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‘Anatomia —— da Diterene Norm alidade, deficiéncia € e , outras:t invengoes : _ aie nero = Er : ” Ray, Pereira~ 16 | a CAPITULO 4 Nuangas da diferenga: as deficiéncias e o género “pdés-humano’” DIVERSIDADE FUNCIONAL E IDENTIDADE, A questo da identidade é um fendmeno tipicamente con- temporaneo. Até o inicio do século XX as identidades eram muito bem definidas e demarcadas, 0 que eliminava a possibili- dade de qualquer crise de identidade, tal como conhecemos na atualidade. Naquele contexto, “cada pessoa era exatamente aqui- lo que se esperava que fosse: um fidalgo era um fidalgo; um camponés era um camponés, para todos os outros, assim como. para si mesmo”.' Essa previsibilidade, tipica das sociedades modernas, nao sobreviveu as transformag6es estruturais ocor- ridas na segunda metade do século XX. As mudangas trazidas pela modernidade tardia — € mais recentemente reforgadas e consolidadas pela globalizagao — fragmentaram as s6lidas paisa- gens culturais que antes davam sustentagdo aos conceitos de classe social, nacionalidade, raga, etnia, género e sexualidade. Fragmentaram-se também as identidades fiy » estiveis e previ- siveis, produzindo, assim, o palco da chamada crise de identidade da modernidade tardia.? ss + Berger e Luckmann, 2004, p. 217. 2 Bauman, 2005; Giddens, 1991; Hall, 1997. i ANALOnA > way 1 HH A questao da identidade ganhou projegao com a eclos;, yarcaram 0 Ocidente na decade g ncel le sessenta, Naquela década, as mulheres, 08 NEBTOS, OS Bays ¢ Jésp, cas, juntamente com estudantes, pacifistas e Brupo, revoluciondrios, lutavam por reconhecimento e por direitos ch vis, tendo a identidade como principal bandeira. dos movimentos socials que Dy Cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores, Assim, © feminismo apelava as mulheres, a politica sexual aos gays ¢ lésbicas, as lutas raciais aos negros, 0 movimento antibelicista aos paci. fistas, ¢ assim por diante. Isso constitui o nascimento hist6rico do que vein a ser conhecido como a politica de identidade ~ uma identidade a cada movimento (Hall, 1997, p. 49). p Os movimentos sociais, entre outros aspectos, afirmavam a identidade cultural de grupos marginalizados e oprimidos. Com isso, as identidades exclufdas, silenciadas, ou desprestigiadas até aqucle momento emergiam nos movimentos sociais como um importante fator de mobilizagao politica. As reivindicagées eram feitas conforme as caracteristicas histéricas dos grupos, agrega- dos pelo pertencimento de classe, pelos antecedentes historicos ou por circunstancias socioeconémicas.3 Além da pauta de luta de cada grupo em particular, havia reivindicagdes mais abrangentes gue eram comuns a todos os grupos. De fato, os esforgos soma- dos resultaram em mudangas e conquistas que beneficiaram, em maior ou menor grau, as varias minorias, modificando assim 0 desenho € as caracteristicas da sociedade como um todo, A questio da identidade nao existiria se nao houvesse, den- tre tantas identidades, alguma que se destacasse como hegeménies superior, gue pretendesse estabelecer-se como a identidade, Para + Woodward, 2000. a sidade hegemdnica, as demais identidades : ho percebidas eo Outro” € SEM Este assombroso Outro, aquela identi- je nio faria qualquer sentido?’ dade 04 ees Ri : 4 deficiéneia esta envolvida na que iden! com? 0 da identidade, em- pora pou ¢ filio, Dessa forma, paira no ara du ida se hé ou ndo uma identidade produzida no contexto ga deficiéncia. Para elucidar essa dtivida € fundamental que se pense em identidade utilizando uma via alternativa, deixando a cos autores explorem e parte um dos principais elementos histéricos que enriquecem a discussio acerca do tema: os movimentos sociai is da década de Esse seria um ponto de partida elementar para uma dis- cussio sobre identidade, mas, ainda assim, fragil para sustentar a idéia de uma identidade produzida a partir do contexto da defi- ciéncia, mesmo que 0 cenario dessa possivel identidade seja a modernidade tardia. sessent Entre as pessoas com deficiéncia nao havia uma preocupa- cao profunda com a identidade; elas também nao possufam uma “s6lida localizagio como individuos sociais”, como destacam al- guns autores’ , referindo-se aos movimentos sociais da década de sessenta. A historia, de fato, demonstra exatamente 0 contrario: nenhuma posig4o social s6lida, nenhuma afirmagao de uma iden- tidade cultural de grupo que pudesse ser reconhecida, mesmo porque as pessoas com deficiéncia viviam confinadas no espago familiar e institucional, privadas de qualquer interagao social que extrapolasse esses nacleos. O isolamento generalizado dificulta- va os contatos entre pares € impedia qualquer tentativa de articulagio. Considerando 0 movimento de luta das pesso deficiéncia por si mesmo, GA dade de luta de outros grupos, 0 que se percebe € uma as Com © com a ativi- m qualquer compara + Lins, 1997; silva, 2000-8. + Woodward, 2000, p. 34; Hall, 1997, P. 9 ae q é c io em torno da propria questao da de iciéncjg agao social acerca do tema.6 mobilizag » Com vistas a uma conscicn . : Quando se discute identidade pela via da diferenca, ou alteridade, a deficiéncia € como que “poupada” — ou, talvez, t¢ mida como o mais assustador “Outro”. Embora haja uum dimensio subjetiva na deficiéncia - como ha em qualque alteridade -, 0 que existe de mais objetivo nela é 0 corpo deficien, im, 0 corpo “deficiente”, essa difereng, te. Em sendo a encarnada, pode ser considerado como o fundamento singular para uma discussio sobre identidade a partir da deficiéncia, a exemplo do que ocorre com a identidade sexual, ou de género, cuja diferenga basica também esta determinada no corpo. “0 corpo € um dos locais envolvidos no estabelecimento das fron- teiras que definem quem nés somos, servindo de fundamento para a identidade — por exemplo, para a identidade sexual” (Woodward, 2000, p. 15). As pessoas com deficiéncia possuem um corpo (ou parte dele) que apresenta uma diferenga socialmente corpo diferente € um elemento tangivel, “in-palpavel”, devido ao distanciamento qu ¢ao a qualquer alteridade. A partir desg “in-palpavel” é Possivel pensar numa categoria de identidade para as pessoas com deficiéncia. A vinculagao entre corpo e identi- dade € abordada por alguns autores, inclusive fazendo mencao a condigio fisca: “As identidades baseadas na ‘nag mens ro, na sexualidade e na incapacidade fisica [grifo exemplo, atravessam o pertencimento de cl; 2000, p. 36). Além da mengio a incapacidade fisica, vale dest, mulagao da autora o pertencimento de classe. De fato, indesejavel. O palpavel, ou melhor, ‘© se mantém em rela- © corpo diferente e > NO géne- . 'Osso], por Se" Woodward, Acar na for- » © cerne da rF- on DFERENEA AS DERICENCINS £0 CELIO “Wrrteanet 91 | questo nao €0 enquadram¢ to da pessoa com d ncia numa classe delimitada pela deficiéncia, 0 que seria légico e dbvio le- yando-se em conta apenas as aparéncias que saltam aos olhos. O pertencimento de classe sustenta-se em algo que é bem mais gutil que a cor da pele, a condigao fisica, o género, a sexualida- de... trata-se, efetivamente, das relagdes de poder,” dos processos e praticas de exclusao estabelecidos a partir da diferenga, onde quer que ela se manifeste. “O ‘pertencimento’ teria perdido o seu brilho e€ 0 seu poder de sedugao, junto com sua fungdo integradora/disciplinadora, se nao fosse constantemente scleti- yo nem alimentado e revigorado pela ameaca € pratica da exclusio” (Bauman, 2005, p. 28). Corpo e identidade, independentemente de qualquer defi- ciéncia, estao vinculados entre si,e abrangem, de forma mais ampla, o reconhecimento social deficiéncia, por sua vez, con- po uma caracteristica peculiar, tornando-o diferente. Esta diferenga € norteadora, seja na essencialmente construgéo da identidade ou no (nao) reconhecimento social da ’ pessoa com deficiéncia.’ fere ao cor ‘A nogao de identidade pessoal esta diretamente vinculada ao corpo, j4 que este funciona como um instrumento de projeao do ser no espago ral. O corpo é 0 local onde o indi partilhando, a0 mesmo tempo, significagses sociocultul ividuo se reconhece enquan- ro uma singularidade, comuns a todo 0 grupo social. © reconhecimento do individuo € dado, ‘entao, a partir da coeréncia encarnada em seu corpo ~ que possut uma una e totalizante (Silva, 2003). estrutura consistente, O corpo diferente em virtude de uma deficiéncia nao é reconhecido socialmente, dada a sua incoeréncia e, de certa forma, ———— 7 Bauman, 2005; Elias e Scotson, 2000, anal oS ANATOMA pq ce 92 o sua assimetria, Esse mesmo corpo, exatamente por ser disto,, me e incoerente, ratifica, como “Outro”, a nogao de que identidade pessoal esta vinculada a um corpo simétrico ¢ Coe. rente. No entender de Giddens (2002), 0 corpo é parte essencial da manutengao de um sentido coerente de auto-identidade, um objeto com o qual temos 0 privilégio de conviver, ou entio S0- mos condenados a viver; 0 que determina se é Privilégio oy condenacao é aquilo a que 0 corpo nos expoe: a sensagées de bem-estar e prazer, ou a doengas e tensdes.* Nao € por acaso que a metdfora da deficiéncia como uma condenagao fixou-se téo bem no senso comum, influenciando os sentimentos e a per- cepcao social acerca da pessoa com deficiéncia. Uma das discuss6es centrais sobre identidade, de acor- do com Woodward (2000), concentra-se na tensao entre as abordagens essencialistas e nao-essencialistas atribufdas a iden- tidade. A autora utiliza a “identidade sérvia” como exemplo para demonstrar o enfoque de cada abordagem: A Perspectiva essencialista busca sustentag4o tanto na histéria quanto na bio- logia para afirmar que hé um conjunto de caracteristicas auténticas, cristalinas e permanentes, Partilhadas Por todos os sérvios. As perspectivas n4o-essencialistas, or i- buem mustor mportancia as diferengas, e ee caracteristicas comuns como as caracteristicas Partilhadas com outros grupos, ou outras identidades; da mesma forma, consi- dera o modo pelo qual a definigao daquilo que significa ser um sérvio tem mudado ao longo dos séculos.? A mesma tensao, descrita acima, ocorre quando a questio da identidade € analisada em Conjunto com a deficiéncia, De fato, ha deficiéncias que sao irreversiveis, ou melhor, ainda sdo - —~4 & Giddens, 2002, p. 95. neat AS DEMICIENCIAS EO. GRNEKO 4 oe OSHIMANG” ‘ 93 2 — respeitadas as ressalvas impostas pelas i mr fetivas e pelo devir das diversas pesquisas ainda vom cts asin como a cor da pele, a etnia ou o género, ha certas carae, rersticas Presentes Cm codes as pessoas que apresentam uma gererminada deficiéncia. Essa afirmagao essencialista pode ser exemplificada pela perda de fungao motora e atrofia muscular nas paraplegias e tetraplegias decorrentes de lesio medular, ou pelo conjunto de sinais fisicos que sugerem o diagnéstico da

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