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2.3 OS RASTROS DA MULTIDAO A questo de saber se a humanidade tem uma predilegio pelo bem é antecedida pela questao de saber se existe um acontecimento que possa ser explicado exclusivamente por esta disposigio moral. Um acontecimento como uma revolugdo. Kant afirma que este fenémeno [da revolugdo] jd ndo pode ser ignorado na hist6ria humana porque re- velou a existéncia, na natureza humana, de uma disposi- io e uma faculdade para o bem, que até agora nenhuma politica havia revelado no decorrer dos acontecimentos. — FRIEDRICH NieTZsCHE Vimos no iiltimo capitulo que a carne produtiva comum da multidao adquiriu a forma do corpo politico global do capital, dividido geogra- ficamente por hierarquias de trabalho e riqueza ¢ governado por uma estrutura multinivelada de poderes econdmicos, juridicos e politicos. Estudamos a fisiologia e a anatomia desse corpo global através da topologia e da topografia da exploracdo. Nossa tarefa agora consiste €m investigar a possibilidade de que a carne produtiva da multiddo Venha a se organizar de outra maneira e descobrir uma alternativa para © corpo politico global do capital. Nosso ponto de partida € 0 reco- nhecimento de que a produgao de subjetividade e a producéo do co- mum podem formar, juntas, uma relagao simbiética em forma de espiral Em outras palavras, a subjetividade € produzida através da cooperacéo € da comunicagéo, e por sua vez esta subjetividade produzida vem a +247 MULTIDAO produzir novas formas de cooperagio comunicagio, que por sua vez produzem nova subjetividade, ¢ assim por diante. Nessa espiral, cada movimento sucessivo da producio de subjetividade para a produgéo do comum é uma inovagio que resulta numa realidade mais rica. Tal- vex devamos identificar nesse processo de metamorfose e constituigio a formagio do corpo da multidio, um tipo fundamentalmente novo de corpo, um corpo comum, um corpo democratic. Spinoza nos dé uma idéia inicial de como poderia ser a anatomia de um corpo assim, “O corpo humano”, escreve ele, “é composto de muitos individuos de naturezas diferentes, cada um dos quais é altamente heterogénco” —e no entanto essa multidao de multidées é capaz de agir em comum como: uum corpo tinico."* Seja como for, ainda que a multidéo forme um cor- po, continuard sempre e necessariamente a ser uma composicao plural, € nunca se tornar4 um todo unitério dividido por érgios hierarquicos, Os rastros da multidao haverdo sempre de apresentar a mesma dispo- siglo e a mesma faculdade para o bem identificadas por Kant no acon- tecimento revoluciondrio. A Monstruosi lade da Carne A sociedade pés-moderna € caracterizada pela dissolugio dos corpos sociais tradicionais. Ambas as partes do debate entre “modernistas” € “pés-modernistas” que até recentemente inflamava as discusses aca- démicas ¢ culturais reconhecem essa dissolugio. O que realmente 0s ‘opée € que os modernistas querem proteger ou ressuscitar os corpos: sociais tradicionais, ¢ 0s pés-modernistas aceitam ou mesmo comemo= ram sua dissolugao.!"* Nos Estados Unidos, por exemplo, muitos auto- res, diante do colapso das organizagées sociais tradicionais e da ameaga de uma sociedade individualista fragmentada, falam da nostalgia de formagées sociais do passado. Esses projetos de restauragao — fre- qiientemente baseados na familia, na igreja e na patria — hd muito = 248 MuLTIDAO constituem um pilar da visio da direita, mas os apelos recentes mais interessaustes ¢ apaixonados neste sentido tém surgido das correntes centrais da esquerda. Veja-se, por exemplo, a muito lida descrigéo do declinio das organizagées civicas € comunitérias nos Estados Unidos feita por Robert Purnam. Clubes de boliche e de bridge, organizagbes fam uma forma essencial de agregagio religiosas e semelhantes consti social, formando grupos sociais e uma sociedade coesa. O declinio desse tipo de grupos efvicos comunitérios é um sintoma do declinio ge- ral de todas as formas de agregacdo social nos Estados Unidos, susten- ta Putnam, fazendo com que a populagéo nao apenas fique jogando boliche sozinha, como também vivendo sozinha de uma série de for- mas.'® Um tom equivalente de nostalgia e saudade da comunidade per- dida domina uma série de estudos populares sobre as recentes mudangas, ocorridas no mundo do trabalho. As formas tradicionais de trabalho, como 0 trabalho fabril e mais ainda o trabalho artesanal, representa vam emprego estével e uma série de capacitagdes que permitiam aos trabalhadores desenvolverem-se e sentirem orgulho de uma carreira coe- rente pela vida inteira, com uma vinculagio social duradoura centrada em seus empregos. A passagem do fordismo para 0 pés-fordismo na situagao de trabalho, com a ascensio do trabalho nos setores de servi- 508 ¢ dos tipos “flexiveis”, “méveis” e instaveis de emprego, destruiu «ssas formas tradicionais de trabalho, juntamente com as formas de vida que geravam, A instabilidade, lamentam esses autores, solapa 0 caré- ter, a confianga, a lealdade, o compromisso mituo € os lagos de fami- lia.” Essas descrigées do declinio das formas sociais ¢ comunidades ‘adicionais, banhadas em nostalgia ¢ num clima de lamento, também correspondem em certa medida &s exortages patristicas lancadas por tuma das correntes da esquerda americana, que antecederam o 11 de Setembro de 2001 mas foram em muito reforgadas pelos acontecimen- tos desse dia, Para esses autores, o amor A pétria € uma outra forma de Comunidade (talvez a mais alta) que permitiré — além de garantir a derrota dos inimigos externos — neutralizar a anomia e a fragmenta- +249» MULTIDAO 40 individualista que ameagam nossa sociedade.'* Em todos esses. casos, associagdes civicas, trabalho, familia e patria, o objetivo final é a reconstrugio do corpo social unificado e portanto a recriagio do povo, As correntes centrais da esquerda européia também demonstram essa mesma nostalgia por formas sociais ¢ comunidades tradicionais, mas na Europa ela nao se expressa tanto em lamentos a respeito de nosso atual estado de isolamento e individualismo, mas na repeti¢éo estéril de ritos comunitarios desgastados. Praticas comunitirias que faziam parte da esquerda tornam-se agora sombras vazias de vida em. comunidade que tendem a levar a violencia absurda, das torcidas fand- ticas de futebol aos cultos religiosos carisméticos, da revivescéncia do dogmatismo stalinista As novas manifestagées do anti-semitismo. Os partidos e sindicatos de esquerda, em busca dos valores fortes do pas- sado, parecem com demasiada freqiiéncia recorrer a gestos antigos numa espécie de reflexo automético. Os velhos corpos sociais que 0s sustinham j4 nao se fazem presentes. Est faltando 0 povo. ‘Mesmo quando efetivamente se manifesta algo parecido com 0 povo. no cenfrio social dos Estados Unidos, da Europa ou de outras partes do mundo, é visto pelos lideres da esquerda institucional como algo deformado e ameacador. Os novos movimentos que surgiram nas titi mas décadas — da militincia gay do ACT-UP ¢ do Queer Nation as manifestagdes da globalizagéo em Seattle e Genova — sio incom- preensiveis e ameagadores para eles, e portanto monstruosos. £ verda- de, com efeito, que, com o: formas sociais ¢ até mesmo os desdobramentos econdmicos de hoje s6 \strumentos ¢ modelos modernos, as podem parecer cadticos ¢ incoerentes. Os fatos ¢ acontecimentos pax recem espocar em imagens distintas e desconexas, em ver. de se desen- rolarem numa narrativa coerente. Pelo olhar da modernidade, talvez @ pos-modernidade se caracterize efetivamente pelo fim das narrativas grandiosas. E preciso descartar toda essa nostalgia, que, ainda nao sendo reale mente perigosa, s6 pode na melhor das hip6teses ser considerada um + 250 + MULTIDAO sinal de derrota. Neste sentido, somos mesmo “pés-modernistas”. Examinando nossa sociedade pés-moderna, com efeito, livres de qual- quet nostalgia dos corpos sociais modernos que se dissolveram ou do povo que esté faltando, podemos ver que o que estamos vivenciando é uma espécie de carne social, uma carne que nao é um corpo, uma car- ne que é comum, substancia viva, Precisamos descobrir o que essa carne pode fazer. “A carne”, escteve Maurice Merleau-Ponty num diapasio mais loséfico, “nao é matéria, nao é mente, nao é substancia. Para designé-la, podemos precisar da velha expresso ‘elemento’, no senti- gua, ao ar, & terrae ao fogo.""™ A carne da multidao € puro potencial, uma forca informe de vida, ¢ do em que era usada para se referir neste sentido um elemento do ser social, constantemente voltado para a plenitude da vida. Dessa perspectiva ontol6gica, a carne da multido € uma forga elementar que constantemente expande o ser social, pro- duzindo além de qualquer medida de valor politico-econdmico tr. cional. Qualquer um pode tentar capturar o vento, 0 mar, a terra, mas eles sempre serdo mais do que podemos aprender. Do ponto de vista da ordem e do controle politicos, assim, a carne elementar da multi- dio € desesperadoramente fugidia, pois néo pode ser inteiramente enfeixada nos érgios hierdrquicos de um corpo politico. A carne social viva que néo € um corpo pode facilmente parecer monstruosa. Para muitos, essas multidées que no sio povos nem na- ‘$6es ou sequer comunidades constituem mais um exemplo da insegu- tanga e do caos que resultaram do colapso da ordem social moderna. Sio catistrofes sociais da p6s-modernidade, semelhantes para eles aos horriveis resultados da engenharia genética quando ela dé errado ou 8 aterrorizantes conseqiiéncias das catdstrofes industriais, nucleares 0u ecoldgicas. O informe e o desordenado sio assustadores. A mons- ‘ruosidade da carne ndo é um retorno ao estado natural, mas um resul- tado da sociedade, uma vida artificial. Na época anterior, 0s corpos Sociais modernos ¢ a ordem social moderna preservavam, pefo menos ideologicamente, apesar da constante inovagio, um carter natural — 2st MULTIDAO por exemplo, as identidades naturais da fa povo e da nagao. Na modernidade, as podiam protestar contra os efeitos nocivos da tecnologia, da indus- , da comunidade, do losofias do vitalismo ainda trializagdo € da mercantilizagio da existéncia, afirmando a forca na- tural da vida. Até mesmo na critica da tecnologia feita por Martin Heidegger, quando o vitalismo tornou-se uma espécie de niilismo e de estética, ainda encontramos ecos da longa tradigao da resisténcia exis- tencialista.""® Qualquer referéncia & vida hoje, no entanto, deve apon- tar para uma vida artificial, uma vida social. © vampiro € uma figura que expressa o carter monstruoso, exces- sivo e rebelde da carne da multidio. Desde que o conde Dracula de Bram Stoker desembarcou na Inglaterra vitoriana, 0 vampiro tem cons- tituido uma ameaga ao corpo social e, em particular, A instituigéo so- A ameaga do vampiro é, em primeiro lugar, sua sexualidade excessiva. Seu desejo de carne é insaciavel, e sua mordida erética atinge igualmente homens e mulheres, ameacando a ordem do acasalamento heterossexual. Em segundo lugar, 0 vampiro mina a or= dem reprodutiva da familia com seu préprio mecanismo alternative de reprodugéo. Novos vampiros surgem da mordida tanto de vampi- ros machos quanto de vampiros fémeas, formando uma raga eterna dos que ndo morrem. Assim & que o vampiro funciona na imaginagao so- cial como um simbolo da monstruosidade de uma sociedade na qual 0 corpos sociais tradicionais, como a familia, estéo entrando em co- lapso. Nao deve surpreender, assim, que os vampiros se tenham torna- do to presentes nos ilkimos anos em romances populares, no cinema € na televisdo." Nossos vampiros contemporaneos revelam-se dife- rentes. Os vampiros continuam sendo marginais na sociedade, mas sua monstruosidade ajuda os outros a reconhecer que somos todos mons tros — colegiais rebeldes, portadores de desvios sexuais, aleijoes, 50- breviventes de fami patologicas e assim por diante. E, 0 que € mais. importante, 0s monstros comecam a formar novas redes alternativas: de afeigdo ¢ organizagao social. © vampiro, com sua vida monstruosa +252 MuLTIDAO «¢ seu desejo insacidvel, tornou-se sintomético néo apenas da dissolu- sociedade velha, mas também da formacdo de uma nova. gio de Precisamos encontrar os meios de real WF esse monstruoso poder dacarne da multidgo de formar uma nova sociedade. Por um lado, como deixa claro Merleau-Ponty, a carne é comum. Ela é um dos elementos, como 0 ar, 0 fogo, a terra e a Agua. Por outro lado, esses diferentes monstros dao testemunho do fato de que somos todos singulares, e de que nossas diferengas nao podem ser reduzidas a um corpo social uni- tario. Precisamos escrever uma espécie de anti-De Corpore que va con- tra todos 0s tratados modernos do corpo politico, apreendendo essa nova relagio entre o que é comum eo que é singular na carne da mul- tiddo. Mais uma vez, é Spinoza quem mais claramente prevé essa natu- reza monstruosa da multidao, concebendo a vida como uma tapegaria na qual as paix6es singulares tecem uma capacidade incomum de trans- formacio, do desejo ao amor e da carne ao corpo divino. Para Spinoza, ‘a experiéncia da vida é uma busca da verdade, da perfeigao e da alegria de Deus.’ nidade, reconhecer essas metamorfoses monstruosas da carne nao s6 Spinoza mostra-nos como podemos hoje, na pés-moder- como um perigo, mas também como uma possibilidade, a possibilida- de de criar uma sociedade alternativa. © conceito de multido obriga-nos a entrar num novo mundo no qual 6 podemos entender a nés mesmos como monstros. No século XVI, em meio aquela revolugéo que crion a modernidade curopéia, Gargantua e Pantagruel eram gigantes que serviam como emblemas dos poderes extremos da liberdade e da invengao. Eles percorriam o terre- no revolucionério e propunham a gigantesca empreitada de tornar-se livre. Hoje precisamos de novos gigantes ¢ novos monstros para juntar a natureza ¢ a historia, o trabalho e a politica, a arte ¢ a invenso, ¢ com isto demonstrar o novo poder que esta nascendo na multidao. Pre- cisamos de um novo Rabel por outra, de muitos." +253 MULTIDAO INVASAO DOS MONSTROS No século XVII, paralelamente as bibliotecas eruditas e aos labora térios de invengées fantdsticas, surgiram os primeiros gabinetes de monstruosidades. Essas colecées tinham todos os tipos de objetos es- tranhos, de fetos malformados dentro de recipientes até a “galinha hu- mana” de Leipzig — toda sorte de coisas capazes de estimular a imaginacao de Frederik Ruysch, para que criasse em Amsterda suas es- petaculares colegdes alegéricas. Até mesmo nos reinos absolutistas, tor- ‘nou-se comum criar gabinetes de hist6ria natural, cheios de curiosidades, Pedro 0 Grande, depois de construir a cidade de Sao Petersburgo em tempo extraordinariamente curto, gracas ao sofrimento e ao sacrificio de milboes de trabalhadores, comprou a colegao de Ruysch e a partir dela montou emt Sao Petersburgo um museu de hist6ria natural. Por que essa invasdo de monstros?!!* A ascensao dos monstros nos séculos XVII e XVIII coincidit com a crise das antigas crencas de eugenia, tendo servido para minar as velhas pressuposicdes teleoldgicas nas ciéncias naturais que entdo surgiam. Com a expressio crencas de eugenia, estamos nos referindo ao arcabouco filos6fico que identifica tanto as origens do cosmos quanto a ordem ética num principio metafisico: “Aquele que nasce bem governard feliz.” Este Principio grego infiltrou a visio de mundo do criacionismo judaico-cris- do por mil caminhos. Quanto as pressuposicoes teleol6gicas, conside- tam que cada criatura e seu desenvolvimento sdo determinados pelo fir ou finalidades que 0s ligam @ ordem do cosmos. Nao é coincidéncia ra € 0 finalismo viessem a se unir no decorrer da “civiliza- ordem do mundo é mantida por origens e fins fixos. Mas nos séculos XVII e XVII essa velha ordem da civilizacao tornou-se alvo de questionamento. Enquan modernidade espalhavam sofrimentos indescritiveis, os monstros co- ‘mecaram a encarnar as objecdes a ordem determinada pela eugenia e 0 finalismo. Os efeitos foram ainda mais fortes na politica do que na as grandes guerras que fundaram a MULTIDAO metafisica: 0 monstro ndo é um acidente, mas a possibilidade sempre presente capaz de destruir a ordem natural da autoridade em todos os terrenos, da familia ao reino. Varios luminares modernos, do conde de Buffon e do bardo D'Holbach a Denis Diderot, investigaram a possibi- lidade de novas formas normativas na natureza, ou, na realidade, a re- lacao entre causalidade e erro e a indeterminacéo da ordem e do poder. (Os monstros contaminaram até os mais esclarecidos! E aqui que come- ca realmente a historia do moderno método cientifico europeu. Até entdo, como denuncia D'Holbach, os dados estavam viciados ¢ os re- sultados bem organizados que viamos nas manifestacoes da natureza eram falsos; agora, finalmente, 0 jogo ndo é mais de cartas marcadas. E esta a nossa dfvida com os monstros: 0 rompimento com a teleologia 4 eugenia inaugurou 0 problema de saber qual é a fonte da criacao, como ela se expressa e aonde levand. Hoje, quando o horizonte social se define em termos biopoliticos, nao devemos esquecer aquelas primeiras histérias modernas de monstros. O efeito monstro desde entdo apenas se multiplicou. Hoje em dia, a teleologia s6 pode ser chamada de ignorincia e supersticao. O método define-se cada vez mais no terreno da indeterminacdo, e toda entidade real € produzida de uma forma aleatoria e singular, numa stibi- ta manifestacao do novo. Hoje, Frankenstein é da familia. Nesta situa- do, portanto, o discurso dos seres vivos deve tornar-se uma teoria de sua construcio e das possibilidades futuras que os aguardam. Imersos nessa realidade instdvel, defrontados com a erescente artificialidade da biosfera 4 institucionalizagdo do social, devemos esperar que os monstros este- jam surgindo a qualquer momento. “Monstrum prodigium”, como dizia Asostinho de Hipona, monstros milagrosos. S6 que hoje a maravitha ‘manifesta-se toda vex que reconhecemos que os velhos padroes de medi- da jd nao se aplicam, toda vez que vell qe seus restos fertil produgao de carne social. * lles Deleuze reconhece 9 interior da humanidade. O homem, diz ele, é 0 animal que estd mudando sua propria espécie. Nos sociais se decom ist 255, MULTIDAO levamos a sério este aviso. Os monstros estdo avancando, e 0 método cientifico precisa tratar deles. A humanidade transforma a si mesma, sua hist6ria e a natureza, O problema ndo consiste mais em decidir se essas técnicas humanas de transformagao devem ser aceitas, mas em aprender o que fazer com elas e saber se funcionario em nosso beneft- cio ou em nosso detrimento, Na realidade, precisamos aprender a amar certos monstros e a combater os outros. O grande romancista austria- co Robert Musil coloca a relagao paradoxal entre a loucura e 0 desejo excessivo na figura de Moosbrugger, um criminoso monstruoso: se a umanidade fosse capaz de sonhar coletivamente, escreve ele, sonharia ‘com Moosbrugger. O personagem de Musil pode servir de emblema a nossa relagao ambivalente com os monstros, e a nossa necessidade de ampliar nossos poderes excessivos de transformagao e atacar 0 mundo horrivel e monstruoso que 0 corpo politico global e a exploracdo capi- talista fizeram para n6s. Precisamos usar as expressbes monstruosas da multiddo para desafiar as mutagoes da vida artificial tansformadas em ‘mercadorias, o poder capitalista de par a venda as metamorfoses da natureza, a nova eugenia que da sustentagao ao poder vigente. E no novo mundo dos monstros que a humanidade tem de agarrar 0 seu fu- turo. A Produgao do Comum Vimos que a carne da multidio produz em comum de uma maneira ue é monstruosa ¢ sempre ultrapassa a medida de quaisquer corpos sociais tradicionais, mas essa carne produtiva ndo cria caos ¢ desor- dem social. O que ela produ, na realidade, € comum, ¢ 0 comum que compartilhamos serve de base para a producdo futura, numa relagdo expansiva em espiral. sto talvez possa ser mais facilmente entendido. em termos do exemplo da comunicago como produgio: podemos nos comunicar com base em linguagens, simbolos, idéias ¢ relagdes que +256 MuLtiDAo compartilhamos, ¢ por sua vez 0s resultados de nossa comunicagéo constituem novas imagens, simbolos, idéias ¢ relagdes comuns. Hoje essa relagdo dual entre a produc&o e 0 comum — o comum é produzi- do e também é produtivo — é a chave para entender toda atividade social ¢ econdmica. ‘Um recurso da moderna filosofia para entender a produgio e a pro- dutividade do comum pode ser encontrado no pragmatismo america- no € no conceito pragmatico de habito. O conceito de habito permite 208 pragmatistas deslocar as concepgdes filos6ficas tradicionais de sub- jetividade, que a situam no plano transcendental ou na profundidade do eu, Eles buscam a subjetividade na experiéncia, nas priticas € no comportamento didrios. O habito 6 o comum na prética: 0 comum que estamos constantemente produzindo e o comum que serve de base para ‘nossos atos.""® Assim é que o habito esté a meio caminho entre uma lei fixa da naturera ¢ a liberdade da agéo subjetiva — ou, melhor ainda, cle representa uma alternativa a esta tradicional bipolaridade filos6- fica. Os habitos criam uma natureza que serve de base para a vida. William James refere-se a eles como um enorme volante da sociedade, que garante o lastro ou inércia necessiria a reprodugao social e a vida no dia-a. Num registro bem diferente, o grande romance de Marcel, Proust reflete extensivamente sobre a necessidade de habitos para vi ver € 0 significado que conferem aos pequenos desvios em relagio a eles: 0 beijo de boa-noite da mae, o jantar uma hora mais cedo aos do- mingos, ¢ assim por diante, Os habitos sio como as fungbes fisiolégicas, como a respiragao, a digestio e a circulagdo sangiiinea. Nao prestamos atengao a eles, ¢ ndo podemos viver sem eles. Ao contrério das fungdes fii

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