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NAAH/S
poemas e narrativas
FCEE (SC)
São José, 2013
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Autores
Alberto Prestes Pereira
Alexsander Rodrigo
Edilson Júnior
Gabriel Tambosi
Julia Breda
Karoline Abreu
Laura Maciel Moreira
Lucas Betega
Lucas Michelute Gerardi
Nicole Teixeira Vieira
Patrick Rodrigues
Pedro Guimarães Terence
Renan Colzani da Rocha
Thor Munirah Lessa
Ilustradores
Alberto Prestes Pereira
Edilson Júnior
Karoline Abreu
Orientadoras
Marilyn Mafra Klamt
Mara Aparecida Siqueira
Capa
Angélica Lacerda Rupniewski
Diagramação
Maikell Luiz Leguisamo
Revisão
Debora Silveira de Souza Cardoso
3
Ao leitor
4
Apresentação
5
Sumário
Autores ......................................................................................................... 3
Ao leitor ........................................................................................................ 4
Apresentação ................................................................................................. 5
Thor Munirah Lessa ........................................................................................ 8
A esperança .................................................................................................. 9
Gabriel Tambosi .............................................................................................. 10
Felicidade ...................................................................................................... 11
Laura Maciel Moreira....................................................................................... 12
Contos modernos ........................................................................................... 13
Alberto Prestes Pereira .................................................................................... 18
Areia............................................................................................................. 18
Balas e rabanetes ........................................................................................... 19
Standby ........................................................................................................ 20
Latão dos mortos-vivos ................................................................................... 23
Terrorsauros................................................................................................... 24
Alexsander Rodrigo ......................................................................................... 26
Os instrumentos estelares ................................................................................ 27
Lucas Betega................................................................................................. 34
Uma passagem da vida de Lúpus ..................................................................... 35
Lucas Michelute Gerardi .................................................................................. 45
Conto dinamarquês ......................................................................................... 46
Meu primeiro emprego .................................................................................... 53
O menino das asas negras ............................................................................... 56
Julia Breda .................................................................................................... 66
Give your heart a break ................................................................................... 67
Gotta be you .................................................................................................. 72
Edilson Júnior ................................................................................................ 79
A flor da vida ................................................................................................. 80
O outro mar ................................................................................................... 82
Palavra solta .................................................................................................. 91
Nas alturas .................................................................................................... 94
Relutantes ..................................................................................................... 97
Quatro amigos e uma missão ........................................................................... 98
Pedro Guimarães Terence ................................................................................ 100
O leão e o lobo .............................................................................................. 101
Dom Quixote por Pedro Terence ....................................................................... 102
6
Nicole Teixeira Vieira ........................................................................................ 103
A floresta “mal-assombrada” ............................................................................ 104
Renan Colzani da Rocha .................................................................................. 105
A história de Ploft, a duende............................................................................. 106
DNA infinito ................................................................................................... 108
O elevador de tijolos ....................................................................................... 110
Perigo desconhecido....................................................................................... 111
Karoline Abreu................................................................................................ 113
Não pare de sonhar ........................................................................................ 114
Café com amaciante ....................................................................................... 116
Palavras......................................................................................................... 118
Corra! ........................................................................................................... 119
Dragão de gelo .............................................................................................. 121
Estranho na privada ........................................................................................ 122
Eu já imaginava... ........................................................................................... 124
Apenas um pedido ......................................................................................... 127
Patrick Rodrigues ........................................................................................... 128
Fênix: ressurgindo das cinzas ........................................................................... 129
Sessão macabra............................................................................................. 130
The black lion – o sonho ................................................................................. 132
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Thor Munirah Lessa
8
A esperança
Thor Munirah Lessa
9
Gabriel Tambosi
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Felicidade
Gabriel Tambosi
Vamos lá!
Criar um novo mundo!
Ele de felicidade encheremos em um segundo...
Felizes vamos ficar!
E, para toda humanidade, isso vamos repassar.
Felizes vamos ficar!
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Laura Maciel Moreira
Nasci no município de São José (SC), no dia 6 de agosto de 2002, mas há dez anos
resido em Florianópolis, no bairro Campeche. Estou com 10 anos de idade e curso o
5º ano na escola Brigadeiro Eduardo Gomes. Gosto muito de ler e de criar histórias, por
essa razão, tenho prontos 7 livros – nenhum deles editado – e, em alguns, fiz ilustra-
ções. No NAAH/S, frequento as oficinas de artes, origami e leitura e produção textual.
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Contos modernos
Laura Maciel Moreira
Era um dia de inverno, frio como o próprio floco de gelo...
Uma menina corria atrás de um ônibus que perdera por pura bobeira, pois
estava distraída com um livro de contos clássicos (grave esse detalhe, contos
clássicos hein!).
Chegara à sala de aula 10 minutos atrasada, correra o trajeto todo atrás do
ônibus, mas não conseguira chegar a tempo em um dos pontos onde ele
parava e ninguém parecia vê-la. Naquele dia o ideal seria não ter se atrasado,
afinal, haveria uma tenebrosa prova de fim de semestre.
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cabeça, algo como: “estou perdida, acuda-me!”. A mulher sorriu gentilmente
e abriu a porta com um comando pelo celular – um celular avançadíssimo
que a menina até pensou ser um computador – quando entrou na casa
trancou a respiração de espanto. Era uma casa bonita e moderna, cheia de
aparelhos sem fio e com toque na tela, realmente muito atraente.
A mulher apontou para um assento onde, em cima de uma mesa, havia
o computador mais magnífico que ela já vira na face da Terra. Ela assentiu
e, saltando, sentou-se na cadeira, que, na mesma hora, trancou-a como é
comum acontecer em macas de experiências científicas. Para a surpresa da
menina, pela primeira vez, alguém falou em seus sonhos. A mulher quase
que cantarolou aos seus ouvidos:
– Menina tolinha! Quis acessar minha rede Wi-Fi de 20 mega com seu
celular de caipira? – Ela riu-se, uma gargalhada estrondosa e assustadora.
– Mas... Mas eu não acessei sua net, e... – Ela ouviu o apitar do seu celular,
ele estava ficando sem bateria. Ela o verificou, havia carregado no dia anterior,
como poderia... Ele se conectara sozinho à internet e, por isso, gastara sua
bateria. Quase bufando de raiva ela disse – moça, não foi proposital, eu juro e...
– Cale-se tolinha! Vou fazer você ficar cada vez mais fascinada às redes sociais
e aos chats e, quando menos perceber, vou lhe lançar à minha cadeira transfor-
madora de crianças – e riu, riu, riu que, se a menina não estivesse presa e com
ódio daquela mulher, teria se deliciado com a risada contagiante dela.
– Perversa! – A menina falaria mais, diria umas poucas e boas para aquela
mulher safada, mas um clarão se passou em sua mente, ela descobrira qual
era o mistério da mulher. Como dissera seu avô algum tempo atrás: “Ler é
contagiante minha netinha, levará você para outro mundo!”, ela nunca pen-
sara que algum dia levaria aquela frase ao pé da letra. Estava em um Conto
Clássico, ela tinha certeza. – Sua bruxa! Está fazendo comigo o que fez com
o pobre do Joãozinho e da Mariazinha!
– Ah! Aqueles moleques! Me arrepio só de lembrar deles. Foram 13 cirurgias
para recuperar minha aparência! Odeio eles, Hansel e Gretel, a peste e a
mula. Não me lembre deles, criança insolente! Vou aumentar os megas da
sua internet! – A bruxa virou-se para mexer na antena. Bem nesse momento,
a menina chutou a bunda da bruxa e ela enfiou um dedo na tomada, sem
querer. Eletrocutada, balbuciou palavras quase inaudíveis: “13 cirurgias mais
uma vez... Vou ter que cortar a internet para ter dinheiro para isso”.
A menina aproveitou a chance e conseguiu sair do sistema que a prendera.
Nesse mesmo instante, as coisas começaram a se retorcer, até mudar de
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cenário, a bruxa também havia ido embora.
Agora o cenário era o de uma pequenina toca, parecia ser embaixo da
terra. Havia camas, camas minúsculas, uma ao lado da outra, era preciso que
a menina amontoasse quatro camas se quisesse se deitar adequadamente.
Ela, por pouco, não precisava andar abaixada. Estava cansada, com um pou-
quinho de medo também. Então, juntou as camas e pôs-se a dormir, o que
foi estranho... Como era possível dormir em um sonho? Ela não sabia.
Dormiu um pouco, mas foi acordada por pequenas criaturas humanoi-
des. Ela esfregou os olhos, pensando não estar enxergando muito bem. Nada
mudara, ela continuava vendo criaturas humanoides com barbas arrastando
no chão, além de olhos esbugalhados e grandes orelhas de abano.
– Que fazes aqui, menina? – Disse um deles com voz engraçada. Ela de-
satou a rir. – Ela acha graça de mim, Fofão – disse com tom choroso. Fofão
era o que continha a maior barba de todas, era muito gordo e usava óculos
que pareciam lhe apertar os olhos. Com certeza, ele era o líder.
– Cale a boca, Choroso, pare de chorar criatura. – Disse Fofão rispidamente.
– Ela está confusa, meu filho. – Ele observou enquanto Choroso corria ao
banheiro atado em lágrimas.
Rapidamente eles se apresentaram à menina, que agora sabia em
que história estava. Havia sete anõezinhos. Eles ofereceram abrigo para ela,
cama, comida, tudo o que ela precisava. Ela aceitou sorrindo.
Depois de algum tempo, eles tiveram de sair para trabalhar – trabalhavam
com eletrônicos, construíam as peças e montavam computadores de muita
qualidade. A menina, que não conseguira ler o fim da história, sentia medo, e
estava desprotegida por não saber como Branca de Neve se safava da bruxa.
Passado uns minutos, alguém bateu na porta:
– Olá linda moça! Estou aqui para lhe falar de uma companhia de televisão
superavançada! Tem mais de um milhão de canais, a senhorita gostaria de
testá-la? – Falou sem parar uma velha do lado de fora da pequena casa.
– Olá senhora. Se você me permite... – E testou a rede na pequena TV
que a mulher levava, uma rara TV à pilha. Assim que ela colocou a mão no
botão de mudar de canal levou um baita de um choque. Caiu sentada, com
os cabelos arrepiados.
– Mas era para te matar! Droga de TV! As coisas não são mais como
antes! A ideia da maçã era bem melhor e mais prática! – Praguejou a velha.
A imagem distorceu novamente. Tomou a forma de um cenário muito
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bonito. Era um campo florido e, não muito distante, um castelo brilhava. A
menina correu para o castelo.
Assim que chegou ao castelo, entrou pela porta e viu muitas pessoas a esperan-
do. Elas faziam grandes reverências, talvez pensassem que ela era uma princesa.
– Princesa! As três fadas chegaram! – Disse um homem grisalho com
uma coroa na cabeça, certamente era o rei. Ele berrou algo como: “Entrem!”
E três minúsculas coisas brilhantes entraram na sala.
Elas cumprimentaram a suposta princesa, e ela sorriu.
– Princesa, cada uma de nós trouxe um presente para você! – Com essa
frase solta pela boca de uma das coisinhas – que a menina logo percebeu
que eram fadas – a menina se deu conta que a história era A Bela Adorme-
cida. – Eu, Flora, lhe trouxe um tablet!
A menina o agarrou feliz da vida. A próxima fada se aproximou e disse:
– Eu, Fauna, lhe dou um telefone evoluidíssimo! – Entregou-lhe e saiu. A
terceira fada se aproximou.
– Eu, Primavera, lhe dou uma TV LCD 64 polegadas! – Disse ela balançando
a varinha e fazendo aparecer uma caixona no chão.
Daquela história a menina estava gostando. Esperava que viesse mais
uma fada, mas haviam acabado.
Ela sabia que a qualquer momento chegaria uma bruxa para amaldi-
çoá-la. Não demorou muito e a bruxa chegou já falando:
– Vocês não me chamaram para a cerimônia! – Disse ela chorosa – vou
amaldiçoar essa maldita princesa agorinha mesmo! Quando você fizer 12
anos, sua internet cairá e você nunca mais poderá acessá-la!
– Não quero ser estraga-prazeres, dona bruxa – disse a menina gesticulan-
do freneticamente, como se estivesse nervosa – Mas eu tenho 14...
– Maldição! Odeio essas redes sociais que informam a idade da pessoa erra-
da! Lá estava que você tinha 9 anos! Maldição! – A bruxa berrava e chutava,
revoltadíssima com a situação.
A menina se divertia com a cena, queria continuar a ver aquela bruxa esbra-
vejando atrapalhadamente, mas a imagem distorceu de novo e, dessa vez,
ela percebeu que realmente havia acordado...
– Liliana Fletcher! – Berrou a diretora batendo com a régua na mesa da
menina que, agora, estava revelada como Liliana. – Você estava dormindo
em sala Lili?! Nunca pensei isso de você menina! Vá dormir em casa!
– Mas... Mas diretora, eu estava... estava... – Ela desatou a rir. Não pôde
segurar. – Diretora, acho mesmo boa ideia! Andei tendo, realmente, péssimas
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experiências em discutir com autoridades.
Ainda rindo, Liliana juntou seus materiais e saiu da sala, troncha de sono.
Aquela manhã havia sido turbulenta, e ela tinha muito que fazer; mudar seu
jeito de passar o tempo, por exemplo!
Ela aprendera naquele dia, como em toda fábula se aprende algo: que era
difícil se adaptar às mudanças, mas que as boas e as velhas histórias nunca
morrem e nem são corroídas pelo tempo.
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Alberto Prestes Pereira
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Areia
Alberto Prestes Pereira
No céu vejo negras aves
Em meio à árida paisagem
Acho um assento intacto
Miragem...
Era um cacto
Aproxima-se o urubu
Maldito
Sabe que feri o braço
Em meio a essas agruras
Tanta sede e cansaço
Olho para o meu reflexo no cantil
E me pergunto:
O que procuras?
Ao longe
Escuto estrondos e ribombos
Desidratado e trôpego
Ando em meio aos tombos
Mas determinado
Não me dou por pego.
Finalmente
Após longas provações
Saio das dunas
Recompensado por minhas boas ações
Chego à praia
Respirando a pureza e frescor
Das marinhas brumas.
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Balas e rabanetes
Alberto Prestes Pereira
Havia, muito tempo atrás, um perverso confeiteiro.
Mas ele fora um bom homem. Fazia bolos enormes e deliciosos, e seus
doces eram os mais solicitados. Mas, naquela cidadezinha, a tecnologia e a
informação já impunham forte presença. Dentistas revelavam os horrores do
abuso do açúcar e do exagero de tão deliciosas guloseimas.
Não satisfeito com a brutal baixa de clientes, pensando apenas em destruir-
lhes suas dentições e saúde, o confeiteiro Bob Smith declarou guerra. Ven-
deu tudo o que tinha e começou a investir no ramo de vegetais hidropônicos.
Com a nova onda de comida saudável e vegetarianismo, enriqueceu rapi-
damente. Criou seu império de alimentos deveras saudáveis. Fazia pales-
tras e desenvolvia projetos de melhoria alimentar. Sua imagem pública era
a do messias dos vegetais, recuperando pessoas de problemas alimentares,
tornando-as exemplares perfeitos de saúde e jovialidade.
Mas, secretamente, ele voltara ao seu negócio de doces. Não doces comuns
e inocentes, mas terríveis artifícios de vingança na forma de doces.
Pirulitos eram impregnados com venenos e bolinhos eram banhados em
letais toxinas. Balas em forma de aro, feitas de legumes, sem açúcares, apa-
rentavam ser ótimas guloseimas, mas na realidade travavam na garganta de
suas vítimas, sufocando-as até a morte.
Inicialmente, não foi possível associar as mortes com os aparentemente inofensi-
vos doces. Para complementar, seu carisma era tão grande que seus funcionários
seguiam suas ordens sem questionar, como um hediondo culto de destruição.
Quando seu terrível estratagema fora encontrado, hordas enfurecidas corre-
ram em direção à sua mansão, empunhando tochas e rabanetes.
Quando finalmente chegaram ao hall, encontraram o Mr. Bob Smith sentado
na sua poltrona, inerte e frio, com um pacote de jujubas na mão.
Sua amarga vingança estava completa.
20
Standby
Alberto Prestes Pereira
Correndo.
Estou correndo para as colinas. Talvez apenas fugindo. Talvez buscando al-
guém com quem me conectar, um semelhante; talvez um outro ponto des-
toante numa massa uniforme.
Eu sou o único desperto numa sociedade de hibernantes.
A mente de todos está atrofiada em um sono profundo, pela exposição mas-
siva a programas de televisão, que os prende até imprimirem em seus cére-
bros a sequência exata do que irão pensar e fazer durante o dia.
Os aparelhos elétricos são uma forma hipnótica de controle, liquefazendo o
livre-arbítrio dos pobres cidadãos, e imergindo-os em um transe mecânico.
Todos se tornaram servos da tecnologia, destinados a servirem de pequenas
engrenagens do brinquedo de forças desconhecidas.
Quero ir às colinas.
Isolar-me de tudo isso.
Tento me disfarçar, seguir os padrões aparentemente impostos pela máqui-
na, mas acho que meus estratagemas estão falhando.
Procuro alguém que esteja acordado, mas não o encontro.
Durante todos os dias peço ajuda, mas ninguém vem. Mesmo berrando, um
instante de atenção é tudo o que consigo. Não agem mais como humanos;
vivem de forma mecânica, como se apenas trabalhassem e sanassem suas
necessidades básicas; suas interações sociais são uma cópia plastificada de
como realmente agiriam.
Após notar que todas as minhas alternativas foram frustradas, busco sair dessa
metrópole infernal.
Talvez por eu parecer apenas outro louco, ninguém se preocupa em me parar.
Outros também notaram o perigo eletrônico, e desceram numa espiral de insa-
nidade profunda. Embora todos me tratem como mais um, a minha sanidade
está firme o suficiente para saber o que fazer. Vou correr para as colinas.
Caminhando, ultrapasso as últimas fronteiras supostamente civilizadas, em
busca de alguém livre desse controle maligno.
A estrada é longa, mas vejo que o domínio do que eu rejeito se estende
indefinidamente.
Busco uma trilha mais livre dessa influência. Meus pés se cortam nos pedre-
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gulhos e nos pedaços de lixo, minha roupa se rasga nos galhos até tornarem-
se trajes de um maltrapilho. Após dias e dias de jornada, chego à casa rústica
de madeira e, embora houvesse eletricidade nela, era retirada o suficiente
para não ser perigosa.
Sem comer nem beber durante uma semana de caminhada árdua, não tenho
forças para manter meus sentidos e, ao chegar à frente da porta, desmaio.
Quando acordo, ouço uma gentil voz feminina:
– Até que enfim você acordou! Fiquei realmente assustada ao encontrá-lo,
sem saber o que fazer... E, como qualquer ajuda médica está muito longe,
resolvi eu mesma ajudá-lo.
– Obrigado. Estou com sede, você poderia trazer um copo de água para
mim, por favor?
– Claro.
– Posso ligar a TV?
...
...
Terminei com ela, porque ela não podia me ajudar, não com a minha mente.
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Latão dos mortos-vivos
Alberto Prestes Pereira
O ronco interminável do velho ônibus era quase tão estressante quanto a la-
múria das hordas de desmortos perseguindo aquela enorme lata de sardinha
cheia de carne fresca.
Aquele ônibus articulado, enferrujado e gasto pelo uso, estava lotado, não de pesso-
as, mas de gaiolas de animais, ferramentas, geradores, colchões, assemelhando-se
a um abrigo móvel, improvisado como se fosse encarar uma guerra civil.
Oito pessoas trabalhavam freneticamente, dividindo suas funções como em
um formigueiro.
Embora se movessem lentamente, os zumbis aparentavam nunca se cansar,
dispostos a fazer uma longa caminhada em sua macabra busca por cérebros.
Os sobreviventes buscavam um lugar para descansar, abastecer o veículo e
seus estômagos. Alguns se preocupavam em cozinhar ou reparar o veículo;
outros ficavam a postos, eliminando os zumbis que se aproximavam demais.
O líder deles apontava para um furo no mapa, por ser constantemente cutu-
cado com uma caneta.
Ali existia um aglomerado de centros comerciais, restaurantes e postos de
combustível; um traço de civilização em meio àquela rodovia desolada, entre
um tórrido deserto de sal e enormes montanhas de vegetação densa e obscu-
ra. Era um abrigo perfeito: o frio gélido da montanha e a falta de umidade do
deserto detinham, no mínimo temporariamente, a ameaça dos mortos-vivos.
A enorme horda de desmortos era liderada por um zumbi melhor conservado,
talvez passável por um vivo se não fosse seu aspecto ainda um tanto cadavé-
rico; como um macabro cetro real, ele carregava um fêmur parcialmente roído.
Algo em seu olhar imprimia medo e angústia nos humanos.
Para os sobreviventes, os zumbis aparentavam ficar cada vez mais próximos a
cada gota de diesel gasta. Eles sabiam que um erro, uma decisão mal tomada,
poderia arrastá-los a uma jornada mais longa fazendo o combustível acabar
antes do previsto, destruindo as já diminutas chances de sobrevivência.
Enquanto a dúvida crescia lentamente nos corações dos vivos, os meio-mor-
tos permaneciam resolutos, contentando-se em ter apenas um pensamento
nas suas mentes, a fome insaciável por cérebros.
Nada os distraía da sua busca tão verdadeira e repugnante.
Porque com certeza, em breve, o ronco do ônibus irá terminar.
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Terrorsauros
Alberto Prestes Pereira
Há trinta, vinte anos atrás, todo mundo achava que eles haviam sido extermi-
nados, extintos. Talvez o fato de agora ser impossível andar na rua sem correr
o risco de ser devorado, esmagado ou despedaçado por bestas escamosas
seja algo que leve a uma pequena reconsideração.
O ar úmido e estagnado e os insetos enormes pareciam acompanhar perfeita-
mente a atmosfera primitiva. O nosso bando de torossaurus, bestas cornutas de
nove metros, pastava e devorava alguns restos de animais. Seu trio de afiados
chifres e sua constituição bruta os faziam parecer tanques, ideia reforçada pelo ar-
senal que levavam. Dois cutelos cruzados foram pintados em suas golas ósseas.
Tínhamos acabado de sair das ruínas da cidade. A busca não foi bem sucedi-
da; parecia que seríamos obrigados a saquear e caçar em busca de comida
e suprimentos. Nossas armas e munição acabavam e, embora os cornutos
sejam onívoros oportunistas, algo que seja digerível para humanos é algo
raro. A carne dos dinos é deliciosa, mas a dificuldade em achar um e matá-lo
se resume a uma frase: “É muito empenho, Zé”.
Quanto aos animais da Era Antiga, os parasitas cretáceos se adaptaram bem
demais. Após terminar a refeição, se pode sentir todos os crustáceos de
garras afiadas fazendo “cócegas” nas suas entranhas.
Comecei a ouvir barulhos estranhos. Busquei meu binóculo em minha mochi-
la, mas algum dos meus “camaradas” provavelmente o pegou. De qualquer
jeito, a trilha segue a direção dos sons. Preparamos nossos armamentos.
Um par dos nossos dinossauros puxava um pequeno reboque, abarrotado
com granadas, algumas caseiras outras de origem militar. Alguns de nós
tínhamos um par de pequenas catapultas instaladas nas laterais das bestas,
de onde poderíamos lançar esses presentes explosivos. Outros carregavam
o que conseguiram saquear ou montar, como rifles, facões, arpões e arcos.
Entramos no local de onde o som se originava.
Uma clareira havia sido aberta em meio à relva do que fora a antiga praça. Uma
pequena fogueira bruxuleava, seu calor e luz aqueciam os troodons que se reclina-
vam calmamente, deixando os seus donos alisarem suas barrigas cheias de penas.
Estavam relaxados, mas sabiam que o temperamento daquelas astutas cria-
turas não era dos melhores. Alguns usavam armas simples, mas bem feitas,
como espingardas e facões. Aquele era um bando rival, provavelmente vindo
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de uma cidade bem melhor abastada. Todos tinham um símbolo semelhante
pintado em suas camisas. Assim que notaram nossa chegada, não pensaram
duas vezes: jogaram um pedaço de carne em nossa direção, fazendo os
troodons correrem com uma ânsia assassina. Um voleio vindo das espingar-
das foi letal para nós. Eu mesmo levei um tiro na mão vazia, que havia sido
arrancada por um cão-urso anos antes.
Os que não morreram rápido o suficiente nos chifres de nossos dinos, no fio de nossas
lâminas ou nos fragmentos das nossas granadas, conseguiram matar alguns dos nossos.
Steve, Bruno e Jhozee foram alguns dos camaradas que morreram durante o combate.
Pobre Steve. Tão jovem e feliz.
Aniquilamos todos os rivais, que não conseguiram fugir; saqueamos tudo
que eles tinham, desde os talheres e fogareiros até o colete balístico que não
ajudou muito ao dono. Os troodons foram depenados e cortados, servindo
de repasto durante a longa jornada.
Enquanto eu roia uma coxa de troodon, avistei uma sombra inconfundível
a distância. Um enorme hadrossauro, um bico-de-pato, em pé. Um rústico
banquinho acoplava-se aos ombros da besta, onde uma mulher sentada
observava o horizonte com uma luneta.
Suas roupas pareciam feitas para um clima desértico, camufladas em tons
beges. Uma balestra repousava ao seu lado. Para finalizar, ela carregava o
estandarte do bando que acabamos de aniquilar.
Eliminamos a mulher de modo silencioso e nossos ceratopsianos rasgaram
o hadrossauro com seus enormes chifres, terminando o serviço de forma
rápida e eficiente. Pegamos o que havia de útil, livramo-nos do corpo e
comemos as melhores partes do dinossauro.
Ao anoitecer, buscamos abrigo na cidade mais próxima. A paisagem era en-
tre o cinza e o verde, os restos mortais da civilização e as garras da natureza
digladiando pela dominação do panorama.
Meus camaradas encontraram o que há muito tempo foi uma enorme ga-
ragem, mas agora era uma caverna, com paredes de cimento. Discutimos
sobre o que ainda nós lembrávamos dos dias antigos, quando os zoológicos
que brincavam com a genética haviam saído um pouco de controle. Quando
ter um dinossauro fofinho, cheio de protopenas e com aparentemente duas
inofensivas garras curvas de quinze centímetros, era status...
Meu Deus, a que ponto havíamos chegado? Por que nossos pais não escuta-
ram as histórias? Tolas histórias, mas mesmo assim eram um aviso. Um aviso
para não deixar a terrível besta escamosa voltar.
26
Alexsander Rodrigo
Nasci em Florianópolis, no dia 8 de maio de 2000 e, até fazer 10 anos, mudei de cidade
diversas vezes. Morei em Curitiba (PR), em Concórdia, no oeste do estado, em Palhoça
(SC), em Cachoeirinha, na região metropolitana de Porto Alegre (RS) e, por fim, fixei-me na
região de Florianópolis. Hoje, estudo na Escola Henrique Estefano Koerich, em Palhoça, na
8ª série. Já havia frequentado o NAAH/S (SC) em 2010, depois que, em uma escola do Pa-
raná, uma professora sugeriu que eu me submetesse a uma avaliação própria para aqueles
alunos com indicativos de altas habilidades/dotação cujo resultado confirmou a suspeição
da professora. Fiquei algum tempo sob acompanhamento no NAAH/S (SC), porém, preci-
sei sair por dificuldades na conciliação de horários. Voltei este ano (2013) ao Núcleo, onde
frequento a oficina de leitura e produção textual, e espantei-me com a evolução do centro.
Almejo ser físico e astrônomo, com pós-graduação em astrofísica e trabalhar em algum
observatório astronômico brasileiro antes de obter a cidadania americana e ir para a NASA.
27
Os instrumentos estelares
Alexsander Rodrigo
Rigel saiu correndo da casa, rumando para o campo. Não suportava
mais ficar na companhia de seus primos, os gêmeos Tomas e Gustavo. Olhou
para trás para ver se alguém o seguia, e ficou feliz ao perceber que não.
Chegou ao topo de uma baixa colina, uma pequena elevação no solo.
À sua frente, ele via o cercado onde ficavam presos os cavalos da fazenda.
Para trás, apenas a casa de sítio de sua família, onde estava acontecendo
a festa junina dos Siqueira. Rigel teria ficado lá para comer mais a deliciosa
paçoca ou a cocada, mas seus primos só o incomodavam. Ele sabia que não
tinha muito tempo ali fora, já que seus pais apareceriam logo para ver por
que ele saíra da casa.
Olhou para direita, ao oeste, e viu apenas o campo se estendendo por
quilômetros até ser atravessado por uma cerca de arame farpado que fazia a
divisa entre a propriedade de seu avô Astério e o acostamento da estrada.
Para esquerda, mais campo, até chegar num pedaço de mata que
ficava no sopé de uma das únicas montanhas por ali. No campo perto das
árvores, podia se ver os dois cachorros de seu avô brincando.
Rigel se deitou na grama úmida e fez a coisa que mais gostava de
fazer: olhou para as estrelas. O horário: 18h50. O mês: junho. Bem acima
de sua cabeça, ele via a Constelação de Virgem e sua estrela mais brilhante,
Spica, com seu tom azulado. Ao leste de Spica, via-se um astro mais amare-
lado, muito brilhante: Saturno. Movendo a cabeça para a esquerda, o garoto
apreciava o inconfundível brilho alaranjado de Antares, a estrela mais brilhante
da Constelação de Escorpião. Mais ainda ao leste, Sagitário. Mas, naquela
noite, o centauro do zodíaco parecia diferente. Rigel não sabia dizer no quê,
mas faltava algo naquela Constelação. Virando totalmente sua cabeça para o
oeste, o garoto via Canopus, a segunda estrela mais brilhante de todo céu e
a mais brilhante da Constelação de Quilha. Essa Constelação, junto com a de
Popa e a de Vela, formava o desenho do navio Argo, que, segundo a mitolo-
gia grega, foi usado por Jasão e pelos argonautas para diversas aventuras.
Rigel então se sentou e admirou o Cruzeiro do Sul, com sua brilhante
estrela Acrux. Porém, duas estrelas próximas chamavam mais a atenção do
garoto. As chamadas Guardiãs do Cruzeiro: Rigil Kentaurus e Hadar. Elas
representavam as patas dianteiras da Constelação de Centauro.
28
Girando o corpo e olhando para o norte, o garoto viu Arcturus, a alpha
(alpha quase sempre significa a estrela mais brilhante de uma Constelação)
de Boieiro. À sua esquerda, Regulus, a alpha de Leão. Para a direita, um
pouco mais acima, o Ofiúco. Abaixo da Serpente de Ofiúco, Hércules. Mas
Rigel percebeu que faltava algo entre as estrelas de Hércules e as de Boieiro:
a Coroa Boreal. Suas estrelas simplesmente pareciam não estar lá. O garoto,
intrigado, supôs que fosse simplesmente a poluição visual ou alguma nuvem
que estivesse entre as estrelas e ele. Além do mais, os astros da Coroa não
tinham um brilho muito forte mesmo.
Rigel se deitou novamente e fez a segunda coisa que mais gostava
de fazer: falou com as estrelas. Pode parecer loucura, mas ele amava fazer
isso! Sempre foi muito solitário, sem muitos amigos por perto. Então, quando
ficava sozinho perante o céu, gostava de pensar que não estava falando
consigo mesmo, ou falando sozinho. Estava falando com as maiores coisas
do Universo; o que era bem melhor do que falar com seus primos chatos.
– Quando aqueles dois vão se tocar e parar de me incomodar? Já não
suporto olhar para a cara daqueles pirralhos. Por que tinham que convidar
a tia Silvia para a festa? Além do mais, eles acabaram com todo o pé-de-
moleque. Odeio essa chateação.
Então, vindo sabe-se lá de onde, uma voz ecoou em seus ouvidos
após um grande suspiro:
– Garanto que todos nós aqui concordamos com você, garoto.
Rigel logo se pôs de pé e olhou em volta.
– Quem disse isso? Silêncio. A pessoa que falara soltou um “Ah!” de
surpresa. Aparentemente, não havia ninguém por perto.
– Escorpião, acho que o garoto nos ouviu.
– Disse a voz. Sua fala fez ecoarem outros tantos “Ahs!” de surpresa.
– Como assim nos ouviu?
– Disse uma voz diferente.
– Lá embaixo. Eu falei e ele me ouviu.
Por mais um momento, silêncio. Rigel repetiu:
– Quem disse isso?
Realmente não havia ninguém por perto para dizer aquilo. Ele olhou para a
casa da fazenda, achando que alguém lhe chamara, mas ninguém estava lá.
Além disso, se alguém da casa tivesse que falar com ele teria de gritar, e ele
não ouviu gritos.
– Hércules, você sabe o que aconteceria se alguém nos ouvisse...
29
Sabe o impacto disso.
– Falou a segunda voz.
– Sim, Escorpião, eu sei. Não estou dizendo em vão. Acho que, se ele
nos ouviu, pode ajudar Orion e o Sagitário.
Mais silêncio. Quem quer que fosse a pessoa que falara, estava analisando a
situação. Por fim, disse:
– Ei, garoto! Você, aí embaixo.
A voz parecia vir do céu. Rigel olhava ao redor, assustado.
– Quem está aí? Quem está falando?
A pessoa que falara, o tal Escorpião, parecia estar escolhendo com cuidado as palavras.
– Olhe, garoto, eu sei que é loucura, mas estamos aqui em cima. – O
garoto olhou para cima, mas só viu as estrelas no céu.
– Sim, estamos aqui. Eu sei que parece loucura. – Repetiu a voz. –
Nós somos as constelações.
Rigel ficou tonto, embora não soubesse se isso aconteceu por verificar que
a voz realmente vinha do céu ou pelo que a voz dissera. Isso era absurdo! Uma
constelação falando? Falando com ele? Como Escorpião dissera, era loucura.
Ele se sentou, sem tirar os olhos das estrelas. Por algum motivo, ele
mantinha os olhos fixos em Antares, a alpha de Escorpião.
– U-uma co-constelação? – O garoto começou a rir, embora não achasse
graça nenhuma. De repente se levantou e começou a gritar, voltando a olhar
ao redor. – Tomas! Gustavo! Apareçam, eu sei que vocês estão aí.
A primeira voz, aquela que concordara com Rigel e falara com ele
primeiro, deu uma risada e disse:
– Escute aqui, garoto. Não somos seus primos. Queremos sua ajuda.
Mais uma vez, ele cambaleou e se sentou. De certa forma, a voz de
Hércules vinha do céu, ao Norte.
O garoto olhou para cima e voltou a falar com as estrelas, como se ele
nunca as tivesse ouvido:
– Que absurdo! Estou ficando louco? Vozes na minha cabeça! Vozes
de estrelas! Estou enlouquecendo!
– Não, não está. – Escorpião voltou a falar, assustando Rigel. – Nós
somos as constelações. Prazer, meu nome é Escorpião. Aquele é o meu
amigo, Hércules. Mas você já nos conhece. Conhece muito bem todos nós
aqui em cima, e, como você já ouviu, precisamos de sua ajuda.
Achando que fosse apenas um sonho (ou pesadelo), Rigel respondeu,
tentando manter a voz firme e sem gaguejar:
30
– Diga.
– Bem, nós esperamos por séculos alguém que fosse capaz de nos
ouvir. E aí está você. A última pessoa a nos ouvir foi um cientista, astrônomo,
mas não lembro o nome dele. Ele viveu lá por 1750... Ártemis! Lembra o
nome dele? – Então, uma voz feminina e suave falou, vindo diretamente
de cima de sua cabeça. Aparentemente, era a Constelação de Virgem, que
representava a deusa grega Ártemis:
– Se não me engano, era Edmundo Halley, algo assim...
– Edmond Halley? – Perguntou Rigel, pasmo. – O astrônomo que
descobriu que os cometas passam por aqui de tempos em tempos? O cara
do cometa Halley?
– Exatamente esse. Não acredito que o cretino disse que foi ele que
descobriu isso sobre os cometas! Fomos nós quem lhe contamos. – Disse,
indignado, Escorpião. Rigel ainda não acreditava no que ouvia. – Mas, como
eu ia dizendo, precisamos da ajuda de alguém aí da Terra para recuperar
algumas... coisas.
O garoto começou a cogitar na possibilidade de estar ouvindo extrater-
restres. Falar com estrelas ainda era uma loucura muito grande.
– Como assim, recuperar algo? Que coisas são essas?
Nesse momento, Rigel ouviu uma voz masculina um pouco mais grave dizendo:
– Bem, observador como você é, garoto, deve ter percebido que estou
sem meu arco. Quero-o de volta.
A voz veio do leste, mas não do céu muito alto.
– Quem disse isso?
– Eu sou Sagitário. Creio que ouvi Hércules dizer algo sobre me ajudar.
Bem, aí está o de que preciso: meu arco.
– O que houve com seu arco? Como posso recuperá-lo?
Hércules, Escorpião e Sagitário murmuraram em uníssono, como a se
queixarem da ignorância do garoto.
– O arco de nosso amigo caiu na Terra. E não podemos pegá-lo. Então,
precisamos de alguém daí para nos ajudar. – Esclareceu Ártemis. Rigel pen-
sou por um instante no absurdo que ouvira. Como algo das estrelas poderia
cair na Terra? Como se lesse os pensamentos dele, Hércules disse:
– Você deve estar se perguntando “como algo das estrelas poderia
cair na Terra?”. Bem, não sabemos como, mas sabemos que acontece. Já
houve uma vez que uma constelação inteira caiu aí. Era a Constelação de
Ares, o deus grego da guerra. Mas ele era, digamos, muito chato. Então, com
31
uma ajudinha de Ártemis, ele caiu acidentalmente na Terra. Foi na época da
Segunda Guerra Mundial. Caiu lá pela Alemanha.
O garoto imaginou que, talvez, tenha sido algum conselheiro de Hitler.
– Mas, voltando ao assunto, você me ouviu falando: Sagitário e Orion
precisam de sua ajuda. No caso de Orion, o que caiu foi sua espada e a fivela
de seu cinturão. O garoto pensou mais um pouco e, de repente, se deu conta
do que acabara de ouvir.
– Como assim uma estrela caiu na Terra. Como é possível? Foi real-
mente uma estrela que caiu aqui?
– Claro que não, garoto. Nossos objetos, quando caem aí, se transfor-
mam em objetos comuns para vocês. O arco do Sagitário se parece com um
arco, e não com um conjunto de bolas de hidrogênio e hélio incandescentes
e gigantes. A mesma coisa com os pertences de Orion.
Rigel soltou um “ah” de alívio ao saber daquilo.
– Não se esqueça das nossas coroas... – Disse Sagitário.
– Pois é... Eu já ia mencioná-las. Novamente, três constelações caíram aí;
de uma vez só, por coincidência. A Coroa Boreal, a Coroa Austral e o Escudo.
O menino então entendeu o motivo de não ter visto a Coroa Boreal,
que ficava entre Hércules e o Boieiro. Não era a poluição visual nem o brilho
fraco das estrelas. Era a queda da Constelação. Fazia todo sentido, era per-
feitamente racional.
Por um longo período, novamente o silêncio. Rigel começou a achar
que imaginara toda aquela conversa, que cochilara na grama e sonhara com
vozes de estrelas. Estava terrivelmente enganado.
Ele ouviu uma voz distante, ao norte. Não vinha da casa de seu avô,
mas do céu; e não era a voz de Hércules, parecia feminina, embora fosse
grave, que chamou Escorpião.
– Sim, Ursa? – Respondeu o aracnídeo.
A voz estava muito distante, e o que ela falava não era compreensível.
Rigel esperou por um momento ouvir a voz do Escorpião traduzindo o que a
Ursa dissera.
Quando falou, a Constelação de Antares parecia surpresa:
– Bem, aparentemente, a Ursa Maior achou alguém que
também consegue nos ouvir. Mais uma vez, todas as constelações ao seu
redor exclamaram surpresas.
– Duas pessoas na mesma noite. Quanta coincidên... – Começou Hér-
cules, mas foi interrompido por uma voz que parecia um rugido.
32
– Achei mais um, Escorpião. Mais um. Seis instrumentos estelares ca-
íram de uma vez só, ontem. Hoje, achamos três pessoas que nos ouvem.
Pelas jubas dos leões, o que está acontecendo?
– Mais um que nos ouve? Rigel, este é Leão, você já o conhece. –
Apresentou-o, impressionado, Escorpião.
Rigel nem percebeu o fato de a Constelação ter dito seu nome sem
o garoto ter se apresentado. Ao invés disso, perguntou-se: por que todas as
constelações, exceto Escorpião, Sagitário e Hércules, estavam caladas se
podiam falar?
– Então, garoto, vai nos ajudar? – Perguntou, impaciente, Sagitário.
Rigel não sabia bem o que responder, mas o fez com uma pergunta:
– Onde caíram esses artefatos?
– A Espada de Orion e Alnilan, a parte de seu cinturão e o Escudo
caíram no oeste da Austrália. O Arco de Sagitário, na África do Sul. A Coroa
Austral e a Boreal, no Quênia.
Ele ficou de queixo caído. Como chegaria nesses lugares? Mais uma
vez, as constelações pareceram ler seus pensamentos:
– Ah, não se preocupe com isso. Arranjaremos transporte para vocês.
– ”Vocês”? Eu e quem mais? – Mas não é óbvio? Você e as outras
duas pessoas que podem nos ouvir, se elas aceitarem.
Rigel continuou pensando se aceitava ou não a missão das estrelas.
– Mas, como eu posso viajar assim? Vou deixar todos aqui sozinhos?
Meus pais vão notar que eu desapareci. Vou faltar à escola? Talvez achem
que fui sequestrado!
– Também não se preocupe com isso. Talvez conheça nosso amigo,
o Camaleão. Ele irá para a Terra e se disfarçará de você. Viverá sua vida
enquanto estiver fora.
– Vocês podem viver aqui embaixo?
– Sim, claro. Mas não vivemos porque nós odiam... Quero dizer, não
gostamos muito de viver aí. Preferimos ser livres e viver no céu, podendo
assistir a tudo que acontece. Além disso, para ser mais sincero, vocês, huma-
nos, destruíram o planeta e, por isso, preferimos nos manter a distância.
Essa última razão para não se viver na Terra deixou Rigel com uma
ponta de culpa... Tratou, no entanto, de esquecer disso.
– E as outras pessoas que ouvem vocês? Como vocês vão encobrir o desapa-
recimento delas? Que eu saiba, existe apenas uma Constelação de Camaleão.
O Escorpião parou um pouco e pensou... Não havia considerado essa questão.
33
– Acho que serão dados como desaparecidos por alguns dias... Toma-
ra que ninguém sinta muito a falta deles.
Rigel sorriu e se esqueceu, por um momento, de toda a chateação da
festa com seus primos, esqueceu de toda a maluquice que havia em falar
com as estrelas e de aceitar uma missão delas, esqueceu de que Edmond
Halley foi ajudado pelas mesmas estrelas, esqueceu de tudo que ocorrera de
estranho naquele dia...
Pensou apenas que estaria ajudando as maiores coisas do Universo a
recuperar algo que foi perdido nos domínios humanos.
34
Lucas Betega
Meu nome é Lucas Betega, tenho 14 anos e resido no município de São José (SC). Sou
aluno do 9º ano do Colégio Dom Jaime. Gosto de futebol (sou torcedor do Internacional
– RS), pratico natação e me considero especialista em histórias de batalhas medievais e
guerras, especialmente a 2ª Guerra Mundial. Ainda durante a alfabetização, interessei-me
pela leitura de obras com conteúdo científico, como história da ciência e história da filoso-
fia. Atualmente, dedico-me à leitura de clássicos da literatura universal e à participação em
olimpíadas científicas (de matemática, física e astronomia). Falo inglês e estudo francês no
momento. Devido ao desempenho escolar excepcional desde a pré-escola e, ainda, ao fato
de haver recebido duas medalhas em olimpíadas estaduais de matemática (bronze em 2011
e prata em 2012), da minha participação na final da Olimpíada Brasileira de Matemática
(2011) e da premiação por redação destaque (2010), fui acolhido pelos profissionais do
NAAH/S em 2012. Na oficina de matemática, eu me preparo para os desafios das olimpía-
das científicas; na oficina de leitura e produção textual, tenho a oportunidade de aperfeiçoar
as habilidades de ler e escrever bem, e, também, de aprender as ferramentas indispen-
sáveis para usar o conhecimento já adquirido na produção de obras literárias e científicas.
35
Uma passagem da vida de Lúpus
Lucas Betega
Era um período marcante em Roma, todos sabiam disso, de rameiras a
mercadores, soldados e nobres. Todo o ar de Roma mostrava que qual-
quer ação por parte do Senado ou dos cônsules mudaria o curso de uma
república inteira.
Lúpus andava por uma rua aberta, muitas pessoas circulavam por ela, fazen-
do uma massa de gente comparável ao que Roma uma vez já fora. Torceu o
nariz diante do mau cheiro – insuportável –, que, reparou, vinha dos esgotos
que estavam para ser reparados havia meses, quando o cônsul Áquila Cipião
prometeu 10.000 moedas de ouro para cuidarem da saúde do povo. “Bas-
tardo mentiroso!”, pensou Lúpus.
Logo a sua frente, cinco arruaceiros, provavelmente felizes por terem ganhado
o seu pagamento por algum trabalho sujo, que, algumas horas depois, seria
gasto em um bordel. Não queria confusões, portanto, quase num movimento
involuntário, pôs o capuz a cobrir sua cabeça, mas era tarde demais, um
capanga do grupo já o havia avistado e, imediatamente, questionou Lúpus:
– Por que o capuz? Se escondendo de alguém? – Lúpus sentiu o ar de
superioridade e diversão do homem.
– Não, estou apenas indo aos mercadores para comprar algumas especia-
rias – tentando controlar sua raiva. Ele estava vermelho, mas como sabia
que o capuz escondia a face, não hesitou em praguejá-los apenas com o
movimento dos lábios.
– Então o tire, imbecil! – Disse nervosamente aquele que parecia ser o “líder”
dos arruaceiros.
– Não!
Lúpus não aguentou sua fúria e desembainhou sua espada Gladius (a espada
comumente usada por legionários romanos). Em uma fração de segundo,
golpeou verticalmente o líder do bando, cortando-o do peito até o pescoço.
Surpresos, os quatro restantes deram um passo para trás involuntariamente,
mas logo puxaram suas adagas em nada comparáveis à espada Gladius,
uma espada com gume de primeira qualidade, principalmente quando fabri-
cada para um centurião veterano como Lúpus. Quando se olharam, notaram
que de alguma forma tinham hesitado e estavam em uma vantagem de 4
para 1, mas a espera terminou, e lançaram um ataque ao homem sozinho.
36
O treinado soldado atacou um segundo homem e se abaixou, dando uma
rasteira no terceiro e, com o movimento, conseguiu escapar das duas adagas
que o miravam acima do peito, que, se acertasse, seria golpe fatal. Restando
apenas dois, jogou a espada de modo a acertar o quarto homem na barriga
e, depois que viu que ele estava com o sangue jorrando e que certamente
morreria, acertou um soco no maxilar do último, fazendo-o morder a língua
e gritar de dor.
Com parte dos homens mortos, pegou novamente a sua Gladius e executou
os dois restantes.
Lúpus se ajoelhou ofegante por alguns segundos, como se estivesse pen-
sando se devia ter controlado sua raiva, mas logo se levantou e, não mos-
trando nenhuma dose de vergonha, percebeu que os olhares da cidade se
voltavam a ele, um sujeito solitário e cheio de surpresas.
Pôs-se a se esconder novamente no volumoso capuz e partiu para casa.
...
Livre dos problemas, ele seguiu para o outro lado da cidade, onde estava seu
lar, lugar escolhido principalmente pela ausência de incômodos de patrulhas
e outras exigências que, por ordem do Senado, limitava a vida dos habitantes
daquela pequena região chamada de Domum Barbarorum que, estranha-
mente, significava Lar dos Bárbaros, e a meta do Senado e dos cônsules
naquela época medíocre era tornar Roma uma cidade habitada apenas por
romanos puros. Sem gauleses, sem germânicos, sem comerciantes estran-
geiros, apenas pessoas com o chamado “sangue romano”.
Depois de uma longa caminhada pelo bairro, Lúpus avistou sua casa monó-
tona ao lado de muitas outras casas idênticas à sua. Ao chegar, deixou de
lado seu ar solitário e concentrado, fazendo com que seus músculos e sua
face agradecessem por agora estarem relaxados graças à alegria de cumpri-
mentar seus vizinhos e companheiros.
– Pensei que você não voltava mais, Lúpus! Por onde andou, meu caro?
– Falou com entusiasmo o seu melhor amigo, Marcus, com quem havia servido
em várias batalhas contra tribos germânicas e gaulesas há cinco anos.
– Você sabe... Viajando para o norte para ajudar nos campos, assim
pude trazer algumas míseras moedas, que não sei como saíram da mão
daquele tirano maldito.
– Entendo...
– Espere aí em frente, Marcus, preciso ver meus filhos e minha espo-
sa! Juro que se ficasse mais um pouco naquele lugar terrível acabaria me
37
esquecendo de vocês – não conseguiram segurar o sorriso, ambos sabiam
que Lúpus estava mentindo.
– Sua ordem é meu dever, centurião.
– Enquanto cumprimento-os, providencie vinho para mais tarde nos
reunirmos e recordarmos nossas boas histórias.
Lúpus subiu as escadas com calma, não conseguia se mover mais
rápido, pelo menos naquele dia, o massacre ao bando de arruaceiros esgo-
tou suas energias. Vencido os degraus, que mais pareciam os Alpes, abriu a
porta lentamente e caminhou de forma que as tábuas não fizessem barulho.
Entrou e viu sua esposa preparando a refeição e seus dois filhos brincando
com duas espadas de madeira.
– Cheguei, querida – disse calmamente, com o intuito de fazer uma
surpresa à mulher, que estava de costas para ele.
A mulher se virou e deixou a faca que antes segurava cair no chão.
Lúpus foi até ela e abraçou-a por longo tempo... Nesse momento, os dois
meninos pararam de brandir as espadas e ficaram parados, observando o
longo abraço dos pais.
Quando o pai finalmente deixou a mulher respirar, olhou para os dois
filhos, um com 14 anos e o outro com 10. Os filhos hesitaram e não abra-
çaram o pai, então, Lúpus tomou a iniciativa.
– Meus filhos, apenas seis meses que não os vejo e vocês já mudaram tanto!
Os filhos hesitaram novamente e permaneceram quietos, mas Lúpus continuou.
– Por favor, deixem de bobagem; homens também têm sentimentos!
– o pai deixou-os mais à vontade e conseguiu o abraço pelo qual ansiava.
Lúpus olhou para as espadas de madeira e admirou a perfeição com
que foram feitas, e não deixou de perguntar:
– Quem fez as espadas?
– Foi o Marcus, pai. Ele nos viu brincar com galhos de madeira e achou
que não era apropriado, então, ele fez essas para nós. – Lúpus soltou um
sorriso, já sabia a resposta... Marcus sempre os bajulava.
As crianças sorriram e correram escadaria abaixo.
“Crianças... Apenas duas reúnem a alegria de milhares de adultos juntos”,
pensou Lúpus, reparando que essa alegria era contagiosa, sentindo suas
forças sendo renovadas.
– Já pegou o vinho, Marcus? – Exclamou ao avistar o vinho sobre a
mesa, e completou – parece que você não perdeu a disciplina.
Os dois companheiros fizeram do bairro calmo um lugar cheio de gar-
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galhadas que ecoavam nas ruas estreitas do Domum Barbarorum. As donas
de casa que antes se ocupavam com a louça e as roupas, agora estavam
observando e se questionando sobre o motivo para tantos risos.
– Sirva-me! Quero relembrar o gosto do vinho romano! Nesses seis
meses só pude tomar vinhos bárbaros. Acredite, são capazes de derrubar o
cavalo de um imperador!
Imediatamente, Marcus pôs-se a derramar o vinho na taça de ouro que
Lúpus, provavelmente, ganhara em reconhecimento ao ofício de centurião.
– Conte-me, Lúpus, o que você fez nesses seis meses?
– Ora, você sabe, trabalhei em colheitas e afins, trabalho de soldado
que virou camponês.
– Não anda fazendo “aquelas coisas”... Não é?
O ambiente ficou quieto e tenso no momento, as donas de casa esbu-
galhavam os olhos, queriam ouvir mais sobre o que são “aquelas coisas” que
Marcus tinha mencionado.
Depois de uma pausa longa em que os dois amigos se entreolharam,
Lúpus finalmente respondeu a enxerida pergunta.
– Não.
Apesar da resposta, ambos sabiam a verdade.
– Não fale mais desse assunto na frente das minhas crianças e nem
da minha esposa, entendeu? – “Sussurrou” Lúpus, todavia, o tal sussurro
pôde ser ouvido pelas pessoas da rua, uma vez que não poupou severidade
na advertência. – Agora venha comigo, vamos continuar esse assunto, mas
em outro lugar. Crianças! Podem ir até aquela casa ao lado dos estábulos,
lá mora um dos meus amigos. Diga a ele que o centurião Lúpus pediu para
que cuidasse de vocês enquanto brincam. Diga também para sua mãe que
pode ficar tranquila, porque voltarei a tempo de jantar.
Depois de ver as crianças correrem para a casa do seu amigo e as mulhe-
res voltarem à rotina diária, Lúpus e Marcus caminharam por um beco escuro.
– Por Júpiter, esqueci que Roma é cheia de caminhos sem fim.
– Não mude de assunto, Lúpus. Você não anda matando em nome do
Senado, certo?
– Pelos deuses, Marcus! Você sabe que não aguento. Como você
espera que um homem pare de fazer aquilo a que se dedicou a vida inteira?
Pense bem!
– Sabia que você não aguentaria muito tempo... Afinal, que tipo de
trabalho anda fazendo? Muito sério?
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– Missões para o cônsul.
– Mas...
Lúpus cortou Marcus adivinhando o pensamento do amigo.
– Sei que o povo odeia Áquila, mas, pelo menos, sustento minha família.
– Você esqueceu sua honra? Antes lutava por Roma, agora luta pen-
sando que está nos velhos tempos, matando um bárbaro e depois crucifican-
do a família dele. Ou você já se esqueceu do que aconteceu em Massilia?
Qual era mesmo o nome do bárbaro?
– Por Juno! Cale a boca, Marcus! Não me lembre daquele momento
infernal, aquilo foi um acidente.
– Em qual civilização matar uma família é um acidente?
Lúpus não achou uma resposta para a pergunta de Marcus e não falou
nada até que o amigo continuasse.
– Dane-se o passado, agora me fale... O que você fez para Áquila?
– Os cabelos loiros de Marcus quase nem brilhavam na escuridão do beco
estreito, enquanto Lúpus parecia nem existir, já que tinha cabelos negros
como pele de lobo.
– Áquila está subornando todos os senadores, assim, todas as suas
propostas são aceitas no Senado, por isso ele quer que eu extermine aquele
que atrapalhar seus planos.
– Mas o que ele quer com isso tudo?
– Ele tem muitos objetivos, ele não é um homem fácil de lidar, menos
ainda pra ser seu subordinado. Aliás, toda Roma é subordinada a ele e às
suas rebeldias.
– Quais?
– Ele quer destruir Roma!
– O quê? Destruir sua própria terra? Nos meus 45 anos de vida não
havia ainda ouvido tanta insanidade.
– A casa dos Cipiões sempre foi uma casa sangrenta. A lenda diz que
algum dia, dos inúmeros dias em que o mundo conhecido é regrado por
Roma, a família dos Cipiões se revoltou contra o seu líder.
– Mas por quê? E isso foi há muito tempo.
– O líder dessa família foi um dos maiores conquistadores romanos,
ele dominou todos os britânicos, gauleses e germânicos que naquela época
se opuseram à máquina de guerra romana. O povo o idolatrava, mas ele
fez uma coisa que nenhum cidadão esperava, tentou acabar com as outras
famílias e se declarar único comandante do exército e do povo romano. Isso
40
mesmo, nenhum general, nenhum senador, ele queria se autodenominar um
deus e se sentar ao lado de todos os outros.
– Insano...
– Esse conquistador já havia ensinado aos seus filhos e parentes a não
se casarem com membros de outras famílias, apenas com membros da corte
de outros povos, ele era um cara esperto, um prodígio militar e diplomata.
Mas parece que sua família não lhe deu ouvidos e seus membros se torna-
ram amantes de cidadãos romanos. Quando chegou o dia da grande batalha
entre ele e as outras casas, todos os seus filhos, sobrinhos e sobrinhas, o
traíram e o mataram. Apenas um não o matou, seu filho mais novo, o único
menor de idade, ou seja, ainda não tinha idade para participar da traição e do
massacre. Mas o seu pai já o havia ensinado bem como um membro leal se
comporta e, consequentemente, o filho cresceu com raiva de Roma.
Ele cresceu, virou o líder da família e preparou um dos maiores exér-
citos já reunido, cerca de 40 legiões leais a ele. Mas o ódio cegou o inexpe-
riente comandante e, diferente de seu pai, não ligou para a diplomacia. E as
famílias inimigas a ele tinham a seu comando cerca de 25 legiões reunidas,
considerando que todas as legiões tinham o mesmo treinamento e estraté-
gias, a desvantagem era grande, mas eles tinham muitos aliados que odia-
vam o filho do conquistador, afinal, ele nunca ligou para outros povos. E então
vieram egípcias, gregas e até mesmo bárbaras para se reunir às casas que
ainda resistiam contra a ameaça de unificação. Então, agora, a desvantagem
estava no lado do pequeno insano, que perdeu a batalha duramente. Isso
foi o que sobrou da história. O resto foi queimado dos livros e historiadores
foram mortos para não criarem um mártir. Pessoas como esse pai e seu filho
insanos são problemas para uma nação cercada por outras que cobiçam
nossa riqueza.
– E qual a relação de Áquila com isso?
– Meu querido, Marcus, ainda não reparou no ponto principal da história?
Marcus iria concordar, mas Lúpus continuou.
– Como Áquila é uma pessoa alfabetizada e que passa horas nas
enormes bibliotecas que pertencem à sua família desde jovem, ele admirou a
audácia dos insanos e seu objetivo, desde então, foi honrar a memória deles.
– Como você sabe de todas essas histórias, Lúpus?
– Muitos tribunos eram alfabetizados na época da legião e como era
amigo deles, pois era o principal centurião, eu ceava com eles, que, normal-
mente, contavam histórias e segredos como esse e, no final, terminavam
41
com um legítimo conto romano, daqueles em que apenas uma legião resiste
a impetuosas ondas de ataques bárbaros. Estar no lado de tais pessoas me
fez pensar mais alto.
– Percebo, nunca tive tais oportunidades, mas ainda tenho um desejo
na minha vida.
– Diga-me, Marcus.
– Quero voltar para a legião.
– Todos nós queremos isso, não conseguimos esconder. Aposto que
se tornará um dia centurião, e eu um tribuno.
– Que Marte seja justo comigo, é bom receber alguns benefícios em
troca de trabalho duro.
E os dois amigos gargalhavam incessantemente no meio do beco,
fazendo seus risos ecoarem pelas servidões.
...
– Próximo! – A voz ressoou pela enorme sala.
A sala mais parecia um bordel, paredes úmidas como o inverno acima
da Península Itálica, telhas desabavam e vez ou outra os mercadores que se
estabeleceram na rua pulavam e gritavam de susto quando uma delas caía
ao seu lado. Já haviam enviado cartas ao Senado e à Áquila, mas como já
era de esperar, ninguém lhes deu atenção. Apesar da aparência externa, o
interior da casa era digno do lar de uma família influente em Roma, como
os Cipiões. “Que forma estranha de tratar quem o serve”, Lúpus pensou se
referindo a Áquila, mostrou um sorriso, que Marcus notou, mas não deu ne-
nhuma importância e continuou caminhando para a mesa de recrutamento.
Quando chegou à ponta da mesa, se encontrou com três tribunos ve-
teranos, a julgar pelas condecorações que tinham. O tribuno do meio, o mais
pomposo, não mostrava interesse no que exercia. O tribuno fez um sinal para
Lúpus aguardar a fim de que seu amigo fosse interrogado primeiro.
– Nome?
– Marcus.
– Alguma vez já serviu?
– Sim, senhor.
– Qual legião?
– Legio III Gallica.
– Parece que temos um gaulês aqui. Olhem soldados! Até os cabelos
loiros. – Consequentemente, todos os soldados gargalharam, apenas para
não deixar seu tribuno irritado no caso de ninguém rir de sua piada. – Diga-
42
me, Marcus, de que vila bárbara você vem?
– Não sou gaulês, sou um cidadão romano. Fui um decano do centu-
rião Lúpus na retomada de Massilia. Se você fizer jus a sua petulância, cer-
tamente saberá que o centurião Lúpus e seus decanos tomaram, sozinhos, a
praça principal da cidade, imagine! 100 soldados lutando contra os últimos
700 bárbaros. Foi um massacre, para os dois lados, perdemos sete de nos-
sos decanos e 55 homens da tropa inteira. Mas do lado deles, se foram 700
homens. Foi uma bela luta! – O tribuno detectou um toque de petulância,
mas também de entusiasmo na voz de Marcus.
– Guardas! – Gritou com os olhos ardendo em chamas como no verão
das províncias romanas no Egito.
No mesmo momento, 10 soldados e seu decano circularam Marcus.
– Eu sou Lúpus.
Imediatamente, todos os legionários se viraram contra a figura robusta,
mas de aparência solitária. Todos pareceram pasmos com a notícia. Depois
da tomada de Massilia, Lúpus e seus soldados ficaram gravados nas legiões
que os sucederam, até recrutas já conheciam seu nome.
– Peço desculpa, centurião. Foi apenas um mal-entendido entre dois
guerreiros. Você sabe... Se em um acampamento não há brigas, não é de
verdadeiros soldados – o alto comandante se referia a Lúpus como se fosse
de patente inferior a dele.
– Claro, tribuno.
– Enfim... Vocês querem voltar para a legião? – Perguntou o tribuno,
mesmo já sabendo a resposta. Pessoas não iriam para um local de recruta-
mento com outro objetivo não fosse o de ser recrutado.
– Queremos! O passado não foi flores, obviamente... Mas queremos
sentir a emoção de achar que estamos diante das flores.
O tribuno olhou torto para Lúpus, não entendendo a frase. Mas logo
organizou seus pensamentos e soltou um sorriso.
Em meio aos rabiscos e papéis, o pomposo capitão finalmente olhou
para as duas figuras à sua frente.
– Aparentemente, está tudo certo. Vocês estão recrutados. Daqui a um
mês compareçam na praça principal da cidade para receberem o equipamento.
Os dois homens sorriram e saíram do pútrido local. Novamente, como
Lúpus percebeu uma semana atrás, quando havia retornado para Roma, a
cidade estava diferente daquela que vivia quando criança.
– 30 anos atrás, Roma era liderada pelas massas populares que eram
43
apenas representadas por senadores e apoiada diante da guerra por um
verdadeiro romano, não apenas um tirano como Áquila. A República anterior-
mente era “governada” por Nero, mas ele era também um tirano!? – Disse
Lúpus, em meio aos seus pensamentos... E pelos deuses, ele tinha muitos.
Marcus pareceu não ter ouvido Lúpus, pois, estranhamente, ele tam-
bém estava perdido em seus pensamentos, tentando organizá-los de forma
que eles fizessem sentido. Ele não era do tipo de pensar muito, ele tinha
lindos cabelos loiros que brilhavam no escuro e olhos da cor do céu, mas
o seu corpo não fazia jus aos cabelos e olhos. Seu corpo era preenchido
por inúmeros cortes e cicatrizes ganhas em batalha, duas foram apenas na
heroica tomada de Massilia, as duas foram no peito, formando uma cruz, a
qual sempre o lembrava de não ter piedade do inimigo e, também, a cruz
remetia-o a um clima melancólico, provavelmente causado por um trauma
que teve em sua longa jornada pela Gália.
Diferente de Marcus, Lúpus não tinha nenhuma cicatriz. Era um solda-
do mais disciplinado, enquanto o amigo adotava uma postura mais selvagem
e bárbara. Às vezes, os próprios gauleses estranhavam seu inimigo, uma vez
que esse em muito se parecia com eles.
– Concorda? – Perguntou para Marcus, na tentativa de chamar a sua atenção.
Marcus parou de pensar e respondeu Lúpus, de forma que o seu
centurião ficou irritado, pensando que ele o ignorou de propósito, pois ele
respondeu depois com naturalidade extrema.
– Ahhh... Sim! Mas ele era um tirano esperto, não que Áquila não fos-
se. A única diferença é que ele sabia como agradar quem o seguia, porque
aquele que o seguia nunca o traía.
– Era nisso que eu estava pensando.
– É estranho que nós...
– Vamos lutar por quem desprezamos – completou Lúpus. A sintoni-
zação entre eles era tremenda.
– Lutamos anos por Nero, e agora o desprezamos.
– E agora já desprezamos Áquila... Que será de nós? – Mesmo não
sendo uma piada, gargalharam naquelas ruas movimentadas (diferente do
Domum Barbarorum, o bairro em que agora vivia). Mas ninguém os notou,
ocupados que estavam em prestar atenção em dois legionários que, na opi-
nião deles, não eram nada, embora muitas vezes os surpreendessem.
...
Um mês depois.
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O Domum Barbarorum estava com muita neblina, ressaltando ainda mais o
clima tenso e assustador. Qualquer uma das partes mais nobres da cidade
notaria isso, aliás, marcaria o local na lista negra de lugares indesejados.
Por trás da neblina, no entanto, era possível notar olhos calmos e acos-
tumados com aquele clima... Era difícil imaginar o que transformara aquelas
pessoas nesse jeito. Naquela hora da manhã já havia mulheres trabalhando em
suas atividades diárias, com suas manchas roxas de tapas e socos tomados do
“amado” esposo que, normalmente, jazia bêbado na cozinha, mal conseguindo
levantar a mão para a próxima dose de cevada ou do nobre vinho romano.
Lúpus abriu os olhos e rapidamente os fechou novamente. O sol entra-
va diretamente pela janela em direção ao seu rosto. Espreguiçou-se e final-
mente se deitou com a barriga para cima de forma a notar que sua esposa
ainda dormia ao seu lado com um sorriso no rosto... “Que pena que hoje será
o último dia desse sorriso”, pensou Lúpus. No fundo, ele nem se lembrava do
que havia acontecido naquela noite, mas o sorriso da sua esposa Maria já era
o bastante para comprovar sua virilidade.
A vontade de continuar na sua cama era grande, mas não podia, tinha
que levantar. Botou sua túnica vermelha que fora usada anos antes nas guer-
ras contra os bárbaros, sua espada, escudo e elmo. E por último, sua arma-
dura prateada, marcada por um lobo uivando ao céu da meia-noite, liderando
sua alcateia na caça. Aquela armadura, de alguma forma, fazia parte dele.
Pegou a garrafa de cevada que fora conservada com extrema cautela
por anos e tomou um grande gole, que passou rasgando sua garganta. Ele
não precisava se apressar... Acordou muito cedo. Saiu, fechou a porta e
perguntou-se, pensativo, se retornaria a casa.
Não queria despedidas; o momento não era para sentimentos amo-
rosos, nem para fraquezas. Lúpus caminhou até os estábulos, tomou dois
cavalos e chamou discretamente Marcus para começar o grande dia. Marcus
saiu da porta rapidamente, mas triste por ter que deixar o lar novamente.
– Chegou a hora... Acompanha-me nessa cavalgada, meu amigo? –
Tomou a iniciativa Lúpus, com seu habitual sorriso.
– Sempre!
E cada um subiu em seu cavalo. Marcus em seu esbelto cavalo branco,
que atendia por Daktus e Lúpus no seu cavalo desajeitado, mas com fideli-
dade de sobra, chamado Heros.
Então, concentrados na trilha que se estendia à frente, deram início à
cavalgada para mais uma batalha.
45
Lucas Michelute Gerardi
Nasci em Santo Amaro, mas cresci em São José, local onde resido. Sempre gostei bas-
tante de ler e por isso fui participo do NAAH/S, onde descobri que também me saía bem
em robótica. Gosto de romances de cavalaria, como As Crônicas Saxãs, A Busca do Graal,
Trilogia do Rei Arthur; também gosto de histórias fantásticas, como Harry Potter (embora
não tenha lido os livros, apenas assistido aos filmes), Percy Jackson, As Crônicas de Gelo
e Fogo, entre outros.
Gosto de escrever sobre guerras, lutas (descrevo essas partes com certa brutalidade, de-
pendendo da “maturidade” do conto/livro), poderes e magias.
Pretendo seguir carreira militar na aeronáutica e me tornar piloto.
46
Conto dinamarquês
Lucas Michelute Gerardi
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outros batedores que você enviou, e, depois de compreendermos o que
havia acontecido, decidimos voltar correndo para lhe contar a notícia, mas só
eu sobrevivi, senhor, os outros foram mortos por flechas.
– Entendo – queria pôr as mãos nos homens que fizeram isso, porque foi
uma falta de honra com meus batedores, que estavam desarmados e sem
chance de se defenderem. – Nós vingaremos nossos companheiros, ho-
mem. Agora repouse, mandarei um batedor descansado para vigiar a estrada
atrás e logo porei mais homens lá.
– Sim, senhor.
Agora eu entendia o que havia acontecido. Os ingleses haviam nos enga-
nado e caímos na armadilha. Eles sabiam que eu mandaria homens para
capital, e iriam interceptá-los, e depois nos atacariam pela retaguarda, e
não haveria defesa. Não teria tempo para chamar homens para nos ajudar,
de modo que eles atacariam as tendas dos generais, e depois sairiam
correndo. Por isso eram arqueiros.
– O que faremos, senhor? – Perguntou Guthrum, um dos generais vikings
que viera me apoiar na guerra.
– Vou liderar alguns homens até aquela maldita floresta para decepar al-
gumas cabeças. Vou levar 700 homens, porque é uma emboscada, e eles
certamente imaginam que sabemos onde eles estão. Precisamos ser rápidos.
Reúna os 700 melhores e mais experientes guerreiros de nossa campanha
para combater arqueiros. Se eu não voltar dentro de três horas no máximo,
o controle passa para Ragnak.
Parei para pensar, se fossem arqueiros, no mínimo 50 arqueiros como dis-
sera o batedor, eu iria precisar de muitos homens, e todos experientes em
combater as flechas.
Talvez eu estivesse exagerando, mas cada arqueiro levava a vida de 24
homens em sua aljava. Eu não tinha arqueiros no meu exército, portanto
precisava de alguém que soubesse lidar com elas.
– Seja rápido em reunir os homens, você tem alguns minutos.
– Sim, senhor.
Agora eu só precisava me preparar, e então eu partiria para confrontar
com os ingleses.
Os homens estavam prontos. Nenhum montado, e todos armados com ar-
madura completa, peitoral, elmo, cota de malha, botas, escudo, lança e es-
pada. Nenhuma arma seria útil contra os arqueiros... Apesar disso, críamos
em nossa movimentação estratégica e no emprego de armadura completa
48
como defesa. Mas um recurso atrapalhava o outro, de modo que eu não
sabia se deveria deixar meus homens irem somente com um gibão para se
movimentarem mais rápidos, ou se os deixava com armadura completa, o
que sacrificaria a velocidade.
Decidi que a ideia de velocidade era melhor, mas não eram exímios corre-
dores... Desse modo, avisei a eles que precisariam de proteção para correr
e que usassem a armadura completa, apesar de ela interferir na velocidade.
O vale, na parte de trás do lugar onde montamos acampamento, era na
verdade uma longa faixa de terra, um caminho reto, e havia nele árvores de
ambos os lados. Não eram muito grossas para impedirem algumas pessoas
de entrarem, mas suficiente para oferecer proteção aos arqueiros, e matar
meus homens caso eles tentassem se aproximar.
Levamos os escudos sempre nos braços, juntos, e os que estavam no meio
seguravam os escudos acima da cabeça, aqueles que estavam na frente
seguravam no lado do corpo que estava para a parte de fora do grande
retângulo de escudos.
Todos andavam abaixados para proteger as pernas. A velocidade em que an-
dávamos era ridícula, pois não havia muito espaço para isso, e ninguém ou-
sava sair da formação, porque não sabíamos onde aquelas pragas estavam.
Eu estava na primeira fileira, a que levava os escudos na frente do corpo, e
andávamos bem abaixados. Olhávamos para frente por meio das frestas en-
tre os escudos. Atrás de mim, havia somente escuridão que, vez ou outra, era
iluminada pelas frestas entre os escudos; por isso, não acreditava que algum
arqueiro pudesse acertar-nos entre elas, mesmo assim sabia não haver total
segurança para meus homens.
Andamos por dez minutos, aproximadamente, e encontramos rastros de
sangue. Pequenas gotas aqui e ali, meio apagadas, mas reais e, de onde
estávamos, eu podia ver claramente o morro e, nele, os generais olhavam
para uma mesa de madeira no meio das tendas.
Estavam traçando planos, pensei. Consegui distinguir um sorriso no rosto de
todos eles, e sabendo que não me trairiam, sorri também. Devemos estar
ganhando... Isso significava que, se ganhássemos ali, iríamos livrar nossas
terras de britânicos.
Comecei a pensar num modo para tornar a vitória mais fácil. Se eu fosse um
maldito arqueiro britânico, poderia atrair os adversários para uma armadilha,
cercá-los, de modo que não tivessem para onde fugir, e os mataria aos pou-
cos, com flechas, pois certamente somos em maior número.
49
E não demorou para que eu tivesse certeza disso, pois pude ver corpos de
cavalos e humanos ao longe. Embora eu não tivesse visto nenhuma flecha,
sabia que eram os arqueiros. Eles provavelmente não tinham muitas flechas,
então pegavam de volta as que usavam.
Meu coração se encheu de felicidade ao se dar conta disso, mas logo o esva-
ziei, pois podia ser um plano para nos dar falsas esperanças e nos fazer sair da
parede de escudo tridimensional. Isso não daria certo, pois todos os homens ali
eram disciplinados e não sairiam da formação sem a minha ordem.
E eu estava certo.
A nossa formação estava funcionando bem. Havíamos vistos os corpos, tanto
humanos quanto equinos, embora sem entender por que os saxões não
pegaram os cavalos. Deveriam ter sido mortos na hora em que os batedores
tentaram fugir. Eu estava de olho nas florestas ao nosso redor. Pensava que
os arqueiros, se fossem inteligentes, teriam fugido na hora em que viram o
batedor sobrevivente retornar ao exército.
Então escutei os gritos.
Eram gritos roucos. Logo à frente estavam vários guerreiros saxões. Eu não en-
tendia como eles haviam nos surpreendido, mas o que quer que tenham feito
funcionara e, agora, estavam formando uma parede de escudos diante de nós.
Alguns dos meus guerreiros queriam enfrentá-los, mas ordenei que ficassem
em formação, se não eu mesmo os mataria.
Eu estava procurando os malditos arqueiros, que deveriam estar escondidos
nas florestas para atirar flechas em nossos flancos. Milhares de homens se
juntavam à parede de escudos inimiga, convidando-nos a atacá-los, e me senti
tentado. Se eu atacasse enquanto a fileira era fina seria mais fácil rompê-la...
Se esperasse mais homens se juntarem, ficaria mais difícil e eu os perderia.
– Formação à frente! – Gritei alto o suficiente para que os homens ao longe
ouvissem e, quando ouvi vozes fortes repetindo a ordem, continuei – não
saiam da formação. Tem arqueiros nos bosques – e novamente ouvi vozes
repassando a ordem.
Agora havia ansiedade nos meus homens, pois eles sabiam que estávamos
indo para a vingança. Eu gostaria de ter os estandartes, mas isso seria um
atraso, eles estavam no topo da colina, onde estavam as barracas. Eu não
queria que os ingleses soubessem que tínhamos descoberto os seus planos.
Estávamos chegando cada vez mais perto do inimigo. Percebi lanças e ma-
chados voando em direção às nossas cabeças. Vi que meus homens estavam
devolvendo os arremessos de forma furiosa. Os homens da primeira fileira, da
50
segunda fileira e das duas fileiras laterais não atiravam nada porque poderiam
ser atingidos, mas os homens que estavam no meio tinham cada um, pelo
menos, dois machados de atirar ou lanças, que tanto atrasaram nossa vinda,
porém agora estavam sendo arremessados contra os odiados ingleses.
Mais de 500 homens na parede inimiga! Isso me perturbou! Como ninguém
percebeu a vinda deles? Provavelmente fizeram barulho, mas os sons da
outra batalha devem ter encoberto o tilintar de lâminas e armaduras.
Finalmente estávamos perto uns dos outros e, nos últimos metros, os ingle-
ses se chocaram conosco. Eu estava com uma lança de 3,20 metros e a
levantei no último momento para acertar um homem no escudo, que parou
abruptamente graças à força da lança. Ele precisou parar para arrancar a
lança do escudo, isso criou uma brecha na parede, porque os outros homens
não pararam, e ele ficou para trás.
Esse é o momento no qual há choque de escudo contra escudo, quando os
homens ficam espremidos pelo escudo de seu adversário e pelo empurrão
de seu aliado atrás, é quando a batalha se torna um empurra-empurra.
Somente eu não estava sendo empurrado para trás pelo meu adversário, que
se encontrava a três metros de distância, tentando retirar a lança do escudo;
fiquei perplexo com a sua falta de experiência. Era um homem grande e
parecia estar velho, uns 40 anos, cometendo um erro fatal ao tentar retirar a
lança. Eu entrei no buraco que ele abriu no paredão de escudos e empurrei
minha espada com força no homem à minha direita, senti-a atravessar carne
e osso e torci para que ela não ficasse presa à carne, então, puxei-a, para
enterrá-la agora no homem à esquerda, para, mais uma vez, repetir o pro-
cesso. Meus homens me seguiram quando viram os seus adversários caírem
na grama, passando por cima dos corpos deles e cortando e matando mais
guerreiros no caminho.
Assim foi por alguns minutos, quando vi que os homens do centro estavam muito aden-
tro da parede de escudos do inimigo, gritei o mais que pude, advertindo-os.
– Recuar! – Ouvi a ordem sendo dada por outras vozes pelos homens atrás,
e repeti a ordem com veemência.
– Para trás seus bastardos! Vocês querem morrer? Recuar agora ou eu
corto suas entranhas! – E a ordem foi repassada para trás, com os mesmos
insultos e as mesmas palavras, e ouvi muitos homens rindo.
Fomos dando passos para trás e mandei os meus homens pararem um
pouco antes do lugar onde a batalha começou. Tínhamos ido muito adentro
na formação inimiga, que parecia não ter perdido um único homem, embora
51
o espaço em que recuamos estivesse cheio de mortos, a maioria deles.
Foi difícil voltar à posição original, pois os mortos atrapalharam muito. Os dois
guerreiros, o da minha esquerda e o da minha direita, também escorregaram
e eu os ajudei a se levantar.
Percebi que os ingleses estavam em dúvida quanto à decisão de atacar ou
não... Para eles seria muito fácil nos matar agora. Mandei que as três fileiras
da frente embainhassem as espadas e que as lanças fossem passadas para
os homens dessas fileiras, o que convenceu os ingleses a não atacarem, por-
que perderiam no mínimo três fileiras da parede de escudos nos atacando.
Olhei para trás para ver se houve baixas no meio, ainda que isso só fosse
possível se tivessem arqueiros, embora eu não tivesse visto nenhuma flecha.
– Houve baixas por arcos? – Perguntei alto o suficiente para que todos ou-
vissem e, como resposta, recebi um não gritado pelas seiscentas e poucas
vozes que eu comandava agora. – Levantem os escudos seus bastardos!
– E vi que a maioria tinha pelo menos três ou quatro flechas enterradas nos escudos.
– O seu escudo está com flechas, senhor – falou o homem da minha esquerda.
Parei para olhar o meu escudo e vi que era verdade. Havia pelo menos 3
flechas no meu escudo, e imaginei como devia estar a minha empolgação
quando rompi a fileira, porque não as percebi. Dei dois passos para frente e
olhei para os escudos da primeira fileira: todos estavam como o meu, com
algumas flechas neles.
– Por que não estão atirando agora? – Perguntei ao homem da minha esquerda.
– Porque os arqueiros da floresta estão mortos, senhor. – E ele apontou para os
bosques da esquerda e da direita, e imaginei que não deveria haver somente
50 arqueiros ali, mas duzentos ou trezentos arqueiros, agora todos mortos.
– Quem os matou?
– Guthrum eu acho, senhor. Corre a notícia pelo exército que ele chegou por
trás dos arqueiros que, devido ao barulho da batalha, não ouviram chegar a
cavalo e, assim, ele matou a todos pelas costas – e isso era provável, porque
ele deveria ter visto os arqueiros nos bosques de cima da colina e, mesmo
que as árvores dos lados escondessem a maior parte dos arqueiros, não
esconderia todos – e dizem agora que ele espera o senhor atacar para que
ele possa destruir os flancos inimigos, senhor.
– Como você sabe de tudo isso?
– Porque Guthrum me contou, senhor. – Falou ele, sem conseguir esconder
um sorriso no rosto.
E do lado esquerdo dele surgiu Guthrum com uma cota de malha barata,
52
parecendo um pobre. Mas, na realidade, alguns dos meus soldados pare-
ciam assim, pois, estrategicamente, embora fossem guerreiros natos e ricos,
gostavam de parecer inexperientes.
– Como chegou aqui, seu bastado louco? – Perguntei, dando-lhe um abraço.
– Destruímos todos os arqueiros no bosque, massacramos todos e os mal-
ditos ingleses nem perceberam que a chuvarada de flechas cessou. Meus
cavaleiros estão escondidos no fundo dos bosques – explicou ele – e, quan-
do você atacar, vamos destruir os flancos deles. – Antes que eu pudesse
perguntar ele continuou – me juntei à formação no meio da batalha, quando
seus homens estavam lutando, e fui abrindo caminho até aqui. E, quando
você atacar, vou fazer o mesmo para voltar e usar uma armadura digna.
– Certo, e o que está acontecendo lá em cima? – Perguntei fazendo um
gesto com o queixo na direção da colina.
– Quando saí de lá, Ragnak estava controlando a batalha. Dê moral aos seus
homens com essa notícia; diga-lhes que poderão voltar para suas casas se
ganharem aqui. Vou voltar e esperar você atacar.
– Boa sorte, amigo.
– Pra você também.
E o vi indo para a fileira detrás, os homens abrindo caminho para deixá-lo
passar, e me concentrei à frente.
– Os ingleses estão perdendo a batalha na colina, e se ganharmos aqui nossa
campanha estará finalmente no fim. – Gritei numa voz trovejante e ouvi a men-
sagem ser repassada para trás, mas os homens estavam em absoluto silêncio
e nenhum deles se mexeu, esperando o resto da notícia – vocês poderão voltar
ricos para suas casas. – E os homens ovacionaram com essa notícia; então, es-
perei eles se calarem – e a única coisa que separa vocês dessa riqueza é uma
batalha fácil, pois Guthrum aniquilou os arqueiros dos bosques – e, novamente,
ovacionaram, pensando em como seria tranquila essa batalha sem arqueiros
inimigos e, pela segunda vez, esperei que eles se acalmassem – ele vai destruir
os flancos inimigos enquanto nós destruímos a frente.
E, dessa vez, a ovação foi forte demais para parar, e, quando parou, gritei
uma única palavra, que foi seguida de gritos de entusiasmo e que não preci-
sou ser repetida nas fileiras detrás.
– Avante!
Ainda hoje, com 62 anos, me lembro dos gritos de surpresa dos ingleses
quando souberam que seus arqueiros estavam mortos, que uma carga esta-
va atacando-lhes pelos dois flancos, e que estavam condenados.
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Meu primeiro emprego
Lucas Michelute Gerardi
Fui para uma entrevista de emprego no bairro vizinho, para uma vaga de
gerente em um banco. Estava nervoso, pois era meu primeiro emprego e
assumiria como gerente. Fiz curso de administração para isso, pensei.
O táxi parou em frente ao banco e dei o dinheiro ao motorista, que
saiu apressadamente. Foi estranho, inclusive pelo fato de a rua estar deserta
e alguns prédios estarem abandonados.
O banco tinha grandes colunas brancas, e um telhado estilo grego
também branco. Parecia um templo, não fosse o nome: Brancos. A porta
parecia ter três metros, e abriu sozinha, como se estivesse me aguardando.
Segui para o lance de escadas no final do corredor e subi para o segundo
andar, onde ficava o escritório do dono. Uma porta de madeira à minha
esquerda se abriu.
Um homem que estava nos seus cinquenta anos de idade, calvo e um pouco
acima do peso, olhou para mim ansiosamente.
– Senhor Shawazeneger?
– Sim?
– Entre, por favor.
A sala parecia não ver uma vassoura fazia um bom tempo, pois o chão
estava cheio de pó e havia algumas teias de aranhas aqui e ali.
– Sente-se aqui senhor – disse o homem puxando uma cadeira e
acomodando-se em outra com um bloco de notas nas maõs.
– Obrigado.
No momento em que iria sentar, ouvi um barulho de uma serra elétrica
que me deixou intrigado. Olhei para o homem e percebi que ele também
ouviu o som. Um arrepio percorreu o meu corpo, e o homem virou-se para
porta e assoviou.
Em questão de segundos, um grupo de cinco homens entrou na sala, todos
de terno preto, incluindo gravata preta e sapato social também preto. Pensei
que era um uniforme, e iria usar um igual. Eles entraram, me viram, e pularam
em minha direção me fazendo sentar na cadeira, que caiu em um buraco. Só
podia ser uma emboscada, pois havia ali ainda um tapete preto que susten-
tava somente o peso da cadeira e nada mais.
Ouvi o homem rindo, e logo as risadas dos capangas se juntaram a
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dele. Percebi, então, que deveriam ser ladrões que me roubariam quando eu
estivesse inconsciente ou morto, ou me pegariam como refém e pediriam
resgate se eu continuasse vivo, mas eu ainda estava caindo, então não fazia
a menor ideia se iria sobreviver.
Caí em um colchão velho e duro, pois levantei bastante poeira, e soltei
um “uff” abafado pelas risadas dos enganadores. Fiquei um tempo deitado.
Será que estava preso em um cativeiro? Era refém? O que havia acontecido?
Onde eu estava? Quem eram aqueles homens?
Pelo menos uma das perguntas eu podia responder: o lugar onde eu
estava era escuro e a única luz vinha da sala do andar superior. Mas não
durou muito tempo, pois logo eles (sejam quem forem) a desligaram.
Foi quando escutei o barulho de uma serra elétrica e fiquei muito ner-
voso. Todavia, isso serviu para me recuperar do susto de estar na escuridão
e aguçar todos os meus sentidos.
Saí de cima do colchão e me movimentei o mais silenciosamente pos-
sível, esperando que a serra elétrica encobrisse o som dos meus passos. Mas
isso pareceu não surtir efeito, pois ouvia o barulho se aproximando cada vez
mais de mim, como se o ser, ou o que quer que fosse, pudesse farejar o medo.
Vi um homem com um saco marrom na cabeça, daqueles de papelão.
Ele apoiava a serra elétrica no ombro. Percebi que não havia buraco para os
olhos naquele saco.
Comecei a correr desesperadamente na escuridão, mas uma luz bran-
ca de repente acendeu, revelando um quarto branco. O chão estava coberto
de sangue e havia alguns corpos estirados, esquartejados. No centro da sala,
o colchão onde eu caí.
Não havia saída além do buraco, e o ser que carregava a serra come-
çou a gritar histericamente, aumentando muito mais o terror da sala. Minhas
pernas fraquejaram, fiquei boquiaberto e pensei se conseguiria sobreviver.
Nunca havia sentido tanto medo na vida, pois nunca estive tão perto da
morte. Podia ouvir o seu som e sentir o seu cheiro.
Pensei que deveria haver alguma saída, ou poderia tentar fazer uma
com a serra. Para isso, só precisava derrotar o homem do saco na cabeça.
Só. Seria cômico se não fosse trágico.
Parti para cima do homem, que hesitou: ele se surpreendeu com a
minha coragem. Isso foi o suficiente para que eu pulasse em cima dele,
derrubando-o no chão e fazendo a serra voar. Eu estava em cima dele no
chão e comecei a desferir golpes em sua cabeça, mas o homem não reagia.
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Tirei o saco da cabeça dele e me apavorei com a visão que tive: o ho-
mem tinha a pele completamente pálida e as órbitas dos olhos vazias. Eram
somente dois buracos negros. O homem me empurrou para longe, ganhando
vida de repente.
Ainda caído no chão, sem me recuperar do susto, percebi que o ho-
mem havia se levantado e pegava a serra elétrica, que ainda estava ligada, e
vinha em minha direção.
Tentei me levantar, mas não consegui. O medo havia me paralisado. A serra
entrou em meu corpo, diretamente na barriga, atingindo a carne e as minhas en-
tranhas, que se espalharam no chão assim que ele tirou a serra do meu corpo.
Acordei suado e assustado, pois tive um pesadelo.
Naquele dia, enfrentaria minha primeira entrevista de emprego.
56
O menino das asas negras
Lucas Michelute Gerardi
Há muito tempo, Hel, a deusa do inferno nórdico, teve muitos filhos, todos
com aparência de criaturas ferozes e com atitudes macabras. Mas um deles
podia ser confundido com um humano normal. Era um garoto forte, não
muito, mas podia segurar uma espada ou um machado de guerra com as
duas mãos. Tinha cabelos negros e olhos na cor cinza e possuía a altura de
um humano. Os filhos de Hel não podiam morrer, simplesmente por serem
seus filhos, mas podiam ser aprisionados por longo tempo em Niflheim, onde
Nidhogg, a serpente comedora de cadáveres, vivia.
Nesse filho de Hel havia algo de diferente, que era incomum nos demônios
que ela gerava. Ele tinha asas negras! Tão grandes que podiam se estender
até quatro metros de uma ponta a outra se elas fossem totalmente esticadas.
Ou podiam simplesmente desaparecer, se o garoto desejasse que assim fosse.
Por isso, ele viveria eternamente com as asas, e poderia sair de Niflheim e
viver no mundo dos humanos tranquilo e eternamente. E assim ele o fez,
escolheu viver no mundo humano. Ele lutava, bebia, comia, dormia e andava
como qualquer humano e, como poderia ter a idade que quisesse, pois a
morte nunca o levaria, ele oscilava entre a juventude e a velhice.
Decidiu nunca ter filhos para que outros não tivessem o mesmo poder que
ele possuía e, para garantir isso, matava todas as mulheres que namorava
antes de terem um filho. Sempre mudava de povoado e, quando sua mulher,
quem quer que fosse à época, “desaparecia” misteriosamente, ele fingia es-
tar desesperado, chorava e saía atrás dela.
Alguns homens acompanhavam-no para ajudá-lo a procurar a esposa de-
saparecida, estes, no entanto, sempre morriam à noite. Ele costumava usar
nomes falsos, nunca seu verdadeiro nome, que era Sanngriðr, que significa
algo ou alguém muito violento, ou muito cruel. Mas era gentil ao chegar a um
novo povoado como um garoto perdido ou sem terras. Podia fazer aparecer
um machado de guerra ou uma poderosa espada a qualquer momento.
Com Sanngriõr andava um grande amigo, seu cavalo negro, que tinha asas
iguais a do dono. Era um garanhão negro, grande e robusto, e ambos via-
javam juntos, pois como Sanngriõr, poderia esconder as asas a seu desejo.
O nome do cavalo era Grani, era feroz e protegia Sanngriõr quando esse
estava em perigo, e também podia trocar de aparência instantaneamente,
57
quando quisesse.
Por várias vezes alguns homens tentaram fazer de Sanngriõr um escravo,
pois ele vagueava pelas terras na forma de um homem jovem e forte, sempre
com a espada na bainha, usada simplesmente como um enfeite. Vestia-se tal
qual um guerreiro, com cota de malha, elmo, botas que iam até o joelho, um
peitoral por cima de tudo e braceletes nos braços. Tudo era preto, menos os
braceletes, que eram feitos do mais puro ouro.
Ladrão algum ousaria atacar um homem vestido assim, e, embora fosse
comum as pessoas andarem em bandos nas estradas para não serem ata-
cadas, esse garoto andava sozinho porque possuía roupas e equipamentos
de guerra tão bons e caros que vários homens jamais haviam sonhado em
obter. Esse garoto não poderia ter obtido a armadura sem uma boa luta. Por
essa razão, vinte ladrões decidiram que não valeria a pena trocar suas vidas
pela possível chance de obter uma armadura.
Certo de que estava sozinho, Sanngriõr montava em Grani e ambos usavam suas
asas e cobriam grande distância voando, o que era muito divertido para eles.
Sanngriõr voava, quando algo aconteceu.
Eu estava voando.
Como sempre faço quando estou sozinho.
Estava muito escuro. Não se via um palmo à frente do nariz, chovia muito for-
te e os trovões ribombavam no céu. A qualquer momento poderíamos bater
em uma montanha ou em uma árvore muito grande e isso, para nós imortais,
era divertido. O receio de que a qualquer momento nos chocaríamos com
algo tão sólido a ponto de rachar nosso crânio... Era emocionante, embora
eu estivesse olhando a toda hora para cima para ver se Thor me lançaria
algum raio como punição e, até mesmo disso, eu ria de puro prazer. Sabia
que meu cavalo também riria se pudesse.
Eu havia me mostrado, como sou, para uma vila inteira. Enterrei-me à noite
e, quando as pessoas do vilarejo já estavam trabalhando normalmente no dia
seguinte, botei meu braço para fora da terra. Ouvi gritos de pavor e deses-
pero, de medo e de surpresa. Senti que batiam forte em minha mão. Alguém
estava tentando me impedir de sair.
Eu já havia usado esse truque antes e as pessoas, em geral, ajudaram-me
a sair e, por me verem, morriam depois. Mas esse povo teve uma reação
diferente; então, pensei que poderia me divertir mais.
Grani se disfarçara de cavalo baio, que chegou perdido dois dias antes e fora
mandado para os estábulos. Quando eu estava cansado de ficar enterrado,
58
ele me avisou telepaticamente que era escovado do lado de fora do estábulo
e, por isso, essa seria a hora certa para começar a me desenterrar.
Avisou-me que aquele que batia com alguma coisa na minha mão era um guer-
reiro da vila, que se movimentava agilmente em volta da mão desenterrada.
O objeto que o guerreiro usava era um porrete. Eu deixei minha mão parada,
esperando que o homem entendesse que eu estava desistindo ou sufocado.
Grani me disse que as pessoas haviam corrido para as suas casas quando
viram a mão que saía da terra, porém, retornaram ao centro do vilarejo, com
a coragem renovada ao perceberem que a mão estava imóvel.
A vila ficava em um vale alto e verde, muito bonito, mas era um dia nublado
e tudo parecia estar cinza. A terra estava escura e seca, por isso minha mão
levantou muita poeira quando eu a desenterrei.
O homem havia parado de bater e, de acordo com Grani, as pessoas esta-
vam se aproximando da minha mão. Era hora de assustá-las mais um pouco.
Grani me alerta que se formou uma rodinha em volta da minha mão caída, e
que o homem que o escovara se juntara à roda.
Senti que algumas mãos apertaram meu braço, provavelmente iriam tentar
me desenterrar à base de puxões.
Quando senti que fizeram força, desenterrei meu outro braço, e isso os
assustou, e nem precisei de Grani para me pôr a par. Ouvi gritos e sons de
passos rápidos, que chegavam aos meus ouvidos como trovões. Dessa vez
ninguém veio bater nos meus braços, talvez porque eu os estava agitando
loucamente, ou porque estavam com medo demais para se aproximarem.
– Peguem os machados! Cortem os braços!
Senti ser essa a hora de botar as asas para fora. Desenterrei-as com força,
com a ponta para cima, somente as asas. Não queria ferir ninguém, somente
assustar. Grani me disse que eu fizera isso muito bem, apesar de quase
acertar o homem que levava o machado que cortaria os meus braços.
Grani também disse que o homem largou o machado e que deixou sua voz
se gastar junto com as outras vozes que gritavam histericamente.
Desenterrei-me por completo, impulsionando os pés para cima fortemente,
para poder sair dali.
E se os moradores estavam assustados, agora estavam histericamente apa-
vorados. Gritavam dizendo que o fim estava próximo, que os demônios de
Hel estavam sendo lançados na terra. E de fato estavam.
Eu estava com o peito descoberto, com uma imagem de garoto que deveria
ter uns 16 anos. Usava uma bota de cano alto, e uma calça larga de couro,
59
que se prendia na cintura com uma corrente. E pela primeira vez me deparei
com o totem de Loki na vila e soube que o caos era iminente.
Os deuses criam regras para que o mundo não fique mergulhado no caos e
para que este não seja perfeito. Os deuses não se importam com os mortais
que vivem na terra, apenas se divertem com eles. Se os mortais os divertissem
seriam retribuídos com sorte, ouro, entre outras coisas. Aos filhos dos deuses
também aconteceria o mesmo se divertissem seus pais ou outros deuses, só
que ganhariam poder, tesouros fora do comum e o respeito deles.
Ao mostrar àquela vila o meu verdadeiro ser, eu estava quebrando uma das
regras mais importantes do deuses, uma das poucas que eles mesmos não
ousaram quebrar. Eu estava mostrando aos humanos que criaturas malignas
existiam, que eu era uma cria de pesadelos, um demônio, e, ao fazer isso,
estaria confirmando que os deuses existem. Essa foi a regra que eu quebrei.
Há anos os deuses nórdicos respeitam esse costume, por isso nunca apare-
ceram na Terra como deuses, mas igual aos humanos.
Portanto, eu não planejava deixar nenhum deles vivo; então, começei uma
chacina. A maioria das pessoas estava correndo para dentro de suas casas
de madeira. Eu tinha visto a porta da casa mais próxima se bater em um
estrondo, e ouvi o barulho de móveis sendo arrastados para a frente da porta,
para bloquear a minha passagem. Simplesmente me aproximei e enterrei a
asa direita na casa, não importando onde acertasse, sendo o golpe mais para
assustar do que para matar. Ouvi os gritos e acertei a asa esquerda na porta,
enterrando-a bem fundo, quase até a porta tocar as minhas costas. Ouvi mais
gritos ainda, e presumi que algumas pessoas ficaram quietas, na esperança
de que eu não as atingisse.
Deixei essa casa em paz por um tempo, porque muitas pessoas estavam
correndo para longe da vila e indo se esconder na floresta, e isso era um
problema. Apesar de eu conseguir farejar o medo e achá-lo a uma distância
enorme, se elas fossem muito longe poderiam contar a outras o que viram.
Se somente um homem espalhasse a notícia de meu ataque, mesmo que
as pessoas o chamassem de louco, ele teria espalhado a notícia de que me
viu, e só por me ver, em minha verdadeira forma, isso já seria ultrajante; mas
eu vi um grupo de quase 20 pessoas correndo para longe, e isso era um
problema, porque era difícil alguém acreditar que 20 pessoas haviam ficado
loucas, e começado a falar a mesma coisa.
Decidi que aqueles seriam os primeiros a serem assassinados. Levantei voo
e logo mergulhei no ar para atingir dois dos últimos homens que estavam
60
correndo lentamente, a fim de garantir que ninguém ficasse para trás. Sim-
plesmete cortei a cabeça deles com um machado em cada mão. Os outros
gritaram e saíram correndo, e eu simplesmente estiquei as asas ao meu lado,
fazendo com que elas ficassem totalmente abertas. Nenhum deles viu isso,
porque estavam preocupados em correr. Inclinei minhas asas horizontalmen-
te e estiquei-as à minha frente. Os que estavam mais próximos de mim tive-
ram suas cabeças separadas do corpo e os que estavam mais longe quase
foram decepados com um enorme corte no colarinho. Um homem mais alto
teve sua coluna cortada ao meio e, uma mulher mais baixa, a nuca aberta
pelo golpe. Os que estavam mais à frente tiveram mais sorte, pois levaram
um pequeno arranhão nas costas e quase foram atingidos na nuca.
Quando as minhas asas se cruzaram à minha frente, eu parei para ver os
estragos que causei. Sete pessoas ainda estavam vivas, e corriam e gritavam
histericamente. O resto, caído, e a maioria sem cabeça.
Grani me avisou telepaticamente que impedia qualquer um de sair da vila.
Disse-me que tentaram montar nele e ele os derrubou, que tentaram empur-
rá-lo e ele deu um coice, e um homem até tentou matá-lo com um machado
enorme, mas uma patada na virilha e o homem ficou caído e, em segundos,
estava morto pelos cascos de Grani. Isso serviu como aviso para que outros
não tentassem correr ou sair da vila.
Ele também havia me dito que mostrara sua verdadeira forma de garanhão
preto com olhos vermelhos depois que o homem do machado tentou matá-
lo, e isso serviu como um segundo aviso. Muitos haviam tentado correr para
fugir por outro lugar da vila, mas Grani estava em toda a parte e em lugar
nenhum, já que podia viajar pelas sombras e impedir que alguém fugisse.
Peguei um machado enorme, magicamente, e o atirei acima das cabeças
dos homens, acertando o primeiro, abrindo a nuca dele, e os outros pararam,
com receio de que o próximo fosse em suas cabeças. Eles se viraram e me
olharam boquiabertos.
– Quem de vocês é guerreiro? – Perguntei lentamente, e um homem alto,
forte, deu um passo em minha direção.
– Eu sou – falou ele, com a voz negando qualquer medo que estivesse
sentindo naquele momento.
– Você estava tentando cortar os meus braços na vila? – Perguntei aspera-
mente.
– Sim, era eu. – Respondeu o homem com a cabeça erguida, mostrando
que não se arrependia do que havia tentado fazer.
61
– Só você é guerreiro nessa vila?
– Sim, somente eu. Não havia mais ninguém que soubesse empunhar uma espada.
– Ponha a mão no punho da espada. – Falei, e ele me olhou com um
olhar interrogativo.
Eu havia visto que ele corria com uma espada embainhada, e presumi que
talvez fosse uma espada de estimação, que tivesse uma história com ele, que
talvez fora de seu pai ou de seu avô, ou até mesmo de ambos, e não queria
deixá-la para trás.
– Meu nome é Sanngriõr, e irei vê-lo de vez em quando no Valhala. – Acho
que isso confirmou as suspeitas de que ele iria morrer.
Os outros homens olhavam-se apavorados. Eles não eram guerreiros, mas
acreditavam que, se morressem com uma espada na mão, iriam para o cas-
telo de Odin, e agora viam essa chance desaparecer. O homem botou a mão
no punho e desembainhou a espada rapidamente, e eu me preparei para
matá-lo se ele reagisse, mas ele simplesmente beijou a espada.
– Faça. – Disse ele de repente.
E fiz. Foi muito rápido. Ele provavelmente nem viu que a ponta da minha asa
direita estava atrás dele e lhe atingiu a espinha. Ele cambaleou até mim, e eu
fechei sua mão em volta da espada. Os outros morreram igualmente rápido.
Voltei voando para a aldeia, onde Grani mantia os apavorados moradores
dentro da vila. Eu estava estranho, sem gosto para matar. Alguma coisa es-
tava errada. Eu sempre fizera coisas assim durante a minha vida, mas dessa
vez eu não estava me divertindo. Talvez estivesse cansado de fazer esca-
ramuças como essa, mas a verdade é que alguma coisa parecia errada.
Alguma coisa me preocupava e, então, enquanto voava, percebi o que era.
Eram fugitivos. Talvez 30. Todos fugindo a cavalo, a maioria homens carre-
gando machados ou espadas, e talvez a vila tivesse uma pequena força de
guerreiros para se proteger. A maioria desses homens carregava mais de
uma espada, e os cavalos vários sacos amarrados às selas. Provavelmente
se enriqueceram um pouco atacando a vila vizinha.
Agora eu iria destruir os sobreviventes na vila e depois mataria aqueles homens.
Desci rapidamente, em uma velocidade que até me impressionou, e percebi
que estava nervoso. Se algum daqueles homens fugissem, se somente um
fugisse e contasse a alguém, mesmo que esse alguém não acreditasse nele,
eu seria banido eternamente do grupo de deuses nórdicos. Não seria mais
considerado um filho de Hel, ainda que isso não afetasse meus poderes ou
o fato de eu ser um imortal. Mas eu e Grani teríamos de abandonar a Dina-
62
marca, ir para qualquer outro lugar. E isso eu não queria, pois meus irmãos
estavam aqui, e eu gostava de aterrorizar lugares com eles.
Cheguei ao chão e, no mesmo instante, Grani percebeu o que estava aconte-
cendo, e deu um coice na porta, tão forte, que seria capaz de matar um boi.
Ouvi gritos vindos do interior da casa e enfiei minhas asas lá dentro, fazendo
com que elas se mexessem sem parar, cortando gargantas ou braços, en-
quanto Grani quebrava outras portas e derrubava paredes abrindo espaços
para que eu pudesse usar as asas. Destruímos todas as 11 casas e matamos
seus habitantes e, provavelmente, não levamos mais do que dois minutos,
mas aqueles homens a cavalo já deviam estar longe.
Voei rapidamente na área em volta da vila para ver se havia alguém escondi-
do nas florestas em volta dela, mas não vi ninguém, a não ser os homens a
cavalo que já estavam a uma distância razoável.
Voltei ao chão e me equipei com a minha costumeira armadura preta, com
o elmo preto, com a calça preta, com a cota de malha preta, com as botas
pretas, com a bainha preta, e montei em Grani, agora com uma sela preta e
na sua forma original. Eu parecia um guerreiro da escuridão, e gostei disso.
Eu iria amendrontar todos aqueles homens. Eu não havia escondido as mi-
nhas asas, de forma que parecia um demônio.
Grani estava indo realmente rápido enquanto andávamos, e seus passos
no chão pareciam criar um trovão, e pensei que isso era realmente bom,
porque iria amendrontar ainda mais os fugitivos, mas eles também sabe-
riam quando alcançaríamos eles, e talvez estivessem preparados para lutar.
Quanto mais perto chegávamos deles, eu via sacos com os saques; ar-
maduras e as espadas da pior qualidade, que eles jogaram no chão para
diminuir o esforço dos cavalos. Eu levava mais peso do que eles e, apesar
disso, alcançava-os.
Finalmente cheguei perto o suficinete para ouvir os cascos dos cavalos deles
batendo no chão, e um tempo depois para vê-los. Era um grupo bem equi-
pado, guerreiros, e eu só via três mulheres entre os 29 homens.
Os últimos 9 homens se viraram para me olhar, e todos eles morreram na
mesma hora com um forte golpe horizontal das minhas asas na nuca. O
resultado foi o mesmo que da primeira vez, com alguns homens com a nuca
aberta, os que estavam perto sem cabeça, alguns com o golpe pegando na
coluna, mas todos eles ficaram presos na sela, e seus corpos foram arras-
tados enquanto os cavalos corriam para a beira da estrada, para perto das
árvores. Os outros homens também viraram a cabeça para ver o que estava
63
acontecendo, e viram que os últimos homens estavam mortos, e que agora
eles eram os últimos daquele pequeno grupo.
E eles morreram da mesma forma que os últimos homens, com o mesmo
resultado, e de novo os cavalos foram para a beira da estrada. Duas das 3
mulheres estavam nesse grupo de 10 homens, e agora restavam somente
11 para matar.
Os últimos 11 homens que lideravam o grupo sabiam que iriam morrer da
mesma forma que seus companheiros se não lutassem, e decidiram virar os
cavalos para lutar. E isso foi um erro, pois assim que viraram, minhas asas se
moveram, pela quarta vez naquele dia, na horizontal para cortar pescoços,
destroçar a parte superior da coluna ou abrir a nuca. Dessa vez os cavalos
ficaram parados, mas 2 dos homens não morreram, pois haviam girado seus
cavalos tão bruscamente que eles escorregaram e caíram no chão, e os
homens estavam com uma das pernas presa debaixo dos cavalos, e esses
eu matei rapidamente com as pontas das asas atravessando o elmo e se
enterrando no chão.
Agora só faltava a última mulher, e ela estava à frente dos demais, correndo
mais rápido e provavelmente quase matando o cavalo de cansaço. Grani foi
atrás dela, e eu bati as asas uma vez para dar impulso a ele, e ele saltou.
Praticamente voamos baixo por alguns segundos antes de alcançarmos a
mulher e, nessa, eu enfiei as asas na barriga, fazendo com que as pontas
se tocassem dentro de seu corpo, e ela foi arrancada bruscamente da sela,
mas mesmo assim seu cavalo continuou a correr. Quando caiu de joelhos
no chão, ainda teve tempo de esticar o braço para frente, e apontar para o
leste, como se pudesse agarrar a vida naquele lado, e então tombou no chão.
Deixei os corpos onde estavam, e voei alto, para voltar a uma casa que eu
havia construído a um tempo atrás, perto de um lago em um lugar sem vida
alguma a não ser a de animais selvagens, onde eu deixava as armas captu-
radas ou coisas que valiam a pena guardar. Era um lugar que eu gostava e ia
depois de algum acontecimento como esse, pois nele havia paz e eu queria
um pouco de paz agora.
E agora, voltando para a minha casa com Grani, no escuro, chovendo, e
cheio de raios no céu, me perguntei se não deixei ninguém vivo, pois nunca
havia visto uma tempestade como essa. E foi enquanto eu pensava nisso
que um raio me atingiu em cheio, fazendo Grani e eu perdemos o equilíbrio
e cairmos em uma clareira na floresta.
Caí em cima dele e me levantei rapidamente, porque um raio estourara bem
64
a minha frente, e assim que ele se dissipou, Thor apareceu.
Ele era alto, estava com uma cota de malha prata e uma capa vermelha,
usava botas vermelhas e uma calça marrom e levava um elmo pendurado
na cintura. Carregava uma espada enorme na bainha. Os cabelos louros iam
até os ombros e ele me encarava. Carregava seu famoso martelo nas costas,
que era uma coisa pesada e sem graça, mas uma arma muito poderosa.
Nunca foi bom um deus apareçer na minha frente, ainda mais me encarar
assim, e eu só previa encrenca naquela noite chuvosa.
– Você deixou um humano viver no seu ataque a uma vila hoje – falou Thor
com sua voz de trovão.
Fiquei muito assustado! Primeiro porque percebi que Thor me lançou o raio e
me derrubou naquela clareira; segundo com a voz dele, que se sobressaía no
barulho da chuva e dos trovões, parecendo que tudo tinha ficado em silêncio
enquanto ele falava; terceiro com o que ele disse: que eu havia deixado
alguém vivo no meu ataque.
– Ninguém ficou vivo no meu ataque – falei, sem me preocupar em escon-
der a surpresa na voz.
– Um garoto viu a mãe morrer com duas asas enterradas na barriga – falou.
Não acreditei. Era por isso que a mãe havia apontado antes de morrer. Estava
dando uma direção ao filho que devia estar escondido na floresta, assistindo
a tudo. Como foi que eu não percebi isso? Eu devia estar muito ansioso para
deixar uma alma com medo escapar de mim... Me censurei por isso.
– Vou matar o garoto – falei, com esperança de que ele me desse essa
chance.
– Não, você não vai, – disse ele – o garoto já chegou, em prantos, em
uma cidade e contou a todos acerca do modo como sua mãe morreu. Pro-
vavelmente será taxado como louco, embora algumas pessoas acreditem
em sua história.
– Eu matarei todos – insisti.
– Não, não vai matar todos, porque mais pessoas verão você, e isso será
um incômodo. Você não pode sair matando toda a população de uma cidade
porque sabem a seu respeito.
– Me dê essa chance – insisti pela terceira vez, desesperado, porque sabia
o que ia acontecer.
– Os deuses já se reuniram e decidiram o seu destino – falou ele com a voz
de trovão – e você só não ficará eternamente em Niflheim porque sua mãe
foi contra essa ideia. Mas, mesmo assim, você está banido.
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Um trovão, mais alto do que a voz de Thor, ribombou, junto com um raio que
rasgou o céu, como se ambos atestassem a minha exclusão.
A última coisa que me lembro antes de aparecer em uma floresta, em um
lugar desconhecido, foi do pesado martelo de Thor descendo em minha
direção a fim de me deixar inconsciente e ser, então, banido da Dinamarca e
do círculo dos deuses.
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Julia Breda
Meu nome é Julia Breda de Souza Nobre. Nasci em 17/5/2000. Tenho 13 anos e estou
na 8ª série. Aprendi a ler com 4 anos, sendo alfabetizada aos 5 e meio. Sempre fui um ano
mais nova que meus outros colegas de sala, pois, devido ao fato de ter sido alfabetizada
mais cedo, não fiz o Jardim 2. Sempre gostei de ler, e, desde pequena, gostava de escre-
ver poemas. Mais tarde, descobri meu gosto por textos, crônicas e redações. Em 2012,
participei da Olimpíada de Matemática e, classificada, ganhei menção honrosa e, por essa
razão, em 2013, fui convidada a participar da oficina de lógica e matemática no NAAH/S.
No espaço do Núcleo, conheci a oficina de leitura e produção textual e demonstrei inte-
resse em dela também participar para mostrar meus textos e aprender com as revisões
a melhorar minha escritura. Costumo ler várias histórias na Internet, que são criadas e
revisadas por pessoas comuns, pois acho bastante interessante e divertido esse exercício.
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Give your heart a break
[dar um tempo ao seu coração]
Inspirada na música de Demi Lovato (fanfic)
Julia Breda
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procurarem por uma vida inteira, loucamente, alguém que as “complete”.
– Ódio é uma palavra muito forte!
– Amor deveria ser também! Acho que a única mulher privilegiada com meu
amor será eternamente minha mãe. – Ele disse com o olhar parado. Aquilo
quase fazia sentido para mim, mas parecia mais medo...
Estávamos novamente naquele parque, o mesmo que fez nascer toda uma
amizade que durara – até agora – três meses. Acho que nos damos tão bem
pelo fato de, talvez, nos entendermos tanto. Sim, eu finalmente entendi sua
teoria para a não existência do amor. Não que eu concorde, acho que o amor
existe sim, embora não pra mim, pois realmente não nasci para isso.
Infelizmente, eu acho que estava começando a sentir algo mais forte por
ele. Diferente do que eu lia nos livros, eu não sentia borboletas no estôma-
go. Sentia um arrepio na espinha cada vez que ele dava aquela gargalhada
gostosa, que eu adoro ouvir. Eu sei que ele não acreditava nisso tudo, mas
poderia me dar uma chance de provar que eu sou diferente da maioria das
garotas, que só “ficam” e mais nada.
69
Como se você talvez cometesse um erro
Depois disso, ele foi pra casa. Ele não atendeu meus telefonemas nem res-
pondeu minhas mensagens. Nem me deu a chance de lhe dizer que “tudo
70
bem”, eu aceitaria ser apenas sua amiga. E aquilo me magoou.
Mandei mais uma mensagem para ele. “Take my hand, the world is our when
we’re together...” [Pegue minha mão, o mundo é nosso quando nós estamos
juntos]. Tenho que parar com essas esperanças babacas. Não há volta, estou
apaixonada. Mesmo magoada, queria tê-lo por perto.
Ele me respondeu, apenas aquela noite. “I belive in the love... I want to try with
you... Just give my heart a break”. [Eu acredito no amor... Eu quero tentar
com você... Apenas dê um tempo ao meu coração] Sorri. Eu daria a ele o
tempo que quisesse.
Aquela semana ele bateu em minha porta. Nos beijamos, mas ele fugiu. Me
pediu mais um tempo.
Ele não entendeu?
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Quero dar um descanso ao seu coração
Eu sei que você está assustado, é errado
Como se você talvez cometesse um erro
Só existe uma vida para viver
E não há tempo para desperdiçar
Então, deixe-me dar um descanso ao seu coração
Não quero partir seu coração, querido, eu posso aliviar sua dor
Então, deixe-me dar um descanso ao seu coração
Há tanto que você pode ter
Deixe-me dar um descanso ao seu coração
– I believe in our love. I want to try with you, I want to live this with you. [Eu
acredito no nosso amor. Eu quero tentar com você, eu quero viver isso com
você.]
72
Gotta be you
[tem que ser você]
Inspirada na música de One Direction (fanfic)
Julia Breda
– Não faz isso com a gente... – Eu implorava, mas ela parecia irredutível.
Com razão. O erro foi meu, a culpa foi minha, e se não mais existir algum
“nós dois”, o remorso será meu também.
– Não tem mais a gente... – Me respondeu, cabisbaixa. Sua voz embargada
e o triste brilho no olhar que ela carregava a denunciavam: Estava sendo
difícil pra ela também. – Sai da minha frente, sai da minha casa... Some da
minha vida e desaparece. – Abaixei minha cabeça, e uma maldita lágrima
escorreu pela minha face. Minha garganta queimava, querendo pronunciar
aquelas malditas palavras que eu julgava sem importância, que antes fariam
tanta diferença e agora seriam apenas um motivo a mais para remoer-me
em tristeza.
– Tudo bem... – Minhas mãos tremiam e meu coração parecia conter um
animal feroz, que o esmagava, triturava, moía. – Eu... Te amo. – Falei sem
resistir à sensação de pronunciá-las verdadeiramente. – Não se esqueça dis-
so... Até quando não quiser se lembrar, não se esqueça. – E saí. Foi ridículo,
mas eu precisava dizer a ela. E agora restava eu, meu orgulho praticamente
nulo, as memórias de nós dois e um coração friamente devastado. E a culpa
era – novamente – toda minha.
– Eu não aguento mais te olhar e sentir que nada que façamos será suficien-
te pra te deixar melhor, cara. – Rob dizia, com um misto de preocupação,
raiva e... Pena. – Você não tem visto, mas faz meses que eu e os guys faze-
mos de tudo pra te ver melhor e o máximo que arrancamos de você é um
sorriso de canto sem sentimento algum. Tudo porque você errou com uma
garota e teve orgulho demais para levantar dessa cama e pedir desculpas! E
o pior, em pleno dia dos namorados.
– Não foi assim! Ela me pediu pra sumir e eu concordei com isso. Para o
bem dela. – Falei rápido e dei uma pausa para respirar – e me desculpe se
eu tenho ficado tempo demais pensando na minha dor e não dei a atenção
necessária pra vocês, ou pra banda. Eu só... Não me sinto suficientemente
73
capaz de passar por isso. Vocês já cansaram dessa mesma história, eu sei.
Hoje está sendo difícil, ainda mais difícil que os outros dias. Você sabe o
quanto ela gosta dessa data...
– Olha, vai atrás dela. Passaram-se meses, não tem motivo para ela conti-
nuar com isso. – Olhei para meus dedos, que me pareciam muito mais inte-
ressantes no momento, enquanto me lembrava daquela garota ruiva, maldita
hora que aquela ruiva foi atravessar meu caminho e de Sophia. Tudo bem,
a culpa não foi apenas dela, e sim minha por não resistir a uma garota três
anos mais nova que minha namorada. Mas no final de tudo, percebi que
não foi a garota, mas sim o risco de ser descoberto, a aventura de ficar
com alguém, sem compromisso algum, tendo a certeza de que uma garota
apaixonada me esperaria em casa, pronta pra me receber de braços abertos.
Eu fui um idiota, sem escrúpulos e sem sentimentos. Mas isso tudo me fez
perceber algo que estava tão óbvio e ao mesmo tempo tão escondido dentro
de mim: eu amava Sophia mais do que esperava, e vê-la sofrer sem poder
confortá-la era extremamente torturante.
– Porque ela te ama! Apesar de tudo. Kris conversou com ela e ela deixou
escapar que está sofrendo. Tanto quanto você. Pra que continuar se torturan-
do? – Levantei-me num pulo, corri para o banheiro, deixando pra trás Robert
confuso. Peguei uma toalha e um par de roupas e me coloquei embaixo do
chuveiro, sentindo a água quente relaxar cada parte de meu corpo. Saí do
banheiro vestido e com um plano em mente. Tinha que dar certo.
– Ok. Já mandei mensagem, o único que não se lembra é Paul, mas ele tem
desconto – gargalhei. Paul sempre se esquecia das músicas.
Entrei em meu carro, girei as chaves e fiz o caminho que tanto conhecia. As
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lembranças me invadiam e se tornava cada vez mais difícil não chorar. Mas
eu precisava ser forte, ao menos dessa vez. Virei uma esquina e outra e,
quando percebi, já me encontrava em sua rua, observando as casas da vizi-
nhança. Nada mudou, as cores continuavam as mesmas, a grama continuava
alta, e a casa de Sophia ainda era a mais bonita de todas. Parei umas duas
casas antes e observei a janela de seu quarto. A cortina ainda era a mesma
cortina de bolinhas rosas no meio de um branco sempre radiante.
Recebi uma mensagem no celular e, rapidamente, reconheci a foto de Paul
na tela.
“Estou quase chegando. Alguém nos deseje sorte, por favor! Lembrei a músi-
ca, Sophia não cantava outra coisa há alguns meses. Já chegou?”
Dirigi de volta para a casa de Sophia, com uma espécie de reboque cheio
de rosas. Ouvi uma série de “ohs” antes de me colocar na posição certa e
começar a cantar. Kris havia me garantido que ela estaria em casa.
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But here I am asking you for one more chance
[Mas aqui estou eu lhe pedindo mais uma chance]
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[Agora garota, eu ouço sua voz e como ela treme]
When you speak to me, I don’t resemble who I was
[Quando você fala comigo, não pareço comigo mesmo]
You’ve almost had enough
[Você já se cansou]
And your actions speak louder than words
[E suas ações falam mais que palavras]
And you’re about to break from all you’ve heard
[E você está prestes a desabar com tudo que você já ouviu]
Don’t be scared, I ain’t going no where
[Não tenha medo, eu não vou a lugar algum]
77
Only you
[Só você]
It’s got to be you
[Tem que ser você]
Only you
[Só você]
78
[Tem que ser você]
Only you
[Só você]
It’s got to be you
[Tem que ser você]
Only you
[Só você]
Essa era a única verdade da minha vida, além de desejar viver o resto da
minha vida ao lado dela, para sempre.
79
Edilson Júnior
80
A flor da vida
Edilson Júnior
81
Pouco depois, um casal chegou.
A mulher bebeu o líquido com aquela substância mágica.
Com o tempo, sua barriga cresceu e seus seios aumentaram.
Adoeceu seriamente.
E partiu desta vida sem sofrimento.
82
O outro mar
Edilson Júnior
83
há muito não havia motivo para fofoca, e, embora não conhecesse os mora-
dores daquele casarão, já os julgavam de cima a baixo por suas aparências.
A nova família era constituída por três pessoas. Jandira, a mulher baixi-
nha de pele morena e cabelos castanhos; Matias, o homem com recuos no
cabelo e nariz reto e, por fim, Pedro, a pequena criança, motivo de orgulho
para a família.
A rotina deles podia ser facilmente memorizada. Trabalho pela manhã,
almoço rápido, levar o garoto para a escola, trabalho, jantar. Porém, mesmo
com os dias pesados, o sorriso sempre estampava aqueles lábios.
Aos poucos, os novos habitantes se “encaixavam” entre os outros. A
família educada e gentil passou a ser vista com ternura, principalmente por
causa de Pedro, do qual ninguém escapava de seus encantos. Com sua pu-
reza e inocência, o garotinho conquistara cada um que vivia nas redondezas.
Meses se passaram... o tempo exercendo sua magnitude.
Sábado chegou, mostrando sol fraco e agradável brisa. Felicidade cuida-
va de seu jardim, regando as flores e plantando sementes, criando novas vidas.
Uma criança brincava na grama, alguns metros à frente de Felicidade. Seus
olhos brilhavam e seus pensamentos voavam, enquanto o caos global não
destruía, ainda, sua imaginação. Sua vista caiu sobre o jardim florido e as
borboletas que o cercava. Hipnotizado, Pedro correu em direção à casa vizi-
nha, com sorriso de satisfação.
A senhora, devido à idade, custou-se a ouvir os passos que se aproxi-
mavam, continuando a trabalhar e cantarolando baixinho. Somente quando
foi se levantar, com seu vestido surrado e enlameado, foi que reparou na
estranha criaturinha, admirando as flores. Pedro, com olhos arregalados, ob-
servava as cores majestosas.
Mas não foi a postura atenta do menino que surpreendeu Felicidade.
Foi o tom dos seus olhos, um azul profundo, o azul do mar.
O azul do seu marido.
A dor a apunhalou de surpresa e, como um pássaro, pousara em seu
ombro, criando um latejar em seu peito manso. O ardor era antigo, fazia muito
que Felicidade aprendera a controlar a tristeza da morte.
Seus devaneios terminaram quando um casal irrompeu a porta da
casa vizinha. Jandira e Matias olharam para todos os lados, em busca de
algo desaparecido. Eles trocaram olhares sombrios e uma lamúria, histérica,
começava a se formar na garganta da mãe que correu para o jardim freneti-
camente, diante de seu maior tesouro.
84
Seu olhar caiu sobre Felicidade. A idosa tremeu, embriagada pela ton-
tura. Lâminas subiam e desciam do seu corpo, línguas de fogo em contato
com a carne. Ela só teve tempo de ouvir um suspiro aliviado antes de tombar
sobre a relva.
Uma brisa fresca soprava em seu rosto. A sensação era maravilhosa.
Felicidade não ousava abrir os olhos, temia mais do que nunca que os de-
mônios voltassem a assombrá-la. De que serviam fantasmas e monstros,
quando as memórias flácidas faziam tão mal quanto? O rosto de seu amado
continuava a piscar, a invadir seus pensamentos, suas lembranças.
Alguém cutucara sua barriga, de leve, sem intenção de ferir. Nenhuma
resposta. O cutucador agiu novamente, provocando dessa vez uma pontada
de irritação e, antes que pudesse evitar, Felicidade soltou um grunhido e
levantou-se, contrariada.
– Ô menino! Não tem educação, não? Falta de respeito machucar
uma senhora!
Era Pedro, a criança que a torturava sem tocá-la. Enraivecida, Felicidade
continuou a disparar blasfêmias em altos brados, até que os olhos do garoto
marejaram-se de lágrimas. A voz da senhora já estava rouca, mas ela se
esforçava no sentido de cobrir com o ódio a dor insuportável que sentia.
Exausta, embora se sentindo esquisitamente bem, olhou ao redor pela pri-
meira vez. O interior era desconhecido, paredes pintadas de branco, uma TV,
dois sofás cor de vinho, porta-retratos e brinquedos por toda a parte.
A foto mais próxima mostrava um casal de jovens se abraçando, sorrindo.
A barriga da mulher estava pequena, mas já era possível reparar tratar-se,
provavelmente, do começo de uma gravidez. As outras imagens criavam
uma linha do tempo ininterrupta: primeira noite em casa, primeiros passos,
primeiros tombos. Parecia um diário fotográfico, impressionantemente impe-
cável. A excelência dos pais refletia naquela casa, enchendo Felicidade de
culpa, uma injusta culpa.
Lágrimas escorriam pelo rosto de Pedro. A generosidade que aquela
mulher conquistara havia desaparecido, restando um amargor. O garoto fora
pego de surpresa, afinal, somente tocara na velhota por preocupação, te-
mendo ferimentos graves.
A casa parecia vazia, apenas eles. Um encarou o outro, com olhares
rápidos e mal- humorados. Cansando-se do novo jogo, Pedro sentou sobre
o primeiro degrau da escada, brincando com um carrinho de plástico.
“Vrum vrum.”
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Felicidade maravilhou-se em ver que o garoto, poucos minutos após,
esquecera a pequena “intriga” que ocorrera entre os dois. Hesitante, ela ca-
minhou lentamente para perto dele e sentou-se com esforço. Esfregou as
mãos, fingindo animação, e tentou acompanhar a imaginação dele.
“Vrum vrum.”
Ela se perguntou onde estavam os pais daquela criança. Tinha certeza
que o suspiro que ouvira pertencia à Jandira, a mulher superprotetora. Tão
rápido pensara nisso, e conseguiu distinguir sobre a cortina clara, a sombra
de um casal estendendo mares de roupa no fundo do terreno. Com um
sorriso ameaçando escapulir, a anciã notou que a maioria das vestimentas
era pequena.
“Vrum vrum, ih, splash!”
– Splash? – Perguntou Felicidade desorientada, sem fazer conexão da
nova onomatopeia com o brinquedo nas mãos do garoto.
Pedro começou a falar, com a animação, suas palavras saíam fanhas e agudas.
– Ah, é o barulho da água – murmurou ele. Mas logo se lembrou que
estava zangado e continuou com a voz mais severa – é que eu não tenho
navios, então o jeito é improvisar. – Ele fungou e deu de ombros.
– Hum... – Murmurou a outra, disposta a manter o assunto em movi-
mento, talvez para destruir o ego do jovem – e você gosta de barcos?
Naquele momento, toda a raiva se esvaiu de Pedro. Os olhos dele brilha-
vam, como quando viu as belas flores. Desatou a falar rapidamente, engolindo
letras e vírgulas, e gesticulava com as mãos para descrever certas medidas.
– E ali – finalizou ele apontando para um quadro escondido por trás
do sofá – é meu tatatatatataravô. Ele foi Almirante de Esquadra da Marinha e
um dia vou ser como ele!
A fotografia antiga exibia um senhor de barba média, expressão dura e
um uniforme recheado de distintivos reluzentes. O pulso de Pedro latejava de
orgulho toda vez que visualizava aquela foto.
– Sabe, o meu marido era pescador – comentou Felicidade, alegre
com o rumo que a conversa tomara – o melhor da região, seus peixes eram
especiais! Ele possuía um jeito especial de capturar sua presa, preservando
o sabor. Ah! Suas iguarias eram invejadas por todos, e olhe que naquele
tempo chovia peixe!
– Onde ele está agora?
Silêncio.
– Ah, tudo bem. Não precisa responder.
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– Ele morreu – sussurrou ela mortificada – morto. Perdido no mar.
Ela esperou o fogo infernal a atingir, ou as cerras a mutilarem impiedo-
samente. Nada. Já fazia anos que ela nunca tocava no assunto, considerado
tabu, mas agora ele estava ali, pairando sobre os dois, como um cão, vigian-
do e amedrontando a todos.
Novamente a ausência de palavras. Mas por que esta não era constran-
gedora e incômoda? Por que a irritação não fervilhava em sua pele, como
bolhas prestes a estourar?
Logo, o som de lábios se contraindo numa fusão de memórias e ri-
sos encheram o espaço da sala e do coração da velhota. Jandira e Matias
entraram na conversa, complementando com informações cruciais sobre o
período no qual as lembranças breves de Pedro não alcançavam, além de
histórias sobre os dois jovens apaixonados tentando viver seu amor em meio
ao caos mundano.
Minutos e horas passando. Lanche da tarde, bolo e café. Conversa fluindo
ligeira, papo comum. Quando se deram conta, a lua já era dominante, única
luz natural em meio à noite gélida sem estrelas. Felicidade cruzou a porta,
dirigindo-se para sua própria casa, as veias pulsando de um fervor antigo, há
muito não vivido, mas que agora abraçava como velhos amigos.
Os próximos dias foram delicados. Como explicar para aqueles pais que
seu filho era como uma droga que aliviava sua solidão constante? O risco
de ser expulsa da vida do garoto era iminente, ela até ria com amargura
imaginando uma conversa corriqueira. “Sabe, seu filho tem os olhos do meu
marido, preciso dele para suavizar minhas feridas...” Patético.
Então virou segredo, segredo de uma pessoa só, como todos os segre-
dos deveriam ser. As visitas continuaram, simplesmente pelo encanto de um
garotinho; coisa que ela não podia explicar, que pouco conhecia.
Os “porquês” a enchiam de dúvidas. Por quê? Ora, é só uma visita. Por
quê? Um jeito de alegrar a tarde! Por quê? Por quê? Por quê?!
Por causa deles. Um era a defesa do outro, complementavam-se. Uma
relação previsível, mas não tão benigna. Pois um deles está começando a
viver, enquanto o outro já começa a aceitar a morte. O sofrimento é certo,
então por que continuavam?
– Tem certeza? – A voz dele era insegura, mas mesmo assim tentava
mostrar-se corajoso, a fraqueza não dominaria aquele ser.
– Pode pisar, vamos! – Esta fala era carregada de animação, sentimento
87
agora sempre presente.
O pequeno barco se movimentou com as ondas leves. O casco era
antigo, porém firme, reflexo das horas de tratamento de produtos químicos
malcheirosos e tóxicos que recebeu. A tinta amarelada realçava as palavras
negras pintadas na proa.
– Imensidão azul? – Perguntou Pedro, sem conter sua curiosidade. Não
havia receios em fazer perguntas. Não mais.
– Encare o horizonte, até onde sua vista alcançar – respondeu pronta-
mente Felicidade, desembaraçando alguns metros de corda, os nós se des-
fazendo com facilidade e caindo em espiral sobre o cais – mesmo assim, só
verá água. Água para todos os lados. Desse ângulo parece algo interminável,
hein? Pensei que seus livros já explicassem isso...
– Tenho doze anos! Admire-se, pois meus livros não possuem dese-
nhos infantis!
Ela sorriu com a resposta, terminando seu serviço e logo começando
a preparar os remos.
– Que diabos são isso? – Sibilou o menino, apontando para as latas
de uma ração escura, enquanto tentava manter-se junto ao barco, que se
afastava aos poucos.
– Os peixes não se pescam sozinhos, rapaz! Ou eles, ou nós!
– E isso me devia tranquilizar?
Ela soltou uma gargalhada ruidosa, tão rara, mesmo naqueles tempos.
– Ora, pule de uma vez! Honre sua coragem!
Ele entrou no navio que sacolejava, o medo desaparecendo. Não podia
haver tristezas num dia como aquele: o céu sem nuvens, o canto dos pássa-
ros, a brisa suave. O clima parecia participar daquela celebração.
Passaram-se anos até que Jandira permitisse que Pedro entrasse num
barco. Felicidade também fora radical, negando viagens rápidas, escondidas
da mãe. Ora, demorara tanto tempo para que aquela mulher confiasse nela!
Não estragaria tudo por impaciência.
Os laços de amizade estavam mais fortes do que nunca. As brigas
e discussões fortaleciam a estranha relação. Porto seguro, confidente. As
evoluções pareciam não ter limites. A última casa da última rua quase nunca
estava vazia. A vizinhança se divertia com os muros de timidez de Felicidade
caindo aos pedaços, revelando uma mulher feliz, trocadilho que nunca caíra
bem em sua personalidade sofrida.
As velas se moviam contra o vento, distanciando-os cada vez mais
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das terras seguras. Felicidade sentia-se liberta, finalmente aceitando a morte
de seu marido, deixando seu espírito em paz. Ainda podia senti-lo algumas
vezes. Antes de dormir, quando, muito religiosa, rezava as bênçãos a seus
entes queridos. Ou quando cuidava de seu jardim, que zelava em dobro, com
o novo afeto em sua vida. Aquelas flores representavam todo o amor que
não podia ser expresso em palavras.
Eles estavam conectados em outra vida.
Pedro agora era uma criança alta para sua idade, pele bronzeada pelo
sol e cabelos curtos. Desenvolvera-se ao máximo ao longo dos anos, adqui-
rindo força, que agora usava para remar vigorosamente.
O dia não correu, voou! Mal entraram em alto mar e a tarde já termina-
va com o sol começando a se pôr. Voltaram em disparate, os dois temendo
um ataque previsível de mãe coruja, lançando frases longas sobre protetor
solar e o perigo dos anzóis.
Durante todo o verão, a pescaria foi a melhor forma de lazer, com a
qual Pedro aprendeu novas habilidades e Felicidade relembrou as que pos-
suía, esquecidas ao longo dos anos.
No começo de janeiro, ano novo sorrindo com promessas de esperan-
ça, o aniversário de Felicidade se aproximava. Pedro, esperto, porém negli-
gente, partiu, sozinho, para a pequena praia recheada de pedras.
O tempo era bom: sol fraco e céu azul. Mesmo assim, faltava algo, o
menino sentia isso. Onde estavam as nuvens e a brisa costumeira, e a maior
ausência de todas, onde estava sua vizinha e fiel parceira de pesca?
Hoje, Pedro pescaria sozinho, tomara essa decisão dias atrás. Para ele,
não havia melhor presente que algo feito por suas próprias mãos. A pesca
era a única atividade que dominava bem, embora isso não fosse um proble-
ma, pois, de qualquer forma, era isso o que faria.
Desenrolou os nós que prendiam o barco a uma estaca de madeira
presa firmemente à areia esfarelada e úmida. Empurrou o barco com dificul-
dade para a maré que desembocava a alguns metros de distância. Remou
rapidamente e, em poucos segundos, já estava no controle.
Caminhando sobre as pedras escuras, Felicidade observava a praia,
tentando colocar no lugar as emoções que explodiam em seu peito. Tal ati-
vidade era um ritual, seguido à risca ao longo dos anos. Um dos raros mo-
mentos de total paz, quando conseguia arrumar seu caos mental.
Não hoje.
Encarando a imensidão do horizonte, ela notou um invasor entre as águas
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escuras, logo reconhecido por um barco. Mesmo a distância, Felicidade no-
tou a silhueta que remava com dificuldades entre as ondas turbulentas.
Foi como levar um murro. O choque a deixou sem ar, incapaz de realizar
algo que não fosse arregalar os olhos devido ao pavor que tomava conta
dela. Uma neblina gélida já começava a se formar, e a viúva não sabia se
essa era real ou imaginária. Em sua frente, serpentes e insetos dançavam
enlouquecidos, alimentados pelo medo de uma mãe.
– Pedro! – Ela urrou, enquanto, sem pensar, corria em direção ao
garoto – Pedro!
Nadadora exímia, Felicidade resistia ao escarcéu marinho, batendo os
braços velozmente, aproximando-se de seu tesouro em naufrágio.
O tempo fechara, nuvens negras rodopiavam no céu escuro. O medo
dominou o corpo de Pedro, desorientando-o. O básico que aprendera pa-
recia ter sido surrupiado pelo mar, sugando-lhe a capacidade de pensar.
Distraído, deixou-se tombar nas águas, pego pela ventania que soprava em
seus tímpanos.
– FEL! – Agora ele gritava, lançando seu melhor ás pelos ares – FEL!
Por momentos, ele submergia, afogando-se e batendo pernas e braços
freneticamente. Porém, logo que voltava à superfície, tornava a afundar de
novo, perdendo energias e esperanças.
Seu corpo tocou o de Felicidade, que se mantivera lúcida até ali, como
um animal protegendo sua cria. Naquele momento, a tragédia pareceu redu-
zir-se, restando somente os dois, envoltos por uma luminosidade vibrante.
As lágrimas, que nunca seriam soltas, ardiam dolorosamente. Não ha-
via esperanças, concluiu Felicidade. Era mais do que merecia: estar presente
naquela situação, reconfortando-o como podia.
Pedir piedade era tolice, a morte nunca fora um pavor concreto, suas crenças
não permitiam fraqueza nos últimos segundos, ela se mostraria guerreira.
Os dois desceram para as profundezas, abraçados como velhos ami-
gos. A mente do garoto explodia, mas uma onda de paz emanava da aura
que os envolvia, sublimando a cena, criando até certa beleza.
As últimas bolhas estouraram no mar, longe dos olhares de qualquer
ser vivo daquelas redondezas. Estranhamente, seus corpos não emergiram,
mesmo quando carcaças ocas, sem almas.
A tragédia caiu sobre a vizinhança ao longo dos meses, o choro con-
tido continuou por anos, e o acidente comentado durante décadas. O barco
encontrado perdido em alto mar era a única pista do misterioso desapareci-
90
mento. Alguns afirmavam ser obra de fantasmas maldosos, outros suicídio.
As perguntas não respondidas criavam um ar pitoresco à cidade, onde a
verdade, que o amor maternal pusera fim à vida de duas pessoas, nunca
foi considerada uma hipótese pela língua maldosa do subúrbio local. Era
estúpido imaginar que, para a maioria, era fácil acreditar em crimes federais,
mortes violentas e fugas internacionais, mas nunca cogitar em uma partida
natural, que uma criança se fora, vítima de si própria.
A escuridão reinou por tempo indeterminado. Lutaram com afinco, mas
em vão. Ninguém imaginara que uma velhota solitária pudesse ser a porta-
dora de luz, rainha dos jardins. Jardim que era evitado por todos agora. A
casa trancafiada exibia um ar solene, como se divindades se mantivessem
ali em guarda. As flores tão belas, agora, eram simples borrões destroçados,
tombados sobre a terra seca e árida. E, quando alguém resistia ao temor e
encarava o antigo lar das belas plantas e coloridas borboletas, parecia viver a
experiência de morte dos moribundos.
Pois era ali que Felicidade aliviava sua dor. Era ali que pretendia des-
cansar. Onde o ciclo começara, onde a beleza era traiçoeira.
Pois ali era o outro mar.
91
Palavra solta
Edilson Júnior
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– Casei com o José, lembra dele, do sétimo ano? Não? Ah, que pena...
Maravilhoso. A cerimônia foi ano passado. Lua de mel no Rio Grande do
Sul, perfeita. Um dia te mostro as fotos. Ontem era o aniversário da minha
filha Roberta. É, tenho duas filhas. Uma adolescente e outra ainda criança.
Dois amores. Falando nisso, como anda sua vida amorosa? Namorando,
solteira, casada? Espera um pouco, tem alguém me ligando. Ai Jesus, cadê
meu celular? Tem de tudo nessa bolsa, o José vive implicando por causa
da minha bagunça. Achei. Esquece, era só o despertador, devo ter regulado
a hora errada. Era para despertar 7h45min. É que estou trabalhando no
Centro. Bibliotecária de um colégio. O trabalho é fácil, nada que canse muito.
O difícil é me manter em silêncio... Quem vê, pensa que sou faladeira, hein?!
Bete já começava a achar isso. Não entendera nenhuma palavra dita pela
companheira, pois a velocidade em que relatava era impressionante. Sabia
da vida de muita gente em menos de um andar! Tentou complementar algo,
mas sempre que abria a boca logo era cortada pela voz ligeira de Poliana.
– Já passou no Shopping Central? Tem uma loja com um vestido muito lin-
do! O nome não me vem à cabeça agora, é perto da praça de alimentação.
Estava em promoção quando vi, não sei agora. O preço das coisas de hoje é
um absurdo. Lembro que na nossa época tudo custava pouco, mas também
era pouco o dinheiro que passava por nossas mãos...
Estavam na metade da rota, e os ouvidos de Bete já latejavam implorando
silêncio. O reencontro não parecia uma boa ideia agora. Pensou em maneiras
de abrandar aquela mulher, mas a única que lhe vinha à cabeça terminava
com sua mão nos lábios da amiga. Apressou o passo, estimulando a outra a
fazer o mesmo, esperando chegar o mais breve possível.
– Ficou sabendo do Diogo? Um loirinho estranho que sempre sentava no
fundo. Morreu. É, fiquei sabendo pelas más línguas. Como tem gente fofo-
queira nesse mundo! Atropelado, voltava para casa de madrugada. Provavel-
mente bêbado, boa coisa não fazia, não acha?
E as frases continuavam, ecoando pelas paredes. O timbre da voz da se-
nhora era alto, reforçando a importância de informações fúteis. Tão alto que
não repararam o som eletrônico dos outros apartamentos, informando que
a eletricidade voltara.
Chegaram ofegantes, Poliana implorando copos de água. Sentaram-se nos
sofás, uma de frente pra outra. Abriram a boca para comentar algo, mas logo
tornavam a fechá-la, pois todo o assunto já se esvaíra na conversa de via
única nas escadas daquele edifício.
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Nas alturas
Edilson Júnior
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− Alô? Seu Roberto? − Disse Antônio eufórico. − Ocorreu um pequeno
problema aqui no Rio...
Foi cortado pela voz de Roberto que, pedindo licença e desculpas, retirou-se
a um lugar isolado.
− Dê um jeito, Antônio! − Respondeu rispidamente − e reze para que
funcione.
E desligou o telefone, deixando-o na completa confusão.
– Rezar? – Disse ele em voz baixa. – Deuses não existem.
Um trovão ribombou no céu, longe dos ouvidos daquele indivíduo.
Seu Antônio chegou em casa. Tomou uma sopa sem gosto, deitou-se na
cama, sem ao menos tirar os sapatos e adormeceu.
Sonhou que estava acima das nuvens, via o sol daquele ponto. Mas seus
raios não o atingiam com agressividade, era um calor gostoso. Então viu
um homem marchando em sua direção, passos ritmados, sem demonstrar
quaisquer sentimentos. Dava para ver que estava irritado.
− Quem é o senhor? − Perguntou Antônio, com um calafrio na espinha.
− Pergunto o mesmo para você, intruso! − Rugiu o homem que aumentou
seu tamanho até alcançar três metros de altura. − Mas responderei sua
pergunta, sou Deus e este é o paraíso. Então saia, parasita!
− Como vou sair de um lugar a que estou destinado quando ocorrer a mor-
te? − Disse Antônio, ofegante. − Como haverei de sair?
− Vós sois muito tolo, mortal. − Respondeu Deus. − SEU LUGAR NÃO É
AQUI!
Então, com um simples gesto, as nuvens se abriram, mergulhando Antônio
na escuridão.
E ele foi caindo.
Caindo.
E caindo mais um pouco.
Quando a escuridão diminuiu, notou pequenas labaredas que se transforma-
ram em um imenso lago de fogo, então, viu o inferno.
Antônio acordou suando frio e olhou para o seu relógio: 6h30min. Decidiu
se levantar. Escovou os dentes, ainda pensando em seu pesadelo. Pegou
as chaves do carro, que, novamente, não funcionou. Resolveu ir de ônibus.
O trânsito fluía melhor. Quando chegou ao aeroporto, viu diversos aviões no
céu e se alegrou pela primeira vez. Comprou sua passagem na classe eco-
nômica. Uma hora depois, as turbinas ligaram. O voo iniciaria.
Era uma viagem curta, uma hora de voo, mas somente quando estava nas
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alturas se deu conta de que tinha medo de voar.
Foi lhe dando uma dor no peito, assustado não sabia o que fazer, pediu
socorro. Duas aeromoças vieram lhe ajudar. Pensou em Deus. Era culpa dele
o que acontecia, mas seu Antônio não tinha outra escolha a não ser rezar.
Pediu a Deus para que o perdoasse. Rezou para Madre Paulina, pensou em
Santo Antônio, que levava seu nome. Mas era santo casamenteiro, quem
sabe não largava o casório um minuto e fazia um bico? Resolveu tentar. E,
com esses pensamentos, apagou.
Acordou em um hospital de São Paulo no fim de sua viagem. A enfermeira
lhe dissera que teve um infarto. Sobreviveu graças ao atendimento rápido.
Seu Antônio não acreditava mais na ciência, que tanto admirava.
E olhando para o azul do céu, viu uma minúscula forma que brilhava ao sol.
Pensou que fosse sua imaginação, mas não, Ele havia lhe dado outra chance.
Feliz, esboçou um sorriso de satisfação.
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Relutantes
Edilson Júnior
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Quatro amigos e uma missão
Edilson Junior
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− Já está na hora?
− Ainda não, faltam três minutos.
− Vamos nos livrar dele agora.
− Espere! Não desafie o diretor.
− Vamos mandar a carta para seus pais. Vão ficar tristes.
− Pare. Ouço ruídos.
− Ali. Atrás dos armários.
Era tarde demais quando percebemos a situação. Corremos para os banhei-
ros dos garotos, empurrando Andressa porta adentro.
− Eu não vou entrar aí – disse ela. − É sujo e nojento − emendou antes de
ser empurrada por Dylan.
Quando Andressa entrou, tapou o nariz e a boca, correu para a pia e fingiu
vomitar. Depois que voltou, falou em voz trêmula.
− Vocês são uns porcos.
Olhei no relógio. Faltavam dois minutos para a execução.
− Mike, você tem ainda o estilingue na sua mochila? − Era uma ideia malu-
ca, mas era tudo que tínhamos.
− Acho que sim, mas...
− Use-o.
Mike resmungou que seus amigos não se preocupavam com ele; pegou
uma pedra e largou o estilingue.
− Ai meu braço − disse ele − está doendo muito.
“Pronto”, pensei, “agora a situação ficará difícil”.
− Ótimo! Alguém vai me ajudar? − Falei bravo.
Houve um silêncio constrangedor, todos se olharam com expressão de pavor.
− Ok. Eu vou sozinho − peguei o estilingue no chão. Armei-o com uma
bolinha de gude e me escondi no armário.
− Acha que ele vai conseguir? − Perguntou Dylan.
− Não sei... − Disse Andressa.
− Vamos embora − Mike disse, tirando o boné − perdemos Angel, um
bravo guerreiro que caiu lutando pelo seu amigo – então guardou o boné na
mochila e disse sorridente − vamos?
Saí correndo. Encontrei Hugo sentado em uma carteira escolar escrevendo
coisas ilegíveis. Pensei que era uma tortura. Quando ia falar com ele, o sinal
toca. Hugo se levanta, sorri, corre ao meu encontro e diz:
− Detenção no sábado? Não quero isso de novo.
Fomos para casa falando sobre filmes de espiões que salvam amigos.
100
Pedro Guimarães Terence
Nasci em São Paulo, no dia 12 de abril de 2004. Estudo na escola Autonomia, em Flo-
rianópolis. Cheguei ao NAAH/S porque minha mãe, Andréia, reparou no meu interesse
pela leitura, habilidade essa que desenvolvi precocemente aos 3 anos de idade. No Nú-
cleo, frequento a oficina de leitura e produção textual, onde leio muito, discuto ideias e
desenvolvo a competência escrita, além de conhecer outras crianças que, iguais a mim,
gostam muito de ler. Atividades desportivas, como o futebol de salão, o judô e a natação,
também fazem parte da minha rotina. Saio-me bem em leitura e audição da língua inglesa.
101
O leão e o lobo
Pedro Guimarães Terence
Um dia o leão estava caçando um alce quando percebeu que a presa era
muito rápida. Depois achou um porco e tentou caçá-lo, nesse meio tempo,
um lobo teve a mesma ideia.
Como o leão e o lobo estavam longe se escondendo para o porco não ver
os dois e se assustar, eles pensaram que o porco havia pulado e se atiraram
no desfiladeiro.
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Dom Quixote por Pedro Terence
Pedro Guimarães Terence
103
Nicole Teixeira Vieira
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A floresta “mal-assombrada”
Nicole Teixeira Vieira
Era uma vez uma floresta que todos diziam ser mal-assombrada.
Certo dia a arqueóloga Daniela foi a essa floresta e, chegando lá, exclamou:
− Que floresta estranha? Será que existe algum animal por aqui?
Desde então ficou atenta a tudo. De repente, ela ouve um som que a fez
ficar apavorada.
− O que foi isso?
Embora assustada, não desiste e continua andando, quando ouve o som de
um bem-te-vi e diz:
− Isso prova que existem animais nessa floresta! E pessoas? Será que há
pessoas por aqui?
Vê, depois disso, um vulto e grita apavorada.
− Socorro, socorro!
Verifica, então, que era só uma macaquinha pulando de galho em galho e,
mais calma, ela exclama:
− Será que pessoas conhecem este lugar... Será que vivem por aqui?
E, mais uma vez, sem que ao menos esperasse, a macaquinha conta para
ela:
− As pessoas? Claro! Vou mostrá-las.
Ela fica morrendo de medo, mas acompanha a macaquinha que a leva a um
lindo recanto, que Daniela constata ser um paraíso com águas cristalinas,
grama, árvores...
− Todas as pessoas que vem para cá decidem ficar – explicou a macaqui-
nha.
Então, na cabeça dela, tudo se juntou: floresta mal-assombrada, sons de
animais...
− Agora entendi por que me assustaram: é para que ninguém destrua essa
beleza sem igual.
Mais uma vez, então, a macaquinha falou:
− Tudo aqui é mágico! As pessoas más não podem entrar aqui! Por isso nós
as assustamos e elas saem correndo.
Daniela decide ficar por entender que ali era o seu lugar.
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Renan Colzani da Rocha
Nasci em Florianópolis, porém fui criado em São José. Sempre gostei de arte. Aos 6
anos de idade, quando comecei a estudar, desenhava por causa das aulas de educa-
ção artística, com o tempo aperfeiçoei essa prática. Em 2008, quando estava na 5ª sé-
rie, comecei a demonstrar gosto pela leitura e, posteriormente, pela escrita. Em 2010,
por recomendação de uma professora de educação artística, fui encaminhado para o
NAAH/S, por conta de meus desenhos. Ao final do mesmo ano, demonstrei extremo inte-
resse pela escrita, atividade principal para mim no Núcleo. Como inspiração, minhas séries
favoritas são: Harry Potter, Percy Jackson e Os Olimpianos e, atualmente, As Crônicas de
Gelo e Fogo. Em 2012, me envolvi com o teatro, atividade que pratico ainda atualmente.
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A história de Ploft, a duende
Renan C. da Rocha
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Quando já estava a caminho, lembrou-se de seu amigo urso-leão, que
também adormecera em meio à confusão, e voltou para tentar reanimá-lo.
Quando finalmente conseguiu despertá-lo, os dois saíram correndo. Nem
passou pela cabeça dela que os canibais acordariam novamente e os perse-
guiriam.
Ploft tornou a ouvir o barulho produzido pelos canibais e pensou que o piano
reapareceria, mas não seria uma grande coisa, já que fugir para sempre não
era uma boa ideia.
Ploft já perdia as esperanças quando Thama apareceu e lhe disse que
seu ato foi incorreto. Ela se arrependeu de ter fugido, pediu desculpas e
implorou para que a deixasse voltar para casa. Mas a rainha era muito sábia
e, por isso, não permitiu que Ploft voltasse até que encontrasse o seu verda-
deiro caminho.
A rainha deu a Ploft um capacete congelante. A duende o colocou na
cabeça e tudo parou. Quando Ploft o tirou, as coisas voltaram ao normal.
Mas a rainha sabia que não seria tão fácil vencer os canibais somente com
o capacete, já que nem o piano que mandara para Ploft adiantou. Deu-lhe,
então, uma moto. Era uma moto bonita e Thama explicou a Ploft que servia
para queimar os inimigos. O capacete congelante e a moto formavam um
belo par.
A rainha, com uma mágica, sumiu e os sons dos canibais voltaram.
Ploft esperou para vê-los, depois subiu na moto, colocou o capacete e partiu.
Ela queimou a floresta e as árvores. A rainha tornou a brigar com Ploft, e lhe
disse que queimar a floresta foi muito errado, mas lhe concedeu o perdão
e pediu que retornasse ao reino. Ploft decidiu voltar, mas apenas se o urso-
leão fosse junto. A rainha aceitou a proposta e todos voltaram ao reino muito
felizes e aliviados.
Após vários anos, apesar de velho, o urso-leão continuava feliz.
Ploft agora era mãe e contava a seus filhos suas aventuras fantásticas e
inesquecíveis.
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DNA infinito
Renan C. da Rocha
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sentado ao lado de sua esposa em um sofá de vime.
“Eu... Eu estava fazendo uma pesquisa para a universidade. Olhei em
todos os sites acessíveis para colocar o máximo de informações que pudes-
se em meu trabalho acadêmico.” Uma pitada de medo era visível no menino.
“Mmm...”, murmurou o velho. “Interessante. Você sabe como se cha-
ma realmente este DNA?”.
“Não, não... Eu criei este nome, pois todas as pessoas tinham um deste
circulando pela internet, mas, na realidade, o que mais me fascinou foi o
fato de vocês conseguirem dar um DNA para cada um, mesmo com nomes
falsos na internet. Eu testei isso por dias seguidos...” Carlos se apavorou,
mesmo não sabendo com o quê.
O casal se entreolhava a cada frase pronunciada por ele. O suor escorria em
sua testa.
“Eu buscarei o chá.” A velha parou no corredor que levava à cozinha.
“Quer chá garoto?”
– Não, muito obrigado. O medo dava-lhe ânsias de vômito.
“Mesmo assim, pegarei três xícaras.”
Levantou-se, não queria tomar chá. Despediu-se do velho hacker apo-
sentado, que o chamou quando estava na porta:
“Eles lhe pegarão, Sr. Finckle. Estão atrás de mim há décadas. Se eu
fosse você, parava com isso agora.”
“Mas eu preciso, não desistirei de um pro...”
“PARE, não continue com isso, me ouviu bem?!” O velho resmungava
palavras estranhas.
Carlos correu enquanto o velho esbravejava às suas costas: “Eles vão
te pegar, moleque!” O jovem foi até o ponto de ônibus mais próximo e parou.
Abriu o notebook e quando o ligou, uma mensagem apareceu: “Nunca mais
irás se meter com coisa que não deve”. Apavorado, olhou para trás e o velho
estava ali, olhando-o: “Entendeu moleque?!”
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O elevador de tijolos
Renan C. da Rocha
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Perigo desconhecido
Renan C. da Rocha
Era uma noite chuvosa de dezembro. Ninguém andava pela rua deserta
que cruzava com a avenida principal. De repente, saído das sombras, apare-
ce um menino correndo e respirando fundo. Fugia de um homem estranho,
com cabelos grandes. Parecia-lhe familiar. O pavor pulsava nas veias do
garoto desesperado.
O suor escorria pela sua testa, e a cada passo ele diminuía a veloci-
dade. Uma raposa (“estranho”, pensou o garoto) passou correndo com suas
perninhas, fazia força para caminhar, assim como o menino. Sua pelagem era
clara como neve, mas, em partes, manchas vermelhas mal distribuídas eram
visíveis.
O garoto parou no fim da rua. Não havia saída, a não ser que pudesse
pular o muro a sua frente que tinha mais de três metros de altura. Ele pensou
em ir para a calçada, queria fugir do assassino. “Não vou conseguir”, uma
voz lhe disse. Ele se viu encurralado, o homem agora já não corria, andava. A
única parte visível do psicopata eram os dentes malcuidados, mas brilhantes.
O coração do garoto subiu até a garganta. O medo saía por suas nari-
nas junto ao ar que expirava. O barulho das lâminas que o homem tinha em
mãos o fazia ranger os dentes. Ele agora estava nauseado.
“Pense, pense”, foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça. Saiu cor-
rendo, foi contra o homem. A cada passo ganhava mais coragem. “Tec, tec”,
faziam as lâminas recém-afiadas e sujas.
Josh também possuía armas, não físicas, mas mentais. Parou diante
do homem que lhe sorria maleficamente. Já não sentia mais medo, agora se
encontrava cheio de coragem.
A poça de água refletia a escuridão como um espelho, afinal, o frio
estava congelante e a cada minuto a temperatura caía. O coração de Josh
sofreu uma parada momentânea.
“AAAAAH”, Josh correu contra o homem e, na hora em que ia tocá-lo,
deu uma volta e passou ao redor dele, e as lâminas cortaram um pedaço de
sua camiseta azul. A raposa era ele.
Os braços do assassino estavam abertos, e a corrida recomeçou. A
avenida principal estava entupida de carros e pessoas. Josh passou em meio
à multidão, que se enfurecia, pois ele empurrava a todos. O homem foi mais
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esperto. Atravessou pelo canto da calçada, onde não havia ninguém e, ao
chegar ao outro lado, estava esperando Josh, com as lâminas preparadas
para matá-lo. Uma última gota de coragem, somente uma.
“Me mate”, disse Josh ao assassino. “Me mate em frente a todos.”
“Você não entende?”, perguntou ironicamente o homem. “Você é o
único que pode me enxergar.”
As veias de Josh pulsavam cada vez mais rápido. Suas pupilas se
dilatavam e diminuíam conforme a batida de seu coração, que agora estava
descontrolada. Receava perder a vida, a estabilidade mental. Os dois esta-
vam empatados, um a um, como em um jogo de futebol. O último lance
decidiria a partida: ou Josh morria ou admitia a sua loucura.
“Tudo bem”, disse finalmente, “Me mate”.
A poça de sangue se espalhou pela avenida. Os gritos foram escuta-
dos ao longe.
“O que aconteceu?”, Josh acordou gritando. O quarto ao seu redor
estava como antes, exceto pelas lâminas ensanguentadas jogadas ao chão.
Na parede branca, uma frase escrita em vermelho:
“Você não entende? Você é o único que pode me enxergar.”
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Karoline Abreu
Resido no bairro do Roçado, no município de São José (SC) há 12 anos. Minha família é
composta por meu irmão mais novo (Bruno), meu pai (Robson) e por minha mãe (Anelise).
Desde pequena me interesso pela natureza, pela magia, pelo poder do mundo sobre as coi-
sas: isso me fascina! Adoro desenhar e fantasiar as coisas. Na escola me destacava pela pro-
dução de textos criativos, com senso crítico, segundo os professores; porém, nunca ganhei
nenhum concurso, ou algo do tipo, porque não participava por não acreditar no meu potencial.
Sempre gostei de inventar mundos diferentes e fugir da realidade. Foi assim que co-
mecei o projeto do meu livro, em 2011. Numa das aulas chatas de matemáti-
ca, comecei a escrever sobre uma garota que, assim como eu, queria deixar os
problemas de lado e ir para um mundo diferente, cheio de aventuras. Nas aulas se-
guintes, não conseguia parar de escrever! Foi uma das sensações mais incríveis
que tive, não sabia ao certo o que estava escrevendo, não pensava, apenas escrevia.
Depois disso, entrei no NAAH/S, na oficina de história em quadrinhos e, quando mostrei as
páginas escritas, convidaram-me a participar da aula de criação literária e eu mesma me sur-
preendi com minha facilidade para criar narrativas. Escrevi diversos textos, mas minha aten-
ção se volta sempre e, diariamente, para a construção do meu livro. Conforme fui aprimo-
rando meus textos por meio das revisões realizadas pelas professoras, aprendi muito sobre
gramática e descobri minha facilidade e gosto pelo estudo da língua portuguesa. Diante dis-
so, pretendo cursar a faculdade de letras – português e, depois, a de jornalismo, seguindo a
carreira como escritora e, por fim, é claro, concretizar meu maior sonho: publicar meu livro!
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Não pare de sonhar
Karoline Abreu
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pergunto, qual é seu sonho? O que te move? O que te faz se sentir bem
e especial? Muitas vezes não conseguimos conquistá-lo, não por falta de
vontade, mas, sim, por falta de acreditar que ele pode se tornar real e que
somos capazes de qualquer coisa.
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Café com amaciante
Karoline Abreu
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pai gritando e imitando um macaco. Estava louca para chegar, então, saí
correndo e escorreguei em uma pedra cheia de areia, caindo de bunda no
chão! Era o que faltava para a diversão e a gozação ficar completa.
Então... Ainda não tinha acabado! A trilha já era passado, mas ainda
faltava andar até o outro lado da praia: um quilômetro e pouquinho, onde
estava a maravilhosa lagoa de águas agradáveis em forma de cobra. Sem
falar em arrumar o acampamento... Mas isso era obrigação dos meus pais, a
minha era me divertir, como fiz durante o dia.
Quando chegou a noite, a única fonte de luz era a da “pomboca”. A
palavra não tem nada a ver com o objeto: é apenas uma garrafa pet para se
colocar a vela, fixada com areia molhada. E pronto! Mesmo sendo simples, o
efeito é mágico.
No fogo à lenha, a comida fica uma delícia. Depois de ouvir músicas
em volta da fogueira, é hora de dormir. O silêncio ajuda e, mesmo não sendo
confortável dormir sobre um cobertor, o sono é gratificante depois de um dia
cansativo.
De manhã, o sol nasce na beirinha do mar. É romântico! Café bem
quentinho saindo do fogo, não há coisa melhor. Opa! Mas onde estava o
coador para fazer o café? Minha mãe havia esquecido em casa... Isso não
foi problema para nós! Foi só pegar uma toalha de louça e pronto. Agora
sim, café quentinho... Que maravilha! Mas... Com gosto de amaciante? Da
próxima vez é melhor levar o coador. A solução foi refazer o café!
Os pássaros cantando e as crianças brincando na lagoa.
Isso sim que é estar de bem com a natureza.
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Palavras...
Karoline Abreu
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Corra!
Karoline Abreu
Os passos em eco ficavam cada vez mais altos, sinal de que alguém
chegava. Meus pés adormecidos fincavam-se no chão. A garganta seca ten-
tava engolir o susto. Não sabia onde estava nem como chegara ali. Lembrava
somente que, depois da aula, seguia para casa, pelo caminho de sempre,
ouvindo músicas calmas.
Nuvens de chuva cobriram o céu e, em alguns segundos, apenas o
tempo de olhar para o alto, os pingos cada vez mais fortes me atingiam. Corri
para chegar à marquise de uma loja. Abri a mochila, conferi se o material
havia molhado e desmaiei.
O som dos passos cessou. Senti uma respiração perto do ouvido, uma
mão molhada me segurou e uma voz docemente feminina disse: “Corra!!!”.
A garota gargalhou tão alto que algumas luzes piscaram. Só consegui
ver que lhe faltava um braço, era careca e tinha o rosto deformado. Vestia
uma camisola suja de sangue. Olhei rapidamente para os lados e percebi
um tipo de túnel. A garota com uma faca nas mãos vinha em minha direção,
vagarosamente...
Corri, corri, corri, naquele túnel gelado, escorregadio e com várias passa-
gens que me deixaram confuso. A garota me perdeu de vista. Algum tempo
depois, encontrei uma escada, subi e cheguei a uma avenida. Subitamente,
ela me agarrou pelos pés, porém deixou cair a faca. Quando se abaixou
para pegar, pulei por cima dela, peguei a faca para me defender. Ela veio
em minha direção, consegui derrubá-la, mas quando iria atingi-la, acordei.
Estava em uma cama de hospital e, ao meu lado, um buquê de rosas negras
e um cartão:
Não foi desta vez, Maick.
Nunca tente matar alguém que já está morta...
P.S.: Garota do túnel.
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Dragão de gelo
Karoline Abreu
A luz se acendeu. Dei de cara com uma criança de uns cinco anos
sobre uma mulher coberta de sangue, o garotinho ria sem parar, ele agarrou
nos cabelos da mãe e começou a bater constantemente a cabeça dela na
parede. A mulher já estava no chão e o menino não teria força suficiente. Fi-
quei sem ação: meus pés estavam grudados no chão, minha garganta secou
e minha boca formigava, comecei a suar de desespero. O garotinho largou-a,
veio em minha direção, subiu na cama e sussurrou bem no meu ouvido:
– Ele está chegando... – Atravessou o apartamento, abriu a porta e
entrou no elevador.
O prédio tremia do primeiro ao 27º andar. Os moradores, sem entender,
gritavam. Ouvi um estrondo, olhei para trás e percebi que por baixo da porta
do elevador passava uma fumaça escura e sufocante. De repente, um dragão
enorme destruiu a parede da frente do apartamento. Com dentes gigantescos,
ele tinha uma metade preta com cristais negros iguais a uma noite sem estrelas,
chifres enormes e escamas pegajosas de prata. E a outra metade, azul celeste,
com diamantes ao redor do corpo e com garras enormes de prata.
O dragão do lado negro pegou o cadáver da mulher bruscamente, o
lado celeste sussurrou para que eu fosse embora de pressa. Pulei nas costas
do lado negro e me escondi entre as escamas dele, que se uniram sobre
mim. Estava com pouco ar e não sabia o que estava fazendo. Algum tempo
depois chegamos a um lugar muito quente, a outra metade do dragão rugia
de dor.
Desci dele e fui me esconder atrás de uma pedra.
Nunca imaginei que em plena manhã de sábado, na minha única folga
do mês, acordaria com as batidas daquela criança amaldiçoada e, incrivel-
mente, estaria aqui.
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Estranho na privada
Karoline Abreu
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Enquanto não chegava, aproveitei para armar a emboscada. Cortei os
fios dos telefones, coloquei facas e armas em posições estratégicas. Por fim,
acrescentei tempero salgado à comida.
Quando tudo ficou pronto, chegou. Estava com uma pasta, entrou e
quis me mostrar alguns papéis. Mudei de assunto e o convidei para jantar.
Conforme o planejado, ele se engasgou com a comida. Retirei-me
para buscar um copo com água, na cozinha, que ficava atrás da cadeira
onde ele estava sentado. Voltei com duas adagas de ouro e enfiei-as em
seus braços. Caiu no chão, tentou se levantar, mas foi engatinhando em
direção ao telefone que estava desligado. Suplicou para que não o matasse.
Segurei-o firme na parede e o degolei.
A campainha tocou.
Era aquela vizinha chata com um bolo nas mãos para me presentear.
Tentei mandá-la embora, mas quando viu minha mão cheia de sangue queria
saber o que aconteceu. A metida entrou e eu a esfaqueei.
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Eu já imaginava...
Karoline Abreu
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nem me chantagear!
– Tudo bem, se você pensa assim...
Saí andando e, ao chegar à sala para assistir a aula de matemática,
Genoveva me barrou na porta:
– Escuta aqui seu pirralho, se você acha que pode proteger o seu
mundo, fique sabendo que somos muitos e ninguém é páreo para nós!
– Sua ET nojenta e imunda, não adianta tentar nos destruir porque
também somos muitos. Cara feia pra mim é fome!
Ela abaixou aqueles óculos redondos e, debochada, me disse:
– Veremos!
Entrei na sala de aula. Estava louco para pedir desculpa ao meu amigo.
Alguns minutos se passaram até que ouvi um grito:
– Socorro, me ajudem!
Parecia o Jorge. Saí correndo pelo corredor até chegar perto do banheiro
feminino. Olhei para o teto, li a frase: estava escrito: “Você vai se arrepender!”.
A grande palavra de sangue foi se condensando aos poucos e, assusta-
do, fui procurar nas salas, nos banheiros, nos corredores, no pátio, no ginásio.
Nada do Jorge.
– O senhor ouviu algum grito?
– Eu? Não, depois dizem que eu sou louco. – Disse o faxineiro Elias.
Fiquei ainda mais assustado. O que estaria acontecendo? Por que ninguém
me ouviu? Precisava de respostas.
Voltei sem jeito para a sala e a professora ficou irada comigo. Quando já
era hora de ir embora, fui atrás de Genoveva, mas ela já havia saído, então corri
para a casa de Jorge. Ele não havia chegado e eu esperei, esperei, esperei.
Um mês se passou... Dois, três e nada de Jorge e de Genoveva.
Enquanto os procurava, também fui falar com o tio dele, expliquei to-
dos os acontecidos, estudamos fórmulas juntos, até que, sete meses depois,
Jorge foi encontrado andando sem rumo nas ruas do município vizinho. Pe-
guei meu skate e fui o mais rápido possível a casa dele.
– Finalmente Jorge, onde você estava? Preciso muito lhe contar várias coisas!
– Não me importa, vamos dominar o mundo e nada vai nos deter!
– O que você está falando?
O que será que aquela safada fez com ele?
– Meninas! – Gritou Jorge.
Todas as professoras da escola desceram a escada da casa de Jorge
e o faxineiro me amarrou e me amordaçou. Mas o que eles não esperavam
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era que toda a CEET – Companhia de Extermínio contra Extraterrestres esti-
vesse de prontidão. Os ETs que haviam tomado a cidade foram isolados em
uma grande bolha de plástico magnético e destruídos.
Dizem que até hoje existem ETs disfarçados e este é meu trabalho:
encontrá-los e combatê-los.
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Apenas um pedido
Karoline Abreu
a
q
u
i
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Patrick Rodrigues
Nasci e me criei em São José, Santa Catarina. Sempre gostei de filmes e de livros. De-
cidi, aos 14 anos, que queria fazer faculdade de cinema e ser escritor. Fui descoberto
pelo NAAH/S por minha facilidade em desenhar e, logo depois, descobri o gosto pela
escrita. Sou conhecido na escola por ser muito avoado. Aproveito o tempo livre para
ler, desenhar e escrever. Meu estilo tem a ver com o mistério e o suspense, o lado
sombrio e obscuro, nele junto aventura, ação e muito sangue, com humor negro em
alguns casos. Sou fã de muitas sagas, como: Harry Potter, Percy Jackson, Jogos Vo-
razes, e muitas outras. Sonho em me tornar um grande ator-diretor e escritor de livros.
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Fênix: ressurgindo das cinzas
Patrick Rodrigues
Minha mãe sempre contava a história de uma menina que virava pás-
saro de fogo. Ela se chamava Fênix, um ser cheio de amor, ódio, alegria,
paixão, fúria.
Era uma criatura linda, que podia morrer e ressurgir das cinzas.
Fiquei paranoica com essa história toda, porque eu fervia e a tempera-
tura dos ambientes aumentava quando eu chegava. Quando corria, parecia
que minha sombra tinha asas e bico.
Lembro-me bem daquela noite. Em meu quarto, dormia um sono
sufocante, era meu pior pesadelo. Estava em um labirinto dentro de mim e
queimava de febre.
Acordei com toda aquela fumaça em meu quarto, o fogo tomava con-
ta. Levantei depressa, com muito medo. Fui para o quarto dos meus pais e
eles não estavam lá: deixaram-me, escolheram se salvar.
Chorei. Estava sozinha naquele inferno. Corri até a janela da sala, mas
estava trancada. O fogo se alastrava cada vez mais, meus cabelos queima-
vam e minhas pernas também. Gritei. Não me queimava, não sentia nada.
Gritei ainda mais forte e ele foi para longe, parecia me obedecer. O fogo se
intensificou, deixando-me sufocada, agoniada. A temperatura era tão alta
que os espelhos da sala racharam. Havia um zumbido ensurdecedor. Tudo
começou a explodir e fui atingida por alguns estilhaços de vidro. Desmaiei e
fui queimada pela primeira vez em minha vida.
A noite passou e eu não estava mais ali, quando o Corpo de Bombei-
ros chegou. A única coisa que eles conseguiram ver eram cinzas e destroços.
Eu me sentia viva, mas não estava ali naquele lugar.
Fiz força para voltar à vida. Consegui mexer meu braço, mas estava feito
pó. Não reconhecia mais meu corpo, mas de alguma forma eu me reconstituía,
assim como a Fênix da história de mamãe, que ressuscitava das cinzas.
Comecei a brotar da terra, pálida, com veias aparentes, olhos verme-
lhos, trêmula e sem força. Desmaiei e acordei exausta em uma cama de
hospital, com muitas dores e confusa. Ainda me pergunto onde estão meus
pais. Será que eles se lembram de mim, depois de tanto tempo?
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Sessão macabra
Patrick Rodrigues
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de limpeza e comecei a bater em um dos monstros. Cheguei a tirar a cabeça
dele do lugar com um só golpe, mas nada adiantou, o monstro continuava em
pé mesmo sem a cabeça. A moça desapareceu entre os monstros e deu para
observar que fizeram um montinho em cima dela. Então, peguei o carrinho
e joguei em cima deles e sai correndo. Olhei para trás e vi a garota já caída
no chão com lágrimas de sangue e vários monstros em cima dela comendo
suas entranhas. Daí, fui em direção a porta dos fundos e um dos monstros
me pegou pelo braço, mas eu dei um murro na cara dele e, até hoje, tenho a
marca do arranhão. Corri muito rápido e botei a mão na maçaneta da porta...
Fechei os olhos desejando que tivesse aberta... E estava.
Saí daquele lugar.
Peguei o extintor de incêndio e usei para quebrar a porta de vidro,
para sair do cinema. Liguei para a polícia e foram até lá depois de uma hora.
Quando eu já estava em casa tentando me recuperar, eles falaram que não
tinha nada de anormal. A moça que trabalhava na faxina nunca existiu. Muito
menos o velhinho. As luzes que tinham dado curtos estavam intactas. Não
tinha nenhum vestígio de monstros, ou até mesmo de fumaça branca.
Achei que estava louco e nunca mais vi filme no cinema. Passaram-
se vários meses e sempre tive uma sensação estranha quando andava em
frente aquele lugar. Já ouvi outras histórias, parecidas com a minha, que
aconteceram naquele cinema, e sempre havia um senhor idoso envolvido.
Nunca saberei o nome daquela moça da limpeza. Nunca saberei se
aquilo foi realmente verdade.
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The black lion – o sonho
Patrick Rodrigues
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FUNDAÇÃO CATARINENSE DE EDUCAÇÃO ESPECIAL
Presidente
Eliton Carlos Verardi Dutra e.e.
Diretor de Administração
Leandro Domingues
Coordenadora
Andréia Rosélia Alves Panchiniack
Professora-Orientadora
Marilyn Mafra Klamt
Mara Aparecida Siqueira
Pedagoga
Sandra Duarte Hottersbach
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