APENDICE 2
DOIS PARADIGMAS DE MODERNIDADE
Definigdes
Semanticamente a palavra “modernidade” tem ambigua-
Tnente dois conteudos:
1) Por seu conteddo primario e positive conceitual, a “mo-
demidade” é emencipagae racional. A emancipagao como “sai-
da”’ da imaturidade através de um esforgo da raz4o como
processo critico, que abre a Humanidade a um novo desenvol-
vimento histérico do ser humano.
2} Mas, ao mesmo tempo, por seu contetido secundario e
negativo mitico’, a “mocernidade” é justificagao de uma praxis
imacional de violéncia. O mito poderia ser descrito assim: a) a
civilizagdo moderna se autocompreende come mais desenvolvi-
da, superior (o que significara sustentar sem consciéncia uma
posicdo ideotogicamente eurdcénttica). b) A superioridade obri-
ga, como exigéncia moral, a desenvolver os mais primitivos,
Tudes, barbaros. c) O caminho do teferide processe educativo
de desenvolvimento deve ser o seguido pela Europa (6, de fato,
um desenvolvimento unilinear e 4 eurcpéia, 0 que determina,
novamente sem consciéncia alguma, a “falacia desenvolvimen-
tista"}. d) Como o barbaro se opie a0 processo civilizador, a
praxis modetna deve exercer em Ultimo caso a violéncia, se for
185necessario, para destruir os obstaculos de tal modernizagao (a
guera justa colonial), e} Esta dominagdo produz vitimas (de
muitas variadas maneiras), violéncia que 6 interpretada como
um ato inevitavel, e com o sentido quase-ritual de sactificio; 0
her6i civilizador investe suas prdprias vitimas do carater de ser
holocaustos de um sacrificio salvador (do colonizado, escravo
afticano, da mulher, da destruigao ecolégica da terra, etc). f)
Para o moderne, o barbaro tem uma “culpa” {o fato de se opot
ao processo civilizador‘} que permite que a “Modemidade" se
apresente ndo s6 como inocente mas também como “emanci-
padora” dessa “culpa” de suas proprias vitimas. g) Por wtimo,
e@ pelo carater “civilizetorio” da "Modernidade”, so interpreta-
dos como inevitaveis os sofrimentos ou sacrificios (os custos) da
“modernizagdo” dos outras povos “atrasados” {imaturos)®, das
outras Ta¢as escravizaveis, do outro Sexo Por ser faco, etc.
3) Por isso tudo, para a superagdo da “Modernidade” sera
preciso negar a negagao do mite da Madernidade. Para isso, a
“outra face” negada e vitimada da “Modemidade” deve primei-
ramente se descobrir como “inocente”: ¢a “vitima inocente” do
sacrificio ritual, que ao se descobrir como inocente julga a
“Modemidade” como culpada da violéncia sacrificadora, con-
quistadora origindtia, constitutiva, essencial. Ao negar ainocén-
cia da “Modemidade” ¢ ao afirmar a Alteridade do “Outro”,
negado antes como vitima culpada, permite “des-cobrir” pela
primeira vez 4 “outra face” oculta e essencial 4 “Modemidade”:
mundo periférico colonial, o indio sacrificado, o negro escra-
vizado, a mulher oprimida, a crianga e a cultura popular aliena-
das, etc. {as “vitimas" da “Modernidade”) como vitimas de um
ato irracional {como contradigao do ideal racional da mesma
Modemidade).
4) Somente quando se nega o mito civilizatério e da inocén-
¢ia da violéncia moderna, se teconhece a injustiga da praxis
sactifical fora da Europa (e até da propria Europa), e entéo se
pode também superar a limitagas essencial da “razao emanci-
padora”. Supera-se a 1az4o emancipadora como "raz4o liberta-
dora” quando se descobre o “eurzocentrismo” da tazao ilustiada,
quando se define a “falacia desenvolvimentista” do processo de
modeimizagao hegeménico. isto é possivel, mesme para a 1azd0
186da Tlusuagao, quando eticamente se descobre a dignidade do
Outro (da outra cultura, do oiitro sexo e género, etc.); quande
se declaram inocentes as vitimas a partir da alirmagdo de sua
Alteridade como Identidade na Exterioridade como pessoas que
foram negadas pela Modermidade. Desta maneira, a razdo mo-
derna é transcendida (mas ndo como negacdo da razao enquante
tal, mas da razdo violenta eurucéntrica, desenvolvimentista,
hegeménica). Trata-se de uma ““Transmodernidade” como pro-
jeto mundial de libertagdo onde a Alteridade, que era co-essen-
cial da Modernidade, se realize igualmente. A “realizagao” da
Moderidade nao se faz numa passagem da poténcia da Moder-
nidade para a atuadidade da referida modernidade européia. A
“ealizagdo” seria agora a passagem transcendente, onde a
Modernidade e sua Altericiade negada {as vitimas) se realizarao
por mitua fecundidade criadora. O projeto transmoderno é uma
co-lealizagao do impossivel para a Unica Modernidade; isto 6. 6
co-realizagao de solidariedade, que chamamos analética, do
Centro/Periferia, Mulher/Homem, diversas ragas, diversas et-
nias, diversas classes, Humanidade/Terra, Cuitura Ociden-
tal/Culturas do Mundo Periférico ex-colonial, etc.; nao por pura
nega¢ée, mas par subsungao a partir da Alteridade® (Subsuntion,
que 6 a transconceitualizagao de Marx, por sua etimologia latina,
da Aufhebung hegeliana).
Portanto, naéo se trata de um projeto pré-modemno como
afirmagac folclérica do passado; nem de um projeto antimoderno
de grupos conssrvadores, de direita, de grupos nazistas ou
fascistas ou populistas; nem de um projeto pés-moderno como
negagao da Modernidade como critica de toda razao, para cair
num iacionalismo niilista. Deve set um projeto “transmoderno”
{e seria entéo uma “transmodernidade” por subsun¢ao real do
cardéter emancipador racional da Modernidade de sua Alteridade
negada {“o Outro” e nado a Modernidade}, por negagao de seu
carater mitico {que justifica a inocéncia da Modernidade sobre
suas vitimas e por isso se torna contraditoriamente irracional).
Em certas cidades da Europa medieval, nas renascentistas do
“Quatiocento”, cresceu formalmente a cultura due produziraé a
Modernidade. Mas a Madernidade realmente pode nascer quan-
do se deram as condigées historicas de sua origem ofetiva: o
187ano de 1492 - sua mundializagao empitica, a organizacdo de um
taundo colonial, ¢ 0 usufruto da vida de suas vitimas, num nivel
pragmatico e econdmico. A Modemidade nasce realmente em
1492: essa 6 nossa tese. Sua real superagdo {como Subsuntion
e nado meramente como Aufhebung hegeliana) é subsungdo de
seu carater emancipador racional europeu transcendide como
projeto mundial de libertagdo de sua Alteridade negada: a
“Transmodernidade” {como novo projeto de libertacao politico,
econdmico, ecolagico, erético, pedagogico, teligioso, etc.).
Propomos entéo dois paradigmas contraditérios: o da mera
“Modernidade” eurocéntrica, ¢ o da Modemidado subsumida a
partir de urn horizonte mundial, onde o primeiro desempenhou
uma fungdo ambigua (por um Jado como emancipador, e, por
outro, como cultura mitica da violéncia). A realizagaéo do segun-
do paradigma ¢ um processo de “Transmodemidade”. 86 0
segundo paradigia inclui a “Moderidade/Alteridade” mundial,
Na obra de Tzvetan Todorov, N6s e os outros’, 0 “nos” sdo os
europeus, e “os outros” somes nds, os povos do mundo perifé-
Tico. A Modernidade se definiu como “emancipagao” com rela-
Gao “nos”, mas néo percebeu seu carater mitico-sacrifical com
relagéo aos “oullos". Montaigne viu isso de alguma maneiza
quando escreveu:
Assim, podemos chamé-los bérbaros em relagdo a nossas
regras da 1az4o, mas nao com telacdo a nds, que os rebaixamos
em toda espécie de barbaric’.
Dois paradigmas de Modernidade
(Simplificagdo esquemdtica de alguns momentes que
codeterminam a compreensdo dos dois paradigmas)
Pp
1492 «#R K Hoy -* Futuro
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‘Ler diacronicamente de A para G e de a para i.
1881) DeterminagGes mais importantes:
A: A Europa no momento do “descobrimento” (1492).
B: 0 presente europeu modemo.
C: projeto de “tealizagao” (nabermasiana) da “Modemidade”.
P: projeto do niilismo pés-modemo
D: a “invaso” do continente (da Africa e Asia mais tarde).
E: o presente “periférico”
F: projeto dentro da “nova ordem mundial” dependente.
G: projeto mundial de libertacdo (“Transmodernidade”).
R: Renascimento e Reforma.
K: A Autkiérung {o capitatismo industrial).
Tl) Relagdes com uma certa diregdo ou flechas:
a: histéria européia medieval (o pré-moderno europeu).
b: historia “modemo” -européia.
¢: praxis de realizacdo de C.
dG: historia amerindia antes da conquista européia (também da
Africa e da Asia).
@: histdria colonial e dependente mercantilista
f: historia do Mundo periférico ao capitalisrno industrial,
g: praxis de realizagado de F (desenvolvimentismo).
hr praxis de libertagao ou de realizado de G.
i: praxis de solidariedade do Centro com a Periferia.
1,2,3, n: tipos histéricos de dominagao (de A sobre D, etc.).
Ill) Os dois paradigmas de Modernidade:
1): Paradigma eurocéntrico de “Modernidade”: [R K B C]
{}: Paradigma mundial de “Moderidade/Atteridade” (para uma
“Transmodernidade”}: {A/D B/E G].
Notas
1, Kant, Was heisst Aufkarung?, A 481
2. & sabido que a obia de Max Horkheimer e Theodor Adomo, Dialekeit der
Auduarung (1944), Fischer, Frankfu:t, 1971 (ver Jurgen Habermas, Der philosophische
Dischurs der Modeme, Subtkamp, Frankfurt, 1998, p. 130s: Die Verschlingung von
Mythos und Aufkidrung} define um certo nivel mitico da Modezsidade, que Habermas
no pode admitir, Nosso sentido de “mito” se situa nao num nivel intra-europeu (comeno caso de Hoikheimer, Adomo cu Haberruas}, mas num nivel Gentuo-Peciferia, Norte~
Sul, quer dizer, num nivel mundial.
9. Kant, o.¢., nos fala de imaturidade “culpada (verschukdeten)”
4. O pidprio Francisco de Vitoria, professor de Salamanca, admite como thima
razdo para declarar @ guerta 0 fato de os indigenas opotem impedimentes 4 pregagdo
da doutrina erista. S6 para destrut esses obstaculos se pode fazer a guerra.
5 Para Kant unmilndig: imaturo, rude, no educado, *
6. Ver minha Filosofia da Libertagdo (6.3) a respeito do “momento analético” do
movimento dialético subsuntivo
7. Seull, Pans, 1989,
8 "Des Cannibales*, em Oeuvres Compiéies, Gallimard-Pitiade, Paris, 1967. p.
208.
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