim. Não quer?
Um filete de saliva desceu dos lábios de Dona Cacatua de Souza enquanto o senhor
Pavão Misterioso atravessava heróico o Barão assinalado, o engenho ardente e, o
valor alto se alevanta, já em continência então, diga-se, urinária.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Uma vez desamarrado Júpiter Secundus, cognominado O Tesouro, amarrou a velha


Cacatua que já se engalfinhava com o pirulito do atleta que a poder de muita
cacetada ensinava com quantos pirulitos se faz uma confeitaria; Dona Cacatua de
Souza, zonza, contentou-se com o cabo do guarda–chuva utilizado na cabeça de
seu marido versejador.
Como um bólido, se bem que um bólido como ele seria bastante lerdo, Júpiter
Secundus o Incognominável, passou zunindo à frente dos que observavam as
bolinhas com rabo.
- Olhem aquele pelado! – R;:S;:V;:P;: gritou apontando um dedo tão longo quanto a
língua dos tamanduás. – Não é o prisioneiro?
- Sim! Já viajei por “n” lugares e nunca vi gente pelada carregando pirulito enquanto
corre. Não é o prisioneiro?
- Santos algarismos, em verdade eu digo que “n” pessoas não correriam como essa
figura. Não parece o prisioneiro?
- Que horror! Ninguém toma conta de ninguém aqui nesta lua absurda?– Gritou o
choroso policial, já pensando no que teria de dizer para os amigos que não mais
receberiam privilégios. – Não será aquele o prisioneiro?
- Alguém aí quer manga? – alguém perguntou.
- Não! Não é o prisioneiro! – Dona Cacatua gritava lá de dentro. - É o fugitivo, pois
presa estou eu. Soltem-me!
- Manga... Quem quer manga!?
- Ele nos atacou, – apontou o marido que descrevia o gigante Adamastor, – e fugiu
com todos os pirulitos!
- Tinha algum de hortelã? – perguntou o guarda.
- Tinha sim – Cacatua respondeu, lambendo a boca.
- Eu sabia que ele escondia alguma coisa.
- Por que não o revistou? - Perguntou um dos engenheiros.
- Algum de vocês aí quer manga? – falou a voz, vinda da porta.
- Agora temos que fugir, – foi a opinião tardia de R;S;V;P; - vamos fugir antes que...
Mas, antes que... O casebre veio abaixo destruído pelos meteoritos. E não havendo
sobrado pau sobre pau, concluiu-se que, de sobreviventes apenas as mangas,
assim mesmo espalhadas pelo chão, solitárias, havendo a possibilidade de nunca
mais serem encontradas.
Júpiter Secundus, sentado já em sua nave–mãe, distribuiu ordens para o
computador central JCN e partiu para casa, levando pirulitos para Sereia, dona deles
de fato e de direito.

8) De como o fim do conto desata a se aproximar trazendo em seu bojo


uma fase entre moralista e proverbial que calha muita bem com a
finalmência destes escritos na concepção de alguns e, que, na concepção
de outros, não tem nada a ver.

Júpiter Secundus, em casa, sorvendo o agradável refresco de carambola, sentava-


se ao lado da esfuziante esposa peixa Senhora Saturnia Sereia, ao mesmo tempo
em que dava ordens e leis para que uma expedição fosse até a lua de Rorpal e dela
trouxesse os restos dos seis criminosos sem tumba.
Assim sendo, duas semanas após vinha um caixote de madeira onde o responsável
pela expedição mostrava os caquinhos restantes que outrora formavam pessoas de
baixo calibre. Júpiter olhou o lixo e mandou que reestruturassem aqueles seres
antigos de pobre mente e, fossem então trazidos de volta com suas orelhas e dedos.

Coelho De Moraes 59
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Mais algum tempo passado e reentram na atmosfera da residência orbital do casal


os seis elementos pejorativos e debocháveis, a modos de imagens clonadas. Dona
Cacatua de Souza apesar de ainda mantida velha, estava vomitando “n” vezes
aquilo e isso, sem parar; seu Marido bufão, o desarvorado Camoniano mantinha a
oratória de um Vieira em pleno apogeu, mas citava falas a respeito de mangas não
chupadas e bolinha com rabinhos; o policial só se relacionava com os outros a poder
de gírias e jargões antiquados e volta e meia retirava o bloco de anotação para
multar um passarinho em alta velocidade, imprimir a marca de sua dentadura e
rebater pedaços de ventos que atravessavam a janela da residência; vestia-se com
um incômodo rabo de peixe a modos de chapéu; R;;+S;;+V;;+P;;+, muito mais
adornado do que dantes, continuava com a sua tara em alta, mas, dessa vez virava
suas bateróticas contra o sujeito da informática e contra o engenheiro,
demonstrando que o amor e o cálculo diferencial tinham muito em comum; e, por
fim, os dois gênios da sociedade jogavam figurinhas online, trocavam cromos em
sites de inter-relação e apostavam na porrinha. Todos cantarolavam, em lá menor, o
“pirulito–que–eu–quero–mamá–mamãe”, em contraponto com a mais recente
produção musical das estratosferas que era o “vem–cá–Bilú–do-tororó–pau–no-gato-
o–índio-não-lava-o–pé”; às vezes disparavam em repetição interminável na mamá
do Mamãe-eu-quero, que de tão chato e maravilhoso tirava caspas e carrapatos do
ocre-púrpura–azeitonado do cavalo de três pernas oriundo da Alfa do Escorpião:
Antares, para ser mais exato que pastava por perto.
Júpiter Secundus olhou-os e desviou o seu espanto para o chefe da expedição a
modos de pergunta.
- Tivemos que usar o interino, nobre Júpiter. O geneticista–mor está de férias e
deixou um auxiliar que ainda não tem muita prática. E, deu nisso que o senhor vê. –
Sorriu o chefe da expedição.
- Muito bem. Distribua-os pelos jardins. Quero ver se agora aqueles animais voltarão
a comer minhas cenouras.
E, foi assim que a vida do casal se mostrou mais interessante, pois não mais
faltariam cenouras para a alimentação vegetariana; além disso teriam, em casa,
troféus da mais cara investida pela salvação de uma esposa adorada.
Netuno Posidônio mandava lembranças para o primo.
A cidade fazia festa pelo retorno de Sereia, não por amarem a pessoa em si, mas,
para sempre lembrarem o rabo e os desenhos do corpo da peixa, apesar da beleza
excelente do marido Júpiter.
Notaram, também, que Saturnia tinha um pescoço delicioso, uma vez que havendo
cortado os cabelos o tal do pescoço andava para cima e para baixo, na terra, para
dentro e para fora da água.
Júpiter achou por bem sortear os cabelos da esposa, com todos os seus caracóis
dourados e contam que quem ganhou o presente, imediatamente se pôs a procurar
e procurar no meio das madeixas, sabe-se lá o quê de modo que o amontoado de
pelos se desfez e a cabelama desapareceu pelo chão, sem que nada se achasse
nos seus entremeios.
Sábios do local, após horas de labuta para concluírem uma lição que, obviamente
seria muito bem aplicada ao ganhador azarado, chegaram à seguinte pérola de frase
moral:
- A cabelo dado não se olham os pentes.
E, ponto final.

Coelho De Moraes 60
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

EXTERMINEM A PALPALIS
(uma novela letárgica)

1)... Designa-se ALFA a estrela mais brilhante da constelação, e, BETA a segunda


mais brilhante estrela de acordo com as letras do alfabeto grego;... os quatro pontos
cardeais são também conhecidos por Boreal (Norte), Austral (Sul), Levante (Leste) e
Poente (Ocidente);... você sabia?... Materiais elétricos, eletrônicos, antenas e
transistores, você pode encontrar na casa Relâmpago da Baixada, no bairro do
Periquito, Caxias;... você sabe como será o fim do mundo? O diácono Lucrécio
sabe. Leia sua interpretação do livro O Apocalipse Hoje, à venda em todas as
bancas de qualidade;... panos–tecidos–fazendas e modelos belíssimos você
encontra somente no O Atacadão;... quatorze horas, dois minutos, trinta e três
segundos... TUN...TUN...TUN... Estamos presentes em todos os minutos de sua
vida, proporcionando a hora certa... o relógio do ar (CLIQUE!).
Gabreol interrogou-se com certo entusiasmo eivado de cismas e sonolência, coisa
que aprendera nas aulas de parapsicologia por correspondência propagandeada
naquela revista especializada em sexo sem contato. Chegou à conclusão de que
estava atrasado. A Rádio Relógio nunca errava, por sua vez, a não ser em alguns
décimos e, mesmo assim por causa do clima e da gravidade (muita gente dizia que
o ponteiro do relógio, para subir demorava mais por causa da gravidade). Levantou-
se rápido, como quem faz humor usando uma dessas piadas curtinhas e, partiu para
a rua. Estava atrasado, mas contava com que o avião também mantivesse seu

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horário habitual. No entanto, pisando o paralelepípedo da calçada notou que faltava


algo em sua vida. Como se nele ainda houvesse resquício de uma consciência que
lhe desse ordens freqüentes e fomentasse sinais e sonhos plastificados. Voltou
correndo para casa, pulando os degraus de dois em três e, nem bem entrava na sala
já percebia: não desligara o televisor.

2)...dezesseis horas, dez minutos, oito segundos... TUN... TUN... TUN... e, Gabreol
olhava para dentro dos olhos solferinos da moça do balcão. Elizabeth era seu nome,
filha de um alfaiate de Arceburgo. Ela apertava e desapertava uma folha cheia de
nomes e números telefônicos, até que os amassou e jogou o bolo fora.
- O senhor, o que deseja?
- O avião para a Hungria... eu queria saber...
- Já partiu meu senhor, há exatamente....
- Como partiu? Não é possível!
- Acredite senhor, é bem possível.
- Ele não iria sair às quatro?
- Mas, são quatro e onze, meu senhor, se é que pode enxergar aquele relógio
instalado na...
- Sempre atrasa um pouco!
- Mas, hoje, saiu na hora. É melhor se conformar. Os tempos mudam e as horas
também. Eu mesmo o vi subindo como um alfinete veloz lá para o céu. Precisava ver
que bonito!
- O que eu faço, agora? – Gabreol falou alto, como quem não quer ser ouvido.
- Que tal um chocolate!? É lá no balcão... servem um delicioso chocolate quente,
um chocolate alsaciano, muito delicioso mesmo, de ótimo sabor e poder alimentício.
O senhor conhece as propriedades do chocolate?
Gabreol olho-a intensamente e percebeu que os lóbulos de suas orelhas eram
grudados (quer dizer, a mocinha além de chata era recessiva) o que o fez lembrar
perdidos conhecimentos de biologia. Sempre ficava importunando o professor na
hora de fazer o heredograma, atrás da ascendência, atrás do pedigree,
questionando sobre seus olhos castanhos, uma vez que seus pais tinham
puríssimos olhos azuis. Mesmo assim respondeu para a mocinha do balcão:

- Com esse calor? – e, orlado de fragrância aveludada dos que dizem frases sábias,
saiu apressado para o outro lado do guichê. Decidiu-se pelas AeroLinhas Africanas.
Deixaram de lado os ares da Europa para identificar-se com as plagas ressequidas
da África Tropical – Equatorial. Compreendeu que ao perder o avião recebera um
aviso inequívoco. Era preciso mudar de tática.

3) Às cinco horas da tarde o avião sobrevoava a cidade; movia-se para o Oriente.


Cruzou os céus em quatro horas e teria chegado às nove da noite caso o comentado
fuso horário não interviesse. Realmente, Gabreol, só pode descer do aparelho aéreo
quando o seu aparelho digestivo deu mostras de bom funcionamento, voltando ao
equilíbrio necessário, digno equilíbrio de vertebrado superior. Na verdade, o herói
estava apto o suficiente, aliás, uma habilidade de fazer inveja, apto enfim, para
enfiar a chave na fechadura do quarto do hotel; fê-lo com maestria, para
deslumbramento da camareira que carregava o seu saquinho de vômito.
Eram quatro horas menos doze da manhã quando Gabreol descobriu que as boas
obras eram indiferentes para a salvação eterna. Ajoelhou-se e pediu para que o
velho Huss o auxiliasse naquela hora extrema.

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4) Alguns dias após, já re-hidratado e novamente cônscio de seus sentimentos


positivistas, Gabreol tentou sair para um passeio pelas avenidas locais. Na verdade
o que lhe dera na telha fora um pensamento totalmente burguês. Queria participar
de um safári. Sendo assim, aproveitou o dialeto afro – na verdade uma variante do
Iorubá - aprendido na universidade, outrora, e se preparou para entrar em contado
com os nativos, mas, sua admiração foi tanta ao perceber que naquele hotel falava-
se de tudo, menos dialetos locais. Ficou perdido, cimentado entre a necessidade e a
veemência, até que teve uma grata déia de utilizar sinais alfabéticos para surdos-
mudos, no que era realmente especializado por causa de certa experiência que
tivera quando comercializava fone de ouvidos para os internos de um asilo.
A salvação chegou quando lhe apareceu a camareira, sorriso encantador, formas
roliças, pele suave, a qual (camareira, não a pele), demonstrou igual talento no trato
da linguagem mímica.
Gabreol sentiu um arrepio ascender desde o cóccix até a mais longínqua ponta
capilar (valha-me Santa Kundalini! Ele pensou). Aquele ser perguntava-lhe, com
todo o sabor, toda doçura esculpida no dedilhar mutista, se ele, Gabreol em pessoa,
viajante e viajado homem dos trópicos, se ele mesmo desejava um copo de
limonada.
O herói detestava limão, mas, sentiu que seria ácido com a moça caso recusasse a
oferenda e, foi por isso que teve de ficar mais alguns dias na cabine sanitária de seu
quarto, presa que foi de uma forte reação orgânica contra os efeitos do limão–bravo
atuando sobre o intestino alienígena.
De qualquer forma a sorte estava lançada.

5) Estava apaixonado! – gritou para si mesmo, olhando o espelho e verificando seus


músculos. Obviamente estava possuído por uma paixão avassaladora, pois,
pensando só no assunto da paixão, não conseguia sequer escrever algumas linhas
para a Hungria, onde seu contato o esperava inutilmente. E, aquele contato era
muito importante. Através dele (uma pessoa de nome Pospichal) Gabreol teria
condições de contrabandear buchas para banho, buchas genuinamente hebraicas,
para o Hindustão. Operação difícil, as aduaneiras estavam atentas, e vários
contrabandistas foram presos recentemente, dizia seu informante; por isso, o nosso
herói contava com Pospichal. Mesmo assim punha-se a rir levemente, quando na
sua fantasia um policial se aproximava do contato e perguntava:
- O que faz o senhor com tantas buchas assim?
- Eu?, - diria Pospichal, - Nada de mais, respondia.
- Se não é nada de mais por que, repentinamente o senhor tomou esses ares de
quem acabou de sair do chuveiro? Responda!
Sim, era muito engraçado ver o contato carregado de buchas passar cinqüenta anos
de trabalhos forçados, lavando hipopótamo para o jardim zoológico de Budapeste.
Porém, quem não saía da cabeça escaldante de Gabreol era a bela camareira
africana. Esquiva. Luzidia. Inteligente a ponto de encontrar palavras novíssimas para
adjetivar uma frase ou substantivar um objeto raro. E, depois que descobriram
serem os dois conhecedores das obras de Zamenhoff, ficou tudo mais fácil.
Empolgaram-se tanto que se deram as mãos por baixo de uma das mesas do
restaurante.
Um dia, escorada na intimidade constrangedora que os unia demais, Umla, era esse
seu nome, convidou-o para um safári-sanitário. Uma limpeza, uma caçada estranha.
Iriam à procura da terrível PALPALIS e, a destruiriam, com certeza. Gabreol aceitou

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rapidamente como que temendo que Umla pudesse perceber sua ignorância em
termos de PALPALIS. Só mais tarde pode lembrar que um dia conhecera aquela
peste nos laboratórios do grande mestre Otílio, um misto de poeta-parasitólogo ou
parasito–poetista, que lhe ministrara rudimentos do mosquito Glossina palpalis. Mas,
já se fazia tarde, como eu já disse. E, para deixar bem claro aos leitores, era tarde
demais.

6) Cavalos, carrocerias, dezenas de pessoas intimistas, franco atiradores, caçadores


mercenários, comboios, caminhões cobertos por lonas pardacentas, todos, incluindo
Gabreol e Umla, atravessaram as areias de terras áridas à procura da temível
PALPALIS.
Nosso herói se perguntava como seria aquela PALPALIS. Grande? Desajeitada?
Torta? Ambígua? Torpe? Avassaladora? Caduca? Afinal, como seria a medonha? E,
o que causava de tão mal? Tais dúvidas misturavam-se ao suor que escorria pela
testa de Gabreol, enquanto Umla não parava de olhar para a boca do viajante que
arrebatara seu coração. Conversaram sobre o gelo eterno no Everest para que
amenizasse o tórrido calor que brotava do chão. Mas nada funcionava.
Alguns quilômetros de marcha e encontraram um aglomerado fechado de mata. Ali,
o habitat da tenebrosa, inominável, asquerosa, pérfida PALPALIS. Gabreol tremeu
um tanto. Umla tremeu outro tanto, apesar do sol imenso que os agarrava com seus
raios tentaculares. O herói só teve tempo de estapear o próprio rosto, quando sentiu
a picada. Umla pensou que ele brincava para afastar o temos mas, ficou chocada
quando viu-o rodopiar sobre a cela do cavalo que montava e cair no chão com
estardalhaço de amador.

7) A pior parte no sonho era quando Gabreol se via obrigado a ceder seu lugar para
a velhinha no ônibus. Do resto nada mais trazia mal estar, apesar de que muitas
vezes ele, com mesuras, saia dançando com uma foca em pleno vendaval.
Pospichal o acusava de ter enganado vários surdos–mudos dizendo que aqueles
fones de ouvido não permitiriam a entrada de formigas em suas cabeças. De resto,
reintero aqui, nada mais o alarmava. O sono era propício e parecia não mais acabar.
A letargia adormecia o corpo de Gabreol e levantava-o em levitações do tipo pérfuro-
cortantes em relação ao teto do quarto, o que fazia correr um boato sobre a
existência de um novo místico ocupando o quarto 543 daquele hotel. Apenas Umla
estava triste, pois muito bem ela sabia que seu amado caíra num poço quase sem
fundo e, ela nada podia fazer a não ser segurá-lo quando levitasse pelo quarto.
As vacinas eram distribuídas pelo corpo de viajantes, tentando criar um sistema de
defesa contra alguma coisa que ninguém sabia direito o que era. Puro chute. Nem
mesmo uma boa buchada áspera passando pelo corpo de Gabreol poderia retirá-lo
da imensa nuvem sonífera em que se escondia.
Parecia o fim. A tragédia final de todas as tragédias. Extrema judiação para quem
não esboçou nada a favor da libertação mundial ou da ascensão do nazifacismo. E,
além do mais, como ficariam os banhos caso não existissem as buchas tão leves e
portáteis que agradavam a todos e quaisquer hindustanês?
Umla pensou numa saída. E, saiu. Dirigiu-se ao escritório de Dada Tunke, que era
um feiticeiro formado em Cambridge, justamente para dar um valor, ou melhor,
dizendo, uma conotação mais científica às suas invocações. Contou-lhe a história.
Normalmente o curandeiro pediria para que a jovem dormisse com ele, mas, devido
a próspera educação britânica recebida, evitou tocar no assunto, o que aliviou a
moça, mas não chegou a aliviar o feiticeiro.

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Dada prometeu ajudá-la contanto que ganhasse, por baixo do pano, algumas
buchas a mais. Umla concordou prontamente, saindo do escritório com um sorriso
nos lábios e um visível sinal de contentamento na face e no modo de andar dirigiu-
se ao quarto do doente.

8) Dada Tunke compareceu ao hotel. Estava vestido com paramentos.


Era uma túnica de místico a qual se limitava a um tecido trançado pelo tórax e mais
nada. Daí para baixo estava nu. Daí pra cima também. Na mão carregava uma
bengala de junco que ele dizia auxiliar nas invocações de árbitros e advogados
d’além vida. As pessoas do hotel, ou seja, moradores e tripulantes, bem como
alguns cães, pararam suas ocupações para permitirem um estrondoso sucesso no
inicial processo de cura. A cerimônia deveria começar logo que Gabreol fosse
retirado do lustre em que se instalara, sem intenção é claro, durante episódios de
levitação. Dada Tunke encarou o fato como uma necessidade intima de luz, por
parte do enfermo.
As primeiras orações, naturalmente seguidas pela voz sopranino de Umla foram
para os velhos pajés da tribo dos Japurás, moradores à margem do belo rio
Apoporis, aos quais o curandeiro levava um longínquo parentesco, duvidável, mas
completamente aceito àquela instância. Em seguida fez alusão aos espíritos que
habitavam o planeta num passado de milhões de anos, vagantes na Terra em pleno
Jurássico, o que deixou a pequena platéia um tanto abestalhada com a erudição do
desnudo sapiente. Um ou outro pigarreava descrente. Havia quem quisesse até rir.
Ficou difícil de se acreditar na cura de Gabreol quando todos viram, bem ali na
frente da cama, o feiticeiro entoar cânticos e melodias que revelavam um muito
grande despreparo na arte de cultivar a boa música e chegaram a comentar que se
o médico aquele fosse tão bom cantor quanto curador, o dorminhoco já poderia
entregar a alma a Manitu, pois daquela não escapava. Apesar do trocadilho e da
cama, estaria em maus lençóis.
No entanto, surgiu a fumaça cinzenta.

9) Todos correram desesperados.


Uns procuravam água, outros apenas a distância daquele local em chamas. É que
um dos assistentes deixara cair, sem atenção, a sua dentadura e, preso a ela, o
cigarro de inhame. Repentinamente o fogaréu tremendo invadiu o quarto e começou
a queimar tudo, o que é próprio de incêndios. Desde barbas até cartões de créditos;
desde sapatos até leques de papelão com propaganda de guaraná; desde forros
casacos puídos até cerdas de escovas de dente; tudo era lambido pela ígnea força
devastadora. Todo objeto individualizado se transformava em um objeto comum que
chamaremos grosseiramente de carvão.
Na fumaceira Dada Tunke sumira. A platéia escafedera-se. Umla permaneceu
imersa em profunda intenção de retirar dali o seu protegidamado. Só que o onirista
aquele de nome Gabreol era muito pesado. O fogo subia, comia, sugava,
transmutava os objetos, mandava as temperaturas para os píncaros, se bem que
nos píncaros as temperaturas eram mais baixas. A vítima Gabreol nem ligava.
Dormia num sono solto. Completamente apático e enfático, se é que o paradoxo
permite nesse mister. Umla se desesperava.
- Qual a minha saída? – perguntava em esperanto. – Que devo fazer? Como ajudar
o ser amado? – e todas essas perguntas inteligentes que ocorre em situações
pungentes como a relatada magnificamente acima.

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Justamente quando as forças de Umla já não seriam mais, em local algum,


chamadas de forças a não ser aqui, e, tentando o autor, num último e desesperado
ato achar o fio da meada e dar coerência a esta história (valha-me Ariadne!),
mantendo o equilíbrio adequado ao conto, vemos Umla que se decidiu a dar o
primeiro e último, supunha ela, último beijo no viajante Gabreol.
O beijo final. Todo paixão e ternura.
Vai parecer brincadeira, mas, é ai que ele acorda...Ts...Ts...
Não quero nem saber... não me venham dizer que é plagio, que foi tirado de outra
história... não me interessa. Todo mundo sabe que determinadas coisas se repetem
com o tempo.

10) É escusado dizer que, restabelecido Gabreol (agora sempre junto de Umla) o
casal tomou seu avião para a Hungria onde tentariam encontrar o dedo–duro do
Pospichal e, sim, viveriam livres para sempre. No entanto, é necessário afirmar que
a junta de Conselheiros de Cambridge, - sabendo do ocorrido em terras d’África, -
caçaram a licença do inescrupuloso Dada Tunke que, atualmente, trabalha como
engraxate na Rodésia onde esporadicamente faz mágicas para a criançada do
gueto. E, finalmente parece que a PALPALIS medonha permanece imbatível até o
momento; espera-se que as autoridades sanitárias venham a descobrir que tipo de
papalicida encontra-se embutido nos líquidos salivares das pessoas como Umla, já
que aplicações diárias, via oral varias vezes ao dia, parece ser a posologia
adequada, ate o clímax chegar.

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AULAS DE DIREITO
DO DOUTOR BUSTAMANTE
(uma novela legal)

1) Causou impacto o aviso de aposentadoria do ínclito Professor Bustamante.


Todos pensavam que ele já tivesse morrido, apesar das aulas que ainda dava na
Faculdade de Direito. A OAB nem notou, acostumada a episódios como este. É
sabido que as classes de direito são frequentadas por mortos e semi-vivos. Os
cadáveres que ali gorjeiam gorjearão, um dia, nas Câmaras e Assembléias, de
Brasília e quiçá de Deus, sendo todos uns pacóvios e velhacos. Haja vista
documentos empoeirados encontrados nos Fóruns e nas casas das comadres do
peito. Pode-se aqui, à guisa de abertura da novelinha, repetir a piada infame mas
verídica. Os cientistas não usam mais aqueles simpáticos ratinhos brancos de nariz
róseo como cobaias de suas experiências. Atualmente usam advogados, pois tem
coisa que advogado faz que nem mesmo os ratos têm coragem de fazer. Mas,
sigamos uma aula do professor.

2) “Por outro lado temos um assunto deveras importante que é o Jus Pudendi que se
explica pelo direito de se punir um Estado que teima em abaixar as calças para outro
Estado, segundo, o dito popular que é mais enfático nesses casos (os alunos riram)!,
ou seja, quem abaixa a cabeça acaba mostrando a bunda... e bunda descoberta... já
viu, n’é?! - (o professor Bustamante fez um estranho movimento com um taco que
ele usava para apontar frases na lousa):

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- Vejam só! - disse ele, todo engraçadinho, com as bochechas refletindo um tanto
de rubor senil, - vejam só! Tudo isso está ligado às fórmulas da política
internacional, - e, depois de uma coleção de pigarros tonalizados no cromatismo, -
finalmente, caros alunos, devemos, por hoje, falar em Direito Penal Verbal e
Adverbial. O Verbal é transcendente, aplicado pelo Divino Espírito Santo, apenas
nos casos em que o Réu acredita Nele.
Bustamante elevou o dedou minguinho para o céu.
- Conjuga-se em uma e total pessoa. O Adverbial, por seu turno é relativo aos
demais que gritam ao redor do Uno (a voz de mil águas) e, é aplicado por Anjos,
Arcanjos, Querubins, Serafins, Tronos e Potestades e demais poderes celestes,
guardando a devida hierarquia. Por hoje, então, é só. Se ninguém tiver dúvida, um
abraço e até amanhã.
Doutor Bustamante saiu com ares de pavão e passo de ganso nobre.

3) Devo dizer aos esclarecidos e caros leitores que o eminente professor,


trigraduado, poli-sintetizado em papiros legais e outras facécias de âmbito forense,
mesmo em casa não largava sua mente arquetípica, nem seu martelinho supimpa,
nem sua toga chamuscada, e, punha-se a confabular no linguajar de renomeados
Tibérios e Calígulas, benditos estadistas do passado. E, sua cabeça vagueava por
constantes terminologias e variegadas nomenclaturas e definições expostas em
cenas meritórias como: “Bustamante se olhava ao espelho, aprumava o par de
óculos e apontava o dedo índex (como gostava de chamá-lo) e falava que os crimes
de ação na privada tinham um caráter especial, pois a vítima era cognominada o
fedido”, e, em seguida, Bustamante cagava à vontade.
Coisas semelhantes eram proferidas no quarto, na cozinha, nos corredores, sempre
solitariamente, pois Bustamante nunca morou com pessoa alguma, a não ser
quando nasceu, pois naturalmente alguém o segurava de um jeito ou de outro. Por
essas e por outras é que o autor, do conto que ora se desenrola, deseja que o
escrito não seja mais do que lembranças autobiográficas do referido Bustamante.
Mas, Bustamante estava já fraco de memória e não deu certo. Ele só pensava e
arrotava verborragia jurídica. Leis e normas saíam pelo ladrão. Dessa forma o autor
dessas letras resolveu inventar quase tudo pois o editor queria algo de impacto.

4) Jogando bridge com seu grupo de velhos amigos da faculdade, fósseis da época
de formatura, dinossauros oculares e bigodulares metidos em fungosas roupas, uma
e outra múmia com charutos e cachimbos dependurados na dentadura, o nosso
falso herói, falso fidalgo, saiu-se com esta, para espanto dos interlocutores:
- Dia desses bolei um sistema de estudos forenses que recebeu o nome de
Tricotêmico. Explico o por quê da cousa. Dividi o tal sistema em crime, delito e
contraversão penal. No sistema tricotêmico, o crime é cometido com o uso de
agulhas de tricô. No delito ocorre quando o criminoso empunha pedras pontudas,
por causa do radical grego e, finalmente, no caso da contraversão penal, tem a ver
com relações e intercursos íntimos com galinhas...
- As alunas?
- Galinhalunas?
- Que aulas, Bustamante? – um amigo das antigas falou.
- Na minha aula de ontem.
- Não é aquela que você vem repetindo todo semestre, desde mil novecentos e
nada?

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- Havia galinhas naquela época?


- Sempre houve galinhas... elas dão...
Bustamante, arrogante, lançou-lhe um olhar arguto que trespassou o meio azulado
das inúmeras fumaças que saíam tanto dos charutos, cachimbos e cigarros, como
das quantas cabeças calvas e esbranquiçadas dos devidos doutos. Mesmo assim
respondeu:
- Sim, meu amigo, é a mesma aula. No entanto, acredito-a atual, afinal,
decididamente você bem entende que moramos num país onde as Leis valem tanto
quanto papel amassado.
No borbulhar de uma repentina lucidez, os rostos se viraram para o jogo e para a
mesa. Bocas abafaram com sofreguidão; ouvidos ainda tiveram a chance de
perceber que Bustamante se dirigia ao ano de 1922, louco da vida contra os
modernistas.
Pigarreou.
- Eu falava das galinhas. E, a contraversão penal, no Tricôtemico, se faz pelo uso
abusivo dos bicos dos galináceos como instrumento criminoso e, tenho dito.

5) Todo divino dia, o carro preto parava à porta da residência do advogado e


jurisconsulto Bustamante e envolvia-o com a sua carapaça cheia de portas e janelas
para levá-lo em direção da Faculdade. O chofer do taxi já conhecia de longa data o
decano aquele e nunca soube negar ouvidos, línguas e atenção para o seu cliente
de longos, nebulosos, invertebrados e domesticados vinte anos de praça.
- Conta aquele causo do garoto, mestre.
- Não é causo, besta ambulante... É caso, senhor. Estou já cansado de corrigi-lo. –
e o taxista ria...; o passeio demorava ou passava rápido, mas era sempre recheado
de imagens e paisagens das ruas, enquanto o doutor falava. – Lembro que foi
motivo de se aplicar uma bela detenção, senhor. Ah, lá foi! É uma espécie de pena
privativa. Deixei a criança proibida de ter dentes durante certo tempo. Deu certo...
criança ranzinza... Não mais... Coisa de pouco monta.
- Que havia feito o menino, mestre?
- Ora, o que havia feito... Ao que me parece ele... Deixe ver, se não me falha a
memória... Aqui! Isso, senhor, pare aqui mesmo. Antes tomarei um gengibre naquele
bar. Vou sozinho e a pé o resto do caminho. Obrigado.
Desceu, pagou, bengalou na direção do bar, fez meia volta e continuou seu caminho
para a faculdade. Detestava gengibre.

6) - Crime preter boloso: o agente quer um pedaço de bolo, mas não tem intenção
de fazer o bolo. Muitas vezes pó alergia a farinha. Existe bolo no antecedente e
desculpa no conseqüente.
- O que é dolo, mesmo, professor Busta...
- Não é dolo, paquiderme! É bolo... Bolo... e, vai me dizer que você não sabe que é
bolo? Continuemos. Não sei o que vocês fazem aqui! Não estudam? Continuemos.
Bustamante parou, pensou, pigarreou.
- Bolo eventual: o agente não quer o bolo, mas aceita-o assim mesmo, é um egoísta.
Se recebe como óbolo é um oboísta. E, temos, finalmente, o bolo direto, quando o
agente quer o bolo na boca, sem precisar por as mãos nele. Alguma pergunta?
- Professor Bustamante, o que é crime putativo?
- Olha, senhorita, é bom nem falar nele. Imoral! Imoral! Não é assunto para meninas
de sua idade... aliás, nem sei o que é que mulheres fazem na minha aula..., – virou-
se para a sala. – Mais alguma coisa, morcegos? – um rapaz levantou a mão.

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- Eu gostaria que o senhor definisse para mim, o crime tipo misto.


Bustamante pigarreou como dando a entender que era, aquele, um de seus crimes
preferidos e, com voz clara entoou contra as paredes esvaziando toda a sua caixa
torácica do resto de conhecimento para o dia de aula: - O crime tipo misto pode ser
com queijo e presunto, ao mesmo tempo alternativo ou cumulativo. O alternativo,
como deve saber, acontece no caso de presunto ser substituído por carne humana.
Já no caso cumulativo, temos aí um crime relacionado com as partes baixas,
geralmente, as inter-nádegas (e tapou a boca com a mão).
No meio da risada geral, lá foi Bustamante cheirando o ar, sorvendo galhofas
iníquas e lisonjeiras falas de deboche sofismático.
No corredor deparou com jovens advogados que evitavam ao máximo qualquer tipo
de conversação com nosso herói. Desviavam dele. Deve-se afirmar que tais jovens
causídicos foram literalmente apagados do testamento de Bustamante, com todas
as vírgulas e acentos necessários.

7) Um dia, no entanto recebera um convite, o doutor Bustamante, formado em


Ciências Jurídicas, Filosofias, Letras de Câmbio e Trapezoidismo de varias
espécies, incluindo Arquiteturas Sociais; o tal convite era para que o mestre
participasse de uma solenidade por ocasião da formatura de uma leva de gentes de
Direito, novos em folha e falha, prontos para defender com o próprio peito os
ditames e diamantes da lei e, serem braço forte contra qualquer ação que venha
destruir as instituições e as bases da sociedade etc, etc, etc, blá-blá-blá, e, que tal
festa se daria no Clube X a tantas horas da noite Y.
Limpou o fraque, mandou que chamassem um tílbure, brilhou os sapatos com
verniz, adulou suíça, penteou restos capilares, valsou com sua metódica bengala de
ébano e, sobraçando uma folha de papel higiênico, terminou seus últimos retoques
sanitários, vivenciando momentos de inaudito prazer. Cagar sempre lhe era
recomendação precípua.
Seu lema: Antes do veredicto... cagar!
Após o banquete, vieram os elogios e razoáveis concordâncias quanto ao futuro
glorioso de portentosos cidadãos da pátria que naquele momento colavam e
calavam seus graus, sempre após muita balbúrdia durante a graduação. A pedidos
que vinham da platéia, Bustamante subiu ao púlpito, (apesar dos pedidos para que
não o fizesse, deixe-me esclarecer). Lá foi o herói para o microfone, pigarreando,
fugindo das mãos dos seguranças, alardeando horas de discurso arenoso ao fazer
surgir, na sua frente, quinhentas folhas de almaço duplo, salpicado aqui, e, ali de
bocejos e estremeções convulsivas... bocejos, especialmente das pessoas que
haviam se empanturrado do camarão e, que já não passavam lá muito bem.
Nesse meio tempo, convivas depositavam em seus bolsos próprios, desde os
indefectíveis cinzeiros, até pequenos potes com manteiga de leite de cabra, ou,
mesmo o famoso produto do esturjão. Enquanto isso, Bustamante fazia as vezes de
Morfeu e deitava fala na populaça sobrevivente e incauta, sempre discorrendo sobre
as origens do Direito Romano, incluindo dados sobre a origem de Roma, Rômulo,
Remo, a origem das espécies, especulações sobre Enéias e a fuga de Tróia, a tal
da Loba leitosa, Pedro e Lobo, Stepenwolf, adentrando em terrenos dos Loup-
Garrou, escotismo, quistos sebáceos, subdivisões pulmonares e uma infinidade de
outros cães amestrados conhecidos da televisão.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

A história seria muito mais comprida se, num ato de bravura, o vento vindo não se
sabe de onde, não tivesse tirando metade das folhas das mãos de Bustamante. Para
ser exato, em torno de duzentos e cinqüenta e sete folhas que sobrevoavam o
recinto numa festa.
De qualquer forma, o advogado, brandindo o dedo no ar como Cícero, solapando o
ar com seu braço amortalhado de roupas negras como Nero ensandecido, um
mortalha desenhada em bonito negro gótico, cuspindo no ar a sua salivar
verborréia, gritou alucinadamente:
- Capitis diminutis! Eu exijo a volta da tribal diminuição de cabeças, para o
aprimoramento da moral comburida. (e sem perder a compostura) Capitis diminutis
máximus! A perda total da mesma, horrenda cabeça pecadora fomentadora de
idéias e rebeldias.
Pigarreou.
- Caros amigos, confrades, colegas de profissão, lutadores do supremo Bem e da
legalidade. Conclamo-os a se prenderem aos dias de Pompéia, da grande Roma,
dos Césares. As origens, quando o crime era realmente punido, com rigor, com
veemência. Naquela época, o crime de “falo” era claro: o criminoso matava a cobra e
mostrava o pau e ia preso, sem condições. Não é como hoje, quando até as
mulheres são machos e matam a pau!
Bustamante ainda limpou um pouco do suor que descia como cascata, se bem que
se uma cascata fosse como o suor seria uma pequena cascata. E o doutor
continuava:
–Aqueles casos interessantes do homem que matava lendo muito, nos termos do
crime plurilesivos ou, então, nos crimes da animalidade, onde citamos os criminosos
como se fossem terríveis monstros que matavam com o nariz, na forma veríssima de
tucanos alucinados, são formas que não encontramos mais; aqueles casos,
senhores, estavam sob a lei; a Lei se impunha com a mão de ferro! O corpo
estranho na urina do civil, nas formas do Corpus uris civis, eram fatos de clara
concisão para o magistrado, para o próprio promotor, fosse ele urubano – com
autoridade indubitável sobre urubus, - fosse ele questor. Naquela época não havia
diferença entre questores, mas apenas entre os castores. Os primeiros eram
magistrados encarregados em relações às finanças do estado e os últimos, tanto
dantes, como atualmente, simples mamíferos roedores. Tudo claro, límpido,
cristalino!
Bustamante pigarreou e alguns convivas aproveitaram para enfiar a cabeça debaixo
da mesa.
- O direito púbico se interpretava à luz vermelha das casas das meretrizes... (olhou
para o alto como em devaneio)... nestas casas os juízes se reuniam... todos os
famosos togados da época, mãos esparramadas nas tetas das mulheres públicas,
coisa altamente púbica, meus amigos, onde todo mundo podia por a mão, se
quisesse, apesar de íntimo. Um direito privado, no entanto, era o que todo mundo
devia usar por si só e no recôndito de seus lares... puramente cúbico.
A essa altura muita gente saia do recinto e outros pediram telefone ou taxi.
Bustamante, porém, era puro ardor, vento puro de palavras e letras que escorriam
copiosas da cabeça fundida em gesso do passado e, o que era pior, não parava um
segundo de falar.
- A Lex Catuléia, companheiros de Leis, permitiu o casamento entre cães e gatos,
num ato puro de evolução zoológica da jurisprudência. Notório! Numa época onde
havia muito boi da ralé, os conhecidos pleibois, era necessário que não se ficasse

Coelho De Moraes 71
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

em teorias, mas, também, que se fizesse o acionar das Leis e promulgação delas,
impondo-as com, braço forte.
Bustamante atingi o ápice da palratória. A calça molhada de suor e sêmen, num
clímax que durava já um quarto de honra.
– Em pleno século IV A.C. aparecia para nós as maravilhas da Leis das V Tabuadas
que diziam assim, meus irmãos: I- Se for chamado a juízo, vá. Se ninguém for
chamado, por que se fez tanto barulho, então? II – Se por acaso não quiser ir, não
vá, mas, depois não reclame se o apedrejarem. III - Se por acaso quiser fugir, fuja.
Não faz mais do que a obrigação. IV – Se está doente ou é doido e ainda comete
crime, é um jumento. Três chibatas no lombo. V - Se no caminho da prisão o
criminoso acordar, cacete nele.
Nesse momento, vindos através das paredes, de todos os lugares, vários seres
vestidos de branco pousaram sobre o irrequieto Bustamante. Não, não eram anjos,
nem ninjas do bem, mas, enfermeiros. Eram os comandos de Henrique, o Bom,
psiquiatra, médico, acupunturista e podólogo que mantinha um campo de concen...
ou melhor, um hospício comum para os lados da praia de Jurubeba, em local de
difícil acesso, a não ser que se soubesse manipular uma asa delta ascensora. Coisa
de louco, mesmo!

8) Apesar de ter assinado diploma de gente considerada boa no exercício do esporte


jurídico, Bustamante não fez mais do que a maioria faz hoje em dia, e o doutor,
adentrando locais de hospitalizações, ainda teve forças para discorrer sobre uma
série de crimes importantes, dentre eles: o PRINCI-PAU, no caso de baixarem o
porrete no príncipe a troco do trono; ou o CRIME DE PERIGO CONCRETO quando
se mata alguém com uma lajota e, a outra variante, o CONCRETO ARMADO,
referendado como o mesmo acima já repassado incluindo uns tiros, para se ter
certeza que vítima vitimou-se; em suma, Bustamante estava com todo o pavio
aceso, ao entrar em Jurubeba e só parou de falar quatro meses depois.
Só não explodiu porque chovia.
No seu descanso forçado defendeu uns, acusou outros. Ninguém, no entanto, deu
trela e o advogado egrégio foi se tocando de um banzo indolor, mas visível, até que
certo dia chamou todos os doentes do hospital, inclusive os do departamento médico
e do corpo de enfermeiros, dizendo que havia finalizado o seu TESTAMANTO. Em
seguida passou a distribuir cobertores para todos, retirando-se em seguida para
dormir.
Só acordou quando ouviu que São Pedro tilintava suas chaves.
Virou-se para o escritor e disse: - ... mas, eu torcia para o São Paulo.

Coelho De Moraes 72
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

A VOLTA
DO FANTASMA ELESBÃO
(uma novela bárbara)

1) O conto que hora vai e hora vem nunca termina tem seu início neste momento
de modo que pedimos aos caríssimos leitores que marquem em seus relógios o
horário de início da leitura.
O folhear calmo, sem exasperações, pode ser precioso para o bom entendimento
desta história de uma personagem fictícia, às vezes sobrenatural, às vezes sub-
natural, às vezes semi-desnatada. Queremos falar de Tartamunduel-Elesbão, o
espírito das cavernas e das covas escuras; dos cantos ignotos e das grimpas
soturnas; das locas febris e das frinchas agudas. Espírito que hoje prefere vagar
pelas ruas das cidades, que no final das contas, é a mesma coisa.
Não se envergonhem de dizer que gostaram do conto.
O escritor está acostumado com isso.

2) No começo de sua morte, Tartamunduel-Elesbão habitava uma abadia nas


profundezas do vale perdido onde a umidade imperava mais do que o abade e sua
corretíssima abadessa (que à boca pequena era considerada amante dos
pelourinhos. Devo dizer que, naquela época, o pelourinho era uma forma de divisão
que os graúdos locais usavam, paralelamente aos jogos florais). Foi nesse meio de
cultura poético-religiosa que Tartamunduel veio a morrer, vitimado por uma parotidite
que o leigo costuma chamar pelo apelido de caxumba; ela veio a se instalar nas
regiões púbicas do homem supracitado, sendo que seu fim foi amargamente
chorado pelas mulheres vicinais, inclusive a sua dele (e não a do leitor), que até

Coelho De Moraes 73
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

aquele momento não passava de simples objeto de adorno do castelo. Um adorno


muito caro, diga-se.

Por essa razão, Elesbão, o Mefítico, como gostava de ser chamado, desprendeu-se
dos amigos e companheiros para sobremorrer nas dependências do castelo abadia,
pois não suportava choro de vivos. O Sr. e Sra. De Birrostrat eram os privilegiados
donos do castelo-abadia cuja face principal dava de cara com o Mar da Noruega.
Vale também dizer que no começo da aparição do fantasmagórico Tartamunduel, o
Porco, como gostava de ser chamado, o Sr. De Birrostrat tentou vender o castelo
muitas vezes pois não suportava mais o cheiro de cebola que exalava do periespírito
do recém-morto e, não poucos foram os momentos... - talvez com o propósito de
ofender Elesbão- ... que o Exmo Sr. De Birrostrat dizia ter conhecido várias falanges
de fantasmas sem que nenhum deles fosse tão fedido àquele ponto. Fato que
impossibilitava a convivência. Outros sugeriram que periespírito era coisa de índio,
em especial do índio Peri, mas ninguém acreditou numa bobagem dessas.
Tartamunduel-Elesbão, o Moqueado, como gostava de ser chamado não se fez de
rogado: parou de exalar o cebolóide aroma e passou a espalhar um forte cheiro de
alho que impregnou cada recanto da abadia. Isso, em 1545, foi chamado de
“Movimento Revolucionário Allium cepa mutandis Allium sativum” que logo caiu no
esquecimento tanto por causa do latinório como por causa da Inquisição.

3) O fato é que Tartamunduel-Elesbão permaneceu morto. Vagava pelas ameias


do castelo-Abadia até que o efeito aromático fosse de costume para todos os
moradores do lugar, inclusive, é claro, possíveis visitantes ou vendedores de artigos
para cama como lençóis, fronhas, cortinado, mulher, e, coisas similares para a
mente viciada daquela época de feudos.

É, no entanto, importante que o leitor conheça porque Elesbão havia escolhido tal
abadia para passar o resto de seus séculos. E isso eu conto agora,
Alguém disse que pretendia, Tartamunduel-Elesbão, o Jumento, como ele gostava
de ser carinhosamente chamado, tornar-se herdeiro daquelas terras, quatrocentos e
cinqüenta anos depois, levantando bom lucro com a especulação imobiliária dos
tempos modernos, inda mais, de frente para o Mar do Caminho do Norte; eu, por
meu turno, sem tomar partidos, fico obrigado a desmentir tais boatos já que sei o
verdadeiro interesse de Tartamunduel. Algo nada menos do que certa dívida, sim,
mas de outra origem, com outros valores e SPCs diferentes. Valores cósmicos e
cármicos. Resgate de erros pretéritos como queria o irascível Tartamunduel, o
Irascível, como ele não gostava de ser chamado.
O destino batia à porta de Elesbão.

4) Voltando um pouco mais no tempo veremos Birrostrat sentado em uma pedra.


Naquela outra época ele tinha outro nome, mas, para não atrapalhar o leitor
fazendo-o decorar uma penca de nomes será mantido o de Birrostrat, E, sentava-se
ele sobre uma pedra, observando os céus. Era o seu ofício: Observador da
Natureza. Aliás, a maioria das pessoas daquela tribo não fazia mais do que isso, –
Observar a Natureza - e, assim viviam.
Um dia chegou ao lugarejo certa mulher, que se apaixonou pelo tal Birrostrat;
apaixonou-se justamente pelo fato de que ele observava os céus colocando o
cotovelo sobre o joelho direito, permitindo que o indicador e o polegar da mão direita
erguessem o queixo até o ângulo desejado, dando-lhe um ar de beatitude e

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

comiseração. A certa mulher logo viu que aquele especialista era seu ideal para
cônjuge e propôs-lhe consórcio marital.
Birrostrat pensou muitas vezes, comparou valores de passado e futuro longínquos,
propôs idéias importantes e decidiu que o consórcio tinha lá a sua razão de ser;
para, no entanto, não deixar seu trabalho de observador ao léu, pediu àquela certa
mulher que escrevesse o pedido de modo mais formal, numa daquelas pedras boas
fabricadas no pais de Chêmi onde o barro chega a ser sagrado.
Laboriosamente, durante algumas luas, a certa mulher debateu-se com o
pensamento até ordenar adequadamente uma série de frases que soassem entre o
jurídico e o amoroso, de modo que a petição-carta começava dessa maneira:
- Venho por estas mal traçadas linhas ousar reclamar junto ao emérito observador
da natureza... (algum termo jurídico)... de modo que, apesar do espírito frio da
escrita cuneiforme, pretendo expressar aqui o quanto me aproxima o meu pensar do
pensar de vossa pessoa... (algum outro termo jurídico)... porquanto hei de lembrar-
vos das minhas virtudes orgânicas e espirituais, as quais serão completamente
compartilhadas com o excelso senhor... (mais algum termo jurídico)... reafirmando
grande respeito e alta estima. Nestes termos pede deferimento. Data. Assinatura.
Ora, tal trabalho foi dispendioso, se bem que um escriba renomado a ajudasse no
mister; via-se pelas olheiras que orlavam, evidentemente, os olhos da certa mulher,
que ela estava exausta, coisa que somente seria recuperada com dieta bem
balanceada e reforçada com leite de búfala e muito trigo. O problema surgiu quando
Birrostrat, através de um lacaio, mandou devolver o requerimento com um carimbo
de indeferido.

5) O choque fora fatal.


A certa mulher irou–se, pois, desagradou–lhe a fria manifestação de Birrostrat, isso,
levou-a a supor (por despeito) que todos os observadores da natureza fossem iguais
a ele. Nós, o escritor este, e, o leitor, sabemos que tal não é verdade. Na graduação
dos Observadores da Natureza há várias gradações. Mas, para piorar a situação,
mais tarde ela soube a razão que levou Birrostrat a excluí-la de sua lista de
pretensas pretendentes. Birrostrat conhecera um exemplar dromedário que fazia
solo em um grupo musical formado por quatro camelos e duas hienas mansas,
sendo o dromedário aquele possuidor de excelente voz abaritonada e um poderoso
vibrato, trazendo ao quase noivo Birrostrat uma dúvida: ou casava ou comprava o
dromedário. Optou pela segunda hipótese acreditando haver maior utilidade no
dromedário solista.
Para resumir, a certa mulher fremiu de raiva extraterrestre e completamente
furibunda com todos e consigo mesma, viu-se, repentinamente, armada de pedras
que eram atiradas para todo o lado, sem mira, sem direção destrambelhadamente.
Os viandantes, aquilo vendo, puseram–se a correr; outros, mais aquinhoados de um
espírito cristão anacrônico, passaram a socorrer a subitamente endemoninhada
mulher que não regulava esforços no afã incomensurável de arremessar projeteis
pontiagudos sobre cabeças incautas, diga–se de passagem, alheias.
De piora em piora, a coisa tomou ares de loucura extrema. Isso chamou a atenção
dos soldados do rei. Pensaram em revolução (o rei metia os pés pelas mãos).
Pensaram em manifestação (os impostos eram crescentes). Pensaram em greve
(trabalhava-se muito para se ganhar pouco). Bem, pensaram nas coisas basais,
própria para limites de suas inteligências parcas. Por via das dúvidas botaram as
mãos nas pernas e braços da certa mulher, carregando–a para o calabouço real (o

Coelho De Moraes 75
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

que de maneira nenhuma significava que o rei estava no calabouço, como era de se
esperar).
Lá ela poderia refrear seus ânimos e colocar a cabeça no lugar, mas, não foi isso
que ocorreu. Na verdade ela perdeu a cabeça. A certa mulher optou pela loucura.
Antes, porém, deixou bem claro que um dia e, repetiu, um dia voltaria para vingar–se
(o de sempre) de Birrostrat (claro, de quem mais?), e sua descendência (aí já era
exagero da pobre), estivesse onde pudesse, fosse como acontecesse.
Após longas peregrinações pelo Cosmo, de vida em vida, na captura do observador
da natureza, deparamos a certa mulher renascendo, vivendo e morrendo sob a pele
de Tartamunduel – Elesbão, o Sujo, como gostava de ser chamado, fomentador de
nojos e imprecações dos mais variados tipos que, naquela época de 1545 A.D.,
assombrava magnificamente o castelo do Sr. e da Sra. de Birrostrat, como um
abantesma da mais baixa qualidade.
Nem correntes o vagabundo carregava.

5) – Eu sou o Elesbão!
A voz ecoou pelos corredores úmidos da Abadia. O Sr. de Birrostrat começou a rir
sem peias. Nunca se divertira tanto desde que empalaram o Conde no meio da
floresta cinzenta.
- Eu sou Elesbão, cacete!! É surdo, miserável?
Birrostrat parou de rir porque aquilo já ia longe de mais. Uma evidente falta de
respeito para com os demais fantasmas da casa, fantasmas doutos, fantasmas
espiritualizados... muitos espectros antigos, ali aposentados. Crias do castelo
através de custosas e longas noites de tortura e sofrimento no esticador de
membros, ou no garrote vil; alguns desencarnados sob simples machadadas nos
dedos. Não se podia permitir que o intruso agisse de tal forma. Birrostrat resolveu
interceder a favor da organização tumular, berrou no meio do salão:
- E daí o que você quer que eu faça?
O eco perdeu-se nos corredores.
Houve um silêncio, como se o fantasma de Tartamunduel rabiscasse em sua mente
sinais miraculosos de lembranças e planos. Então disse, com a característica voz
dos espíritos melodramáticos, novelescos, rochesterianos:
- Por acaso o Sr. não se lembra do episódio dos Silurídios?
- Silurídios? Não... Nem sei o que que é isso.
- É bagre... bagre! Seu palhaço. Nunca comeu bagre na vida?
- Aaaaaanh! - gemeu Birrostrat, fazendo uma daquelas faces de entendedor que
nem mil palavras bastam. – Bagre? Claro... Claro que comi. Aqui mesmo no mar da
Noruega...
- Tem muito, não é?
- É.
- Mentiroso!
Ato contínuo Elesbão cuspilhou um pouco de vento com aroma de alho no rosto de
Birrostrat e continuou:
- Meu caro observador da natureza com sentidos embotados, como vai sua esposa?
O enfeite que perambula diariamente pelo castelo, não lhe dá trabalho algum, não
é? O enfeite só se desrecalca quando há diversões no pelourinho do burgo, não é?
Ou, então, solitariamente, enroscada no meio de tantos vestidos e saiotes,
escondidinha no banheiro. Mas, digo a você, verme, que foi através dela que
preparei minha arapuca. A arapuca que o manterá sob minha custódia durante uns
bons pares de anos.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Neste momento Elesbão deu uma sonora gargalhada. Birrostrat encheu–se de terror
e, bem baixinho, pôs-se a rezar um salmo, tentando se safar de tormenta tão
embaraçosa. Ainda teve força para dizer:
- Mas o que é que eu tenho a ver com o peixe?
- Muito bem meu caro.
É desnecessário dizer que Tartamunduel – Elesbão, o Grosso, como ele gostava de
ser chamado, ficou espantado com a perspicácia do amedrontado abade.
– Sim, o peixe, o bagre já referido. Ele servirá como garantia de que cumprirei
minhas ameaças. Lembra-se dos vassalos de Alekssander? Lembra–se? Que teriam
eles comido a mesa? Naquela ceia para caírem intoxicados à beira da estrada?
- Sim, eu me lembro. Todos os coscuvilheiros da Europa espalharam a notícia.
- Peraí. Agora você me pegou. Que que é coscuvilheiro?
- Intrigantes, mexeriqueiros, boateiros, Seu Fantasma, - Birrostrat respondia com
perito ar servil.
- Muito bem, minha cara vítima. Só que não foi boato, coisa nenhuma. Nem mentira.
Saiba que à minha mesa os vassalos foram obrigados a comer bagre, meu caro,
bagres crus; tenros, frescos... mas, crus. Com olhinhos e tudo. Com escamas, cauda
e buchada, meu caro, como manda o figurino ou cardápio do melhor abutre –
gourmê.
Birrostrat sentiu que a saliva chegava mais espessa ao seu paladar; que algumas
pequenas gotas de suor frio faziam cócegas no seu queixo, no entanto, continuou a
ouvir a arenga de Tartamunduel–Elesbão, o Psicopata, como gostava de ser
chamado; não tinha força suficiente, nem coragem a bem verdade, para escapulir
dali, daquela presença invisível, graças ao medo e também ao imenso bolo de
matéria fecal que se havia formado sob a calça de veludo.
- Foi por isso, meu caro perseguido, que havendo os vassalos vomitando sobre a
mesa, no começo da refeição, até se adaptarem ao novo pasto, ganhei a alcunha de
Mefítico, que pega bem paca; acreditando que você venha a acreditar nesta história
uma vez que sou, nesse momento, assessorado pela conveniente argumentação
que lentamente se instala debaixo de suas distintas vestimentas. Estou certo?
Nova gargalhada provocou um esvaziamento total e completo de tubo intestinal do
Sr. de Birrostrat que já não tinha outro remédio a não ser pedir antecipado perdão.
- Mas para que tanto ódio, Seu Fantasma?
- Pergunte ao seu dromedário predileto abade banana.
- Juro que não estou entendendo!
- E, ai de você! se ousar levantar a voz contra minha espectralidade outra vez.
Começaremos uma sessão de alimentação a partir de toda a fauna do lago aqui
perto, sem esquecer dos crocodilianos. Saiba, Birrostrat, que você só ganha
enquanto espera sua vez chegar.
- Não!
- Sim!
- Não!
- Sim!
- Não!
- Sim!
E ficariam nisso se o escritor não interferisse.
- Não! Misericórdia!
- É tarde, é muito tarde, eu já vou indo. Eu preciso ir embora. T’ é manhã. Mas não é
plágio. É citação.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

7) E por falar em manhã, o dia seguinte chegou trazendo também para os lábios de
madame de Birrostrat um doce sorriso por causa dos acontecimentos da noite. É
que após a tempestuosa conversa do mortal com o morto, como sabemos, o Sr. de
Birrostrat foi presa de ligeiro transtorno entérico, o que o levou rapidamente para a
alcova e, dali para o reservado nauseabundo no fundo do corredor. Ocorre que a
partir daí surgiu um imprevisto na rotina do casal.

Toda a noite a madame de Birrostrat era a última a se recolher ao leito, pois ela se
perdia em arranjos que mais adornassem os seu castelo; como o desarranjo do
marido fora de ampla magnitude, ocorreu uma troca de horários, de modo que ao
deitar-se a mulher do Sr. de Birrostrat apercebeu–se sozinha sobre a cama,
levando–a a pensar no consorte, o que era raro.
Ora, na solidão do castelo o que mais se ouvia era um grupamento de barulhos
desde os infernais gritos de almas danadas até o coaxar de sapos perdidos na
umidade da masmorra. No entanto, a madame, por bem, apurado o ouvido, pôs–se
a discriminar uma nova gama de vibrações desconhecidas. Vinham do fundo do
corredor e ela podia notar que eram sons emitidos pela boca de seu marido; algo
entre lamentoso e lúbrico, constrito e profundo; às vezes agudo e animalesco.
Imediatamente lembrou–se – algo perdido na memória - de que só ouvira tais sinais
e sintomas a noite de núpcias com o Sr. de Birrostrat, o que a colocou
respectivamente fora de si, prevendo que o marido preparava-lhe uma de suas
surpresas anuais.
- Mas, ainda é tão cedo... – falou para si mesma, entre sorrisos e vermelhidões. –
Geralmente só acontece no Inverno.
Concluiu, por fim, que seria melhor não se preocupar, repetindo para si que à cavalo
dado não se olha os dentes, monta–se e (rindo) cavalga–se. Aproveitou e treinou
relinchos e jogos de anca.
Cá entre nós, deve–se acrescentar que o problema de Birrostrat era bem outro; não
pretendo me introduzir muito na questão, o leitor é bastante arguto para entender
que o observador da natureza gemia por causa dos estertores e dos borborigmos
flatulentos que acometiam suas misera constituição; não pouca vez, pensou em ser
pilhado por um e outro fantasma amigável opinando sobre o mau cheiro que exalava
continuamente de tão incompreendido tubo gástrico.
Uma hora mais tarde, pouco melhor das cólicas, e após ter tomado um bom copázio
de Boldo fragrans; vê–mo-lo de volta ao quarto com a completa certeza de que
encontraria a mulher deitada e livremente flutuante nos braços de Morfeu. Porém,
péssima surpresa o tomou quando ao pisar no tapete do quarto e subir os degraus
da alcova percebeu que sua esposa estava nua!
Ó! Nua!
O autor fica nesse momento com o direito de omitir descrições que talvez devam ser
indeléveis para as mentes de alguns que venham a tomar contato com a história de
Tartamunduel-Elesbão, o Josta, como ele gostava de ser chamado. Sabemos de
antemão que é possível que pessoas dotadas de calças curtas mentais ou pés
descalços morais, no descuido, passem a ler tal romântico enlevo, o que seria
pernicioso para a formação juvenil, quiçá, adulta.
Outrossim, fica aqui a opinião do renomado barão de Itararé, já valorizado em outro
conto, que dizia ser muito melhor ter um galo no terreiro do que dois na testa, de
modo que ousamos dizer em paralelo que é melhor sonhar com o que se gosta do
que constatar, na realidade, que o que se gosta não presta.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Podemos dizer que foi uma noite agradável para ambos, ou seja, para os três: Sr. e
Sra. Birrostrat e, Elesbão, que ficou olhando a pugna.

8) Não só olhando.
Com a ajuda de outros desencarnados vagabundos por ali, Elesbão, o Sujo, como
gostava de ser chamado, procurava o máximo possível interferir no coito. Diga–se
de passagem, o conseguiu. Aproveitou o momento propício do encontro celular fatal
para promover uma nova formação germinativa e enveredou zigoto adentro,
habitando definitivamente o que mais tarde seria um corpo humano. Ele,
Tartamunduel, antiga apaixonada de Birrostrat, seria nada mais nada menos do que
seu filho, herdeiro de tudo e de todos.
- Não é assim que se vinga adulador de camelo?, - ecoou nos espaço a voz
tronitroante de Elesbão, o Encarnado.
Para júbilo dos moradores do castelo, desaparecido aquele fedor de cebola
misturado com alho, os visitantes começaram a se apresentar com maior freqüência
do que antes. As festas se repetiram ao longo do Inverno, enchendo os cômodos,
salões, andares com a presença de Cortesãs, Quimeras, Dissimuláveis, Rapazes
Alegres outros Alegres Mesmo. No entanto ninguém era capaz de perceber o grande
efeito palingenético que ocorria no interior matricial da Sra. Birrostrat. O abade
estranhou a desaparição da aparição aquela, mais foi dúvida que durou no máximo
alguns centímetros em uma ampulheta de hora.
- Às favas o fantasma!
Passaram muitos dias observando atentamente o sol–da–meia– noite, junto a
convivas e comensais, beberantes e noctívagos, vampiros e codornizes que, no
meio daquela bagunça toda passaram desapercebidos.
No entanto, Tartamunduel–Elesbão, o Perebento, como gostava de ser chamado
nas tarde idílicas, senhor de quilates emurchecidos, virtudes opacas e suavidade
evaporada não contava, com um pequeno detalhe. Pequeno como ele, em seu
segundo mês de crescimento intra -uterino. A Sra. de Birrostrat não queria ter filhos.
Ela, tão logo constatou a terrível possibilidade com a primeira vomitada, chamou seu
médico familiar, sempre apto na sua função de contraceptivo medieval.
Tartamunduel alarmou–se. Seu plano ia para o derradeiro brejo.

9) “Ó forças terríveis, inomináveis sutis da natureza.


Horrores esperam o homem na manha de seus dias.
Pior é viver no escuro da noite e ser incógnito.
Nulo nas lides da terra sedenta,
Rasgado em pedaços; ao solo atirado, como estrume.”.

Perdido na metafísica de tais pensamentos, Tartamunduel preocupou–se em


arrebanhar aliados para a árdua tarefa. Permanecer dentro da Sra. de Birrostrat,
quisesse ela ou não. Uma guerra a ser travada. Uma luta definitiva ele começaria
dentro daquela barriga miserável. Só de ouvir falar em curetagem já se tornava irado
e pronto para mandar pedradas. Imagino que o discípulo de Hipocrates fosse
daqueles que utilizavam beberagens para seus fins nefandos, já que o narrador jura
ter visto no embornal do facultativo um libreto muito tentador de origem húngara,
relatando o funcionamento de ervas e outros quejandos.
Tartamunduel, certamente, imaginou o mesmo, pois o fantasma prorrompeu em
lágrimas embrionárias, já pensando em sua expulsão através de contrações
horripilantes e pouco higiênicas, aliás.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Contudo, ao seu lado, tinha amigos que o apoiariam na hora crucial.


E, um dia, foi travada a luta.
Esse dia era uma noite.
No início o médico tramava em arrancar o amontoado celular chamado Elesbão à
força de um persuasivo estilete, o qual rabiscava o útero da mulher que, de vez
enquanto se contorcia como que apunhalada repetidamente.
Enquanto o suor rolava pela testa do douto senhor, os espíritos aliados de
Tartamunduel, o Blasfemo, como ele adorava ser chamado nas quintas feiras,
muitos deles frutos de abortos passados, desviavam magneticamente a ponta do
aparelho para qualquer lado evitando contato direto do metal em Tartamunduel; este
grudava–se firmemente no endométrio.
Fora um combate exaustivo e, cansado, sem entender porque o resultado não se
manifestava, o doutor deixou–se abater numa cadeira, ensopado de suor e tremulo
de nervoso.
- Utilizaremos a beberagem. Não haverá problema. É fatal!
- Não fará mal a ela? - gritou Birrostrat, com a face contorcida.
- O que há Birrostrat, por que esta súbita bondade? - é claro que bem não fará, - e,
ato continuo, fê- la tomar do líquido. Um liquido leitoso com sabor de terra. De
repente a Sra. Birrostrat ficou pálida, mais do que isso, arquipálida e, o embate
recomeçou.
Vários espectros, notando as novas disposições estratégicas do inimigo, foram falar
com Tartamunduel, o Cão, como gostava de ser chamado junto a uma lingüiça
toscana, e disseram à uma só voz:
- O problema, meu caro, é só seu, agora. O sujeito deu um troço para ela beber. Não
sabemos como agir e o sindicato não permite que participemos de ações espectrais
sem estarmos capazes para o serviço. Conta ponto contra a classe. O que a gente
sugere é que você se segure onde puder. Faz de conta que está num aeróstato
desequilibrado.
- Mas , não sou eu quem precisa se segurar!, -Tartamunduel gritou, visivelmente
alterado.— São essas células aqui!
Uma onda de contrações.
- Pô, mas que porcaria de amigos são vocês!Servem para nada!
- Grita não! Grita não que a gente se vinga! – disse um deles.
Nova contração jogou todos de um lado para o outro, como se estivessem em um
navio que adernava. Tartamunduel–Elesbão se prendia ao tecido com todas as suas
forças, no entanto, não deixava de discutir com a sua patota sobrenatural:
- Fazer o que, seus frouxos? Que vingança o que? O que é que vocês podem fazer
contra o Nojentão Máximo do pedaço, seus canalhas transparentes!?
- Quando você for pequeno a gente vem assustar você... De noite. Vestidos de
bicho-papão.
- Do jeito que vai, seu palerma, não serei pequeno nunca! Graças a vocês!
- Chega !!, - Disse aquele que parecia ser o líder do motim, já que carregava a
bandeira. — Vamos embora daqui e deixar esse ingrato se virar sozinho. Se ele
nascer, vai morar no castelo; estamos por ai mesmo, é só assustar o garoto. Se não
nascer, agente da um pau nele aqui fora. Vamos nessa! Aiô, Silver!! (outra citação).
E, deixaram Tartamunduel sozinho, constantemente acossado pelas ondas
musculares que pretendiam expulsá-lo da região estratégica, para o exterior, numa
paródia em que se daria à luz uma mistura de sangue e peles.
Pensando nisso...

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

... Elesbão juntou as finais forças que tinha; começou a tirar de si mesmo uma serie
de peles e tecidos que, lentamente, moldou numa estrutura similar ao seu corpo
embrionário, levando-o a crer que tinha perdido o talento de escultor quando um dia
fazia dobradinhas com Fídias, seu mestre nas exposições da Polis.
Afastando–se um pouco para poder visualizar melhor a sua obra caiu em si de
contentamento. Em seguida trabalhou para que se manifestasse uma hemorragia
importante, através da qual faria sair a maçaroca produzida como embuste.
Enquanto isso deveria permanecer e agüentar até que o momento mais tranqüilo da
batalha se apresentasse.
Cá do lado de fora, o Sr. De Birrostrat começou a tremer quando a hemorragia foi
percebida e, ele, o desmaiável De Birrostrat, começou a dar cotoveladas no rosto do
médico, mas era apenas um ataque epiléptico.
Por outro lado, de branca a madame se transformava em verde muito claro.
Sofrendo um ataque importuno do marido da vitima, o doutor, imediatamente,
misturou–lhe outro liquido, cor de âmbar, o qual tinha a sublime propriedade de
parar o processo; virando–se para o marido, o facultativo descerrou poderoso soco
na barriga abacial, a qual arrotou de chofre os quatro frangos, os bacalhaus, os
molhos tártaros, as tortas vienenses (já havia Viena?), as nove colheradas de
morango em calda, os cinco litros de cerveja da Germânia, além dos condimentos e
petiscos que participava do opíparo almoço à la carte.
Para suprema alegria do terapeuta, com a hemorragia saiu um retalho de tecido
avermelhado que foi rotulado de embrião indesejado prontamente extirpado, de
modo a deixar os futuros–ex–papais bem livres do incômodo aquele.
Tartamunduel, o empecilho, como não gostava de ser chamado, passou um lenço
na testa, mas sorriu, vitorioso.
Houve festa.

10) Ah... a verve literária é pouca para definir com exatidão todo o drama que se
desenrolou para aquelas vidas conturbadas. Cada um fazendo a justiça por próprias
mãos, decidindo destinos pelos próprios desejos, plantando assim germes de
discórdias futuras. Não é impossível continuar tal história, uma vez que ela já raia o
extremo da incredibilidade. No entanto recebo cartas e cartas pedindo para que
venha à tona a moral desses sacrílegos acontecimentos e eu, cansado, fico com
dificuldades, para dizer que a moral é variável de lugar para lugar; que no máximo, o
que posso fazer é relatar o fim que tantas personagens alcançaram após o
emaranhado de erros e danações.
Se não gostarem da historia e seu desfecho, que fechem o livro em uma sólida
gaveta da cômoda e esqueçam o ocorrido, ora essa!
Já me basta aceitar as críticas dos falsos entendidos... já me basta, é o que digo.
Então, meu filho, não adianta reclamar! Creia, você também, que não há outro fim
para tal historia, coberta de lances macabros e fantasmagóricos. Lembre–se sempre
da implacável Nêmesis; ela regula o movimento dos homens sobre a Terra. A culpa
não é minha, gente! Eu sei que apesar de Mefítico, – alcunha que lhe caía tão bem,
sua mãe intuía algo nesse sentido quando o viu brincando na pocilga ao lado dos
porquinhos, Elesbão tinha seu quêsinho de charme com qualquer ser invisível do
tipo brincalhão (tá bem, brincadeira de mau gosto!). Mas, eu bem sei, muita gente
ficou do lado dele. E, especial os que têm em realce o lado feminino. Devem ter
sofrido quando Tartamunduel fora trocado pelo dromedário talentoso; sempre com
aquela grotesca corcova.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

No entanto é preciso dizer: A Nêmesis não perdoa porque ela é apenas uma
situação estabelecida e não uma causa. Não tenho culpa se Elesbão não percebeu
que para montar o artefato que faria o papel de falso embrião ele arrancava pedaços
importantes de si mesmo. Não tenho culpa se Tartamunduel nasceu um tanto
quanto amorfo. Quasimodo. É bem verdade que a alcunha terá de ser trocada para
o... Feiudo, por exemplo, mas, é a vida... ou... a morte...
Outros leitores, ainda bem o sei, estarão a favor de Birrostrat e sua mulher/ mas ela
também tinha suas dívidas para resgate. Basta alterar a natureza que ela logo
responde. Filosofias à parte, a mulher atentou contra uma vida e o marido, omisso,
cúmplice, no mínimo, não valia grande coisa, mesmo. Há gosto para tudo. Eu, por
mim, muito bem me identifico com o braço da Nêmesis, no papel de anjo interventor.
Afinal das contas são dez capítulos!

11) A Sra. de Birrostrat pensou que tinha um tumor terrível. Não era tumor nenhum.
O que era ela não queria que fosse, mas acabou por ser. Um filho. Houve quem
dissesse:
- Isso foi a causa necessária e suficiente para que o pequerrucho nascesse
deformado.
Mas, não se sabe.
Curiosamente recebeu o nome de Renato. Na verdade, Renatus Aquareulus Vômer
de Birrostrat, o herdeiro. A pompa do nome compensava a comprovada destruição
anatômica de que era dono.
Enquanto a mãe fugia de casa caindo na conversa de um domador de taturanas,
deixando o abacaxi na mão do pai Birrostrat, Renatus Vômer, mais tarde conhecido
como Capivara, pelos coleguinhas de folguedo, nunca aprendeu a ler, limitando–se
a praticar no uso da colher.
Precisava, então, da ajuda de um preceptor vindo da Normandia, veterinário,
apicultor, além de exímio caçador de elefantes em África, aclamado como o melhor
domesticador de cães do Oriente. Sendo assim, a herança dos Birrostrat acabou
passando para um familiar que não chegou a entrar nessa historia, mas se saiu
muito bem dela, pelo visto, deixando nos papéis do juiz assinado o nome de Charles
de Drummond.
O Sr. de Birrostrat completamente desestruturado com os últimos acontecimentos
imprevistos e desalentadores, deixou a criança sob a tutela do padre franco–suíço
Jamoreau, o qual, por sua vez, permitiu que um coroinha desconhecido fizesse o
uso... ou melhor, cuidasse de Tartamunduel–Elesbão, renascido Renatus de
Birrostrat, o que não durou muito tempo, pois o tal coroinha cansou de tentar fazer o
pobre Vômer compreender que não se comia cabelos, muito menos o das pernas e,
muito menos ainda o das pernas alheias.
Naturalmente que a vida de Renatus foi dramática, já que muitas vezes era
esquecido no reservado, em posição de devolução; quando o coitado já se
encontrava, às vezes, à deriva, dentro da latrina, a mercê de fedores e objetos
orgânicos, lá vinham com cordas e caçambas e balaios para retirá–lo do local, muito
a contra gosto, o que acarretava uma orquestra de vômitos e exclamações
nauseabundas.
Renatus Aquareulus Vômer de Birrostrat morreu nas mãos de uma indulgente
velhinha que o empregava como espantalho em sua hortinha, mas, isso já era em
torno do importante ano de 1563, um ano antes da morte de Michelangelo
Buonarroti.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

A VERDADEIRA HISTÓRIA
DO INFER - HOMEM
(uma novela zeróis à esquerda)

1) Tendo Juão-Eu percebido que seu mundo desmoronava, chamou de lado a


mulher e disse:
- Mulher. Não podemos perecer sem deixar para o mundo a maravilha que temos
em casa. Não podemos fazer nosso filho Cau–Eu perecer conosco no meio das
pedras e das águas.
- E, o que você quer que eu faça? O cientista aqui é você. Resolva.
- Queria fazê-la entender que ficaremos longe do nosso filho único.
- Seu filho único...
- Não baixe o nível! Nosso filho único! Continuando. Gostaria de obter a sua
permissão para mandar Cau–Eu para o céu numa espaçonave.
- Já a tem. Que mais?
- Não se entristeça, querida. – Dizia Juão–Eu.
- Só porque vou ficar sem meu filho? Ora, não seja ridículo, Juão.
Nota-se que a esposa do cientista era bem atrevidinha.
– Você acha que vou perder tempo chorando por causa de um simples filho que nem
um ano ainda tem? Ainda bem que ele vai embora. Só desse jeito me livro daquele
cagão.
- Mas, - Juão–Eu estava aterrorizado, – não estou entendendo. E, o amor materno?
Não entendo, as pesquisas...

Coelho De Moraes 83
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

- Foram contratadas por uma rede de televisão para provar que amor materno
existe, que é inerente à raça dos racionais, que é intuitivo, parará, pirirí, pão duro,
mas, não vai nessa que é a pura mentira, meu chapa.
Explicava a mãe de Cau–Eu para o espantado pai cientista.
– A única coisa que nos faz cuidar da criança quando é pequena é a idéia de transar
com ela quando crescer, nada mais.
- O que você me diz, mulher!?
- Só que a gente fica velha e não dá. Eis o amor materno, meu caro cientista.
E, foi assim no meio de tanto amor e carinho que Cau–Eu foi expelido do seu
planeta de origem, o Tripton, tentando escapar de um cataclismo que nunca ocorreu,
para infortúnio de Juão–Eu, que perdeu o posto de meteorologista–chefe, a mulher e
o filho atirado no espaço, indefeso, indo cair por azar, na maior porcaria
interplanetária denominada pelos estudiosos de: Planeta Terra.

2) Uma vez aterrissado, pronto para uso e tendo abiscoitado a atenção de dois
velhacos que por ali passavam, Cau–Eu, imitando um cachorrinho, pateava no chão,
abrindo um buraco e latindo, tudo ao mesmo tempo e com a mesma expressão
facial.
- Que inteligência invulgar! – disse o velhaco macho.
- Um serzinho perdido deveras útil. – disse a velhaca fêmea.
- Poderíamos levá-lo para casa. Lá ele teria onde comer e dormir e nas horas vagas
limparia a latrina nauseabunda, que acha? – falou o macho.
- A idéia não poderia ser melhor, ainda mais vindo de você, caro senhor Quente. Eu
já não suporto mais o cheiro do lugar. Alguém precisa tomar a iniciativa de limpá-lo,
pois sim, – concordou a fêmea, dando um jeito no cabelo que lhe caía na testa.
Cau–Eu, completamente ignorante e analfabeto tanto do linguajar de Tripton quanto
da verborréia terrestre, viu-se a sorrir quando o casal de velhacos o tomou e o
carregou para a residência. Cumpre dizer que a espaçonave cristalina de Cau–Eu
havia descido num país da América do Sul cujas rádios só transmitiam música em
língua inglesa, apesar de seus habitantes muito porcamente saberem a língua natal.
Dessa maneira, o pequeno Cau–Eu foi tomando corpo e um aroma horrível por
limpar continuamente a latrina dos velhacos Jonastão e Emestruz Quente em
pagamento da hospitalidade e das hospitalizações constantes a que o pequeno
estava subjugado; vírus e bactérias, inóspitos aos habitantes daquele país, não o
eram para Cau. Os médicos, a cada tempo, aliados às indústria das farmácias,
propagandeavam que vírus e bactérias eram agentes causadores de doenças e
safavam os governos de resolverem o problema da fome e da burrice alimentar dos
habitantes aqueles, safados que eram, então. Mesmo assim, Cau-Eu vingou e
cresceu e se tornou jovem e, um belo dia, estando Emestruz Quente olhando pela
janela, ele atacou-a por trás, levantando-lhe a saia e fazendo-lhe cócegas nos bens
íntimos da não tão nova mulher que gritou:
- Continua! Continua!
Mas, aí ele parou, não se sabe se inibido pelas exclamações da mulher ou pela
paulada recebida na cabeça, donde um belo galo subiu, cacarejou, bateu asas e
voou, levando a memória e a consciência de Cau – Eu.
O autor da paulada bem que foi Jonastão. Quente de raiva e ciúmes.
- Como a senhora permite uma coisa dessas?
- Ora, são os novos tempos, meu caro Quente, – disse a mulher.
- Que novos tempos que nada! É pouca vergonha sim.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

- Foi o que eu disse. Até parece que você não assiste novela e não vê televisão,
meu caro. Não percebe que a moda agora é assim? – e, apontou-lhe o dedinho. – O
que aparece na televisão é o que devemos seguir! São ordens, meu velho. Todos no
país fazem isso, principalmente os jovens e os que se fingem de jovens. Você não
percebe?
- Acabo com as modas com muita cacetada, – Jonastão enfatizou.
No entanto, a mulher, ajeitando o cabelo que lhe escorria pelos ombros, deu de
ombros e saiu para o umbroso tempo que prenunciava chuva.
Jonastão jogou água no rosto risonho de Cau–Eu, puxou-o para o lado e cantarolou
outras ordens em seu ouvido:
- De hoje em diante não precisamos mais de seus serviços, meu jovem. Você está
convidado a se retirar desta casa e ir mexer nos fundilhos de outras pessoas. Ouviu
bem?
- O que?
- Você vai embora! – Jonastão gritou em plenos pulmões.
- Mas, pra onde? Não conheço ninguém. Não sei fazer nada.
- Você é um exímio limpador de latrinas. Trabalhe nisso.
Cau–Eu, após a pancada nos altos do cocuruto, acordara diferente e disse assim:
- Só que você, meu velho Jonastão Quente, perdeu a chance de se aproveitar de
mim.
- Como assim? Mais ainda?
- Mais ainda. Eu tenho identidade secreta.
Jonastão passou a rir desbragadamente. Quando parou, perguntou:
- E qual é a sua identidade secreta?
- Ainda não sei. É segredo, mais um dia eu saberei, pois tenho uma missão a
cumprir. – Mostrou para o velhaco macho uma figa de Guiné. – Com esse símbolo
vencerei.
- In hoc signus vinces.
- Inhoc, o que?
Mas, Jonastão não queria mais conversa e deu as costas. Na porta,
cinematograficamente, voltou-se e disse olhando para o chão:
- Se não quer sair daqui com essa figa enfiada em local indevido, saia hoje, ate o por
do sol, – frase essa dita para que se enfatizasse o aspecto romântico da cena.
Cresceu a música e a grua elevou a câmera até vermos a planície sob o vendaval
que formava. Bonito.

3) Cau – Eu, ferido em sua profundidade, subiu os montes que circundavam a


residência dos Quente e passou a meditar nas idéias de Aristóteles e na
possibilidade de que para cada ser existe uma perfeição e a posse de um fim, mas,
mesmo assim o seu triste semblante não se desanuviou, levando-o a chorar
amargas lágrimas crocodilianas.
Tomou da figa, enterrou-a, desenterrou-a, jogou-a para o alto, guardou o objeto no
bolso esquerdo, passou para o direito e afinal, compreendeu que não sabia o que
fazer com aquilo.
Mesmo assim, repentinamente, o céu se abriu em colorações de azul e roxo e do
meio do clarão apareceu o rosto de Juão–Eu, o velho pai.
- Pai!
- Filho!
- Papai!
- Filhinho!

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

- Meu papi!
Novamente o escritor onisciente, sábio e cônscio, interfere na coisa.
- Meu... Vamos parar com essa palhaçada, que eu tenho um troço pra te falar, filho
único.
- Sim, papito. Sou todo audiência...
- Meu querido rebento, – pigarro bustamânico, – você cresceu tanto que nem o
reconheço.
- E, como é que sabe que sou eu, papelho?
- Por causa desse olhar canino, essa narina arquejante de símio adestrado, esses
ombros de tamanduá que corre atrás de formiga, por essas olheiras de viciado em
coca-cola... Eu o saberia mesmo debaixo d’água. Enquanto tivéssemos fôlego meu
filho.
- O que veio fazer aqui papalvo? Qual o meu destino?
Juão pareceu sério. Levou o dedo ao nariz e enquanto catava secreções passou a
dizer:
- Infelizmente, ou felizmente, já nem sei, Tripton não explodiu, como eu esperava, ou
não esperava... Estamos vivos e o lançamos ao espaço inutilmente, - Juão–Eu
começou a chorar. – Peço perdão... perdão. Mesmo porque estou punido pela
mentira, incompetência e destruição da ordem pública. Sua mãe sumiu, tendo
levado um de seus filhos como amante, apesar dele só ter treze anos, mas é um
safado assim mesmo. Eu estou só. Aprisionado, torturado e sem filho...
- Você sofre?
- Sim, meu adorado filho.
- Você chora?
- Estou chorando meu querido filho único.
- Você está preso mesmo?
- Prisão perpétua, amado Cau–Eu.
- Então... Bem feito... ninguém mandou trabalhar errado. Trabalhasse direito e nada
disto teria aconteceria. Agora estou aqui, longe às pampas e sem o que fazer. A
única coisa que me sobrou foi essa mãozinha preta aqui, com o polegar preso entre
o indicador e o dedo médio. Grande riqueza!
- Perdoe-me meu filho! Perdoe-me! Há uma saída.
E, foi assim que Juão–Eu contou para o filho da figuinha e a predestinação de sua
vida.
Daquele dia em diante Cau–Eu percebeu que bem podia ser uma outra pessoa.
Adotou uma identidade secreta que já intuía e chamou-se Carlos Quente, numa
triste homenagem à família que o adotou durante anos e anos permitindo que ele,
intimamente, limpasse a latrina da casa. E, como Carlos Quente ele escondia o
destino de sua missão na Terra. A existência do enfermeiro, ou melhor, do Infer-
Man.
No primeiro vôo que deu pela janela da Fortaleza da Confusão, quebrou um braço.
Mas não era pessoa de esmorecer.

4) Como já foi dito, o planeta era um globo que girava a


1700 km por hora no equador, em torno de si mesmo e, fazia sua circulação espacial
em torno de uma estrela abaixo de medíocre denominada Hélio.
O povo de tal planeta era do tipo que não tinha iniciativa própria e a única coisa da
qual se orgulhava era de ter produzido mais de cinco mil guerras durante sua
história conhecida.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

A maioria não comia direito e os que comiam se deleitavam em alimentação


altamente protéica porem cadavérica, uma vez que era sabido adorarem animais
mortos e muitas vezes pintados de vermelho para maior efeito psicológico.
Adotavam como guru um objeto retangular que lançava imagens e leis, ícones
coloridos ou em preto-e-branco, de modo que não saíam de casa sem se
deformarem com o que chamavam de informação, ou então, não chegavam em casa
sem ligar o tal aparelho que muita gente, inclusive o próprio aparelho,
propagandeava como vitórias da tecnologia.
Era um povo que vivia na sujeira, gostava do lixo, adotava como norma de
destruição de latas e alçapões de detritos; além disso, praticava a destruição de
bens públicos como maneira de espiar sua precária inteligência aliada a um prazer
recôndito de um dia, por exemplo, precisar de um telefone, em um caso de
emergência e não poder usar, tendo-o destruído na véspera.
Esse povo do lugar onde Cau–Eu desceu e veio a se transformar no intrépido Infer-
Man, agia muito criativo, sendo que não passava de coletivo de marca menor (ou
como diria meu pai) intelecto-marca-barbante. Era um povo-povinho-poviléu que
confundia sua insignificância dizendo que dava jeitinho para tudo; nada mais que
estultícia e falta de arrojo.
Infer-man, no entanto, se deu bem, pois logo percebeu que sua aliança com as
lideranças políticas tinha de ser feita de cima para baixo: produzir opressão,
pisação, compressão e todos os argumentos utilizados pelo pessoal de farda, tardios
em mentalidades e lerdos em raciocínio. Junto a estes a coligação nefasta e
obrigatória com civis que usavam gravata.
Infer-Man, em pouco tempo de terra, se transformou no grande defensor dos fortes e
opressores; retirava de circulação os que atrapalhavam os “caminhos do
progresso”; levava para sessões de medicina preventiva aqueles que teimavam em
não contar assuntos de interesse dos delegados e policiais; auxiliava na
manutenção da sujeira das favelas crescentes, de modo que a população e as
parasitoses se relacionavam cada vez mais intensamente até que uma ou outra
sobrevivesse; havia esperanças maiores para o segundo grupo, sendo que os
adoentados comprariam remédios, produzidos em laboratórios instalados no país,
cujo lucro se perdia em bolso alheio, fora do país; os doentes voltariam para suas
favelas de origem e o ciclo da enfermidade continuaria do mesmo modo; todo
mundo sabe que não adianta tomar remédio se o lugar onde você vive não muda.
Infer-Man pensava em incrementar esse investimento – aumentar as populações de
beira de baía, de morros, de periferia, sem, no entanto ceder a estrutura para a
manutenção de suas vidas, o que era um desperdício, já que ninguém se via na
obrigação de permitir que as pessoas vivessem e bem.
Cau–Eu, ou melhor, Carlos Quente, em sua identidade secreta, que também era o
Infer-Homem, via que toda sua obra era boa; ficou contente, de modo que resolveu
escrever um livro sobre sua vida, tinha facilidade, trabalhava no papel de Carlos, em
uma editora, especializado na limpeza de banheiros e mictórios, aumentando assim
sua folha curricular.

5) O povo, apesar de sofrer sem reagir, já não agüentava mais, mas, esperava
que alguém, algum estrangeiro, alguma alma salvadora, viesse livrá-los das sanhas
do Infer-Man, que já não tinha por onde infernar mais a vida de todo mundo.
Quando um navio estava afundando com milhares de pessoas a bordo, o Infer-
Homem trazia mais gente para a nave e ainda por cima empurrava o navio para
mais fundo aumentando a velocidade do afundamento.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Quando uma nuvem de chuva se aproximava a Noroeste do país, o qual era regido
por gordos e porcóides políticos que não diziam onde ia parar o dinheiro de
investimento da região, Infer-Homem assoprava até que a nuvem tomasse outros
rumos e despisse seus arroubos aquosos em outro lugar.
Muitas vezes o mesmo Infer-Homem, com a mesma nuvem de chuva, aproveitava
para arruinar plantações e encher os rios que transbordariam, fazendo com que num
único lugar chovesse mais que o necessário.
Enfim, trazendo ao país toda a sorte de transtornos, o Infer-Homem escreveu com
letras excrementícias o seu nome nas piores páginas da história do planeta, sendo
então condecorado com a medalha de Honra ao Mérito Nacional, dada aos homens
mais atuantes.
Mas o poviléu já não agüentava mais e resolveu eleger um procurador do Norte
como salvador; o tal era do time de Infer-Man e logo deixou perceber que não podia
agir contra seus aliados, mas, isso, só depois de dilapidar os cofres públicos.
Mesmo assim o poviléu, ainda, não desistiu, – uma vez que desistir é o próprio
desses povinhos medíocres que não têm orgulho, mas fingem que têm, inventando
heróis e frases galantes, – e, contratou a ajuda de alguns Ursos Siberianos, os quais
não agüentaram o calor imenso dos trópicos e disseram:
– Ainda se fosse na Patagônia! – tendo logo partido de retorno.
Aparentemente não havia mais escapatória para aquele povo duplamente miserável,
quando uma insurreição brotou do seio da nação, – bonita esse frase não leitor? – e,
se ampliou tomando conta de todos os recantos do país.
O alquimista Amon-de-Rá liderava o levante e pedia a cabeça de Infer-Homem.
Assim... sem mais nem menos.

6) Amon-de-Rá, sábio, longevo, amigo de Apotós (aquele pessoal que vive em


Jamundá e no Trombeta) no interior de sua valorosa caverna, aplicava ingredientes
e especiarias em litros de liquido viscoso e acre.
Subordinou, segundo Papus, se bem que Papus o tivesse seguido, as salamandras,
os gnomos, as sílfides e outras entidades de efeitos sobre naturais, já que só a
poder de magia é que se livrariam, - as pessoas daquele ínfimo país, daquele ínfimo
planeta, da insignificante constelação, - livrar-se-iam do Infer-Homem, o qual era
aclamado como Destruidor Perpétuo daquelas plagas.
Enxotou de si, o mago Amon-de-Rá, as maledicências, os encostos, os notívagos
penates, as assombrações, algumas rãs que se encontravam em seu arquetípico
bolso da túnica; mandou para o inferno, para os quartéis e Universidades,
respectivamente, duendes, legiões e microcéfalos de alguma estirpe, de modo que
no fim da madrugada estava apto a começar as bruxisses necessárias.
Obviamente descansou, pois o dia seguinte seria de lutas e tréguas melancólicas.
Deitou seu corpo no catre espantoso e sonhou com minotauros, teseus, egeus,
bandeiras trocadas, suicídios e, finalmente, tendo atravessado o dia em letargia,
restituiu forças com um copo de chocolate misturado ao leite em pó e algumas
bolachinhas forradas com requeijão. Apetitosamente deglutiu os ingredientes e
estava pronto para a contenda que Infer-Homem não gostaria de pelejar.

7) Voando baixo, bêbedo como um gambá, batendo com a cabeça dura no


costado dos prédios e postes, lá veio o arrogante e desprezível Infer-Homem,
ostentando no peito as medalhas e as faixas recebidas em noites de festejos por ter
produzido uma belíssima tempestade de areia que cobriu de areia uma turba de
retirantes etíopes.

Coelho De Moraes 88
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Acidentalmente topou com uma encruzilhada e teve medo de sobrevoá-la. Mas, a


garrafa de cachaça foi motivo de curiosidade e gula, sendo que o defensor dos
fortes e opressores baixou na terra e bebeu todo o marafo, trincando o galináceo
deitado sobre o prato e dando vivas a papai-noel, a modos de deboche.
Então uma fumaceira se fez e uma entidade apareceu; olhar penetrante e frio.
Queixo arrebitado e duro. Testa escura e profunda. Apontando o dedo para o pobre
Infer-Man.
- Larguisso... Profanadô!!!
Infer-Homem começou a rir e disse:
-Não sabe nem falar, ô coiso!
- Larguisso... Já lhe diche, siô!
Ante o olhar compenetrado da entidade, o Infer-Homem tragou de vez o marafo,
debochado, e desatou a dar estalidos com a língua, pedindo mais, sem perceber
que além da primeira entidade já se aproximavam dezenas de outros elementais
necessitados da alimentação que estava no encruzo. Infer-Homem, cônscio de suas
responsabilidades e poderes largou uma baforada xexelenta, - ou seja aquela
baforada que é desprovida de qualidade; que tem pouco valor, ou então, que mostra
aparência desagradável; falta de beleza e, por último, mas não menos importante,
baforada que usualmente deseja amolar, incomodar... uma baforada implicante na
cara dos sobrenaturais, sempre segundo Houaiss.
- Voismicê não respeitô nóis, pois... Óia! vamo-lhe ministra umas lambada de porrete
no costado... Nué, moçada?
E, foi.
Quem pudesse olhar a esquina veria Infer-Homem dançando e sacolejando suas
partes por todo lado, sendo que invisivelmente, uma horda de seres desancava o
abusado a chicotes e bordoadas.
Sabedor disso, Amon-de-Rá, aproveitou que o moral do anti-herói estava em nível
de fezes e carregou a bagulhada toda para as imediações da Fortaleza da
Confusão, para onde o Infer-man tinha se dirigido de maneira a se recompor do
descarrilamento das vértebras.
Amon-de-Rá cofiou as barbas lanosas, aprumou o pensamento e solerte, ardiloso,
invocou a presença de Sachiel, uma vez que era quinta-feira e aquele é o anjo
regente do tal dia. Para adjutório no ar, pensou no nome de Cuth, tendo Maguth
como ministro.
Então um vento bom brotou do Sul, carregando aragens febris e cânticos de
mosteiros.
Sobre a forte brisa o sábio mágico Amon-de-Rá lançou incenso com perfume de
Açafrão, gravou sobre o coral, a tábua jupiteriana e pediu que os malefícios
originados de Infer-man fossem impedidos de proliferar.
E, com passos de rei-prestidigitador, adentrou a Fortaleza da Confusão, chegando a
ver o pobre Infer-Man se contorcendo no meio dos pregos.
- O que acontece aqui?
- Você já saberá, senhor Infer-Homem, desalentador de vidas.
- Quem é você, velhusco? Como ousa invadir a Fortaleza?
O velho levantou a mão e uma tempestade de água choca desceu sobre o corpo
arquejante do invasor alienígena de Tripton.
- Pare com isso, ou eu me afogo, barbaça de uma figa!
- Essa é a idéia! O seu natural desrespeito é que lhe trás calamidades.

Coelho De Moraes 89
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Novamente Amon-de-Rá levantou a mão e umas infinidades de gafanhotos vieram


depositar seu material orgânico em cima do infer-Homem, que vomitou três vezes
consecutiva, piorando a sujeira do local.
- Será possível que você, velho estranho, não reconhece que eu sou o mais maior
de bão, aqui do pedaço?
- Infelizmente, meu inimigo íntimo, a sua posição de “assim Napoleão perdeu a
guerra”, não me permite adivinhá-lo como algo de importância. E, - concluía,- se me
permite, o mais que eu faria, se fosse você, seria ir-me para nunca mais voltar-me à
esse planeta, já que de porcarias basta ele mesmo.
- Nunca! – gritou com todos os seus sete pulmões.
Amon-de-Rá não se fez de rogado e erguendo a mão pronunciou umas palavras
esotéricas e um lumaréu encheu de claridade a Fortaleza, seguido de estrondo e
coaxar de sapos. Infer-Homem assustava-se com tudo. Também, pudera, de ermo, o
local ficou hiperpopuloso; de dentro da luz imensa surgiu uma gentama de não
acabar mais, todos trotando seus cavalos, querendo a todo custo pisar na língua do
Infer-Homem. Em seguida ao tropel apareceram rinocerontes de várias cores,
liderados pelo famoso Cacareco de outras eleições, sendo que o peso de tamanhas
animálias foi devidamente sentido pelo abominável homem das fezes, já que o medo
desencadeou uma defecação liquefeita do Infer.
No entanto, o marcial Amon-de-Rá, imbuído dos mais sensíveis sentimentos
declamou:
- Ó poderes de lava e magma, desçam sobre a cabeça desse limpador de cagatório,
para que nunca mais se levante contra os povos pobres e indefesos e covardes do
nosso planeta.
“XUÁ”, foi mais ou menos esse barulho que o monte de barro quente fez, cobrindo o
Infer-Homem, pra sempre.

8) Até hoje, então, a Fortaleza da Confusão é local onde as pessoas se


encaminham quando querem dar a seus filhos as lições de moral pertinentes ao bem
educar. Apontam o local onde um retretista de experiência dorme seu sono eterno,
em meio a dejeções e produtos próprios de uma alma corrupta e maligna, que um
dia desejou governar a Terra. Naturalmente, os pais esquecem, como todos os pais
esquecem para conveniência própria, que os bandidos continuam governando e o tal
Infer-Homem nada mais era do que um bode expiatório, testa de ferro, ou seja, o
pomo de atenção e de discórdia que uma vez sanado dá sempre aquela impressão
de que o mal se foi, – algo como colocar a culpa da desidratação no verão e não na
falta de alimento.

Anos depois, dizem, retiraram os contornos de Infer-Homem e deram de presente


para o Sindicato dos Limpadores de Cloaca e Retretes, mas, uma pequena moção
de repúdio retirou com vírgulas e travessões a tal estátua fétida dos salões
requintados daquela viril e honesta agremiação.
De mão em mão atravessou os séculos, a obra de arte, já que muita gente queria
prestar sua homenagem àquele que com muito garbo defendeu os direitos dos ricos
e belicosos, contra a gentalha suja e promiscua. Nos dias que se seguiram, tais
gentes foram dilapidadas como pecadores e idólatras.
Por fim, de Tripton, uma expedição invocou às autoridades que cedessem a estátua
do filho perdido, uma vez que era a imagem de um triptoniano, da maior autoridade
do planeta, de nome Juão–Eu, – que tinha fugido da prisão, morado algum tempo

Coelho De Moraes 90
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

em Batrolha Rual e se revelado líder guerreiro, tomando o poder e retomando a


mulher, com a qual fez o seu suco diário a modos de vingança.
Dessa forma, o pobre e desventurado, tolo e desarvorado, sólido e materializado em
rocha Cau–Eu, retornou para o penates, eternamente livre do seu destino de zerói;
eternamente preso ao arcabouço de pedra gerado pelo grande Amon-de-Rá, que
aproveitou a deixa e se instalou na Fortaleza da Confusão, tirando um merecido
soninho, enquanto seus poderes de magista não fossem requeridos pela multidão
sem fé, hipócrita e mentirosa; habitantes do globo terrestre desde que Adão era
macaco metido a filósofo e Eva desfilava nas passarelas do Éden, segundo
patriarcais versões.
Especulações.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

A SÁTIRA E O AMOR
(uma novela medieval)

1) Tartarassa ni voututr.
- Ficam assim, pois, determinado, senhores críticos, que não percam tempo
tentando encontrar defeitos nos escritos que começam neste momento e se
estendem, inteligentemente, pelas folhas em branco. Não encontrarão erros e, se
porventura encontrarem, serão relegados, erros e opiniões, para as profundezas do
Orço, cujo local, apesar de quente é o que há de mais correto para a instalação de
inutilidades como críticas e opiniões não pedidas. Ou então ponham na conta do
revisor e do tradutor. Em mim, não!
- Peço, também, o perdão para tais homens e mulheres que não podendo ou
não tendo o talento para escrever se determinam sábios e expertos de vários
matizes, analisando e descrevendo coisas que, provavelmente, nunca tenham
passado pela cabeça do criador. Lancem seus esputos de falso intelectual para
outras vizinhanças, pois não há obra que seja criada paciente de observações e
julgamentos. O que aqui se construiu, e, o que aqui se fez, assim fica. Críticos e
analistas de sistemas não terão lugar no espaço, uma vez que não são donos de
capacidade e idoneidade para veredictos benéficos ou maléficos endereçados a tal
e qual obra. Que criem as suas próprias! Mas, se quiserem se divertir passem a
visitar um tal Francisco de uma tal faculdade de tecnologia. Ganas de rir.
- Cuidado, leitor, com críticos. Se encontrar com algum deles pela rua, cace-o!
Não permita que escape. Cortaremos seu rabinho e colocaremos nos papagaios e
nas pipas. Cortaremos suas orelhas e as poremos nos burrinhos zambetas.

Coelho De Moraes 92
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

Cortaremos seus esbirros e os poremos nos eunucos, nas salamandras e nos


tamanduá-bandeira. Afaste-se dele, leitor!

2) Deich Von der guoten.


Ó nobre amada... – dizia assim o travador, após vituperar contra juízes/poetas
de óculos e penas roubadas. – ...nobre amada... - repetia ele – ...como lastimo não
passar esta noite contigo. Tenho muita roupa para lavar. Mas, muito mais lastimo a
canção que não fiz, e, amada minha, nobre amada, devo dizer que as roupas sujas
não me permitiriam elucubrar versos e poemas por falta de tempo; o tempo desceu
pelo ralo do meu casebre. Incapacitado fiquei ao invocar as musas para que o som
do meu saltério de plectro verberasse em cantigas... impedido de as entoar nesta
madrugada fecunda, madrugada jucunda. No entanto, jucundo não está o meu
coração. Desejo, no entanto, que a luz da aurora afaste do seu caminho a dor e a
tristeza, e ó bela, ó amada, ó bem aventurada, não mais virgem, mas querida de
minha alma.

3) L’aute’ier tout seus chevauchoie.


No entanto, aquele troubador, poeta e compositor renomado, coberto por
sensível cabelo encaracolado, apesar de pobre de dinheiro, era rico de amor;
mantinha estreito, íntimo, penetrante relacionamento com a mulher de um burguês...
– é assim mesmo, burguês a gente pega, mata, come, esfole mata e engole.
Sempre que possível descendo o cacete sentido nesta raça desnaturada e, repito, –
...o trovador roubou a mulher do burguês, mesmo porque o artista aquele era mais
carismático, lidava com a música, tinha um vasto nariz, e, o burguês nada mais fazia
do que carimbar os papéis da pretoria. Pior: orgulhava-se disso. O menestrel tinha
pouco problema de consciência; não era ele quem espoliava os campônios da
região; por último, dava à senhora aquela, momentos inauditos de prazer que
dificilmente conseguiria ao lado do porco de seu marido (é que ele comia com as
mãos, o almoço e o jantar, bem entendido, sem usar os novos talheres vindos da
Pomerânia). A gentil senhora caiu no prato do rapaz que, imediatamente, papou-a.
Mas é assim que se faz, mesmo...
Na época ele citava este refrão: “Mulher que tem marido e arruma um amigo,
não deve ser criticada”, ao que todos riam, mesmo os que já eram alvo da
advertência do cantor. O traído, rindo, olhava de soslaio, para tentar perceber em
que direção os olhos da mulher se tornavam, sendo que seu sorriso era tão amarelo
quanto os molhos de banana cozida que embelezavam seus dedos vorazes. As
mulheres olhavam de soslaio para tentarem captar instantes de distração de seus
maridos, ao mesmo tempo em que coincidiam esses instantes com o olhar de cada
bem amado, fosse ele quem fosse. Os bem amados, enfim, estavam à disposição.
Soslaio para cá, soslaio para lá.
Cumpre dizer que os traídos não eram flores a se cheirar com tranqüilidade.
Por isso a justiça manda que sejam traídos. A maioria, imbuída do poder próprio do
dinheiro mantinha as suas ninfas adotivas e as degustava em silêncio e às
escondidas. Essa é a desculpa que usaremos para debochar dessa horda de lorpas.
Se bem que não dessem conta dessas ninfas, também, impotentes que eram. Aliás,
quem governa é sempre impotente.
No caso da nossa historia, o trovador ganha a senhora gentil mesmo porque
ela se vinga do marido ao descobrir que, na mesma festa, participavam três amantes
bem pagas, todas com vestidos novos, robustos leques, armados cabelos de
mechas entrelaçadas e galantes, além de sorrisos convidativos.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

A senhora gentil, vexada, perdeu a vergonha, trancou-se no quarto com o


trovador já comentado, e, na semi-escuridão do cômodo, incomodou-se com a
roupagem exagerada, própria da época, despiu-se e pôs-se a trocar impressões,
compressões, puxões, mordidas, apertadelas, sucções, babações, e
estremecimentos vários, aliados aos mais alardeados tipos de gemidos e sussurros.
Ao que, o minnesinger comentou:
- A senhora geme em lá bemol... Curioso!
- E, isso é mal, pássaro canoro?
- Claro que não, senhora, isso até me inspira uma canção.
- Eu estou pronta para ouvir, doce cantante.
- Então, por favor, largue a flauta.
- Ah! – ela exclamou – era sua flauta? Pensei que...
- Sim?
- Bem, eu... Pensei que nunca se satisfizesse... Eu...
- Quer que eu cante, senhora?
- Sim.

4) Baros de mon dan covit.


Quando o casal pervertido voltou para a sala, o cantor foi instado a deleitar a
platéia com algumas canções e melopéias de seu próprio punho. Então, ele pediu
um tambor, e, passou a destruir um sambinha.
- Não! Não! – gritou o Barão, dono da casa, da senhora, do dinheiro, das
amantes, da festa. – Use o alaúde, sua besta! - riu, sem perceber que a besta era
ele.
O Troubador, músico e poeta que era, enfiou a cabeça no colarinho, e pediu
desculpas. Sabia que um pé no traseiro, a uma hora dessas da noite, seria a paga
se não agisse corretamente. E, de traseiros, bastava o da senhora. Amplo e
generoso. Digno de apalpadelas e mordidas.
Mesmo assim, o trovador se vingou e mandou lá umas sirventês legítimas; uma
canção que acabou indicando, por palavras obscuras, que o deflorador da região era
o próprio barão, dono de tudo, porém, por sua vez, traído.
O ápice da canção assinalava que o barão, tendo comido muito pela manhã,
quis comer à tarde também. Foi com muita dor de barriga que se dirigiu para a casa
de uma donzela mui recatada e digna que, obviamente, repudiou o nobre pérfido
que, ainda por cima ou por baixo, exalava gases continuamente.
Com o último acorde o cantante foi extraído do salão, enxovalhado na enxovia
e chutado para rua, caindo no pátio úmido, fungando estapeado, apenas levando
consigo ainda, um pouco do denso licor da senhora grudado em seus lábios.

5) Ce fu en mai.
No meio do burgo havia uma fonte. No meio da fonte havia um chafariz
elaborado em arquitetura por um certo Luigi Giordano, que viera de Roma apenas
para martelar uns mármores. Luigi Giordano também era marceneiro. Passara uma
temporada em Paris com a mulher Vicenza e os filhos Rafaelo, Maria, Gerardo,
Francesco e Tereza. Foi através de cartas entre eles que soube da maioria dos
detalhes desta história. Mas, voltando, o tal chafariz soltava água natural,
levemente, sem violência. No meio da água estava a cabeleira do trovador.
Era manhã. Um coro de bêbados rodopiava pela fonte e cantava canções onde
se desenhavam os amores não correspondidos. A amada desprezando o amante e

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

coisas triviais como esta. O trovador levantou a cabeça e retesou-se. Sentia-se


melhor. A água gelada da fonte livrara-o da borracharia. Munido de pifão e hálito
impuro, o cantor mergulhara na fonte, estragando o alaúde caro, destruindo o
saltério. Via-se corda para todo lado.
Motivado pelos bebuns coristas, adiantou-se alguns passos e, juntou-se aos
andarilhos, participando do concerto matinal.
Todos assim, abraçados, se dirigiram para a taverna mais próxima.

6) Entendez tuit ensamble.


Naquela noite a senhora rezava. Era natural. Todos rezam, sendo hipócritas ou
não. Tecia ela Laudes aa Virgine. Pedia ela para que o trovador não desaparecesse
de sua vista e vida; e que, por questão de mágica, ele surgisse, naquele instante,
no seu solitário quarto de esposa desguarnecida de adequado forro sexual.
Em suas orações a senhora concordava plenamente que o pecado e a traição
pelo pecado eram herança de Eva, aquela crápula que, enquanto o pobre Adão
comia uma maçã, embevecido com o sabor, ela crau!, caiu sobre ele, e foi preciso a
espada de Gabriel para separar o engate. E, a senhora também concordava que a
salvação estava com a Virgem, que resgata a humanidade para as glórias do céu.
- Ainda não, virgem! Não me resgata ainda não, – dizia a senhora, enroscada
em seda, – ainda quero sentir o sabor de pêssego dos lábios do trovador. Ainda não
decaí muito. Quero mais profundezas. Quero sentir o calor dos baixos da Terra, aí,
sim, a senhora vem e me resgata, tá?
- O calor que sentir senhora, é o meu calor.
- OH! – ela exclamou, – Trovador, trouvere, minnesinger, o canoro picapau de
minha vida. Como entrou?
- Pela janela, é claro. Tem dois cachorros destamanho lá embaixo.
- Dois? Só temos um, querido.
- Contei também o seu marido. Rá, rá, rá – riu a valer, o engraçadinho.
- Não ria muito alto.
- Não se preocupe, – ele se dirigiu para o leito da senhora, pondo as mãos na
colcha dela. A mulher gemeu:
- Ai!
– Subornei o cozinheiro e foi dado ao glutão do seu marido um punhado de
Cannabis a modos de salada.
- Ui.
- Consegui a verdura com uns árabes tresloucados na feira.
- Isso explica o delírio durante o almoço.
- Que fez ele?
- Não sei se você sabe, trovador do meu coração, mas o barão tem um báculo
enorme.
- Sim, já vi seu báculo. (pausa dramática). E o temo.
- E, olha que ele queria por o báculo justamente na minha boceta?
- Não diga!
- Agora já o disse.
- Impossível!
- Não é?
- A senhora deixou?
- Claro que não. – Ela se virou e pegou uma pequena bolsa, mimosa, laqueada,
que estava sobre a cômoda. – Olha o tamanho. Não passa de uma bocetinha,
apertada, por onde nada passa. Aqui cabe no máximo um pouco de creme... Não

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

um báculo. Inda mais daquele tamanho. (pausa sacana) No máximo uma flauta...
Em seguida, sem terminar o jantar, ele dormiu.
- É, isso mesmo o que interessa, – o trovador alisou a colcha de lã que envolvia
as pernas e os lençóis de seda sobre a cama.
- Trouxe a flauta, minnesinger?
- Trouxe as duas.
- Uau!
- A soprano e a tenor. Queria mais alguma, querida?
- Só você artista franco atirador. Só você. Estou esquentando lentamente. Meus
volumes e rotundidades estão em ponto de bala... se tocar eu entro em êxtase...
para que você se gaste, me gaste e desgaste. Vem poçucar de mim, vem? – ela
pedia como olhar pio. - Tem muita coisa sobrando. Poçuqueia, poçuqueia!
E, o trovador, não tendo mais do que falar, poçucou da senhora, não tão
tranqüilamente como ela gostaria, mas, o suficiente para transformarem o leito da
alcova em salão de baile. Quase que quebram as flautas.

7) Hipocritae, pseudontifices.
Eis que, no momento exato em que a ejaculação se processava, adentram no
quarto da senhora os dois cães seguidos de soldados. Flagrante maior não houve
em centúrias. Junto vinha o padre do burgo, comissionado e assalariado do Barão.
Começou a falar sobre moral e cívica:
- Abutres que conspurcam o santo leito do matrimônio, ouçam! Ouçam, abutres!
Arrependam-se das imoralidades pensadas e praticadas! Sujos, pecadores, que
querem destruir a dignidade de uma pessoa de bem como o nosso Barão.
A senhora abraçou mais sofregamente as costas do travador e ele se
posicionou mais profundamente, enquanto sua boca babava saliva generosa sobre o
ombro da mulher. Os soldados olhavam estarrecidos.
- Porcos! Fazem do quarto conjugal a sua pocilga! Vilipendiando a nobre
estatura do Barão com achincalhes de baixa importância. Preferem o pecado maior
aos prazeres da espiritualidade. Preferem se esconder a praticar o ato imundo
publicamente. Preferem a sordidez dessa sujeira de salivas, esperma e suor, do que
o frescor da água benta! Arrependam-se, corruptos, ou o látego do Barão...
- O báculo!
- O que?
- O báculo, o báculo!
- Ou o báculo do Barão descerá sobre suas miseráveis cabeças!
A senhora virou-se, ficando de costas para o trovador que se enfronhou
mansamente entre os volumes macios, carnosos do alto das coxas, podendo ali
depositar seus produtos animais, a modos de anticoncepcional medievo. Ela, em
seguida, tomou da flauta, enfiou inteira na boca e soprou bastante; como um código
entre eles, isso significava recomeço dos embates.
Os soldados lambiam os lábios, ouvindo a maviosa canção. Vendo a adorável
encenação, o padre venal olhou para o Barão e continuou com cara de quem já não
agüenta mais:
- Inconseqüentes! Traidores da confiança alheia... excomungo vocês, deixando-
os a arder para sempre nas chamas do Orco, do Hades, do Inferno, da Geena...
- Pode parar! – Gritou o Barão. – Não adianta nada. – Só tenho uma saída.
O Barão, decididamente, apontou para o enorme cachorro a seus pés que abriu
a boca com, desmesurados, dentes oblíquos.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

9) Kalenda Maia.
Conta-se que o trovador, depois de cinco anos, montou um grupo de música
que passou a viajar pelo Languedoc, pela Provence, favorecendo o florescimento da
lírica profana de língua vernácula, coisa que foi possível graças a ajuda de sua
senhora, que o acompanhava por toda parte e era boa de letra. Pobres, mas
adequadamente engatados, em todos os sentidos. Participavam de festejos,
cantando e dançando o amor das cortes e seus objetivos. Receberam influência dos
andaluzes, mouriscos, especializando os cantos em culto à mulher. O Trovador era
rico nesse ponto, como já foi dito. Fica também dito que sorrisos e beijos não mais
deixaram a boca do casal; a cada beijo surgia inspiração para 10 melodias ímpares;
convém dizer, ainda, que é preciso complemento total em espírito e em corpo, para
que não se formem conflitos de qualquer espécie. Não há santos. Não há demônios.
Enquanto isso o Barão, descobrindo suas verdadeiras tendências zoofílicas,
não se importou de que o entrelaçamento do trovador com a sua senhora se desse
durante mais alguns dias dentro de sua própria casa. Não se sabe se ainda estava
sob a influência da Cannabis ou não, o Barão deu as costas para o soldado e o
padre, puxou seu cão para os longevos campos da propriedade e sumiu ali.
O que lá aconteceu ninguém sabe, mas, dizem que o Barão e o cão dividem a
mesma cama; há quem diga mais, mas, deixa-se isso na conta da calúnia grotesca
e mentira de inimigos, que os há por toda parte, ou, ainda, por conta da perversão
e promiscuidade, bem a gosto dos críticos.
De qualquer modo, era Maio. Primavera. Fim do gelo. Fim do inverno.
O trovador e a senhora tinham um quinteto de filhos tocadores de rabeca:
Guillermo, Cecilia, Miranda, Dayananda e Alicia Valeriana.

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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO

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