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José Carlos Siqueira

Jurema Oliveira
Stélio Furlan
O objetivo principal desta obra é o de compreender elementos para o estudo
LITERATURA DE PAÍSES
crítico-produtivo das manifestações canônicas da literatura portuguesa, entre DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA DE PAÍSES
DE LÍNGUA PORTUGUESA
1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental, além de apresentar
uma discussão sobre gêneros literários e tradição oral da literatura africana. Stélio Furlan
Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discursivo José Carlos Siqueira
e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias Jurema Oliveira
portuguesas do medievo ao período contemporâneo, além de apresentar
os princípios norteadores da construção identitária da literatura africana de
língua portuguesa.

Educação

Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6396-3

CAPA_Literatura de Países de Língua Portuguesa.indd 1 06/11/2017 09:38:43


Literatura de pa ses
de l ngua portuguesa
Stélio Furlan
José Carlos Siqueira
Jurema Oliveira

IESDE BRASIL S/A


Curitiba
2017
© 2008-2010-2017 – IESDE Brasil S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qual-
quer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

F984L Furlan, Stélio


Literatura de países de língua portuguesa / Stélio Furlan, José Carlos
Siqueira, Jurema Oliveira. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2017.
320 p. : il. ; 21 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6396-3

1. Literatura portuguesa - História e crítica. I. Siqueira, José Carlos.


II. Oliveira, Jurema. III. Título.
17-45424 CDD: 869.09
CDU: 821.134.3(09)

Direitos desta edição reservados à Fael.


É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael.

FAEL

Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo


Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz
Revisão IESDE
Projeto Gráfico Sandro Niemicz
Capa Vitor Bernardo Backes Lopes
Imagem Capa Holmes Su/Shutterstock.com
Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim

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Produção

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
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Sumário
Carta ao aluno | 5
1. Trovadorismo: 1198-1418 | 7
2. O Humanismo | 25
3. Classicismo: 1527-1580 | 45
4. Barroco: 1580-1756 | 71
5. Arcadismo: 1756-1825 | 89
6. O Romantismo: prosa | 107
7. O Romantismo: poesia | 129
8. O Realismo: 1865-1890 | 151
9. Simbolismo | 177
10. O Saudosismo | 197
11. Modernismo: Geração de Orpheu | 211
12. Modernismo presencista | 229
13. Gêneros literários e tradição oral | 243
14. José Saramago: história, ficção e identidade |255
15. Mia Couto e a narrativa contemporânea moçambicana | 271
Gabarito | 283
Referências | 299
Carta ao aluno

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar


é preciso, viver não é preciso’. Quero para mim o espírito (d)esta
frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver
não é necessário; o que é necessário é criar”: essa conhecida passa-
gem de Fernando Pessoa serve-nos de mote para justificarmos as
travessias e os percursos pelo vasto espaço da literatura portuguesa.
Literatura de países de língua portuguesa

O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crí-


tico-produtivo das manifestações canônicas da literatura portuguesa, entre
1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental, além de apresen-
tar uma discussão sobre gêneros literários e tradição oral da literatura africana.
Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discur-
sivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias
portuguesas do medievo ao período contemporâneo, além de apresentar os
princípios norteadores da construção identitária da literatura africana de lín-
gua portuguesa.
Nesse processo de traçar os perfis de uma literatura contemporânea da
África de língua portuguesa e de Portugal não podemos deixar de estudar
José Saramago, um autor que desde a sua primeira obra redimensiona a ideia
de história, ficção e identidade para estabelecer a dinâmica do pensamento
da contemporaneidade.
Assim, se Portugal tem um Saramago que se consagrou como ficcionista
que recorre à história para recontá-la de forma inovadora, Moçambique tem
um Mia Couto, um autor capaz de articular tradição oral com aspectos oriun-
dos da cultura portuguesa para criar uma prosa poética híbrida.
Em última instância, desejamos que estas páginas sobre literatura portu-
guesa e africana estimulem a reflexão sobre a importância da literatura como
um modo privilegiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver
e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com
o texto, ao que chamaremos fruição textual.
Boa leitura!

– 6 –
1
Trovadorismo: 1198-1418
Stélio Furlan
José Carlos Siqueira

Lo vers es fis e naturause bos celui qui be l’enten;


e melher es, qui.l joi aten.1
Bernart de Ventadorn (1150-1180)

1.1 Contexto histórico


Os primeiros registros escritos da literatura portuguesa
são em verso. As produções do primeiro período medieval, que se
estende dos séculos XII ao XV, são agrupadas no movimento literá-
rio conhecido como Trovadorismo.
1 “A canção é autêntica e sincera, / capaz de honrar àquele que a compreenda
bem; / Mas melhor é para aquele que aguarda as alegrias do amor.” – tradução de
Segismundo Spina.
Literatura de países de língua portuguesa

Figura 1 – Iluminura medieval com representação de uma cena trovadoresca.

A expressão Trovadorimo deriva do verbo provençal trobar, que exprimia


o fazer poético da época enquanto ação de compor, de inventar, de criar. Em
A lírica trovadoresca, livro indispensável aos estudiosos da poética medieval,
Segismundo Spina sugere que entre tantas etimologias propostas a mais acei-
tável se associa à tese litúrgica da poesia trovadoresca. Assim, trobar derivaria
do vocábulo tropare, “decalcada sobre tropo – interpolação, adição ou intro-
dução de texto literário e musical numa peça da liturgia. Daí tropare – fazer
tropos, compor (um poema, uma melodia), inventar, descobrir” (SPINA,
1996, p. 407).
Chamava-se trobador o poeta que criava, instrumentava e, por vezes,
entoava suas próprias composições poéticas. As cantigas também eram criadas
e divulgadas pelo segrel, o trovador profissional, que ia de corte em corte com
o seu jogral (dançarino, acrobata, mímico). O músico era o menestrel.
Um dos mais notáveis trovadores medievais foi, por certo, o rei D. Dinis
(1261-1325). As suas cantigas evidenciam um dos momentos mais altos da
poesia no sentido da apropriação dos recursos verbais e da sua adequação ao
dizer poético. D. Dinis levou a bom termo o desejo de todo trovador medie-
val, a saber, a plena realização da aliança entre motz el son, entre a palavra e
música. Leia-se:

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Trovadorismo: 1198-1418

Quer’eu em maneira de proençal


fazer agora un cantar d’amor,
e querrei muit’i loar mia senhor
a que prez nen fremusura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.2 (DOM DINIS, 2008)

Figura 2 – D. Dinis, sexto rei de Portugal, subiu ao trono em 1279 e


governou até 1325. Afora o incentivo à agricultura, destacou-se pela
fundação da primeira universidade de Portugal, em 1290, então sediada na
cidade de Lisboa.

2 “Quero fazer agora uma canção de amor ao modo provençal. E quero louvar a minha sen-
hora, a quem honra nem formosuras não faltam, nem bondade; e mais vos direi ainda: tanto
Deus a fez cheia de virtudes, que no mundo não há outra igual.”

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Literatura de países de língua portuguesa

De imediato, surgem estas perguntas:


22 Como esse fragmento textual chegou até nós se foi escrito por volta
de 700 anos atrás?
22 Em que língua foi escrito? O que significa compor um “cantar
d’amor” ao modo provençal?
22 Enfim, o que se entende por “amor” e qual a importância de se
estudar textos medievais?
Ora bem, a referida estrofe e as demais composições da lírica trovado-
resca medieval encontram-se preservadas em três compilações manuscritas
chamadas de cancioneiros. Se o mais antigo é o Cancioneiro da Ajuda, com-
posto de 310 cantigas (acredita-se que compilado entre os séculos XIII e
XIV), o mais completo é o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, formado de
1.647 manuscritos de cantigas líricas e satíricas. O nosso interesse se volta
para o Cancioneiro da Vaticana, assim designado por ter sido encontrado na
Biblioteca do Vaticano, contendo 1.205 cantigas de vários autores, entre os
quais D. Dinis e suas 137 cantigas.

1.2 A poesia trovadoresca


Os poemas recebiam o nome de cantigas (ou canções e mesmo cantares)
pelo fato de o lirismo medieval associar-se intimamente com a música:
a poesia era cantada, ou entoada e instrumentada. Letra e pauta musi-
cal andavam juntas de molde a formar um corpo único e indissolúvel.
Daí compreender que o texto sozinho, como o temos hoje, apenas
fornece uma incompleta e pálida imagem do que seriam as cantigas
quando cantadas ao som do instrumento, ou seja, apoiadas na pauta
musical. (MOISÉS, 1997, p.15)

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Trovadorismo: 1198-1418

Observe essa necessária proximidade nas seguintes iluminuras:


Figura 3 – Cantiga de Figura 4 – Um fólio da cantiga “Ondas
Afonso X , o Sábio. do mar de Vigo”, de Martin Codax.

Note-se que a cantiga de D. Dinis foi grafada em galego-português, que


era a língua utilizada por todos os poetas do período, por conta da impor-
tância de Santiago de Compostela (capital da Galiza), situada na extremidade
noroeste da Península Ibérica.
Portugal, que a partir do século XII se firmou como reino independente,
mantinha laços econômicos, sociais e culturais com a Galiza e tais relações
favoreceram o surgimento de uma língua de traços específicos: o galego-por-
tuguês. Isso justifica o fato de a produção literária da época ter sido elaborada
nessa variação linguística.

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Literatura de países de língua portuguesa

1.2.1 Características da poesia trovadoresca


As cantigas medievais se dividem em composições líricas e satíricas. No
primeiro caso, situam-se as cantigas de amor e as cantigas de amigo. Já as com-
posições satíricas se dividem em cantigas de escárnio e cantigas de maldizer.
Se as cantigas líricas versam em geral sobre o amor ou sua ausência, nas
cantigas satíricas faz-se a crítica a pessoas, comportamentos ou instituições
do mundo feudal. Caso a crítica seja velada, indireta, temos uma cantiga de
escárnio. Já a zombaria direta, agressiva, com expressões de baixo calão, define
uma cantiga de maldizer.
É interessante notar que os critérios que diferenciavam tais modalidades
da poética trovadoresca galego-portuguesa foram sistematizados na chamada
Arte de Trovar, redigida no século XIII, que se encontra anexa ao Cancioneiro
da Biblioteca Nacional. Leia-se:
E como há algumas cantigas em que falam tanto eles como elas, por
isso é importante que entendais se são de amor ou de amigo, por-
que se falam eles na primeira cobra e elas na outra, é de amor, pois
move-se segundo a argumentação dele (como vos dissemos antes); e
se falam elas na primeira cobra, então é de amigo; e se falam ambos
em uma cobra, então depende de qual deles fala primeiro na cobra.
(VIEIRA, 2008)

Em síntese, o que define uma canção de amor ou de amigo é a voz do


poema presente na primeira cobra ou estrofe. Se a voz que abre o poema é a de
um eu lírico masculino, esse poema é classificado como uma canção de amor,
a exemplo da composição de D. Dinis.

1.2.2 A poesia trovadoresca em Portugal


D. Dinis demonstra consciência artesanal ao revelar o modo do seu
fazer poético: tecer uma canção à maneira de proençal, o que gera toda uma
expectativa de leitura. A estrofe é reveladora das regras da arte que chegam a
Portugal no século XII, oriundas da Provença, a região Sul da França medie-
val, palco do esplendor do trovadorismo. O trovadorismo à provençal não só
se difundiu para o continente europeu como também influenciou o lirismo
europeu dos séculos vindouros.

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Trovadorismo: 1198-1418

Na cantiga Quer’eu en maneira de proençal, ao revelar a firme disposição


de louvar a “mha senhor”, a qual não faltam a honra, a formosura e a bon-
dade, D. Dinis cede à descrição física e moral da mulher prevista pelas regras
da arte daquele tempo. É de se notar que o trovador mantém em sigilo a
identidade da sua musa. E o sentimentalismo hiperbólico típico dos trovado-
res medievais se exibe nesse encarecimento do feminino: ela é um verdadeiro
prodígio criado por Deus, uma coleção de excelências – logo, inigualável
perante as demais.

1.3 Cantiga de amor


Ao cantar uma dama de eleição (“mha senhor”), o trovador comporta-se
como um vassalo diante do seu suserano. A expressão mha senhor utilizada
pelo trovador significava “minha senhora”. No medievo, o termo senhor se
associava a senhorio, significando tanto uma propriedade territorial quanto
os meios de que dispõe um senhor feudal “para se apropriar do rendimento
do trabalho realizado por homens sob o seu domínio” (FRANCO JÚNIOR,
1995, p.192). Assim, uma forma de organização social é sugerida a partir do
texto poético. Em outras palavras, o ritual amoroso da cantiga de amor repro-
duz a relação entre senhor e vassalo típico do medievo. Comentando essa
transposição do esquema social criado pelo feudalismo, Segismundo Spina
afirma que o amor se tornou um “serviço” (culto) prestado pelo trovador à sua
dama, como compromisso que se estabelecia entre o senhor e vassalo.
Segismundo Spina apresenta-nos um quadro bastante convincente dos
aspectos mais relevantes da mensagem poética do amor cortês à provençal:
Do princípio de que o Amor é fonte perene de toda Poesia, e de que o
amor é leal, inatingível, sem recompensa (porque a dama é sans merci)
decorre todo o formalismo sentimental dessa poesia:
� a submissão absoluta à sua dama;
� uma vassalagem humilde e paciente;
� uma promessa de honrá-la e servi-la com fidelidade;
� o uso do senhal (imagem ou pseudônimo poético com que o trova-
dor oculta o nome da mulher amada);

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Literatura de países de língua portuguesa

� a mesura, prudência, moderação, a fim de não abalar a reputação


da dama (pretz), pois a inobservância deste preceito acarreta a sanha
da mulher;
� a mulher excede a todas do mundo em formosura (de que resulta o
tema do elogio impossível);
� por ela o trovador despreza todos os títulos, todas as riquezas e a
posse de todos os impérios;
� o desprezo dos intrigantes da vida amorosa;
� a invocação de mensageiros da paixão do amante (pássaros);
� a presença de confidentes da tragédia amorosa. (SPINA, 1996,
p. 363)

Isso explica o respeito constante, a moderação, a mais completa sub-


missão do trovador diante da mulher. Tais elementos estão associados a uma
das principais concepções medievais sobre o amor: o que se convencionou
chamar amour courtois ou “amor cortês”. Sobre as especificidades do amor
cortês, Georges Duby afirma que “Esse amor, os historiadores da literatura
corretamente o chamaram cortês. Os textos que nos fazem conhecer suas
regras foram todos compostos no século XII, em cortes, sob a observação
do príncipe e para corresponder às suas expectativas.” Nesse sentido, o autor
afirma que as regras do “amor delicado” vinham reforçar as regras da moral
vassálica, o que o leva a assinalar as correspondências entre o que essas canções
expõem e “a verdadeira organização dos poderes e das relações da sociedade”
(DUBY, 1989, p. 59-65). A compreensão desse formalismo sentimental, que
torna a arte de amar uma etiqueta cerimoniosa de corte, em consequência,
em signo de distinção da nobreza, ajuda a explicar aquele famoso verso de
Camões: amor “é servir a quem vence o vencedor”.
O fragmento textual de D. Dinis apresentado ganha interesse como poe-
ma-síntese de uma das manifestações líricas do medievo – a canção de amor.
Graças à consciência artesanal do trovador, assegura-se a qualidade estética de
versos tecidos ao gosto provençal.
Também de D. Dinis, a composição a seguir, sendo inequivocamente de
amor, é uma verdadeira obra-prima da poesia medieval.

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Trovadorismo: 1198-1418

Em gram coita, senhor,


que peior que mort’é,
vivo, per bõa fé,
e polo voss’amor
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
vi polo meu gram mal;
e melhor mi será
de moirer por vós já;
e, pois me Deus nom val,
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
polo meu gram mal vi;
e mais mi val morrer
ca tal coita sofrer
pois por meu mal assi
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
vi por gram mal de mi,
pois tam coitad’and’eu. (DOM DINIS, 2008)

Glossário:
Gram coita: grande sofrimento.
Per bõa fé: na esperança.
Nom val: não me socorre.

Observe que D. Dinis faz uso, com maestria, das técnicas da composição
poética comuns ao lirismo trovadoresco: o refrão, o paralelismo, a atafinda e
a fiinda.

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Literatura de países de língua portuguesa

O refrão ou estribilho – fragmento poético ao qual se regressa ao final de


cada estrofe (esta coyta sofr`eu ⁄ por vós, senhor, que eu) – sugere a existência de
um coro ou de um solista, assim decorrendo da inseparabilidade entre letra e
pauta musical.
O refrão se encadeia à estrofe seguinte pelo processo de encadeamento
ou atafinda, e isso permite que o lamento plangente do eu lírico se desen-
volva sem interrupção até o final da cantiga, rematada com um dístico (ou
estrofe de dois versos). Conforme a Arte de Trovar medieval, trata-se da
fiinda. Leia-se:
As fiindas são coisas que os trovadores sempre costumaram pôr no
fim das suas cantigas, para concluírem e acabarem melhor nelas os
argumentos (razones) que disseram nas cantigas, chamando-lhes fii-
nda, porque quer dizer conclusão de argumento. E essa fiinda podem
fazê-la de uma ou de duas ou de três ou de quatro palavras (versos).
(MONGELLI, 2003, p. 147)

Afora o refrão, você pode observar também o uso do paralelismo, um


processo repetitivo que envolve versos com a mesma estrutura sintática e/ou
semântica no corpo da composição – no caso, “Vy polo meu gram mal, Polo
meu gram mal vy”.
No aspecto temático, D. Dinis retoma os lugares-comuns típicos da
cantiga de amor. Embora o foco não esteja voltado à celebração das virtu-
des da donna, sua idealização é evidente. Observe que nesse poema a coyta
(ou, conforme um termo utilizado por Caetano Veloso, a queixa) derivada
do tormento passional do sujeito poético masculino se associa ao olhar.
O olhar é, por certo, janela da alma e nesse caso não surge como o responsável
pela transmissão do amor ao coração, pois antes disso expressa a perdição do
eu lírico.
Vale lembrar que o olhar como causa do tormento amoroso é uma cons-
tante, não só na lírica medieval, mas circunstância típica da tópica amatória
da poesia romântica luso-brasileira, como os poemas “Este inferno de amar”,
de Almeida Garrett e “Olhos verdes”, de Gonçalves Dias.

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1.4 Cantiga de amigo


É interessante notar que o sentimento de perda da continuidade do rela-
cionamento amoroso remete a um dos primeiros textos poéticos escritos da
literatura portuguesa. Há quem diga que a cantiga de amigo “Ai eu coytada”,
de D. Sancho I (1154-1211), rei de Portugal, dedicada à formosa Maria Paes
Ribeiro, merece ser considerada o manuscrito inaugural da literatura portu-
guesa. Observe como o trovador incorpora poeticamente o ponto de vista
feminino para descrever o sentido saudosismo da mulher perante a ausência
do amado:
Ai eu coitada!
Como vivo en gran cuidado
por meu amigo
que ei alongado!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ai eu coitada!
Como vivo en gran desejo
por meu amigo
que tarda e non vejo!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda! (apud SPINA, 1996, p. 319)

Glossário:
Cuidado: aflição.
Ei alongado: tenho esperado.
Desejo: recordação saudosa.

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Literatura de países de língua portuguesa

O manuscrito dessa composição se encontra registrado no Cancioneiro


da Biblioteca Nacional, sob o número 456. Logo no primeiro verso, a mulher
se diz coytada. Como dissemos, a palavra coyta traduzia o tormento passional
dos amantes. Ela sofre de saudade (en gran desejo) de tanto esperar (que ei
alongado) por seu namorado que se está em uma cidade distante (na Guarda).
O fato de não vê-lo intensifica ainda mais a recordação saudosa.
A aparente simplicidade dessa cantiga é típica de uma das manifes-
tações da poesia lírica que se desenvolveu na Península Ibérica. Nas canti-
gas de amigo, que têm origem galego-portuguesa, percebe-se o papel ativo
da mulher na busca de soluções para os seus anseios erótico-sentimentais.
A composição é válida para se pensar um tipo peculiar de cantiga de amigo,
o das paralelísticas, que aliam uma simplicidade de motivos e recur-
sos semânticos ao elaborado arranjo da sua expressão, através de um
esquema de repetitividade que enriquece o sentido pelo tom de litania
e sugestão encantatória, muitas vezes magoada, perplexa ou interroga-
tiva, que cria. (CANTIGAS DE AMIGO, 2008)

Em outras palavras, entre os temas desenvolvidos nas cantigas de


amigo, encontramos situações da vida amorosa das moças casadoiras.
A mulher expressa os seus ciúmes e dúvidas, ou faz confidências dos seus
sucessos amorosos.
As cantigas de amigo também podem ser dialogadas, embora o sujeito
poético feminino não dirija necessariamente o seu lamento para o destina-
tário do seu amor (o amigo), mas para a mãe ou amigas, ou mesmo para
elementos inanimados (árvores, ondas).
Afora o tipo de voz que inicia as cantigas, o espaço é decisivo para a sua
classificação. As canções de amor são identificadas por traduzirem o ponto de
vista de um sujeito poético masculino e pelo cenário palaciano. Já as canti-
gas de amigo se ambientam fora do palácio e do templo: ora no campo, sob
frondosas avelaneiras ou pinheiros, ora junto ao mar, ora à frente das igrejas.
Enfim, não se pode esquecer que essas duas modalidades da lírica medie-
val se destinavam ao canto e a dança. O esquema paralelístico e o estribilho
ou refrão são os elementos formais que punham em evidência essa relação.

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Trovadorismo: 1198-1418

Figura 5 – Descoberto por Pedro Vindel este pergaminho contém as letras


e as respectivas pautas musicais das cantigas de Martim Codax (segunda
metade do séc. XIII).

Segundo Spina, o esquema paralelístico diz respeito a um processo repe-


titivo que constitui o fundamento da poesia popular, sendo que na sua base
“estão presentes a música e a dança alternada a dois coros” (SPINA, 1996, p.
396). A presença do coro é sugerida pelo refrão ou estribilho: “um fragmento
poético no corpo da composição, ao qual regressa constantemente o coro
(às vezes cantados por um solista), entre a execução de uma estrofe e outra”
(SPINA, 1996, p. 400).
É o que ocorre na cantiga de D. Sancho, tanto pela presença do refrão
(“Muito me tarda / o meu amigo na Guarda!”), quanto pelo recurso à estru-
tura simples da forma paralelística: “Como vivo en gran cuidado / Como vivo
en gran desejo”. A repetição de versos semelhantes, com alterações nas palavras
finais, permite que a ideia principal se reproduza ao longo do poema, facili-
tando sua memorização.

– 19 –
Literatura de países de língua portuguesa

1.5 Cantigas de escárnio e maldizer


Apesar de alguns estudiosos considerarem a vertente satírica do trovado-
rismo como uma produção menor dentro desse movimento (MOISÉS, 1980,
p. 28), acreditamos que ela tenha qualidade e significado relevantes dentro da lite-
ratura medieval. As modalidades satíricas que estudaremos são escárnio e maldizer.
Nas cantigas de escárnio, como já dissemos, o trovador critica sem indi-
vidualizar a pessoa que estaria sendo criticada. As de maldizer são aquelas em
que a pessoa criticada é mencionada. Fazendo um esquema, temos:
22 cantiga de escárnio – sátira a alguém com sutileza, sendo que o pro-
cesso estilístico utilizado é a ironia;
22 cantiga de maldizer – sátira direta, com linguagem obscena.
Tais cantigas revelam aspectos típicos da vida dos jograis ou segreis, bem
como da corte. Os jograis levavam uma vida diferente do artificialismo cortês
ou do regime servil a que estava sujeito o trabalhador comum. Socialmente,
esses artistas eram párias. Nas suas canções, eles contavam suas experiências
com mulheres da vida, bebedeiras, fidalgos de menor expressão com preten-
sões a senhor feudal, as sovinices de um senhor etc.
No entanto, esse tipo de cantiga não se restringia ao jogral, pois qual-
quer trovador, até mesmo o rei D. Dinis, trataram dessa temática e lançaram
mão desse gênero poético. Em algumas cantigas, podemos inclusive ver a
rivalidade entre jograis e trovadores: os primeiros queriam ascender da condi-
ção de executantes para a de compositores, enquanto os segundos defendiam
a manutenção da hierarquia.
Em termos políticos, a sátira foi pouco utilizada, mas ela é o documento
de uma época, pois a condição dos jograis – andando de castelo em castelo, de
feira em feira – possibilita-nos o conhecimento daquela realidade sob variados
aspectos. Tomemos como exemplo disso a canção de João Garcia Guilhade:
Ai dona fea! foste-vos queixar
porque vos nunca louv’en meu trobar
mais ora quero fazer un cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

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Trovadorismo: 1198-1418

Ai dona fea! se Deus mi perdon!


e pois havedes tan gran coraçon
que vos eu loe en esta razon,
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia! (GUILHADE, 2008)

O poeta João Garcia Guilhade foi um importante trovador português do


século XIII e nos deixou, além de cantigas de escárnio como “Ai Dona Fea”,
também cantigas de amor e de amigo (COHEN, 1996). No poema citado, o
trovador se dirige a uma dama que se queixava de nunca receber versos dele,
louvando sua pessoa. Irritado com a cobrança, o poeta explica que os únicos
elogios que lhe poderia fazer eram “feia, velha e louca”.

1.6 Principais trovadores


22 João Soares de Paiva – considerado o mais antigo poeta em portu-
guês com a canção “Ora faz host’o senhor de Navarra”. O poema se
encontra no Cancioneiro da Vaticana.
22 Paio Soares de Taveirós – visto como o autor de um dos primeiros
textos em português, “Canção da Ribeirinha” (1189 ou 1198). Sua
obra se encontra no Cancioneiro da Ajuda.
22 D. Afonso X, o Sábio – rei de Leão e Castela, era avô de D. Dinis.
Escreveu numerosos versos, sendo os mais conhecidos as Cantigas
de Santa Maria.
22 D. Dinis – a figura mais proeminente do trovadorismo português.
Foi rei de Portugal, grande incentivador das artes e do conheci-
mento (fundou a Universidade de Coimbra) e um dos melhores
e mais profícuos poetas do período. Frequentou todos os gêneros
poéticos da época: cantigas de amor, amigo, escárnio e maldizer.

– 21 –
Literatura de países de língua portuguesa

22 Martim Codax – sua história é pouco conhecida, mas as poucas


composições (sete cantigas de amigo) que nos deixou foram com-
piladas junto com a notação musical dos poemas.

1.7 A permanência do Trovadorismo


Aproveitando o fio da meada, ao longo do século XIX e do século XX
ocorreu uma verdadeira revisitação à cultura medieval. Se a Era Clássica esco-
lheu o passado greco-latino como modelo, o Romantismo escolheu para si a
recriação do passado medieval.
Enquanto estética do século XIX, o Romantismo se relaciona com a
reação aos preceitos clássicos e a busca da identidade nacional. Daí a valo-
ração do medievo, berço da nação lusitana e da cristandade. O gosto pelo
medievo se constata tanto na arquitetura com a (re)construção de templos
góticos como também nos motivos poéticos e procedimentos compositivos
da literatura medieval.
Vamos dar dois exemplos.
22 Alexandre Herculano, principal escritor do movimento român-
tico em Portugal, escreveu um romance histórico intitulado
Eurico, o Presbítero (1844), ambientado no século VIII, que
revive o clima das novelas de cavalaria e o espírito das Cruzadas
típicas da prosa medieval. O autor também era poeta e um de
seus versos é autoexplicativo: “Eu, o cristão, trovador do exílio”
(HERCULANO, 2008).
22 Almeida Garrett, no melhor livro de poemas do romantismo por-
tuguês, intitulado Folhas Caídas, retoma o lirismo fluente, de rit-
mos populares, das composições medievais. Leia-se o poema inti-
tulado “Barca Bela”:
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?

– 22 –
Trovadorismo: 1198-1418

Colhe a vela,
Ó pescador!
Deita o laço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador,
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Ó pescador! (ALMEIDA GARRETT, 2008)

A retomada dos processos de composição da arte poética medieval se


observa pela escolha da chamada medida velha – no caso, as redondilhas
(os dois primeiros versos possuem sete sílabas poéticas). Note-se ainda que
esse poema reitera um mesmo verso, à guisa de refrão, como remate de
cada estrofe. Enfim, a repetição de versos com a mesma identidade semân-
tica, na primeira e na última estrofe, lembra a estrutura paralelística das
cantigas trovadorescas.
Para Garrett, a reação romântica contra a literatura clássica de feições
greco-latinas “trouxe a renascença da poesia nacional e popular”. Segundo
ele, “nenhuma coisa pode ser nacional se não for popular” (FERREIRA, s.d.,
p. 5). Assim, Garrett deixa bem claro que essa retomada é uma contribuição
à busca da cor local, ou dos matizes da identidade pátria.

Dicas de estudo
22 A propósito das manifestações da literatura medieval, consulte
o site <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/trovador.htm>,
acesso em: 29 set. 2017, que apresenta vários exemplos das
modalidades da poesia trovadoresca. Vale dizer que esse site é
considerado a maior base de dados sobre a literatura portuguesa,
do medievo às textualidades contemporâneas.

– 23 –
Literatura de países de língua portuguesa

Atividades
1. A propósito das origens das cantigas de amor galego-portuguesas,
António José Saraiva e Oscar Lopes afirmam, em sua História da Li-
teratura Portuguesa, que os provençais eram os modelos a seguir. Cite
versos de D. Dinis que podem corroborar essa tese.

2. O que significa escrever uma canção de amor à maneyra de proençal?


Justifique apontando pelo menos três das suas principais característi-
cas temáticas.

3. É possível estabelecer correspondências entre o que as canções de


amor expõem e a organização da sociedade medieval? Justifique.

– 24 –
2
O Humanismo
José Carlos Siqueira

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Luís de Camões

2.1 O homem como centro do universo


No romance Os Maias (1888), do escritor realista Eça de
Queirós, há um personagem bastante divertido chamado João da
Ega, que pretende escrever um livro muito peculiar, As memórias de
um átomo:
Este átomo (o átomo do Ega, como se lhe chamava a sério
em Coimbra) aparecia no primeiro capítulo, rolando
ainda no vago das Nebulosas primitivas: depois vinha
embrulhado, faísca candente, na massa de fogo que devia
ser mais tarde a Terra: enfim, fazia parte da primeira
folha de planta que surgiu da crosta ainda mole do globo.
Desde então, viajando nas incessantes transformações da
substância, o átomo do Ega entrava na rude estrutura do
Literatura de países de língua portuguesa

Orango, pai da humanidade – e mais tarde vivia nos lábios de Platão.


Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heróis, palpi-
tava no coração dos poetas. [...] Achando-se finalmente no bico da
pena do Ega, e cansado desta jornada através do Ser, repousava –
escrevendo as suas Memórias... Tal era este formidável trabalho – de
que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como
esmagados de respeito:
– É uma Bíblia! (QUEIRÓS, 1997, p. 1.116)

A graça desse texto está no fato Figura 1 – Esboço dos movimentos de


de que a bíblia da modernidade um homem, em desenho de Leonardo
seria o percurso de um átomo pela da Vinci.
história, um átomo como outro
qualquer, sem nada de especial,
símbolo da materialidade da vida.
Deus perde, assim, a prerrogativa
de criar e de reger o universo. Essa
exclusão da centralidade de Deus
que, no século XIX – quando Eça
escreveu o seu texto – é tomada
de modo debochado e banal, no
século XV e XVI foi uma grande
revolução em Portugal e em toda
a Europa. É o que ficou conhecido
como humanismo, com o homem e
a racionalidade humana tomando
o lugar central na escala de valores
do mundo ocidental.
Segundo Óscar Lopes e
António José Saraiva, quem promoveu o Renascimento em Portugal foram
os humanistas:
A palavra humanismo com que se designou este movimento, inspirada
pelo conceito de humanitas (o de humanidade, ou qualidade humana,
como cultura e estrutura moral) de Cícero, exprime a crença num
conjunto de valores morais e estéticos universalmente humanos, os
quais se achariam definidos tanto nas Escrituras e na Patrística como
na cultura profana da Antiguidade. (LOPES; SARAIVA, 1979,
p. 175-176)

– 26 –
O Humanismo

Do ponto de vista político, os humanistas advogavam a escolha dos


governantes segundo o saber e a capacidade, condenando a guerra e pro-
pondo soluções pacíficas para os conflitos políticos e religiosos. Da pers-
pectiva do ensino, o ideal humanista propunha a realização harmoniosa das
faculdades morais e estéticas do indivíduo, por meio da substituição da dialé-
tica e da retórica escolástica, que era baseada no aristotelismo, pela leitura e
o comentário dos textos de autores clássicos, defendendo assim uma crítica
de base filológica e histórica. Seus seguidores retomavam Platão e os filósofos
neoplatônicos, como Plotino.
Apesar de o humanismo ser uma corrente de pensamento e não um pro-
grama estético, ele foi a base de toda arte e cultura renascentistas. Sua origem
se deu na Academia Platônica de Florença, na Itália, seu local de origem e
um de seus principais mentores foi o filósofo Marsílio Ficino (1433-1499).
Ficino foi tradutor de Platão, Plotino, Jâmbico, Proclo e Sinésio, e recebeu na
Academia as principais figuras de seu tempo, como o arquiteto Alberti, o filó-
sofo Pico della Mirandola, o poeta Poliziano e até Maquiavel. E a Academia
Platônica de Florença foi muito além da tradição grega antiga, gerando as
bases para o pensamento humanista.
Figura 2 – Detalhe da pintura Zacarias no Templo (1490), de Domenico
Ghirlandaio, na capela de Santa Maria Novella, em Florença. Aqui aparecem
Marsílio Ficino (à esquerda), Cristoforo Landino, Angelo Poliziano e
Demetrios Clakondyles.

– 27 –
Literatura de países de língua portuguesa

No âmbito da literatura, esses pensadores reconheceram a superioridade


artística e literária das civilizações antigas e, a partir daí, conceberam a noção
de homem completo (corpo e espírito), integrado na humanidade e partici-
pante do vasto conjunto da natureza. Portanto, tais pensadores superaram a
noção de homem individual pela noção mais ampla e complexa de huma-
nidade. Isso tudo não negava a existência divina, mas colocava em primeiro
plano o estudo do homem e da natureza.

2.2 O Humanismo em Portugal


As ideias humanistas chegaram à literatura portuguesa por intermédio
do contato de escritores portugueses com o meio literário italiano. Um dos
casos clássicos desse intercâmbio foi o do poeta Francisco de Sá de Miranda
(1481-1558). De 1521 a 1526, Sá de Miranda frequentou os meios literários
italianos. Ao retornar dessa viagem, ele trouxe na bagagem a nova estética
humanista, introduzindo na literatura portuguesa o soneto, a canção, a sex-
tina, as composições em tercetos e em oitavas, o decassílabo. Além de várias
composições poéticas, Sá de Miranda também escreveu comédias e tragédias.
Outro importante poeta desse momento foi Garcia de Resende (1470-
-1536), que era ainda cronista, músico, desenhista e arquiteto. Sua principal
obra é o Cancioneiro Geral, na qual reúne composições de mais de 200 poetas
das cortes de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I, além dos próprios tra-
balhos. É o maior repositório poético do final do período medieval e início
do período clássico.
Entre os prosadores marcados pelo pensamento humanista, podemos
destacar Fernão Lopes (c. 1380-c. 1460), cronista no reinado de D. Duarte,
havendo escrito a história dos reis D. Pedro I, D. Fernando e D. João I.
Também podemos nos lembrar de João de Barros (c. 1496-c. 1570), tesou-
reiro da Casa da Índia, Mina e Ceuta – o que lhe deu a oportunidade de
escrever as Décadas da Ásia (1552-1563), que tratam dos descobrimentos
portugueses no Oriente. Além das Décadas, João de Barros escreveu a Crônica
do Imperador Clarimundo (1520), Ropicapnefma ou Mercadoria Espiritual
(1532) e Gramática da Língua Portuguesa (1540).

– 28 –
O Humanismo

No entanto, o escritor que é considerado o maior humanista português,


e mesmo um dos maiores da Europa, chamava-se Damião de Góis (1502-
-1574). Na função de embaixador de Portugal, ele viajou por vários lugares da
Europa, estabelecendo relações com reis, príncipes e diversas figuras de expres-
são no cenário político e cultural daquele momento. Por manter contato com
Erasmo, Lutero e outros reformadores protestantes, acabou sendo acusado
de heresia pela Inquisição. Foi um dos cronistas reais e escreveu Crônica do
Felicíssimo Rei D. Manuel (1566-1567) e a Crônica do Príncipe D. João (1567).
Podemos ainda citar Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559), que
escreveu a História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses
(1551-1561), ou Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583), autor de Peregrinação
(1614), como outros dois importantes prosadores que produziram à sombra
do humanismo português.
Figura 3 – A Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, do humanista Damião de Góis.

No âmbito da prosa, interessa-nos, no entanto, especialmente Bernardim


Ribeiro (c.1480 - c.1540), provavelmente o primeiro escritor português a
adotar a língua portuguesa na prosa erudita, já que até esse momento apenas

– 29 –
Literatura de países de língua portuguesa

o latim era considerado digno para tanto. Quase nada se sabe da vida de
Bernardim Ribeiro, sendo incertas as datas de nascimento e morte. Acredita-se
que tenha visitado a Itália na companhia de Sá de Miranda e frequentado o
meio literário da corte portuguesa. De sua autoria, chegou-nos alguns poucos
versos, o romance (gênero de poema) Ao Longo de uma Ribeira (1550) e a
novela Menina e Moça (1554), havendo esta última se transformado em uma
referência obrigatória da origem da prosa portuguesa, pois seria a primeira
novela pastoril da península Ibérica.
Alguns acreditam que Menina e Moça possa ser um roman à clef, isto
é, um romance codificado que retrata a própria vida amorosa do autor, já
que há muitos possíveis anagramas1 nos nomes das personagens. Por exem-
plo, Binmarder seria um anagrama de Bernardim; Natércia, de Caterina;
Arima, de Maria; e assim por diante. Menina e Moça é uma “novela senti-
mental”, que funciona como uma “cantiga de amigo” ampliada, resultando
na visão feminina de uma “novela de cavalaria”.
Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe.
Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena,
não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já
então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi
necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui
em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou
tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se
buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aven-
tura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas
por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que
mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha. (RIBEIRO,
2002, p. ii).

Assim tem início o relato dos diversos sofrimentos amorosos que a nar-
radora ouviu contar ou que, em parte, também experimentou. O tom sen-
timental, as diversas tramas amorosas e a exacerbação das sensações fizeram
com que essa obra se transformasse em referência fundamental, já no século
XIX, para os escritores portugueses ligados à escola romântica.

1 Anagrama: transposição de letras de palavra ou frase para formar outra palavra ou frase diferente.

– 30 –
O Humanismo

2.3 Gil Vicente (c. 1465-c.


1537): a grande figura literária do Humanismo
O dramaturgo Gil Vicente caiu nas graças Figura 4 – Gil Vicente,
da corte quando, em 1502, a rainha D. Maria o inventor do teatro
assistiu em seu quarto à apresentação do Auto da português.
Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, que saudava o
nascimento de seu filho, o príncipe D. João.
A partir de então, o rei D. Manuel nomeou
Vicente como seu mestre de cerimônias, cargo
que ele manteve também no reinado de D. João
III – o mesmo D. João que o dramaturgo vira
nascer – e de quem chegaria a receber terças (pro-
priedades feudais) e prêmios.
Gil Vicente conseguiu adquirir tanto prestí-
gio na corte que, dentro de seu espírito humanista,
chegou a censurar os frades de Santarém por expli-
carem o terremoto de 1531 como resultado da ira
divina. E, em uma carta ao rei, ainda condenou a
perseguição impingida aos judeus. Figura 5 – A custódia
de Belém. Gil Vicente,
Considerado o fundador do teatro português 1506. Museu nacional
(e mesmo do teatro ibérico, ao lado de Juan del de Arte Antiga, Lisboa.
Encina), Gil Vicente é o expoente máximo do
humanismo literário português. Pouco se sabe
sobre sua vida. Pode ter sido ourives e autor da
famosa custódia2 de Belém, obra-prima da ouri-
vesaria portuguesa que se encontra atualmente no
Museu de Arte Antiga de Lisboa. Mas certamente
foi um grande dramaturgo, havendo trabalhado
no mínimo durante 34 anos, de 1502 a 1536,
data de sua última encenação, compondo cerca de
50 obras.

2 Custódia ou ostensório: receptáculo em que a hóstia


fica exposta à adoração dos fiéis.

– 31 –
Literatura de países de língua portuguesa

Também sobre as encenações das peças vicentinas pouco se sabe.


Algumas provavelmente necessitariam de certa sofisticação material, como
o Auto da Lusitânia, em que há a sugestão de que a ação se passa em dois
andares distintos. A maioria, no entanto, exigia pouco aparato teatral para
ser encenada.

2.3.1 O teatro vicentino e suas fontes


A classificação dos autos de Gil Vicente em formas preestabelecidas
apresenta uma série de dificuldades. Na edição de suas obras realizada por
seu filho Luís Vicente, em 1562, já depois de sua morte, sob o título de
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a obra vicentina aparece dividida
em cinco livros:
22 obras de devoção;
22 comédias;
22 tragicomédias;
22 farsas;
22 obras miúdas (diversas).
Porém, muitos estudiosos discordam de tal distribuição porque o pró-
prio Gil Vicente se refere a alguns de seus trabalhos como moralidades, evo-
cando assim gêneros dramáticos já em desuso no momento de publicação da
Copilaçam e oriundos do teatro medieval. O teatro medieval apresentava uma
grande diversidade de gêneros, tais como:
22 mistérios– encenações da vida de Cristo, com muitos atores;
22 moralidades – peças curtas com alegorias dos vícios, das virtudes e
de outros atributos, ou com tipos morais;
22 milagres – encenações de vidas de santos ou intervenções milagrosas
da Virgem;
22 farsas – cenas satíricas de caráter popular;
22 sotties – espécie de farsa protagonizada por parvos3;
3 Indivíduos tolos, bobos.

– 32 –
O Humanismo

22 sermões burlescos e monólogos – mais curtos que os anteriores, ence-


nados por atores ou jograis mascarados com vestes sacerdotais;
22 autos pastoris – éclogas dramáticas ambientadas no campo;
2 2 tragicomédias – fantasias alegóricas de comemoração áulica
ou política;
22 comédias sentimentais cavaleirescas – tratavam do amor aristocrático
e tinham final feliz.
Em Portugal, há poucos registros da existência de mistérios, moralidades
ou milagres antes de Gil Vicente. Em documentos da Igreja, há apontamen-
tos sobre possíveis representações, de modo geral indicando alguns excessos
e solicitando sua proibição. Todavia, não se especifica a exata natureza de
tais encenações. Assim, é de se supor que o dramaturgo tenha buscado o
modelo para tais gêneros entre seus contemporâneos espanhóis, mais especifi-
camente no dramaturgo castelhano Juan del Encina, de Salamanca. Segundo
os historiadores António José Saraiva e Óscar Lopes, o Auto da Visitação, que
introduziu Gil Vicente na corte, teve por modelo obras desse dramaturgo
espanhol. Vale lembrar que nessa época a corte portuguesa empregava tanto
o português quanto o castelhano, uma vez que durante o século XVI todas as
rainhas de Portugal eram castelhanas, isto é, nascidas no reino de Castela, na
Espanha. Aliás, o próprio Gil Vicente também escreveu obras em castelhano.
Assim, não é de se estranhar que ele tenha optado por começar sua produção
teatral tomando um autor castelhano como modelo.
No entanto, nos trabalhos posteriores, Gil Vicente incorporou diversos
novos elementos, muitos já presentes na tradição portuguesa, como o sermão
burlesco, as ladainhas, os despropósitos de parvos. Além disso, integrou ele-
mentos da realidade portuguesa, por ele atentamente observada. Do exterior,
importou ainda a fantasia alegórica do também castelhano Torres Naharro
e as moralidades e os mistérios franceses e ingleses (se é que já não esta-
vam integrados às encenações portuguesas da época, das quais se têm poucos
registros). Além disso, é muito provável que a obra vicentina tenha sofrido
influência de narrativas da tradição oral. A partir de tal quadro de referências
estéticas, dificilmente a obra de Gil Vicente poderia ser enquadrada em for-
mas estanques.

– 33 –
Literatura de países de língua portuguesa

2.3.2 Classificando as obras vicentinas


Como já indicamos, uma das principais dificuldades para os estudiosos
da obra de Gil Vicente está na classificação de seus autos em gêneros. Todavia,
Óscar Lopes e António José Saraiva procuraram fazer tal classificação e, assim,
identificaram cinco grandes grupos de peças, observando que ainda assim
uma mesma peça poderia se encaixar em mais de uma categoria.
Figura 6 – Capa original da peça Tragicomédia Alegórica do Paraíso e do Inferno.

22 Autos pastoris – autos ambientados no campo, com os mais diver-


sos propósitos (Auto Pastoril Castelhano, 1509; Auto de Fé, 1510;
Auto da Sibila Cassandra, 1513; Auto da Mofina Mendes, 1515;
Auto Pastoril Português, 1523; Templo de Apolo, 1526; Tragicomédia
da Serra da Estrela, 1527).

– 34 –
O Humanismo

22 Autos de moralidade – subdividido em autos que resumem a teolo-


gia da Redenção (Auto da Sibila Cassandra, 1513; Auto dos Quatro
Tempos, 1513; Auto da Mofina Mendes ou Mistérios da Virgem,
1515; Breve Sumário da História de Deus, 1527) e autos que, de
forma acentuadamente alegórica, oferecem um ensinamento reli-
gioso ou moral (Auto da Barca do Inferno, 1517; Auto da Alma,
1518, Auto da Barca do Purgatório, 1518; Auto da Barca da Glória,
1519; Auto da Feira, 1526).
22 Farsas – episódios cômicos flagrados na vida de personagem típica,
sendo que, por vezes, não há unidade de ação mas apenas episódios
independentes (Auto da Índia, 1509; Velho da Horta, 1512; Quem
tem Farelos?, 1515; Farsa de Inês Pereira, 1523; O Juiz da Beira,
1525 ou 1526; Farsa do Almocreves, 1527; O Clérigo da Beira, 1529
ou 1530).
22 Autos cavaleirescos (Comédia de Rubena, 1521; D. Duardos, 1522;
Auto de Amadis de Gaula, 1523; Comédia do Viúvo, 1524).
22 Autos alegóricos de temas profanos – uma alegoria central serve de
eixo ou de espaço para o desenvolvimento de episódios, cenas, bai-
lados (Exortação da Guerra, 1514; Cortes de Júpiter, 1521; Frágua de
Amor, 1524; Templo de Apolo, 1526; Nau de Amores, 1527; Triunfo
do Inverno, 1529; Romagem de Agravos, 1533).
Mas os próprios historiadores sabem que estão fora de tal classificação
algumas peças como o Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro (1502) ou
o Sermão Perante a Rainha D. Leonor (1506), que seriam respectivamente um
monólogo e um sermão. Também a Exortação da Guerra ou a Tragicomédia da
Serra da Estrela poderiam ser classificadas simplesmente como tragicomédias,
assim como os Mistérios da Virgem ou o Breve Sumário da História de Deus,
poderiam ser tomados apenas como mistérios.
No fundo, à época do dramaturgo os gêneros eram muitos e não pos-
suíam uma definição única e rigorosamente normatizada. Desse modo, con-
taminavam-se uns aos outros: um auto de moralidade difere razoavelmente
de um sermão burlesco ou de um monólogo, mas nem sempre é fácil distin-
guí-lo de um auto pastoril, de um auto de milagre ou mesmo de uma farsa.

– 35 –
Literatura de países de língua portuguesa

2.3.3 As força dos personagens vicentinos


Por muito tempo, a tradição crítica afirmou que Gil Vicente não cons-
truiu personagens com densidade psicológica capazes de se individuali-
zarem por suas características. Mas o que dizer de personagens como Inês
Pereira, por exemplo, que tem vontade e evolução própria dentro da farsa,
ou de Constança, a adúltera senhora do Auto da Índia, ou de Oriana, da
Tragicomédia de Amadis de Gaula, cujo titubear em crer no amor de Amadis
a leva a viver um dos mais belos “dramas psicológicos” do teatro cavaleiresco?
Portanto, fica difícil falar em total falta de densidade psicológica. De qualquer
modo, a tônica dominante na elaboração dos personagens vicentinos está em
caracterizar tipos sociais, ou construir alegorias, quando não se apropria de
figuras da história mítica ou religiosa.
O interessante é que, com tal procedimento, Gil Vicente acaba por deli-
near tipos sociais que ainda hoje têm muita vitalidade, com os quais podemos
nos deparar a qualquer momento. De fato, há em seus personagens a univer-
salização de certos traços de caráter do homem dito ocidental. Representam,
assim, alguns comportamentos morais que se tornaram exemplares, no bom
ou no mau sentido – geralmente no mau.
Os personagens vicentinos mais comuns são:
22 tipos sociais – o parvo (o bobo), o pastor, a moça da vila, a alcovi-
teira, o camponês, o escudeiro, o frade folião etc.;
22 personificações alegóricas – Roma (representando a Igreja) estações
do ano etc.;
22 personagens bíblicas e míticas – profetas, deuses greco-
-romanos etc.;
22 figuras teológicas – santo Agostinho, são Tomás de Aquino, são
Gregório ou são Martinho.
Quando o dramaturgo português começou a escrever, os gêneros do tea-
tro medieval já se encontravam um tanto mesclados, como vimos. Todavia,
pelo que foi exposto, ao menos em linhas gerais, é possível saber o que é uma
moralidade ou uma farsa a fim de que possamos analisar duas peças muito
famosas: O Velho da Horta e o Auto da Barca do Inferno. A primeira (uma

– 36 –
O Humanismo

farsa) é um episódio cômico flagrado na vida de uma personagem típica. A


segunda (uma moralidade) é um auto que, de forma alegórica, oferece um
ensinamento religioso ou moral.

2.3.3.1 O Velho da Horta


A farsa O Velho da Horta foi representada pela primeira vez em 1512.
Trata da súbita paixão do Velho agricultor pela Moça que vem comprar ver-
duras em sua horta. Observe-se que ninguém tem nome próprio: são tipos
sociais. A já experiente Moça, ao perceber a paixão do Velho, passa a zombar
dele, estimulando-o com frases ambíguas. Mesmo censurado pela Mulher, ele
mantém sua paixão. Em meio a isso, aparece a Alcoviteira, que passa a fazer a
suposta mediação entre o Velho e a jovem. No entanto, a Alcoviteira apenas
deseja tomar aos poucos todos os bens do Velho. Ao final, ela acaba sendo
presa e o Velho toma conhecimento de que a Moça se casara com um belo
rapaz, de modo que termina a peça infeliz e arrependido de ter gastado com
uma ilusão amorosa tudo o que acumulara para a família.
Figura 7 – O Velho da Horta, montada pelo Grupo Polícromo Alecrim, na
Mostra Rio-São Paulo de Teatro de Rua de Paraty em 2005.

Fonte: Divulgação.

– 37 –
Literatura de países de língua portuguesa

Aqui a crítica recai sobre a então incipiente classe burguesa, que ainda
possuía um estreito vínculo com o campo. Note-se que toda a ação se passa
na horta, com poucos personagens em cena, todos eles vestidos sem qualquer
ostentação. Isso fazia com que a peça pudesse ser representada em qualquer
lugar, sem grande aparato ou dificuldade.
É também fácil observar que há um claro distanciamento dos princí-
pios dramáticos clássicos, que, em seu conjunto, postulam que uma peça se
construa a partir de uma lógica interna: todos os personagens, todas as cenas,
todas as ações têm de ser muito bem amarradas, fazendo com que nada fique
solto ou sem explicação clara. Em O Velho da Horta a entrada e a saída de
alguns personagens não são muito claras. O tempo em que transcorre toda
a ação da peça – um dia – é muito pouco para que o Velho se apaixone, seja
explorado pela Alcoviteira e ainda se arrependa de perder suas economias.
Apenas o espaço respeita a unidade aristotélica. A peça caminha quadro a
quadro, sem que a motivação de um para o outro seja devidamente amarrada.
Quando os guardas chegam para prender a Alcoviteira, por exemplo, a situa-
ção é um tanto inverossímil, pois não ficamos sabendo quem denunciou sua
exploração sobre o Velho. Todavia, o efeito surpresa que isso acarreta é mais
forte e mais cômico do que se fôssemos preparados para tanto.
Os princípios clássicos logo passariam a ser muito valorizados em
Portugal, definindo assim uma nova estética renascentista. Mas é importante
lembrar que, de modo efetivo, o renascentismo só chegaria a Portugal 14 anos
depois da estreia de O Velho da Horta: como vimos, isso ocorreu em 1526,
quando o poeta Sá de Miranda retornou a Lisboa, depois de sua viagem de
estudos à Itália, trazendo na bagagem todo o ideário estético renascentista.
De qualquer modo, Gil Vicente jamais aderiu plenamente a ele, embora
seja considerado, como já referido, o principal autor dos primórdios do
Renascimento em Portugal, pois o dramaturgo foi sempre fiel ao seu huma-
nismo – este sim em sintonia com o mundo mental renascentista, conforme
discutiremos adiante – bem como às formas do teatro de tradição medieval.
Lembremos ainda, com relação às farsas, que algumas delas não traba-
lham só com quadros, mas se prendem a um enredo mais denso. É o caso, por
exemplo, da famosa Farsa de Inês Pereira, peça muito conhecida. Ali há toda
uma progressão da ação:

– 38 –
O Humanismo

22 Inês deve se casar;


22 é apresentada, mas rejeita Pero Marques, por ser ele simples e pobre;
22 aceita se casar com um elegante escudeiro;
22 desilude-se com esse escudeiro e sofre muito;
22 fica viúva e acaba por se casar com Pero Marques.
Mas se a ação lembra a trama de uma comédia clássica, o tratamento
dado ao tempo não traz aquela amarração exigida pela tradição greco-ro-
mana. No mesmo momento em que conhece o escudeiro, Inês se casa com
ele. No momento seguinte, o marido parte para África. Logo em seguida, já
se passaram três anos e chega a notícia de sua morte. Como se vê, tudo com
uma amarração bastante frágil, o que demonstra como o teatro vicentino não
é nada homogêneo, explorando diversas variações dentro do repertório dos
gêneros dramáticos medievais.
Vale ainda lembrar que, apesar de se tratar de uma farsa, em O Velho
da Horta há momentos de algum lirismo. Mesmo sendo ridicularizado em
sua paixão, algumas falas do Velho trazem consigo uma quase renascentista
concepção do amor, que é tomado como um sentimento paradoxal, um mal
maior do que a morte, mas que todos desejam em vida: “O maior risco da
vida e o mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída [...].”
(VICENTE, 2008).
A crítica ao comportamento do Velho que está embutida na peça
tem, naturalmente, uma base católica, pois condena o amor de um homem
maduro e casado por uma jovem solteira. Mas também há um alerta para
nossa fragilidade emocional, revelando como estamos todos sujeitos a trans-
gredir as regras em qualquer fase de nossas vidas, isto é, há um alerta de que
a paixão humana é algo sempre vivo e imprevisível, precisa ser domado pela
razão constantemente, até o último dos nossos dias. O Velho é ridicularizado
em seu amor, mas, ainda que fadado ao fracasso, esse amor aparece como
profundo e verdadeiro.

2.3.3.2 Auto da Barca do Inferno


O Auto da Barca do Inferno foi representado pela primeira vez prova-
velmente em 1517, na Semana Santa, no quarto da rainha D. Maria (ela se

– 39 –
Literatura de países de língua portuguesa

encontrava enferma de um mal que a mataria) tal como ocorrera com o Auto
da Visitação, 15 anos antes.
Figura 8 –Ilustração de cena do Auto da Barca do Inferno.

Embora muito provavelmente não tenha sido escrita para compor uma
trilogia, o grande sucesso obtido por sua representação inspirou o dramaturgo
a redigir duas outras peças, o Auto da “Praia” do Purgatório e o Auto da Barca
da Glória. Assim, os três autos contemplam os três lugares em que um cristão,
após a morte, pode ter por morada: o inferno, o purgatório e o paraíso.
O Auto da Barca do Inferno se passa em uma praia. Dois barcos esperam
os que acabaram de morrer para os levar ou para o paraíso ou para o inferno,
havendo uma sucessão de cenas envolvendo aqueles que chegam e também
o Diabo e o Anjo, que recebem a todos. A condenação e a salvação de cada
um é decidida de acordo com sua vida terrena. Os que chegam são o Fidalgo,
o Onzeneiro (agiota), o Parvo, o Sapateiro, o Frade, Florença (amante do
frade), Brísida Vaz (alcoviteira), o Judeu, o Corregedor, o Enforcado (ladrão)
e quatro Cavaleiros. Desse modo, a peça é um conjunto de cenas sobrepostas,
ligadas pelas figuras do Diabo e do Anjo.

– 40 –
O Humanismo

No Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente critica as três instâncias sociais


do mundo medieval: nobreza, clero e trabalhadores, salvando apenas o Parvo
e os Cavaleiros, realmente dignos desse nome. Tal como na farsa O Velho da
Horta, os personagens são em sua maioria tipos sociais. Todavia, quem pro-
tagoniza a cena são figuras alegóricas do bem e do mal (o Anjo e o Diabo).
Assim, diferentemente do que encontramos em uma farsa, temos aqui o
recurso da alegoria, com uma fundamentação religiosa explícita, isto é, temos
um auto de moralidade.
Note-se como cada um dos personagens possui uma forma de lingua-
gem própria, que a caracteriza. O Fidalgo fala de forma elegante e arrogante
ao Anjo, revelando sua falta de respeito e amor ao próximo:

Que me leixeis embarcar:


sou fidalgo de solar,
é bem que me recolhais. (VICENTE, 2008)

Já o Parvo assim diz ao Diabo:

Ò inferno?... Era má...


Hiu, hiu, barca do cornudo,
Pêro Vinagre, beiçudo, rachador d’Alverca, huhá.
Sapateiro da Candosa!
Antecosto de carrapato!
Hiu, hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa!
(VICENTE, 2008)

Como se vê, o Parvo emprega muitas interjeições e uma linguagem de


baixo calão, demonstrando sua grosseria, mas também uma alma pura, ao
reconhecer e atacar fortemente o Diabo.
Os trechos dedicados aos nobres e ao clero são mais longos, pois são os
dois grupos mais criticados no decorrer da ação. O auto apresenta uma óbvia
função moralizadora e os valores morais ali presentes são medievais e cristãos,
impregnados por valores humanistas.

– 41 –
Literatura de países de língua portuguesa

É curioso notar que os motivos que os diversos passageiros alegam para


sua salvação são justamente aqueles que os condenam, revelando o descom-
passo entre a ordem humana e a ordem divina. Também é fácil observar que o
papel desempenhado pelo Diabo é o de agente moralizador da fé cristã, sendo
até mesmo mais eficiente que o Anjo.
Uma sutileza: o Judeu é rejeitado até mesmo pelo Diabo e não pode
embarcar (mantém sua condição de errante) – o que de alguma forma o pre-
serva, mesmo que duplamente condenado. Retomando aqui a já mencionada
defesa que Gil Vicente fez dos judeus junto ao rei, podemos compreender
que mantenha essa figura social em um lugar nebuloso e impreciso, fora dos
padrões cristãos de julgamento.
A salvação dos Cavaleiros (que, por terem morrido nas batalhas das
Cruzadas contra os infiéis, são merecedores do Céu) tem fundamentação na
ideologia da Igreja, mas também na ética da cavalaria medieval: eles são salvos
por serem corajosos, íntegros e, sobretudo, por terem lutado contra os infiéis.
Notemos finalmente que há elementos farsescos nas figuras do Diabo e
do Parvo, o que aponta para a contaminação de gêneros que já mencionamos
várias vezes.

2.3.4 A vertente de crítica social da obra vicentina


Para entendermos melhor a crítica social que as obras de Gil Vicente
veiculam, primeiramente é necessário entender em que mundo de ideias ele
viveu. Se analisarmos a estratificação da sociedade medieval, encontraremos
três instâncias sociais:
22 aqueles que oram (oratore) – os clérigos;
22 aqueles que lutam (belatore) – os nobres e cavaleiros; e
22 aqueles que laboram (laboratore) – os camponeses.
São três categorias distintas e complementares, e cada uma delas tem
necessidade das outras duas. O seu conjunto forma o harmonioso corpo da
sociedade, praticamente havendo trânsito entre esses grupos, isto é, há pou-
quíssima mobilidade social.

– 42 –
O Humanismo

Todavia, em fins da Idade Média, com o surgimento do capitalismo


comercial, tal ordem começou a mudar. O acúmulo de riquezas nos reinos
estimulou o crescimento da classe dos comerciantes e da classe de trabalha-
dores que prestavam serviços aos nobres. O saber prático e especulativo,
sem intenção teológica, começou a ser valorizado e, por conta disso, houve
uma reabilitação dos valores clássicos (pagãos) de raiz greco-romana. Muitos
homens que se encontravam fora da hierarquia clerical (isto é, fora do grupo
daqueles que oravam) passaram a exercer atividades letradas, buscando conhe-
cimentos práticos – e passaram a ser chamados de humanistas, isto é, homens
que acreditavam em um conjunto de valores morais e estéticos universais
para todos os seres humanos, valores que poderiam ser encontrados tanto nas
Escrituras quanto na cultura da Antiguidade Clássica.
Por tudo isso, a crítica social presente na obra de Gil Vicente tem forte
base humanista, mas ainda guarda vínculo com os valores medievais. No
aspecto social, ao mesmo tempo em que percebe que o lavrador é a base
econômica, o autor deseja que a sociedade se mantenha estática e tradicional,
temendo que a mudança do homem do campo para a cidade venha a desca-
racterizar tal sociedade – procurando sempre uma mediação entre os valores
da Corte e os valores populares.
Dessa forma, Gil Vicente representa uma perspectiva crítica, mas con-
servadora, acerca da sociedade portuguesa. Para resumir, podemos dizer que
ele ridiculariza:
22 os padres porque pregam uma coisa e fazem outra;
22 os escudeiros porque imitam e parasitam a nobreza;
22 os fidalgos, magistrados e administradores porque se consideram
acima das leis.
Já em relação à Corte, ora a ridiculariza, ora a elogia. Assim também
procede com os judeus. Já em relação aos parvos e aos lavradores, tem por
eles toda a simpatia.
Traçando um retrato bastante crítico da sociedade portuguesa do século
XVI, no entanto ele não deixa de ter no tripé sacerdotes-nobres/cavaleiros-
-camponeses sua referência primordial de sociedade, na qual, no entanto, o

– 43 –
Literatura de países de língua portuguesa

homem letrado poderia substituir o sacerdote, muitas vezes com maior pro-
veito. Foi exatamente o que fez Gil Vicente.

Dicas de estudo
22 As peças de Gil Vicente são muito reencenadas. Veja se na sua
cidade não há nesse momento montagem delas.
22 Há um romance de Fernando Campos intitulado A Sala das
Perguntas (1998), publicado pela Difel, que retrata a vida do
humanista Damião de Góis.

Atividades
1. Qual a maior ruptura promovida pelo humanismo no pensamento
dos séculos XV e XVI em Portugal?

2. Por que é difícil classificar a obra de Gil Vicente?

3. Quais os subgêneros que caracterizaram a prosa humanista portuguesa?

– 44 –
3
Classicismo: 1527-1580
Stélio Furlan
José Carlos Siqueira

Uma verdadeira viagem de descobrimento


não é encontrar novas terras, mas ter um
olhar novo.
Marcel Proust

3.1 A Renascença Portuguesa


Mar Portuguez
(PESSOA, 1986)
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena!
Quem quere passar além do Bojador
Literatura de países de língua portuguesa

Tem que passar além da dor.


Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

“Mar Portuguez”, poema de Fernando Pessoa publicado no livro


Mensagem (1934), evoca o espírito de conquista que marcou a época
das Grandes Navegações oceânicas. Se em um primeiro momento ques-
tiona o valor pago pela ousadia daqueles empreendimentos marítimos, na
segunda estrofe ele valida o esforço e adverte que para vencer o medo se
faz necessária a coragem de enfrentar o desconhecido, os “perigos e abis-
mos”. Ultrapassar o “Bojador” significava ir além daquele limite geográfico
(situado na costa ocidental da África) conhecido pelos navegadores euro-
peus no final período medieval.
Figura 1 – Portugaliae (Portugal) no atlas Theatrum Orbis Terrarum (Teatro
do mundo), Abraham Ortelius (1579?). Biblioteca do Congresso. Divisão
de Geografia e Mapas.

Uma das mais decisivas expedições marítimas foi a capitaneada por


Vasco da Gama, ocorrida entre 1497 e 1499 e resultando na descoberta da tão
ansiada rota marítima para as Índias. A partir desse momento até meados do
século XVI, Portugal alcançou o seu apogeu e tornou-se o “cais do mundo”.
Como veremos, Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, publicado em Lisboa
no ano de 1572, canta essa façanha que “transformou a face do mundo”
(Fernando Pessoa), e faz isso em um estilo “grandíloco e corrente”.

– 46 –
Classicismo: 1527-1580

3.2 Os gêneros clássicos


Os Lusíadas é considerado a epopeia universal da era moderna. Mas o
que se entende por epopeia? O que a diferencia da poesia lírica?
Entre as características principais da poesia lírica, afora a expressão dos
sentimentos do poeta sobre assuntos cotidianos (logo, a expressão da “pri-
meira pessoa do singular do tempo presente”), menciona-se a brevidade e o
poder de concisão.
O termo lírico deriva das origens desse tipo de poesia, antigamente
entoada ou falada com o acompanhamento de um instrumento de cordas – a
lira. Dessa associação nasceu uma de suas marcas registradas: a preocupação
com a modulação sonora do texto. Vejamos um poema lírico de Camões:
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder. (CAMÕES, 2008)

Com efeito, quando lemos os versos desse soneto a musicalidade do


texto se efetiva graças à seleção vocabular que explora os dígrafos nasalados
(am, um,em, em, in), ao uso da anáfora (repetição de versos na mesma posição
na estrofe – “é um”, “É um”) e da aliteração (repetição de consoantes: “con-
tentamento descontente”, “dor que desatina”), e enfim à identidade sonora
das últimas palavras nos versos (rimas) e a rigorosa versificação. É o que se
pode chamar de uma autêntica partitura lírica.

3.2.1 Conceito de epopeia


Embora a preocupação com a qualidade sonora dos versos e a expressão
de anseios pessoais não destoe da epopeia camoniana, vale dizer que ela se dis-
tancia da poesia lírica por ser uma longa narrativa versificada com significação
nacional e universal. O nome épico deriva do grego épos (“palavra, notícia,
oráculo”) e poiein (“fazer”). Enquanto gênero literário, toda epopeia deve ser

– 47 –
Literatura de países de língua portuguesa

uma glorificação, no mais alto estilo poético, de fato heroico e maravilhoso.


A definição proposta por Hegel (1770-1831) calha à perfeição:
A epopeia, quando narra alguma coisa, tem por objeto uma ação que,
por todas as circunstâncias que a acompanham e as condições nas
quais se realiza, apresenta inumeráveis ramificações pelas quais con-
tata com o mundo total de uma nação ou de uma época. É, portanto o
conjunto da concepção do mundo e da vida de uma nação que [...] cons-
titui o conteúdo e determina a forma do épico propriamente dito.
(HEGEL, 2004, p. 91, grifos nossos)

Então caberia perguntar: qual universalidade de Os Lusíadas? A narra-


ção de certa travessia marítima possui tal dimensão? Para além de uma sim-
ples navegação, trata-se de uma verdadeira experiência oceânica. No plano
horizontal, afora a celebração das glórias portuguesas, canta-se o início das
relações marítimas entre Ocidente e Oriente. No plano vertical, há a repre-
sentação do sistema total do universo, a engrenagem do mundo.

3.3 Épica: Os Lusíadas, um


prodígio arquitetônico
A rigor, não se pode discorrer sobre Os Lusíadas em algumas poucas pági-
nas, tal a sua complexidade estrutural, a diversidade de segmentos narrativos e de
narradores, as diferentes concepções de mundo da época, o diálogo com os textos
canônicos, a singular utilização da linguagem poética. Vamos privilegiar alguns
aspectos que consideramos relevantes para a compreensão do plano geral da obra.
O estudo da obra camoniana e dos poetas representativos do Classicismo
implica observar a emulação dos nomes consagrados da tradição, noutras
palavras, a necessária imitação dos antigos. Se na poesia lírica Camões toma
de empréstimo versos de Petrarca para recriá-los em outras variações, na épica
Camões colhe elementos das antigas epopeias. Assim como Homero cele-
brou os feitos dos gregos na Ilíada; assim como Virgílio cantou a grandeza de
Roma e sua origem na Eneida, Camões enalteceu as glórias lusitanas. Observe
as estrofes de abertura no primeiro canto de Os Lusíadas1:

1 As estrofes (ou estâncias) citadas ao longo desta aula foram da edição da Nova Fronteira,
1993, por conta da adaptação ao português contemporâneo, que sem alterar a forma poética
resultou em um texto mais fluente para o leitor moderno.

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Classicismo: 1527-1580

As armas e os barões assinalados


Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
E em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
— Cantando espalharei por toda a parte
Se a tanto me ajudar o engenho e arte. (CAMÕES, 1993, I, 1-2)

Glossário:
Ocidental praia lusitana: a cidade de Lisboa.
Taprobana: o atual Sri-Lanka, ilha no oceano Índico.
Daqueles Reis: Reis de Portugal que serão lembrados nos cantos III e IV.

O verso inaugural revela o propósito do poema épico: celebrar as con-


quistas heroicas e os nobres guerreiros assinalados ou escolhidos por Deus.
Em seguida, justifica a importância da sua escolha: celebrar os varões que
partiram do litoral português, ultrapassaram os limites do mundo conhecido
e, com bravura e coragem, dominaram e construíram o novo reino tão dese-
jado, o império português na Ásia.
Na segunda estrofe, o narrador amplia o tema: não só os bravos navega-
dores e seus feitos militares, mas também a memória, o passado dos reis por-
tugueses que ampliaram os domínios da pátria e contribuíram para a expan-
são do cristianismo, portanto merecedores de “entrar para a história”, de ter
os seus nomes imortalizados pelo trabalho poético.

– 49 –
Literatura de países de língua portuguesa

Nos dois últimos versos da segunda estrofe, o narrador faz alusão ao


“engenho” (a capacidade de criação, o pensamento) e à “arte” (o conheci-
mento das técnicas de composição, na esteira da poesia de extração clássica).
É o que se percebe logo na primeira estrofe, em oitava rima ou oitava real,
pois é formada de oito versos decassílabos, com esquema regular de rimas:
22 a primeira palavra rima com a terceira e com a quinta;
22 a segunda palavra rima com a quarta e com a sexta;
22 e as duas últimas palavras possuem a mesma identidade sonora.
Esse é o esquema abababcc. Ao longo dos dez cantos que dividem o
plano geral de Os Lusíadas, essa forma fixa de composição se repete 1.102
vezes, somando um total de 8.816 versos.

3.3.1 Partes da epopeia


Os dez cantos da epopeia camoniana são estruturados conforme as cinco
partes necessárias de uma epopeia:
22 proposição – definição do assunto;
22 invocação – súplica às divindades da poesia para que auxiliem na
criação do poema;
22 dedicatória – oferecimento da obra (no caso, em homenagem ao
Rei D. Sebastião);
22 narração – sucessão dos episódios que formam a narrativa;
22 epílogo – as considerações finais.
Já abordamos a proposição e, assim, vamos aos outros elementos.

3.3.1.1 Invocação
No caso da invocação, a exemplo de Homero que invocava Calíope,
divindade grega que dirigia a atividade poética, Camões solicita o auxílio das
Tágides, as ninfas do rio Tejo, para que elas lhe concedam entusiasmo para
que a obra resulte tão elevada quanto o assunto proposto:

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Classicismo: 1527-1580

E vós, Tágides minhas, pois criado


Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre, em verso humilde, celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.
(CAMÕES, 1993, I, 4)

Glossário:
Cerso humilde: a poesia lírica.
Sublimado: elevado.
Grandíloquo: nobre, altissonante.
Febo ou Apolo: deus do sol e da poesia.

O narrador sugere nos dois últimos versos que os feitos dos novos argo-
nautas (o navegador Vasco da Gama e seus companheiros de viagem) rivali-
zam com o dos navegadores antigos. Em outras palavras, que o poema auxi-
liado pelas Tágides será tão sublime quanto os inspirados pela lendária fonte
da Antiguidade (Hipocrene) que concedia o dom da poesia a quem bebesse
de suas águas.

3.3.1.2 Dedicatória
Na dedicatória, que ocupa 13 estrofes, o narrador se dirige a D. Sebastião,
rei de Portugal:
E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade
(CAMÕES, 1993, I, 6)

Convém notar, nesses versos da sexta estrofe, a imagem proposta para


D. Sebastião justamente como um barão assinalado: a um só tempo, segurança

– 51 –
Literatura de países de língua portuguesa

de autonomia política e esperança de difusão do Cristianismo. Note-se que


essa é uma imagem de D. Sebastião no campo da fabulação, uma imagem
romanceada, pois seis anos após a publicação de Os Lusíadas, em uma ten-
tativa de alargar a Fé e o Império, o rei desapareceu em meio a uma desas-
trada campanha militar em Alcácer Quibir, no Marrocos. Em consequência,
Portugal perdeu sua autonomia política, sendo governado pela Espanha até
1640, quando ocorreu a chamada Restauração.

3.4 Os Lusíadas: episódios


Cumpridas as primeiras etapas da epopeia, Camões solta as asas da
imaginação e brinda o leitor com uma história fabulosa. O fascínio da obra
decorre menos do relato da história nacional dos portugueses e mais do modo
como Camões articula o enredo, no qual contracenam seres humanos e deu-
ses olímpicos.
A narração da viagem começa já com as naus navegando em alto-mar,
com ventos favoráveis. Nesse momento, os deuses do Olimpo reúnem-se em
concílio para deliberarem sobre a jornada, uma vez que sobre ela não havia
consenso. A viagem despertara a admiração e o afeto de Vênus, a deusa do
amor, que identificara nos novos argonautas a mesma ousadia dos antigos
navegadores. Ao longo de toda a viagem, ela intervém a favor dos lusita-
nos, advertindo-os dos ardis de Baco, acalmando tempestades e por aí afora.
Assim, na obra se articulam dois planos:
22 o plano da história de Portugal e da viagem propriamente dita; e
22 o plano do maravilhoso, com a intriga entre deuses pagãos.

3.4.1 Velho do Restelo


Convém notar que, se em Os Lusíadas há a celebração do valor de um
povo que expande o mundo geograficamente – “No largo do mar fazendo
novas vias” (Canto V, 66), “E, se mais mundo houvera, lá chegara” (Canto
VII, 14) –, não se pode conceber esse poema como puramente laudatório das
armas e dos barões assinalados de Portugal. Ao preservar as vozes dissonantes
sobre o propósito das navegações, Camões se revela atento ao vasto rumor

– 52 –
Classicismo: 1527-1580

discursivo que o circundava. É o caso do Velho do Restelo, que, no episódio


da partida das naus (Canto IV), dá voz ao seu descontentamento de modo a
ser ouvido claramente pelo povo e pelos nautas. Leia-se:
— “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’oa aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nele exprimentas! ( CAMÕES, 1993, IV, 95)

Glossário:
C’oa: com uma.

Entre as possibilidades de leitura desse episódio, citamos em segunda


mão Afrânio Peixoto, para o qual ele seria
[...] representativo do espírito conservador português das populações
do Norte – eminentemente afeitas à terra –, em oposição a índole
aventureira e comercial das populações do Sul – de vocação para o
mar e impelidas por uma inquietação permanente [...] (BECHARA;
SPINA, 2001, p. 21)

Outros estudiosos afirmam que o Velho do Restelo foi criado para


expressar o veio crítico de Camões, dissimulando o seu ponto de vista sobre
aquela aventura lusitana.
Por certo, afora o Velho do Restelo – que com “um saber só de expe-
riências feito” (Canto IV, 94) tece uma alocução condenatória da aventura
portuguesa e à política mercantilista –, outro episódio que problematiza o
ufanismo acrítico é a história de Inês de Castro. Não se trata de uma história
só de feitos militares e marítimos, portanto, mas também de amores frustra-
dos ou não. Com os episódios da personagem histórica Inês de Castro e da
figura mitológica do gigante Adamastor, Camões canta os mártires do amor.

– 53 –
Literatura de países de língua portuguesa

3.4.2 Inês de Castro


A história de Inês de Castro é um dos temas de maior repercussão na
literatura portuguesa, do medievo aos dias atuais. Há muitas variações sobre
esse tema. Camões retoma o assunto histórico para adorná-lo com engenho
e arte.
Figura 2 – PINHEIRO, Columbardo Bordalo. Drama de Inês de Castro. 1901-
-1904. 1 óleo sobre tela: color.; 196 x 246 cm. Museu Militar de Lisboa.

Em poucas linhas, trata-se de uma paixão proibida entre o príncipe D.


Pedro e Inês de Castro, dama de companhia de sua esposa. D. Pedro mandou
construir um palácio em Coimbra, onde manteve uma ardente relação secreta
com Inês, com quem teve filhos. Após desaprovação geral, o rei Afonso IV,
pai do príncipe, ouviu o murmurar da nobreza e, persuadido por seus conse-
lheiros, “tirar ao mundo Inês determina”, o que gerou a revolta de D. Pedro.
Segundo a lenda, quando assumiu o trono após a morte de Afonso IV,
D. Pedro (agora o rei D. Pedro I de Portugal) puniu os antigos conselheiros
de seu pai, assassinos de sua amada, mandando arrancar-lhe os corações. Não
satisfeito, fez transladar de Coimbra para Lisboa o corpo de Inês e o coroou.
Essa é a história da “mísera e mesquinha”, pobre e infeliz, “Que depois
de ser morta foi Rainha”. Daí deriva a máxima popular de que “agora é tarde,
Inês é morta”.

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Classicismo: 1527-1580

Camões insere o episódio no terceiro canto. Na travessia rumo à Índia,


a armada chega a Melinde (cidade pertencente ao Quênia, na África), cujo rei
solicita a Vasco da Gama que conte a história de Portugal. Nos cantos III, IV e
V, Vasco da Gama narra a história das duas primeiras dinastias portuguesas até
o início da viagem. O episódio de Inês de Castro ocupa 17 estrofes do terceiro
canto. Inês é apresentada como vítima da inexorabilidade do Amor (Canto III).
O Amor “áspero e tirano”, cuja força escraviza os corações, é responsabi-
lizado pela morte de Inês: ele que não se satisfaz com as lágrimas dos amantes,
pois também quer o sangue dos apaixonados nos seus altares.
Mas não só: Inês é morta também por razões de Estado. Camões não
deixa de referir que o “velho pai sesudo”, D. Afonso IV, mostra-se hesitante
diante do crime – afinal, reconhecia o amor infinito de Pedro e Inês, mãe de
seus netos. Porém, ele se deixa levar pela insistência dos seus conselheiros, que
pretendiam sustentar a vontade do povo:
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à crua morte o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava, (CAMÕES, 1993, III, 124)

Glossário:
Horríficos algozes: terríveis carrascos, assassinos.
Movido a piedade: motivado pela piedade.

Então, Inês torna-se um dos narradores do poema e tenta sensibilizar


o rei e provar a sua inocência. A sua fala eloquente fez dela um dos grandes
símbolos femininos da literatura universal. Resta dizer que, ao incorporar as
vozes dissonantes, Os Lusíadas não é um texto monológico, não defende um
só ponto de vista, e assim não mascara as torpezas cometidas pelos dirigentes
da nação.

– 55 –
Literatura de países de língua portuguesa

3.4.3 Adamastor
Na sequência da narração da história de Portugal e da viagem ao rei
de Melinde, Vasco da Gama descreve a proeza da superação do “Cabo
Tormentório” e dos “vedados términos” (limites proibidos). Para que a traves-
sia de Vasco da Gama às Índias fosse bem-sucedida, era necessário ultrapassar
o cabo das Tormentas, ao sul da África. As tentativas anteriores resultaram em
naufrágio. O grande feito dos navegadores lusitanos que venceram esse mar
tenebroso foi celebrado com a figura mitológica do gigante Adamastor. É uma
das passagens de maior brilho poético.
Figura 3 – O encontro com o gigante Adamastor.

Ao chegarem ao extremo sul da África, os navegantes foram surpreen-


didos por uma gigantesca tempestade. A tormenta é personificada na figura
do Adamastor, “ficção incomparável e única em toda a literatura épica”
(BECHARA; SPINA, 2001, p.152), e um dos traços distintivos da origi-
nalidade camoniana. Em meio à tempestade, “os nautas avistam uma figura
robusta e válida [forte], de disforme e grandíssima estatura”, que os interpela,
chama-os de “gente ousada” que navega em seus “longos mares”.

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Classicismo: 1527-1580

Então Vasco da Gama, capitão da armada, vence o medo e pergunta-lhe:


“Quem és tu? Que esse estupendo/ Corpo, certo, me tem maravilhado”. Com
a “boca e os olhos negros retorcendo”, Adamastor apresenta-se e conta a sua
trágica história de amor: apaixonara-se perdidamente por Thetis, uma divin-
dade marítima que recusara o seu amor em virtude da “grandeza feia” de seu
“gesto” (rosto). Inconformado, Adamastor decide tomá-la à força, porém, é
com astúcia que Dóris, mãe da ninfa, promete-lhe um encontro com Thetis.
Então, por desejar e lutar por um amor impossível, superior à sua condição,
os deuses o punem com uma metamorfose:
Oh, que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei c’um duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando c’um penedo fronte a fronte,
Que eu pelo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo
E junto dum penedo outro penedo! (CAMÕES, 1993, V, 56)

Glossário:
Nojo: desgosto.
Fronte a fronte: frente a frente.

O episódio de Adamastor está inserido no canto V, metade da viagem


e metade do Poema. Vai da estrofe 37 a 61. Após contar a sua sina, que não
deixa de comover o leitor com o seu desvario amoroso, o gigante é elevado à
condição de profeta da decadência de Portugal, da “triste ventura, negro fado”
que pesará sobre o ilustre peito lusitano: “Naufrágios, perdições de toda sorte/
Que o menor mal de todos seja a morte” (Canto V, 44).
Em um sentido alegórico, Adamastor personifica a dureza do destino e
as infelicidades do sentimento amoroso, o desconcerto do mundo amoroso,
é outro penitente do amor. Ou ainda, simboliza os perigos do mar, as forças
da natureza. Para Ivan Teixeira, Adamastor representa não só o “limite entre
a segurança da terra e o eterno abismo do fim do mundo”, como também

– 57 –
Literatura de países de língua portuguesa

“as dimensões míticas do mar tenebroso” (TEIXEIRA, 1999, p. 186). Em


outras palavras, figura como um portal entre Oriente e Ocidente, marco
divisor de continentes.
É importante lembrar que a poesia de extração clássica possuía uma
função pedagógica, que consistia na máxima do dulce et utile: unir o útil ao
agradável e vice-versa. Nas palavras de Camões, “Agora deleitando, ora ensi-
nando” (Canto X, 84). Nesse sentido, a leitura de Os Lusíadas também ganha
interesse não só pelas críticas à “glória de mandar, a vã cobiça”, mas também
pelo modo de se pensar o mundo no século XVI, pela representação do sis-
tema total do universo então concebido. Esse momento epifânico é precedido
pelo episódio da ilha dos amores.

3.4.4 Ilha dos Amores


Após a longa jornada por mares nunca dantes navegados; após o enfren-
tamento dos perigos de terras e gentes, mares e céus e todas as ciladas armadas
por Baco; enfim, após a descoberta da rota marítima que ligasse Portugal às
Índias, e estabelecidos contatos culturais e comerciais com o Samorim, rei do
Indostão; na viagem de regresso os navegantes portugueses foram premiados
com um paraíso terrestre e com a visão da máquina do mundo, como se lê
nos cantos IX e X.
Como dissemos, é a mitologia que dá unidade ao enredo na epopeia
camoniana. Ao final do poema, Vênus reúne as nereidas (as deusas mais for-
mosas e sensuais do oceano) em uma ilha paradisíaca, um verdadeiro locus
amoenus (lugar ameno, aprazível), próprio para a plena realização amorosa.
Segue-se a satisfação da “corporal necessidade”, não sem antes haver alguma
recusa para que a conquista fosse mais deleitosa (Canto IX, 72), o que nos
permite afirmar que essa ilha divina é um espaço possível para o prazer e um
contraponto aos insucessos de Inês e Adamastor. Aliás, António José Saraiva
já havia notado uma constante em Os Lusíadas, uma característica tipica-
mente renascentista: “a palpitação afrodisíaca que vibra em todo poema”
(SARAIVA, 2001, p. 331).

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Classicismo: 1527-1580

Figura 4 – BOUGUEREAU, William-Adolphe. Ninfas e sátiro. 1873. 1 óleo


sobre tela: color.; 260 x 180 cm. Instituto de Arte Clark, Williamstown,
Massachussetts, EUA.

Ao capitão da armada coube o amor de Tétis2, a quem “Todo o coro das


ninfas obedece”. A deusa Tétis toma a mão de Vasco da Gama e o leva ao seu
palácio situado no “cume dum monte alto e divino”. E, após passarem o dia
“em doces jogos e em prazer contínuo” (Canto IX, 87), oferece a ele e aos
demais nautas um banquete. Acerca do sentido alegórico da Ilha de Vênus,
podemos compreendê-la como uma recompensa pelos “sofridos danos” (IX,
18) e pelas “lusitânicas fadigas” – enfim, um modo de festejar a “glória por
trabalhos alcançada” (IX,18). E mais. Afora a recompensa de Vênus pela via-
gem marítima no plano histórico, temos uma exaltação da navegação do espí-
rito no plano mítico e transcendental.
2 Não confundir com a ninfa Thétis, filha de Dóris e Peleu, desejada por Adamastor. Na mito-
logia grega, Tétis é filha de Gea (a Terra) e Urano (Céu). Sendo a maior dentre todas as ninfas,
segundo Camões, Tétis personifica a fecundidade feminina do mar.

– 59 –
Literatura de países de língua portuguesa

Figura 5 – A máquina do mundo.

É curioso notar que a “fermosa ilha, alegre e deleitosa”, expressão renas-


centista por excelência do erotismo triunfal e pagão, antecede à revelação
da máquina do mundo cristianizada. Após o banquete, Tétis guia o Gama
a um “erguido cume” para expor os segredos da natureza jamais vistos por
olhos humanos, nem compreendidos pela “vã ciência/ Dos errados e míseros
mortais” (X, 76). É o momento de revelação do que move o mundo, de como
então se concebia a relação da terra com o universo e os limites geopolíticos
do século XVI, outro traço que contribui para a universalidade da obra.

3.4.5 Experiência oceânica


O final de Os Lusíadas é apoteótico (Canto X, 77 e 78).
22 Primeiro, há uma representação da esfera celeste, conforme a cos-
mografia de Ptolomeu: a terra imóvel, no centro do universo, cer-
cada pelo ar e pelo fogo e por 11 orbes (esferas) onde se situam a
Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol e por aí afora.
22 Na sequência, Tétis descreve a Máquina do Mundo. É de se notar
que na construção do trasunto, da visão resumida do mundo,
Camões associa a tese de Ptolomeu à teologia medieval segundo a
qual “Deus é Causa Primeira e Final” (HANSEN, 2005, p. 188), o
autor máximo (Canto X, 79-80).

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Classicismo: 1527-1580

A revelação da “grande máquina do mundo” ao Gama é emblemática:


assim se revela o aspecto ideológico da missão náutica, uma vez que positiva
e legítima a política do reino, a sua cruzada expansionista como uma vontade
divina. E assim Camões reitera, em outra variação, o que foi proposto logo
no primeiro verso, no qual os navegantes seriam os assinalados, sagrados e
consagrados para executar os desígnios de Deus.

3.5 Conclusão sobre Os Lusíadas


Resta perguntar: Os Lusíadas seria uma epopeia clássica? A rigor, se há
elementos favoráveis a essa tese, o mesmo se pode dizer do contrário. A come-
çar pela presença do Poeta em seu poema – e vale notar que isso problematiza
as regras da epopeia teorizadas por Aristóteles (384-322 a.C.).
Na sua Poética – o primeiro tratado sistemático sobre o discurso literário
escrito no Ocidente –, Aristóteles define a epopeia como imitação narrativa
metrificada: o relato em verso de uma história conduzido por um narrador.
Além disso, a epopeia deve girar em torno de uma ação inteira e completa,
com princípio, meio e fim, e tomar a aristocracia ou ações sérias como o
objeto a ser representado. Tudo isso se aplica ao poema épico de Camões.
No entanto, Aristóteles pontifica que o poeta épico “deve dialogar com
o leitor o menos possível, pois não é procedendo assim que ele é imitador”
(ARISTÓTELES, 2008), o que não ocorre em Os Lusíadas, pois, como escreve
Jorge de Sena, a obra camoniana é uma longa e constante e repetida exposição
das suas opiniões pessoais, a que nem a impessoalidade do poema épico foi
capaz de pôr eficazmente um freio. Na mesma linha, Helder Macedo observa
que Camões intervém na sua narrativa por meio de recorrentes comentários
que servem para caracterizar todos os outros narradores como ficção dramá-
tica de sua própria voz, ou para colocar o sentido global do poema na pers-
pectiva crítica do seu presente. O epílogo da epopeia é significativo:
Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho

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Literatura de países de língua portuguesa

Não no dá a pátria, não, que está metida


No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.
(CAMÕES, 1993)

Glossário:
Destemperada: desafinada.
Favor: aplauso.
Gosto: prazer.
Austera, apagada e vil tristeza: tristeza sombria.

É de se notar o desalento do poeta e como expõe o seu veio crítico. Afora


a justaposição das cosmovisões cristã e ptolomaica, o que mais instiga é o fato
de que após o momento apoteótico, a voz do narrador, identificada com a do
poeta, inclina-se para um comentário de feições antiépicas.
Nesse sentido, não é possível classificar Os Lusíadas como epopeia intei-
ramente elaborada nos moldes clássicos.
Enfim, nada mais oportuno que concluir essa tentativa de esboço sobre
o texto camoniano com as sábias palavras de Cleonice Berardinelli: “Os
Lusíadas são a epopeia dos novos tempos, tempos contraditórios. Alimentado
de tais contradições, o poema adquire modernidade e se afirma como a única
epopeia representativa do Renascimento europeu.” (BERARDINELLI,
2000, p. 55).

3.6 A lírica camoniana


Considerado o príncipe dos poetas pelos seus contemporâneos,
Camões não é menos conhecido por sua poesia lírica, publicada em pri-
meira mão em Rhythmas (Rimes), livro póstumo organizado por Fernão
Rodrigues Lobo a partir da recolha de vários manuscritos e publicado por
Estevão Lopes em 1595.

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Classicismo: 1527-1580

Figura 6 – Luís Vaz de Camões. Figura 7 – Folha de rosto da


primeira edição de Rhythmas.

A primeira edição de Rhythmas foi dividida em cinco partes:


22 65 sonetos;
22 10 canções, 1 sextina e 5 odes;
22 4 elegias e 3 oitavas;
22 8 éclogas; e
22 78 composições em redondilhas (versos de cinco ou sete sílabas
poéticas), bem ao gosto popular.
Interessa destacar que em Rhythmas se encontram textos representati-
vos do Classicismo, seja na rigidez das normas de composição, conforme
os padrões consagrados pela tradição (soneto, écloga, elegia, ode etc.), seja
na predileção pela medida nova (os versos decassílabos), seja no campo
semântico (conteúdo) dessas composições, com várias alusões mitológicas,
consciência da brevidade da vida, concepção neoplatônica de amor ou o
seu questionamento.

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Literatura de países de língua portuguesa

3.7 Os sonetos de Camões


Selecionamos para a análise dois sonetos de Camões.
Eu cantarei de amor tão docemente
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.
(CAMÕES, 2008)

Glossário:
Concertados: harmoniosos.
Acidentes namorados: ocorrências amorosas.
Avivente: anime.
Temerosa: tímida; pena: saudade.
Desprezo honesto: orgulho da sua linhagem, altivez.
A menor parte: um pequeno defeito, ou o “desprezo honesto”.
Pera: para; gesto: rosto.
Falta saber, engenho e arte: falta conhecimento dos preceitos,
talento ou inspiração e a técnica poética.

Ao longo desse soneto, escrito conforme a tradição italiana, consta-


ta-se uma celebração do amor e da singularidade da mulher. Note-se que
o amor é apresentado de maneira contraditória, feito de “brandas iras” e

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Classicismo: 1527-1580

“temerosa ousadia”, embora capaz de despertar os que não vivenciaram esse


complexo sentimento.
No que diz respeito à figuração do feminino, Camões se refere a uma
Senhora, dona de um olhar a um só tempo brando e rigoroso, o que pode
sugerir tanto a sua condição social quanto o distanciamento dela em relação
ao sujeito poético.
É curioso notar que, tentando descrever o gesto, a expressão facial da
Senhora, a composição alta e prodigiosa do rosto, o poeta afirma modesta-
mente não ser possuidor de “engenho e arte”, o que também não deixa de
ser contraditório, pois o soneto é esteticamente perfeito. O nosso interesse se
concentra na chave de ouro com que se arremata o poema. A fatura metapoé-
tica se caracteriza no verso “Aqui falta saber, engenho e arte”.
22 Saber: na Carta XII, de António Ferreira, recomendava-se o Saber
como princípio fundamental – “Do bom escrever, saber primeiro é
fonte”, ou “Quem não sabe do ofício não o trata”, pois se conside-
rava inadmissível a mediocridade ou a autossuficiência.
22 Engenho e arte: o engenho remete à capacidade de concepção, à
inspiração que deve ser disciplinada pelas regras da arte. Lembre-se
que, entre os preceitos da ars poética clássica, é possível mencionar
a adequação do tema ao estilo, a lapidação do verso, o chamado
limae labor (trabalho da lima), que pode ser constatado na sele-
ção vocabular, na elaboração de 14 versos decassílabos, no esquema
regular de rimas e de estrofação, o que torna o trabalho do poeta
similar ao de um ourives, como um joalheiro a lapidar um dia-
mante. Vale mencionar que, juntamente com Bocage, Antero de
Quental e Florbela Espanca, Camões é um dos principais represen-
tantes, dessa ourivesaria do verbo em Portugal.
Observe:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Eu ∕ can ∕ ta∕ rei ∕ de a ∕ mor ∕ tão ∕ do ∕ ce ∕ men ∕ te
O verso decassílabo é composto de dez sílabas métricas ou poéticas.
Conta-se até a última sílaba tônica. É chamado de decassílabo heroico quando
acentuado na sexta e na décima sílaba poética, caso do verso supracitado.

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Literatura de países de língua portuguesa

Quanto à adequação do tema ao estilo, da linguagem ao assunto, note-se


a valorização do padrão culto da língua – verdadeira bandeira dos clássicos.
A demanda pela afirmação do idioma português corria paralela a da afirmação
da nacionalidade. No século XVI, verificou-se em Portugal não só a completa
unificação territorial, a centralização do poder nas mãos do rei, a unificação
dos pesos e medidas, mas também o desenvolvimento do idioma. Já não se
trata mais do português arcaico, misto de galego e português, uma vez que os
poemas de Camões atestam a fixação do português erudito e moderno.
Enfim, se uma das condições de possibilidade da poesia clássica era
a imitação dos antigos, vale dizer que Camões cede ao gosto do tempo ao
“imitar” um soneto de Petrarca, “Io canterei d`amor si novamente”. A acei-
tação dos modelos canônicos desafiava o poeta a tentar superá-los: não se
tratava de plágio, mas de emulação, isto é, a tentativa de se igualar ao modelo
ou então superá-lo.
E o mesmo se pode dizer do soneto “Transforma-se o amador na cousa
amada”, cujo mote também foi tomado de empréstimo a Petrarca, “L’amante
nell’amato si trasforma”. Leia:
Transforma-se o amador na coisa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim como a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
O vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma. (CAMÕES, 2008)

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Classicismo: 1527-1580

Trata-se de um dos mais antológicos e perfeitos sonetos clássicos de


Camões e nele se cultua o limae labor, o que se constata na tessitura dos
decassílabos heroicos, com esquema regular de rimas (abba abba cde cde).

3.8 Amor com engenho e arte


Para Antonio Candido, o soneto é um instrumento expressivo italiano
(ou fixado e explorado pelos italianos). Por sua estrutura, ele é apto a exprimir
uma dialética, isto é, uma forma ordenada e progressiva de argumentação.
Candido nota certa analogia entre a marcha do soneto e a de certo tipo de
raciocínio lógico: uma proposição ou uma série de proposições e uma con-
clusão (CANDIDO, s.d., p. 20). A definição se aplica ao texto de Camões?
Por certo, o soneto “Transforma-se o amador na coisa amada” desen-
volve uma linha de raciocínio contrastando dois conceitos sobre o Amor:
como ideia e como forma. Nos quartetos, identifica-se a união do amante
com a amada por meio do imaginar (“evocação, pensamento”). Daí decorre a
despersonalização do sujeito poético, cuja identificação é tão intensa que ele
termina por se fundir espiritualmente à pessoa desejada. Aqui, emerge uma
concepção de Amor enquanto ideia, ou representação de um ideal superior,
imaterial – ao que se convencionou chamar neoplatonismo. Segundo José de
Nicola, Camões retoma a filosofia de Platão:
Platão concebia dois mundos: o mundo sensível, em que habitamos,
e o mundo inteligível, das ideias puras. Neste, encontramos as divinas
essências, as verdades: Deus, o Belo, o Bom, a Sabedoria, o Amor,
a Justiça etc. No mundo sensível, as realidades concretas são sim-
ples sombras ou reflexos das ideias puras. As almas, que são imor-
tais, habitam o mundo inteligível; quando as almas caem da esfera
inteligível para a sensível, conservam uma recordação que podem
avivar por meio da reminiscência. Há, dessa forma, uma constante
busca do ideal, que não é mais uma tentativa de ascensão do mundo
sensível (das realidades concretas, meras imitações particulares) ao
mundo inteligível (da essência, a verdade universal). No mundo sen-
sível temos, por exemplo, amores particulares; no mundo inteligível,
temos o Amor (a maiúscula indica sempre a essência, a ideia) ou
melhor, o Amor platônico. (NICOLA, 1990, p. 64)

– 67 –
Literatura de países de língua portuguesa

Contudo, se ao poeta do Classicismo se exige a imitação dos antigos,


não é menos certo dizer que ele deva acrescentar engenho e arte com vistas
à emulação. Deve ter a capacidade de suplementar o dado. Assim, como se
pode ler nos tercertos finais do soneto em questão, Camões acrescenta um
toque pessoal ao questionar a concepção do amor neoplatônico tomada de
empréstimo a Petrarca. Ele argumenta que, para ser pleno, o amor, não pode
invalidar o contato físico – o que o distancia de Platão, que desqualificava
o sensorial como imperfeição, mero reflexo deformado do amor ideal, das
ideias puras.
Para Camões, o amor também deve ser “vivo”, ou vivido, não ape-
nas intelectualizado. É a matéria que busca a forma, o amador que busca a
corporeidade da amada. Nessa busca, há uma afirmação do conhecimento
do amor como derivado da experiência. É o que se lê, de outro modo, no
famoso episódio da ilha dos amores, no canto IX de Os Lusíadas, pois, acerca
do amor, “Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo, / Mas julgue-o quem não
pode exprimentá-lo.”
Nesse sentido, caberia perguntar se, ao colocar a impossibilidade de um
amor pleno sem correspondência corporal, Camões não sugeriria uma visão de
mundo marcada pela afirmação das potencialidades humanas, com dominân-
cia cultural antropocêntrica. No Renascimento, o ser humano acreditou ser
capaz de romper os limites até então aceitos, a partir das Grandes Navegações
tomou consciência da geografia do planeta, graças ao aperfeiçoamento do
telescópio por Galileu começou a ver o universo com outros olhos, descobriu
a circulação sanguínea observando mais atentamente o próprio corpo etc.

Dicas de estudo
22 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas: episódios. Apresentação e
notas de Ivan Teixeira. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999. Edição
com os principais episódios do grande poema de Camões e um
estudo que auxilia sua compreensão e apreciação. Essa obra foi
concebida como introdução ao poema.
22 BECHARA, Evanildo; SEGISMUNDO, Spina. Os Lusíadas:
antologia. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. Antologia sobre
Os Lusíadas.

– 68 –
Classicismo: 1527-1580

Atividades
1. Você considera que o tema de Os Lusíadas é apropriado para uma
epopeia? Por quê?

2. O poema épico Os Lusíadas foi considerado um verdadeiro prodí-


gio arquitetônico. Quanto ao aspecto formal, há elementos da poesia
clássica? Justifique.

3. A invocação às divindades inspiradoras da atividade poética é uma


das partes da epopeia camoniana. Identifique-a e cite as outras partes
da epopeia de Luís Vaz de Camões.

4. Comente sobre o que é a Ilha dos Amores e qual seu sentido alegórico.

– 69 –
4
Barroco: 1580-1756
Stélio Furlan

Onde queres descanso sou desejo


E onde sou só desejo queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto eu sou o chão
E onde pisas o chão minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão.
Caetano Veloso

4.1 Pode-se falar em Barroco?


O que pode haver em comum entre os sermões do padre
António Vieira; certos poemas de D. Francisco Manuel de Melo,
sóror Violante do Céu, Gregório de Matos; as cartas de amor de
Mariana Alcoforado; o traçado arquitetônico de certas igrejas em
Salvador (Bahia) e em Porto (Portugal); os quadros de Vermeer,
Caravaggio, Rubens, Velázquez, Rembrandt e as composições musi-
cais de Albignoni, Vivaldi e Bach?
Talvez se possa encontrar uma resposta no que se convencio-
nou chamar Barroco.
Literatura de países de língua portuguesa

O controverso termo barroco foi definido no século XIX por Heinrich


Wölfflin para designar o complexo artístico do seiscentismo. Termo contro-
verso, pois não facilmente definível em virtude dos vários campos nos quais
foi utilizado, e das diversas acepções que foram atribuídas à palavra. Trata-se
de um fenômeno europeu, disseminado para os continentes americano e asiá-
tico, ele rubrica as manifestações artísticas entre 1600-1700:
22 na Espanha, o Barroco foi nomeado de Gongorismo, em virtude da
poesia praticada por Luís de Gôngora y Argote (1561-1627);
22 na Itália, foi batizado de Marinismo, derivado de Giambatista
Marini (1529-1625);
22 na Inglaterra, foi chamado de Eufuísmo, derivado do título do
romance Eufues, or the anatomy of wit, do escritor John Lyly
(1554-1606);
22 na França, pelo culto exagerado da forma, recebeu o nome
de Preciosismo;
22 na Alemanha, de Silesianismo, pois definia o estilo de escritores da
região da Silésia.
Oriunda do vocábulo espanhol barrueco, vindo do português arcaico, o
termo Barroco era conhecido pelos joalheiros desde o século XVI e significava
uma pérola de formação defeituosa, “tosca e desigual, que nem é comprida,
nem redonda” ou “aljôfares mal afeiçoados e não redondos” (HATZFELD,
2002, p. 288).
Por conta do rebuscamento da perfeição formal, para alguns estudiosos
a arte barroca representaria uma continuidade da arte poética clássica, com a
ressalva de que se trataria de um classicismo imperfeito.
Se há quem veja o Barroco de modo pejorativo, como uma arte bizarra
cuja essência seria a irregularidade, a exasperação, o exagero (características
opostas à sobriedade e à disciplina clássicas), a contrapelo disso há os que
preferem compreendê-lo como uma arte sofisticada, rebuscada, refinada. Em
uma palavra, marcada pela apoteose da agudeza, enquanto engenhosa análise
racional do mundo, e capaz de promover o hábito da interiorização e da
meditação moral.

– 72 –
Barroco: 1580-1756

Nesse sentido, em virtude de apelar para o abuso do ornamento, a pro-


fusão de imagens, supervalorizando o choque de ideias e os labirintos verbais,
com o intuito de aguçar o prazer do intelecto, o Barroco foi considerado um
movimento artístistico sui generis e não simples continuidade do Classicismo.
Para ampliar ainda mais o debate, há os que preferem compreender o
Barroco menos como um período artístico datado e mais como uma constante
universal na arte, expressiva dos períodos marcados por graves conflitos espiri-
tuais na esteira de Heinrich Wölfflin. A favor dessa tese, há discussões teóricas
que associam o chamado pós-modernismo de meados do século XX como uma
nova roupagem do Barroco. Omar Calabrese, no seu estudo intitulado A Idade
Neobarroca, destaca elementos barrocos, entre eles o labirinto e a circularidade,
como atributos do ar do tempo contemporâneo. Omar Calabrese ressalta, que
em um texto intitulado A Arquitetura Moderna, Gilo Dorfles utiliza o termo
neobarroco para identificar na contemporaneidade o abandono (ou queda) de
todas as características de ordem e de simetria, vislumbrando a ascensão do
desarmônico e assimétrico (CALABRESE, 1987, p. 28).
Por fim, também se pensou o Barroco como uma mentalidade ou um
estilo de vida. Assim, o Barroco foi conhecido como o “estilo da contrar-
reforma”, uma vez que possuía uma função didática cujo objetivo seria o
enaltecer a fé católica. Como desdobramento lógico, a arte barroca seria exu-
berante e suntuosa para melhor exaltar a glória de Deus. Ou ainda, de modo
mais amplo, a arte barroca se destinaria a conciliar as novidades renascentistas
com a tradição religiosa medieval. Nas palavras de Afrânio Coutinho, a meta
seria reencontrar o fio perdido da tradição cristã, procurando exprimi-la sob
moldes intelectuais e artísticos.
Essa proliferação de conceitos sobre o Barroco sugere a impossibilidade
de se encontrar um denominador comum para a sua definição. Contudo,
acreditamos que na tentativa de fusão ou aproximação dos contrários se pode
identificar uma característica por excelência da arte barroca.
No campo das ideias, isso se manifesta na tensão entre religiosidade e
paganismo, no contraste de elementos como o corpo e o espírito, o terreno
e o celestial. No campo pictórico, isso se exibe na exploração do contraste
de luz e treva. Na música, a tensão dos contrários se define pelo contraponto,
termo derivado do latim punctos contra puntum (“nota contra nota”).

– 73 –
Literatura de países de língua portuguesa

E na literatura? Conforme René Wellek, em um dos mais conhecidos


estudos críticos sobre o período, a literatura barroca distinguir-se-ia, quanto
ao estilo, pela abundância de ornatos, pela elaboração formal. Além disso,
ela seria identificada pelo estilo trabalhado, ornado, ricamente entretecido de
figuras, das quais as preferidas seriam a antítese, o oximoro, o paradoxo e a
hipérbole. E o autor completa: seria uma literatura dominada pelo senso do
decorativo e resultado de um deliberado emprego da técnica para a obtenção
de efeitos específicos.
É de se notar que as figuras destacadas por René Wellek apontam ou
para a tensão entre opostos – a antítese (contraposição de palavras de significa-
ção contrária, evidenciando o contraste entre duas ideias), o paradoxo (o que
é contrário à opinião dos demais) e o oxímoro (aproximação de termos que
mutuamente se excluem, em uma intensificação do processo da antítese) – ou
para o gosto pelo excesso, para a amplificação crescente de um determinado
objeto, sentimento ou ideia (hipérbole).

4.2 Poesia barroca portuguesa


Testemos a proposição de René Wellek em dois dos mais antológicos
poemas do seiscentismo português, sendo o primeiro de D. Francisco Manuel
de Melo e o segundo, de sóror Violante do Céu. Vamos ao primeiro:
Lamentando o infeliz casamento de a dama
Rubi, cujo valor não conhecido
Foi, do vil lapidário a quem foi dado;
Diamante que, quando mais guardado,
Dentre as mãos de seu dono foi perdido;
Zafiro singular, que foi vendido
A quem em ferro o tem mal engastado;
Aver que, por se haver em vão achado,
Em pastas de carvão foi convertido;
Pérola sem igual, pouco estimada
Do bárbaro boçal, índio inorante
Por quem acaso do mar foi levada,
Sois na fortuna, mas dessemelhante

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Barroco: 1580-1756

No valor, se ante vós não valem nada


Záfir, pérola, aver, rubi, diamante.
(MELO, 2008)

Glossário:
Lapidário: ourives, joalheiro.
Zafiro: safira.
Engastado: embutido, incrustado.
Aver: riqueza, bens.

Melodino, pseudônimo de D. Francisco Figura 1 – Capa de


Manuel de Melo (1608-1666), é um dos mais A Fênix Renascida.
conceituados poetas barrocos portugueses, ao
lado de António Barbosa Bacelar (1610-1663),
Jerónimo Baía (1623-1688), Francisco Rodrigues
Lobo (1573-1621) e sóror Violante do Céu
(1602-1693). Parte considerável da poesia bar-
roca encontra-se em duas coletâneas publicadas
no século XVIII: A Fênix Renascida, composta de
cinco volumes, publicados entre 1715 e 1728; e
o Postilhão de Apolo, em dois volumes publicados
em 1761 e 1762.
Já a produção poética de D. Francisco
Manuel de Melo foi reunida pelo autor nas Obras
Métricas, publicadas em 1665. Segundo Segismundo Spina, “Lamentando o
infeliz casamento de a dama” é um dos sonetos de D. Francisco que se “refe-
rem à formosa D. Branca da Silveira, que aos 25 anos se casa com o tio D.
Gregório Taumaturgo, corcunda e de tratos grosseiros, intitulado Conde de
Vila Nova de Portimão” (SPINA, s.d., p. 232). Evidenciada no título, a ideia
nuclear desse soneto ganha visibilidade por meio da exposição de ideias opos-
tas que traduzem o desalento do sujeito poético diante do casamento de sua
amada. Assim, todas as estrofes se iniciam com termos que remetem a ideia
de riqueza para em seguida afirmar, por contraste, a sua desvalorização. Logo,
a comparação antitética – isto é, feita por antíteses – é o princípio construtivo
que rege todo o poema.

– 75 –
Literatura de países de língua portuguesa

Note-se a comparação do esposo com o abjeto ourives que desperdiça


uma safira por deixá-la mal incrustada em um metal que não é precioso.
Também se compara a ignorância do esposo, que não percebeu as virtudes
da mulher, com a dos incultos (boçal, ignorante). Em suma, a mulher nos é
sugerida como pedra preciosa ignorada ou possuída pelos que desconhecem
o seu valor.
Entre as constantes formais da poesia barroca presentes no soneto, afora
a valoração da antítese, destaca-se a construção das estrofes pelo processo cha-
mado de disseminação e recolha: o último verso reúne todas as pedras preciosas
disseminadas ao longo do poema.
No soneto “Lamentando o infeliz casamento de a dama” se percebe,
de imediato, o distanciamento da linguagem cotidiana e o estilo traba-
lhado. O rebuscamento excessivo se destina a enfeitar um tema prosaico
(senso do decorativo).
A primazia da linguagem muito rebuscada, que indica um conceito
aristocrático de poesia destinada a receptores cultos, remete à definição de
Hernani Cidade que tipifica o barroco pela sobrecarga de elementos orna-
mentais cuja acumulação sacrifica a clareza da ideia.
Força é dizer que a suntuosidade verbal do soneto, que torna o estilo
dificultoso, segue na esteira do Cultismo ou Gongorismo, derivação das teori-
zações e poemas do poeta espanhol Luís de Gôngora (1561-1627), cujo estilo
rubricou uma das várias designações do Barroco. Tal estilo se caracteriza pelo
artifício de forma, pelo excesso na decoração verbal, pelos jogos de palavras.
Vale notar o verso “aver que, por se haver em vão achado,” no qual o poeta
brinca com as palavras Aver, substantivo que se refere à riqueza, e haver, verbo
que significa “ter”. Daí a tendência à alusão, pois, em vez de se retratar o
real de modo direto, prefere-se realçar a própria ornamentação estilística, a
maneira de representar mais que o apresentado.
Se toda imagem é uma narrativa, como quer Roland Barthes, a foto-
grafia da igreja de Santa Clara, na cidade do Porto, em Portugual, permite-
-nos identificar um princípio construtivo comum em relação ao poema de D.
Francisco de Melo. Como vimos, no soneto impera a linguagem pomposa,
o refinamento verbal, a ornamentação estilística. E o mesmo se pode dizer

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Barroco: 1580-1756

do estilo arquitetônico da igreja de Santa Clara, que igualmente revela traços


barrocos, pois maravilha o espectador com um verdadeiro frenesi cromático,
obtido mediante o rebuscado da decoração, a abundância de ornamentos, a
proliferação dos detalhes, o exagero de relevos, o contraste de coloridos.
Figura 2 – Interior da igreja de Santa Clara, Porto.

Como dissemos, se há uma constelação de conceitos sobre o Barroco,


não é menos certo afirmar que um dos seus aspectos mais significativos, no
que diz respeito à estrutura interna, passa pela exploração dos elementos con-
trapostos. Nas palavras de Helmut Hatzfeld, “achamos hoje, como essên-
cia do Barroco, não a tensão entre contrastes, mas sim a destes contrastes”
(HATZFELD, 2002, p. 35).
Com efeito, no campo das ideias isso se lê no conflito de elementos
como amor e sofrimento, mérito e sorte, choro e riso, alto e baixo, luz e
treva, céu e terra, vida e morte e por aí afora. Observe agora o soneto de sóror
Violante do Céu:

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Literatura de países de língua portuguesa

Se apartada do corpo a doce vida,


Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte,
Se ausente da alma estou que me dá vida?
Não quero sem Silvano já ter vida,
Pois tudo sem Silvano é viva morte;
Já que se foi Silvano, venha a morte,
Perca-me por Silvano a minha vida.
Ah! Suspirando ausente, se esta morte
Não te obriga querer vir dar-me vida,
Como não ma vem dar a mesma morte?
Mas se na alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.
(VIOLANTE DO CÉU, 2008)

Ao longo das três primeiras estrofes, o sujeito poético feminino reitera


que viver sem o amado é o mesmo que estar morta. Então, no terceto que
fecha o poema, argumenta que, embora tenha clamado pela morte, a morte
não acontece para que ela (o eu lírico feminino) viva a sensação de estar morta
em vida. Estilo dificultoso, retorcido, que problematiza a clareza da ideia, por
certo, mas que não deixa de encantar o leitor com o virtuosismo artesanal.
Note-se a persistência da perfeição formal que se exibe na rigorosa versi-
ficação e estrofação regulares típicas do Classicismo. Porém, a valorização da
“tensão dramática interna, a crise, a inquietude” (HATZFELD, 2002, p. 34),
o choque entre o místico e o sensual, a tensão entre vida e morte reiterada nas
palavras finais do soneto, evocam uma constante barroca, o que nos permite
lê-la como “arte do conflito”.
E mais: o gosto pela exploração dos contrastes também se identifica no
jogo do chiaroscuro. Trata-se de um elemento artístico, derivado de uma pala-
vra italiana que significa claro-escuro e cujo processo compositivo se define
pelo contraste entre luz e sombra. Aliás, é um princípio construtivo utilizado
por renomados pintores considerados “barrocos”.
Observe o óleo sobre tela do pintor holandês Vermeer (1632-1675) inti-
tulado Moça com Brinco de Pérola (1665). A imagem nos permite estabelecer

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Barroco: 1580-1756

conexões com o Barroco pelo primado da cor, da profundidade, da claridade


relativa. Em outras palavras, por valorizar o volume tridimensional do objeto
sugerido pelo contraste de luzes e sombras.
Figura 3 – VERMEER, Johannes. Moça do brinco de pérola. C. 1665. 1 óleo
sobre tela: color.; 44,5 X 39. Mauritshuis, Haia.

4.3 Prosa barroca portuguesa


O princípio construtivo do chiaroscuro não é estranho à prosa barroca, tal
como se constata em um fragmento textual colhido no Sermão da Sexagésima
(1655), do padre António Vieira (1608-1697):

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Literatura de países de língua portuguesa

Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o


sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está “branco”, da outra
há de estar “negro”; se de uma parte está “dia”, da outra há de estar
“noite”; se de uma parte dizem “luz”, da outra hão de dizer “sombra”;
se de uma parte dizem “desceu”, da outra hão de dizer “subiu”. Basta
que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão
de estar sempre em fronteira com o seu contrário?
Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras.
Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito
distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação; muito
distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo
baixo; as estrelas são muito distintas, e muito claras, e altíssimas.
O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam
os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender nele os
que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para a sua lavoura
e o mareante para sua navegação e o matemático para as observações
e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não
sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que
tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há.
Tal pode ser o sermão: estrelas que todos as veem, e muito poucos as
medem. (VIEIRA, 2008)

Considerado o “imperador da língua portuguesa” por Fernando Pessoa,


o luso-brasileiro António Vieira é por certo um mestre da oratória sacra.
O padre Vieira eleva a prosa ao nível de perfeição estética antes atingida pela
poesia épica e lírica de Camões.
Divido em dez partes, o Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real,
em Lisboa, em 1665, teoriza sobre as normas e os preceitos da chamada pare-
nética, ou eloquência sagrada. O sermão deve começar pelo exórdio ou introito,
com a antecipação e definição do tema. A seguir, deve-se fazer o desenvolvi-
mento do mesmo, com a defesa de uma ideia com base em uma argumentação,
tendo em vista a peroração ou epílogo, a parte final que, a partir das conclusões
alcançadas, seria destinada a convencer e persuadir o ouvinte à ação.
De modo bastante sintético, o tema do Sermão da Sexagésima surge de
uma conhecida passagem bíblica: Semen est verbum dei, a semente é a palavra
de Deus (Lc 8:11). Em seguida, evocando a parábola do semeador, indaga
por que não frutifica a palavra de Deus no seu tempo. Após explorar vários

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Barroco: 1580-1756

motivos, ora recorrendo à Bíblia, ora fundamentando os seus argumentos nos


mestres da oratória sacra (São João Crisóstomo, São Jerônimo, São Bernardo,
entre outros), ora justificando-os por meio de comparações, metáforas e pará-
bolas, conclui que o problema se encontra no próprio pregador, no seu estilo
“dificultoso”. Leia-se:
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo
tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um
estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é
também esta.
O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo compa-
rou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo
o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de
natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se
faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmética
tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear
não é assim. É uma arte sem arte; caia onde cair.
Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. Caía o trigo nos
espinhos e nascia: Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae.
Caía o trigo nas pedras e nascia: Aliud cecidit super petram, et natum.
Caía o trigo na terra boa e nascia: Aliud cecidit in terram bonam, et
natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo.
Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas hão de nascer; tão natu-
rais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que dife-
rente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa? (VIEIRA, 2008)

Ao discorrer sobre os elementos indispensáveis à prática da oratória


sacra, Vieira tece uma crítica aos procedimentos gongóricos ou cultistas, por
ele considerado “empeçado” (dificultoso, complicado).
Como vimos, o cultismo privilegiava a forma, o ornamental. Valorizava
a linguagem erudita, rebuscada. Cultuava o pormenor mediante os jogos
de palavras.
A contrapelo do cultismo, Vieira prefere o conceptismo, outra vertente
da literatura barroca. Também chamada de conceitismo ou quevedismo, em
homenagem ao seu maior representante, o espanhol Quevedo (1580-1645),
essa vertente privilegia o conteúdo e persegue conclusões mediante o relacio-
namento de conceitos e o desenvolvimento de raciocínios.

– 81 –
Literatura de países de língua portuguesa

A rigor, contra as usuais definições dos manuais literários, não pensamos


essas duas correntes como opostas, uma vez que em ambas identificamos a
procura de certo aperfeiçoamento estético, embora se façam valer de diferen-
tes meios para esse fim. As duas correntes podem até mesmo contribuir para
a elaboração de um mesmo texto. Caso do Sermão da Sexagésima.
Segundo o padre António Viera, o sermão devia resultar de um rigoroso
trabalho de estruturação do texto, concebido como instrumento para con-
vencer e converter o interlocutor ou ouvinte. Isso remete ao ideal retórico
de “arte de bem dizer para persuadir”. É o que se convencionou chamar de
discurso engenhoso. Para tanto, se fazia necessária a coerência interna e a clareza
de ideias. Como escreve: “O estilo há de ser muito fácil e muito natural”.
Contudo, se Vieira ataca o cultismo (gongorismo), não é menos certo
dizer que se faz valer dos procedimentos que condena. Mas não há contra-
dição nisso, pois ele concebe o sermão não como “arte pela arte”, mas como
motivo de reflexão existencial e religiosa, nas palavras de São Bernardo, “para
atingir o coração das pessoas”. No ensaio crítico sobre o discurso engenhoso
barroco, Antonio Saraiva afirma que:
O interesse de Vieira como escritor decorre do fato de ter praticado
com virtuosidade incomparável a arte da palavra no estilo “concep-
tista” – como denominam os manuais de literatura – e de o ter feito
com objetivos práticos, porque para ele a palavra deveria ser instru-
mento de ação”. (SARAIVA, 1980, p. 113)

Por certo, se Vieira não descarta o uso de ornatos nos seus sermões e o
faz com maestria. Quanto ao ludismo verbal ou jogo de palavras típico do
Cultismo, leia-se:
As palavras que tomei por tema o dizem: Semen est verbum Dei.
Sabeis, cristãos, a causa porque se faz hoje tão pouco fruto com tantas
pregações? E porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não
são palavras de Deus [...]. Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de
hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras?
Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam pala-
vras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus...” (VIEIRA, 2008)

Mais de uma vez nos deparamos com construções paralelas, simétricas,


que desdobram, segundo Jacinto do Prado Coelho, “com virtuosismo os

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Barroco: 1580-1756

elementos dum contraste”. Daí o seu valor literário. Para Coelho, o concep-
tismo é uma tendência, “característica da literatura barroca, para os jogos de
conceitos, prova de engenho subtil, não menos estimada em poesia do que
em prosa. [...] Embora cultismo e conceptismo estejam intimamente uni-
dos, frutos como são da mentalidade barroca, há autores predominantemente
conceptistas e de clara expressão – clássica, em certo sentido: é o caso do
Padre António Vieira. Todavia, o pensar por simetrias e contrastes determina,
no plano formal, paralelismos e antíteses; e Vieira é medularmente barroco
pela vigorosa exuberância e pelo dinamismo interior que leva a criar artifi-
cialmente dificuldades lógicas para depois, com surpreendente agudeza, as
resolver” (COELHO, 2008). O uso dos contrastes pode ser constatado no
seguinte fragmento do Sermão da Sexagésima:
Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade
de discursos, mas esses hão-de nascer todos da mesma matéria e con-
tinuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede.
Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas,
tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes for-
tes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um
tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste
tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas
nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de
ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser
vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são
a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por
remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de
ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver
flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas
tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se
tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é
sermão, são maravalhas [gravetos]. Se tudo são folhas, não é sermão,
são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores,
não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque
não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos cha-
mar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso
das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos
ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não
levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare
semen. Eis aqui como hão de ser os sermões, eis aqui como não são.
E assim não é muito que se não faça fruto com eles. (VIEIRA, 2008)

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Literatura de países de língua portuguesa

Figura 4 – Interior da igreja do Convento de São Francisco, em Salvador,


Bahia. Talha de 1729-1748.

Como estratégia discursiva, para que o sermão pudesse ser compreen-


dido pelos “que não sabem e tão alto que tenham muito que entender nele os
que sabem”, Vieira apela para uma metáfora endereçada à visão dos ouvintes/
leitores. Ele compara a estrutura do sermão à de uma árvore: se enumeram
elementos numa certa ordem (troncos, ramos, folhas, varas, flores, frutos)
para depois invertê-los. Esse jogo de construção feito de simetrias e inversões
é típico da textualidade barroca, o que nos leva a corroborar a tese de Hatzfeld
sobre a existência de formas espirais no estilo literário barroco.
Em um viés relacional, pelo seu discurso circular, labiríntico, retorcido,
tal fragmento nos remete ao estilo das colunas com ornatos espiralados (volu-
tas) das colunas da igreja barroca do Convento de São Francisco.

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Barroco: 1580-1756

Mais de um crítico se deixou fascinar pelo discurso engenhoso do padre


António Vieira, pela sua agudeza ou a capacidade de levar ao “extremo a
sutileza e perspicácia do entendimento” (GOMES JUNIOR, 1998, p. 247).
Com tal agudeza, o padre Vieira pretendia, a um só tempo, contribuir
para a elevação espiritual, bem como para veicular ideias teológico-políticas.
A oratória sacra era um instrumento de intervenção na vida sociopolítica em
defesa das grandes causas, entre as quais se podem mencionar o debate sobre
a escravidão negra e a dos índios por parte dos colonizadores e a defesa dos
judeus e cristãos-novos contra intolerância da Inquisição.

Conclusão
Como vimos, a arte de maravilhar o leitor se desdobra seja pela explo-
ração de assuntos prosaicos, cotidianos, dissimulados sob um burilado exces-
sivo da forma, seja como modo de edificação moral e espiritual.
Nesse caso, se é lícito falar em Barroco, podemos dizer que o campo lite-
rário também exprime a mentalidade própria ao seiscentismo. Nas palavras
de Afrânio Coutinho: “O homem do Barroco é um saudoso da religiosidade
medieval e, ao mesmo tempo, um seduzido pelas solicitações terrenas e valo-
res mundanos, amor, dinheiro, luxo, posição [...]. Dessa dualidade nasceu a
arte barroca”. Em suma, entre a multiplicidade de leituras e sem a pretensão
de esgotar o assunto, pensamos o Barroco como a arte do conflito, o que
torna plausível a sua definição como “a encarnação de um sentimento antité-
tico da vida” (COUTINHO, 1950, p. 34).

Dica de estudo
22 Sobre a literatura portuguesa em geral e sobre o barroco em parti-
cular, vale consultar o banco de dados do Projecto Vercial, dispo-
nível no site <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/barroca.htm>.
Acesso em: 18 out. 2017.

– 85 –
Literatura de países de língua portuguesa

Atividades
1. Pode-se afirmar que o Barroco foi uma manifestação artística que só
se desenvolveu em Portugal? Justifique.

2. Quais as duas principais correntes literárias associadas ao Barroco?


Exemplifique.

3. Pode-se afirmar que o fragmento textual extraído do Sermão da Sexa-


gésima, do padre António Vieira, revela uma das características mar-
cantes da arte barroca?

Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem


o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está “branco”, da outra há
de estar “negro”; se de uma parte está “dia”, da outra há de estar “noite”; se
de uma parte dizem “luz”, da outra hão de dizer “sombra”; se de uma parte
dizem “desceu”, da outra hão de dizer “subiu”. Basta que não havemos de
ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fron-
teira com o seu contrário?

4. Leia o poema intitulado Madrigal a uma crueldade formosa, do poeta


português Jerônimo Baía (1620/30-1688) e responda ao que se pede.

A minha bela ingrata


Cabelo de ouro tem, fronte de prata,
De bronze o coração, de aço o peito;
São os olhos luzentes,
Por quem choro e suspiro,
Desfeito em cinza, em lágrimas desfeito;
Celestial safiro,

Os beiços são rubins, perlas os dentes;

A lustrosa garganta
De mármore polido;
A mão de jaspe, de alabastro a planta.
Que muito, pois, Cupido,

– 86 –
Barroco: 1580-1756

Que tenha tal rigor tanta lindeza,


As feições milagrosas,
Para igualar desdéns a formosuras –
De preciosos metais, pedras preciosas,
E de duros metais, de pedras duras?

Glossário:
Safiro: safira.
Perlas: pérolas.

O verso “Para igualar desdéns a formosuras” sugere que a mulher tem a


beleza e também a dureza dos metais e das pedras preciosas. Esse poema
pode ser considerado um texto barroco? Com qual das duas correntes
literárias do período barroco o poema se identifica? Comente.

– 87 –
5
Arcadismo: 1756-1825
Stélio Furlan

Para ser grande, sê inteiro: nada


Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Ricardo Reis

5.1 A reação contra o Barroco literário


Há uma passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, lançado em 1881, que nos interessa. No capí-
tulo VI, no cume de uma montanha, ao narrador do romance Brás
Cubas é concedida a oportunidade de ver a descontínua história da
humanidade passar diante de seus olhos:
Literatura de países de língua portuguesa

E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e


passando, já então tranquilo e resoluto, não sei se até alegre. Talvez
alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e
de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias
novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras
de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde.
(MACHADO DE ASSIS, 2008)

Figura 1 – Partenon, templo grego dedicado à deusa Athena, erigido em


meados do século VI.

Fonte: Anagr/Istockphoto.
A descrição desse delírio, no qual as gerações “se superpunham às gera-
ções”, pode nos servir de mote para o estudo das “ideias novas” da literatura
portuguesa ao longo do século XVIII. Em um viés panorâmico, esse “cor-
tejo de sistemas” evoca a possibilidade de se pensar a Literatura por meio
de séculos ou épocas. É o que ocorre na monumental História da Literatura
Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes. Para tornar o estudo aces-
sível e a difusão mais didática, a literatura portuguesa é dividida em época

– 90 –
Arcadismo: 1756-1825

medieval, renascentista, barroca, do século das luzes (arcadismo), do roman-


tismo e contemporânea. É mais uma tentativa de mapear e registrar a com-
plexa textualidade lusitana, toda uma constelação de obras e de autores e os
diferentes contextos históricos e gostos de época. No Brasil, vale mencionar A
Literatura Portuguesa Através dos Textos, de Massaud Moisés, que a divide em
fases históricas, do Trovadorismo ao Modernismo. É um bom livro introdu-
tório para o estudo da literatura lusitana, com comentários sobre as caracte-
rísticas principais de cada fase, aspectos biográficos de seus autores e análises
dos textos selecionados.
Mas há que se evitar qualquer ideia de progresso ou de evolução no
campo literário. A poesia lírica trovadoresca medieval, que inaugura a litera-
tura portuguesa, não possui menos fulgor poético ou consciência artesanal do
que o lirismo clássico. Se o barroco foi considerado uma arte complicada, de
mau gosto, no aspecto formal ela possui o mesmo rigor que as composições
árcades. E vale lembrar que houve uma retomada do trovadorismo medieval
ao longo dos séculos XIX e XX.
A palavra inflexão é o melhor termo que nos ocorre para definir os per-
cursos da literatura portuguesa. Conforme o sentido dicionarizado do termo,
inflexão significa: “mudança da direção”; “ponto de uma curva no qual a con-
cavidade se inverte”, “modulação”, enfim, “ação de dobrar; sinuosidade, des-
vio, volta”. Observe a ambiguidade do termo, pois a guinada para outra dire-
ção também pode significar retorno. Observe um fragmento da Dissertação
Terceira, recitada na conferência da Arcádia Lusitana, em 1757:
Devemos imitar e seguir os Antigos: assim no-lo ensina Horácio,
no-lo dita a razão, e o confessa todo o mundo literário. Mas esta dou-
trina, este bom conselho, devemos abraçá-lo e segui-lo de modo que
mais pareça que o rejeitamos, isto é, imitando e não traduzindo. Os
poetas devem ser imitados nas fábulas, nas imagens, nos pensamen-
tos, no estilo; mas quem imita deve fazer seu o que imita.
[...]
Se imito o estilo, não devo servir-me das palavras dos Antigos,
mas achar na linguagem portuguesa termos equivalentes, enérgi-
cos e majestosos, sem torcer as frases, sem adoptar barbarismos.
(FERREIRA, s.d., p. 61b)

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Literatura de países de língua portuguesa

A Dissertação Terceira, de Pedro António Correia Garção (1724-


-1772), é um dos vários textos teóricos que definem o ideal neoclássico
do Arcadismo. Em Portugal, convencionou-se situar o movimento literário
entre 1756 (ano da fundação da Arcádia Lusitana ou Ulissiponense e da
publicação do Verdadeiro Método de Estudar) e 1825 (ano da publicação
do poema “Camões”, de Almeida Garrett, um dos principais escritores do
Romantismo). O principal teorizador da estética neoclássica em Portugal
foi Candido Lusitano, pseudônimo poético de Francisco José Freire
(1719-1773), sobretudo pela elaboração de uma Arte Poética ou Regras da
Verdadeira Poesia (1748). Os dois fragmentos de Garção que transcreve-
mos revelam os aspectos centrais desse “novo” movimento literário. Em
primeiro lugar se propõe a retomada dos preceitos da arte clássica – esse
gosto pela Antiguidade também foi renovado pelas descobertas arqueológi-
cas de Pompéia e Herculano, na Itália, e pelas numerosas traduções da Arte
Poética, de Horácio (68 a.C. – 8 d.C.), um dos principais estudos sobre os
preceitos da arte na Antiguidade. Em segundo lugar, a crítica ao estilo difi-
cultoso e pomposo do Barroco literário.
A origem do termo Arcadismo deriva de uma região da Grécia Antiga,
habitada por pastores que, segundo consta, viviam de modo simples e espon-
tâneo, e se divertiam cantando, fazendo jogos poéticos para celebrar o amor
e a vida.
Em 1690, inspirados na lenda antiga, poetas italianos criaram uma aca-
demia literária denominada Arcádia, cujo programa era justamente retomar
os ideais da poética clássica como forma de combater o que consideravam
mau gosto na arte. Para evidenciar os princípios da simplicidade e da igual-
dade, os literatos árcades adotaram pseudônimos de pastores gregos e reali-
zaram reuniões em parques e jardins com a proposta de cultuar a vida junto
à natureza. Em Portugal, a Arcádia Lusitana, fundada em 1756, tomou por
base a Arcádia Romana. Entre os principais escritores do período destacam-se
Correia Garção e Bocage.

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Arcadismo: 1756-1825

Figura 2 – A Grécia Antiga.

Fonte: Marilu Souza.

5.2 Principais lemas dos poetas árcades


Se a poética barroca possui uma constelação de definições, o mesmo não
se pode dizer do Arcadismo, compreendido a partir de algumas bem defini-
das regras da arte. Os principais lugares-comuns que definem o Arcadismo
foram extraídos da arte poética de Horácio (68 a.C.– 8 d.C.). Recortamos,
a seguir, quatro aspectos que condicionaram o pensamento e as atitudes dos
poetas árcades.

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Literatura de países de língua portuguesa

Figura 3 – Nos quadros do pintor francês Jean-Baptiste Joseph Pater (1695 -


-1736) há uma aproximação com o natural bem ao gosto da “festa campestre”
típica do Arcadismo. Esta tela se chama justamente Fête Champêtre (1730).

5.2.1 Inutilia truncat


Esse lema, que significa cortar as inutilidades, foi o privilegiado pelos
árcades lusitanos. O mote aparecia subscrito na insígnia da Arcádia Lusitana,
representada por uma mão segurando um podão ou foice. O lema fazia jus ao
primado da “imitação dos antigos”. Lembre-se que, em Portugal, os princí-
pios teóricos de Horácio já haviam sido sistematizados por António Ferreira,
na Carta XII a Diogo Bernardes, em meados do século XVI. Na Carta XII,
Ferreira recomendava eliminar o sobejo (remover os excessos), retocar cons-
tantemente os versos a fim de se alcançar a perfeição formal. Leia-se:
Corta o sobejo, vai acrescentando
O que falta, o baixo ergue, o alto modera
Tudo a ûa igual regra conformando. (FERREIRA, 2008)

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Arcadismo: 1756-1825

O lema Inutilia truncat expressava também a “magnífica ideia de banir


da poesia portuguesa o inútil adorno de palavras empoladas, conceitos estu-
dados, frequentes antíteses, metáforas exorbitantes” com a finalidade de intro-
duzir “em nossos versos o delicioso e apetecido ar de nobre simplicidade”1.
Nesse sentido, os árcades buscavam uma arte sem antíteses, desequilí-
brios ou dilacerações. Contra o retorcimento da sintaxe barroca, “sem torcer
as frases”, os poetas árcades cultuavam a serenidade, o equilíbrio, a clareza
e a simplicidade das ideias. Em outras palavras, cultivavam um vocabulário
simples, com frases na ordem direta e com uso muito comedido de figuras
de linguagem.

5.2.2 Aurea mediocritas


A leitura do poema de Ricardo Reis (um heterônimo de Fernando Pessoa)
que é a epígrafe desta aula é bastante sugestiva para a compreensão do ideário
clássico da Aurea mediocritas. O verso “nada teu exagera, ou exclui”, traduz
o anseio da justa medida, do equilíbrio, da busca do meio termo. No século
XVIII, tal ideário era personificado na exaltação do ideal de herói humilde e
honrado. Vejamos como isso é cultivado por Corydon Erymantheo, pseudô-
nimo poético de Correia Garção (1724-1772):
Não cobre vastos campos o meu gado,
O maioral não sou da nossa aldeia,
Do meu trabalho como, mas, Dirceia,
Ainda que sou pobre, vivo honrado.
No jogo da carreira e do cajado
Até o destro Algano me receia,
Qual loura espiga de grãozinhos cheia
Me alegra ver teu rosto delicado.

O poema revela a imitação dos princípios horacianos: a poetização do dia


a dia, da simplicidade do ritual familiar, o elogio da virtude, da vida rústica,
a indiferença pela vida citadina, e a recorrência às entidades inspiradoras em
geral abstratas (Lídia, no caso de Horácio; Marília, no caso de Correia Garção).
1 A passagem foi extraída da Oração quarta em que se declama contra a falta de aplicação dos
Árcades aos estudos, notando-os esquecidos já das leis da sua empresa e obrigações dos seus estatutos,
de Correia Garção, recitada na conferência da Arcádia Lusitana, no dia 30 de Junho de 1759.

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Literatura de países de língua portuguesa

5.2.3 Fugere urbem


A opção pela vida campestre em oposição à vida urbana era sugerida pelas
expressões Fugere urbem, “fugir da cidade”, e Sequi naturam, “seguir a natu-
reza”. Lembre-se que o Arcadismo foi um movimento patrocinado pelos filhos
da burguesia e não por elementos oriundos da corte. Assim, no ideal do Fugere
urbem lê-se uma posição político-ideológica que remete à luta do burguês culto
contra a nobreza. Em outras palavras, a exaltação do pastor humilde e honrado
remete ao ideal pequeno-burguês de vida sustentada pelo trabalho contra os
valores aristocráticos. Vale notar que afora a idealização da vida natural, a poe-
sia árcade surge impregnada pelas ideias dos Século das Luzes ou Iluminismo.
Segundo o Dicionário de Literatura Portuguesa, o iluminismo constitui um
amplo e matizado movimento cultural europeu que teve impacto considerável
em Portugal no século XVIII. Entre as marcas comuns do movimento, vale
citar a crença sem limites na Razão, o racionalismo contra todas as mani-
festações de barbárie, o desprezo pelo fanatismo religioso e pelo espírito da
Contrarreforma e a mentalidade crítica em favor da liberdade de pensamento.
Em Portugal, o espírito das Luzes pode ser constatado no combate ao Barroco
literário; na poesia de Bocage, cujo verso “Liberdade, onde estás? Quem te
demora” é influenciado pelas ideias revolucionárias da época; enfim, esse “espí-
rito renovador estendeu-se ao urbanismo bem visível na ousada reconstrução
pombalina da cidade de Lisboa” (MACHADO, 1996, p. 524).

5.2.4 Locus amoenus


A expressão latina Locus amoenus designa um lugar ideal, favorável para a
celebração do amor. Na literatura portuguesa, o mais antológico desses luga-
res foi desenhado n´Os Lusíadas, de Luís de Camões, no episódio da Ilha dos
Amores. No desenho da fermosa Ilha, alegre e deleitosa, Camões descreve um
vale ameno, com claras fontes e pedras alvas e um vasto arvoredo com seus fru-
tos odoríferos e belos e por aí afora. Observe como Bocage retoma essa tópica
com a elegância da forma que caracteriza a sua produção poética:

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Arcadismo: 1756-1825

Olha, Marília, as flautas dos pastores


Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?
Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira,


Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira.
Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara. (BOCAGE, 2008)

Glossário:
Cadentes: com cadência.
Zéfiro: deus mitológico dos ventos suaves.
Ósculos: beijos.

No final desse soneto, quando exclama “Que alegre campo! Que manhã
tão clara!”, o sujeito poético sugere a retomada da poesia camoniana, em
especial o verso “Alegres campos, verdes arvoredos”, de Camões. Dita paisa-
gem ideal para os encontros amorosos era prevista pela tradição clássica da
lírica greco-latina. Assim, esta
natureza mágica é conducente ao amor, ao encantamento sensorial e
espiritual do Homem, que se integra na perfeição em tal plenitude,
marcada pela harmonia e homogeneidade. Enfim, estamos perante
um paraíso terrestre, onde se enquadra o ser humano que busca a
satisfação pela simplicidade. (LOCUS AMOENUS, 2008)

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Literatura de países de língua portuguesa

5.2.5 Carpe diem


Por certo, um dos temas horacianos que mais recebeu variações ao longo
da literatura portuguesa é o Carpe diem. Em um de seus poemas líricos, Horácio
aconselhava Leucônoe a aproveitar o dia de hoje por ser incerto o vindouro:
[...] corta a longa esperança,
que é breve o nosso prazo de existência.
Enquanto conversamos,
foge o tempo invejoso.
Desfruta o dia de hoje, acreditando
o mínimo possível no dia de amanhã (apud ACHCAR, 1994, p. 119)

Conforme Francisco Achcar, o verbo carpere já mereceu muitos comen-


tários, que geralmente levam à conclusão de que seu sentido é “fruir”, “gozar”
(ACHCAR, 1994, p. 93). Em geral, há uma associação com a tópica da
efemeridade da vida. Em outras palavras, à certeza da fugacidade do tempo
donde o apelo à fruição imediata dos prazeres, o convite amoroso.
Percebemos a presença desse lema na Lira XIV, de Marília de Dirceu, do
poeta Tomás Antônio Gonzaga2:
Minha bela Marília, tudo passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
[...]
Que havemos de esperar, Marília bela?
Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
Ah! Não, minha Marília,
Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças
E ao semblante a graça. (GONZAGA, 2008)

2 Tomás Antônio Gonzaga (Porto, 1744-Moçambique,1810?), filho de um magistrado brasile-


iro, passou a sua infância na Bahia e formou-se no curso de Direito, em Coimbra. Foi um dos
líderes mais importantes da Inconfidência Mineira, em Minas Gerais, no Brasil.

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Arcadismo: 1756-1825

Resta dizer que a poesia de feições clássicas não ficou reduzida ao


século XVII. Quer como crítica, quer como apologia, entre os vários
exemplos possíveis, esse aspecto foi revisitado por Fernando Pessoa, para
a construção do seu heterônimo Ricardo Reis, e mais recentemente por
Sophia de Mello Breyner Andresen3. Vale lembrar aqueles versos do poema
I, publicado em Dual (1972), nos quais aconselha Lídia a aproveitar o
momento presente:
Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.
Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.
Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não vivido deixa.
Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo. (apud TAVARES, 2008)

Glossário:
Kronos: divindade que personifica o Tempo.

3 Sophia de Mello Breyner Andresen, autora de intenso entusiasmo poético, recebeu vários
prêmios entre os quais vale destacar: Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura
para Crianças, 1992; Prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores, 1994;
e o Prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana, em 2003. Poesia (1944), O Dia do Mar
(1947), Coral (1950), No Tempo Dividido (1954), Mar Novo (1958), O Cristo Cigano (1961),
Livro Sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972), O Nome das Coisas (1977), Navegações
(1983), Ilhas (1989), Musa (1994) O Búzio de Cós (1998) são alguns dos seus principais
livros de poesia.

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Literatura de países de língua portuguesa

5.3 Bocage e o Arcadismo


Manuel Maria L´Hedoux Barbosa du Bocage (1765-1805) é conside-
rado o melhor poeta do século XVIII e um dos melhores sonetistas da litera-
tura portuguesa, ao lado de Camões, Antero de Quental e Florbela Espanca.
Embora considerado “o máximo cinzelador da métrica”, inigualável na cons-
trução de versos tecnicamente perfeitos, também foi desqualificado como
“vadio e inútil”. Escritor polêmico, por certo.
Figura 4 – Bocage e as Ninfas (óleo de Fernando Santos – Museu de Setúbal).

Em 1790, Bocage integrou-se à Nova Arcádia, agremiação literária que


pretendia dar continuidade às ideias da Arcádia Lusitana ou Ulissiponense.
E, como era usual entre escritores dessa estirpe, adotou o pseudônimo de
Elmano Sadino. O nome Elmano surgiu de uma inversão de Manoel, e
Sadino deriva de Sado, em homenagem ao rio que banha Setúbal, cidade em
que o poeta nasceu.
No início de sua atividade literária, Bocage reflete nitidamente a influên-
cia das convenções do Arcadismo: cultiva a poesia satírica e a lírica (idílios,
odes, canções, elegias, sonetos...). Seus poemas cedem ao convencionalismo
arcádico, seja na sugestão pastoril, seja no uso de figuras da mitologia clás-
sica. Nesse caso, vale dizer que são permeados por certo ar de artificialismo.
E Bocage tem consciência disso, uma vez que finda um dos seus sonetos afir-
mando que certos versos são

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Arcadismo: 1756-1825

Escritos pela mão do Fingimento


Cantados pela voz da Dependência.
(BOCAGE, 2008)

Bocage sugere que o credo arcádico descamba na inautenticidade por


conta da adoção mecânica de processos de exprimir, pela dependência ou
subserviência aos modismos dados de antemão. Observe estes tercetos dedi-
cados a Marília:
Reside em teus costumes a candura,
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teus risos se mistura;
És dos céus o composto mais brilhante:
Deram-se as mãos virtude e formosura,
Para criar tua alma e teu semblante. (BOCAGE, 2008)

Glossário:
Candura: doçura, brandura.

Os tercetos de Bocage se resumem na exaltação da mulher como um ver-


dadeiro prodígio de beleza, de equilíbrio emocional e racional, bem ao gosto
das ideias do Iluminismo, também chamado Século das Luzes.
Não se pode deixar de mencionar o convencionalismo amoroso que
atravessa o poema, expresso não só no desenho dos traços femininos que o
recato então permitia como também no nome da mulher. É como se todos
os poemas tratassem de um mesmo sujeito amoroso, de uma mesma mulher
inspiradora e de um mesmo tipo de amor.
Na oficina do poeta árcade, empregava-se a ferramenta clássica para
talhar uma composição poética: reproduzem-se os modelos consagrados
pela tradição, tanto na estrutura métrica e estrófica quanto na atmosfera do
poema. É que o leitor se reconhecia no poema sintonizando a sua sensibili-
dade na longa cadeia da tradição.
Tomás Antônio Gonzaga, “o mais árcade de nossos árcades”, também sinto-
niza a sua sensibilidade nesse repertório de elementos básicos da poética clássica:

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Literatura de países de língua portuguesa

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,


Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela! (GONZAGA, 2008)

Glossário:
Casal: pequena propriedade.

Afora Marília, Lídia, Neera e Cloe eram as figuras femininas abstratas


a quem os poetas árcades endereçavam seus poemas. Assim, as imagens e os
motivos poéticos são elaborados a partir de traços de uma experiência her-
dada e acabavam por cercear a liberdade da imaginação.

Conclusão
Para concluir, resta dizer que, se há uma retomada das arte poéticas
renascentista e da antiguidade clássica, há também o desvio que conduz à
renovação. As transgressões de Bocage são bastante ilustrativas. Trata-se de
um poeta criador, inventivo e não de mero reprodutor dos preceitos clássicos.
Observe como ele ultrapassa os limites e convenções árcades em favor de uma
expressão mais pura e livre de seu mundo pessoal:
A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão, fervor e extremo;
Com extremo e fervor se recompensa.

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Arcadismo: 1756-1825

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!


Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;
Em sombras a razão se me condensa.

Tu só tens gratidão, só tens brandura,

E antes que um coração pouco amoroso


Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso,


Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-me cativo e não me faz ditoso. (BOCAGE, 2008)

Glossário:

Brandura: ternura, doçura.


Lânguida; sensual ou fraca.
Ditoso: feliz.

No que diz respeito à estrutura interna do poema, podemos identifi-


car quatro momentos distintos. Como se lê no primeiro verso da primeira
estrofe, diante da “brandura” da amada na relação amorosa, o sujeito poético
afirma a única forma como entende o amor: deve ser vivido de modo intenso.
No segundo quarteto, o sujeito poético compara a maneira como ele
ama e os sentimentos com os quais é retribuído.
No primeiro terceto, ele confessa qual o tipo de comportamento que
gostaria de ver na amada, em lugar da gratidão e da ternura.
Por fim, arremata o poema explicando que a falta de paixão da amada é
capaz de o fazer sofrer ou o enfadar muito mais que o “aspecto iroso”, consi-
derando-se infeliz por estar preso a um amor apenas terno, sem fervor.

– 103 –
Literatura de países de língua portuguesa

Ao confessar as palpitações do seu mundo emocional, Bocage passa do


convencional ao confessional, da pose arcádica à liberação dos sentimentos
reprimidos. Em outras palavras, brinda o leitor com um poema que apresenta
elementos da poética árcade (a forma fixa do soneto, o verso decassílabo, a
alusão à razão), bem como apresenta elementos românticos (o tom confessio-
nal do poema e a supervalorização das emoções pessoais).
Nesse sentido, pode-se dizer que Bocage é um poeta que se torna arreba-
tador quando defende a libertação do sentimento da camisa de força do con-
vencionalismo e artificialismo dos árcades. Em suma, por conta da veemência
passional, do ardor dos sentimentos, Bocage faz estalar a casca das convenções
e inicia uma nova maneira de compreender o fazer literário, prenunciando a
aurora romântica.

Atividades
1. Observe a estrofe do poema intitulado “A Henriqueta, Minha Filha”,
da poetisa lusitana Marquesa de Alorna (1750-1839), e identifique
uma das principais características do Arcadismo.
Gosta os frutos da Quina do Descanso:
Para longa esperança o espaço é breve;
A idade foge enquanto discorremos:
Aproveita os momentos.

2. Pedro António Correia Garção define, no texto intitulado “Sátira II”,


um dos aspectos fundamentais do ideal árcade. Identifique-o.
Imite-se a pureza dos Antigos,
Mas sem escravidão, com gosto livre,
Com polida dicção, com frase nova,
Que a fez ou adoptou a nossa idade.
Ao tempo estão sujeitas as palavras;
Umas se fazem velhas, outras nascem:
Assim vemos a fértil Primavera
Encher de folhas robustas ao robusto tronco,

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Arcadismo: 1756-1825

A quem despiu o Inverno desabrido.


Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes:
Camões dizia imigo, eu inimigo;
O ponto está que ambos expliquemos
Aquilo que pensamos. A energia
Do discurso e da frase não consiste
No feitio das vozes, mas na força.

Glossário:
Desabrido: severo.

3. O fragmento colhido na “Epístola I”, de Pedro António Correia Gar-


ção (1724-1772), aponta para dois dos aspectos fundamentais da li-
teratura árcade. Identifique-os.
Não busques pensamentos esquisitos,
Em denegridas nuvens embrulhados;
Não tragas, não, metáforas violentas,
Imitando esse corvo do Mondego,
Que entre os cisnes do Tejo anda grasnando;
Usa da pura língua portuguesa
Que aprendido já tens no bom Ferreira,
No Camões imortal, um Sousa e Barros.

Glossário:
Denegridas: enegrecidas, manchadas.
Corvo do Mondego: o gongorista Francisco de Pina e Melo.

4. O poeta luso-brasileiro Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810?) foi


um dos principais representantes do Arcadismo, movimento literá-
rio também conhecido como setecentismo. Leia o fragmento a seguir,
extraído de Marília de Dirceu, e identifique ao menos duas caracterís-
ticas da poesia árcade.

– 105 –
Literatura de países de língua portuguesa

Se não tivermos lãs, e peles finas,


podem mui bem cobrir as carnes nossas
as peles dos cordeiros mal curtidas,
e os panos feitos com as lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
por mãos de amor, por minhas mãos cosido.

Nós iremos pescar na quente sesta


Com canas, e com cestos os peixinhos:
Nós iremos caçar nas manhãs frias
Com a vara envisgada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto
Reputa o varão sábio, honesto e santo.

Nas noites de serão nos sentaremos


c’os filhos, se os tivermos, à fogueira;
entre as falsas histórias, que contares,
lhes contarás a minha, verdadeira.
Pasmados te ouvirão; eu, entretanto
ainda o rosto banharei de pranto.

Glossário:
Envisgada: untada com visgo ou cola.
Reputa: julga, aconselha.

– 106 –
6
O Romantismo: prosa
José Carlos Siqueira

Não busco nesta vida glória ou fama:


Das turbas que me importa o vão ruído?
Hoje, deus... e amanhã já esquecido
Como esquece o clarão a extinta chama!
Antero de Quental

6.1 Romantismo e burguesia


A burguesia fede
A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia
(CAZUZA; NEVES; ISRAEL, 2008)

Os versos anteriores fazem parte da canção “Burguesia”, de


autoria de Cazuza, Ezequiel Neves e George Israel. A contundente
crítica que aí aparece à classe burguesa, atribuindo a ela a impossi-
bilidade de haver poesia no mundo, não é, todavia, uma novidade.
Já no século XIX, os escritores faziam fortes críticas ao materialismo
burguês e à sua falta de humanitarismo. No entanto, assim como
podemos considerar uma contradição de um artista como Cazuza,
Literatura de países de língua portuguesa

nascido e criado no cerne da cultura burguesa, atacar tão frontalmente a bur-


guesia, aqueles que criticavam os burgueses no século XIX na sua maior parte
provinham dessa mesma classe social. Para entender isso, é preciso que conhe-
çamos melhor o que foi o movimento romântico.

6.2 A sensibilidade romântica


e o gênero romance
As palavras romance e romantismo têm nos dias de hoje diversos sen-
tidos e, quando se trata de história da literatura, podem confundir o leitor
desavisado. Se no sentido corriqueiro esses termos se referem a tudo aquilo
que diz respeito ao amor entre duas pessoas, na história literária são coisas
bem diferentes.
A palavra romance diz respeito a um gênero literário de origem bas-
tante polêmica. Alguns críticos consideram que essa origem remonta às
novelas de cavalaria da Idade Média, ou mesmo à epopeia clássica dos gre-
gos, enquanto outros defendem que é um gênero eminentemente burguês
e, portanto, próprio do período dos séculos XVIII e XIX, ligado ao movi-
mento literário romântico.
Sem entrar no debate em torno de sua origem, vale lembrar que o
romance foi a forma literária em prosa que mais fez sucesso no século XIX.
Como todos sabemos, um romance é a narração por escrito de uma história
de certo fôlego, que apresenta uma intriga central e diversas outras paralelas,
sendo que, ao caminhar para o seu final, as pequenas intrigas se fecham para
que se feche finalmente aquela que é central. Esse modelo surgiu nos folhetins
do século XIX.
Folhetim era o nome que se dava a uma história publicada em fascículos
em um jornal, tal qual são transmitidas as novelas televisivas de hoje, que,
por sinal, tiveram no folhetim romântico seu modelo. Do mesmo modo que
as novelas televisivas, o romance folhetinesco romântico caracterizava-se por
apresentar uma história de apelo popular, que colocava em cena a vida bur-
guesa e, em geral, atacava o materialismo e elegia o amor como a solução para
todos os problemas da vida.

– 108 –
O Romantismo: prosa

6.2.1 Origens do Romantismo


Mas, para melhor compreensão do que dissemos anteriormente, preci-
samos entender o que na história da literatura designamos como romantismo.
O termo se reporta a um movimento literário específico, que tem início, na
Europa, no final do século XVIII e perdura por quase todo o século XIX.
O Romantismo foi uma nova forma de conceber e sentir o mundo. Daí ser
possível falar em “sensibilidade romântica”, não no sentido corriqueiro de
sentimento amoroso, mas no sentido de uma nova visão de mundo, surgida
no final do século XVIII com a ascensão da burguesia na França, na Inglaterra
e na Alemanha. Para entender isso, precisamos lembrar que no século XVIII
era a aristocracia que dominava política e culturalmente a Europa. Toda
ordem social estava vinculada à aristocracia e ao seu modo de ver o mundo.
O trabalho manual e a preocupação financeira, por exemplo, eram aspectos
da vida desvalorizados por um aristocrata, já que ele não precisava se preo-
cupar com um trabalho para enriquecer, pois sua riqueza era herdada. Além
disso, detinha uma vasta cultura literária e filosófica de fundamentação clás-
sica greco-romana, só possível de ser adquirida por meio de uma educação
que demandava muito tempo.
Como não tinha títulos de nobreza e nem herdara terras do rei, a bur-
guesia conseguiu ascender graças ao trabalho e à especulação financeira, por-
tanto lidando com duas coisas que a nobreza desprezava: trabalho e adminis-
tração do dinheiro. No final do século XVIII, a Inglaterra gerou o que ficou
conhecido como a Revolução Industrial, que significou o aprimoramento do
trabalho em série e o surgimento das fábricas. Isso possibilitou a ascensão
econômica da classe burguesa naquele país e a perda do poder da aristocracia.
Na França, houve algo semelhante e em 1789, com a Revolução Francesa, a
aristocracia foi deposta e a burguesia subiu ao poder. Na Alemanha, a bur-
guesia também se uniu e fez com que o rei perdesse poder. Portanto, no início
do século XIX, a classe burguesa era quem governava os países que eram os
mais importantes da Europa naquele momento e toda a produção material
e cultural passou a ser dirigida por e para ela. A nova ordem social gerou um
novo quadro de valores, que no âmbito da literatura ganhou a designação de
movimento romântico.

– 109 –
Literatura de países de língua portuguesa

A literatura que passava a ser produzida para o burguês não estigmati-


zava o trabalho e rejeitava a cultura clássica greco-romana, optando por um
conjunto de valores cristãos que estariam mais próximos de sua realidade.
Portanto, houve a troca do panteão de deuses clássicos pelos santos e márti-
res do cristianismo. Passou-se também a valorizar a cultura popular, já que
a burguesia precisava das classes populares para constituir o Estado-nação,
isto é, um Estado que, para além de ter uma demarcação territorial e política,
como era o Estado aristocrático absolutista, tivesse agora uma identidade
cultural que lhe garantisse a coesão. A burguesia precisava do operário para
produzir em suas fábricas, e do cidadão patriota para lutar em suas guerras.
Enquanto a aristocracia agia pela coerção, obrigando os súditos ao trabalho
e à guerra, a burguesia passou a dominar por meio da ideologia, induzindo
o trabalhador a acreditar que seu salário é justo e convencendo a todos os
diferentes grupos sob sua jurisdição que pertenciam a uma mesma coisa,
chamada nação, e que deviam lutar por ela. Daí uma das características do
romantismo ser o nacionalismo.
Todavia, a sensibilidade romântica é marcada ainda por um outro
aspecto que diz respeito à concepção de sujeito. Como a especulação finan-
ceira e a exploração do trabalho foram os principais meios de ascensão da
burguesia, houve no interior da própria burguesia uma forte reação de viés
espiritual que resistia à redução da vida a uma dimensão materialista. Tendo
em vista que a Igreja Católica e as diversas igrejas protestantes tinham no
acúmulo do capital sua prática mais constante, os românticos foram buscar,
tanto no cristianismo medieval ou na Igreja primitiva, quanto nas religiões
orientais, novos paradigmas espirituais. A espiritualidade passou, portanto,
a ser algo extremamente valorizado entre os escritores e artistas românticos,
funcionando como forma de resistência à mercantilização das relações huma-
nas. Tal qual a espiritualidade, também o amor passou a ocupar um lugar de
resistência, principalmente porque o casamento funcionava ainda como uma
negociação entre famílias, uma maneira de manutenção ou de ascensão social.
Daí a grande importância que o sentimento amoroso ganhou nos textos lite-
rários desse período.

– 110 –
O Romantismo: prosa

Figura 1 – O Viajante Perante o Mar de Nuvens. FRIEDRICH, Caspar David.


1818, 1 óleo sobre tela, 98 x 74 cm. Kunsthalle Hamburg.

6.2.2 A construção do sujeito romântico


Como a burguesia pregava o princípio do self-made-man1, o império do
sujeito passa a ser a tônica de sua visão de mundo. O que importa é garantir

1 Self-made-man, isto é, “o homem que se faz por si mesmo”, é o princípio que norteou a ideo-
logia liberal, partindo do pressuposto de que a sociedade funcionaria perfeitamente se cada um
tivesse seus direitos garantidos e procurasse fazer o seu próprio destino, o seu próprio negócio.
É o mesmo princípio que inspirou o “sonho americano”, fazendo com que cada americano do
século XX acreditasse capaz de se tornar um milionário. Desconsiderava-se, entretanto, que
uma nação não pode ser constituída por uma população de milionários. Economicamente
falando, para a existência de um único milionário é necessário um correspondente exército
de pobres e miseráveis. No caso americano, vale lembrar o romance Por um milhão de dólares
(1934), escrito por Nathaniel West (1903-1940), que foi roteirista de Hollywood e nesse livro
ironiza de forma muito inteligente o princípio do self-made-man.

– 111 –
Literatura de países de língua portuguesa

a liberdade do sujeito e a partir daí tudo correria bem e a ordem social se


estabeleceria de forma justa. Com relação à economia, desenvolvia-se o pos-
tulado básico do liberalismo, isto é, o livre-comércio: permissão para a livre
circulação de produtos, pois o mercado automaticamente se equilibraria. No
âmbito da literatura, isso se expressa de modo peculiar. Os românticos nega-
vam a tradição clássica e postulavam a originalidade e a transgressão como
referências maiores para se julgar o valor de uma obra literária. Ser verdadeira,
autêntica, sincera, sem se prender a normas preestabelecidas, eis o maior valor
que uma obra poderia ter, pois ela estaria expressando a subjetividade do seu
autor – a experiência específica e única de um sujeito, o qual não poderia ser
veiculada caso fossem respeitadas as convenções características da literatura
clássica. Em outras palavras, a ordem do dia era deixar a imaginação cavalgar
livremente, libertar-se das regras da arte, entregar-se somente à intuição. Isso
gerava um grave problema: sem os critérios clássicos dos manuais de poética
e retórica, qualquer um poderia ser escritor e se considerar original. Como,
então, julgar o valor de uma obra literária?
Surgiu, entretanto, a noção de gênio, que diz respeito ao sujeito inspi-
rado, que teria um vínculo especial com toda a ordem do universo – enfim,
o eleito, uma espécie de messias da arte. O gênio literário escreveria a grande
obra. Se qualquer um poderia aprender a escrever e se tornar um bom escritor,
somente o gênio ficaria para a posteridade, pois a genialidade não se aprendia,
era uma dádiva. E como reconhecer o gênio? Só a posteridade poderia dizer.
Portanto, os critérios para julgar uma obra romântica eram bastante subjeti-
vos, dizendo respeito à sua originalidade e à sua transgressão, oriundas de um
gênio literário.
Recapitulando: a valorização do trabalho, da tradição cristã e de toda
e qualquer forma de espiritualidade, do sentimento amoroso, da cultura
popular, da identidade nacional, da originalidade, da transgressão, do gênio
literário, gerou os elementos distintivos do movimento romântico. Mas, se
sabemos o que é o gênero romance e o que foi o movimento romântico,
cabe agora perguntar como ambos chegaram a Portugal, que não era dos
países mais desenvolvidos da Europa naquele momento. Na verdade, até
o início do século XIX Portugal ficou à margem da industrialização que
acontecia na Europa.

– 112 –
O Romantismo: prosa

6.3 O estabelecimento do liberalismo


em Portugal e o romance
No início do século XIX, Portugal sofreu graves crises políticas. A pri-
meira delas diz respeito à invasão de Napoleão àquele país. Com o final da
Revolução Francesa e a subida ao trono de Napoleão, o imperador francês
adotou uma política expansionista e passou a invadir vários países europeus.
Em 1807, com os exércitos franceses nas fronteiras de Portugal e sem que este
país possuísse força para resistir à investida napoleônica, a Inglaterra, princi-
pal adversária da França nesse momento, resolveu patrocinar a fuga da família
real portuguesa para o Brasil, que aqui chegou em 1808.
Durante mais de uma década, a família real ficou no Brasil, enquanto
Portugal era administrado pelos ingleses. Todavia, em 1820, a emergente
burguesia portuguesa exigiu o retorno da família real e o estabelecimento
de uma monarquia constitucional. Até então, Portugal fora uma monarquia
absolutista, na qual todo o poder estava nas mãos do rei. Em uma monarquia
constitucional, como reivindicava a burguesia, o poder seria descentralizado,
pois haveria uma Constituição, à qual até mesmo o rei estaria subordinado.
Figura 2 – Apesar de ter posto fim à Revolução Francesa, Napoleão era um
ídolo dos liberais. DAVID, Jacques-Louis. Napoleão cruzando os Alpes. 1801.
1 óleo sobre tela, 275 x 232 cm. Austrian Gallery Belvedere.

– 113 –
Literatura de países de língua portuguesa

D. João VI retornou a Portugal, mas morreu pouco depois, em 1826, o


que gerou uma crise sucessória com a disputa entre o nosso D. Pedro I (em
Portugal, D. Pedro IV), legítimo herdeiro do trono, e seu irmão D. Miguel.
Resultando numa traumática guerra civil, a disputa durou até 1834, quando
finalmente D. Pedro venceu o irmão e instaurou uma monarquia constitucio-
nal de cunho liberal no país.
Em meio a tais conflitos, o Figura 3 – A disputa pelo trono
romance em forma de folhetim come- entre os irmãos D. Pedro e D.
çava a frequentar as páginas dos jornais Miguel mereceu muitas charges
portugueses. Primeiramente na forma nos jornais da época.
de textos traduzidos, geralmente da
literatura francesa, e posteriormente
elaborado por escritores portugueses.
O primeiro a exercitar esse gênero
literário foi Almeida Garrett, que,
em 1846, publicou Viagens na Minha
Terra, considerado um marco entre os
textos da prosa romântica portuguesa.
Mas antes de falar da obra, falemos
Fonte: Autor desconhecido.
um pouco do próprio Garrett.

6.3.1 Almeida Garrett (1799-1854)


Almeida Garrett nasceu em uma família de posses e teve sua primeira
educação destinada à vida eclesiástica. Começou nas letras escrevendo poe-
mas e peças de teatro de gosto neoclássico e só mais tarde adotou a estética
Romântica. Em 1825, publicou um longo poema intitulado Camões, hoje
considerado o marco inaugural do romantismo português. Durante a disputa
pelo trono entre o absolutista D. Miguel e o liberal D. Pedro, Garrett, liberal
convicto, tomou o partido de D. Pedro. Com a vitória do liberalismo, foi
encarregado de revitalizar o teatro nacional português e escreveu Frei Luís
de Sousa (1844), peça que se tornou um paradigma do teatro lusitano. Em
1853, escreveu um livro de poemas que também se tornou modelar para a
poesia romântica portuguesa, intitulado Folhas Caídas. Entre suas obras, vale
ainda lembrar os livros de poemas D. Branca (1826), Adozinda (1828), Lírica
de João Mínimo (1829), Romanceiro e Cancioneiro Geral (1843-1851), Flores
– 114 –
O Romantismo: prosa

sem Fruto (1845) e os textos em prosa O Arco de Santana (1845-1850) e o


inconcluso Helena (1871).

6.3.2 Viagens na Minha Terra


Apesar de termos nos referido a Viagens na Minha Terra como se fosse
um romance, a verdade é que a classificação em termos de gênero desse texto
é muito difícil, pois ali se empregam tanto estratégias textuais típicas do
romance, da narrativa de viagem, do jornalismo opinativo e do gênero epis-
tolar, entre outras formas. Mas se lembrarmos que uma das características do
romantismo é justamente não respeitar a divisão de gêneros (os românticos,
por exemplo, criaram seu teatro misturando a tragédia com a comédia, coisa
inconcebível para um autor clássico), temos em Viagens na Minha Terra um
texto sobretudo romântico. Ali são citados, por exemplo, Lawrence Sterne,
Xavier de Maistre, Eugene Sue, Vitor Hugo, entre outros escritores referen-
ciais para a sensibilidade romântica de viés crítico.
Publicado originalmente na forma de folhetim na Revista Universal
Lisbonense entre 1845 e 1846, Viagens na Minha Terra narra um percurso
de trem entre Lisboa e Santarém realizado por Garrett, que assume o lugar
do narrador. Inspirado no que vê na paisagem, o narrador faz uma série de
severas críticas à realidade portuguesa, observando o quanto parte dessa socie-
dade está inerte para as coisas do espírito, voltada toda para o materialismo
mais elementar. Em meio a tais observações, narra a história amorosa entre
os primos Carlos e Joaninha, a menina de olhos verdes, que passaram jun-
tos a infância em uma casa no vale de Santarém, na companhia de avó cega
Francisca e de um franciscano rigoroso chamado frei Dinis. Carlos vai estudar
em Coimbra e, depois de um desentendimento com frei Dinis, parte para a
Inglaterra. Lá se envolve com três irmãs, das quais uma se chama Georgina,
com quem pretendia se casar. No entanto, em meio às lutas entre liberais e
absolutistas, Carlos, um liberal, retorna a Portugal e a Santarém, onde reen-
contra Joaninha, envolvendo-se amorosamente com ela. Volta, todavia, para
casar-se com Georgina, que, por sua vez, sabendo do caso de Carlos com
Joaninha, desiste do compromisso. Ao final, Carlos acaba por descobrir que
era filho de frei Dinis com a filha da avó Francisca. Georgina torna-se freira.
Joaninha enlouquece e morre. Carlos torna-se barão.

– 115 –
Literatura de países de língua portuguesa

A estruturação do texto é bastante original, já que alterna grandes blocos


de capítulos que narram a viagem e fatos diversos com outros grandes blocos
de capítulos que narram a história do casal amoroso, fazendo com que o leitor
fique com a narrativa amorosa suspensa por muitas páginas, gerando assim
uma expectativa muito densa.
O texto discute como a vida espiritual em Portugal se encontra morta,
pois a realidade está marcada por uma mentalidade estagnada e decadente,
e o homem novo, liberal, volta-se apenas para a vida material. Carlos é o
paradigma do homem liberal português, que, entre optar pela pureza e sim-
plicidade campesinas da tradição portuguesa, expressa na figura de Joaninha,
a “menina dos rouxinóis”, e pela urbanidade elegante da Europa industria-
lizada, representada na figura de Georgina, acaba optando por se tornar um
barão gordo e burguesamente materialista. Seu percurso vai de um idealista a
um materialista, tal qual seria o percurso, segundo Garrett, de geração liberal
a que pertencia.
Ao final da história, o narrador, um liberal, encontra frei Dinis, um con-
servador, que lhe conta o fim que levou cada personagem daquela história. O
narrador pergunta sobre Carlos:
— Mas Carlos?!
— Carlos é barão: no lho disse já?
— Mas por ser barão?...
— Não sabe o que é ser barão?
— Oh se sei! Tão poucos temos nós?
— Pois barão é o sucedâneo dos...
— Dos frades... Ruim substituição!
— Vi um dos tais papéis liberais em que isso vinha: e é a única coisa
que leio dessas há muitos anos. Mas fizeram-mo ler.
— E que lhe pareceu?
— Bem escrito e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os
liberais não tiveram menos.
— Erramos ambos.
— Erramos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode
tornar a ser o que era: – mas muito menos ainda pode ser o que é. O que
há de ser, não sei. Deus proverá. (ALMEIDA GARRETT, 2005, p. 250)

– 116 –
O Romantismo: prosa

Percebe-se por essa última fala do frei Dinis um total descontentamento


com a realidade portuguesa do momento, funcionando o livro como uma
forma de se refletir profundamente sobre ela.

6.3.3 Alexandre Herculano (1810-1877)


Junto com Almeida Garrett, Alexandre Figura 4 – Herculano era
Herculano foi um dos introdutores do roman- um escritor apaixonado
tismo em Portugal. Também liberal, tornou-se pela história de Portugal.
um paradigma ético no meio político portu-
guês. Nascido em Lisboa, no seio de uma família
modesta, não pôde frequentar a universidade.
No entanto, por esforço próprio, cedo ingres-
sou no meio literário português. No decorrer
de sua vida, ocupou vários cargos de direção
em diversas bibliotecas. Esse contato com os
arquivos históricos e sua paixão pela maté-
ria resultaram na publicação de uma série de
documentos intitulada Monumentos Históricos
de Portugal (do século VIII ao XV), além dos
livros A História de Portugal (1853) e História e
Origem da Inquisição em Portugal (1859). Desde
muito cedo, publicou narrativas ficcionais de cunho histórico, que, em 1851,
foram reunidas em um volume intitulado Lendas e Narrativas. Escreveu tam-
bém romances históricos, como O Monge de Cister (1839), O Bobo (1843) e
finalmente sua obra mais apreciada, Eurico, o Presbítero (1844). Herculano é
considerado o fundador do romance histórico em Portugal, inspirado na obra
do escocês Walter Scott. Em 1851, participou da elaboração e instauração do
movimento político de Regeneração, mas logo se decepcionou com os rumos
tomados pelo movimento e, em 1867, se exilou na quinta de Vila de Lobos,
em Santarém, abandonando tanto a política quanto a vida intelectual.

6.3.3.1 Eurico, o Presbítero (1844)


O romance Eurico, o Presbítero conta a história de amor entre
Hermengarda e Eurico. Passa-se no século VIII, na Espanha Visigótica do

– 117 –
Literatura de países de língua portuguesa

Império de Vitiza. Eurico combate em favor do imperador e contra os mon-


tanheses rebeldes e os francos. Vencida a batalha, Eurico, já apaixonado por
Hermengarda, pede-a em casamento ao seu pai, Duque de Fávila. O nobre
nega-lhe a filha por saber que Eurico era de origem simples, fazendo-o acre-
ditar que Hermengarda o repelia. O jovem, decepcionado, entrega-se ao
sacerdócio, ordenando-se presbítero de Carteia. Passa a compor poemas e
hinos religiosos para se esquecer de seu grande amor. Todavia, a península
Ibérica é invadida pelos árabes e Eurico vê-se na obrigação de combatê-los,
mas, sendo padre, aparece nas batalhas com o disfarce de Cavaleiro Negro.
Torna-se assim um conhecido herói nessas batalhas e ganha a admiração dos
godos, renovando-lhes o ânimo para o combate.
Quando tudo caminha para a vitória dos godos, Sisibuto e Ebas, os filhos
do imperador Vitiza, por ambicionarem o trono de seu pai, traem seu povo e se
unem aos árabes. Os invasores começam a vencer a guerra e atacam o Mosteiro
da Virgem Dolosa, raptando Hermengarda. O Cavaleiro Negro consegue, no
entanto, salvá-la quando a jovem estava prestes a ser violentada. Desfalecida, ela
é levada à gruta Covadonga, nas montanhas das Astúrias, onde estava Pelágio,
seu irmão. Já em segurança, encontra-se com Eurico, que lhe revela serem
o Presbítero de Cartéia e o Cavaleiro Negro a mesma pessoa. Hermengarda
declara seu amor a ele, mas Eurico, por ter feito voto de castidade, já não pode
mais concretizar seu amor pela donzela. Ao final, Hermengarda enlouquece e
Eurico parte para uma batalha suicida contra os árabes.
Como se percebe, o enredo tem fundo histórico e retoma um período
do cristianismo considerado pelos românticos como o mais puro e verdadeiro
no aspecto da fé. Eurico é digno, honrado, abnegado, fiel a Deus, ao seu
amor por Hermengarda e à palavra dada – enfim, um modelo ético, tanto
no aspecto religioso quanto nos aspectos pessoal e político. Na história, o
compromisso social do personagem se sobrepõe a seus desejos e interesses
individuais, algo ausente no mundo da burguesia do século XIX e que o
romantismo queria revitalizar. Herculano idealiza, portanto, o passado na
tentativa de reformar eticamente o seu presente.
Assim tem início o romance:
A raça dos visigodos, conquistadora das Espanhas, subjugara toda a
Península havia mais de um século. Nenhuma das tribos ger­mânicas
que, dividindo entre si as províncias do império dos césares, tinham

– 118 –
O Romantismo: prosa

tentado vestir sua bárbara nudez com os trajos despedaçados, mas


esplêndidos, da civilização romana soubera como os godos ajun­tar
esses fragmentos de púrpura e ouro, para se compor a exemplo de
povo civilizado. Leovigildo expulsara da Espanha quase que os derra-
deiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos fran-
cos, que em suas correrias assolavam as províncias visigó­ticas d’além
dos Pireneus, acabara com a espécie de monarquia que os suevos
tinham instituído na Galécia e expirara em Toletum depois de ter
estabelecido leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos seus
vastos domínios, que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo
as montanhas da Vascônia, abrangiam grande porção da antiga Gália
narbonense. (HERCULANO, s.d., p.12)

Veja como o estilo do texto se aproxima muito do texto histórico.


É verdade que, com o desenrolar da narrativa, começam a aparecer diálogos,
descrições e digressões que nos afastam do tom sisudo desse parágrafo, mas
ainda assim o estilo historiográfico perpassa todo o texto, cumprindo a fun-
ção de lhe atribuir, sobretudo, verossimilhança.

6.3.4 Camilo Castelo Branco (1825-1890)


Camilo é, em geral, associado à Figura 5 – Camilo é a encarnação
segunda geração de românticos portu- do Romantismo português.
gueses, conhecida como ultrarromântica.
No entanto, ao final da vida, passou a
fazer uma literatura de viés realista. Foi,
sobretudo, um novelista, mas também
escreveu contos, poesia, peças teatrais,
crônicas e também críticas literárias,
somando cerca de 260 títulos.
Teve uma vida que se revela mais
rocambolesca que alguns de seus roman-
ces. Órfão de mãe aos dois anos de idade
e de pai aos dez, viveu com uma tia
e depois com uma irmã até os dezesseis, quando se casou com Joaquina
Pereira. Do casamento nasceu uma filha. Abandonou a esposa e a filha,
que morreram alguns anos mais tarde. Foi para o Porto, onde frequentou
e abandonou a escola de Medicina. Seguiu para Coimbra a fim de iniciar

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Literatura de países de língua portuguesa

sua carreira literária. Raptou a órfã Patrícia Emília de Barros e voltou para
o Porto, onde ambos foram presos. Teve também uma filha com Patrícia
e do mesmo modo abandonou as duas. Teve um caso com a freira Isabel
Cândida e depois com a escritora Maria Browne. Finalmente, apaixonou-se
por Ana Plácido, o grande amor de sua vida, mas ela estava prometida a
outro, com quem se casou. Ana Plácido, no entanto, acabou abandonando
o marido e fugindo com Camilo. Ficaram presos por algum tempo e, na
cadeia, Camilo escreveu O Romance de um Homem Rico e Amor de Perdição.
Quando o marido de Ana Plácido morreu, os dois passaram a morar juntos.
Teve diversos filhos com ela, um deles com problemas mentais. Nesse per-
curso, adquirira sífilis, fazendo com que o cotidiano de Camilo e Ana não
fosse dos mais fáceis. Com outro de seus filhos, Nuno, concebeu e realizou
o rapto de Maria Isabel, herdeira rica, para que o filho pudesse fazer um
grande casamento. Viveu de encomendas literárias até Ana Plácido morrer
e ele começar a ficar cego por causa da sífilis. Chegou a receber o título de
visconde, mas, já muito deprimido, suicidou-se com um tiro na cabeça.
Sua atribulada vida pessoal deve-se, em parte, ao fato de ter sido um dos
primeiros homens em Portugal a viver exclusivamente do que escrevia. A escrita
era sua forma de sobrevivência, o que não era uma tarefa fácil, obrigando-o a
recorrer a alguns expedientes pouco convencionais. Essa é uma das razões pela
qual sua obra é muito extensa. Apenas para dar um exemplo de cada gênero
que cultivou, podemos lembrar que escreveu: poemas (Juízo Final e O Sonho
do Inferno, 1845); comédias (O Morgado de Fafe em Lisboa, 1862); dramas sen-
timentais (Abençoadas Lágrimas, 1862); dramas históricos (Agostinho de Ceuta,
1848); narrativas de caráter histórico (Perfil do Marquês de Pombal, 1882); crí-
tica literária (Esboços de Apreciação Literária, 1866); contos (Noites de Lamego,
1863); e principalmente novelas de caráter histórico (O Judeu, 1866), satírico
(A Queda de um Anjo, 1866) e passional (Amor de Perdição, 1863).
Seu gênero preferido era a novela, que, em linhas gerais, diferencia-se do
romance apenas por se concentrar na trama central, sem apresentar enredos
paralelos. No entanto, nem sempre é fácil dizer se estamos diante de um
romance ou de uma novela, pois a crítica diverge muito em relação à defi-
nição desses gêneros. De qualquer modo, Camilo foi um dos maiores pro-
sadores românticos que a cultura portuguesa viu nascer, tanto na qualidade
quanto na quantidade de suas obras.

– 120 –
O Romantismo: prosa

6.3.4.1 Amor de Perdição (1863)


O texto narra a história de amor entre Teresa de Albuquerque e Simão
Botelho. As famílias dos Albuquerques e dos Botelhos são inimigas, mas
os jovens Teresa e Simão acabam se apaixonando. Simão, que era rebelde e
arruaceiro, após apaixonar-se por Teresa torna-se estudioso e comportado.
Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa, deseja casá-la com um primo, Baltasar
Coutinho, mas, ao descobrir o discreto namoro entre a filha e o filho de seu
odiado vizinho, obriga Teresa a optar entre se casar com o primo ou ir para
um convento. Teresa opta pelo convento. Simão, avisado por carta de tal fato,
tenta encontra-se com Teresa com o auxílio do ferreiro João da Cruz, mas
é surpreendido por Baltasar Coutinho e dois capangas. No embate, Simão
é ferido e os capangas são mortos por João da Cruz. Teresa é enviada ao
convento. Simão estreita relações com João da Cruz (que fora salvo da forca
pelo pai de Simão, Domingos Botelho) e com sua filha, Mariana. Esta cuida
do ferimento de Simão e se apaixona secretamente por ele. Passado algum
tempo, Tadeu de Albuquerque resolve transferir a filha para um convento em
que se encontra uma tia de Teresa. Simão tenta falar com Teresa antes de sua
nova partida, mas ocorre um encontro casual com o pai e o primo da moça,
em que mata Baltasar Coutinho. Em vez de fugir, assume a autoria do crime,
sendo primeiramente condenado à morte e, atenuada a pena, ao degredo na
Índia por dez anos. Nesse ínterim, João da Cruz é assassinado e Mariana,
órfã, passa a dedicar sua vida a Simão. O herói parte para a Índia, e Teresa,
no convento, morre quando vê o navio que leva Simão. Mariana segue para
a Índia junto com o degredado. No entanto, o rapaz morre de febre no navio
e seu corpo é jogado ao mar. Mariana então se atira atrás dele e, abraçada ao
corpo de Simão, morre afogada.
Os personagens não têm profundidade psicológica, pois cada um age
de acordo com um aspecto bem definido. Teresa é a encarnação do amor
fiel; Mariana, o exemplo do amor abnegado; e Simão, o do amor impulsivo
e do poder de regeneração do amor. Podemos considerar a novela de Camilo
como uma reedição muito bem-sucedida de Romeu e Julieta, de Shakespeare.
Além do elogio que o livro faz ao amor em vários níveis, há ainda uma forte
crítica ao tradicionalismo da ordem social e dos valores da família portuguesa,
calcada nos modelos da monarquia absolutista, pelos quais a vontade do indi-
víduo não é levada em conta.

– 121 –
Literatura de países de língua portuguesa

Quem conta a história é um sobrinho de Simão Botelho, na posição


de narrador em terceira pessoa, onisciente, fundamentando-se nos livros de
assentamentos das cadeias da Relação do Porto e na correspondência trocada
entre os amantes. Assim, a obra ganha em verossimilhança, pois estaria fun-
damentada em um fato ocorrido na própria família do narrador, e alicerçada,
além disso, em documentos. Emprega exaustivamente o discurso direto, for-
necendo teatralidade e agilidade à trama. As peripécias acontecem com rapi-
dez, pois o romance se apoia na quantidade de acontecimentos inusitados que
se sucedem em um ritmo célere.
Para além da trama amorosa, o texto de Camilo é muito crítico e irônico em
relação à sociedade portuguesa. Para termos ideia dessa ironia, vejamos um tre-
cho do primeiro capítulo, quando o narrador descreve o avô de Simão Botelho:
Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço, não poetando como
Luís de Camões ou Bernardim Ribeiro; mas namorando na sua prosa
provinciana, e captando a benquerença da rainha para amolecer as
durezas da dama. Devia de ser, afinal, feliz o “doutor bexiga” – que
assim era na corte conhecido – para se não desconcertar a discórdia
em que andam rixados o talento e a felicidade. Domingos Botelho
casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma formosura, que ainda aos
50 anos se podia prezar de o ser. E não tinha outro dote, se não é dote
uma série de avoengos, uns bispos, outros generais, e entre estes o
que morrera frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma;
glórias, na verdade, um pouco ardente, mas de tal monta que os
descendentes do general frito se assinaram Caldeirões. (CASTELO
BRANCO, 2000, p. 70)

Cortejando uma das damas da rainha, Domingos Botelho é tratado com


franco deboche, dizendo-se que, apesar de ser um sujeito sem talento e sem
dotes físicos, conseguiu casar-se com uma formosa dama da corte, cuja his-
tória de família também é ridicularizada, pois seu sobrenome Caldeirões faz
referência ao seu antepassado que foi frito pelos inimigos. Enfim, Camilo
desqualifica em sua origem o orgulho dos Botelhos, que será o pivô de todo
o drama amoroso, demonstrando o quanto se revelam equivocados os valores
dessa sociedade de mentalidade aristocrática.

– 122 –
O Romantismo: prosa

6.3.5 Júlio Dinis (1839-1871)


Figura 6 – Júlio Dinis
Joaquim Guilherme Gomes Coelho morreu muito jovem, mas
nasceu em Porto, em uma família burguesa, deixou uma obra madura.
com ascendência inglesa por parte de mãe.
Ali mesmo licenciou-se em medicina, pela
Escola Médico-Cirúrgica, na qual também
foi professor. Começou sua carreira literária
ainda na faculdade, escrevendo peças teatrais,
reunidas no volume Teatro Inédito (1946-
-1947). Também tentou a poesia de verve
ultrarromântica, publicada em 1874, pouco
depois de sua prematura morte por tubercu-
lose, no volume Poesias (1874). Mas foi na prosa que mais se destacou, em
especial no gênero romance. Além do livro de contos e novelas intitulado
Serões da Província (1870), publicou os romances As Pupilas do Senhor Reitor
(1867), A Morgadinha dos Canaviais (1868), Uma Família Inglesa (1868) e
Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871). Deixou inédita uma verdadeira arte do
romance em suas Ideias que me Ocorrem, escritas entre 1869 e 1870, e publi-
cadas no volume Inéditos e Esparsos (1910). Como escritor, utilizou vários
pseudônimos, sendo Júlio Dinis o que o tornou mais conhecido.
Apesar da mentalidade romântica, sua escrita já apresentava traços do
que viria a ser o movimento realista, quer pelo tratamento que dá aos perso-
nagens, procurando penetrar em suas consciências, quer pela valorização da
descrição como estratégia analítica, ou ainda pelo objetivo pedagógico atri-
buído ao romance. Todavia, mantém sua sensibilidade romântica na forma
idealista e otimista de conceber a realidade que o cerca, apresentando perso-
nagens excepcionais e soluções harmoniosas para os conflitos.

6.3.5.1 As Pupilas do Senhor Reitor (1867)


O romance trata do envolvimento amoroso entre Daniel e Margarida,
ou Guida. Ainda crianças, o estudante Daniel e a pastorinha Guida se

– 123 –
Literatura de países de língua portuguesa

apaixonam. Daniel preparava-se para ingressar no seminário, mas quando o


reitor descobre seu inocente namoro e conta a seu pai, José das Dornas, este
decide enviá-lo para estudar medicina no Porto. Passados dez anos, Daniel
retorna à aldeia, já como médico, e reencontra Margarida, agora professora,
que se mantém fiel ao amor que partilharam. Ele, no entanto, transformado
pelos hábitos da cidade, havia se transformado em um conquistador barato,
sem compromisso, e já nem se lembrava de sua paixão de infância. Nessa
época, Pedro, irmão de Daniel, estava noivo de Clara, irmã de Margarida.
Daniel fica fascinado pela futura cunhada e tenta conquistá-la. Clara, por
vaidade, alimenta os cortejos de Daniel, mas quando percebe a gravidade da
situação, desiste da brincadeira. Na tentativa de colocar fim àquela situação,
aceita se encontrar com ele no jardim de sua casa, onde são surpreendidos
por Pedro. No entanto, Margarida, para salvar o inconsequente casal, toma o
lugar da irmã. A divulgação de tal encontro macula a reputação de Margarida
e Daniel finalmente acaba por reconhecer nela o antigo amor de infância.
Verdadeiramente apaixonado por Guida, procura reconquistá-la, mas ela o
rejeita. No entanto, ao final, Margarida acaba por se reconciliar com Daniel
e o casal finalmente se une.
Vemos que o desfecho da narrativa não poderia ser mais romântico.
Enfim, tudo se arranja da melhor forma possível. Sem dúvida, a mentalidade
que gerou a intriga era romântica, opondo o amor vulgar ao amor verda-
deiro, saindo este último vencedor. Todavia, não há aqui, como em Amor de
Perdição, um obstáculo externo à concretização do amor, mas sim um obs-
táculo interno, produzido pela própria frivolidade do protagonista Daniel.
Portanto, Júlio Dinis se afasta da perspectiva romântica, fazendo com que o
conflito amoroso tenha origem no caráter dos personagens e não em algum
evento excepcional. Apesar disso, a caracterização dos personagens tem um
viés romântico, já que Daniel é o representante do donjuanismo, enquanto
Margarida exprime a pureza amorosa e a integridade moral. Em contraste, a
personificação e o comportamento de Clara se aproximam mais da perspec-
tiva realista.
Vejamos um trecho do romance, quando a senhora Joana, governanta
do médico João Semana, encontra-se com Clara, logo após toda a aldeia ter
tomado conhecimento do encontro ocorrido no jardim.

– 124 –
O Romantismo: prosa

— Então que doidices foram aquela lá por casa? – perguntou Joana,


que não era para rodeio, e ia logo direta ao fim que tinha em vista. –
Aquilo é coisa que se faça? Ainda se fosse consigo, não me admirava
eu tanto, mas a Guida!
Clara ficou surpreendida com o que ouvia a Joana. Margarida para
acalmar à irmã os escrúpulos em aceitar o sacrifício, dera-lhe a enten-
der que, a exceção de Pedro, ninguém mais na aldeia suspeitava a cena
do quintal. Agora adquiriu ela certeza do contrário.
— Então você sabe?... – perguntou timidamente, não ousando olhar
para Joana.
— Se eu sei! E quem não o há de saber, filha, se por aí não se fala em
outra coisa?
— Que diz, Joana?
— Pois que cuidava? Ai está bom, está! É o que eu digo! Aí tem que
ontem... Mas a mim custa-me a crer! Pois a Guida?
— Joana! Por quem é, não fale dessa maneira. Se soubesse...
— Pois não falo, não... Ainda que de eu falar não é que vem o mal.
Assim não andassem por aí outras línguas danadas...
— Então dizem? Ó meu Deus! Meu Deus!
— Dizem tudo, e mais alguma coisa: é o costume. Pois ainda aí está!
Bem o digo eu!
— Jesus Senhor! E falam de Guida?!
— Que dúvida! Há lá manjar mais doce para essas boquinhas cá da
terra, do que uma novidade daquelas? Falam dela, e de modo que já
me fizeram ferver o sangue. Olhe que estive para obrigar uma das tais
a engolir a língua peçonhenta, a ver se a envenenava com ela. Ora
imagine a Zefa da Graça a contar história e veja lá o que não diria!
Clara ocultou o rosto com as mãos; a dor e a desesperação estavam-
-na torturando.
— E então o pior não é isso – continuava Joana. – O pior é que
a essas desalmadas meteu-se-lhes em cabeça que as filhas corriam
perigo, continuando a ser ensinadas por a sua irmã; e é de crer que
já hoje... Mas veja aquelas tolas, que mais o que sabem é estragar os
filhos com maus exemplos e com más palavras, a fazerem-se agora
de escrúpulos! Impostoras!
— Oh! isto é demais! – bradou Clara, tremendo de indignação.

– 125 –
Literatura de países de língua portuguesa

— A Rosa alfaiata, por exemplo – prosseguiu Joana. – Ora digam se


não é mesmo de uma pessoa perder a paciência ouvir aquela desbo-
cada com medos que lhe estraguem a filha? A filha, que se não sair das
que nem o demônio quer, não há de ser por falta de diligências que
faça a mãe para isso.
Clara não podia já reter as lágrimas.
— E a Joaquina do Moleiro? Pois não querem ver aquela senhora
também com delicadezas? Ora isto! Isto é de uma pessoa morrer com
riso. A Joaquina do Moleiro, que eu conheci... Cala-te, boca.
E por esta forma continuou a senhora Joana fazendo a severa crítica
das suas escrupulosas patrícias, e aumentando, sem o saber, a grande
aflição em que estava Clara.
Ao separar-se da velha governante de João Semana, ia Clara com uma
resolução formada, a qual se lhe podia adivinhar na firmeza do olhar
e na expressão do semblante.
— É demais! murmurava ela – vou procurar Pedro; vou dizer-lhe
tudo; quero que todos saibam... (DINIS, 2000, p. 339-341)

Mais que a angústia e o remorso de Clara de ver sua inocente irmã pagar
por um erro que ela cometera, emerge desse diálogo o mundo de fofocas e
intrigas que move a pequena aldeia portuguesa. Se a situação que precede a
cena, a troca de lugares entre as irmãs no encontro secreto, é indiscutivel-
mente de gosto romântico, Júlio Dinis dá um tratamento muito realista ao
modo como a Senhora Joana conduz a conversa com Clara, sempre em defesa
de Guida, mas sem deixar de revelar sua surpresa ou enumerar todas as con-
sequências do seu suposto ato. Portanto, na prática, condenando-a sumaria-
mente como todas as outras. Eis, pois, um claro exemplo desse lugar ambíguo
que o texto de Júlio Dinis ocupa entre o romantismo e o realismo.

6.4 A sedimentação do romance em Portugal


Foi graças ao trabalho árduo dos escritores românticos como Almeida
Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis que o
gênero romance pôde sedimentar-se em Portugal. Gênero em prosa que mar-
cará todo o século XIX e também o século XX, o romance serviu ainda de

– 126 –
O Romantismo: prosa

modelo para a narrativa do cinema, criado no final do século XIX, e mesmo


para as novelas televisivas, como já mencionado.
É um gênero que fez e que hoje ainda faz história na literatura portu-
guesa e em todas as outras literaturas nacionais, permitindo que possamos
encontrar, ainda que momentânea e ficcionalmente, certa ordem, unidade e
sentido no caótico mundo em que vivemos.

Dicas de estudo
22 FERREIRA, Alberto. Perspectiva do Romantismo Português:
1834-1865. Lisboa: Edições 70, 1971. – Apesar dos mais de 30
anos de publicação dessa obra, ela continua a ser inspiradora
e polêmica, dando um enfoque inovador ao estudo do roman-
tismo. Ferreira mostra que há uma maior articulação entre o
romantismo e o realismo do que se pode pensar, e que condições
próprias da sociedade lusitana tiveram um peso relativo maior
do que normalmente se supõe no desenvolvimento da cultura
romântica portuguesa.
22 O site da Biblioteca Nacional de Lisboa possui diversas pági-
nas especialmente construídas para certos autores e suas obras.
No nosso caso, indicamos o projeto dedicado a Almeida Garrett
por ocasião do bicentenário de seu nascimento. Disponível em:
<http://purl.pt/96/1/>. Acesso em: 29 set. 2017.

Atividades
1. Qual dos escritores românticos portugueses mais se preocupou com a
história da nação? Justifique sua resposta.

2. Quais são as principais características do movimento romântico?

3. Qual a importância de Camilo Castelo Branco para a literatura portuguesa?

– 127 –
7
O Romantismo: poesia
José Carlos Siqueira

Do homem não vê na terra


Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra
Almeida Garrett

7.1 A arte como mercadoria


Mim quer tocar
Mim gosta ganhar dinheiro
Me wanna play
Me love to get the money
Mim é brasileiro
Mim gosta banana
Mas mim também quer votar
Mim também quer ser bacana
(Ultraje a Rigor)

A letra anterior é da música “Mim quer tocar”, do grupo


de rock Ultraje a Rigor, criado nos anos 1980. O nome da banda
já revela o teor satírico que esteve na base de sua concepção. De
Literatura de países de língua portuguesa

modo bastante debochado, a letra fala de um músico que pretende ganhar


dinheiro com sua arte. Fala, portanto, do mercado fonográfico e do quanto
todos almejam enriquecer fazendo arte. Todavia, o fato do eu lírico falar um
português fora do padrão (“mim quer” e não “eu quero”; “gosta banana” e
não “gosto de banana”), ou mesmo um inglês fora do padrão (“me love” e
não “I love”), tudo isso rebaixa sua condição de “artista”, desqualificando
seu trabalho. Ele é brasileiro, mas um excluído, pois quer votar, revelando
a impossibilidade de exercer seu direito de cidadania, além de se ver, pelos
olhos do estrangeiro, como um macaco batuqueiro e que gosta de bananas
(o que é reforçado pelo modo de falar o português, como se fosse um estran-
geiro). Enfim, poderíamos resumir o caráter desse eu lírico como um sujeito
podre, excluído, estrangeirado, que se vê, no entanto, no direito de ficar rico
no mercado fonográfico. Moral da história: qualquer um pode ficar rico no
mercado fonográfico, mesmo que faça música da pior qualidade.
A crítica recai, portanto, mais sobre a má qualidade da música e dos
músicos e menos sobre a própria mercantilização da arte. Hoje, encaramos
com certa tranquilidade o desejo dos artistas de enriquecerem com seu traba-
lho, desde que esse trabalho seja de qualidade. Essa questão, no entanto, teve
um debate mais acirrado em outra época, quando pela primeira vez a arte
virava mercadoria de consumo em larga escala.

7.2 A sensibilidade romântica e a poesia


O Romantismo inaugurou uma nova forma de ver e sentir o mundo.
Tendo seus primórdios na segunda metade do século XVIII e seu apogeu e
desgaste no século XIX, foi o movimento literário que se caracterizou por
instaurar uma literatura de gosto burguês, quer valorizando os princípios que
gerem a vida burguesa, quer criticando-os.
Um aspecto que condicionou a sensibilidade romântica foi o processo
de inserção da arte no mercado. Podemos tomar a Revolução Francesa e a

– 130 –
O Romantismo: poesia

Revolução Industrial da Inglaterra, cujos desdobramentos se prolongaram no


século XIX, como dois marcos que propiciaram o desligamento da arte em
relação ao gosto aristocrático e a sua adesão ao gosto burguês. A literatura,
por exemplo, deixou de ser patrocinada por grandes nobres, ditos mecenas,
de gosto neoclássico, e passou a ser vendida em jornais e na forma de livros.
O crescimento da imprensa periódica e o barateamento dos custos de produ-
ção do livro permitiram que muitos escritores passassem a viver apenas de sua
arte. Isso caracterizou o processo de profissionalização do homem que lidava
com a escrita, gerando a figura do escritor como o vemos hoje em dia.
A transformação da literatura em uma mercadoria de consumo marcou
fortemente a sensibilidade romântica, que passou a questionar a redução de
todos os aspectos da vida à sua dimensão econômica e material. Para contestar
o que entendia ser o excessivo valor que a burguesia dava ao dinheiro e ao
trabalho, o romantismo transformou-se em um arguto crítico da mercan-
tilização das relações humanas. Portanto, vem daí a grande valorização da
espiritualidade, do cristianismo primitivo (o da igreja institucional estaria já
corrompido e mercantilizado), da natureza (em oposição à civilização), do
gênio (homem sensível, solitário e incompreendido).

7.2.1 Literatura e natureza


A natureza adquire significado bastante específico no mundo român-
tico e um dos que sintetizou esse significado foi Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), filósofo e escritor suíço, mas ligado ao Iluminismo francês.
Considerado um precursor do pensamento romântico, em sua obra Rousseau
faz uma contundente crítica à civilização e um sistemático elogio à natureza.
Rousseau afirma que “a natureza fez o homem feliz e bom, mas a sociedade
deprava-o e torna-o miserável” (apud SANTANA, 2008). Foi quem criou a
figura do “bom selvagem” e, portanto, fez com que tudo que estivesse ligado
à natureza ganhasse um sentido mais puro e mais verdadeiro do que de todas
as coisas ligadas à urbanidade e à civilidade.

– 131 –
Literatura de países de língua portuguesa

Figura 2 – ANUNCIAÇÃO, Tomás da. Vista da amora, paisagem com


figuras. 1852. 1 óleo sobre tela, 67,5 X 88,5 cm. Museu Nacional de Arte
Contemporânea, Lisboa.

Desse modo, o homem romântico preferiria o convívio com a natureza à


vida nos centros urbanos, vistos como decadentes. Na oposição que aí se estabe-
lece entre campo e cidade, o campo fica com todas as qualidades (paz, tranqui-
lidade, verdade, pureza, essência, beleza etc.), enquanto à cidade são atribuídos
todos os defeitos (tormento, falsidade, corrupção, aparência, feiúra etc.).
A natureza torna-se, assim, refúgio dos males da cidade, lugar de inspi-
ração do escritor e do artista, oásis de paz em meio à atribulada vida burguesa
de trabalho e dinheiro. Aproximar-se da natureza seria, também, retornar ao
estado original, primitivo e, portanto, mais puro e verdadeiro que o mundo
de aparências e veleidades em que vivemos cotidianamente no meio urbano.

7.2.2 O belo horrível


Mas, apesar de a natureza ocupar esse lugar privilegiado, a decadência
associada à cidade exercia um grande fascínio aos olhos dos românticos. O meio
urbano era visto como espaço de experimentações, especialmente dos sentidos.
Ali o sujeito poderia provar os prazeres momentâneos, fugazes, consumistas,
que não lhe trariam a felicidade, mas lhe dariam conhecimento e experiência.

– 132 –
O Romantismo: poesia

Figura 3 – Charles Laughton como Quasímodo em O Corcunda de Notre


Dame (1939), filme de William Dieterle baseado no romance Notre Dame de
Paris (1831), de Vitor Hugo. Quasímodo é a encarnação do belo horrível:
seu corpo é grotesco e sua alma, sublime.

Um outro elemento ligado a esse fascínio pelo decadente apresenta-se


em algumas teorias românticas sintetizadas pelo escritor francês Vitor Hugo
(1802-1885), no prefácio ao seu poema dramático Cromwell (1827). Nesse
texto, Hugo teoriza sobre o drama romântico, postula a necessidade dos dra-
maturgos não mais imitarem os clássicos nem respeitarem a divisão entre os
gêneros comédia e tragédia, e introduz a ideia do “belo horrível”, que seria a
junção entre o sublime e o grotesco. O grotesco ao lado do sublime transfor-
maria em beleza a força terrível do primeiro e ressaltaria a beleza do segundo.
Em seu “Prefácio interessantíssimo”, ao livro Paulicéia Desvairada
(1922), o modernista brasileiro Mário de Andrade assim fala do belo horrí-
vel romântico:
O belo horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de
certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os tempos,
pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o artista, repro-
duzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de belo o que é feio,
horrível, só porque está expressado com grandeza, comoção, arte, é
desvirtuar ou desconhecer o conceito de beleza. Mas feio = pecado...
Atrai. (ANDRADE, 2003, p. 5)

– 133 –
Literatura de países de língua portuguesa

Como bom modernista, Mário de Andrade contesta os românticos, mas


acaba por nos explicar muito bem a noção formulada por Vitor Hugo e ainda
desvela um elemento que está ali sem ser explicitamente enunciado: a ideia
de pecado. O grotesco associado ao pecado é certamente algo que fazia parte
do gosto romântico. A ideia de pecado, como diz Mário de Andrade, atrai.
Na ordem romântica, isso tudo faz sentido, pois é só por meio do pecado
que se chega à redenção e ao entendimento do que é realmente verdadeiro. É
por isso que os românticos gostam tanto de frequentar prostíbulos, bacanais,
cemitérios e outros tantos espaços soturnos, recheados de também soturnos
enredos e devaneios.

7.2.3 A noção de gênio literário


No entanto, não era qualquer escritor que poderia apreender a verdade
da natureza ou fazer a viagem aos subterrâneos da devassidão dos meios urba-
nos. Somente o gênio poderia entender como isso tudo deveria ser trans-
formado em arte. Mas, afinal, como definir o gênio literário? Isso já estava
delineado em Immanuel Kant (1724–1804), filósofo alemão, que assim dizia:
Gênio é o talento (dom natural) que dá à arte a regra. Já que o talento,
como faculdade produtiva inata do artista, pertence, ele mesmo, à
natureza, poderíamos também exprimir-nos assim: gênio é a disposi-
ção natural inata (ingenium), pela qual a natureza dá à arte a regra. [...]
Vê-se, a partir disso, que o gênio – 1) é um talento, de produzir aquilo
para o qual não se pode dar nenhuma regra determinada, [...] conse-
quentemente, que originalidade tem de ser sua primeira propriedade.
2) Que, como também pode haver insensatez original, seus produtos
têm de ser ao mesmo tempo modelos, isto é, exemplares; portanto,
eles mesmos não provindo de imitação, têm de servir, no entanto, a
outros para isso, isto é, como justa-medida ou regra do julgamento. 3)
Que ele mesmo não pode descrever ou indicar cientificamente como
institui seu produto, mas que é como natureza que ele dá a regra; e,
por isso, o criador de um produto, que ele deve a seu gênio, não sabe,
ele mesmo, como se encontram nele as ideias para isso, e também não

– 134 –
O Romantismo: poesia

está em seu poder inventá-las à vontade ou conforme a um plano. [...]


4) Que a natureza, pelo gênio, prescreve, não à ciência, mas à arte a
regra; e também isto somente na medida em que esta última deve ser
bela-arte. (KANT, 1980, p. 246-247).

Veja como, a partir dessa definição, temos o gênio como o sujeito que
define as regras da arte. É um eleito pela natureza, que já nasce com o talento
para realizar tal tarefa. Ninguém escolhe ser gênio. É uma dádiva rara da
natureza que lhe permite exercer livremente suas faculdades de conheci-
mento, modeladas de forma original. Portanto, a originalidade do gênio é o
que definirá as regras da arte para todos os outros.
É fundamentado nessa concepção de genialidade que Almeida Garrett, o
inaugurador do romantismo em Portugal, escreve o prefácio de Folhas Caídas,
seu mais famoso livro de poemas:
Mas sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado de alma
do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito, que,
tendendo ao seu fim único, a posse do Ideal, ora pensa tê-lo alcan-
çado, ora estar a ponto de chegar a ele, ora ri amargamente porque
reconhece o seu engano, ora se desespera de raiva impotente por sua
credulidade vã.
Deixai-o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza, do
mando, ou da glória. Ele não entende bem disso, e vós não entendeis
nada dele.
Deixai-o passar, porque ele vai onde vós não ides; vai, ainda que zom-
beis dele, que o calunieis, que o assassineis. Vai, porque é espírito, e
vós sois matéria.
E vós morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em que se pareceu
e se uniu convosco. E essa falta, que é a mesma de Adão, também será
punida com a morte.
Mas não triunfeis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo
em vós, e nada ou quase nada no poeta. (ALMEIDA GARRETT,
1955, p. 2)

– 135 –
Literatura de países de língua portuguesa

Figura 4 – Retrato de Lord Byron, do pintor francês Theodore Gericault


(1781-1824). Lord Byron (1788-1824), poeta inglês associado ao
ultrarromantismo, aqui é representado com expressão pensativa e
atormentada, tal qual se concebia o gênio romântico.

O poeta genial é, portanto, esse eleito da natureza e só ele pode definir o


que é o belo. As regras da tradição clássica greco-romana já não têm mais vali-
dade aos olhos dos românticos, que esperam identificar nos gênios as novas
regras da arte. O “Ideal” buscado pelo gênio romântico é aquele que todos
deverão imitar, que está em conexão direta com o universo e com a natureza
e, portanto, é muito superior aos preceitos da vida burguesa. O gênio não se
submete à mercantilização da arte, mas estabelece as regras do belo para os
que o imitarão e servirão ao mercado. Nesse sentido, o idealismo romântico
nega os valores materialistas presentes no cotidiano da burguesia, sem deixar,
contudo, de retratar de forma minuciosa o modus vivendi dessa classe social,
elegendo ali casos excepcionais e exemplares de valor ideal e espiritual. Daí
sua relação com os valores burgueses ser caracterizada pela adesão e pela nega-
ção, concomitantemente.

– 136 –
O Romantismo: poesia

7.3 As ideias liberais, o


ultrarromantismo e o nacionalismo
Ao lado de tais concepções filosóficas e estéticas, que propiciavam a eva-
são, o exercício da imaginação e o devaneio, encontra-se também uma outra
mais ligada à realidade imediata: a ideia de nacionalidade. O culto à identi-
dade nacional provinha de um desdobramento da política econômica lide-
rada na Grã-Bretanha pelo filósofo escocês Adam Smith (1723-1790) e dali
irradiada para todos os países europeus e suas colônias. Segundo essa teoria,
a riqueza das nações dependeria do trabalho livre, do interesse individual de
cada um em enriquecer, sem qualquer intervenção do Estado. Essa teoria fun-
damentada no indivíduo, que no limite geraria uma desagregação social geral,
já que o sujeito só teria compromisso com o seu próprio enriquecimento, tem
por contraponto a noção de identidade nacional, fundamentada na ideia do
Estado-nação. O Estado-nação seria uma forma de manter unidos em torno
de um objetivo comum classes sociais distintas. Desse modo, apesar de o libe-
ralismo ser potencialmente um elemento de desagregação social, o naciona-
lismo cumpria o papel de manter os indivíduos unidos por um bem comum.
Nesse sentido, os românticos também cumpriram um papel muito
importante, sedimentando toda uma simbologia nacional que remontava ao
final da Idade Média, quando os Estados europeus tiveram origem em reação
ao domínio da Igreja Católica. Daí o romance histórico e as lendas e narrativas
de um Alexandre Herculano (1810-1877) em Portugal, ou o grande mapea-
mento de contos populares que fizeram os irmãos Grimm na Alemanha.

7.3.1 Almeida Garrett (1799-1854)


Almeida Garrett, de família abastada, estava destinado à vida eclesiás-
tica. Por muitos anos, foi educado pelo tio, frei Alexandre da Sagrada Família,
bispo de Malaca, mas não seguiu carreira. Foi estudar na Universidade de
Coimbra e ali estreou nas letras escrevendo poemas e peças de teatro de gosto
neoclássico. Um de seus livros de poemas neoclássicos, Retrato de Vênus (1821),

– 137 –
Literatura de países de língua portuguesa

ganhou fama, especialmente pelo alto grau de sensualidade que apresentava.


Vale lembrar que Garrett foi um grande conquistador, tendo, no decorrer de
sua vida, vários casos amorosos notórios no meio intelectual português.
Figura 5 – Almeida Garrett soube valorizar o passado português e o
sentimento da saudade.

Foi em Paris, em 1825, que publicou o longo poema narrativo inti-


tulado Camões, atualmente considerado o marco inaugural do Romantismo
português. O poema conta toda a trajetória daquele que é considerado o
maior poeta português de todos os tempos, Luís Vaz de Camões (c. 1517-
-1580), autor de Os Lusíadas (1572).
O poema de Garrett inicia no momento em que Camões retorna a
Portugal depois de ficar muitos anos em viagens pela costa da África e pelo
Oriente. Traz consigo Os Lusíadas, que então pretendia publicar. Esse é o
mote para que Garrett retome toda a história das conquistas portuguesas a
partir da figura de Camões, aqui retratado como poeta injustiçado e que,
apesar de ter conseguido publicar a sua obra, morreu na miséria e sem o reco-
nhecimento nacional que mereceria.
Garrett faz de Camões, portanto, um “gênio romântico”, nos moldes
descritos anteriormente. Mas o poema vale, sobretudo, por trazer à tona um
sentimento que posteriormente irá fazer muito sucesso no meio intelectual
e literário português – a saudade. É o sentimento saudosista que irá marcar
todo o poema: saudade de Camões pela pátria e saudade dos portugueses
oitocentistas pela glória que tiveram no século XVI.

– 138 –
O Romantismo: poesia

Esse sentimento gerará no início do século XX um movimento lite-


rário, filosófico e cultural chamado Saudosismo, que foi criado pelo poeta
Teixeira de Pascoaes e inspirou, por exemplo, obras como Mensagem, de
Fernando Pessoa. O fato é que Garrrett será visto como o poeta que colocou
na pauta do século XIX o tema da saudade como elemento constitutivo do
caráter português.
Nesse mesmo ano de 1825, e também em Paris, Garrett publica outro
longo poema narrativo, D. Branca. Em meio a uma trama amorosa ao gosto
romântico, narra a conquista do Algarve (sul de Portugal) durante o reinado
de Afonso III, no século XIII, quando se definiu as fronteiras do território
português. Portanto, mais uma vez temos feitos heroicos em torno da consti-
tuição da identidade nacional.
Politicamente falando, Garrett era um liberal convicto e, quando D.
João VI morreu e ocorreu a disputa pelo trono entre o absolutista D.
Miguel e o nosso liberal D. Pedro I (para os portugueses é D. Pedro
IV), Garrett lutou ao lado de D. Pedro, que acabou por vencer o irmão.
Instituído o governo liberal, como Garrett já se tornara uma referência
literária no país e tinha alguma experiência em dramaturgia com a com-
posição da tragédia neoclássica Catão (1821), foi encarregado de revitali-
zar o teatro nacional português. É quando escreve Um Auto de Gil Vicente
(1838) e Frei Luís de Sousa (1844). Esta última peça tornou-se um para-
digma para o teatro português.
Ao lado da poesia, escreve também em prosa, em 1846, o famoso texto
Viagens na Minha Terra, que narra a infeliz história do amor entre Joaninha
dos olhos verdes e Carlos, obra na qual Garrett critica fortemente a falta de
espírito nacional e o pragmatismo materialista que o liberalismo econômico
vinha impingindo às consciências do país.
Voltando à sua produção poética, em 1845 Garrett publica um livro de
poema intitulado Flores sem Frutos, que traz poemas de verve romântica, mas
ainda marcados por referências e modelos neoclássicos. Sua dicção poética só
vai ganhar um tom fortemente romântico no livro que publica um ano antes
de sua morte, Folhas Caídas (1853), obra que se tornou referência obrigatória
quando se fala em poesia romântica portuguesa. Um poema exemplar do
Romantismo presente nesse livro está no poema a seguir.

– 139 –
Literatura de países de língua portuguesa

Este inferno de amar


Este inferno de amar – como eu amo! –
Quem mo pôs aqui n’alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida – e que a vida destrói –
Como é que se veio a atear,
Quando – ai quando se há-de ela apagar?
Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... – foi um sonho –
Em que paz tão serena a dormi!
Oh!, que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim!, despertar?
Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela?, eu que fiz? – Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...
(ALMEIDA GARRETT, 2008)

É fácil constatar que o eu lírico vê no amor sua aparente desgraça, já que


antes de se apaixonar vivia tranquilo, como se estivesse a dormir e a sonhar
em “paz tão serena”. Todavia, é despertado desse sonho e passa a amar com
uma chama que “alenta e consome”, que “é a vida – e que a vida destrói”.
O amor como sentimento que gera sentimentos antagônicos já se encontrava
na estética clássica de Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
(CAMÕES, 2008)

No poema de Garrett, entretanto, o amor não é visto somente como


uma espécie de doença pela qual somos tomados, mas sim como o próprio

– 140 –
O Romantismo: poesia

sentido da vida. Quando, ao final do poema, o eu lírico diz que, após vê-la
e se apaixonar, “nessa hora a viver comecei”, temos no sentimento amoroso
o verdadeiro sentido da existência, coisa que não se apresentava na esté-
tica clássica. Os românticos veem o amor como uma forma de reação ao
materialismo e ao pragmatismo que caracteriza a vida burguesa. Só se vive
realmente caso se consiga fugir à mediocridade desse tipo de existência, e
o amor é a forma a que todos temos acesso para realizar tal transcendência
em nosso cotidiano.
Para dar credibilidade ao sentimento amoroso ali presente, o poeta
romântico em geral mescla vida pessoal e literatura. Isso também aconteceu
com Folhas Caídas, pois o livro apresenta sete poemas que tem a palavra rosa
no título, “Perfume da Rosa”, “Rosa sem Espinhos”, “Rosa Pálida”, “Rosa e
Lírio”, “The rose – a sigh”, “A Rosa – um Suspiro”, “As Duas Rosas”, além
de muitos outros em que essa palavra aparece no corpo do texto. Se lembrar-
mos que, nesse momento, Garrett estava apaixonado por Rosa Montufar,
Viscondessa da Luz, casada com um oficial do exército português, teremos
no livro uma espécie de declaração de amor quase explícita a essa paixão
proibida, mas conhecida de toda a sociedade da época. A mescla entre vida
e obra permite que o sentimento expresso pelo eu lírico do poema ganhe
verossimilhança em razão da vida do próprio poeta tornar-se o contexto de
leitura do poema.
Com esse livro, Garrett fechou sua produção romântica de modo magis-
tral, tornando-se referência obrigatória para os poetas românticos. Entre suas
obras, vale ainda lembrar os livros de poemas Adozinda (1828), Lírica de João
Mínimo (1829), Romanceiro e Cancioneiro Geral (1843-1851) e os textos em
prosa O Arco de Santana (1845-1850) e o inconcluso Helena (1871).

7.3.2 Soares de Passos (1826-1860)


António Augusto Soares de Passos ficou consagrado como o maior poeta
daquilo que se convencionou chamar de ultrarromantismo português, isto é,
o romantismo que privilegiava um repertório de sentimentos exacerbados,
mórbidos, doentios, de ambientação noturna e imaginação delirante.

– 141 –
Literatura de países de língua portuguesa

Filho de um comerciante da cidade Figura 6 – Soares de Passos:


do Porto, Soares de Passos era um liberal e, o exemplo maior da poesia
como tantos outros, cursou a Universidade ultra romântica portuguesa.
de Coimbra, cidade em que fundou em
1851 a revista Novo Trovador. Já formado,
colaborou em importantes periódicos de
poesia como O Bardo (1852-1854) e A
Grinalda (1855-1869). Na forma de livro,
publicou seus poemas somente no volume
Poesias, de 1856.
Seu mais famoso poema é
O Noivado do Sepulcro
Vai alta a lua! na mansão
da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D’entre os sepulcros a cabeça ergueu.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
“Mulher formosa, que adorei na vida,
“E que na tumba não cessei d’amar,

– 142 –
O Romantismo: poesia

“Por que atraiçoas, desleal, mentida,


“O amor eterno que te ouvi jurar?
“Amor! engano que na campa finda,
“Que a morte despe da ilusão falaz:
“Quem d’entre os vivos se lembrara ainda
“Do pobre morto que na terra jaz?
“Abandonado neste chão repousa
“Há já três dias, e não vens aqui...
“Ai, quão pesada me tem sido a lousa
“Sobre este peito que bateu por ti!
“Ai, quão pesada me tem sido!” e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
“Talvez que rindo dos protestos nossos,
“Gozes com outro d’infernal prazer;
“E o olvido cobrirá meus ossos
“Na fria terra sem vingança ter!
— “Oh nunca, nunca!” de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
— “Oh nunca, nunca!” repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c’roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
“Não, não perdeste meu amor jurado:
“Vês este peito? reina a morte aqui...
“É já sem forças, ai de mim, gelado,
“Mas inda pulsa com amor por ti.
“Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
“Da sepultura, sucumbindo à dor:
“Deixei a vida... que importava o mundo,
“O mundo em trevas sem a luz do amor?
“Saudosa ao longe vês no céu a lua?

– 143 –
Literatura de países de língua portuguesa

— “Oh vejo sim... recordação fatal!


— “Foi à luz dela que jurei ser tua
“Durante a vida, e na mansão final.
“Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
“Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
“Quero o repouso de teu frio leito,
“Quero-te unido para sempre a mim!”
E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d’infeliz amor.
Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.
(SOARES DE PASSOS, 2008)

O poema tematiza o amor não concretizado em vida, mas que se realiza


finalmente na sepultura. O amado, já morto, lamenta a não concretização de
seu amor e se pergunta se sua amada ainda se lembraria dele, considerando-a
viva. Ela, no entanto, aparece, revelando-lhe que morrera de amor depois da
morte dele. Então os dois se abraçam e concretizam o amor que nunca fora
possível em vida, fazendo com que dois esqueletos abraçados fossem encon-
trados em um sepulcro só.
O gosto pela imaginação exacerbada, pelo ambiente noturno e mór-
bido é o que dá força ao poema. Segue-se, aqui, o princípio de composição
do “belo horrível” a que nos referimos anteriormente. Os elementos grotes-
cos associados à morte (cemitério, cadáver, esqueleto) se opõem ao aspecto
sublime do amor, que a tudo transcende para se concretizar. Mais do que um
elogio ao amor, há uma sexualidade mórbida entre cadáveres, uma variação

– 144 –
O Romantismo: poesia

da necrofilia, sendo este o elemento pecaminoso e, portanto, transgressor que


permite a ruptura com a dimensão pragmática e materialista da vida com-
batida pelos românticos. Essa sexualidade pecaminosa é elevada pelo senti-
mento amoroso que a motiva e então tudo se torna belo e sublime, como
previsto por Vitor Hugo.

7.3.3 João de Deus (1830-1896)


João de Deus de Nogueira Ramos ficou muito famoso em sua época
por ter escrito a Cartilha Maternal, uma das primeiras obras para o ensino de
leitura em língua portuguesa. Filho de modestos comerciantes, estudou em
seminários e depois na Universidade de Coimbra.
Figura 7 – João de Deus começou como poeta ultrarromântico, mas acabou
concebendo um estilo bastante peculiar.

Em 1855, publicou uma elegia, intitulada “Oração”, que lhe angariou


grande fama. A partir daí, passou a estampar poemas em vários periódicos da
época. Tornou-se redator de jornais e depois foi eleito deputado. Em 1868,
publicou a coletânea Flores do Campo e, no ano seguinte, Ramo de Flores.
Anos depois, deu a público Folhas Soltas (1876), além de outros trabalhos.
Há um volume intitulado Campos de Flores (1893), que reúne grande parte
de toda sua produção poética. Sua poesia ficou marcada inicialmente pelo
lirismo ultrarromântico, mas acabou com uma dicção mais sóbria e próxima,

– 145 –
Literatura de países de língua portuguesa

por vezes, do lirismo de caráter social da terceira geração romântica. Uma


vertente importante de seu trabalho foi a poesia satírica, que lhe angariou
muito prestígio literário.
Na prosa, fez diversas traduções livres e adaptações de autores estrangei-
ros, gerando uma vasta obra ainda hoje pouco estudada. Amigo de Antero
de Quental, ligou-se ao socialismo mais ou menos à mesma época em que
publicou a referida Cartilha Maternal.
Uma de suas composições mais famosas é a poesia satírica intitulada
“Grammatica Rudimentar”, mantendo-se a grafia original:
Aquelle Manuel do Rego
É rapaz de tanto tino
Que em lirio põe sempre y grego,
E em lyra põe i latino !
E como a gente diz ceia
Escreve sempre ceiar;
Assim como de passeia
Tira o verbo passeiar!
Nunca diz senão peior
Não só por ser mais bonito,
Mas porque achou num auctor
Que deriva de sanskrito.
Escreve razão com s,
E escreve Brasil com z:
Assim elle nos quizesse
Dizer a razão porquê!
Também como diz – eu soube
Julga que eu poude é correcto:
Temo que a morte nos roube
Rapazinho tão discreto!
É um gramático o Rego!
É um purista o finorio...

– 146 –
O Romantismo: poesia

Se Camões fallava grego,


E o Vieira latinorio! (JOÃO DE DEUS, 2008)

O poema todo ironiza o excesso de erudição na poesia. Apesar do eu


lírico estar de acordo com o gosto romântico pela ortografia arcaica (o que
pode ser deduzido do segundo verso da terceira estrofe: “Não só por ser mais
bonito”), considera que o excesso de seu emprego e a valorização do conhe-
cimento erudito podem levar a poesia à morte, metaforizada na morte do
próprio Manuel do Rego. Há aqui, portanto, uma defesa de uma linguagem
mais simples e clara para a poesia, o que de fato caracterizou a obra de João
de Deus.

7.4 A originalidade e a autenticidade


tornadas convenção
Marcada pela entrada da arte no mercado de consumo, a literatura
romântica foi a primeira literatura de massas que formou o gosto burguês,
ainda que criticasse a burguesia sistematicamente. Todavia, o idealismo
romântico foi aos poucos perdendo força aos olhos dos leitores oitocentistas,
que queriam ver retratado o dinâmico e positivo mundo que se transformava à
sua volta, com um forte desenvolvimento científico e tecnológico. A segunda
metade do século XIX viu serem criadas as linhas de trem, a luz elétrica, o
telefone, o telégrafo, o rádio, o fonógrafo, entre tantos outros aparelhos que
transformaram a vida cotidiana burguesa. Foi também quando os operários
do mundo todo começaram a se organizar em associações e em sindicatos.
Se até meados do século XIX o Romantismo teve muita força em
Portugal, no início da década de 1870 se formou uma nova geração de escri-
tores que começou, então, a produzir uma literatura que combatia o idea-
lismo em que se baseava a sensibilidade romântica. O Ideal buscado pelo
gênio, que Garrett enaltecia no prefácio de Folhas Caídas e que tinha na natu-
reza seu modelo e sua fonte maior de inspiração, passou a ser contestado pela
estética realista. Esta não via transcendência alguma no mundo e acreditava

– 147 –
Literatura de países de língua portuguesa

que o trabalho do escritor era próximo ao de um cientista social, devendo


simplesmente retratar, ainda que de forma ficcional, a realidade.
Figura 8 – A Catedral de Salisbury Vista do Jardim do Bispo (1823), de John
Constable (1776-1837), inspiração para muitos artistas, que difundiram à
exaustão o clima singelo que caracteriza essa e outras telas do Romantismo.

Tudo o que fora criado pelos românticos e tomado como novo e origi-
nal já começava a soar banal e convencional. A cartilha romântica se sedi-
mentara e isso matava o que era mais caro ao poeta do Ideal: sua autentici-
dade. Tornava-se impossível ser autêntico em meio à infinidade de formas e
figuras de linguagem usadas à exaustão. Mas, sobretudo, tais formas já não
correspondiam a uma nova ordem social, que tinha no proletariado seu foco
de interesse – ainda que em Portugal ele fosse exíguo. Morria, portanto, a
pertinência histórica e a originalidade do idealismo romântico, e o sentido
maior de todas as suas diversas e mesmo contraditórias manifestações. Mas
ainda assim as formas românticas, já sem a força transformadora que as
caracterizou, sobreviveram à margem das novas estéticas por muito tempo
(se é que não sobrevivem ainda hoje), pois a revolta contra a dimensão

– 148 –
O Romantismo: poesia

materialista do mundo continuou a ser um luta travada cotidianamente no


seio de nossa sociedade.

Dicas de estudo
22 Site: <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/programas.htm>.
O site do Projeto Vercial apresenta informações seguras sobre
escritores e obras da literatura portuguesa. Disponibiliza trechos
de textos gratuitamente e vende vários deles na íntegra.
22 Filme: Camille (1936). Direção de George Cukor.
Para entender o espírito do Romantismo, um bom filme é
Camille (1936), de George Cukor, um clássico do cinema, com
Greta Garbo e Robert Tylor. É uma adaptação do romance
A Dama das Camélias (1848), de Alexandre Dumas Filho (1824-
1895), uma das referências obrigatórias do Romantismo francês.

Atividades
1. Quando e por que a arte vira mercadoria?

2. Comente alguns dos propósitos pelos quais Almeida Garrett escreveu


poemas como “Camões e D. Branca”.

3. O poema “O Noivado do Sepulcro”, de Soares de Passos, tem por


princípio de composição o “belo horrível”. Explique o que é essa no-
ção proposta por Vitor Hugo.

– 149 –
8
O Realismo: 1865-1890
José Carlos Siqueira

8.1 O “realismo” como arma


de crítica social e política
BLANCHE: Não quero realismo. Eu quero magia. Sim,
sim, magia. É o que tento dar às pessoas. Não digo a verdade,
digo o que deveria ser verdade. E se isso é pecado, que eu seja
amaldiçoada para sempre. Não acenda a luz! (WILLIAMS,
1980, p. 189)

O trecho acima é um dos grandes momentos da peça de


Tennessee Williams, Um Bonde Chamado Desejo.1 Blanche Dubois,
uma mulher madura que procura fugir da decadência e da velhice,
explica para Mitch, um quase namorado, sua filosofia de vida. Além
de ser uma fala de grande efeito na dinâmica da peça de Tennessee
Williams, ela ainda possibilita outras leituras. Há aqui um sentido
metalinguístico, indicando talvez um certo esgotamento da estética
realista no drama da primeira metade do século XX – o que se com-
provaria com novas experiências cênicas como o Teatro do Absurdo,
1 Há um filme clássico baseado nesta peça, dirigido por Elia Kazan, com Vivien
Leigh e Marlon Brando (no Brasil recebeu o nome Uma Rua Chamada Pecado),
que pode ser facilmente encontrado em DVD.
Literatura de países de língua portuguesa

de um Ionesco, e Teatro Épico, de um Brecht, escolas que ganharam espaço


depois da Segunda Guerra.
Mas, num sentido ainda mais amplo, a fala de Blanche com certeza
estava antecipando uma tendência cultural que se manifestaria com toda
força bem depois de 1947, ano em que a peça de Williams estreou. Estamos
falando dos movimentos contraculturais que se desdobraram a partir dos
anos 1960, e que tiveram sua face política com as revoltas estudantis de 1968.
Nesse caso, um dos lemas mais significativos dos jovens rebeldes era “a ima-
ginação no poder”.
Feitos os devidos descontos, o paralelo com “Não quero realismo. Eu
quero magia” é muito pertinente. Os estudantes não defendiam apenas mais
“criatividade” na condução política, mas sim uma inversão de valores na
sociedade burguesa. Eles desejavam, assim como Blanche, mais magia na vida
dos indivíduos e comunidades. Mais liberdade sexual, possibilidades de novas
experiências (o uso de alucinógenos foi uma característica desse movimento),
novos caminhos espirituais que escapassem do monopólio cristão etc.
Uma das diretrizes das revoltas estudantis de 1968 era a de que a atitude
“realista”, fosse na política, na crítica social e na arte, não era mais suficiente.
Havia agora necessidade de um maior espaço para a espontaneidade e a intui-
ção, além de, é claro, muita imaginação. O Realismo enquanto posição epis-
temológica e política havia fracassado na tentativa de se alcançar um mundo
mais justo e livre. Chegara, portanto, a vez da magia.
No entanto, mais ou menos um século antes das barricadas estudantis de
1968, ironicamente um grupo de jovens intelectuais, estes também rebeldes,
propunha na Europa exatamente o contrário para se atingir os mesmíssimos
propósitos, justiça e liberdade. Estamos nos referindo às Conferências do
Casino, em Lisboa, no ano de 1871.

8.1.1 Pressupostos do “Realismo” do século XIX


Até agora utilizamos o termo realismo de forma genérica, que vai do
uso cotidiano – a postura de se encarar a vida como ela é – até o da polí-
tica tradicional, cuja atuação sempre considera as possibilidades efetivas de
sucesso, chegando à Realpolitik, isto é, a “Política internacional que se baseia

– 152 –
O Realismo: 1865-1890

em fatores pragmáticos e materiais, especialmente nas relações entre as forças


vigentes e em cenários concretos, em detrimento de influências ideológicas
ou considerações sobre doutrina e princípios” (Dicionário Houaiss). No caso
das Conferências do Casino, o conceito se concentra mais na esfera literária.
As conferências, ocorridas em maio e junho de 1871, foram um evento
cultural patrocinado por um grupo de jovens intelectuais portugueses, entre
eles, Antero de Quental (líder intelectual, poeta e filósofo), Batalha Reis
(escritor e crítico), Oliveira Martins (historiador), Teófilo Braga (poeta e
político), Eça de Queirós (jornalista e romancista), entre outros. Esse grupo
de jovens, todos com menos de trinta anos, estava disposto a colocar Portugal
no centro dos debates e das ideias que punham a Europa em chamas. As
palavras-chave das conferências eram democracia, república, socialismo e,
principalmente, revolução.

8.1.1.1 Contexto histórico: a ascensão


do movimento trabalhista
No mesmo ano de 1871, entre março e maio, na França, a Comuna
de Paris havia instaurado o primeiro regime socialista de origem operária da
história. Apesar de breve e de reprimido com excesso de violência pelas for-
ças burguesas2, esse movimento popular abalou toda a Europa e o resto do
mundo. Condenada por muitos, que a consideravam uma espécie de fim do
mundo, a Comuna foi vista por outros como a possibilidade de redenção e
2 “O acontecimento saliente e comentado destes últimos dias é a manifestação do dia 23 de
Maio [de 1880]. Lembram-se que há nove anos, nessa data [1871], na semana sanguino-
lenta da derrota da Comuna, os regimentos de Versalhes, invadindo Paris, numa demên-
cia de represálias, fizeram uma exterminação à antiga, fuzilando sem discernimento, pelos
pátios dos quartéis, entre os túmulos dos cemitérios, sob o pórtico das igrejas, todo o ser
vivo que era surpreendido com as mãos negras de pólvora e um calor de batalha na face.
Trinta e cinco mil pessoas foram aniquiladas nesta Saint-Barthélemy conservadora, nesta hec-
atombe da plebe, oferecida em sacrifício à ordem com o delírio com que o rei de Daomé de-
capita tribos inteiras em honra do ídolo Gri-Gri, ou os Cartagineses imolavam uma mocidade,
toda uma Primavera sagrada, para aplacar o mais cruel dos Baals, o negro e flamejante Moloch.
Onde foram sepultados tantos montões de cadáveres?... Apenas se sabe que parte foi arremes-
sada à vala comum do Père-Lachaise” (EÇA DE QUEIRÓS, 2002) [artigo publicado no jornal
carioca Gazeta de Notícias, no dia 24 jul. 1880. Eça era correspondente internacional desse
diário e, na época, residia na Inglaterra].

– 153 –
Literatura de países de língua portuguesa

início de uma nova era para a humanidade. Entre estes últimos, estavam os
conferencistas do Casino.
A comuna foi o desdobramento lógico da ascensão do movimento ope-
rário. Com a Revolução Industrial, iniciada em meados do século XVIII, o
número de trabalhadores fabris cresceu de maneira exponencial, e não só isso:
com sua concentração em grandes plantas industriais, os operários começa-
ram a se organizar em sindicatos e partidos políticos, transformando-se assim
numa força política de origem popular sem precedentes na história europeia
e americana.
Figura 1 – A rue Royale depois dos incêndios da Comuna de Paris.

Junto com o proletariado surgiram também inovadoras teorias políti-


cas e econômicas que alteraram profundamente o panorama ideológico dos
países em que a industrialização e o capitalismo se desenvolviam mais rapida-
mente. Com base na nova classe social, o proletariado, e na nova configura-
ção das forças sociais, burguesia versus trabalhadores, diversos pensadores de
maior sensibilidade social passaram a defender uma nova forma de organiza-
ção social: o Socialismo.

– 154 –
O Realismo: 1865-1890

Segundo essa corrente de pensamento político-social, a propriedade pri-


vada era o grande vilão da história, fonte da opressão de uma minoria sobre
o todo da sociedade e das injustiças sociais visíveis nas ruas das novas metró-
poles industriais. Sua proposta: fim da propriedade privada, que passaria a ser
coletiva, e da divisão de classes no seio da sociedade.
Nomes como Proudhon3, Fourier4, Bakunin5 e, principalmente, da dupla
de pensadores alemães, Karl Marx e Friedrich Engels,6 constituíram um corpus
da doutrina socialista que deu ao movimento operário a base teórica e as diretri-
zes políticas necessárias para suas reivindicações e tentativas de tomar o poder.
Figura 2 – COUBERT, Gustave. Proudhon e seus filhos. 1865. 1 óleo sobre
tela, 147 x 198 cm. Petit Palais, Paris.

3 Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), teórico político e jornalista francês. Uma das princi-
pais lideranças anarquistas sua obra mais conhecida e polêmica se chama O que é a propriedade,
na qual ele responde: ela é um roubo.
4 François-Marie Charles Fourier (1772-1837), filósofo francês, membro do movimento de-
nominado Socialismo Utópico.
5 Mikhail Bakunin (1814-1876), revolucionário russo, um dos fundadores e formuladores do
Anarquismo. Uma de suas principais obras: Deus e o Estado.
6 Karl Heinrich Marx (1818-1883), filósofo e economista alemão. Formulador do Socialismo
Científico, além de O Capital (3v., 1867-1894), escreveu ainda O Manifesto Comunista (1848)
e A Ideologia Alemã (1846), ambos em colaboração com Friedrich Engels (1820-1895), filó-
sofo e líder socialista.

– 155 –
Literatura de países de língua portuguesa

8.1.1.2 Contexto histórico: a hegemonia


do pensamento empirista
A comuna, assim como as conferências, foi resultado de grandes
mudanças no pensamento ocidental (ou seja, a Europa e as Américas).
O grande desenvolvimento científico e econômico iniciado no século XVIII,
também em linha com a Revolução Industrial, havia dado ao Empirismo,
uma importante corrente filosófica e científica, um papel hegemônico na
condução das ideias e pesquisas do período. Em síntese, o Empirismo propu-
nha que o conhecimento humano só era possível a partir dos dados captados
pelos sentidos, passíveis de serem analisados, quantificados e, de preferência,
reduzidos à linguagem matemática.
Para o que nos interessa aqui – as motivações das Conferências do Casino
e o Realismo na literatura – fiquemos com alguns exemplos. Na Biologia,
Charles Darwin7 propôs a Teoria da Evolução, marco nos estudos da origem
da humanidade. Na Economia, temos Adam Smith8 definindo as bases do
liberalismo econômico (a tal da “mão invisível”). Na História, Taine9 elabora
um método determinista baseado no ambiente, na raça e no contexto histó-
rico. Na Política, Marx faz uma contundente crítica da sociedade burguesa
com sua superlativa obra O Capital.
Numa análise algo esquemática, mas pertinente aos nossos propósitos,
podemos dizer que, com esses quatro exemplos, as seguintes ideias passaram
a ser centrais no debate ocidental: o homem começou a ser visto como um
animal entre outros (evolucionismo), o que solapava os princípios teológicos
e metafísicos até então vigentes; as finanças nacionais, empresariais e indi-
viduais poderiam ser manipuladas através de técnicas e políticas racionais
(política econômica); a história passou a exibir características de previsibili-
dade e prognóstico (história científica); e a sociedade tornou-se possível de
7 Charles Robert Darwin (1809-1882), biólogo e naturalista inglês. Formulador da Teoria da
Evolução, sua principal obra é A Origem das Espécies (1859).
8 Adam Smith (1732-1790), filósofo e economista escocês. Um dos pais da economia de mer-
cado ou liberalismo econômico, sua principal obra é A Riqueza das Nações (1776).
9 Hippolyte-Adolphe Taine (1828-1893), filósofo e historiador francês. Uma de suas princi-
pais obras é História da literatura inglesa (1864-1869), na qual aplica seu método determinista.

– 156 –
O Realismo: 1865-1890

ser reformada de modo racional (socialismo científico). Em suma, o homem


do século XIX sentia que a razão, o método científico e os princípios mate-
rialistas eram capazes de não apenas explicar a realidade, mas de alterá-la da
maneira que melhor conviesse aos interesses da humanidade. Mas para isso
era necessário abdicar do pensamento religioso, que obstaculizava a apreensão
da realidade como ela era, e dos “enganos” metafísicos que filósofos e poetas
românticos colocavam como a verdadeira essência do ser humano.
Eis aqui alguns dos pressupostos que levaram os conferencistas do Casino
a propor um novo quadro mental para a nação portuguesa, que segundo eles
se encontrava na mais atrasada mentalidade da Europa, e também a propor
radicais mudanças na condução política de Portugal e em sua estrutura social.
Em termos culturais e literários, os princípios expostos tiveram como expres-
são uma corrente estética que seus próprios proponentes denominaram de
Realismo. Um conceito que seria apresentado e analisado nas Conferências
do Casino por aquele que se tornaria o maior romancista português desse
século, Eça de Queirós.

8.1.2 O Realismo segundo Eça


Fazendo um apanhado geral até agora, podemos dizer que o “rea-
lismo”, como atitude intelectual, se configurava no século XIX como uma
posição inovadora e revolucionária. Com base nos avanços científicos que o
Empirismo havia proporcionado e nas revoluções sociais, também decorren-
tes desse novo quadro conceitual – cujo ápice se dá na Comuna de Paris – o
“realismo” é mais do que uma atitude, é também uma forma de ação política
e social. No campo da cultura, e especificamente da literatura, o Realismo
será a expressão estética de toda essa mentalidade.
Surgia assim a literatura engajada, tomada como arma de combate e de
intervenção social. A literatura passava a funcionar como forma de ação revo-
lucionária. É nesse momento que aparece o romance de tese, que procurava
demonstrar, a partir de critérios cientificistas de base sociológica e antropoló-
gica, o modo como funcionava a sociedade. Tal gênero romanesco tinha por
intuito denunciar as injustiças e os abusos cometidos por parte das classes e
dos grupos dominantes.

– 157 –
Literatura de países de língua portuguesa

É com esse espírito que Eça de Queirós vai explicar o Realismo a seus
compatriotas em Lisboa, na conferência do dia 12 de junho de 1871. Antes
dele haviam se apresentado Antero de Quental, com sua famosa palestra
Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos, uma análise
até hoje respeitada sobre as dificuldades de Portugal em se desenvolver na
modernidade capitalista; e Augusto Soromenho, que falara sobre A literatura
portuguesa, criticando-a duramente pela falta de originalidade e gosto. A con-
ferência de Eça se intitulava A literatura nova (o realismo como nova expressão
da arte) e, para nossa dificuldade, ele não a deixou redigida, havendo profe-
rido a palestra de memória. No entanto, vários jornalistas presentes fizeram
anotações e deixaram esses registros em suas coberturas sobre o evento10.
De qualquer forma, há uma visível progressão entre essas três conferên-
cias. Na de Antero, analisa-se o passado de Portugal e as causas de sua estag-
nação. Soromenho critica o presente da literatura lusa, enquanto Eça propõe
uma nova estética para o futuro das letras do país – inclusive ele seria o res-
ponsável pela primeira obra realista de vulto em Portugal, com seu O Crime
do Padre Amaro, publicado em primeira versão no ano de 1875.
A conferência de Eça baseou-se, principalmente, em dois pensadores já
citados aqui: Taine e Proudhon. Inicialmente, nosso autor declara que a revo-
lução era um fato permanente e que ela devia participar de todas as esferas
da vida, o que incluía a literatura. Semelhante condição exigia que o artista
mantivesse estreitos laços com sua sociedade e seu tempo, sendo capaz de
representar a realidade de forma precisa. Diz Eça:
O realismo deve ser perfeitamente do seu tempo, tomar a sua maté-
ria na vida contemporânea. Deste princípio, que é basilar, que é a
primeira condição do realismo, está longe a nossa literatura. A nossa
arte é de todos os tempos, menos do nosso. (RIBEIRO, 1994, p. 94)

Nesse trecho, Eça está criticando em particular o Romantismo portu-


guês, que segundo ele havia se alienado da realidade social e se fechado num
convencionalismo insípido. Há também com certeza uma crítica ao romance
10 Há um resumo da palestra na obra de António Salgado Jr., História das Conferências do
Casino. Lisboa: Cooperativa Militar, 1938.

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O Realismo: 1865-1890

histórico, “nossa arte é de todos os tempos”, uma das principais correntes


românticas dentro da produção romanesca. E o que seria então o Realismo
para o conferencista?
Que é, pois, o realismo? É uma base filosófica para todas as concepções
do espírito – uma lei, uma carta de guia, um roteiro do pensamento
humano, na eterna região do belo, do bom e do justo. Assim conside-
rado, o realismo deixa de ser, como alguns podiam falsamente supor,
um simples modo de expor – minudente, trivial, fotográfico. Isso não
é Realismo: é o seu falseamento. É o dar-nos a forma pela essência,
o processo pela doutrina. O realismo é bem outra coisa: é a negação
da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do
piegas. É a abolição da retórica considerada como arte de promover
a comoção usando da inchação do período, da epilepsia da palavra,
da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta.
Por outro lado, o Realismo é uma reação contra o Romantismo: o
Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a anatomia
do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos
próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos
verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa
sociedade. (MATOS, 1988, p. 127)

Por fim, Eça de Queirós dá como modelos de Realismo o romancista


francês Flaubert, autor de Madame Bovary, e o pintor, também francês,
Gustave Courbet (1819-1877). A menção a esse pintor não é gratuita. Na
verdade, o Realismo enquanto corrente estética foi introduzido pelas artes
plásticas, exatamente por Courbet. Ele foi o criador dos famosos e polêmicos
quadros Enterro em Ornans (veja a figura a seguir) e As Banhistas, além do
escandaloso, e portanto ainda mais famoso, A Origem do Mundo11. Courbet
teve suas pinturas recusadas na Exposição Universal de Paris e, em represália,
montou uma exposição paralela nas ruas de Paris em 1855. Dizia ele: “O
título de realista me foi imposto, como impuseram aos homens de 1830 o
título de românticos”, sendo que o que procurava em seus quadros era “tra-
duzir os costumes, as ideias, o aspecto de [sua] época”, “fazer arte atual” (apud
MOISÉS, 1980, p. 201).
11 Essas pinturas podem ser apreciadas no site do Museu d’Orsay. Disponível em: <http://www.
musee-orsay.fr/>. Acesso em: 23 out. 2017.

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Literatura de países de língua portuguesa

Figura 3 – COURBET, Gustave. Enterro en Ornans. 1849. 1 óleo sobre tela,


315 x 667 cm. Museo d’Orsay, Paris.

Fazendo uma síntese, podemos dizer que o Realismo se caracterizaria


pelos seguintes traços:
22 a reação ao Romantismo (que passara a ser uma literatura conven-
cional e conservadora), rejeitando qualquer tipo de sentimenta-
lismo ou de devaneios exacerbados da imaginação;
22 objetividade em contraposição ao subjetivismo do Romantismo;
22 a utilização de métodos racionalistas típicos da filosofia empirista
e da ciência;
22 a elaboração de uma crítica precisa à sociedade burguesa, mos-
trando com fidelidade suas mazelas e injustiças (proposta tipica-
mente revolucionária).
Depois da palestra de Eça de Queirós, a tribuna foi ocupada por Adolfo
Coelho, com o tema A questão do ensino, no dia 19 de junho de 1871. Foi
uma contundente crítica à educação portuguesa e, em particular, à influência
da Igreja Católica sobre o país, propondo que houvesse uma total separação
entre o Estado e a Igreja. Talvez pela contundência dessa última palestra,
ou pelo conjunto da obra, o governo português de forma arbitrária e algo
acovardada suspende as Conferências do Casino ainda nos seus inícios. Não
podemos deixar de pensar que a Comuna de Paris e seu massacre também

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O Realismo: 1865-1890

tenham influenciado nessa decisão. Sabe-se lá o que poderia acontecer na


capital portuguesa se as Conferências fossem até o fim.

8.1.3 O Realismo e o Naturalismo


Antes de passarmos à apresentação dos principais autores e obras do
Realismo português, devemos esclarecer a distinção entre a corrente realista e
a naturalista. Ambas são contemporâneas e partilham dos princípios expostos
na seção anterior, no entanto, têm lá as suas diferenças.
As duas vertentes participam ainda da mesma base de pensamento: o
empirismo, o positivismo, a teoria determinista de Taine, o ímpeto revolu-
cionário, a crítica social e panfletária etc. E cumprem essas diretrizes esco-
lhendo para sua produção literária temas contemporâneos ao autor e ligados
à vida quotidiana, em geral, à família (adultério, incesto), à esfera do dinheiro
(exploração, carreirismo, governo) e da cultura (jornalismo, teatro, religião).
O Naturalismo seria uma espécie de prolongamento dessas caracterís-
ticas, adicionando-lhes um maior grau de cientificidade e de interesse pelo
patológico. Ou seja, a literatura naturalista funcionaria como um comple-
mento ao Realismo, continuando onde este para e aguçando sua análise num
viés mais fisiológico e centrado no doentio, na excentricidade. Isso se deve a
um maior apego às ideias positivistas. O Positivismo é ele também um pro-
longamento e uma radicalização do pensamento empirista, e sua índole mate-
rialista, experimentalista e, principalmente, organicista (isto é, que interpreta
o universo ou a natureza como um gigantesco organismo vivo) era levada
tão a sério por seus adeptos que o Positivismo chegou mesmo a conhecer um
caráter religioso – em seus próprios termos, é claro. Auguste Comte (1798-
-1857), um dos mais importantes pensadores positivista, chegou a fundar
uma nova doutrina religiosa, a Religião da Humanidade e há no Brasil uma
seção desse sistema religioso, a Igreja Positivista do Brasil.
O romance será o gênero preferencial do Naturalismo, veículo com-
petente para longas análises de personagens e de suas histórias. Por meio
dos enredos romanescos se destrincham longínquas causas sociais, étnicas,
hereditárias etc., capazes de explicar os comportamentos anômalos e desvian-
tes desses personagens e das situações sociais que era o foco dos naturalis-
tas. Sempre com a meticulosidade própria de um fisiologista, especialidade

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Literatura de países de língua portuguesa

médica à qual os escritores dessa corrente gostavam de se comparar. Émile


Zola (1840-1902), romancista naturalista francês, explica o processo do
romance experimental:
Possuir os mecanismos dos fenômenos humanos, mostrar a engrena-
gem das manifestações intelectuais e sensuais, tais como a fisiologia
as explicará, sob as influências da hereditariedade e das circunstâncias
do ambiente; a partir daí, mostrar o homem vivo no meio social que
ele mesmo produziu, que ele modifica quotidianamente e no seio do
qual experimenta, por sua vez, uma transformação contínua. (REIS,
2001, p. 22)

É nesse sentido que se define o “romance de tese”, uma subcategoria


romanesca, própria do Realismo e Naturalismo: obra ficcional que emprega
métodos experimentais sobre dados raciais, ambientais e sociais a fim de
provar uma tese, em geral proposta pelas ciências (Biologia, Sociologia,
Psicologia). O autor coloca personagens-tipos, ou seja, que exemplificam um
conjunto de indivíduos (uma classe social, uma profissão, uma tara etc.), em
situações controladas, portanto, experimentais, e o desenvolvimento da his-
tória, por meios deterministas, demonstra a validade de tal tese. Nas palavras
de Émile Zola:
Os romancistas naturalistas observam e experimentam e [...] todo o seu
labor decorre da dúvida em que se colocam perante as verdades mal
conhecidas, os fenômenos inexplicados, até que uma ideia experimen-
tal desperta bruscamente um dia o seu gênio e leva-os a instituir uma
experiência, para analisar os fatos e dominá-los. (REIS, 2001, p. 22)

8.2 A poesia realista


Apesar do romance ser a forma preferencial do Realismo e do
Naturalismo, uma importante geração de poetas realistas surgiu na segunda
metade do século XIX, em Portugal, que devolveu a poesia lusitana aos pata-
mares que havia atingido no Classicismo e no Arcadismo. Duas características
principais devem ser mencionadas para se definir essa produção:
22 trata-se de uma poesia engajada, tanto no sentido de se aferrar aos
movimentos sociais e políticos do momento, logo, revolucionários,

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O Realismo: 1865-1890

quanto no de promover e discutir os grandes princípios filosóficos


e intelectuais que informavam o Realismo;
22 era uma poesia ligada ao seu tempo e ao cotidiano, buscando na
vida contemporânea temas e imagens para difundir seus ideais poé-
ticos e de escola.
O nome mais proeminente da poesia portuguesa realista é o já mencio-
nado Antero de Quental, a quem dedicaremos uma seção exclusiva.

8.2.1 A poesia filosófica de Antero de Quental


Antero Tarquínio de Quental nasceu em Ponta Delgada, nas ilhas dos
Açores, em 1842. Estudou Direito em Coimbra, onde com seu carisma e
brilho intelectuais se tornou uma liderança inconteste entre seus colegas. Em
1865, publica as Odes Modernas, livro que juntamente com as Tempestades
Sonoras e a Visão dos Tempos, de Teófilo Braga, vão causar a grande polêmica
da época, a chamada Questão Coimbrã. Após uma série de viagens, Antero
volta a Lisboa, onde integra o grupo de jovens intelectuais autointitulado O
Cenáculo (1868). Desse grupo faziam parte Eça de Queirós, Jaime Batalha
Reis e Ramalho Ortigão, entre outros.
Em 1871, como já dissemos, Antero dirige as Conferências do Casino
e participa ativamente delas. Nos anos seguintes, procura desenvolver ações
e grupos socialistas em Portugal, associando-se a organizações operárias e
mantendo relações com o movimento proletário internacional. Depois de
um longo período de frustrações políticas e isolamento autoimposto, o poeta
volta à militância revolucionária e se filia à Liga Patriótica do Norte, um
grupo de ativistas organizado após o Ultimatum inglês (1890). Mais uma vez
vendo frustrado os seus planos de mudança social, Antero se isola novamente
em sua terra natal e termina se suicidando em 11 de setembro de 1891.
Antero escreveu poesia e a prosa polêmica e filosófica. No primeiro caso,
temos: Odes Modernas (1865), Primaveras Românticas, Versos dos Vinte Anos
(1871), Sonetos completos (1886), Raios de extinta luz (1892). No segundo,
sua produção foi reunida em três volumes: Prosas (1923, 1926, 1931).

– 163 –
Literatura de países de língua portuguesa

Foi com as Odes Modernas que Antero, muito jovem, fez-se conhecido
em Portugal, desencadeando a famosa Questão Coimbrã, como informado
acima. Nesse livro, seus versos são revolucionários, iconoclastas e irreverentes,
motivo de haver mexido com os brios conservadores da crítica da época:
Eu quero perguntar aos Sacerdotes,
Que, chamando rebanho a seus irmãos,
Cuidam que Deus lhes cabe em duas mãos,
E todo o céu debaixo dos capotes;
Quero-os interrogar – porque, em verdade,
Se saiba qual mais val, se o pau se a cruz?...
Se o sol ao círio deu a sua luz,
Ou deu o círio ao sol da claridade?...
Se a cúpula do Céu teve modelo
Na cúpula da Igreja? e se as estrelas,
Para alcançar licença de ser belas,
Foram pedir a alguém o santo-selo?
Se foi Deus, quando o sol saiu do abismo,
Que à luz do infinito o batizou;
Ou se algum bispo foi que o sustentou,
Inda infante, nas fontes do batismo? (QUENTAL, 2008)

Percebe-se nesse trecho do poema “Pater” a atitude anticlerical e antir-


religiosa típica do Realismo. O sarcasmo é evidente, ampliado pela estratégia
de perguntas irreverentes e blasfemas.
Se a obra de juventude mostra seu interesse e vigor pela disposição de
afrontar, a produção de maturidade de Antero nos descortina uma poesia
mais atormentada. O tormento vem de uma série de dilemas existenciais
experimentados pelo poeta e filósofo a partir de sua vida adulta. Havia nele
uma disposição pelas grandes lutas coletivas, pela revolução, mas também era
vítima de uma grave consciência das questões últimas de todo o indivíduo:
o sentido da vida, o da morte, a imortalidade da alma. Antero por vezes
demonstrava aquela confiança típica de sua geração na ciência e na raciona-
lidade humanas, porém, em outros momentos, se dava conta da futilidade
dessas faculdades em responder às angústias do indivíduo.

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O Realismo: 1865-1890

Tese e antítese
Já não sei o que vale a nova ideia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, á luz da barricada,
Como bacante após lúbrica ceia!
Sanguinolento o olhar se lhe incendeia...
Respira fumo e fogo embriagada...
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medéia!
Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz...
Mas a ideia é num mundo inalterável,
Num cristalino céu, que vive estável...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
II
Num céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espetáculo divino.
Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante...
Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
Cá da terra blasfema ou ergue um hino...
A ideia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!
Combatei pois na terra árida e bruta,
Té que a revolva o remoinhar da luta,
Té que a fecunde o sangue dos heróis! (QUENTAL, 2008)

Nesse poema, composto de dois sonetos, o próprio título e a própria


forma adotada já exprimem o dilaceramento do poeta. À necessidade de
implantar uma ideia aqui na terra, certamente a revolução, se contrapõe o
horror das lutas que se seguem. No entanto, a ideia, que é chama e sofri-
mento na mente dos homens, é um ser divino e impassível numa dimensão

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Literatura de países de língua portuguesa

transcendente. Duas realidades opostas e irreconciliáveis, tese e antítese inca-


pazes de uma síntese para o inconstante e mortal ser humano.

8.2.2 Outros poetas realistas


Além de Antero de Quental, vale destacar ainda os nomes de Guerra
Junqueiro (1850-1923), Gomes Leal (1848-1921) e Cesário Verde. Este
último é dono de uma obra singular e característica.
José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa, em 1855. Filho de uma
família de comerciantes, dedicou-se desde cedo aos negócios dos pais. Estudou
por pouco tempo no Curso Superior de Letras, onde se tornou amigo íntimo
de Silva Pinto. Em 1873, publicou pela primeira vez seus poemas no Diário
de Notícias. Continuou publicando seus versos em jornais até morrer em
1886, aos 31 anos, vítima da tuberculose. No ano seguinte à sua morte, Silva
Pinto coligiu os poemas do amigo e publicou O Livro de Cesário Verde.
Sua produção pode ser classificada como “poesia do cotidiano”. Bem
próximo dos princípios realistas que tematizavam o tempo contemporâneo e
a realidade material, Cesário Verde desejava cantar o cotidiano mais prosaico,
escapando assim dos temas nobres: amor, morte, subjetividade, que faziam
parte do repertório romântico. No entanto, sua poesia trazia um jogo entre
objetividade e subjetividade que lhe é muito peculiar. Assim, a percepção
objetiva da realidade passa pelo crivo de sua subjetividade, gerando um con-
junto de imagens bastante originais e críticas dessa realidade:
III — Ao Gás
E saio. A noite pesa, esmaga.
Nos Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Cercam-se as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;

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O Realismo: 1865-1890

E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,


As freiras que os jejuns matavam de histerismo
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas replandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe. (VERDE, 2008)

Percebe-se nesse trecho de “O sentimento dum ocidental” como todos


os tipos humanos têm seu lugar: prostitutas, carolas, artesãos, trabalhadores.
Na segunda estrofe, há uma fusão entre a descrição fiel que se fazia da rua
e a sensação do eu poético de estar vendo um longo átrio de igreja. Lojas,
vitrines, postes de luz e asfalto se reconfiguram na sensibilidade do poeta e
transformam-se num lugar ironicamente sagrado: a rua de comércio resplan-
decente torna-se o templo do homem moderno, o templo do consumo, ao
qual corresponde a nova religião – o consumismo – praticada especialmente
pelos burgueses do final do século XIX.

8.3 A prosa realista


Na prosa de ficção realista portuguesa, incluindo-se romances e contos,
destacam-se nomes como Abel Botelho (1854-1917), que escreveu o romance
O Barão de Lavos (1891), de viés naturalista, obra que aborda pela primeira
vez a homossexualidade em Portugal. Fialho de Almeida (1857-1911),
importante contista, deixou-nos as coletâneas Contos (1881), A Cidade do
Vício (1882) e O País das Uvas (1893). Temos ainda outros nomes signifi-
cativos, como Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, mas que se destacaram
principalmente no jornalismo e na prosa intelectual.
Há, porém, uma figura cuja estatura literária e intelectual acaba obscure-
cendo esses seus contemporâneos: Eça de Queirós. Para fins didáticos, vamos
dividir sua produção em jornalismo e ficção.

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Literatura de países de língua portuguesa

8.3.1 Eça jornalista


José Maria Eça de Queirós nasceu em Póvoa de Varzim, em 1845.
Estudou Direito em Coimbra e fez parte da agitada geração acadêmica
daquele período, entusiasmada com as ideias de Proudhon e de Comte.
Foi amigo de Antero de Quental, Teófilo Braga e outros envolvidos com a
Questão Coimbrã. Terminada a universidade, muda-se para Lisboa e escreve
crônicas e folhetins para a Gazeta de Portugal, diário de certa importância da
capital, de 1865 a 1867. Nesse meio tempo, Eça vai para a cidade de Évora,
interior de Portugal, onde funda, redige sozinho e comercializa um jornal
de oposição chamado O Distrito de Évora, numa fantástica experiência tanto
empresarial quanto jornalística. O projeto vai de janeiro de 1867 até agosto
do mesmo ano, quando retorna para Lisboa e se filia ao já mencionado grupo
do Cenáculo (1868), capitaneado por Antero.
Em 1869, viajou ao Egito para acompanhar a inauguração do Canal de
Suez. No regresso, participou das Conferências do Casino (1871), já comenta-
das, e em seguida foi para Leiria como administrador do Concelho, condição
para que pudesse ingressar na carreira diplomática. De sua estada em Leiria
(seis meses) veio a inspiração para O Crime do Padre Amaro (1875). Aprovado
em concurso, foi nomeado cônsul em Havana (1873). No ano seguinte foi
transferido para Newcastle upon Tyne (Inglaterra). Dali é transferido para
Bristol onde fica até 1878. Finalmente consegue sua desejada nomeação para
Paris. Nesse período se casou, teve quatro filhos. Morando na periferia de
Paris e cercado de familiares e amigos, faleceu em 1900.
Além das duas experiências jornalísticas de juventude, conforme
anteriormente comentado, Eça ainda colaborou com os seguintes órgãos
de imprensa:
22 As Farpas, uma revista de pequenas proporções que ele fundou e
dirigiu junto com Ramalho Ortigão de 1871 a 1872;
22 A Actualidade, jornal do Porto, de 1877 a 1878, em que colaborou
como correspondente na Inglaterra;
22 A Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1880 a 1897, em que,
além de correspondente, foi também o diretor de seu Suplemento
Literário, o primeiro publicado no Brasil;

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O Realismo: 1865-1890

22 A Revista de Portugal, projeto ambicioso de uma revista ilustrada


que Eça fundou e coordenou de 1889 a 1892;
22 Revista Moderna, também uma revista ilustrada de propriedade de
um empresário brasileiro. Eça dirigiu a revista de 1897 a 1899.
Em vista de semelhante participação na imprensa, teve uma importante
atuação junta à formação intelectual de muitos portugueses e brasileiros, o
que o transformou numa referência intelectual no Brasil e em Portugal.

8.3.2 Eça romancista


Apesar de ter sido muito famoso como jornalista, é como romancista
que Eça de Queirós vai passar para a posteridade. Sua produção romanesca
não é muito extensa, mas é de grande qualidade, sendo que, apesar de reco-
nhecido como o mais importante escritor realista, ele experimentou outros
gêneros e estilos que se afastavam dessa corrente.
Podemos dividir suas obras conforme a seguir:
22 romances publicados em vida: O Crime do Padre Amaro, 1876
(segunda versão); O Primo Basílio, 1878; O Mandarim, 1880;
A Relíquia, 1887; Os Maias, 1888;
22 romances semipóstumos (que chegaram a ter alguma divulgação ou
revisão antes da morte de Eça, mas só foram publicados por inteiro
após seu falecimento): A Ilustre Casa de Ramires, 1900; A Cidade e
as Serras, 1901;
22 romances e novelas póstumos e inconclusos: A Capital (1925);
O Conde de Abranhos (1925); Alves & Cia. (1925); A Tragédia da
Rua das Flores (1980).
Entretanto, essa não é a única divisão possível da obra eciana. Há tam-
bém um certo consenso por parte da crítica sobre a existência de duas fases
na vida do romancista. A primeira seria aquela dos romances marcadamente
realistas, que vai do Crime do Padre Amaro até Os Maias. Após a publicação
deste último, a escrita dos romances de Eça teria sofrido certas mudanças e se
distanciado das balizas realistas, algo que teria ocorrido com A Ilustre Casa e
A Cidade e as Serras.

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Literatura de países de língua portuguesa

8.3.2.1 O Eça da primeira fase


Nessa fase, Eça vai publicar suas histórias mais contundentes em termos
de crítica à sociedade portuguesa e, também, mais polêmicas e, poderíamos
dizer, escandalosas. Seguindo os princípios realistas, seu primeiro romance,
O Crime do Padre Amaro, é de um anticlericalismo atroz. O escritor português
delineia um amplo quadro da vida dos clérigos numa pequena cidade interio-
rana, Leiria. Nele, os padres são glutões, avarentos, ambiciosos, lascivos e, em
suma, corruptos e corruptores. Amaro, um jovem padre que assume a igreja
da Sé em Leiria, seduz uma moça carola, Amélia, com quem tem um filho.
Apesar do caso terminar em tragédia, o final do livro mostra um Amaro, anos
mais tarde, bem posto na carreira eclesiástica, sem remorsos e, tendo como
única lição de todo o infortúnio, a consciência de que só deveria se envolver
com mulheres casadas.
No capítulo XXV desse romance, o padre Amaro se encontra com o
cônego Dias no centro de Lisboa e eles falam sobre os acontecimentos da
Comuna de Paris:
Então indignaram-se contra essa turba de maçons, de republicanos,
de socialistas, gente que quer a destruição de tudo o que é respeitá-
vel — o clero, a instrução religiosa, a família, o exército e a riqueza...
Ah! a sociedade estava ameaçada por monstros desencadeados! Eram
necessárias as antigas repressões, a masmorra e a forca. Sobretudo ins-
pirar aos homens a fé e o respeito pelo sacerdote.
— Aí é que está o mal, disse Amaro, é que nos não respeitam! Não
fazem senão desacreditar-nos... Destroem no povo a veneração pelo
sacerdócio...
— Caluniam-nos infamemente, disse num tom profundo o cônego.
Então junto deles passaram duas senhoras, uma já de cabelos brancos,
o ar muito nobre; a outra, uma criaturinha delgada e pálida, de olhei-
ras batidas, os cotovelos agudos colados a uma cinta de esterilidade,
pouff enorme no vestido, cuia forte, tacões de palmo.
— Cáspite! disse o cônego baixo, tocando o cotovelo do colega. Hein,
seu padre Amaro?... Aquilo é que você queria confessar.
— Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse e pároco rindo, já as não
confesso senão casadas!
O cônego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade...
(QUEIRÓS, 2008)

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O Realismo: 1865-1890

Apesar do tema forte e provocativo, O Crime do Padre Amaro passou des-


percebido pelo público. Somente com O Primo Basílio, Eça viria a conhecer a
fama e o reconhecimento. Nesse segundo romance, nosso autor vai abordar o
adultério. Podemos dizer que ele providencia a versão portuguesa de Madame
Bovary. Agora seu alvo é a pequena burguesia lisboeta. Luísa, jovem esposa de
um graduado funcionário público, se aproveita de uma viagem a serviço do
marido para se entregar aos prazeres com um primo, namorado de infância,
que retornara a Portugal depois de longa ausência. Basílio, o tal primo, é
um cafajeste de posses e se diverte com a prima, alimentando-lhe os sonhos
românticos. Saciado, Basílio parte para o exterior e deixa Luísa em palpos de
aranha com sua criada, Juliana, que se apossara de cartas comprometedoras e
passa a chantagear Luísa. Tudo se resolve da pior maneira possível, demons-
trando a falta de princípios e o individualismo exacerbado dessa classe média.
No capítulo VII de O Primo Basílio, Luísa e Basílio discutem no
“Paraíso” (quarto imundo que ele havia alugado para os encontros), e ela
resolve ir embora:
— Vais-te, Luísa?
— Vou. É melhor acabarmos por uma vez...
Ele segurou o fecho da porta rapidamente.
— Falas sério, Luísa?
— Decerto. Estou farta!
— Bem. Adeus.
Abriu a porta para a deixar passar, curvou-se silenciosamente.
Ela deu um passo, e Basílio com a voz um pouco trêmula:
— Então, é para sempre? Nunca mais?
Luísa parou, branca. Aquela triste palavra nunca mais deu-lhe uma
saudade, uma comoção. Rompeu a chorar.
As lágrimas tornavam-na sempre mais linda. Parecia tão dolorida, tão
frágil, tão desamparada!...
Basílio caiu-lhe aos pés: tinha também os olhos úmidos.
— Se tu me deixares, morro!

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Literatura de países de língua portuguesa

Os seus lábios uniram-se num beijo profundo, longo, penetrante. A


excitação dos nervos deu-lhes momentaneamente a sinceridade da
paixão; e foi uma manhã deliciosa.
Ela prendia-o nos braços nus, pálida como cera, balbuciava:
— Não me deixes nunca, não?
— Juro-te! Nunca, meu amor! (QUEIRÓS, 2008)

O discurso amoroso de ambas as partes é, no limite, falso, pois Luísa se


envolve com Basílio por simples tédio e Basílio conquista Luísa por diversão.
Denuncia-se, assim, a falta de valores consistentes da burguesia.
Em Os Maias, Eça visa a alta burguesia portuguesa. Sofisticada e cos-
mopolita, essa classe não possui qualquer responsabilidade com o país e seu
povo, apenas usufruindo o que a nação possa lhe dar de bom, e pronta para
“abandonar o navio” a qualquer contratempo. O charmoso e elegante Carlos
da Maia, modelo maior de dandy e perfeito representante da elite econô-
mica, usa sua alta formação de maneira totalmente diletante, sem propósi-
tos concretos e sem dar a sua existência qualquer significado mais elevado.
Envolve-se apaixonadamente com a amante de um outro endinheirado, e
acaba por montar-lhe uma confortável casa nos arredores de Lisboa. Nessa
situação idílica, Carlos descobre que a amante, Maria Eduarda, era sua irmã
de sangue. A mãe de Carlos havia abandonado o lar quando este era ainda
muito pequeno e levara com ela a filha, mais nova do que Carlos, para viver
uma aventura amorosa pela Europa, e nunca mais dera notícias.
Assim resumida, a história parece rocambolesca, mas não é. Estruturado
com rigor, o enredo se desenvolve entre cenas da high society lisboeta, tor-
nando plausível o caso de incesto. Já nesse livro Eça dá sinais de mudanças
no seu estilo literário, o tema é ainda chocante, mas há menos crítica direta,
menos denúncia sarcástica das mazelas dos homens que deveriam comandar
os destinos da nação portuguesa. Na verdade, o escritor passa a utilizar uma
estratégia literária mais sutil, apesar de não menos competente, de denunciar,
por meio da estruturação do romance, abrindo mão do ataque direto, a falta
de compromisso da alta burguesia com os caminhos da nação.
Vejamos esta conversa entre o grupo de amigos de Carlos, em que se
discutem os graves problemas financeiros do país durante um lauto jantar.

– 172 –
O Realismo: 1865-1890

O principal convidado é Cohen, um banqueiro que tem informações privi-


legiadas, que ouve uma indagação de João da Ega, melhor amigo de Carlos
da Maia:
— Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimo faz-se
ou não se faz?
E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questão
do empréstimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro
episódio histórico!...
O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu,
com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar absoluta-
mente. Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes
de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto.
A única ocupação mesmo dos ministérios era esta – cobrar o imposto e
fazer o empréstimo. E assim se havia de continuar...
Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o
país ia alegremente e lindamente para a bancarrota.
— Num galopezinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen,
sorrindo. Ah, sobre isso, ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem
os próprios ministros da fazenda!... A bancarrota é inevitável: é como
quem faz uma soma...
Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos
escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o cálice de novo, fin-
cara os cotovelos na mesa para lhe beber melhor as palavras.
— A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela –
continuava o Cohen – que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou
três anos, fazer falir o país...
Ega gritou sofregamente pela receita. Simplesmente isto: manter uma
agitação revolucionária constante; nas vésperas de se lançarem os
empréstimos haver duzentos maganões decididos que caíssem à pan-
cada na municipal e quebrassem os candeeiros com vivas à República;
telegrafar isto em letras bem gordas para os jornais de Paris, Londres
e do Rio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brasileiro, e a
bancarrota estalava. Somente, como ele disse, isto não convinha a
ninguém. (QUEIRÓS, 2008)

O jogo aqui é que o leitor perceba a posição dos personagens: todos bem
de vida, fruindo um saboroso convívio, alguns deles em postos de comando

– 173 –
Literatura de países de língua portuguesa

no país (o caso de Cohen, diretor do Banco Nacional) e discutindo os pro-


blemas da nação como se fosse um assunto bizantino. Eça abria mão de um
discurso mais contundente por uma estratégia literária muito mais irônica e
mais interessante em termos estéticos e críticos.

8.3.2.2 O Eça da segunda fase


Os dois últimos romances de Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires
e A Cidade e as Serras têm sido desde sempre um ponto problemático para a
crítica queirosiana. Obras póstumas ou semipóstumas, como querem alguns,
esses romances já trazem em sua origem uma série de dúvidas de difícil solu-
ção. Mas, além disso, ambas representam uma mudança de rumo na produ-
ção de Eça, tanto em termos estéticos quanto em conteúdo crítico, cuja falta
de desdobramentos e de explicações por parte do próprio autor, devido ao seu
falecimento, deram vazão a inúmeras especulações.
Atendo-se apenas às principais e mais radicais correntes de interpreta-
ção, vale destacar o uso feito pela propaganda salazarista dessas obras, na qual
o último Eça era visto como apologista de um Portugal tradicional, fundado
em profundos princípios nacionais que possibilitavam à nação, em meados
dos novecentos, ser uma ilha de tranquilidade no meio de uma Europa con-
turbada. Em parte como reação à semelhante leitura, uma corrente da crí-
tica de viés mais à esquerda, e comprometida com a oposição à ditadura de
Salazar, vê os dois últimos romances como trabalhos menores e, pior, como
abandono e traição dos ideais revolucionários que o autor de Primo Basílio
havia abraçado no início de sua carreira.
O crítico brasileiro Antonio Candido chegou a uma posição mais con-
ciliadora. Disse ele:
Como Eça não se libertou da velha ética, era de esperar que o seu
Socialismo e a sua irreverência acabassem por ser, não vencidos,
que nunca o foram, mas equilibrados, compensados, pela irrupção
dos antigos valores recalcados: sentido rural da vida; acatamento da
tradição; conformismo em relação aos poderes estabelecidos; senso
poético, em vez de destruidor, da cultura portuguesa. (CANDIDO,
1964, p. 50)

– 174 –
O Realismo: 1865-1890

Ou seja, o escritor português fez uma opção por uma representação mais
equilibrada do seu país, sem perder a marca crítica, mas procurando também
uma autenticidade maior naquilo que havia de positivo e esperançoso em
Portugal. Podemos talvez perceber isso no personagem Gonçalo de A ilus-
tre Casa de Ramires: apesar de inseguro e, por vezes, imoral, esse aristocrata
rural decadente faz um enorme esforço para escrever uma novela histórica
sobre sua antiga família e conseguir ser eleito para o parlamento português.
No final do romance, o personagem João Gouveia, amigo de Gonçalo, faz a
seguinte análise do herói dessa obra para vários amigos a sua roda:
— Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de
Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que
notou o Senhor Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que aca-
bam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro
quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante
trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpu-
los, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a
exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sem-
pre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em
apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre
de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de
se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o
braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palra-
dor, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acovarda,
o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo
arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre,
há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo
completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
— Quem?...
— Portugal. (QUEIRÓS, 2008)

Dicas de estudo
22 A Biblioteca Nacional de Portugal possui uma homepage
muito bonita e informativa em homenagem a Eça de Queirós:
Disponível em: <http://purl.pt/93/1/>. Acesso em: 29 set. 2017.
22 Há uma interessante biografia de Eça de Queirós: Mónica, M. F.
Eça de Queirós. Lisboa: Quetzal, 2001.

– 175 –
Literatura de países de língua portuguesa

Atividades
1. Quais são os pressupostos históricos do Realismo?

2. O Realismo buscou seus fundamentos filosóficos e intelectuais em


que correntes do pensamento europeu?

3. Quais eram os objetivos das Conferências do Casino de 1871?

– 176 –
9
Simbolismo
José Carlos Siqueira

Antes de tudo, a música.


Paul Verlaine
A Ladainha de Satã
Anjo belo demais, tu, mais sábio dos anjos,
deus que a sorte traiu, deus sem louvor de arcanjos,
Ó Satã, tem piedade da minha miséria!
Príncipe do exílio, punido injustamente
e que mesmo vencido volta mais potente,
Ó Satã, tem piedade da minha miséria!
Ah, tu que tudo sabes, rei das catacumbas,
curandeiro habitual das angústias profundas,
Ó Satã, tem piedade da minha miséria!
Charles Baudelaire

Esse é, na tradução de Jorge Pontual, apenas o trecho ini-


cial do poema de Charles Baudelaire, que compõe o livro As Flores
do Mal, publicado em Paris em 1857. Charles Baudelaire (1821-
-1867) é talvez a referência maior da poesia oitocentista francesa.
Literatura de países de língua portuguesa

Homem de ideias radicais, foi um forte crítico de sua época, tanto no âmbito
da política quanto no da arte. Foi quem primeiro traduziu Edgar Allan Poe
para o francês, tendo sido um grande crítico de artes plásticas. Além de
As Flores do Mal, publicou Paraísos Artificiais (1860), Curiosidades Estéticas
(1868), A Arte Romântica (1868), Meu Coração Desnudado (1909), entre
outras obras. O poema anterior retrata Deus como entidade opressora, desu-
mana e autoritária e Satanás como entidade injustiçada, humana e oprimida.
A inversão aqui produzida provoca um efeito desconcertante no leitor, que
se vê obrigado a rever a ideia que tem dessas duas figuras e questionar a legi-
timidade de suas representações.
Ao humanizar Satanás e desumanizar Deus, Baudelaire questiona a hie-
rarquia das entidades cristãs que têm relação direta com a hierarquia social,
pois reis e governantes sempre estiveram ligados à escolha divina, enquanto
trabalhadores e pobres foram sistematicamente demonizados: “O meu nome
é Legião”, dizia o espírito maligno para Jesus, na Bíblia.
Essa inversão da hierarquia divina que questiona a ordem social vigente
no século XIX na França associava-se a uma postura bastante original no
modo de conceber a natureza. Um outro poema de Baudelaire, com tradução
de Jorge Pontual, intitulado “Correspondências”, assim define a natureza:
Da Natureza, templo de vivos pilares,
Uma fala confusa muitas vezes sai;
Pela selva de símbolos o homem vai
Sob a contemplação de íntimos olhares.
Como ecos distantes que confundem tons
Numa crepuscular e profunda unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Conversam os perfumes, as cores, os sons.
Há cheiros frescos como dos recém-nascidos,
Doces como oboé, verdes como um jardim
– e outros triunfais, ricos e corrompidos,
Com toda a expansão dessas coisas sem fim,
Como âmbar, almíscar, benjoim e incenso,
Que cantam os sentidos e a mente em ascenso.

– 178 –
Simbolismo

É evidente que esse não é um poema de Figura 1 – Charles


fácil entendimento. Nada aqui é dito de forma Baudelaire (1821-1867).
direta, estabelecendo, já nos dois primeiros ver-
sos, relações entre a dimensão espacial e arqui-
tetônica de “pilares” e a dimensão linguística
de “fala” (no original francês paroles). Portanto,
logo no início já temos a sobreposição de dois
mundos que não se relacionam diretamente
em termos lógicos: a dimensão do espaço e
a dimensão da língua. E mais adiante se diz
“Tão vasta como a noite e como a claridade,
/ Conversam os perfumes, as cores, os sons”.
Portanto, uma sobreposição de sensações e de
sentidos: audição, visão, olfato.
Podemos, portanto, inferir que o eu poético fala das correspondências
entre os sentidos, entre as linguagens das artes (arquitetura e literatura), que
geram o que ele designa como “natureza”, uma “selva de símbolos”. A natu-
reza aqui não é uma coisa exterior ao homem, a qual somente se contempla,
mas é, sim, algo construído pelos nossos sentidos e pelas relações que fazemos
entre as diversas formas que temos de sentir e de representar o mundo.
Essa ideia de natureza construída pelos sentidos tem na forma do poema
sua demonstração, pois sua composição gera um texto um tanto impreciso e
obscuro, tal qual apreendemos pelos sentidos o mundo e a natureza. Nada é,
portanto, claro, explícito e exato na proposta estética de Baudelaire: nem sua crí-
tica social, nem sua percepção de mundo, nem o sentido de suas composições.
Vale ainda notar que Baudelaire entendia a arte como autônoma em
relação às outras esferas da vida social. A ideia da “arte pela arte” está pressu-
posta em sua concepção literária, não se admitindo sua subordinação a causas
sociais ou a interesses pessoais e imediatistas.
Tais princípios estéticos funcionaram como modelo para o que mais
tarde ganharia na França o nome de escola simbolista, inaugurada pelo poeta
Jean Moréas, que fundou a revista Le Symboliste em 1886. Foi uma escola que
se restringiu quase que exclusivamente à poesia, tendo sido poucos os prosa-
dores que a ela aderiram.

– 179 –
Literatura de países de língua portuguesa

Outros poetas também foram importantes para os simbolistas, como


Verlaine, Rimbaud e Mallarmé, que têm poemas exemplares do modo de
composição que essa vertente literária adotou.
Paul Verlaine (1844-1896) foi um importante escritor francês que trans-
grediu em vários aspectos: era republicano em um período em que a França
ainda era monarquista, era alcoólatra e apaixonou-se por outro homem, o
também escritor Arthur Rimbaud, a quem feriu com um tiro. Por conta
disso, ficou preso dois anos. Morreu pobre e doente, tendo publicado Poemas
Saturninos (1866), As Festas Galantes (1869), A Boa Canção (1870), Romances
sem Palavras (1874), Sabedoria (1881), Outrora e Agora (1884), além de cole-
tâneas religiosas e eróticas, entre outros textos dispersos.
Figura 2 – MOREAU, Gustave. Orphée. 1865. 1 óleo sobre tela, 154 x 100 cm.
Museo d’Orsay, Paris.

Arthur Rimbaud (1854-1891) começou sua atividade poética muito


cedo. Aos 16 anos de idade, compôs Bateauivre. Aos 17, passou a ter um rela-
cionamento amoroso com Verlaine, viajando com ele para a Bélgica e para a

– 180 –
Simbolismo

Inglaterra. Quando foi ferido por Verlaine, escreveu Uma Estadia no Inferno.
Cedo também abandonou a poesia e passou a viajar pela Europa, Oriente
Médio e África, tornando-se administrador de um escritório comercial. É um
dos primeiros poetas a adotar o verso livre.
A obra de Stéphane Mallarmé (1842-1898) é geralmente dividida em
duas fases:
22 a de sua colaboração com o Parnaso Contemporâneo e alguns poe-
mas esparsos;
22 a de seus poemas mais longos e com uma forma de composição
muito original, como “A tarde de um fauno” (1876) ou “Um lance
de dados jamais abolirá o acaso” (1897).
Vejamos trechos do poema “Arte poética”, de Verlaine:
Antes de qualquer coisa, música e, para isso, prefere o Ímpar
mais vago e mais solúvel no ar,
sem nada que pese ou que pouse.
[...]
Porque nós ainda queremos o Matiz,
nada de Cor, nada a não ser o matiz!
Oh! O matiz único que liga
o sonho ao sonho e a flauta à trompa.
[...]
Oh! Quem dirá os malefícios da Rima?
Que criança surda ou que negro louco
nos forjou esta joia barata
que soa oca e falsa sob a lima?

A tradução de Gilberto Mendonça Telles é livre (o poema é todo em


eneassílabos – nove sílabas por verso –, com acentos nas quartas e nas nonas
sílabas, com rimas opostas e por vezes internas), mas dá conta do sentido que
aqui nos interessa. A música é eleita a grande referência para a poesia, isto é,
a musicalidade no poema é mais importante do que qualquer outro de seus
aspectos. Isso está de acordo com a ideia de que a poesia, diferentemente da
prosa, deve sugerir mais do que dizer, multiplicar sentidos mais do que res-
tringi-los. Quando ouvimos uma música clássica ou instrumental não pode-
mos dizer do que ela trata, mas podemos nos entregar ao sentimento que ela

– 181 –
Literatura de países de língua portuguesa

sugere: tristeza, alegria, melancolia, dramaticidade Figura 3 - Arthur


etc. A ideia é que, se o escritor investisse mais na Rimbaud (1854-1891).
musicalidade das palavras e menos no sentido lite-
ral que possuem, estaria mais próximo dos senti-
mentos, das sensações, afrouxando a relação direta
com a realidade imediata, com a apreensão racio-
nal do mundo, como faria em geral um romance
ou um conto.
Nos “malefícios da rima” há também a
negação da rima fácil, que caracterizou certa
poesia romântica. Os simbolistas apreciam a
rima rara, rica, e retomam alguns valores da arte
poética neoclássica, mas de modo a atualizá-la de
forma original, sem tornarem-se escravos servis
das artes poéticas.
Agora vejamos “Vogais”, um curioso poema
de Rimbaud (tradução de Jorge Vilhena Mesquita), que trabalha as corres-
pondências propostas por Baudelaire:
A negro, E branco, I carmim, U verde, O azul:
vogais, de vós direi as matrizes latentes:
A, peludo corpete negro de luzentes
moscas volteando em pútrido, cruel paúl,
golfos de sombra; E, tendas, graça dos vapores,
lanças do gelo, brancos reis, tremor de umbelas;
I, púrp’ras, hemoptises, rir de bocas belas
na cólera, em remorsos embriegadores.
U, ciclos, vibrações divinas do verdeado
mar, paz dos apascentos, paz do enrugado
que a alquimia imprime às frontes sobre os fólios;
O, supremo Clarim, cheio de silvos fundos,
silêncios trespassados de Anjos e de Mundos:
— O de Ómega, raio violeta dos Seus Olhos.

– 182 –
Simbolismo

Escritos no comprimento de verso preferido dos simbolistas, isto é,


em versos alexandrinos (dodecassílabos), o eu poético atribuiu sentidos
às vogais, fazendo com que a cada uma corresponda um sentido diverso.
Todavia, os sentidos que lhes são atribuídos não são precisos. Apenas pode-
mos dizer, por exemplo, que A sugere o pútrido, o mórbido, o sombrio, ou
que o O sugere luminosidade, divindade, glorificação. Enfim, as relações
estabelecidas são vagas, obscuras, polissêmicas, provocando mais nossas
sensações e sentimentos do que nosso pensamento analítico, tal qual faz a
música clássica ou instrumental.
Figura 4 – KLIMT, Gustav. O beijo. 1 óleo e folha de ouro sobre tela. 1907-
1908. 180 x 180 cm. Österreichische Galerie Belvedere, Viena.

Portanto, se quisermos resumir as características da escola simbolista que


apareceram até aqui, podemos dizer que seus poemas são caracterizados pela
valorização da subjetividade, do experimentalismo sensorial, pela recuperação
do satanismo baudelairiano, pela recriação da tradição neoclássica, tudo isso
apontando para uma rejeição de uma visão racionalista, positivista e cienti-
ficista da realidade, rejeitando também o sentimentalismo romântico, pois
o sentimento aqui evocado é hermético, sensorial, psicológico, impessoal.
Desse modo, toda poesia simbolista é marcada pelo sutileza, pela complexi-
dade, pela sugestão.

– 183 –
Literatura de países de língua portuguesa

9.1 Portugal simbolista

9.1.1 O Ultimatum Inglês


A escola simbolista surge em um momento dramático da história de
Portugal no contexto europeu. Na segunda metade do século XIX, diver-
sos países da Europa disputavam o direito à colonização das terras africanas.
Aqueles que tinham presença histórica nas regiões da África podiam reivin-
dicar as terras como suas. Portugal fez isso com diversas localidades, entre
elas a área hoje ocupada pela Zâmbia e pelo Zimbábue, região que fica entre
Angola e Moçambique. Segundo acordo firmado na Conferência de Berlim
em 1884 e 1885, essa região foi cedida a Portugal, delineando uma área que
ficou conhecida como Mapa Cor-de-rosa (Figura 5).
Figura 5 – A distribuição de terras africanas de Portugal, segundo o mapa
abaixo, faria com que esse país tivesse acesso aos dois oceanos através de um
contínuo territorial.

Fonte: Janus Online.


Todavia, a Inglaterra também acreditava ter direitos sobre aquele ter-
ritório e em 11 de janeiro de 1890 o governo inglês enviou um documento
intimando Portugal a não ocupar aquelas terras. Como D. Carlos, rei de

– 184 –
Simbolismo

Portugal, sabia da dependência econômica de seu país frente aos britânicos,


além de reconhecer a enorme inferioridade bélica de seu exército em relação
ao do opositor, acatou de imediato a intimação inglesa, episódio que ficou
conhecido como Ultimatum Inglês e gerou uma forte indignação por parte
de todo o povo lusitano.
Todos se sentiram humilhados com aquela sujeição aos mandos ingleses,
gerando um forte desgaste para a imagem da família real e da monarquia.
A partir daí, esta teria seus dias contados e, em 1.º de fevereiro de 1908, D.
Carlos acabaria assassinado, assim como seu filho e herdeiro do trono D. Luis
Filipe. O regicídio gerou uma crise que culminou com o fim da monarquia
portuguesa e a instauração, em 1910, de um governo republicano encabeçado
por Teófilo Braga, que se tornou presidente interino.

9.2 O Simbolismo português


O Simbolismo português surge no contexto do Ultimatum Inglês, sendo
obrigado a dialogar, quer por negação, quer por afirmação, com a crise da
identidade nacional portuguesa, que se via como nunca desprestigiada frente
ao contexto europeu e frente aos olhos dos próprios portugueses.

9.2.1 Eugênio de Castro (1869-1944)


O escritor que irá inaugurar a estética Figura 6 – Eugênio de
simbolista em Portugal é Eugênio de Castro, Castro (1869-1944).
que começa a divulgação dessa nova con-
cepção poética na revista Os Insubmissos e
em Boêmia Nova, ambas de 1889. Já autor
de diversas obras poéticas, publica em 1890
o livro Oaristos, cujo prefácio acabou sendo
considerado uma espécie de manifesto do
Simbolismo Português. A este, segue-se o
livro Horas (1891), que também traz um pre-
fácio similar.

– 185 –
Literatura de países de língua portuguesa

Além desses, Eugênio de Castro publicou diversos outros livros,


tais como Sylva (1894), Interlúnio (1894), Belkiss (1894), Tirésias (1895),
Sagramor (1895), Salomé e Outros Poemas (1896), A Nereide de Harlém (1896),
Constança (1900), Depois da Ceifa (1901), A Sombra do Quadrante (1906),
O Anel de Polícrates (1907), A Fonte do Sátiro (1908), O Cavaleiro das Mãos
Irresistíveis (1916), Canções desta Negra Vida (1922), Cravos de Papel (1922),
A Caixinha das Cem Conchas (1923), Descendo a Encosta (1924), entre diver-
sos outros. A extensão de sua produção poética é impressionante.
Foi um mestre na musicalidade de seus poemas. Vejamos apenas um
trecho do poema XI do livro Oaristos (que significa “encontros amorosos”):
Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...
O sol, o celestial girassol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...
As estrelas em seu halos
Brilham com brilhos sinistros,
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras e sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos,
De acentos,
Graves,
Suaves...

Não há como ler esses versos sem um dicionário nas mãos. Já o título do
livro, Oaristos, pede a consulta ao dicionário. O vocábulo raro, que revitalize
a língua e faça com que o dicionário não se torne um depósito de palavras
desconhecidas, é uma das preferências simbolistas.
Esse trecho do poema descreve o pôr do sol durante uma quermesse no
campo. A sonoridade do poema é embriagante e, mesmo sem saber exata-
mente o sentido das palavras, podemos ter prazer em recitar o poema apenas
por conta de seu ritmo, de sua musicalidade. “Antes de tudo, a música”, dizia
Verlaine. Nesse poema, Eugênio de Castro seguiu o preceito à risca. As alite-
rações, as repetições de palavras, a métrica, que sai de um verso alexandrino e

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Simbolismo

chega a um verso de duas sílabas, tudo leva para uma apoteose sonora e musi-
cal. Note como a disposição dos versos também é calculada, fazendo com
que esses versos tornem-se mais curtos em analogia ao minguar da luz do sol.
Temos em Eugênio de Castro a encenação de um perfeito nefelibata, isto
é, o homem que vive nas nuvens, pois em pleno Ultimatum Inglês o poeta
resolve falar de encontros amorosos de um modo extremamente sofisticado,
deixando seus contemporâneos sem saber o que pensar daquela poesia eli-
tista. Vale lembrar que no prefácio do livro o escritor deixa claro que não se
preocupa com a opinião do público, nem espera ser lido ou aceito por ele e
pelos críticos. Apenas tem certeza que fez um bom trabalho. É uma postura
bastante provocativa para um país que afundava econômica e politicamente.

9.2.2 António Nobre (1867-1900)


Outro poeta paradigmático do simbo- Figura 7 – António
lismo português é António Nobre. Ao contrário Nobre (1867-1900).
de Eugênio de Castro, Nobre teve vida e obra
muito curtas. Morreu aos 33 anos, de tuber-
culose, e deixou publicado em vida apenas um
livro, intitulado Só, que obteve duas edições:
uma em Paris, em 1892, e outra em Lisboa, em
1898 – esta com várias alterações, que passou a
ser a versão definitiva do livro.
Foi um dos fundadores da já mencionada
revista Boêmia Nova, tendo deixado, além do
livro Só, um outro livro incompleto que estava
preparando, intitulado Despedidas (1902), e
uma coletânea de suas primeiras obras, intitulada Primeiros Versos (1921),
ambos publicados postumamente.
Considerado por parte da crítica como um neogarrattiano ou mesmo
um neorromântico, em função do forte saudosismo que aparece em sua
obra e pelo tom aparentemente romântico que apresenta em seus poemas,
é, no entanto, tomado por outra parte da crítica como um simbolista que

– 187 –
Literatura de países de língua portuguesa

já traz traços claros do Modernismo que ainda virá. Importa perceber que
na obra de António Nobre encontramos a convergência de diversas verten-
tes estéticas, sem que nenhuma delas dê conta de contemplá-la em toda a
sua complexidade.
O livro Só é uma obra orgânica, que apresenta um eu poético do começo
ao fim. É possível dizer que todos os poemas do livro traçam um percurso
um tanto impreciso desse eu poético. Não é um livro de teor narrativo,
mas, de forma fragmentada, acaba nos apresentando o percurso de António
ou, mais afetivamente, Anto. Tal percurso partiria do eu poético coletivo
António para o eu poético existencial Anto. Definido nos dois primeiros
poemas do livro como um exilado e, portanto, predominando o sentido
social e político dessa figura, António caminhará no decorrer do livro para
a perspectiva mais intimista e existencial de Anto, sem abandonar o sujeito
socialmente definido.
É impossível não observar que o eu poético tem o mesmo nome do
autor, o que induz a sobreposição entre sua vida e sua obra. Nobre utiliza essa
estratégia menos para dar verossimilhança aos seus versos, como faziam os
românticos, que para confundir o leitor, que espera encontrar ali um eu poé-
tico romântico, mas se vê ludibriado pela constante autoironia desse eu lírico.
Nunca sabemos se devemos ler os sofrimentos de António de forma séria ou
debochada, e isso produz o desconcerto na leitura desses versos. Importante
é jamais confundir o escritor e cidadão António Nobre com o eu poético
António ou Anto, pois o eu poético é sempre uma construção ficcional e não
pode ser tomado como o próprio escritor. Vejamos um poema do livro Só.
Balada do caixão
O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte,
Ponteia e cose, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mogno, debruados de veludo,
Flandres gentil, pinho do Norte...
Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vai aborrecer,
Fui-me lá ontem: (era Entrudo,
Havia imenso que fazer...)

– 188 –
Simbolismo

— Olá, bom homem! quero um fato,


Tem que me sirva? – Vamos ver...
Olhou, mexeu na casa toda.
— Eis aqui um e bem barato,
— Está na moda? — Está na moda.
(Gostei e nem quis apreçá-lo:
Muito justinho, pouca roda...)
— Quando posso mandar buscá-lo?
— Ao pôr do Sol!. Vou dá-lo a ferro:
(Pôs-se o bom homem a aplainá-lo...)
Ó meus Amigos! Salvo erro,
Juro-o pela alma, pelo Céu:
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dândi, olhai! Do que eu!
Paris, 1891.

O eu poético quer ir elegante para o túmulo. Tanto a morte como o


dandismo são aqui ironizados. A expressão dandismo vem da palavra inglesa
dandy, que no século XVIII designava os homens burgueses que pretendiam
se vestir e se comportar como aristocratas. No século XIX, o dândi passou a
ser aquele homem que procurava se distinguir da população como um todo,
mesmo da aristocracia, em razão de suas roupas um tanto extravagantes, de
seu comportamento peculiar (mas sempre refinado), de seu gosto cultivado
e mesmo exótico. Um exemplo da postura de dândi foi Charles Baudelaire.
Esse poema de António Nobre é satírico e de fato não há como levar
o eu poético a sério. O grotesco associado à morte e ao túmulo está aqui
amenizado pelo humor, que ironiza fundamentalmente a vaidade consumista
que caracteriza o burguês do século XIX, representada na crítica pela figura
do dândi.
Mas a crítica de Nobre também dialoga mais explicitamente com o seu
momento histórico. Vejamos o soneto de número 2 de Só.
Em certo Reino, à esquina do Planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Pais,
Há quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.

– 189 –
Literatura de países de língua portuguesa

Mal despontava para a vida inquieta,


Logo ao nascer, mataram-lhe os ideais,
À falsa-fé, numa traição abjeta,
Como os bandidos nas estradas reais!
E, embora eu seja descendente, um ramo
Dessa arvore de Heróis que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo Ideal:
Nada me importas, País! seja meu Amo
O Carlos ou o Zé da T’reza... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!

O mencionado Carlos do final do poema é uma referência a D. Carlos,


então rei de Portugal, sendo a expressão “Zé da T’reza” equivalente à expres-
são brasileira “Zé Mané”, que significa “qualquer um”. Portanto, o eu poético
conclui dizendo que não importava quem fosse o governante da nação, seria
sempre uma desgraça nascer em Portugal. Se lembrarmos que o poema é de
1889 e que, no ano seguinte, ocorreria o Ultimatum Inglês, temos em Nobre
um sujeito antenado com o seu tempo.
Vale observar ainda o elemento saudosista no início do poema, que
coloca em confronto o passado glorioso de Portugal com o presente miserá-
vel, fazendo com que a miséria do presente seja potencializada.
É preciso notar que, tanto nesse como no poema anterior, António
Nobre não trabalha com o mesmo grau de obscuridade e opacidade que apa-
rece nos poemas dos autores anteriormente mencionados. Sua dicção é mais
clara e direta. Todavia, a sugestão aqui não é abandonada, já que fala da rea-
lidade portuguesa de forma mediada, pois não sabemos ao certo qual é o
fundamento de sua crítica, por que se sente traído em seus ideais. Somente o
sentimento de traição e de descaso com a vida nacional é que permanece vivo
ao final do poema.
É, portanto, difícil classificar a obra de Nobre dentro de parâmetros
desta ou daquela escola. Importa, sim, perceber o quanto ela se revela crítica
em relação à realidade.

– 190 –
Simbolismo

9.2.3 Camilo Pessanha (1867-1926)


Assim como António Nobre, Camilo Figura 8 – Camilo
Pessanha também publicou apenas um livro em Pessanha (1867-1926).
vida, Clepsidra, impresso em Lisboa em 1920.
Passou quase toda sua vida em Macau, na China,
onde foi trabalhar para o governo português,
tendo ali se casado e se viciado em ópio.
Pessanha viu primeiramente seus poemas
publicados na revista Centauro (1916), editada
por Luís de Montalvor, por intervenção de
Ana de Castro Osório. Posteriormente, a maior
parte desses poemas foram reunidos e publica-
dos em Clepsidra. Além dos poemas, publicou
em 1912 um prefácio para o livro Esboço Crítico
da Civilização Chinesa, de Morais Palha, tendo
escrito outros textos sobre cultura e literatura
chinesas. Toda a obra de Pessanha se resume a isso.
O título de seu livro, Clepsidra, faz referência a um relógio de água
de origem egípcia, que mede o tempo pelo escoamento do líquido em um
recipiente graduado, relógio que controlava o tempo de fala de oradores.
Portanto, constatamos que já na escolha do título há um rigor exemplar, uma
vez que clepsidra remete ao tempo de fala de um discurso. Com isso, associa
a noção de tempo à noção de linguagem e à fluidez da água, sintetizando no
título tudo o que iremos encontrar no livro. Os poemas ali presentes, toma-
dos como tempo discursivo, são repletos de referências ao elemento água.
Vejamos, por exemplo, o poema “Vênus”.
Vênus
(A Pires Avellanoso)
I
Á flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...

– 191 –
Literatura de países de língua portuguesa

O cheiro a carne que nos embebeda!


Em que desvios a razão se perde!
Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfacto que se embriaga)
Como em um sorvo, múrmura de gozo.
O seu esboço, na marinha turva...
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...
E as ondas lutam como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co’a salsugem.
II
Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
- Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuamente cor-de-rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
- Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...

Fácil constatar o quanto esse poema é vago, sutil, complexo. Há muitas


elipses, muita ambiguidade, muita sugestão, um vocabulário incomum, uma
sintaxe obscura. Seria difícil definir do que trata o poema, se não fosse o
título. Vênus, deusa do amor e da beleza, nasceu da espuma formada sobre o
mar pelo sêmen de Urano, que fora mutilado por seu filho Saturno (Cronos).
Portanto, no mito da origem de Vênus temos Cronos, que é o tempo. Temos
também o elemento água em todo o poema, na presença do mar.

– 192 –
Simbolismo

Se quisermos estabelecer uma relação com o título do livro, falta somente


a referência à linguagem para completar a associação dos três elementos pre-
sentes em Clepsidra. Poderíamos dizer que o próprio poema é a linguagem,
mas há uma outra instância dessa linguagem mais complexa e mais interes-
sante que depende de uma interpretação do poema para ser apreendida.
Fazendo uma análise bem sucinta do poema, podemos dizer que o pri-
meiro soneto que o compõe representa o nascimento e morte de Vênus. Na
primeira estrofe, temos uma menção ao nascimento de Vênus e, na segunda,
a sua decomposição, uma vez que nasce de um “pútrido ventre”. O corpo de
Vênus, nas duas estrofes seguintes, acaba por se desfazer na praia.
Figura 9 – BOTTICELLI, Sandro. O nascimento de Vênus. 1483-1485,
1 têmpera. 1,72 x 2,78 mm. Galeria dos Ofícios, Itália.

No segundo soneto, o foco do eu poético muda, pois é como se estivesse


em um barco, olhando para um belo fundo de mar, que sempre lhe foge à
vista. Quando, na terceira estrofe, olha e analisa com mais atenção, percebe
que as pedrinhas eram na verdade pedacinhos de ossos, e que as conchinhas
eram de fato unhinhas – enfim, restos mortais de náufragos.

– 193 –
Literatura de países de língua portuguesa

Desse modo, a Vênus aqui retratada está associada a naufrágios e à morte,


a tudo aquilo que faz parte do grotesco e não do belo, segundo os padrões
clássicos de beleza. Logo, se considerarmos que o eu poético nos fala da beleza
(já que Vênus é um dos símbolos da beleza), teremos que concluir que, para
ele, o belo não está somente no modelo clássico evocado na figura de Vênus,
mas também naquilo que o Classicismo considerava grotesco.
Portanto, temos nesse poema uma redefinição da beleza clássica, inte-
grando a ela o fascínio do mórbido e do grotesco. Assim, o conjunto de versos
desconexos da primeira leitura ganha sentido e força, ainda que não a partir
de uma lógica racional e aristotélica, mas a partir de sugestões e analogias,
permitindo, portanto, uma infinidade de outras leituras e interpretações.
Seria possível, por exemplo, ler a passagem da visão do belo fundo do
mar em sua versão mórbida e tétrica, como uma representação da autoestima
portuguesa naquele momento histórico, que apresentava uma aparência de
paz e tranquilidade (já que não havia nem guerras, nem revoluções), mas se
encontrava decadente e humilhada (em razão da situação de Portugal no final
do século XIX).
Esse aspecto polissêmico do poema é uma característica central da poesia
simbolista e particularmente da poesia de Camilo Pessanha.

9.3 Modelos para o Modernismo


Todo esse trabalho sofisticado com a linguagem fez com que os simbo-
listas se transformassem em poetas de referência para os modernistas, que irão
prosseguir na pesquisa da linguagem e romper cada vez mais com os padrões
neoclássicos e com o repertório romântico. Fernando Pessoa, por exemplo,
será um grande admirador de Nobre e de Pessanha.

Dicas de estudo
22 Uma fonte de inspiração importante para os simbolistas foi a
pintura dos pré-rafaelitas, grupo de pintores ingleses (Dante
Gabriel Rossetti, William Holman Hunt, John Everett Millais,
Edward Burne-Jones). Há várias publicações sobre eles e muitas
reproduções de suas obras na internet. Vale a pena conferir!

– 194 –
Simbolismo

Figura 10 – MILLAIS, John Everett. Ophelia. 1851-1852. 1 óleo sobre tela.


76,0 x 111,8 cm, Tate Britain, Londres.

Atividades
1. Quais autores foram referência para a estética simbolista na França e
o que os caracterizava?

2. O que caracteriza a poesia simbolista?

3. Quais são os principais autores do Simbolismo em Portugal e o que


os caracteriza?

– 195 –
10
O Saudosismo
José Carlos Siqueira

A saudade é um sentimento do coração que vem


da sensibilidade e não da razão.
Dom Duarte

10.1 A Sociedade Renascença


Portuguesa e o Saudosismo
Vai, minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
[...]
Mas se ela voltar
Se ela voltar
Que coisa linda
Que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços os abraços
Literatura de países de língua portuguesa

Hão de ser milhões de abraços


Apertado assim, colado assim, calado assim,
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
De você viver sem mim
[...]
(JOBIM; MORAES, 2008)

O poema anterior, “Chega de saudade”, letra de uma canção de Vinicius


de Moraes, trata de modo displicente um tema muito caro aos portugue-
ses. Nessa letra, sofrendo por saudades de sua amada, o poeta pede que ela
volte, pois quer “acabar com esse negócio de você viver sem mim”. Essa forma
coloquial e autoritária de dizer que a amada traz graça e leveza ao desfecho
do poema, fazendo com que saia do tom melancólico e quase piegas que
alcança no final da segunda estrofe. A metáfora marítima de gosto duvidoso
já introduz o humor que irá fechar-se com a ideia referida. Portanto, é um
tratamento já bastante depurado do sentimento da saudade propriamente
dito, tradicionalmente ligado mais à tristeza, à carência, à depressão.
Será esse sentimento que os portugueses do final do século XIX e início do
XX irão eleger como eminentemente português. Mas isso teve motivações histó-
ricas bastante concretas, ligadas ao advento do regime republicano em Portugal.

10.1.1 O regicídio e a Primeira República


O republicanismo esteve presente em quase toda a história portuguesa
do século XIX. Já em 1836, com a Revolução de Setembro, temos presen-
tes ideias republicanas, que, entretanto, só irão tomar forma institucional
em 1870, com o surgimento do Diretório Republicano Democrático, germe
do Partido Republicano Português, que foi ganhar expressão nacional após
o Ultimatum Inglês (1890), quando Portugal foi humilhado internacional-
mente pela Inglaterra ao ter que abrir mão do seu direito, garantido pela
Conferência de Berlim de 1884 e 1885, de tomar como colônia a parte da
África que fica entre Angola e Moçambique.
Tal episódio desmoralizou a já desacreditada aristocracia que governava
Portugal, o que acabou por redundar no trágico episódio do assassinato a tiros

– 198 –
O Saudosismo

do rei D. Carlos e do herdeiro, D. Luís Filipe, quando a carruagem real pas-


sava pelo Terraço do Paço em Lisboa, em 1.º de fevereiro de 1908. Esse assas-
sinato foi engendrado por dois membros do Partido Republicano, da ala que
defendia a luta armada.
Figura 1 – Cartaz da Proclamação
Então o trono foi assumido por D.
da Primeira República.
Manuel II, que era filho de D. Carlos e
tentou conduzir uma política para apa-
ziguar os ânimos dos republicanos, mas
não teve sucesso e, em 4 de outubro de
1910, houve uma grande revolta que
culminou na proclamação da República
no dia seguinte, 5 de outubro, sendo o
escritor Teófilo Braga eleito como presi-
dente interino.
Começou assim a Primeira República,
que foi marcada por uma forte instabili-
dade política e acabaria em 28 de maio de
1826, com o golpe militar que instituiu a Ditadura Nacional (depois designada
como Estado Novo), cuja figura principal foi Antonio de Oliveira Salazar, à
frente do governo até sua morte, em 1970.
A primeira medida tomada pelos concretizadores da Primeira República
foi a de proclamar, em 1911, uma nova Constituição, de viés republicano.
Além disso, eles procuraram garantir vários direitos trabalhistas, como a jor-
nada semanal de trabalho de 48 horas, o direito à greve, o fim da censura, a
instituição da escolaridade obrigatória para as crianças etc.
Apesar de suas propostas serem muito bem aceitas pela população, eles
enfrentaram sérios problemas externos e internos. Marcado pela Primeira
Guerra Mundial (1914-1918), o contexto internacional foi um elemento de
forte desestabilização em toda a Europa. Internamente, a liberdade política
propiciava uma alta rotatividade do poder (nove presidentes em 16 anos)
entre as várias e distintas facções republicanas, fazendo com que nenhuma
delas conseguisse levar a contento o seu programa de governo.

– 199 –
Literatura de países de língua portuguesa

10.1.2 A revista A Águia e o movimento da


Renascença Portuguesa Figura 2 – A Águia, órgão
da Renascença Portuguesa.
Em meio a esse conturbado quadro polí-
tico, em 1910 surgiu, na cidade do Porto, uma
revista de cultura chamada A Águia, tendo por
diretor e proprietário Álvaro Pinto. Em 1912,
ela passou a pertencer à Sociedade Renascença
Portuguesa, que tinha por finalidade revitalizar
a vida cultural do país.
A revista passou então a ser dirigida por
Teixeira de Pascoaes, que teve papel funda-
mental nesse momento ao elaborar as teorias
sobre o Saudosismo, do qual falaremos mais
adiante. Também foram diretores de A Águia nomes como Antonio Carneiro,
Leonardo Coimbra, Henâni Cidade, Casais Monteiro, entre outros.
Tendo encerrado sua publicação apenas em 1932, a revista contou com a
colaboração de escritores e intelectuais do porte de Fernando Pessoa, António
Sérgio, Raul Proença, Jaime Cortesão, entre muitos outros.
O movimento da Renascença Portuguesa tinha um ideal nacionalista
e primeiramente buscou no pensamento saudosista de Teixeira de Pascoaes,
assim como no Sebastianismo1, sua inspiração filosófica e literária. Tinha tam-
bém um forte vínculo com o novo momento político republicano vivido pela
nação, procurando atribuir-lhe um significado estético renovador. O espírito
que animou esses jovens a criarem e manterem a sociedade e sua revista vinha
da equação entre o novo momento político nacional e a retomada do glorioso
passado português nos moldes sebastianistas.

1 Crença messiânica surgida a partir da figura de D. Sebastião (1554-1578), rei português


que morreu na Batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África. Era o único herdeiro e, em
consequência de sua morte, a coroa foi tomado por um dos membros da casa dos Habsburgos
da Espanha. Desse modo, Portugal perdeu sua autonomia política por 60 anos, de 1580 a
1640. Criou-se, então, o mito sebastianista, segundo o qual D. Sebastião não teria morrido
e iria voltar para restaurar a autonomia política portuguesa. Mesmo depois de esta ter sido
restaurada, o mito se manteve, considerando que D. Sebastião iria restituir a Portugal a glória
e a riqueza que tivera nos séculos XV e XVI. É esse mito que será retomado pelos poetas e
escritores da Renascença.

– 200 –
O Saudosismo

Em 1912, Jaime Cortesão assim escrevia no boletim da sociedade, inti-


tulado A Vida Portuguesa, em um artigo também intitulado “A vida portu-
guesa”: “Portugal acorda com um reflorir de energias antigas, que acomo-
dando-se ao tempo, procuram criar dentro de uma nova concepção de vida.”
E mais adiante continua: “O melhor sinal do rejuvenescimento da Raça está
nas qualidades de sua nova geração que, diga-se o que quiser, é aguerrida,
original, estusiástica e voluntariosa” (CORTESÃO, 1912).
Portanto, o projeto da sociedade ligava o passado de glórias portuguesas
a um projeto de futuro também glorioso, tendo na geração do presente os
seus mentores e, em parte, os seus próprios executores.

10.1.3 O Saudosismo de Teixeira de Pascoaes (1877-1952)

Teixeira de Pascoaes formou-se em Direito Figura 3 – Autorretrato


pela Universidade de Coimbra no ano de 1901 de Teixeira de Pascoaes.
e por algum tempo exerceu carreira no judiciá-
rio. Abandonou tudo para administrar as terras
da família. Além de sua já mencionada parti-
cipação na revista A Águia, publicou diversos
livros, como, entre outros:
22 Vida Etérea (1906);
22 Regresso ao Paraíso (1912);
22 Senhora da Noite (1909);
22 Maranus (1911);
22 O Doido e a Morte (1912);
22 O Pobre Tolo (1923);
22 Elegia do Amor (1924).
Entre 1910 e 1919, Teixeira de Pascoaes elaborou a parte mais subs-
tancial de sua teoria saudosista. Ele elegeu o sentimento da saudade como
característico da cultura e da identidade portuguesas, procurando, com
isso, diferenciar o “gênio lusitano” de qualquer outro da Europa. Todavia, o

– 201 –
Literatura de países de língua portuguesa

saudosismo pretende-se uma filosofia universal, que não se restringe à dimen-


são nacionalista. Outros, como Leonardo Coimbra, procuraram refletir filo-
soficamente sobre a saudade e sobre o movimento saudosista, que somente a
partir do Congresso Luso-hispânico de 1950 passa a reivindicar o estatuto de
movimento filosófico.
Ao nos atermos ao texto “Queda e esperança”, de Pascoaes, podemos
dizer que, para o poeta, a saudade é a soma de esperança (entendida como
força criadora) e lembrança (entendida como força perpetuadora), deduzindo
daí que a saudade seria a própria Natureza. Concebendo Deus como sinô-
nimo de Natureza, conclui ele que todos somos a saudade de Deus, sendo que
o povo português estaria mais apto histórica e culturalmente a apreender esse
entendimento do universo.
Em outro texto de Pascoaes, intitulado “Imaginação revolucionária”, o
poeta irá dizer que: “A Saudade procurou-se no período quinhentista, sebas-
tianizou-se no período da decadência, e encontrou-se no período atual” (apud
Botelho, 1990, p. 62).
O fato é que o Saudosismo apostava no passado como uma forma de
revitalização do presente e de prospecção positiva do futuro.
Vejamos como o Saudosismo ganha configuração em um de seus poemas.
Adamastor
Fui a sombra do medo;
Esse medonho vulto que o luar
Esboça, no arvoredo,
Quando o perfil do vento é de gelar;
E, nas encruzilhadas dos caminhos,
Há demônios e doidos burburinhos...
E os homens, entre lívidos terrores,
Abraçam negra dor desconhecida,
Dor morta e ressurgida,
Aquela dor, fantasma de outras dores.
A minha Aparição,
Os nautas assustava,
Quando, em fraguedos, saibro, escuridão,
Sinistro promontório, as ondas penetrava;
E o meu rouco bramido retumbava,
Por toda a neptunina solidão.

– 202 –
O Saudosismo

Eu, dantes, fui a Treva...


Minha sombra, depois, amanheceu;
Tingiu-se de oiro e rosa; e já se eleva,
Na luz do céu...
Chorei, deli meus ossos fragarosos,
Reconstruindo em carne de beleza,
Meus grandes membros tenebrosos;
Minhas feições de terra e de bruteza...
Sou a alma do trágico Gigante;
Esse terror do antigo navegante,
Revelada em perfeita claridade.
Eu sou o Adamastor em alma de saudade.
(PASCOES, 1915, p. 29)

Assim, Pascoaes retomou um episódio de Os Lusíadas, de Luís de


Camões, isto é, o momento em que Vasco da Gama e sua frota são obrigados
a dobrar o Cabo das Tormentas, que fica na África do Sul, para chegar ao lado
oriental do continente africano. Na mitologia da obra camoniana, naquele
ponto se encontrava o gigante Adamastor, que afundava os navios que por ali
passavam. Na epopeia de Camões, Adamastor é um gigante cruel e inimigo
dos portugueses.
No poema de Teixeira de Pascoaes, no entanto, Adamastor surge “em
alma de saudade”, isto é, surge como o ícone dos desafios que enfrentaram os
navegadores portugueses na sua empreitada de conquista do caminho marí-
timo para as Índias. Surge, portanto, como referência positiva da heroicidade
dos navegadores portugueses.
Já em outra composição, podemos observar de forma evidente a relação
que o poeta estabelece entre a arte, a Natureza e Deus.
O Poeta
Ninguém contempla as cousas, admirado.
Dir-se-á que tudo é simples e vulgar...
E se olho a flor, a estrela, o céu doirado,
Que infinda comoção me faz sonhar!
É tudo para mim extraordinário!
Uma pedra é fantástica! Alto monte

– 203 –
Literatura de países de língua portuguesa

Terra viva, a sangrar como um Calvário


E branco espectro, ao luar, a minha fonte!
É tudo luz e voz! Tudo me fala!
Ouço lamúrias de almas no arvoredo,
Quando a tarde, tão lívida, se cala,
Porque adivinha a noite e lhe tem medo.
Não posso abrir os olhos sem abrir
Meu coração à dor e á alegria.
Cada cousa nos sabe transmitir
Uma estranha e quimérica harmonia!
É bem certo que tu, meu coração,
Participas de toda a Natureza.
Tens montanhas na tua solidão
E crepúsculos negros de tristeza!
As cousas que me cercam, silenciosas,
São almas, a chorar, que me procuram.
Quantas vagas palavras misteriosas,
Neste ar que aspiro, trêmulas, murmuram!
Vozes de encanto vêm aos meus ouvidos,
Beijam os meus olhos sombras de mistério.
Sinto que perco, às vezes, os sentidos
E que vou flutuar num rio aéreo...
Sinto-me sonho, aspiração, saudade,
E lágrima voando e alada cruz...
E rasteirinha sombra de humildade,
Que é, para Deus, a verdadeira luz.
(PASCOAES, 1912, p. 32)

O eu poético, que se autodenomina como o próprio poeta, espanta-se


com todo e qualquer fenômeno da natureza porque entende que todas as coi-
sas são manifestações da saudade que temos de Deus. É por isso que conclui
o poema dizendo que a verdadeira luz é a “rasteirinha sombra da humildade”,
isto é, é nossa capacidade de ter simplicidade suficiente para ver que a reali-
dade que nos cerca é pura saudade divina (que pode se manifestar também
como sonho de Deus e como aspiração ao divino).

– 204 –
O Saudosismo

Mas se tudo isso parece transcendente demais, lembremos que o


Saudosismo apresentava-se como uma solução simbólica para a crise identi-
tária e social portuguesa no decorrer da Primeira República. Essa identidade
etérea e filosófica, que glorificava o homem lusitano e a sua nação, surgia
como solução simbólica para erguer a autoestima portuguesa, que não tinha
na realidade concreta nada que a sustentasse. Portanto, o saudosismo cum-
pria politicamente o papel de manter a dignidade simbólica de um povo que
vinha de sistemáticas perdas políticas, econômicas e sociais.

10.2 Florbela Espanca (1894-1930):


uma poesia em suspensão
Figura 4 – A escritora
Se a geração da Renascença Portuguesa Florbela Espanca.
funcionou de modo orgânico, orquestrado e
sistemático (ainda que dissidências tenham
ocorrido posteriormente, com a saída de um
grupo de intelectuais que fundou a revista
Seara Nova), nem sempre é possível inte-
grar todos os escritores em torno de gru-
pos ou vertentes literárias bem definidas.
Esse é o caso da escritora Florbela Espanca,
que, apesar de ser mais nova que a gera-
ção da Renascença, pois nasceu depois do
Ultimatum Inglês, produziu uma poesia que
formalmente poderia ser considerada pró-
xima à parnasiana.
Florbela formou-se em Letras no Liceu
de Évora em 1917, onde foi uma das primeiras mulheres a concluir o curso,
fato que não era bem visto à época. Depois, matriculou-se no curso de Direito
da Universidade de Lisboa, sendo a primeira mulher a frequentar esse curso
naquela universidade. Passou por três casamentos e dois divórcios, com todo
o custo social disso no início do século XX. Tentou o suicídio duas vezes,

– 205 –
Literatura de países de língua portuguesa

sem sucesso. Morreu depois de tomar uma dose excessiva de um remédio que
usava para dormir, em 8 de dezembro de 1930.
O percurso trágico de sua vida funcionou como pano de fundo para a
leitura de seus sonetos, que ganharam prestígio a partir do livro Charneca em
Flor (1931), publicado logo depois de sua morte. Antes desse, tinha escrito o
Livro das mágoas (1919) e o Livro de Sóror Saudade (1923). Postumamente,
ainda foram publicados Cartas de Florbela Espanca (1931), As Máscaras do
Destino (1931), Diário do Último Ano (1981), entre outros.
Apesar do vínculo contextual que aqui fazemos entre a vida e a obra de
Florbela, vale lembrar que jamais devemos sobrepor essas duas instâncias de
forma direta e mecânica, como se a literatura fosse a própria voz da cidadã
Florbela. Por mais que a obra de Florbela tenha a ver com sua vida, ali tudo
se encontra encenado, calculado para produzir um efeito preciso no leitor,
fazendo com que a experiência da escritora já não tenha mais valor de teste-
munho pessoal: é literatura ficcional e não história de vida.
Como feminista, a figura de Florbela é um tanto controversa, pois se
a maior parte da crítica considera que foi uma feminista de vanguarda, que
enfrentou acirrados preconceitos e no mundo literário abriu caminho para
outras mulheres, alguns acreditam que foi uma diva dramática, que sua posi-
ção social e sua instrução possibilitariam que tivesse uma atuação muito mais
contundente que aquela que efetivamente demonstrou.
O fato é que a poesia de Florbela continua viva, ainda que marcada
pela desilusão, pelo sentimento de rejeição, pelo sofrimento amoroso, mas
também pelo erotismo, pela autoafirmação, pela musicalidade, pelo sonho.
A uma rapariga
A Nice
Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre lamaçais alteia pontes
Com tuas mãos preciosas de menina.
Nessa estrada da vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!

– 206 –
O Saudosismo

Trata por tu a mais longínqua estrela,


Escava com as mãos a própria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!
Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste duma flor!…
(ESPANCA, 1978, p. 157)

É evidente que podemos ler esse poema quase como um manifesto


feminista. Está clara a preocupação da escritora com a condição da mulher,
pois o eu poético aconselha à rapariga, isto é, à garota, que encare a vida, para
que assim possa alargar seus horizontes e cumprir seu papel social. Incita-a
a vencer os obstáculos e a seguir adiante, desfrutando no caminho todo o
prazer que puder. Diz ainda para que não trate com reverência aos superio-
res e não tenha medo da morte. A flor da última estrofe pode, portanto, ser
lida como metáfora do nascimento de uma nova mulher. E assim temos um
poema feminista.
Mas é verdade que podemos ler o poema apenas como o aconselha-
mento de uma mulher mais madura para uma mulher mais jovem, dentro dos
limites da maternidade e das tarefas do lar.
O fato é que a condição da mulher é um tema recorrente na obra de
Florbela, ainda que outros, como o amor e a própria poesia, também sejam
muito presentes. Vejamos um poema que exemplifica esse último caso.
A maior tortura
A um grande poeta de Portugal
Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite,
E não tenho nem sombra em que me acoite,
E não tenho uma pedra em que me deite!
Ah! Toda eu sou sombras, sou espaços!
Perco-me em mim na dor de ter vivido!
E não tenho a doçura duns abraços
Que me façam sorrir de ter nascido!
Sou como tu um cardo desprezado
A urze que se pisa sob os pés,
Sou como tu um riso desgraçado!

– 207 –
Literatura de países de língua portuguesa

Mas a minha Tortura inda é maior:


Não ser poeta assim como tu és
Para concretizar a minha Dor!
(ESPANCA, 1978, p. 49)

Trata-se aqui de mesclar a problemática amorosa com a estética, fazendo


com que a segunda suplante a primeira. O eu lírico lamenta sua solidão amo-
rosa e a compara com a de um amigo, também solitário. Todavia, diz que sua
tortura maior não é sofrer por amor, mas o fato de não conseguir, como faz o
amigo, concretizar esse sofrimento na forma de poesia. Portanto, o seu maior
sofrimento não é o amoroso, mas o artístico. Sofre menos pelo que sente do
que por não conseguir dizer o que sente. É, na verdade, um poema metalin-
guístico, que tem no fazer poético o seu tema central.
Florbela Espanca foi, sobretudo, uma sonetista. Se lembrarmos que o
soneto é uma forma fixa da poesia que ganhou prestígio primeiramente na
Renascença italiana, com Francesco Petrarca (1304-1374) e que foi forte-
mente revalorizado pelos parnasianos e pelos simbolistas, podemos ver na
escritora uma figura muito próxima dos poetas desses dois movimentos do
século XIX.

10.3 Precursores do Modernismo


A geração da Renascença Portuguesa e o caso isolado de Florbela Espanca
podem ser tomados como fenômenos literários ligados ao modernismo por-
tuguês, que irá se concretizar com o grupo de escritores que primeiramente se
reuniu em torno da revista Orpheu (1915) e, depois, com o grupo que criou
as revistas Presença (1927-1940) e Seara Nova (1921-1974).
Não se trata de caracterizar tais manifestações literárias como Pré-
Modernistas, como acontece na Literatura Brasileira, mas sim de tomá-las
como um conjunto de manifestações interligadas com aquelas que irão
caracterizar o Modernismo português. Estas estariam voltadas quer para a
reflexão sobre o imaginário nacional português, quer para as questões sociais
que se fizeram mais presentes no início do século XX em Portugal, informa-
das por procedimentos estéticos similares em vários de seus aspectos.

– 208 –
O Saudosismo

Dicas de estudo
22 Faça uma pesquisa sobre a palavra saudade. Será, mesmo, como
dizem, uma palavra que só existe no português? Há vários
sites que falam desse tema, assim como dicionários filológicos
e enciclopédias.

Atividades
1. Resuma, em poucas palavras, o que foi o movimento saudosista português.

2. Como a obra de Florbela Espanca se relaciona com o feminismo?

3. O Saudosismo teve algum papel político?

– 209 –
11
Modernismo: Geração
de Orpheu
José Carlos Siqueira

E evoco, então, as crónicas navais: Mouros,


baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro
a nado!
Singram soberbas naus que eu não
verei jamais!
Cesário Verde

11.1 A revista Orpheu


Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
[...]
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Literatura de países de língua portuguesa

Nenhuma arte criada,


Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida! (CAMPOS, 2008)

Esses versos fazem parte da “Ode Figura 1 – Capa do primeiro


triunfal”, de Álvaro de Campos, um dos número da revista Orpheu.
heterônimos de Fernando Pessoa, publi-
cada na revista lisboeta Orpheu, considerada
como o marco inicial do modernismo por-
tuguês. Criada por Fernando Pessoa, Mário
de Sá-Carneiro, Luis de Montalvor e ami-
gos, essa revista pretendia ser trimestral, mas
só conseguiu lançar dois números – um em
março e outro em junho de 1915 –, sendo
que um terceiro número foi concluído, mas
não chegou a sair a público.
Ali colaboraram Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros,
entre outros, que acabaram conhecidos
como os escritores da geração de Orpheu.
A revista provocou certa celeuma em seu
lançamento e podemos imaginar o quanto
o trecho da “Ode trinfual” acima reproduzido deve ter provocado comen-
tários entre os lisboetas do início do século XX.
Segundo Fernando Pessoa, em Páginas íntimas e de autointerpretação,
Orpheu é a soma e a síntese de todos os movimentos literários moder-
nos. Entenda-se que parte do simbolismo, do decadentismo, do pau-
lismo, simultaneismo, futurismo, cubismo, expressionismo, sensacio-
nismo, interseccionismo e outros ismos. (PESSOA, 1966, p. 45)

Esse momento da literatura portuguesa ficou conhecido como o


Primeiro Modernismo e também como orfismo, indo de 1915 a 1927, quando
então surge a revista Presença e em torno dela uma outra geração de escritores
do Modernismo.

– 212 –
Modernismo: Geração de Orpheu

A primeira geração do Modernismo português se caracterizava pela von-


tade de ruptura com as estéticas que a antecederam, pelo cosmopolitismo
ou transnacionalidade, pela diversidade estética, pelo espírito mistificador,
excêntrico, paradoxal, contraditório.

11.2 Fernando Pessoa (1888-1935)


O principal representante desses escritores foi Fernando Pessoa. De
família pequeno-burguesa, ainda criança ele se mudou para Durban, na
África do Sul, em razão do segundo casamento de sua mãe. Ali se formou,
chegando a frequentar por um período a Universidade da Cidade do Cabo.
Retornou a Portugal, sobrevivendo como correspondente de casas comerciais
e confeccionando horóscopos. Frequentou parcialmente o curso de Letras da
Universidade de Lisboa. Participava da vida boêmia e publicou seus primeiros
trabalhos na revista A Águia, em 1912. Primeiramente escreveu poemas em
inglês e só depois em português.

11.2.1 Fernando Pessoa e a heteronimia


Pessoa criou seus três principais heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro
de Campos, Ricardo Reis) em 1914, antes mesmo da publicação de Orpheu.
Figura 2 – NEGREIROS, Almada. Retrato de Fernando Pessoa, 1964. 1 óleo
sobre tela, 225,5 x 226 cm. Coleção CAM, FCG, Lisboa.

– 213 –
Literatura de países de língua portuguesa

O que é um heterônimo? Que diferença tem em relação a um pseudô-


nimo? Um pseudônimo é apenas um nome sob o qual um autor se esconde
para publicar um texto. Muitos escritores fizeram isso em toda a história da
literatura e não há nenhuma novidade nesse procedimento. Já um heterônimo
é a criação que o escritor faz de um outro escritor, atribuindo-lhe uma per-
sonalidade, um estilo, uma história. Alguns escritores já haviam feito isso na
história da literatura, mas nenhum havia criado uma galeria de heterônimos
como fez Fernando Pessoa.
Ainda hoje se discute o número de seus heterônimos, pois alguns foram
apenas esboçados, enquanto outros foram detidamente trabalhados. O fato é
que a maior parte de sua obra ficou inédita e dispersa, vários escritos podendo
ser organizados de diferentes formas, correspondendo ou não a esse ou aquele
heterônimo do autor. No caso de não pertencerem a nenhum dos heterôni-
mos, dizemos que são textos do ortônimo, isto é, do Fernando Pessoa ele mesmo.
Seus mais famosos heterônimos, como já observamos, são Alberto Caeiro,
Álvaro de Campos e Ricardo Reis. O surgimento deles se deu de forma quase
concomitante. Pessoa pensou em criar um poeta bucólico para “pregar uma
partida” a Sá-Carneiro e daí surgiu Alberto Caeiro. Logo em seguida, criou
Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sendo que este último já tinha surgido em
seus escritos ainda sem nome e sem consciência tempos antes.
O fato é que Fernando Pessoa criou tudo isso quando se encontrava
envolvido em discutir teses sobre o paulismo e a sua superação pelo inter-
seccionismo, chegando depois ao sensacionismo. Esses ismos todos foram
criados por Pessoa na tentativa de definir uma nova estética para o seu tempo.
Portanto, seus heterônimos são resultado de uma reflexão estética profunda,
que, no entanto, não se fecha, mantendo-se sempre plural.
Vale observar que os heterônimos, juntamente com o próprio Pessoa,
trocam observações estéticas entre si, aconselham-se, discutem, sendo Alberto
Caeiro o grande mestre de todos.

– 214 –
Modernismo: Geração de Orpheu

11.2.1.1 O mestre Caeiro


O poeta Caeiro tem por motivos fundamentais a Natureza, os estados de
semiconsciência, o panteísmo sensual, a aceitação calma e lúcida do mundo
como ele é. Vejamos um trecho do longo poema “O guardador de rebanhos”.
O meu olhar
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar... (CAEIRO, 2008)

Note como o eu lírico nega qualquer reflexão sobre o mundo. Ele diz que
para ver de verdade é necessário não pensar. No entanto, o tempo todo ele está
fazendo uma reflexão sobre esse olhar. Alberto Caeiro é de fato contraditório,
já que toda sua poética afirma a necessidade de apenas sentir sensorialmente

– 215 –
Literatura de países de língua portuguesa

o mundo, ingenuamente, sem a contaminação do pensamento, mas o que ele


mais faz em seus poemas é refletir. E é justamente isso que faz dele o grande
mestre dos outros.

11.2.1.2 O epicurismo de Ricardo Reis


Ricardo Reis é o “pagão Figura 3 – O mapa astral de Ricardo Reis.
da decadência”. Voltado para
a tradição clássica greco-la-
tina, é um poeta ao modo
árcade e procura, de forma
epicurista,1 viver longe da
cidade, fugindo dos amores
demasiados intensos. Para
ele, a felicidade consiste em
se deleitar suavemente com os
instantes volúveis, buscando o
mínimo de dor ou de gozo.
Apesar de adotar o mesmo princípio de Caeiro no que diz respeito a
aceitar calmamente a ordem das coisas, sofre com os mais comezinhos, os
mais corriqueiros males da vida e de sua imprevisibilidade. Procura evitar
a dor construindo um mundo esteticamente controlado. Vejamos o início
do poema “Vem sentar-te comigo, Lídia”, que corrobora o que acabamos
de dizer.
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

1 A filosofia epicurista foi criada pelo ateniense Epicuro no século IV a.C. Voltado para as-
pectos práticos da vida, Epicuro acreditava que a felicidade do homem está em evitar a dor e
buscar o prazer e que, se nossa percepção do mundo é verdadeira, nosso juízo sobre essa per-
cepção nem sempre é verdadeiro. Seria necessário, portanto, conhecer as causas do sofrimento
moral ou espiritual, procurar a verdade para além dos falsos prazeres, e assim alcançaríamos
a felicidade: livrando-nos dessas falsas sujeições do mundo, como, por exemplo, o medo da
morte. Daí Epicuro e o epicurismo estarem associados à ideia de desprendimento, de voltar-se
apenas para o essencial.

– 216 –
Modernismo: Geração de Orpheu

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida


Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes. (REIS, 2000, p. 35)

O eu lírico enlaça e depois desenlaça a mão de sua amada, pois mais


vale passar a vida com o gosto do prazer (enlaçar as mãos), mas sem grandes
desassossegos (desenlaçar as mãos), do que vivê-la em meio a um turbilhão
de emoções. Desse modo, o mundo epicurista de Ricardo Reis controla no
âmbito da poesia o que o “sujeito” Ricardo Reis não poderia controlar no
plano da sua realidade íntima e mesmo da realidade portuguesa do início do
século XX.
Além disso, como Ricardo Reis é um poeta pagão, considera Cristo mais
um entre tantos outros deuses existentes, com fica claro no poema a seguir:
Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero.
Em ti como nos outros creio deuses mais velhos.
Só te tenho por não mais nem menos
Do que eles, mas mais novo apenas.
Odeio-os sim, e a esses com calma aborreço,
Que te querem acima dos outros teus iguais deuses.
Quero-te onde tu ’stás, nem mais alto
Nem mais baixo que eles, tu apenas.
Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia
Como tu, um a mais no Panteão e no culto,
Nada mais, nem mais alto nem mais puro
Porque para tudo havia deuses, menos tu.
Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida
É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros,
E só sendo múltiplos como eles
’Staremos com a verdade e sós. (REIS, 2000, p. 71)

Enquanto o paganismo dos poetas clássicos do renascimento e do arca-


dismo se conciliava com o cristianismo, aqui as doutrinas entram em choque
e o poeta questiona o cristianismo por considerá-lo uma religião que se pre-
tende hegemônica, de caráter autoritário.

– 217 –
Literatura de países de língua portuguesa

11.2.1.3 A modernidade de Álvaro de Campos


Dos três heterônimos principais, Álvaro Figura 4 – Almada
de Campos é o único que fala da vida contem- Negreiros. Caricatura de
porânea de modo direto. Já vimos no início Alvaro Campos, 1958.
desta aula parte da “Ode triunfal”, que enaltece
a modernidade e a vida urbana em seus aspec-
tos mais diversos, fazendo o elogio de coisas
que nem sempre consideramos dignas disso.
Isso nos causa um certo constrangimento, que
nos obriga a refletir sobre o estilo de vida que
adotamos nas grandes cidades.
O primeiro poema de Álvaro de Campos,
“Opiário”, assim começa:
É antes do ópio que a
minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que
consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.
Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal. (CAMPOS, 2002, p. 15)

O eu lírico está a bordo de um navio em direção ao Oriente e lamenta


a sua miséria em relação a diversos aspectos: fala de sua vida, do que fez, do
que desejaria fazer, de suas limitações, concluindo com o desejo metafórico
da morte. Tudo isso sob o efeito do ópio, fazendo um elogio a essa droga que
ameniza seu sofrimento. É, portanto, um elogio ao ópio, ainda que o enfoque
não seja o das campanhas de descriminalização das drogas defendida em nos-
sos dias por alguns setores da sociedade. É, no fundo, o elogio a algo que pode
amenizar a dor de sua condição social e psíquica e, nesse aspecto, o ópio entra
sim como elemento transgressor, mas o enfoque recai sobre o sofrimento do

– 218 –
Modernismo: Geração de Orpheu

eu lírico, que, entre outras coisas, queria ser um poeta reconhecido. O con-
flito existencial é o que está em foco em sua caracterização.
Álvaro de Campos é o poeta que canta a modernidade. Tanto sua “Ode
triunfal” com sua “Ode marítima” são paradigmas da poesia moderna em
todo o mundo. Um outro poema seu muito famoso é “Tabacaria”, que assim
tem início:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe
quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos
homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
(PESSOA, 1994, p. 221)

A ideia do anonimato em que vivemos nas grandes cidades, a ideia de


nossa insignificância em meio a essas grandes aglomerações humanas, a ideia
de que podemos ser tudo que quisermos em vista de tantas oportunidades, a
ideia do fracasso de não conseguirmos ser nada disso – enfim, todo o drama
da condição moderna está presente nesse poema, assim como em outros poe-
mas de Álvaro de Campos.

11.2.1.4 O esteticismo de Fernando


Pessoa ele mesmo, o ortônimo
O Fernando Pessoa ortônimo é bastante diferente de Alberto Caeiro e
de Ricardo Reis porque jamais expõe uma filosofia prática. Pessoa ele mesmo
possui um lirismo intelectual que fascina por sua capacidade de sentir e de
refletir. Vejamos dois poemas em que o eu lírico tematiza a poesia e, portanto,
fala do seu fazer poético.

– 219 –
Literatura de países de língua portuguesa

Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as dores que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração. (PESSOA, 1994, p. 110)

Em “Autopsicografia”, Pessoa trabalha a ideia do poeta como alguém


que encena o sentimento a ponto de encenar o a si próprio, confundindo-
-se assim com sua encenação. Sentimento e fingimento são mesclados de tal
modo que não há mais possibilidade de separá-los, diferentemente do que
acontecia com o romantismo, para o qual o sentimento deveria ser sempre
verdadeiro. A artificialidade da linguagem é aqui assumida em sua plenitude,
reconhecendo, no entanto, que o sujeito que a enuncia jamais está completa-
mente distanciado dela.
Essa negação do sentimentalismo romântico é explicitada no poema a seguir:
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê! (PESSOA, 1994, p.111)

– 220 –
Modernismo: Geração de Orpheu

A imaginação no lugar do coração, a mente no lugar do sentimento,


essa é a base da poética do Fernando Pessoa ortônimo. Pudemos constatar
que os heterônimos são distintos em diversos aspectos, mas o fato é que se
aproximam em outros, pois todos rejeitam o sentimentalismo, todos rejeitam
o catolicismo (tão característico da cultura portuguesa), todos se distanciam
de uma postura socialista ou de esquerda (muito comum no meio intelectual
português naquele momento).
Ao tomarmos o conjunto dos heterônimos e o Pessoa ortônimo cons-
tatamos que a unidade entre eles atribui verossimilhança à sua diversidade,
isto é, o fato de os heterônimos se conhecerem, compartilhando ideias ou
mesmo sentimentos, doa-lhes maior autenticidade. Ao mesmo tempo, são
as diferenças que permitem o debate entre eles e problematizam a questão
da identidade, pois Pessoa não quer simplesmente criar novas identidades ou
pseudoescritores, mas dramatizar a própria condição identitária de um escri-
tor, tomado como um sujeito povoado por numerosos personagens, nume-
rosas opções estéticas, numerosas perspectivas morais e éticas. É, no fundo, a
encenação poética do drama do homem moderno.

11.2.2 Fernando Pessoa e o Sebastianismo


O Pessoa ortônimo ainda tem uma obra Figura 6 – Capa da primeira
que merece especial destaque, pois passou a edição de Mensagem (1934),
ser considerada Os Lusíadas da modernidade de Fernando Pessoa.
na literatura portuguesa. O livro Mensagem,
publicado em 1934 e único livro que o escri-
tor publicou em vida, é uma obra que retoma
a história da saga portuguesa pelos mares de
uma perspectiva sebastianista.
Como já foi mencionado, em 1912 Pessoa
colaborou com A Águia (1910-1932), órgão
da Renascença Portuguesa, marco impor-
tante entre as publicações que contribuíram
para o estabelecimento do Modernismo em
Portugal, fortemente ligada ao Sebastianismo

– 221 –
Literatura de países de língua portuguesa

e o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes. O Sebastianismo foi também uma


marca da obra de Pessoa.
O Sebastianismo tem origem na figura de D. Sebastião (1554-1578), rei
português que morreu na Batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África. Era
o único herdeiro e, em consequência de sua morte, a coroa foi tomada por
um dos membros da casa dos Habsburgos da Espanha. Desse modo, Portugal
perdeu sua autonomia política por 60 anos, de 1580 a 1640. Criou-se, então,
o mito sebastianista, segundo o qual D. Sebastião não teria morrido e iria vol-
tar para promover a restauração da autonomia política portuguesa. Mesmo
depois de essa autonomia ter sido restaurada, o mito se manteve, vendo em
D. Sebastião aquele que iria restituir a Portugal a glória e a riqueza que o país
tivera nos séculos XV e XVI.
Pessoa irá reeditar esse mito, assim como já haviam feito diversos outros
poetas, como o referido Teixeira de Pascoaes ou António Nobre. Mensagem é
dividido em três partes:
22 o brasão;
22 mar português;
22 o encoberto.
Contando ao todo 19 poemas, na sua maioria sobre figuras da história
portuguesa, a primeira parte subdivide-se em:
22 os campos;
22 os castelos;
22 as quinas;
22 a coroa;
22 o timbre.
A segunda parte, sem subdivisões, é constituída de 12 poemas nos quais
também aparecem figuras da história de Portugal, ao lado de figuras mitoló-
gicas, entre outros temas diversos. A terceira parte subdivide-se em:

– 222 –
Modernismo: Geração de Orpheu

22 os símbolos;
22 os avisos;
22 os tempos, com 13 poemas ao todo, nos quais ainda aparecem figu-
ras históricas, mas predominam os temas abstratos.
O livro estabelece uma relação dialética entre mito e história e se orga-
niza entre esses dois polos, sendo que no início tende mais para a história e
no final mais para o mito, passando, no meio, pelo mar das navegações por-
tuguesas, histórico e mítico. Retomando uma ideia desenvolvida pelo padre
António Vieira (1608-1697) – a ideia do Quinto Império, segundo a qual
após os impérios dos assírios, dos medos, dos persas e dos romanos, o quinto
império seria o dos portugueses –, Pessoa como que profetiza a futura glória
lusitana no último poema do livro, intitulado “Nevoeiro”:
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora! (PESSOA, 1986, p. 82)

O último verso instiga os portugueses a fazerem valer novamente a sua


força mítica, na dimensão do livro Mensagem, para conquistar o mundo e a
glória universal, em uma conquista que não diz respeito à sua dimensão bélica
e armamentista, pois dar-se-ia no âmbito espiritual.
Ao menos no que concerne à obra de Fernando Pessoa, a profecia se
concretizou, pois o escritor passou a ser um clássico da literatura universal e,
portanto, a cultivar espíritos em todo o planeta para todo o sempre.

– 223 –
Literatura de países de língua portuguesa

11.3 Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)


Outra figura literária de peso para Figura 7 – Mário de
o Primeiro Modernismo foi Mário de Sá-Carneiro.
Sá-Carneiro. Nascido em família abastada,
ele estudou em Paris, mas logo abandonou
os estudos, dedicando-se somente à litera-
tura. Foi, como vimos, um dos mentores da
revista Orpheu, patrocinada por seu pai. De
caráter muito sensível e afeito a profundos
conflitos existenciais, acabou por se suici-
dar em um quarto de hotel em Paris, aos 26
anos de idade. De sua obra, podemos citar
22 Dispersão (1914);
22 A confissão de Lúcio (1914);
22 Céu em fogo (1915);
22 Indícios de oiro (1937); e
22 Primeiros contos (1998).
A obra de Sá-Carneiro tem uma forte densidade dramática e intimista,
voltada para o mundo marginal e miserável, boêmio, sendo constante o sen-
timento de inadequação à vida e ao mundo que cerca o poeta. O poema a
seguir nos dá um pouco desse sentimento.
Torniquete
A tômbola anda depressa,
Nem sei quando irá parar –
Aonde, pouco me importa;
O importante é que pare...
– A minha vida não cessa
De ser sempre a mesma porta
Eternamente a abanar...
Abriu-se agora o salão
Onde há gente a conversar.
Entrei sem hesitação –
Somente o que se vai dar?
A meio da reunião,

– 224 –
Modernismo: Geração de Orpheu

Pela certa disparato,


Volvo a mim a todo o pano:
Às cambalhotas desato,
E salto sobre o piano...
– Vai ser bonita a função!
Esfrangalho as partituras,
Quebro toda a caqueirada,
Arrebento à gargalhada,
E fujo pelo saguão...
Meses depois, as gazetas
Darão críticas completas,
Indecentes e patetas,
Da minha última obra...
E eu – prá cama outra vez,
Curtindo febre e revés,
Tocado de Estrela e Cobra...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 84)

É como se tudo fosse previsível, domesticado e nada fizesse sentido para


o eu poético. Por mais que faça, que escandalize ou barbarize, ele nunca se
encontra integrado, sua febre nunca passa. Essa inadequação tem a ver com o
sujeito moderno, que jamais se sente integrado em uma comunidade da qual
já perdeu a noção de totalidade, na qual não sabe reconhecer quem são seus
verdadeiros interlocutores.

11.4 Almada Negreiros (1893-1970)


Ao contrário de Mário de Sá-Carneiro, que morreu jovem, Almada
Negreiros viveu 77 anos, tendo nascido em São Tomé, então colônia luso-
-africana, e morrido em Lisboa. Como vimos, também colaborou com a
revista Orpheu e foi poeta, dramaturgo e artista plástico. Entre suas obras
podemos destacar:
22 o Manifesto Anti-Dantas (1916);
22 as peças de teatro O Moinho (1912), Antes de Começar (1923), Os
Outros (1923), S. O. S. (1929), Deseja-se Mulher (1959);

– 225 –
Literatura de países de língua portuguesa

22 a novela A Engomadeira (1917); o poema “A Cena do Ódio”, publi-


cado na revista Portugal Futurista (1917);
22 o livro de poemas A Invenção do Dia Claro (1921);
22 o romance Nome de Guerra (1938).
Almada ficou muito conhecido com o Manifesto Anti-Dantas, folheto
impresso em papel de embrulho, assinado por: “José d’Almada-Negreiros,
poeta d’Orpheu, futurista e tudo”. Eis um trecho desse manifesto:
Basta pum basta!
Uma geração, que consente deixar-se representar por um dantas é
uma geração que nunca o foi! É um coio d’indigentes, d’indignos e
de cegos! É uma rêsma de charlatães e de vendidos, e só pode parir
abaixo de zero!
Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas à proa é uma canôa uni seco!
O Dantas é um cigano!
O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá grammática, saberá syntaxe, saberá medicina, saberá
fazer ceias p’ra cardeais saberá tudo menos escrever que é a única coisa
que ellle faz!
O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de
duquezas!
O Dantas é um habilidoso!
O Dantas veste-se mal!
O Dantas usa ceroulas de malha!
O Dantas especúla e inócula os concubinos!
O Dantas é Dantas!
O Dantas é Júlio!
(Almada-Negreiros, 1993, p. 18) )

– 226 –
Modernismo: Geração de Orpheu

Esse manifesto era contra Júlio Figura 8 – Almada Negreiros.


Dantas, poeta, dramaturgo, jornalista Autorretrato.
e político conservador, colocado pela
imprensa como representante da gera-
ção daquele momento. Dantas criti-
cou fortemente os movimentos van-
guardistas. O texto de Almada ataca
não só a Dantas, mas toda a geração
que se deixava representar por ele,
procurando marcar o surgimento de
uma nova estética e, portanto, de uma
nova representação.
Esse texto de Almada é con-
siderado por muitos como a pri-
meira manifestação do futurismo
em Portugal.

11.5 A epopeia portuguesa moderna:


de Os Lusíadas a Mensagem
Podemos dizer que a geração de Orpheu caracterizou-se pela transgres-
são, pela irreverência, pela vontade de mudar radicalmente os paradigmas
da arte. Politicamente, não foram muito atuantes, ao menos se pensarmos
em política partidária: em geral, eram avessos a esse tipo de forma de luta
social. No entanto, tiveram um papel importante como inauguradores de
alguns procedimentos e posturas que caracterizaram a arte moderna em todo
o mundo ocidental, como o largo emprego do verso livre em poesia, o uso de
formas narrativas experimentais, a abordagem e a defesa de temas marginais
– como os do feminismo e da homossexualidade.
Fernando Pessoa foi certamente a referência maior dessa geração e mar-
cou esteticamente esse momento, quer por sua original dramaticidade hete-
ronímica – apresentando uma elaboração ímpar da figura do poeta enquanto
sujeito plural –, quer por sua síntese do sentimento nacional prefigurada em

– 227 –
Literatura de países de língua portuguesa

Mensagem, fazendo dessa obra a moderna epopeia portuguesa e, com isso,


colocando-se, em grau de importância, ombro a ombro com o grande ícone
literário português que é Luís de Camões.
Para concluir, vale lembrar que enquanto o poeta renascentista cantou
as glórias do passado, o poeta moderno cantou não só as glórias do passado
português, mas sobretudo as do futuro.
Quem viver verá...

Dicas de estudo
22 Você pode saber mais sobre a obra pictórica de Almada Negreiros no
site: <https://www.wikiart.org/pt/jose-de-almada-negreiros>. Acesso
em: 29 set. 2017.

Atividades
1. Por que se designa a primeira Geração do Modernismo Português
como “Geração de Orpheu” e quem são seus principais representantes?

2. Explique a heteronímia pessoana.

3. Por que Mensagem, de Fernando Pessoa, é considerado Os Lusíadas


moderno?

– 228 –
12
Modernismo Presencista
José Carlos Siqueira

O poeta é a antena da raça.


Erza Pound

12.1 O direito à liberdade de criação


Me cansei de lero-lero
Dá licença mas eu vou sair do sério
Quero mais saúde
Me cansei de escutar opiniões
De como ter um mundo melhor
Mas ninguém sai de cima
Nesse chove não molha
Eu sei que agora
Eu vou é cuidar mais de mim!
(LEE; CARVALHO, 2008)

É de modo bastante debochado que o trecho anterior – da can-


ção “Saúde”, de Rita Lee – fala da falta de solução para os problemas
sociais e apresenta uma saída individual: “Eu vou é cuidar mais de
mim!”. Essa revolta com a sistemática cobrança para procurarmos
soluções para os problemas sociais imediatos é algo que alguns escri-
tores portugueses do início do século XX também sentiram. Eles
Literatura de países de língua portuguesa

procuraram resolver a questão apostando na criação artística como forma de


transformação social, sem que isso significasse arte socialmente engajada. Essa
atitude caracterizou a segunda geração do Modernismo Português.
Em Portugal, costuma-se dividir o Modernismo em dois momentos:
22 o primeiro, de 1915 a 1927, é o da geração que se constituiu
em torno da revista Orpheu (1915), chamado de orfismo, no
qual se encontravam Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e
Almada-Negreiros;
22 o segundo, de 1927 a 1939, é o dos presencistas, assim chamados
por estarem reunidos em torno da revista Presença (1927-1940),
e entre eles temos José Régio, Vitorino Nemésio, Miguel Torga e
Branquinho da Fonseca.
O grupo em torno da revista Presença valorizava a importância da origi-
nalidade e do gênio artístico, a liberdade na arte e a sinceridade, rejeitando a
submissão da arte a quaisquer princípios que não os especificamente artísticos.
Todavia, esses escritrores foram acusados de “esteticismo”, “a-historicismo”,
“individualismo”, “psicologismo”, “formalismo”, e “torre de marfismo” pelo
grupo em torno da revista Seara Nova (1919-1974), que fazia oposição à
ditadura de Salazar.
Para entender isso, é preciso lembrar um pouco da história da
República portuguesa.

12.2 A República e a ditadura de Salazar


A República portuguesa surgiu em 1910, após a revolução de 5 de
outubro, quando os republicanos tomaram o poder, sendo o escritor Teófilo
Braga eleito como presidente interino. Os republicanos proclamaram uma
nova Constituição em 1911 e começaram a legislar em prol da população.
Acabaram com a censura, instituiram o direito à greve e procuraram garantir
uma séria de direitos para os trabalhadores. Por razões de ordem externa (a
emergência da Primeira Guerra Mundial – 1914-1918) e de ordem interna
(o acirramento das diferenças intrapartidárias), eles não conseguiram estabi-
lidade política para concretizar as várias ações sociais propostas e em 28 de

– 230 –
Modernismo Presencista

maio de 1926 aconteceu um golpe militar que instituiu uma ditadura. Na


maior parte do tempo tendo à sua frente a figura de António de Oliveira
Salazar, essa ditadura só teve fim com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril
de 1974.

12.3 A revista Seara Nova (1919-1974)


A Seara Nova surgiu da preocupação de alguns Figura 1 – O n. 111 da
intelectuais com os descaminhos que a República Seara Nova.
vinha tomando depois de quase uma década de sua
existência. Em 1919, esses intelectuais fundaram
essa publicação com o intuito de refletir sobre a
nação, congregando nomes como os de Jaime
Cortesão, Raul Proença, Raul Brandão, Aquilino
Ribeiro, António Sérgio, entre muitos outros.
Esse grupo era internacionalista, uma vez que
a Primeira Guerra Mundial havia demonstrado o
perigo do enaltecimento exacerbado das identida-
des nacionais, e também lutava por diversas causas
sociais, em especial a democratização do ensino
em todos os seus níveis, da alfabetização à Universidade. Alguns dos seus
integrantes acabaram entrando para os quadros do governo, como António
Sérgio, que se tornou Ministro da Instrução.
Buscando uma postura suprapartidária, eles avaliavam que os portugue-
ses não tinham consciência do papel que deveriam cumprir em um governo
republicano e democrático e se empenhavam em fazer com que as elites inte-
lectuais e políticas do país se conscientizem disso.
Além disso, combatiam o individualismo político, a corrupção, a mili-
tarização crescente, o reacionarismo monárquico. Combatiam sobretudo o
Integralismo Lusitano, de base fascista, assim como toda e qualquer forma de
governo totalitário. Durante a ditadura de Salazar, a revista foi um reduto opo-
sicionista, tendo sofrido sistemáticos ataques da censura. Sintomaticamente,
encerrou sua publicação logo após o advento da Revolução dos Cravos e o fim
desse período trágico da história portuguesa.

– 231 –
Literatura de países de língua portuguesa

12.3.1 Raul Brandão (1867-1930)


Entre os colaborados da Seara Nova, vale Figura 2 – O escritor
destacar Raul Brandão, que surgiu no cená- Raul Brandão.
rio literário português ainda no período do
Simbolismo. Apesar de ter se formado em Letras,
acabou se dirigindo para a carreira militar, na
qual permaneceu. Foi do grupo fundador da
Seara Nova, mas saiu da direção da revista em
1923, quando a literatura começou a perder
espaço na publicação, que se voltava quase que
inteiramente para a política.
Entre suas obras, podemos destacar:
22 Impressões e paisagens (1890).
22 História de um palhaço (1896).
22 Os pobres (1906).
22 Húmus (1917).
22 Memórias (1919, 1925 e 1933).
22 Teatro (1923).
22 Os Pescadores (1923).
22 A Morte do palhaço e o mistério das árvores (1926).
22 Jesus Cristo em Lisboa (em coautoria com Teixeira de Pascoaes, 1927).
22 O Avejão (1929).
22 Portugal pequenino (em coautoria com Maria Angelina Brandão, 1930).
22 O pobre de pedir (1931).
Além desses títulos, também escreveu o inacabado romance Os Operários
(1984), publicado postumamente por Túlio Ramires Ferro.
Já pelos títulos de seus trabalhos, é possível constatar sua preocupação
com as causas sociais. Vejamos como exemplo de seu estilo o início do capí-
tulo “As mulheres”, do romance Os Pobres:

– 232 –
Modernismo Presencista

Ao vir a noite põem-se as prostitutas a cantar; entre as pedras resse-


quidas e o ruído humano põem-se as prostitutas a cantar. São pobres
seres de descalabro e piedade, lama que o homem gera de propósito
para o gozo. A treva leva e dispersa essa toada em farrapos, os flocos
de tristeza, que são como a alma, a aflição da noite, a soluçar. Noite...
Remorsos, sonhos, soou a vossa hora! De blocos negros se constrói
outra cidade... Há ainda claridades esparsas, que a Sombra calada, a
tactear, de súbito afoga sem rumor. E de entre as meias portas surgem
fisionomias como só o remorso as cria: diríeis, de tristes e cansadas,
que se vão diluir como as das mortas. (BRANDÃO, 2008)

É de se notar, como, ao descrever a realidade da prostituição, Raul


Brandão possui um estilo que guarda um vínculo com os procedimentos
estéticos simbolistas, carregando o ambiente da prostituição de um gosto
inspirado no decadentismo literário francês, na escolha de seu vocabu-
lário (lama, treva, farrapos, aflição, remorsos, cansadas, mortas) e de uma
certa magia e encantamento (as prostitutas cantam, seu canto são flocos
de tristeza, de sonhos, em meio a claridades esparsas). Sua prosa de viés
realista é mediada, portanto, por um lirismo muito peculiar e original,
ao modo simbolista, o que o distingue entre os prosadores portugueses
do período.
Apesar de suas peculiaridades, Raul Brandão não se configura como um
caso isolado no que concerne ao seu realismo: a crescente preocupação com
o retrato crítico da realidade foi uma marca do grupo que se reuniu em torno
da Seara Nova, de onde irá surgir o Neorrealismo português.

12.4 A revista Presença (1926-1940)


Figura 3 – O primeiro
Já a Presença tomará um caminho completa- número de Presença.
mente distinto do da Seara Nova. Sob a direção
de três grandes personalidades literárias do moder-
nismo português – José Régio, Branquinho da
Fonseca e João Gaspar Simões –, a revista Presença
surgiu em Coimbra, contando com a colabora-
ção de Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro,
Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, António Botto e
Fernando Namora, entre outros.

– 233 –
Literatura de países de língua portuguesa

Acolheu ainda textos de autores do primeiro modernismo, como


Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. E primava pelo cuidado gráfico,
com trabalhos de Almada-Negreiros, Sarah Afonso, Dórdio Gomes, Mário
Eloy e outros artistas plásticos.
Preocupados com a liberdade de criação artística, que viam ameaçada
pelo engajamento político presente nos membros da Seara Nova, os colabora-
dores de Presença defendiam a supremacia do individual em relação ao cole-
tivo, a liberdade da arte e do artista em relação a qualquer forma do coerção,
o direito à pesquisa estética sem vínculo imediato com as questões políticas e
sociais, buscando o universalismo e não o historicismo. Desse modo, pude-
ram, em certo sentido, dar continuidade ao trabalho estético iniciado pela
geração de Orpheu.

12.4.1 José Régio (1901-1969)


Uma da mais importantes personalidades Figura 4 – José Régio.
de Presença foi José Régio, que era formado em
Letras pela Universidade de Coimbra e profes-
sor do ensino secundário. Como vimos, foi um
dos fundadores da revista Presença, e foi autor
de uma vasta produção que inclui poesia, peças
teatrais, prosa ficcional e ensaios críticos.
De sua obra poética, podemos destacar:
22 Poemas de Deus e do Diabo (1925);
22 Biografia (1929);
22 As Encruzilhadas de Deus (1935-1936);
22 Mas Deus é Grande (1945);
22 Filho do Homem (1961);
22 Cântico Suspenso (1968);
22 Música Ligeira (1970) e Colheita da Tarde (1971).

– 234 –
Modernismo Presencista

Para o teatro, escreveu:


22 Jacob e o Anjo (1940);
22 Benilde ou a Virgem-Mãe (1947);
22 El-rei Sebastião (1949);
22 A Salvação do Mundo (1954);
22 Três Peças em um Ato (1957).
Só pelos títulos de seus livros de poesia e de sua produção dramática
faz-se evidente a referência ao imaginário cristão.
De sua prosa, temos:
22 Jogo da Cabra-Cega (1934);
22 Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941);
22 A Velha Casa (1945-1966);
22 Histórias de Mulheres (1946);
22 Há mais Mundos (1962).
Como ensaísta, podemos mencionar:
22 Críticas e Criticados (1936);
22 Em Torno da Expressão Artística (1940);
22 As Correntes e as Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa
(1952);
22 Ensaios de Interpretação Crítica (1964);
22 Três Ensaios sobre Arte (1967).
Sua poesia é marcada pelo personalismo, pela busca de forjar uma iden-
tidade que não se molde pelos padrões estabelecidos, tal como diz o início do
poema “Cântico Negro”:

– 235 –
Literatura de países de língua portuguesa

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada. (RÉGIO, 1978, p. 32)

12.4.2 Branquinho da Fonseca (1905-1974)


Outro fundador da Presença foi Branquinho da Fonseca, que se formou
em Direito pela Universidade de Coimbra e trabalhou no Registro Civil
de Marvão e no de Nazaré, tendo sido ainda diretor do Museu-Biblioteca
Conde de Castro-Guimarães, em Cascais. Ainda na universidade, conheceu
João Gaspar Simões e José Régio, com quem fundou a revista, que dirigiu até
1930. Todavia, desligou-se da publicação por desentendimento ideológico,
por considerar que começava a haver cerceamento do direito de livre criação.
De sua obra poética, temos:
22 Poemas (1926); e
22 Mar coalhado (1932).

– 236 –
Modernismo Presencista

Para o teatro, escreveu:


22 Posição de guerra (1928); e
22 Teatro (1939).
Entre seus textos ficcionais, contam:
22 Zonas (1931);
22 Caminhos magnéticos (1938);
22 O barão (1942);
22 Rio turvo (1945);
22 Porta de Minerva (1947);
22 Mar santo (1952); e
22 Bandeira preta (1956).
O seu texto mais conhecido é o conto “O Barão”, que foi transfor-
mado em peça teatral em 1964 e no qual um inspetor de escolas narra a
noite que foi obrigado a passar no solar de um barão sentimental e excên-
trico, constituindo-se uma narrativa que envolve suspense, luxúria, mistério
e densidade psicológica.

12.4.3 Vitorino Nemésio (1901-1978)


Vitorino Nemésio não esteve na origem da revista, mas foi um de seus
importantes colaboradores e nela despontou para a vida literária. Foi professor
da Faculdade de Letras em Lisboa, chegando a dar aulas no Brasil, na França,
na Bélgica, na Espanha e na Holanda. Além de professor de Literatura, apre-
sentou por muitos anos um programa de cultura na TV portuguesa, assim
como colaborou sistematicamente em periódicos e chegou a dirigir o jornal
O Dia.
Entre suas obras poéticas podemos destacar:
22 La voyelle promise (1935);
22 Nem toda a noite a vida (1952);

– 237 –
Literatura de países de língua portuguesa

22 O verbo e a morte (1959);


22 O cavalo encantado (1963);
22 Poemas brasileiros (1972);
22 Sapateia açoriana (1976).
De sua prosa ficcional, lembremos:
22 Paço do Milhafre (1924);
22 Varanda de Pilatos (1926);
22 Mau tempo no canal (1944);
22 Quatro prisões debaixo de armas (1971).
Entre ensaios e crônicas temos:
22 Relações francesas do romantismo português (1936);
22 Isabel de Aragão (1936);
22 Vida e obra do infante D. Henrique (1959);
22 Corsário das ilhas (1956);
22 O retrato do semeador (1958);
22 Quase que os vi viver (1985).
Seu texto mais conhecido é o romance Mau Tempo no Canal, que trata
da sociedade açoriana e mais especificamente da cidade da Horta, onde acon-
tece a relação amorosa entre Margarida Clark Dulmo e João Garcia, em meio
a conflitos familiares que vêm caracterizar aquela sociedade. Lembremos que
Nemésio era açoriano e, portanto, conhecia bem a realidade de que retratava.
Vale lembrar um dos seus Poemas brasileiros, “Nova bárbara escrava”,
demonstrando como o poeta açoriano procurou dialogar com o português do
Brasil. Assim diz o início do poema:
Barborinha uma crioula:
Faz de bahiana evocada
Num hotel de vidro e avenca;

– 238 –
Modernismo Presencista

Usa torço cor-de-rosa,


Pano da costa fingido,
Chambre crivado no seio:
Seu balangandã preserva-a
Bem menos que seu enleio.
Para não ver os meus olhos
– Figa branca, figa preta –
Atira-as pra trás nas costas,
Tão bem, que só vê diante
A cuia do vatapá:
Mas eu sei quantas pancadas,
Vindo assim, seu peito dá.
Peixinho moreno, pula
No aquário do hotel de luxo
Como gota de água ao céu:
Tem vergonha de ser mate,
O seu passo é como um véu. (NEMÉSIO, 1989, p. 480)

As palavras balangandã, cuia e vatapá procuram integrar em sua poesia


alguma brasilidade, mas o título do poema não deixa margem para a crítica
que faz à condição da mulher negra baiana, “Nova bárbara escrava”. Se a figura
de Barborinha o fascina por sua sensualidade, também se dá conta de sua
condição miserável (“[...] sei quantas pancadas, / Vindo assim, seu peito dá”).
Dessa maneira, tanto a poesia quanto a prosa de Vitorino Nemésio têm, ao
lado de um forte lirismo, uma também forte consciência dos problemas sociais.

12.4.4 Miguel Torga (1907-1995) Figura 6 – Miguel Torga.


Miguel Torga, outro colaborador da Presença,
é o pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha.
Nascido em Portugal, viveu parte de sua infân-
cia e juventude no Brasil, retornando a Portugal
para fazer o curso de medicina na Universidade
de Coimbra. Ali se aproximou do grupo da
revista, afastando-se dele para criar junto com
Branquinho da Fonseca a revista Sinal (1930). Foi

– 239 –
Literatura de países de língua portuguesa

várias vezes indicado para o Prêmio Nobel da Literatura, sem, no entanto,


jamais tê-lo recebido.
Entre seus livros de poemas podemos citar:
22 Ansiedade (1928);
22 Abismo (1932);
22 O outro livro de Job (1936);
22 Lamentações (1943);
22 Libertação (1944);
22 Alguns Poemas Ibéricos (1952);
22 Penas do Purgatório (1954);
22 Orfeu Rebelde (1958);
22 Câmara Ardente (1962).
De sua prosa, lembremos:
22 Pão Ázimo (1931);
22 A Criação do Mundo (1937-1980, em cinco volumes);
22 Os Bichos (1940);
22 Contos da Montanha (1941);
22 Rua (1942);
22 O Senhor Ventura (1943);
22 Pedras Lavradas (1951).
Além disso, há o Diário (1941-1995, em 16 volumes).
Um dos principais dilemas de Torga diz respeito à relação entre os
homens e Deus. Sua obra está repleta de referências bíblicas, mas o seu inves-
timento todo é no louvor ao ser humano e não a Deus. Em “Exortação”, o
poeta demonstra o quanto acredita no homem:
Em nome do teu nome,
Que é viril,

– 240 –
Modernismo Presencista

E leal,
E limpo, na concisa brevidade
– Homem, lembra-te bem –!
Sê viril,
E leal,
E limpo, na concisa condição.
Traz à compreensão
Todos os sentimentos recalcados
De que te sentes dono envergonhado;
Leva, doirado,
O sol da consciência
Às íntimas funduras do teu ser,
Onde moram
Esses monstros que temes enfrentar.
Os leões da caverna só devoram
Quem os ouve rugir e se recusa a entrar...
(TORGA, 1978, p. 83)

A ideia de que não devemos ter medo do desconhecido, a necessidade de


enfrentarmos os temores existentes nas profundezas de nossa alma (os leões
de caverna) é parte de um ideário humanista e materialista. Torga é, portanto,
um homem que sempre lutou por uma ética que, calcada na própria humani-
dade, não dependesse de qualquer transcendência.

12.5 A autonomia da literatura


e sua relação mediada com a realidade
Podemos concluir que, apesar de lutarem por uma prática literária
não engajada, que não atrelasse sua produção ao imediatismo do momento
político, os presencistas também não deixaram de atuar politicamente. Se
Raul Brandão e o grupo da Seara Nova tomavam como matéria-prima a
questão social daquele momento histórico, o presencismo veio estabelecer
uma relação mediada com essa realidade imediata, pois, apesar de tomarem
por matéria de seus textos barões sentimentais, egos transgressivos, dramas

– 241 –
Literatura de países de língua portuguesa

familiares e a própria natureza humana, todos esses temas e o modo como


eram tratados esteticamente guardavam fortes vínculos com o mundo que
os cercava, servindo também no sentido de se caminhar para uma sociedade
mais justa e igualitária.

Dicas de estudo
22 Para se aprofundar no conflito entre as revistas Seara Nova e
Presença, leia o que dizem Óscar Lopes e António José Saraiva
em História da Literatura Portuguesa, obra que tem várias edi-
ções, sempre pela Porto Editora, de Portugal.
22 Tanto Vitorino Nemésio como Miguel Torga viveram no Brasil.
Faça uma pesquisa para saber mais sobre a relação desses escrito-
res como o nosso país, começando pela própria obra deles, nas
quais o Brasil aparece diversas vezes.

Atividades
1. Qual é o aspecto central que opunha as publicações Seara Nova
e Presença?

2. Resuma em poucas palavras o ideário estético da Presença.

3. Quais foram as duas gerações do Modernismo português, qual o pe-


ríodo de cada uma delas e quais os seus principais integrantes?

– 242 –
13
Gêneros literários
e tradição oral
Jurema Oliveira

O momento em que se verifica o início de uma regularidade


na atividade literária e, nos moldes ocidentais, cultural na África
está intimamente ligado à implantação e ao desenvolvimento do
ensino privado ou sancionado pelo Governo da Metrópole.
As primeiras iniciativas governamentais relacionadas com
a educação na África datam de 1740, mas só a partir da segunda
metade do século XIX foram tomadas as medidas cabíveis para
desenvolver o ensino em Cabo Verde, primeira colônia portuguesa
a ser beneficiada pelo projeto de “instrução pública no ultramar”.
Literatura de países de língua portuguesa

Nos documentos oficiais (boletins) de Cabo Verde, verificam-se algu-


mas das providências acerca da instrução pública ultramarina, como: “escolas
principais, materiais de ensino, provimento, vencimentos, jubilação e apo-
sentadoria dos professores, criação dos conselhos inspetores de instrução pri-
mária, sua composição e deveres” (FERREIRA, 1987, p. 9). Cabe ressaltar
que o prelo1 foi instalado nas colônias portuguesas nas seguintes datas: Cabo
Verde, 1842; Angola, 1845; Moçambique, 1854; São Tomé e Príncipe, 1857;
Guiné-Bissau, 1879.
A instalação do prelo em Angola abre espaço para a publicação de
Espontaneidades da Minha Alma (1849), de José da Silva Maia Ferreira, pri-
meira obra de língua portuguesa impressa na África, mas não a primeira pro-
dução literária de autor africano. Segundo Manuel Ferreira, Tratado breve
dos reinos (ou rios) da Guiné, de autoria do caboverdiano André Álvares de
Almada, foi escrito em 1594.
A produção literária nos países africanos divide-se em duas fases: a da
literatura colonial e a das literaturas africanas. A primeira exalta o homem
europeu como herói mítico, desbravador das terras inóspitas, portador de
uma cultura superior. A segunda constitui-se inversamente, pois nela o
mundo africano passa a ser narrado por outra ótica. O negro é privilegiado e
tratado com solidariedade no espaço material e linguístico do texto, embora
não sejam excluídas as personagens europeias (de características negativas ou
positivas). É o africano que normalmente preenche os apelos da enunciação
e é ele quase exclusivamente, enquanto personagem ficcional ou poético, o
sujeito do enunciado.
Os cuidados e os esmeros do sujeito enunciador são os de organi-
camente moldar o enunciado com os ingredientes significativos e
representativos da especificidade africana. Se colocados lado a lado
dois textos, um de literatura colonial e outro de literatura africana,
é como se procedêssemos a uma justaposição de brusco contraste.
(FERREIRA, 1987, p.13-14)

Diante disso, pode-se dizer que o universo literário e cultural dos naturais
da terra, nas literaturas africanas, é valorizado e explorado significativamente,
1 Imprensa oficial ligada à Administração da colônia.

– 244 –
Gêneros literários e tradição oral

pois, quando os autores negam a legitimidade do colonialismo no discurso


literário, fazem da revelação e valorização do mundo africano a raiz primor-
dial tanto na ficção quanto na poesia, que, inicialmente, foram registradas em
jornais ou folhetins.
As literaturas africanas de língua portuguesa, do ponto de vista linguís-
tico, contam com numerosos termos, expressões, provérbios oriundos das lín-
guas faladas nos vários grupos étnicos em Angola e Moçambique, enquanto
em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau se usam duas línguas: a
portuguesa e a crioula.
Cabe ressaltar que o crioulo falado em Cabo Verde é muito similar ao
da Guiné-Bissau, e denominado crioulo pelo povo da terra; já em São Tomé e
Príncipe era e é chamado de forro – denominação dada tanto à língua quanto
aos naturais da terra – por ser usado primeiramente pelas camadas mais
pobres, e iletradas, já que a língua portuguesa era falada apenas pela burguesia
mestiça ou negra que lá se formava. Após a independência, o crioulo adquiriu
autonomia e passou a ser valorizado e falado em todas as camadas sociais das
ex-colônias cabo-verdiana, guineense e são-tomense.
Em 1846, um ano após a instalação do prelo em Angola, publicaram-se
no Boletim Oficial dessa colônia alguns textos literários. Por volta de 1874,
verifica-se o aparecimento da Imprensa livre angolana, publicação de registros
de experiências literárias e artigos, e cujo mérito era levantar a bandeira da
democracia republicana almejada pelos intelectuais africanos e portugueses
engajados na busca de uma imprensa propagadora das realidades africanas.
Os estilos narrativos mais produtivos foram a crônica e o panfleto, este
de caráter doutrinário e político. Outro gênero literário valorizado nessa fase
foi o folhetim, que agradava tanto aos africanos como aos portugueses. Eram
publicados na colônia e algumas vezes reeditados na metrópole:
Africanos, portugueses e brasileiros publicavam nos espaços comuns
dos almanaques, boletins, jornais, revistas e folhetos. Não tinham sur-
gido ainda as designações de literatura angolana, moçambicana ou
são-tomense com caráter de sistema nacional, mas a escrita já dei-
xara de ser espaço de europeidade absoluta para se tornar contami-
nação relativa de línguas. De facto, poetas portugueses, e angolanos

– 245 –
Literatura de países de língua portuguesa

intercalavam no texto em português, mais extenso, frases, diálogos,


versos, lexemas em língua banta, quase que exclusivamente o quim-
bundo. A integração é perfeita, na coerência do sentido e da sonori-
dade e na coesão dos segmentos e dos ritmos. (LARANJEIRA, 1992,
p.11-12)

Sendo assim, o trabalho literário aproxima os intelectuais que buscavam


um caminho para fazer circular seus textos ficcionais, poéticos e de cunho
político-ideológico. Destaca-se neste estágio de despertar cultural Alfredo
Troni – escritor, jornalista e advogado –, precursor da prosa moderna ango-
lana com a criação de Nga Muturi, bem como Pedro Félix Machado, também
jornalista, que cultivou a prosa de ficção, publicando em folhetim na Gazeta
de Portugal a primeira edição do romance Scenas d’África, reeditado em 1882.
No final do século XIX, floresceram nas colônias africanas de língua
portuguesa varias associações recreativas, grêmios literários, diversos jornais,
alguns de curta duração, mas geradores de motivação criadora bastante signi-
ficativa. Cabo Verde, por exemplo, viu nascer em Praia,
[...] desde 1858 treze associações recreativas e culturais, como a
Sociedade de Gabinete de Literatura (1860) e a Associação Literária
Grêmio Cabo-verdiano (1880). Assinala, ainda, que por essa altura,
se cria a imprensa de Angola e Moçambique e que aí se dá um notá-
vel surto de jornalismo. Aparecem os primeiros periódicos, como A
Aurora (1856), A civilização da África Portuguesa (1866), O Eco de
Angola (1881), O futuro de Angola (1882), O farol do povo (1883),
O serão (1886), O arauto africano (1889), Ensaios literários (1891),
Luz e crença (1902-1903). (SANTILLI, 1985, p.10)

Vê-se portanto que surgiram muitos jornais entre o final do século XIX
e início do XX, e, apesar da maior parte ter tido curta duração, até o final do
século XIX enumeraram-se 46 deles, os quais contaram com a participação
de europeus e africanos.
Da mesma forma como ocorreu em Angola e Cabo Verde, a imprensa
moçambicana é instalada em 1854, quando nasce o Boletim Oficial. No
entanto, é no século XX que a imprensa se estabelece com maior autonomia.

– 246 –
Gêneros literários e tradição oral

13.1 A figura do narrador


De acordo com Barry (2000), durante séculos, antes que o fio da escrita,
internamente e por todos os lados, costurasse o mundo negro a si mesmo, os
griôs2 – por meio da voz e dos gestos – foram os demiurgos3 que construíram
esse mundo, e suas únicas testemunhas.
O griô tinha dupla função: romper o silêncio do esquecimento, usando
a voz acompanhada de ritmos, e exaltar a vitória da tradição que sobreviveu
aos impactos das guerras. Os gêneros literários africanos descendem dessa
matriz rica em ritmos que só o poder da oralidade pode captar. A tradição oral
guarda a história acumulada pelos povos ágrafos, que transmitem oralmente
seus conhecimentos de geração a geração. Nessas comunidades, o ancião é o
narrador por excelência, aquele personagem capaz de irrigar a memória cole-
tiva de forma prazerosa e festiva.
O papel do griô é manter viva a chama que alimenta a existência de toda
uma coletividade. Neste sentido, o ritual de transmissão de conhecimento exige
que haja entre o contador e o ouvinte uma perfeita harmonia, um equilíbrio
que garanta a sobrevivência do passado no presente. Essa cumplicidade entre
o velho e o novo mantém viva a consciência africana de resistência ao domínio
branco- -europeu. No dizer de Laura Cavalcante Padilha (1995, p. 47),
O ancião liga o novo ao velho, estabelecendo as pontes necessárias
para que a ordem se mantenha e os destinos se cumpram [...], ten-
tando preservar os pilares de sustentação da identidade [africana],
antes, durante e depois do advento do fato colonial.

Na figura do narrador, concentra-se a ligação mais profunda entre a fonte


de conhecimentos, as experiências vividas e a textura do narrado. Conhecedor
das tradições e costumes do grupo a que pertence, o contador de histórias man-
tém acesa a chama da oralidade, num “jogo gozoso armado entre o narrador e
seu ouvinte, vive-se a vida que não teme a morte” (PADILHA, 1995, p. 65).
2 Guardiões das tradições orais nas sociedades ágrafas, sem escrita. BARRY, Boubacar. Sene-
gâmbia: o desafio da história regional. Rio de Janeiro: UCAM, 2000, p. 5.
3 Criaturas intermediárias entre a natureza divina e a humana. FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa, 1986, p. 533.

– 247 –
Literatura de países de língua portuguesa

O vasto conhecimento da comunidade autóctone4 constitui uma rede


de cumplicidades entre as cinco literaturas de língua portuguesa. Para manter
vivo o sistema de vasos comunicantes, a produção literária africana precisa
ser irrigada constantemente com as experiências individuais e coletivas, raiz
primordial da arte milenar do contar e ouvir estórias. Nesse sistema cultural,
o ato de narrar adquire um status mágico, ritualístico, um ato de iniciação ao
universo da africanidade. Diante disso, pode-se dizer que a palavra tem força
e quem a detém passa a ser respeitado pelo papel que desempenha no grupo:
Assim, [...], nas antigas comunidades, um mesmo velho que se sen-
tava ao sol, para tecer seu luando e/ou fumar seu secular cachimbo de
água, no conselho dos anciãos se transformava em um ser luminoso e
iluminado de cuja palavra dependia o próprio destino dos homens e
do grupo. (PADILHA, 1995, p. 16)

A dimensão histórica do narrador/contador, como se verifica na citação


anterior, corporifica um sistema de valores estéticos que constitui a base da
poética e da dicção africana em língua portuguesa. A voz conduz metafori-
camente os fatos, e é “por ela que o contador de estórias libera a força do seu
imaginário e a do seu grupo, fazendo do processo de recepção um ato cole-
tivo” (PADILHA, 1995, p.15).

13.2 A moderna literatura africana


A dinâmica da discursividade, advinda da oralidade, constrói a base do
que Inocência Mata chama de cumplicidade entre as cinco literaturas de lín-
gua portuguesa. Sendo a matriz a mesma, guardadas as devidas proporções,
[...] os autores textualizaram temas específicos, actualizaram sentires
e saberes diferentes segundo a imagem da nação a construir, a partir
de signos, símbolos, motivos e formas – daí resultando um reconhe-
cimento das individualidades nacionais [...]. Individualidades nacio-
nais formuladas, literariamente, em angolanidade, cabo-verdianidade,
moçambicanidade e são-tomensidade, embora com diferença de crono-
logia. (MATA, 2001, p.18)

4 Aquele que é oriundo da terra onde se encontra. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Novo dicionário da língua portuguesa, 1986, p. 202.

– 248 –
Gêneros literários e tradição oral

A moderna literatura africana pertence a uma rede de cumplicidade,


como bem define Inocência Mata. Rede esta cuja matriz primeira é a tra-
dição, fonte que durante décadas vem alimentando as narrativas africanas.
Neste sentido, os escritores e os poetas estabelecem um pacto com suas ori-
gens e, convocando outras memórias, seguem o percurso dos contadores
ancestrais. O espaço matricial é recuperado em vários níveis, o destaque, no
entanto, é para a discursividade oralizada e a materialização de tal discurso,
quando o autor “sangra o português” – língua padrão do texto – (PADILHA,
1995, p. 77) com o quimbundo, quicongo5 e outras línguas que representam
o lugar da africanidade numa construção que busca estabelecer um diálogo
com o leitor. Logo, no poema que destacamos aqui podemos perceber uma
musicalidade típica da fala:
Picada de marimbondo
(LARA, 2004, p. 78)
Junto da mandioqueira
Perto do muro de dobe
Vi surgir um marimbondo
Vinha zunindo!
cazuza!
Vinha zunindo!
Cazuza
Era uma tarde em janeiro
tinha flores nas acácias
tinha abelhas nos jardins
e vento nas casuarinas,
quando vi o marimbondo
vinha voando e zunindo
vinha zunindo e voando!
Cazuza!
Marimbondo
foi branco quem inventou...

5 Nome de línguas locais faladas em Angola.

– 249 –
Literatura de países de língua portuguesa

13.3 A arte de narrar


O hibridismo matricial – as recordações do autor e da comunidade a que
ele pertence – presentes nos textos de autores como Assis Junior, Agostinho
Neto e Manuel Rui de Angola; Manuel Lopes e Baltasar Lopes de Cabo
Verde; Francisco José Tenreiro de São Tomé e Príncipe; José Craveirinha de
Moçambique; Abdulai Sila e Odete Semedo da Guiné-Bissau e outros, cons-
tituem um paradigma do processo de formação da literatura africana de lín-
gua portuguesa. Cabe ressaltar, no entanto, que existe nesse processo uma
diferença cronológica.
A africanidade reclamada pelos autores já citados e por outros garante a
sobrevivência daquelas marcas típicas da oralidade resistentes ao bombardeio
sofrido com a chegada do outro, o invasor, que tentou silenciar a palavra,
considerada pelos ancestrais como uma força vital capaz de dar vida a um
texto que é ao mesmo tempo uma “narrativa da nação”, como bem define
Manuel Rui (1987, p. 308) em seu ensaio:
Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu
lugar. A água. O som, A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era
texto não apenas pela fala, mas porque havia árvores, parrelas sobre o
crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto por-
que havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado, ouvido, visto.

Nesse cenário equilibrado, teorizado por Manuel Rui, a força que emana
da palavra, matriz de todo o conhecimento envolto na cadeia da tradição, faz
circular as várias formas de expressões literárias como “os mitos, contos, adi-
vinhações, provérbios e enigmas” (SOW, 1977, p. 26). Essa prática narrativa
é um exercício de sabedoria compartilhado, já que existe entre o contador e
seus ouvintes uma interação capaz de criar a necessária cumplicidade para
reiterar a ideia de que “é preciso ser, na força da diferença, preservando-se,
com isso, o vasto manancial do saber autóctone” (PADILHA, 1995, p.15).
A arte de narrar dos mais velhos – os mitos, as lendas, os provérbios e
as estórias em geral –, só é recuperada pela ficção, poesia ou teatro por meio
de mecanismos, isto é, técnicas de recriação, geradoras da reflexão sobre o
próprio ato de narrar, poetizar e encenar. Tal encenação, presente em todas

– 250 –
Gêneros literários e tradição oral

as formas de expressões artísticas africanas, constitui a estética fundadora das


modernas literaturas africanas de língua portuguesa, como bem define Pathé
Diagne (1977, p. 139):
A narrativa oral tradicional do contador e do griot negro-africano
utiliza uma técnica de caracterização e um modo de dramatização
que se articulou sobre uma estrutura frequentemente simples. Os
acontecimentos enxertam-se aí sobre uma intriga linear. A riqueza
das peripécias cria uma tensão permanente. O romance moderno,
parece, paradoxalmente, embrenhar-se hoje nesta via, que se julgaria
simplista depois de Joyce.

Nessa linha teórica, destaca-se aqui, mais uma vez, a visão de Laura
Cavalcante Padilha acerca da oralidade recriada, para reafirmar a herança
matricial que funda “o encontro da magia da voz com a letra” (PADILHA,
1995, p.14).

13.4 Angolanidade, moçambicanidade,


cabo-verdianidade e são-tomensidade
No encontro provedor da renovação literária africana, diferentes fontes
– culturas – serão reinterpretadas pelos escritores e poetas dos países africanos
de língua portuguesa. A oralidade constitui a marca da tradição e é convocada
pelos escritores para o registro das experiências literárias e culturais nos cinco
países africanos de língua portuguesa. Esse registro pode ser percebido na
poética de Agostinho Neto, um membro da Geração “Vamos descobrir
Angola”. Assim, com o intuito de denunciar e despertar o sonho libertário do
homem angolano, Agostinho Neto escreve Sagrada Esperança (1974) que de
acordo com Maria Soares Fonseca (2009),
[...] delineia uma proposta poética que recupera dados importantes do
processo de conscientização encaminhado pelos intelectuais e escrito-
res angolanos. A poesia de combate de feição pragmática recorre por
vezes à intenção mais descritiva e compõe quadros em que o dia a dia
dos angolanos toma o lugar das intenções pedagógicas tão comuns à
poesia de desalienação.

– 251 –
Literatura de países de língua portuguesa

Dessa forma, se a poesia conta com a presença de Agostinho, figura


emblemática da história de Angola, o romance – gênero singular no resgate
das tradições – foi inaugurado por António Assis Júnior com o livro O Segredo
da Morta (1934), primeira obra do gênero na literatura angolana. Segundo
Rita Chaves (1999, p. 21), desde a publicação desta narrativa:
A trajetória do romance em Angola vem deixando nítida a vontade
de seus autores de, [por meio] da literatura, colocar em prática um
projeto de investigação sobre as realidades que compõem o país.
Potencializando a sua capacidade de analisar com certa dose de obje-
tividade a matéria artisticamente transfigurada, o romance, naquele
sistema literário, aproveita-se do senso de historicidade que também
o define como gênero para oferecer ao leitor um instigante painel das
múltiplas faces que particularizam o país.

Neste cenário de múltiplas visões das estórias e da História ficcionalizada,


encontram-se vários seguidores de António Assis Júnior: Oscar Ribas, José
Luandino Vieira, Pepetela, José Eduardo Agualusa, entre outros. Cabe ressal-
tar, no entanto, que a oralidade valorizada por Luandino Vieira advém dos
“contos tradicionais, os missossos, narrativa tradicional de ficção, incluindo
personagens humanos, animais e/ou monstros” (MACÊDO, 2002, p. 62).
Guardadas as devidas proporções, a literatura de Moçambique tende a
trilhar um caminho semelhante para estabelecer o paradigma de sua poética
e, posteriormente, de sua prosa. A primeira obra de cunho moçambicano foi
o conto escrito por João Dias intitulado “Godido e outros contos” (1952),
mas o nome de destaque na formação da poética de Moçambique foi José
Craveirinha, que, no final dos anos 1940, intensifica sua produção literária
e é considerado um dos precursores da moçambicanidade. Como as demais
literaturas africanas de língua portuguesa, esta se forma também num espaço
híbrido, repleto de referências culturais oriundas de diversas fontes.
As origens das discursividades africanas provêm de oralidades distin-
tas, mas apesar disso, a moderna literatura africana apresenta uma história

– 252 –
Gêneros literários e tradição oral

semelhante, pelo papel que desempenharam na construção identitária de


cada ex-colônia. No dizer de Inocência Mata (2001, p. 17),
[...] a literatura funcionou também, por razões diversas, como subsi-
diária da luta anticolonial, conjugando-se numa frente de exortação
cultural, o discurso literário africano foi decorrente desse percurso
histórico comum: daí os paralelismos e até as identificações temáticas,
estilísticas e ideológicas entre esses sistemas.

Num percurso semelhante encontra-se a literatura de Cabo Verde. Nela,


o processo de caracterização dos gêneros literários ocorre a partir da publi-
cação da revista Claridade (1936), marco fundacional da cabo-verdianidade.
Nesta revista, lançou-se “Bia” – capitulo inicial do romance Chiquinho, de
Baltasar Lopes, só publicado na íntegra em 1947 e que é, de acordo com
Manuel Ferreira, o marco inaugural da narrativa de Cabo Verde, uma aber-
tura para a pesquisa literária que busca a reinvenção da escrita, organizada a
partir de signos, expressões ou formas sintáticas em crioulo, tendo em vista o
bilinguismo do país.
A evolução de São Tomé e Príncipe ocorre, em vários aspectos, para-
lelamente à de Cabo Verde. A obra fundamental da construção discursiva
são-tomense foi Ilha de São Tomé (1961), de Francisco José Tenreiro, poeta
expressivo da literatura de São Tomé e Príncipe. Essa ex-colônia, como Cabo
Verde, também é bilíngue, logo a busca identitária deste povo, como dos
demais membros da comunidade lusófona na África, se dá em meio a um
universo híbrido, composto por mais de uma matriz fundacional, já que
nesse cenário miscigenado a cultura é transmitida por meio da língua portu-
guesa ou crioula. Esse painel dos gêneros literários dos países de língua por-
tuguesa conclui-se com Guiné-Bissau, país bilíngue como Cabo Verde e São
Tomé e Príncipe, mas com um diferencial em termos de produção literária.
Na Guiné-Bissau, o despertar para a valorização do país e de uma reescrita
das tradições só se efetiva “em pleno período da luta armada ou então já no
período pós-libertação nacional” (FERREIRA, 1987, p.105).

– 253 –
Literatura de países de língua portuguesa

Dicas de estudo
22 Leitura do livro intitulado Para quando a África?: entrevista com
René Holenstein. Neste livro, um dos maiores pensadores africa-
nos de todos os tempos faz revelações esclarecedoras acerca da
política, história, literatura, economia e várias outras áreas do
conhecimento.
22 Filme: Palavra Encantada (2009).
A diretora Helena Solberg construiu o filme com base em 18
entrevistas feitas com músicos, poetas, compositores e pen-
sadores que ofereceram suas ideias e opiniões sobre a traje-
tória da música popular brasileira nas últimas seis décadas.
São artistas e criadores, cada um com um processo individual
muito especial. Eles revelaram suas descobertas na literatura
escrita e oral, que eventualmente foram fonte de inspiração
em seu processo criativo.

Atividades
1. Defina com suas palavras a ideia de rede de cumplicidade na moderna
literatura africana.

2. Os gêneros literários africanos originaram-se de qual matriz? Como


Boubacar Barry define o perfil dessa origem?

3. Quem são os expoentes na poesia e no romance angolano?

– 254 –
14
José Saramago: história,
ficção e identidade
Jurema Oliveira

A chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um


processo mais amplo de mudança, que está deslocando as
estruturas e processos centrais das sociedades modernas e
abalando os quadros de referência que davam aos indiví-
duos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL,
2000, p. 7)
As obras rompem as fronteiras de seu tempo, vivem nos
séculos, ou seja, na grande temporalidade e, assim, não é
raro que essa vida (o que sempre sucede com uma grande
obra) seja mais intensa e plena do que nos tempos de
sua contemporaneidade. [...]. Ora, muitas vezes a obra
aumenta em importância mais tarde, ou seja, insere-se
na grande temporalidade. Uma obra não pode viver nos
séculos futuros se não se nutriu dos séculos passados. Se
ela nascesse por inteiro hoje (em sua contemporaneidade),
se não mergulhasse no passado e não fosse consubstan-
cialmente ligada a ele, não poderia viver no futuro. Tudo
quanto pertence somente ao presente morre junto com
ele. (BAKHTIN, 2002, p. 364)

A linha de pensamento da cultura contemporânea tem como


função primordial questionar as noções clássicas de verdade, razão,
identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação
Literatura de países de língua portuguesa

universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas, ou os fundamentos defi-


nitivos de explicação. Essa nova forma de reler os conceitos tradicionais,
rechaçando-os, traz à tona as fragilidades do indivíduo contemporâneo.
Nessa perspectiva, aquele mundo pensado pelo iluminismo, organizado,
pautado na razão, se desfez. Na era contemporânea, o mundo se apresenta
como incerto, diversificado, instável, imprevisível, um complexo de culturas
ou de conjunturas desunificadas que criam certa incredulidade em torno do
sentido da verdade, da história e das regras em relação às idiossincrasias e a
coerência de identidade.
A base onde repousam os pressupostos teóricos da tendência da arte
atual reside na falência temporária dos movimentos políticos concomitante-
mente de massa, de centro e daqueles de vanguarda. Dessa forma, as imagens
sólitas estão desfeitas. O desequilíbrio da sociedade, do mundo real repercute,
em consequência, na literatura e na arte em geral. Assim,
O fato mesmo de partir de uma falência inicial – falência de poder
suprir com a palavra o espaço do acontecimento –, o fato mesmo de
partir de uma consciência de que só há restos e vestígios, farrapos da
História e do tempo passado, quando antes se pressupunha a possi-
bilidade de um terreno da verdade, não anula o desejo de criação da
Linguagem e mesmo, paradoxalmente, incita à produção quer de textos
ficcionais quer de releitura da História. (CERDEIRA, 2000, p. 200)

A partir desse pressuposto, a crítica atual sobre o conceito de totalidade


fundamenta-se na ausência de um sujeito uno para quem ele faria algum
sentido. Contraditoriamente, a reconfiguração dos espaços em nível global
(queda do colonialismo tradicional, novas demarcações territoriais) gerou a
perda da identidade fixa, o sujeito contemporâneo experimenta uma multi-
plicidade identitária.
A dinâmica do pensamento contemporâneo sobre a cultura torna-se
produtiva quando se lê o conjunto de princípios aparentemente opostos, pois
não se pode negar que há uma interdependência de termos como identidade
e não identidade, unidade e diferença, sistema e Outro. Num tempo de dúvi-
das e incertezas vimos a derrocada de valores e crenças até então inabaláveis.
O movimento contemporâneo, do ponto de vista político, desatrelou o poder
do local, do regional e do idiossincrático, e ajudou a homogeneizá-lo em todo
o globo. De acordo com Berman (1987, p. 90), os valores se desfizeram, logo:

– 256 –
José Saramago: história, ficção e identidade

[...] sentimos que as sólidas formações sociais à nossa volta se diluí-


ram. No momento em que os proletários fazem enfim sua aparição,
o cenário mundial em que eles supostamente desempenhariam seus
papéis se desintegrou e se metamorfoseou em algo irreconhecível, sur-
real, uma construção móvel que se agita e muda de forma sob os pés
dos atores.

Nesse cenário descentrado, verifica-se que “as minorias são pobres em


documentos, por isso se tornaram pobres em História. O historiador contem-
porâneo, imerso na multiplicidade e na diferença, nega-se a deixar para sem-
pre calados ‘os esquecidos da História’” (CERDEIRA, 2000, p. 200). Nesse
sentido, podemos dizer que José Saramago – autor de Memorial do Convento
(1982); Levantado do Chão (1982); A Jangada de Pedra (1986); O Ano da
Morte de Ricardo Reis (1988); História do Cerco de Lisboa (1989); Ensaio Sobre
a Cegueira (1995); Todos os Nomes (1997) e várias outras obras – se inscreve
numa linhagem de autores portugueses contemporâneos que transitam com
maestria entre a ficção e a História.

14.1 O Memorial em Saramago


Na obra Memorial do Convento, Saramago visita um arquivo histórico
que guarda referências bastante significativas do ponto de vista da História
Oficial, porém esse retorno via discurso literário reordena a ideia de passado,
logo, ele fala do passado sem suspender o presente, pois a releitura do fato
– a construção do convento de Mafra – implica abolir a ideia de origem dos
acontecimentos para colocar em cena novos atores, aqueles que integram uma
legião de pobres em documentos históricos.
Nessa dinâmica discursiva, Memorial do Convento constitui-se numa
obra que reinterpreta com uma narrativa crítica os papéis desenvolvidos por
atores conhecidos como “arraia-miúda”:
Seiscentos homens agarrados que mais saibam. Seiscentos homens
agarrados desesperadamente aos doze calabrês que tinham sido
fixados na traseira da plataforma, seiscentos homens que sentiam,
com o tempo e o esforço, ir se lhes aos poucos a tesura dos múscu-
los, [...], e tudo por causa de uma pedra que não precisaria ser tão
grande, com três ou dez mais pequenas se faria do mesmo modo a
varanda apenas não teríamos o orgulho de poder dizer a sua majes-
tade. É só uma pedra, e aos visitantes, antes de passarem à outra sala.

– 257 –
Literatura de países de língua portuguesa

É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai
disseminando o ludibrio geral, com suas formas nacionais e parti-
culares, como esta de afirmar nos compêndios e histórias. Deve-se
a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto
que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que
não fizeram filho nenhum a rainha e eles é que pagam o voto, que
se lixam, com perdão da anacrônica voz. (SARAMAGO, 1989,
p. 256-257).

A crítica do narrador coloca em questão “o discurso da verdade” e conta


a história dos “excluídos da história” que participaram não só da construção
do convento de Mafra, mas da história de Portugal desde a sua fundação
anonimamente. Em Memorial do Convento, o anonimato se desfaz, porque o
signo que individualiza o sujeito – tema recorrente nas obras de Saramago –
está associado à ideia de perpetuação da vida:
[...] tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida
também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que
não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixe-
mos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escre-
vemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino,
Brás, Cristovão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro,
Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino,
Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada
um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes
nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente,
mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os traba-
lhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de
quem vier a ter o nome e a profissão. (SARAMAGO, 1989, p. 242)

14.2 Reescrevendo a história


Trilhando o projeto de releitura da história, Saramago em História do
Cerco de Lisboa leva às últimas consequências esta linha discursiva, sinali-
zando inclusive que alguns personagens levados à fogueira pela Inquisição,
poderiam ter outros nomes. Assim, em determinado momento do romance,
quando descreve detalhadamente a peregrinação dos judeus e cristãos-novos,
o narrador reflete ao nomeá-los: “quem sabe que outros nomes teria e todos
verdadeiros, porque deveria ser um direito do homem escolher o seu próprio

– 258 –
José Saramago: história, ficção e identidade

nome e mudá-lo cem vezes ao dia, um nome não é nada” (SARAMAGO,


1992, p. 52).
Diferentemente, o signo que diferencia o sujeito passa a ter outra função
em Todos os Nomes. O senhor José – protagonista do romance – cumpre há
vinte e seis anos as suas funções na Conservatória Geral do Registro Civil,
local onde trabalha com afinco e no tempo vago se distrai colecionando recor-
tes de jornais com imagens, notícias sobre as celebridades nacionais.
Em determinado momento da narração, o funcionário José se depara
com algumas informações sobre uma mulher desconhecida e a partir daí
ele deixa de colecionar recortes de jornais e passa a investigar a origem da
mulher desconhecida. Esse episódio reforça o impasse por que passam os
personagens de Saramago acerca da identidade perdida. Os dois cenários do
romance – Conservatória e o cemitério – são os espaços onde se registra os
dois momentos significativos do homem: nascimento e morte. Cabe ressaltar,
que os ambientes sustentam metaforicamente o sentido do título do livro
Todos os Nomes.
Por outro lado, a questão identitária está colocada na epígrafe do
romance, retirada de um fictício Livro das Evidências: “Conheces o nome
que te deram, não conheces o nome que tens”. O romance explicita os limi-
tes tênues existentes entre a vida e a morte; a verdade e a mentira por meio
da palavra que redimensiona o sentido das coisas, pois quando o pastor de
ovelhas troca os nomes e as datas das sepulturas, o leitor depara-se com um
desafio, como bem define o pastor: “a única coisa que sei é o que penso
quando passo diante de um desses mármores com o nome completo e as
competentes datas de nascimento e morte, Que pensa, Que é possível não
vermos a mentira, mesmo quando a temos diante dos olhos” (SARAMAGO,
1997, p. 241).
Nessa perspectiva, a troca dos números das sepulturas surge como uma
sugestão de reordenação do mundo, onde o que era definido como verdade
passa a ser mentira e vice-versa, assim Saramago na obra Todos os Nomes
explora mais uma vez o tema da problemática do humano por um viés labi-
ríntico de dimensões mitológicas e lança mais um desafio à decodificação
de símbolos.

– 259 –
Literatura de países de língua portuguesa

14.3 As incertezas da contemporaneidade


Em Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago coloca em questão a desuma-
nização, a descaracterização dos espaços, as incertezas históricas e a busca
por respostas para questões diversas pertinentes à contemporaneidade. Nesse
romance, Saramago opta pelo anonimato das personagens como um caminho
para universalizar a experiência. Dessa forma, abrangeria todas as pessoas, ou
melhor, “todos os nomes”. A narrativa inicia num espaço não identificado, só
sabemos que o espaço é urbano devido às marcas da cidade, como semáforos
e automóveis.
A primeira vítima da cegueira é um homem que se encontra à direção de
seu automóvel numa via movimentada:
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram,
mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O pri-
meiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecâ-
nico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades
que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos
travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simples-
mente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo
ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condu-
tor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do para-brisas,
enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores
já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empenado
para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos
vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles,
a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos
da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é
realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, con-
seguir abrir uma porta, Estou cego. (SARAMAGO, 1999, p.11-12)

Esse acontecimento inesperado gera uma confusão na via pública e


questionamentos de diversas ordens em especial em torno da cegueira que
ocorreu de uma hora para outra. Cabe ressaltar que o mais intrigante é o
tipo de cegueira, a chamada cegueira branca, luminosa, distinta da descrição
dada para a cegueira física que “dizem ser negra”. Durante a consulta com
o oftalmologista o primeiro cego define a sua cegueira como “uma luz que
se acende”. Essa percepção constitui a metáfora norteadora do percurso de
todos aqueles personagens que progressivamente vão ficando cegos inclusive
o oftalmologista. A epidemia atinge uma dimensão tal que as personagens
– 260 –
José Saramago: história, ficção e identidade

foram colocadas num manicômio. A única personagem que não perde a visão
é a esposa do oftalmologista.
No manicômio, eles vão pouco a pouco identificando uns aos outros,
mas descobrem que todos os aparatos tradicionais que mantinham as másca-
ras sociais deixam de ser importantes. Assim, os códigos sociais, bem como
os nomes perdem o valor para o grupo. Desta forma, os sentidos passam a ter
um papel importantíssimo na vida dos cegos:
Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não
saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos
chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes, nenhum
cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que
lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar,
nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo
ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo,
não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando.
(SARAMAGO, 1999, p. 64)

A ausência dos nomes em decorrência da situação abre uma nova perspec-


tiva de identificação dos membros do grupo. As personagens passam a se reco-
nhecer pelas profissões que exerciam antes da cegueira, pelo grau de parentesco
ou por meio de características físicas. Nessa dinâmica discursiva de transitar
entre a ficção e a história, Saramago apaga todo e qualquer princípio historio-
gráfico nesse romance, já que de acordo com os parâmetros históricos existem
três conceitos básicos que precisam ser respeitados: espaço, tempo e identidade,
logo, a história do romance está em desconformidade com a história linear, mas
em total conformidade com a condição humana na contemporaneidade.
Em Ensaio Sobre a Cegueira encontra-se um personagem que perdeu a
capacidade de ver, logo, precisa passar pela experiência da cegueira branca
para ver aquilo que na contemporaneidade deixou de ter valor. Assim,
envolto num mundo de consumo e de aparência, o homem contemporâ-
neo está representado no romance pela mulher do médico que fica extasiada
olhando o mapa da cidade:
Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das
encruzilhadas, viu que tinha diante de si um grande mapa, desses
que os departamentos municipais de turismo espalham no centro das
cidades, sobretudo para uso e tranquilidade dos visitantes, que tanto
querem poder dizer aonde foram como precisam saber onde estão.
(SARAMAGO, 1999, p. 226)

– 261 –
Literatura de países de língua portuguesa

O romance apresenta um retrato de uma época em que o sujeito encon-


tra-se fragmentado, pois a reconfiguração dos espaços em nível transnacio-
nal gerou a perda da identidade. O sujeito contemporâneo experimenta uma
multiplicidade identitária, a vida transformou-se numa grande loja de depar-
tamento: “O mundo automatizado ofusca as diferenças entre o homem e os
seres inanimados. Imerso em uma ambiência espacial alienante, o ser humano
se reduz à categoria do coletivo (peões, a gente)” (OLIVEIRA, 1997, p. 234).

14.4 A escrita de um novo tempo


Se na obra Ensaio Sobre a Cegueira o mote é a visão ou a ausência dela
em Levantado do Chão a ênfase está na audição. Vide o trecho retirado de uma
entrevista do autor ao Zero Hora:
Sem saber como, sem ter pensado nisso, começo a escrever como se
tivesse contando aquela história, e contando aquela história, conto-a
sem pontuação, da mesma maneira como falamos, com sons e pau-
sas [...]. Abolir a pontuação não foi decidido por alguém que quer
escrever algo novo. Foi resultado lógico da aceitação de um tipo de
narração que se confunde muito com a oralidade, tem a ver com essa
mágica do conto oral. [...]. O que eu quero é que o leitor ouça... ouça
aquilo que está no livro. (MENDES, 1998, p. 7)

Assim, na contracapa do livro encontra-se a seguinte explicação: “Do


chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais
que correm os campos ou voam por cima deles” e levantam-se também desse
mesmo chão os homens e seus sonhos tão bem depreendidos nas páginas de
Levantado do Chão. Num diálogo com Almeida Garrett, Saramago nos coloca
mais uma vez diante de um questionamento acerca do lugar dos “excluídos
da história” ao longo dos séculos. Com uma epígrafe que sinaliza o projeto
discursivo, Levantado do Chão conta a história de “uma gente solta e miúda”
que há séculos perambula sobre a terra, mas não foi registrada nela.
Dessa forma, o romance conta inicialmente a história do latifúndio tra-
dicional, como podemos observar na passagem a seguir:
De cada vez, sabemos, foi o homem comprado e vendido. Cada século
teve o seu dinheiro, cada reino o seu homem para comprar e vender
por morabitinos, marcos de ouro e prata, reais, dobras, cruzados, réis,

– 262 –
José Saramago: história, ficção e identidade

e dobrões, e florins de fora. Volátil metal vário, aéreo como o espírito


da flor ou o espírito do vinho: o dinheiro sobe, só para subir tem asas,
não para descer. O lugar do dinheiro é um céu, um alto lugar onde
os santos mudam de nome quando vêm a ter de ser, mas o latifúndio
não. (SARAMAGO, 1993, p.13)

Nesse cenário povoado pela arraia-miúda, o personagem latifúndio cons-


titui-se numa “madre de tetas grossas, para grandes e ávidas bocas, matriz,
terra dividida do maior para o grande, ou mais de gosto ajuntada do grande
para o maior” (SARAMAGO, 1993, p.13). Com metáforas determinantes
Saramago faz sua crítica ao latifúndio e dá a direção da história que vai contar:
E esta outra gente quem é, solta e miúda, que veio com a terra,
embora não registrada na escritura, almas mortas, ou ainda vivas? A
sabedoria de Deus, amados filhos, é infinita: aí está a terra e quem a
há-de trabalhar, crescei e multiplicai-vos. Crescei e multiplicai-me,
diz o latifúndio. Mas tudo isso pode ser contado doutra maneira.
(SARAMAGO, 1993, p.14)

Levantado do Chão é por excelência o livro definidor do espaço lite-


rário, poético, ideológico num percurso que conjuga a história da vida de
uma família de trabalhadores rurais (os Mau-Tempo) da região do Alentejo,
no sul de Portugal. O tempo narrativo configurado compreende o início do
século XX e um período posterior ao 25 de abril, também conhecido como a
Revolução dos Cravos. Com um cunho testemunhal, a obra conta a história
da exploração, do desemprego e da miséria, e ao mesmo tempo sinaliza que
há no decorrer do romance uma tomada de consciência por parte do perso-
nagem que simboliza o trabalhador rural.
As obras de Saramago explicitam o gosto do autor pelo retorno aos fatos
históricos por um viés ficcional que redimensiona o conceito de história ofi-
cial, porque “o passado é sempre conflituoso” (SARLO, 2007, p. 9), princi-
palmente quando colocado em nível de diálogo entre a memória e a história.
Numa visão benjaminiana da história, os homens que viveram a experiên-
cia das guerras de trincheiras ou das frentes de batalha de guerra, voltaram
emudecidos e mais pobres em experiências edificantes, porém não em relatos
dolorosos. Diante disso, podemos concluir que a tônica dada por Saramago
ao revisitar a história traz para a cena dos seus textos experiências humanas só
compreendidas na contemporaneidade por meio do discurso literário.

– 263 –
Literatura de países de língua portuguesa

14.5 Fernando Pessoa segundo Saramago


O romance O Ano da Morte de Ricardo Reis escrito por José Saramago
tem como protagonista um heterônimo de Fernado Pessoa. O personagem
que empresta o nome à obra retorna a Lisboa em 1936, após uma ausência
de 16 anos, e aí se instala observando e testemunhando o desenrolar de um
ano trágico. Assim, o leitor é levado a sentir o clima sombrio, fase em que
o fascismo se afirma como sistema de governo de um Portugal, que como
bem define Eduardo Lourenço, encontra-se empobrecido, atrasado social e
economicamente, com uma porcentagem de analfabetismo única na Europa,
com quase um terço da sua população obrigada a emigrar, imagem capaz
de suscitar um sobressalto coletivo para lhe atenuar os traços mais intole-
ráveis. O cenário presente em O Ano da Morte de Ricardo Reis anuncia um
futuro repleto de conflitos que modificará para sempre a história de Portugal,
Espanha e Europa em geral.
A cidade de Lisboa retratada no romance constitui-se num espaço aco-
lhedor para receber o novo Ricardo Reis, porque como bem define Calvino
em As Cidades Invisíveis: “Quando alguém muda de papel ou abandona a
praça para sempre ou entra nela pela primeira vez, verificam-se mudanças em
cadeia, até que todos os papéis sejam novamente distribuídos” (CALVINO,
1990, p. 76).
Assim, numa Lisboa modificada, um hóspede oriundo do Brasil registra-
-se num hotel com as seguintes caracteristicas:
[...] nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do
Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio
de Janeiro, Brasil, donde procede, [...] parece o princípio duma
confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se con-
tém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto.
(SARAMAGO, 1988, p. 21)

Saramago se aproveita do fato de Fernando Pessoa não ter determinado


a data da morte do protagonista do romance para fazê-lo testemunhar o
período em que o fascismo aos poucos se instalava na sociedade portuguesa.
O plano da imaginação, então, se cruza com o da história: Reis vai morrer no
mesmo período em que começaria a longa agonia de Portugal.

– 264 –
José Saramago: história, ficção e identidade

Saramago cria a sua versão alternativa da história, fazendo uso de infor-


mações oficiais, misturando-as à ficção, ele revisita não só a história do hete-
rônimo Ricardo Reis, como também a do seu criador Fernado Pessoa, para
quem a criação dos heterônimos é um processo artístico consciente. Nesse
sentido, podemos dizer que na origem de tudo está a capacidade de des-
personalizar-se: com a inteligência e a imaginação, o autor consegue viver
analiticamente um personagem – que acaba por ser um novo escritor, “com
estilo próprio”, formado por um “grupo de estados de alma mais aproxima-
dos”. Como bem define Pessoa em “nota preliminar” do conjunto de poemas
intitulados “Ficções do interlúdio”:
Nestes desdobramentos de personalidade ou, antes, invenções de
personalidade diferentes, há dois graus ou tipos, que estarão revela-
dos ao leitor, se os seguiu, por características distintas. No primeiro
grau, a personalidade distingue-se por ideias e sentimentos próprios,
distintos dos meus, assim como, em mais baixo nível desse grau, se
distingue por ideias, postas em raciocínio ou argumento, que não são
minhas, ou, se o são, o não conheço. O Barqueiro Anarquista é um
exemplo deste grau inferior; o Livro do Desassossego e a personagem
Bernardo Soares são o grau superior. (PESSOA, 1980, p.129-130)

Nesse processo de revisitação, Saramago promove um encontro entre


Fernando Pessoa e Ricardo Reis, mas como bem define Calvino, “com o
passar do tempo, os papéis não são mais exatamente os mesmos de antes”
(CALVINO, 1990, p. 77). Por outro lado, o encontro reforça a visão bakhti-
niana acerca da perenidade da arte, pois “as obras rompem as fronteiras de
seu tempo, vivem nos séculos, ou seja, na grande temporalidade”, quando se
nutrem dos séculos passados:
Ricardo Reis repara que por baixo da sua porta passa uma réstia lumi-
nosa, ter-se-ia esquecido, enfim, são coisas que podem acontecer a
qualquer, meteu a chave na fechadura, abriu, sentado no sofá estava
um homem, reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tan-
tos anos, e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali a
sua espera Fernando Pessoa. (SARAMAGO, 1988, p. 79)

O discurso, no entanto, continua submetido à imagem, à singulari-


dade rápida da experiência passada redimensionada, pois como bem define
Benjamin, a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz, e só se deixa
fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, momento em que é

– 265 –
Literatura de países de língua portuguesa

reconhecida como cópia reiterada de sensações experimentadas em épocas


consecutivas pelo artifício da arte, logo o ser de ficção que caminha nas pági-
nas do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis já percorreu como poeta as pági-
nas de um outro livro:
Fernando Pessoa levantou-se, Vou-me chegando, Já, Bem, não julgue
que tenho horas marcadas, sou livre, é verdade que a minha avó está
lá, mas deixou de me maçar, Fique um pouco mais, Está a fazer-se
tarde, você precisa de descansar, Quando volta, Quer que eu volte,
Gostaria muito, podíamos conversar, restaurar a nossa amizade, não
se esqueça de que, passados dezesseis anos, sou novo na terra, Mas
olhe que só vamos poder estar juntos oito meses, depois acabou-se,
não terei mais tempo. (SARAMAGO, 1988, p. 82)

Dessa forma, o diálogo muda de ato em ato, ainda que a vida dos habi-
tantes da Lisboa revisitada seja breve demais para que possam perceber, como
bem define Isabel Morgato, que a recuperação dessa paisagem demanda o
entrelaçamento de muitos fios; a construção de muitos traços (ou traçados); o
agrupamento de muitos detalhes. É pela voz do narrador que nos aproxima-
mos dessa paisagem que se prepara para a passagem do ano:
Ricardo Reis desceu o Chiado e a Rua do Carmo, como ele muita
outra gente descia, grupos, famílias, ainda que o mais fossem homens
solitários a quem ninguém espera em casa ou que preferem o ar livre
para assistir à passagem do ano, acaso passará mesmo, sobre as cabeças
deles e nossas voará um risco de luz, uma fronteira, então diríamos
que o tempo e o espaço tudo é um. (SARAMAGO, 1988, p. 76)

O passado apresenta várias versões, está imbricado entre a memória e


a história, e encontra na linguagem artística o suporte decisivo que “reduz,
unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho,
a imagem lembrada e as imagens da vigília atual” (BOSI, 1995, p. 56). A
memória traz à tona não só as percepções passadas, mas as sensações do pre-
sente, que confluem e se complementam no instante da criação como força
subjetiva e produtora dos símbolos profundos e ativos para compor o uni-
verso estético do escritor que cria uma ficção para uma ficção, pois como
bem define o autor: “toda a apreensão do mundo e da vida é ficcionante”
(SARAMAGO, 1988, p. 45).
As experiências vividas pelos pontos-sujeitos que irropem na obra trazem
marcas e vivências só realizáveis no tempo literário pelo artifício da lembrança

– 266 –
José Saramago: história, ficção e identidade

histórica. A vigília atual se processa na narrativa de O Ano da Morte de Ricardo


Reis como forma de interpretação do passado. Essa atitude explorada na
escrita, além de fazer circular as várias falas, abre caminho para a diferencia-
ção, para o resgate dos materiais simbólicos à disposição do autor, que busca
encenar na prosa um conjunto de representações presentes numa Lisboa afo-
gada em águas turvas. No dizer de Isabel Morgato (2002, p. 144-145):
Não é novidade ver Lisboa relacionada com água. Na descrição da
cidade, a referência é quase obrigatória, pois é quase impossível pensar
Lisboa, e com ela Portugal, sem que o rio ou o mar a eles estejam asso-
ciados. A história portuguesa delineia-se em torno desse elemento,
chegando mesmo a confundir-se com ele. A história dessa terra tra-
çou-se em direção ao mar, firmou-se voltada para o mar, através de
um indagador de horizontes – horizontes de águas. No entanto, a
ligação entre Lisboa e água se faz aqui de modo diferente, ou melhor,
busca produzir um outro sentido para uma combinação já estratifi-
cada. A água que alaga Lisboa tem um novo curso. Um sentido que
gradativamente, vai se confundindo com o de “mau tempo”.

Metaforizando aspectos da memória histórica, Saramago (1988, p. 23)


situa a Lisboa de 1936:
Este dia acabou, o que dele resta paira longe sobre o mar e vai fugindo
ainda há tão poucas horas navegava Ricardo Reis por aquelas águas,
agora o horizonte está aonde o seu braço alcança, paredes, móveis que
refletem a luz como um espelho negro, e em vez do pulsar profundo
das máquinas de vapor, ouve o sussurro, o murmúrio da cidade, seis-
centas mil pessoas suspirando, gritando longe.

Nesse sentido, pode-se afirmar que somente o escritor sabe de que é


feita essa força repleta de concessões, de soluções insatisfatórias, de aceitações
resignadas para revisitar a cidade que “há dois meses anda a desfazer-se em
água, foi o que disse ontem o motorista, e disse-o como quem já não acredita
em dias melhores” (SARAMAGO, 1988, p. 45).
As imagens densas da história, sob o prisma da imaginação criadora,
recebem um colorido especial, logo, as águas entorpecidas, pesadas – símbolo
da violência que define o curso da vida – são transformadas, em metáforas
para reinventar um passado e receber Ricardo Reis que
[...] faz um gesto com as mãos, tateia o ar cinzento, depois mal dis-
tinguindo as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses
peço só que me concedam o nada lhes pedir, e tendo escrito não soube

– 267 –
Literatura de países de língua portuguesa

que mais dizer, há ocasiões assim, acreditamos na importância do que


dissemos ou escrevemos até um certo ponto, apenas porque não foi
possível calar os sons ou apagar os traços. (SARAMAGO, 1988, p. 49)

14.5.1 As vozes de hoje e de ontem


Envolto numa aura de rememoração, O Ano da Morte de Ricardo Reis
transita entre o passado e um presente repleto de vozes que só são recuperadas
pelo artifício da criação literária:
O livro encena esse passado. Faz presente o seu cruzamento de vozes,
rumores e ecos. A multiplicidade fragmentária com que a narrativa é
tecida metaforiza a paisagem ideal. O passado dessa Lisboa de 1936 é
exposto no livro para ser examinado, para ser entendido na especifici-
dade de seus olhares. Por isso existe o confronto de falas. Por isso elas
existem em contraponto. (MORGATO, 2002, p.149)

Nessa dinâmica discursiva, Saramago traz à cena figuras históricas e fic-


tícias para promover no cenário literário a crítica a uma época que tem como
vestígios “luzes viscosas cercadas de sombras”. Essa dimensão discursiva cor-
porifica um sistema de valores estético capaz de recuperar o espaço matricial
da tradição em vários níveis, para fazer circular num jogo intertextual as mar-
cas peculiares à memória e à história.
De acordo com Deleuze e Guattari (1977) um escritor é um homem
escritor, é um homem político, e é um homem máquina, e é um homem
experimental, logo está apto a se tornar animal, a se tornar inumano. Dessa
forma, depreender o impacto inerente ao conceito de cultura sobre o conceito
de homem significa interpretar um conjunto de mecanismos simbólicos per-
tencentes à cultura, pois esta oferece o elo entre o que os homens são intima-
mente aptos a se tornar e o que eles se tornam concretamente, um por um.
Assim, “tornar-se humano é tornar-se individual, é nós nos tornamos indi-
viduais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados
historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção
às nossas vidas” (GEERTZ, 1989, p. 64).
Nesse contexto, verifica-se que o artista é dotado de um humanismo
que o iguala aos outros homens, mas enquanto sujeito de discurso perde sua
humanidade em prol de uma inumanidade intrínseca à arte. Essa ambivalência

– 268 –
José Saramago: história, ficção e identidade

humana/inumana implica a inserção do sujeito experimental no âmago da


linguagem, no limiar da sensação proveniente da imagem/arte produzida pela
escrita, leitura de códigos que avançam para trás, na direção da coisa reani-
mada no interior da língua, e para frente, no sentido de que cria uma nova
imagem para depreender, nos contornos da língua, o que há de inumano nas
descrições densas e superficiais das experiências memoráveis.

Dicas de estudo
22 Acesse: Literatura – José Saramago. Disponível em: <www.citi.
pt/cultura/literatura/romance/saramago/>. Acesso em: 23 out.
2017. Nesse site há referências sobre a obra de José Saramago.
22 Acesse o site da Fundação José Saramago, disponível em: <https://
www.josesaramago.gor>. Acesso em: 23 out. 2017. Nesse site há
informações sobre a vida e a obra de Saramago, além de teses
sobre a sua obra.
Os sites aqui apresentados para complementação da aula têm entre
outras funções inserir o estudo num nível de leitura crítica para além da
aula exposta, pois acreditamos que ouvir outras vozes teóricas contribui
para a melhor formação de leitor.

Atividades
1. Qual o caminho do pensamento contemporâneo? E o que esse cami-
nho traz à tona?

2. De que forma Saramago revisita o arquivo histórico para construir a


obra Memorial do Convento? E quais os personagens que são privile-
giados neste romance?

3. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago promove um encontro


entre quais personagens, reforçando assim qual teoria?

– 269 –
15
Mia Couto e a narrativa
contemporânea
moçambicana
Jurema Oliveira

O ficcionista Mia Couto desponta no cenário literário


moçambicano em 1983, com a publicação do livro de poemas Raiz
de Orvalho. A partir dessa imersão no mundo literário, o jornalista e
escritor começa a buscar temas para contos e enveredou pelos cami-
nhos da ficção, revelando-se um contista que, rompendo com a
noção de limites pensada por Cortázar (1993), inaugura uma forma
peculiar de pensar a história e a sociedade moçambicana na atuali-
dade por meio do discurso literário.
Literatura de países de língua portuguesa

No seu percurso literário encontram-se os seguintes títulos: Vozes


Anoitecidas (1986), Cronicando (1988), Cada Homem é uma Raça (1998),
Terra Sonâmbula (2007), Estórias Abensonhadas (1994), A Varanda do
Frangipani (2007), Contos do Nascer da Terra (1997), Mar me Quer (1997),
Vinte e Zinco (1999), O Último Voo do Flamingo (2000), Um Rio Chamado
Tempo, uma Casa Chamada Terra (2002), O Gato e o Escuro (2003), O Outro
Pé da Sereia (2006), Venenos de Deus, Remédios do Diabo (2008), O Fio das
Missangas (2009), entre outros. Trilhando uma linha discursiva de valoriza-
ção do português falado em Moçambique, Mia Couto se inscreve no pano-
rama literário contemporâneo de seu país como aquele escritor que faz uso de
“neologismos, fraseologia inovadora e situações surrealistas nos seus contos e
romances” (HAMILTON, 2000, p. 29).

15.1 A narrativa pós-colonial


A narrativa pós-colonial é dotada de características híbridas, devido à
convergência de uma “pluralidade de formas e propostas” (LEITE, 2003,
p. 28), decorrentes das ligações estabelecidas entre os aspectos culturais de
origem europeia e os da cultura moçambicana, com o intuito de traçar parâ-
metros para a construção dos novos campos literários capazes de dar conta das
diversidades identitárias locais: “O projeto da escrita pós-colonial é também
interrogar o discurso europeu e descentralizar as estratégias discursivas; inves-
tigar, reler e reescrever a empresa histórica e ficcional coloniais, faz parte da
tarefa criativa e crítica pós-colonial” (LEITE, 2003, p. 28).
Nesse sentido, o estatuto da oralidade tem lugar de destaque numa época
de reescritura da história e da literatura moçambicana que se quer valorativa
da tradição viva na memória dos escritores. Para eles, o caminho de afirma-
ção da diferença encontra-se no retorno às raízes de que fala Hall (2000,
p. 61-62) para fundar a narrativa de nação composta por variadas característi-
cas éticas e linguísticas que compõem a sociedade em questão, logo:
[...] as culturas nacionais [...] são atravessadas por profundas divisões
e diferenças internas, sendo ‘unificadas’ apenas através do exercício de
diferentes formas de poder cultural. Entretanto – como nas fantasias
do eu ‘inteiro’ de que fala a psicanálise lacaniana – as identidades
nacionais continuam a ser representadas como unificadas.

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Mia Couto e a narrativa contemporânea moçambicana

Nesse processo de imersão numa unificação aparente da cultura ligada


à tradição, o escritor precisa buscar na memória da infância as imagens que
remontam à herança solidificadora da recriação, da magia, advinda das anti-
gas rodas em volta da fogueira e de contextos outros próprios do cenário
cultural moçambicano, decorrentes do cruzamento cultural da sociedade de
características mestiça, branca e negra de Moçambique. De acordo com Hall
(2000, p. 62):
Uma forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expres-
são da cultura subjacente de ‘um único povo’. A etnia é o termo que
utilizamos para nos referirmos às características culturais – língua,
religião, costume, tradições, sentimento de ‘lugar’ – que são partilha-
das por um povo.

Sendo assim, destaca-se aqui um trecho da entrevista de Mia Couto ao


Jornal Letras:
Sou um escritor africano de raça branca. Este seria o primeiro traço
de uma apresentação de mim mesmo. Escolho estas condições – a de
africano e a de descendente de europeus – para definir logo à partida a
condição de potencial conflito de culturas que transporto. Que se vai
‘resolvendo’ por mestiçagens sucessivas, assimilações, trocas perma-
nentes. Como outros brancos nascidos e criados em África, sou um
ser de fronteira. [...] Para melhor sublinhar minha condição periférica,
eu deveria acrescentar: sou um escritor africano, branco e de língua
portuguesa. Porque o idioma estabelece o meu território preferencial
de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim. Necessito inscrever
na língua do meu lado português a marca da minha individualidade
africana. Necessito tecer um tecido africano, mas só o sei fazer usando
panos e linhas europeias. (COUTO, 2000, p. 264)

Essa descrição que faz Mia Couto de si e de sua escrita traz à tona a
complexidade de uma prosa poética que se quer híbrida e plural ao mesmo
tempo, para abarcar as diferentes faces da moçambicanidade, como bem
define Secco em seu estudo sobre o autor: “Mia Couto sabe-se herdeiro de
cruzamentos culturais múltiplos e tem clareza de que sua produção se ali-
menta não só de estratégias orais do narrador africano, mas de jogos lúdicos
universais que fazem de sua prosa um tecido híbrido e poético” (SECCO,
2000, p. 265).

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Literatura de países de língua portuguesa

15.2 Conceituando o conto a partir


de Cada Homem é uma Raça
Segundo Cortázar (1993), o conto apresenta em sua essência uma eco-
nomia espácio-temporal e de âmbito temático e assemelha-se a uma foto-
grafia, isto é, propõe-se a “recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe
determinados limites” (CORTÁZAR, 1993, p.151). O recorte, no entanto,
funciona como a “abertura significativa” que será sustentada pelos elementos
literários, ou seja, pela técnica empregada para desenvolver com veracidade
o argumento do texto, que, apesar de apresentar uma economia material,
promove de forma gradual a abertura que se processa do âmbito individual
para o coletivo. Assim,
Para se entender o caráter peculiar do conto, costuma-se compará-lo
com o romance, gênero muito mais popular, sobre o qual abundam as
perspectivas. Assinala-se, por exemplo, que o romance se desenvolve
no papel, e, portanto, no tempo de leitura, sem outros limites que o
esgotamento da matéria romanceada; por sua vez, o conto parte da
noção de limite, e, em primeiro lugar, de limite físico, de tal modo
que, na França, quando um conto ultrapassa as vinte páginas, toma já
o nome de nouvelle, gênero que se encontra entre o conto e o romance
propriamente dito. Nesse sentido, o romance e o conto se deixam
comparar analogicamente com o cinema e a fotografia, na medida
em que um filme é em princípio uma ‘ordem aberta’, romanesca,
enquanto que uma fotografia bem realizada pressupõe uma justa limi-
tação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara
abrange e pela forma com que o fotógrafo utiliza esteticamente essa
limitação. (CORTÁZAR, 1993, p.151)

As narrativas de Mia Couto, em especial Cada Homem é uma Raça


(1998), expõem os aspectos das várias culturas e crenças do homem moçam-
bicano. Com um discurso que transita entre o humor e a ironia, as estórias
de suas obras trazem à tona as origens, as raças, os costumes que nutrem o
imaginário do escritor. Pois: “História de um homem é sempre mal con-
tada. Porque a pessoa é, em todo o tempo, ainda nascente. Ninguém segue
uma única vida, todos se multiplicam em diversos e transmutáveis homens”
(COUTO, 1998, p. 29).

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Mia Couto e a narrativa contemporânea moçambicana

Segundo Garmes (2002, p. 185),


[...] os elementos que tradicionalmente foram lidos ora como dis-
torção do modelo europeu, ora como corrupção da cultura indí-
gena, podem ser tomados como elementos de integração da obra, já
que passam a ser avaliados a partir de uma poética que reconstrói a
coerência interna da obra a partir dos conflitos culturais nos quais
emerge. A contradição e o paradoxo, portanto, passam a ser proce-
dimentos privilegiados em tal poética, já que são aqueles que melhor
mimetizam a realidade social em que tais obras foram escritas.

Por outro lado, como bem define Laranjeira, “os contos de Cada Homem
é uma Raça abrangem universos culturais muitos variados e forjam um cená-
rio plural afro-luso-indo-arábico-goês: africano (banto, negro); luso (euro-
peu, branco); chinês (amarelo); indo (indiano); arábico (árabe, mulçumano);
goês (indiano, português)” (LARANJEIRA, 1995, p. 314). Cabe ressaltar,
no entanto, que a criatividade e a inventividade da escrita de Mia Couto
advêm em parte de suas leituras de autores como Guimarães Rosa (brasileiro)
e Luandino Vieira (angolano), entre outros.
No plano da linguagem, verifica-se que a sintaxe e o léxico de suas
enunciações repousam como ocorre com a produção literária de Guimarães
Rosa e Luandino Vieira, num português oral, falado por grupos sociais que
criaram sua forma peculiar de se expressar, desvinculada daquela valorizada
pelos padrões de Portugal. O aspecto coloquial tende a modelar a escrita deste
escritor que metaforiza o falar, o viver, dos estratos sociais que compõem a
sociedade moçambicana.
Nessa dinâmica discursiva Azevedo na apresentação de Cada Homem é
uma Raça (1998) faz a seguinte afirmação:
No momento em que a arte da ficção parece estar sendo abandonada
por fórmulas e receitas de sucesso descartável, que incluem invaria-
velmente o abandono da exploração plástica e formal da língua (que
é o que faz avançar o idioma), além da eleição de temas já batidos, a
publicação deste [livro] do moçambicano Mia Couto, é uma alegria e
um alento para os amantes da prosa. (AZEVEDO, 1998)

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Literatura de países de língua portuguesa

15.3 O hibridismo literário


Numa conjuntura literária híbrida, os lugares de fala poética e ficcional
se dão geralmente a partir de um diálogo com os contextos sociais, com o
intuito de produzir os efeitos visíveis no enunciado que prima pelo realismo,
como o de Mia Couto. Sendo assim, o conto ‘A fogueira’, do livro Vozes
Anoitecidas (1986), cenariza os caracteres e ambientes envoltos num realismo
inicialmente descritivo que evolui para atingir rapidamente uma exatidão
capaz de sintetizar os fatos que compõem o cenário de pobreza, desolação e
desalento vivenciado pela personagem envelhecida.
No conto “Último aviso do corvo falador”, do mesmo livro, verifica-se
o mesmo processo, mas com uma carga dramática bastante intensa: “no meio
da praça, plena de gente que petisca na cantina, um pintor reformado, de
nome Zuzé Paraza, magro, que fuma cigarro da pior qualidade, começa a
tossir e vomita um corvo vivo” (COUTO, 1995, p. 316).
Numa junção complexa que une desde o imaginário ancestral africano
até o realismo animista (expressão usada, segundo Laranjeira (1995), por
Henrique Abrantes e Pepetela) – criado a partir do contato com os parâme-
tros estabelecidos pelos escritores latino-americanos para o chamado realismo
mágico, resultante do cruzamento da descrição pormenorizada de ambientes,
caracteres e ações com o onírico e a imaginação populares –, Mia Couto ela-
bora sua criação atravessada por diferentes fontes culturais. De acordo com
Noa (2009, p. 87):
Nesse sentido, a voz ou as vozes que se fazem ouvir numa narrativa
exprimem não só uma determinada ordenação intra e intertextual,
como também dinâmicas extratextuais que traduzem visões do
mundo que, por sua vez, estabelecem entre si relações harmoniosas,
conflitantes ou simplesmente hegemônicas. E é aqui onde a voz do
narrador joga um papel decisivo, quer como voz que se faz ouvir, quer
como voz que faz ouvir as outras vozes.

Tais vozes estão imersas numa comunidade imaginada pelo autor, que
mergulha nas memórias do passado individual e coletivo com o desejo de
reanimar os valores tradicionais e se torna porta-voz do sonho coletivo de
viver em conjunto a perpetuação das heranças que integram ora a sua “líri-
ca-narrativa”, ora sua prosa poética, a qual dialoga com outro campo do

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Mia Couto e a narrativa contemporânea moçambicana

conhecimento dominado por ele, o jornalismo. Por outro lado, não devemos
perder de vista que:
[...] a literatura, como todas as outras artes, é uma importante zona
de contato. De linguagens, de consciências, de sensibilidades. Mas
entendemos que pode ser também um espaço representativo de exclu-
são, de sonegação, de silenciamento, de manipulação, de sujeição. E,
nesse particular, a literatura emerge como a grande metáfora da con-
dição humana nos seus múltiplos e variados contornos, sobretudo os
que vincam mais aquilo que separa, quando não opõe os seres huma-
nos, mais do que propriamente os une. (NOA, 2009, p. 87)

Na qualidade de grande metáfora da vida, a literatura constitui-se num


caminho para o escritor fundar sua dicção lírica e buscar recuperar a ternura
perdida em meio aos sofrimentos provocados pelas guerras que assolaram
Moçambique. Os anos de jornalismo de Mia Couto – compreendidos entre
1974 e 1986 na imprensa de Moçambique –, escrevendo matérias informa-
tivas, editoriais e crônicas, deram ao autor de poesia, contos e romances o
conhecimento e o exercício arguto do discurso referencial exigido pelo jorna-
lismo, mas também pela palavra literária que busca estabelecer uma cumpli-
cidade com o “local da cultura” para redimir as horas amargas que assolaram
o país durante as guerras. Num encontro entre o presente e o passado, ainda
que imaginários, o escritor promove discursivamente o que Bhabha define
como o trabalho fronteiriço resultante do estudo ou resgate da cultura:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’
que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma
ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não
apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético;
ela renova o passado, refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contin-
gente, que inova e interrompe a atuação do presente. O ‘passado-
-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.
(BHABHA, 1998, p. 27)

Dessa forma, com a visão clara de um jornalista e crítico da realidade


circundante, Mia Couto capta as circunstâncias, mas dedica-se aos aspec-
tos, aos elementos que alimentam sua poética e prosa narrativa. Com uma
experiência semelhante à do contador tradicional que povoa o imaginário
moçambicano, Mia Couto “tece um tecido africano”, reinventando a língua
literária de modo a captar na poesia, na crônica e na prosa os sonhos metafo-
rizados por sujeitos líricos, personagens e narradores que espiam tanto para as

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Literatura de países de língua portuguesa

profundezas do inconsciente coletivo de Moçambique, como para a interio-


ridade da alma humana, despertando sensibilidades e emoções adormecidas.
Isso ocorre, por exemplo, no conto “Nas águas do tempo”, do livro Estórias
Abensonhadas (1994), quando o avô ensina ao neto a função dos “olhos da
alma”, os únicos capazes de “ver os sonhos”.
Em “Sangue da avó, manchando a alcatifa”, do livro Cronicando (1991),
Mia Couto, numa insubordinação produtiva, reordena as estruturas dos pro-
vérbios tradicionais de forma crítica e inovadora. As novas construções vêm
repletas de outros significados que metaforizam o descompasso da capital
Maputo. Por meio de expressões recriadas, Mia Couto traça um paralelo entre
as sentenças proverbiais renovadas e a imagem desfeita da cidade que sofreu
os efeitos das guerras e da invasão do capital internacional.

15.4 Um discurso reinventado


Se for verdade que a voz do narrador, como entidade enunciativa,
coincidindo, ou não, com a de alguma personagem interveniente na
história, institui-se, muitas vezes, como a consciência que regula e
monitora as outras vozes que se fazem ouvir nos textos, diferentes
contextos histórico-literários têm concorrido para que essa mesma
voz tenha uma configuração e uma penetração específicas. (NOA,
2009, p. 86)

Em A Varanda do Frangipani (2007b), o escritor precisa reinventar o


discurso para dar um colorido novo aos elementos recuperados ora da tradi-
ção distante, ora de um cenário recente fracionado na perplexidade dos novos
tempos, em que a miséria se sustenta por meio do ganho fácil e da desperso-
nalização cultural. O cenário do romance é o de:
[...] uma ilha que resguarda os valores do tempo dos mais velhos,
cercada pela ignorância do tempo presente, marcadamente urbano.
Navaia Caetano, a criança-velho, alegoriza o ajustamento dos saberes,
sua roda que gira simboliza a perfeição de um mudo, que se quer
harmonizado com as tradições. (LEITE, 2003, p. 59)

Numa dinâmica discursiva repleta de experiências violadoras das práti-


cas capazes de humanizar um mundo multirracial, podemos detectar nas falas
dos personagens as contradições que alimentam o imaginário dos homens
que estão em baixo da “Varanda do Frangipani”:

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Mia Couto e a narrativa contemporânea moçambicana

Falou com o velho português? Aposto que ele lhe contou sobre
daquela vez em que ele estava sentado por baixo do frangipani. Pois,
me lembro bem dessa tarde. Cheguei à varanda e vi o velho branco
adormecido. Suspirei, aliviado: o que ia fazer exigia muita sombra
e poucos olhos. Me cheguei no ante do pé, puxei a catana ao alto e
desferi o primeiro golpe. A lâmina entrou fundo no suave tronco.
Nunca pensei que o branco despertassse. Enganei-me. Xidimingo
repentinava, esbracejante:
— Que está fazer, caraças de tu!
— Não está ver? Estou cortar essa árvore.
— Para com isso, Nhonhoso da merda, essa árvore é minha.
— Sua? Suca mulungo, não me chateia.
Nunca tínhamos falado assim. Domingos Mourão, o nosso
Xidimingo, se levantou e, aos tropeços, se atirou contra mim. Os dois
brigamos, convergindo violências. O branco me solavanqueou, pare-
cia transtornado em juízo de bicho. Mas a luta logo se desgraçou,
desvitaminados o pé e o soco. Só os nossos respiros se farfalhavam nos
peitos cansados. Os dois nos sacudimos, desafeitos.
— Você sempre quer mandar em mim. Sabe uma coisa: colonialismo
já fechou!
— Não quero mandar em ninguém ...
Como não quer? Eu nos brancos não confio. Branco é como camaleão,
nunca desenrola todo o rabo...
— E vocês, pretos, vocês falam mal dos brancos mas a única coisa que
querem é ser como eles...(COUTO, 2007b, p. 61-62).

Em O Último Voo do Flamingo (2000), Mia Couto personaliza sua fun-


ção no personagem central da obra. Ele cria um “contador-mediador” que faz
a tradução dos vários mundos ali representados, reinventando, assim, uma
possibilidade de união entre o tempo passado dos mais velhos com o tempo
presente fragmentado, multifacetado. De acordo com Leite:
Embora na mesma língua, a textualidade é culturalmente outra, trans-
linguística e transcultural; por isso, ouvir, ler, ao mesmo tempo em
que traduzir, é também recriar, o que nos obriga à deslocação do lugar
do mesmo, movendo-nos para o espaço do(s) outro(s); obriga-nos ao
esforço de movimentação dialética de lugares, e a encarar a língua,
apropriada e localizada culturalmente, como organizada numa outra
complexa tessitura. (LEITE, 2003, p. 60)

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Literatura de países de língua portuguesa

O romance cenariza situações que exigem um tradutor apto na comu-


nicação com os citadinos, que desconhecem o código linguístico ali utili-
zado. Massimo, o personagem de nacionalidade italiana, representa as Nações
Unidas e precisa apoiar-se no tradutor para fazer-se entender. O mesmo
ocorre com os mais-velhos da aldeia, que não conseguem dialogar com os
outros moçambicanos que, apesar de pertencerem à cultura local, desconhe-
cem os códigos estabelecidos nos tempos que antecedem as lutas armadas.
Nesse sentido, o tradutor precisa “fazer a ligação entre o tempo de antes
e de agora, entre o onirismo dos mortos e a derrota dos vivos, entre a terra
abolida e um céu luminoso e derradeiro, como o é o primeiro-último poente
do voo do flamingo” (LEITE, 2003, p. 60).
O romance O Último Voo do Flamingo (2000) transita entre duas ver-
tentes, o cômico e o trágico – as explosões dos capacetes azuis e o fato de
sobrar apenas o elemento viril dos soldados provocam o humor cáustico pelo
aspecto transgressor e anedótico do elemento que sobra, o sexo –, mas pro-
gressivamente a narrativa vai mostrando o lado trágico da situação. Utilizando
um discurso alegórico, Mia Couto finaliza a estória e também sinaliza o fim
de um país metaforizado na enunciação do romance. Dessa forma, “o país
desaparece, como por encanto, num abismo. Os últimos capítulos adensam
a dimensão mágica e onírica e convertem-se em mais-valia trágica” (LEITE,
2003, p. 61).
Segundo Propp (1987), a personagem existe porque tem uma história
para contar, uma experiência para transmitir, a partir do momento que ela
cumpre sua função, deixa de existir, ou melhor, pode desaparecer no cenário,
pois se torna uma página em branco, e uma página em branco significa a
morte: “No fundo, a personagem representa, na obra do escritor moçambi-
cano, fundamentalmente, uma narrativa, ou melhor, Narrador e Narrativa
em simultâneo, e logo que deixa de ser necessária a sua palavra, pode morrer,
desaparecer” (LEITE, 2003, p. 66).
Conclui-se, dessa forma, que o estilo narrativo de Mia Couto está ligado
diretamente ao personagem que habita simultaneamente o reino da narração

– 280 –
Mia Couto e a narrativa contemporânea moçambicana

e o do narrador repleto de conhecimentos advindos da tradição ancestral e das


demais tradições oriundas de outras terras que compõem o universo híbrido
contemporâneo tão bem representado pelo escritor moçambicano em geral.
De acordo com Tania Macêdo, “com características marcadas pela antropo-
morfização, os rios nas narrativas de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Mia
Couto acabam por se confundir com as personagens dos textos, represen-
tando os ‘caminhos que bifurcam’ de suas travessias existenciais” (MACÊDO,
2002, p. 96).
A metáfora da água presente nos três escritores mostra quanto a lite-
ratura moçambicana é dialógica e polifônica ao mesmo tempo. Em Terra
Sonâmbula (2007a), no quinto capítulo, intitulado “O fazedor de rios”, o
personagem que compõe o cenário tem em seu destino o papel de dar vida a
um rio capaz de regenerar os sonhos de homens, vítimas das discórdias e das
guerras que assolaram Moçambique:
As águas haveriam de nutrir as muitas sedes, confeitar peixes e terras.
Por ali viajariam esperanças, incumpridos sonhos. E seria o parto da
terra, do lugar onde os homens guardariam, de novo, suas vidas. [...]
Nome que dera ao rio: Mãe-água. Porque o rio tinha vocação para se
tornar doce, arrastada criatura. Nunca subiria em fúrias, nunca se dei-
xaria apagar no chão. Suas águas serviriam de fronteira para a guerra.
Homem ou barco carregando arma iriam ao fundo, sem regresso. A
morte ficaria confinada ao outro lado. O rio limparia a terra, cari-
ciando suas feridas. (COUTO, 2007a, p. 85-86)

A ficção de Mia Couto apresenta características denunciatórias do des-


compasso social por meio de uma prosa poética valorativa de um exercí-
cio importante: revigorar na ficção a imagem de uma nação em equilíbrio,
trazendo à tona as vozes dos mais velhos no “antigamente” da história de
Moçambique. Na atualidade, o ato de contar histórias e ouvi-las constante-
mente não mais ocorre em volta das fogueiras, mas nas águas dos rios criado
pela memória da ficção. No presente, a fogueira reside nas entrelinhas das
narrativas, veiculando uma sabedoria que pode ser lida em diferentes sentidos.

– 281 –
Literatura de países de língua portuguesa

Dicas de estudo
22 Acesse:<www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaAfricana/Mia_Couto
_Terra_Sonambula.htm>. Acesso em: 23 out. 2017. Podemos
encontrar nesse site alguns artigos sobre obras de Mia Couto.
22 Acesse: </www.triplov.com/letras/mia_couto/sete_sapatos1.htm>.
Nesse site há um texto do escritor Mia Couto.
22 Acesse o site oficial de Mia Couto, disponível em: <miacouto.
org>, acesso em 23 out. 2017, onde você encontra notícias, arti-
gos e informações sobre a vida e a obra do autor.
Os sites destacados aqui sobre a produção literária e jornalística de Mia
Couto são uma referência para que o estudo de obras e fortunas críticas
sobre esse escritor seja feito, tendo como referencial o papel político de Mia
Couto que está sempre procurando denunciar ou criticar práticas colonia-
listas e de outras ordens que por ventura a comunidade internacional ainda
tenta impor aos moçambicanos em troca de ajuda financeira ou política.

Atividades
1. A entrada de Mia Couto no mundo literário se dá de que forma?

2. Quais as características da narrativa moçambicana pós-colonial?

3. O que representa a literatura para Mia Couto?

– 282 –
Gabarito

Gabarito

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Literatura de países de língua portuguesa

1. Trovadorismo: 1198-1418
1. D. Dinis (1261-1325) foi um dos mais fecundos compositores gale-
go-portugueses e os seus versos que denotam a origem provençal das
cantigas de amor são estes:

Quer’eu en maneyra de proençal

fazer agora hun cantar d’amor..

2. Ao afirmar que deseja fazer canção de amor à maneyra de proençal, D.


Dinis, o Rei Trovador, define o modo do seu fazer poético pautado
nas regras da arte originárias da região da Provença, o Sul da França
medieval. Entre as principais características podem-se mencionar que:

22 o sujeito poético (a voz do poema) é masculino;


22 a mulher é idealizada, geralmente chamada de “mia senhor”; e
22 a vassalagem amorosa é paciente e com respeito constante.

3. Sim, pois nas canções de amor o sujeito poético masculino deve se co-
locar em uma posição de inferioridade ou submissão absoluta diante
da mulher, jurando fidelidade e demonstrar respeito constante. Ao
exaltar as virtudes da “mia senhor”, o sujeito poético se comporta
como um vassalo ou servo diante do seu suserano e desse modo repro-
duz e reforça as relações sociais típicas do feudalismo.

2. O Humanismo
1. A maior ruptura proporcionada pelo humanismo no Portugal dos
séculos XV e XVI foi a de retirar Deus do centro do universo, co-
locando ali a figura do homem. Se até então todas as preocupações
e explicações sobre o universo giravam em torno da figura de Deus,
a partir desse momento o homem e a natureza tomam esse lugar.

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Gabarito

É o início do que depois irá ser designado como pensamento científi-


co e que, mesmo não descartando a ideia de Deus em um primeiro
momento (Descartes tentou demonstrar a necessidade da existência
Deus), privilegia as capacidades físicas e intelectuais do homem apli-
cadas ao conhecimento e ao domínio dos fenômenos naturais.

2. Porque as peças vicentinas nem sempre se encaixam precisamente


neste ou naquele gênero, quer porque tais gêneros – de origem medie-
val e popular – muitas vezes apresentam subdivisões pouco precisas,
quer porque Gil Vicente não se prendia rigorosamente a eles.

3. A prosa humanista portuguesa se caracterizou por:

22 crônicas reais, como as de Damião de Góis ou de João de Barros;


22 relatos de viagem, como o de Fernão Mendes Pinto; e
22 novelas sentimentais, como a de Bernardim Ribeiro.

3. Classicismo: 1527-1580
1. Sim, pois se trata de uma longa narrativa versificada com significação
nacional e universal.

Nacional porque se trata da longa travessia marítima cujo resultado


foi a descoberta da rota marítima para as Índias, que, para além de
uma simples navegação, foi uma verdadeira façanha oceânica de Por-
tugal. Assim, o poema faz a celebração das glórias portuguesas.

E universal porque também canta o início das relações marítimas


entre Ocidente e Oriente e apresenta a engrenagem do mundo – a
constituição ou o sistema total do universo conforme concepção da
época. Assim, ele nos permite estudar as visões de mundo à época do
Renascimento. Daí o caráter universal da obra.

– 285 –
Literatura de países de língua portuguesa

2. Sim, pois nos dois últimos versos da segunda estrofe o narrador faz
alusão ao “engenho” (pensamento ou capacidade de criação) e à “arte”
(conhecimento das técnicas de composição, na esteira da poesia de
extração clássica). É o que se percebe logo na primeira estrofe, em oi-
tava rima ou oitava real. Esse tipo de estrofação é rigidamente forma-
da de oito versos decassílabos, com regularidade de rimas conforme o
esquema abababcc. A valorização do culto da forma remete à máxima
da poesia clássica conhecida por limae labor, o trabalho da lima, a
lapidação do verso de modo a torná-lo esteticamente perfeito.

3. Em Os Lusíadas encontramos as cinco partes necessárias de uma epopeia:

22 proposição (a definição do assunto);


22 invocação (a invocação às divindades da poesia);
22 dedicatória (oferecimento da obra, no caso, em homenagem ao rei
D. Sebastião);
22 narração (a sucessão dos episódios que formam a narrativa);
22 epílogo (as considerações finais).

Na quarta estrofe do primeiro canto, o narrador faz a invocação às


musas, solicitando o auxílio das Tágides, as ninfas do rio Tejo, para
que elas lhe concedam entusiasmo a fim de que a obra resulte tão
elevada quanto o assunto proposto. É o que se lê nos seguintes versos:

E vós, Tágides minhas, pois criado


Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre, em verso humilde, celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado.

4. A “Ilha dos Amores” aparece nos cantos IX e X de Os Lusíadas. É um


espaço adequado para a celebração do amor e para o conhecimento da
constituição da terra e do universo. Em sentido alegórico, essa Ilha de

– 286 –
Gabarito

Vênus pode ser compreendida como uma recompensa de Vênus, pro-


tetora dos portugueses, pelos esforços e coragem na longa navegação
oceânica que resultou na descoberta de uma rota marítima ligando
Portugal à Índia.

4. Barroco: 1580-1756
1. Não, pois o termo Barroco designa um fenômeno europeu conhecido
por diferentes nomes em vários países. Na Espanha, o Barroco foi
nomeado de Gongorismo, em virtude da poesia praticada por Luís de
Gôngora y Argote (1561-1627). Na Itália foi batizado de Marinismo,
derivado de Giambatista Marini (1529-1625). Na Inglaterra, foi cha-
mado de Eufuísmo, derivado do título do romance Eufues, or the ana-
tomy of wit, do escritor John Lyly (1554-1606). Na França, pelo culto
exagerado da forma, recebeu o nome de Preciosismo. Na Alemanha,
de Silesianismo, pois definia o estilo de escritores da região da Silésia.
Da Europa o Barroco se disseminou para o continente americano e
asiático, e passou a designar o complexo artístico do XVI.

2. As duas principais correntes literárias do Barroco são chamadas de


Cultismo e de Conceptismo.

No cultismo ou gongorismo, privilegia-se o rebuscamento formal.


O gosto pelo ornamental se revela, por exemplo, na construção das
estrofes pelo processo de chamado de “disseminação e recolha”: como
se pode ler no soneto “Lamentando o infeliz casamento de a dama”,
de D.Francisco Manuel de Melo. Ao longo do poema, ele menciona
várias pedras preciosas que são agrupadas ou recolhidas no último
verso do poema.

O conceptismo é a outra principal vertente da literatura barroca.


Também chamado de conceitismo ou quevedismo, em homenagem ao

– 287 –
Literatura de países de língua portuguesa

seu maior representante, o espanhol Quevedo (1580-1645). Se no


cultismo se privilegia a forma, no conceitismo se privilegia o con-
teúdo e se perseguem as conclusões mediante o relacionamento de
conceitos e o desenvolvimento de raciocínios. O Padre António Viei-
ra foi um mestre nessa modalidade e a utilizou para a elaboração de
sermões, entre os quais o mais famoso é o Sermão da Sexagésima.

3. Sim, pois no referido fragmento, Vieira se vale da tensão ou aproxi-


mação dos contrários, uma característica por excelência da arte barro-
ca. No caso, recorre ao jogo do claro-escuro. Esse processo compositi-
vo era muito utilizado pelos pintores da época, a exemplo do quadro
intitulado “Moça com Brinco de Pérola”, de Vermeer. E o mesmo se
pode dizer da poesia, cuja aproximação ou tensão dos opostos se po-
dem notar na reiterada utilização de antíteses que contrastam palavras
de sentido oposto como vida e morte, o corpo e o espírito, o terreno
e o celestial.

4. Sim, trata-se de um poema que apresenta características barrocas.


A tendência é a de maravilhar o leitor pelo modo requintado e ex-
cessivo de descrever a mulher. Por conta da abundância de cores e
pormenores, ela surge como uma escultura feita de metais brilhantes
e de pedras preciosas. Esse gosto pela ornamentação excessiva apro-
xima o poema da tendência literária barroca chamada de Cultismo
ou Gongorismo.

5. Arcadismo: 1756-1825
1. No seu poema, a Marquesa de Alorna retoma um dos lugares-co-
muns típicos do Arcadismo: a tópica da brevidade da vida expres-
so no lema carpe diem, como se pode perceber no verso “Aproveita
os momentos”.

– 288 –
Gabarito

2. O movimento literário denominado Arcadismo consiste fundamen-


talmente em uma retomada das formas e dos modelos da literatura
greco-latina. Isso se constata no texto de Correia Garção, que defende
a imitação da “pureza dos antigos”.

3. O movimento literário denominado Arcadismo possui dois aspectos


fundamentais. Em primeiro lugar, uma crítica aos excessos do barro-
co literário, concebido como estilo dificultoso, obscuro, como é suge-
rido nos três primeiros versos da referida estrofe. Em segundo lugar,
o movimento se caracteriza pela imitação dos modelos consagrados
pela tradição – no caso, a imitação dos mestres da poesia renascentis-
ta, a exemplo de Camões e Ferreira.

4. Entre os lugares-comuns do Arcadismo presentes no poema dedi-


cado à Marília, pode-se mencionar a opção pela vida campestre, o
que nos remete aos lemas do Fugere urbem, “fugir da cidade” e Se-
qui naturam, “seguir a natureza”. Concorde à proposta de cultuar
a vida natural, personificada no pastor honesto, os poetas árcades
cultivaram a simplicidade de vocabulário e de ideias e um uso muito
comedido de figuras de linguagem, como se pode ler nas estrofes do
poema de Gonzaga.

6. O Romantismo: prosa
1. Alexandre Herculano foi o escritor romântico português que mais
se dedicou ao estudo da história da sua nação: além de ter escritor
vários textos ficcionais de caráter histórico, inaugurando o romance
histórico português, ele ainda publicou diversos trabalhos somente
historiográficos, como Monumentos históricos de Portugal, A história
de Portugal e História e origem da Inquisição em Portugal.

– 289 –
Literatura de países de língua portuguesa

2. O movimento romântico rejeita a tradição greco-romana e valoriza a


tradição cristã. Rejeita o materialismo e valoriza toda e qualquer for-
ma de espiritualidade e o sentimento amoroso. Rejeita a cultura aris-
tocrática e valoriza a cultura popular e a identidade nacional. Rejeita
os manuais de retórica, as artes poéticas clássicas e os gêneros clássicos
e valoriza a originalidade, a transgressão, o gênio literário e a mistura
dos gêneros literários.

3. Camilo Castelo Branco foi um dos maiores escritores portugueses do


século XIX, pois escreveu tanto prosa romântica como prosa realista.
Dono de uma obra vastíssima, com mais de 260 títulos, exercitou os
mais variados gêneros literários: prosa, poesia, drama, crítica literária,
política etc. Foi um dos primeiros escritores a viver somente de lite-
ratura em Portugal e ainda foi o autor de um dos textos mais famosos
da história da literatura portuguesa, Amor de Perdição.

7. O Romantismo: poesia
1. A arte vira mercadoria após a Revolução Industrial e a Revolução
Francesa, isto é, quando a burguesia sobe ao poder. Algo que aconte-
ce porque agora já não há mais o mecenas aristocrata para patrocinar
o artista, que precisa ganhar a vida com a venda de seu trabalho. Des-
se modo, os artistas precisam se profissionalizar e passam a depender
somente de seu público para sobreviverem. Todavia, muitos resistem
a esse processo de mercantilização de seu trabalho, por eles conside-
rado como uma missão. O gênio romântico, que seria o verdadeiro
artista, resiste a se submeter ao mercado.

2. Garrett escreveu esses dois poemas de temática nacional no intuito


de enaltecer a identidade portuguesa, mas também com o intuito de
criticar a apatia de seus contemporâneos em relação ao sentimento
nacional e à vida intelectual portuguesa. Além disso, assim inaugurou

– 290 –
Gabarito

o tema que mais tarde gerará o movimento saudosista, a ser proposto


por Teixeira de Pascoaes no início do século XX.

3. O belo horrível é produzido quando se coloca o feio ao lado do belo,


o grotesco ao lado do sublime, no intuito de atribuir beleza ao que é
grotesco e tornar sublime o que é belo. Ao colocar lado a lado o sen-
timento da morte e o sentimento do amor, Soares de Passos atribui
beleza à morte e torna o amor sublime.

8. O Realismo: 1865-1890
1. O Realismo surge no contexto da ascensão do proletariado como for-
ça sociopolítica, da organização dos movimentos trabalhistas e das
ideias revolucionárias de cunho socialista. A Comuna de Paris foi o
apogeu desse processo histórico, constituindo-se na primeira expe-
riência socialista da história ocidental. A representação da nova classe
social, dos trabalhadores, precisava ser feita com uma estética que
fosse ligada àquele tempo e à vida cotidiana.

2. O Empirismo tornou-se hegemônico no pensamento filosófico do sé-


culo XIX. Seus princípios admitiam que apenas pelos dados sensíveis
e por métodos de observação e experimentação se poderia atingir um
conhecimento confiável. O Positivismo radicalizou essas ideias e pro-
pôs o método científico como a única forma de redenção do homem,
negando assim a validade da religião e do pensamento metafísico. A
estética realista adota os mesmos ideais de objetividade e cientificida-
de na elaboração da obra de arte.

3. O grupo de jovens intelectuais portugueses liderados por Antero de


Quental queria despertar a nação portuguesa para o debate ideológi-
co, científico e cultural que se desenrolava nos países mais desenvol-
vidos. As palavras de ordem das conferências foram Revolução, Demo-

– 291 –
Literatura de países de língua portuguesa

cracia, República e Socialismo, e o propósito era criticar as instituições


portuguesas, fosse o governo, a igreja, a educação ou a arte.

9. Simbolismo
1. Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Artur Rimbaud e Sthéphane Mal-
larmé. Todos concebiam a poesia como uma arte sinestésica, que tra-
balhava com os sentidos, especialmente com a musicalidade. Eram
escritores que contestavam a ordem vigente e se opunham à objeti-
vidade que passou a vigorar com a literatura realista, pugnando pelo
emprego da subjetividade e pela autonomia da arte, sintetizado na
expressão “arte pela arte”.

2. A recuperação da referência neoclássica, abandonada pelos românti-


cos, e a valorização de uma subjetividade construída de modo bastan-
te peculiar, associada à sinestesia, à polissemia, ao vago, ao sutil, ao
complexo, fazendo com que o poema surja como o símbolo, reme-
tendo a alguma outra coisa que não ele mesmo. O retrato da realidade
imediata é rejeitado pelos simbolistas, mais preocupados em apreen-
der os estados da alma, as sensações, os sentimentos tomados de for-
ma impessoal, mas nem por isso alienados da realidade que os cerca.

3. Eugênio de Castro, António Nobre e Camilo Pessanha.

22 Castro caracteriza-se pelo domínio dos elementos formais do


poema, revelando grande maestria na composição da musicalidade
de seus versos.
22 Nobre revela-se ambíguo quanto à sua adesão à estética simbolista,
apresentando uma dicção menos obscura ou sugestiva, mas ainda
assim compartilhando de vários preceitos da escola.
22 Pessanha trabalha profundamente a sensibilidade simbolista,
fazendo de seus poemas verdadeiros objetos polissêmicos, passíveis
de inúmeras interpretações.

– 292 –
Gabarito

10. O Saudosismo
1. Foi um movimento iniciado por Teixeira de Pascoaes, que via no sen-
timento da saudade uma característica típica da identidade portugue-
sa, mas também possuindo uma dimensão universal. O saudosismo
buscava recuperar o passado glorioso de Portugal para poder moldar
um futuro também glorioso para o país.

2. O que foi a relação entre a obra de Florbela e o feminismo não é


consenso entre os estudiosos, já que alguns acreditam que ela foi uma
feminista de vanguarda, enquanto outros acham que não passou de
uma coquete que posava de libertária. O fato é que sua obra tematiza
a situação da mulher e pode ser lida em diversos aspectos como uma
defesa dos direitos da mulher.

3. O Saudosismo cumpriu um importante papel político na medida em


que conseguiu erguer simbolicamente a autoestima dos portugueses
em um momento em que a nação passava por uma grave crise e por
transformações políticas – quer por conta do regicídio e o fim da
monarquia, quer por conta da instabilidade política que caracterizou
a implantação do modelo republicano.

11. Modernismo: Geração de Orpheu


1. A expressão se reporta ao conjunto de escritores ligados à revista Or-
pheu (1915), que foi publicada em Lisboa e teve apenas duas edições,
sendo que uma terceira foi preparada mas não teve divulgação. Seus
principais representantes foram Fernando Pessoa, Mário de Sá-Car-
neiro e Almada-Negreiros.

2. O princípio que rege a heteronímia pessoana é diferente daquele que


rege um simples pseudônimo, pois um heterônimo não é apenas um

– 293 –
Literatura de países de língua portuguesa

nome sob o qual se esconde o verdadeiro escritor, mas sim a identida-


de de um outro poeta, com sua história, suas obras, seu estilo próprio.
Pessoa criou vários heterônimos e com isso gerou uma obra na qual
a pluralidade (presente em todo e qualquer escritor) encontra-se ali
encenada de modo muito original.

3. Tal qual Os Lusíadas, o livro Mensagem faz uma leitura da história de


Portugal, enaltecendo os seus heróis, desde o momento mítico funda-
dor da nação até o momento das grandes descobertas. Todavia, Pessoa
vai mais longe e profetiza a realização do Quinto Império, quando
Portugal será o centro do maior e último império existente na terra.
Sua obra é, portanto, histórica e profética. É uma épica que fala da
gênese da nação, mas também prevê a sua glória futura.

12. Modernismo Presencista


1. O que colocava em confronto as duas publicações era a adesão ou
rejeição ao que hoje chamamos de literatura engajada, isto é, uma
literatura comprometida com as causas sociais que estão na ordem do
dia. Os escritores da Seara Nova se orientavam por esse engajamento,
enquanto os da Presença o rejeitavam.

2. O grupo em torno da revista Presença valorizava a importância da


originalidade e do gênio artístico, a liberdade na arte e a sinceridade,
rejeitando a submissão da arte a quaisquer princípios que não os es-
pecificamente artísticos.

3. O Primeiro Modernisimo (1915-1927) é o da geração que se consti-


tuiu em torno da revista Orpheu (1915), por isso chamado de orfismo,
no qual se encontravam Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Al-
mada-Negreiros.

– 294 –
Gabarito

O Segundo Modernismo (1927-1939) é o dos presencistas, assim


chamados por estarem reunidos em torno da revista Presença (1927-
1940), e entre eles temos: José Régio, Vitorino Nemésio, Miguel Tor-
ga, Branquinho da Fonseca.

13. Gêneros literários e tradição oral


1. A contemporânea literatura africana pertence a uma rede de cumpli-
cidade. Rede esta cuja matriz primeira é a tradição, fonte que duran-
te décadas vem alimentando as narrativas africanas. Neste sentido,
os escritores estabelecem um pacto com suas origens e, convocando
outras memórias, seguem o percurso dos contadores ancestrais. O es-
paço matricial é recuperado em vários níveis, o destaque, no entanto,
é para a discursividade oralizada e a materialização de tal discurso,
quando o autor modifica, altera a língua portuguesa ao introduzir
termos e estruturas frasais oriundas do quimbundo, do quicongo, do
umbundo e de outras línguas que representam o lugar da angolani-
dade, da moçambicanidade, da cabo-verdianidade, são-tomensidade
e guineensidade.

2. Os gêneros literários africanos originaram-se da tradição oral, que


constituem numa herança ancestral, baseada em lendas, mitos, fá-
bulas, provérbios e na história de um povo que era transmitida oral-
mente de geração para geração. Segundo Boubacar Barry, durante
séculos, antes que o fio da escrita, internamente e por todos os lados,
costurasse o mundo negro a si mesmo, os griôs – por meio da voz e
dos gestos – foram os “demiurgos”, os precursores, que construíram
esse mundo, e suas únicas testemunhas.

3. Agostinho Neto um membro da geração “Vamos descobrir Angola”,


que contribuiu não só com uma vasta produção poética para a for-
mação literária angolana, mas, também com sua prática política no

– 295 –
Literatura de países de língua portuguesa

momento do enfretamento com o outro, o invasor. Se a poesia conta


com a presença de Agostinho Neto, figura emblemática da história
de Angola, o romance – gênero singular no resgate das tradições – foi
inaugurado por António Assis Júnior com o livro O Segredo da Morta
(1934), primeira obra do gênero na literatura angolana.

14. José Saramago: história,


ficção e identidade
1. A linha de pensamento da cultura contemporânea tem como função
primordial questionar as noções clássicas de verdade, razão, identida-
de e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal, os
sistemas únicos, as grandes narrativas, ou os fundamentos definitivos
de explicação. Essa nova forma de reler os conceitos tradicionais, re-
chaçando-os, traz à tona as fragilidades do indivíduo contemporâneo.

2. Na obra Memorial do Convento, Saramago visita um arquivo históri-


co que guarda referências bastante significativas do ponto de vista da
história oficial, porém esse retorno via discurso literário reordena a
ideia de passado, logo, ele fala do passado sem suspender o presente,
pois a releitura do fato – a construção do convento de Mafra – im-
plica abolir a ideia de origem dos acontecimentos para colocar em
cena novos atores, aqueles que integram uma legião de pobres em
documentos históricos.

3. Neste processo de revisitação, Saramago promove um encontro en-


tre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, mas como bem define Calvi-
no, “com o passar do tempo, os papéis não são mais exatamente os
mesmos de antes” (2007, p. 77). Por outro lado, o encontro reforça
a visão bakhtiniana acerca da perenidade da arte, pois “as obras rom-
pem as fronteiras de seu tempo, vivem nos séculos, ou seja, na grande
temporalidade”, quando se nutrem dos séculos passados.

– 296 –
Gabarito

15. Mia Couto e a narrativa


contemporânea moçambicana
1. O ficcionista Mia Couto desponta no cenário literário moçambicano
em 1983, com a publicação do livro de poema intitulado Raiz de
Orvalho. A partir desta imersão no mundo literário, o jornalista e es-
critor começa a buscar temas para contos e enveredou pelos caminhos
da ficção, revelando-se um contista que, rompendo com a noção de
limites pensada por Cortázar (1993), inaugura uma forma peculiar de
pensar a história e a sociedade moçambicana na atualidade por meio
do discurso literário.

2. A narrativa pós-colonial é dotada de características híbridas, devido à


convergência de uma “pluralidade de formas e de propostas” (LEITE,
2003, p. 28), decorrentes das ligações estabelecidas entre os aspectos
culturais de origem europeia e os da cultura moçambicana, com o
intuito de traçar parâmetros para a construção dos novos campos lite-
rários capazes de dar conta das diversidades identitárias locais.

3. Na qualidade de grande metáfora da vida, a literatura constitui-se


num caminho para o escritor fundar sua dicção lírica e buscar recu-
perar a ternura perdida em meio aos sofrimentos provocados pelas
guerras que assolaram Moçambique. Os anos de jornalismo de Mia
Couto – compreendidos entre 1974 e 1986 na imprensa de Mo-
çambique –, escrevendo matérias informativas, editoriais e crônicas,
deram ao autor de poesia, contos e romances o conhecimento e o
exercício arguto do discurso referencial exigido pelo jornalismo, mas
também pela palavra literária que busca estabelecer uma cumplici-
dade com o “local da cultura” para redimir as horas amargas que
assolaram o país durante as guerras. Num encontro entre o presente
e o passado, ainda que imaginários, o escritor promove discursiva-
mente o que Bhabha define como o trabalho fronteiriço resultante
do estudo ou resgate da cultura.

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LITERATURA DE PAÍSES
crítico-produtivo das manifestações canônicas da literatura portuguesa, entre DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA DE PAÍSES
DE LÍNGUA PORTUGUESA
1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental, além de apresentar
uma discussão sobre gêneros literários e tradição oral da literatura africana. Stélio Furlan
Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discursivo José Carlos Siqueira
e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias Jurema Oliveira
portuguesas do medievo ao período contemporâneo, além de apresentar
os princípios norteadores da construção identitária da literatura africana de
língua portuguesa.

Educação

Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6396-3

CAPA_Literatura de Países de Língua Portuguesa.indd 1 06/11/2017 09:38:43

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