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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Faculdade de Direito

Rodrigo da Silva Roma

Sociedade de risco e bens jurídico-penais transindividuais:


argumentos favoráveis à legitimação no contexto social complexo

Rio de Janeiro
2013
Rodrigo da Silva Roma

Sociedade de risco e bens jurídico-penais transindividuais: argumentos


favoráveis à legitimação no contexto social complexo

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em Direito,
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Transformações no Direito Privado, Cidade
e Sociedade. Linha de pesquisa: Direito
Penal.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Adriano Japiassú

Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C

R756 Roma, Rodrigo da Silva.

Sociedade de risco e bens- jurídico-penais transindividuais : argumentos


favoráveis à legitimação no contexto social complexo / Rodrigo da Silva
Roma. – 2013.
198 f.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Adriano Japiassú.


Dissertação (mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Direito.

1. Risco (Direito)- Teses. 2. Direito penal - Teses. 3. Crime – Teses. I.


Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. II. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Faculdade de Direito. III. Título.

CDU 343.222

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde
que citada a fonte.

_______________________________________ _____________________
Assinatura Data
Rodrigo da Silva Roma

Sociedade de risco e bens jurídico-penais transindividuais: argumentos


favoráveis à legitimação no contexto social complexo

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em Direito,
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Transformações no Direito Privado, Cidade
e Sociedade. Linha de pesquisa: Direito
Penal.

Aprovada em 14/08/2013.

Banca Examinadora:

_________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Adriano Japiassú (Orientador)
Faculdade de Direito - UERJ

_________________________________________________
Prof. Dr. Arthur de Brito Gueiros Souza
Faculdade de Direito - UERJ

_________________________________________________
Prof. Dr. Alamiro Velludo da Silva Neto
Universidade de São Paulo

Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA

À minha mãe, Neide, simplesmente, por


tudo. Sentimento impossível de descrever.
AGRADECIMENTOS

Como não poderia deixar de ser, de início, agradeço ao meu orientador, Prof.
Dr. Carlos Eduardo Adriano Japiassú, pela confiança, paciência, disponibilidade e
amizade demonstradas ao longo dos últimos anos, desde o seu magistério no curso
de graduação culminando, agora, neste trabalho de conclusão de mestrado.
Exemplo de profissional e pessoa. Aqui manifesto minha eterna gratidão.
Especiais agradecimentos merecem os Profs. Drs. Arthur de Brito Gueiros
Souza e Patrícia Mothé Glioche Bèze do Departamento de Direito Penal da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, uma vez que possibilitaram com suas
precisas indicações bibliográficas em disciplinas ministradas ao longo do curso o
incremento do conteúdo deste trabalho. Também exemplos de dedicação á vida
acadêmica, sabedoria e cordialidade.
Merecem homenagens, ainda, meus ilustres professores da Faculdade
Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro durante a graduação
Cezar Augusto Rodrigues Costa, Luciana de Figueiredo Boiteux e Ricardo Nery
Falbo que fomentaram o interesse pela vida acadêmica e que até hoje contribuem
quando preciso.
Aos amigos que fiz durante os anos de faculdade e no Centro Acadêmico
Cândido de Oliveira (CACO) minhas lembranças afetuosas e o agradecimento pela
amizade. Sei que inevitavelmente cometerei injustiças, mas não posso deixar de
citar alguns nomes: André Calza, Danusa Bastilho, Felipe Macedo, Leonardo
Nicolau, Keith Ximenes, Pedro Affonseca, Amanda Souza, Marcelo Correa, Tiago
Magaldi, Edson Zamba, Paulo Brandão e Vitor Stern.
Agradeço, também, aos amigos da Caixa Econômica Federal – Ana Lucia
Valverde, Claudia Mattos, Celina Kanaciro, Leonardo Barroso e Luiz Henrique
Dantas - que compreenderam minhas dificuldades nos últimos anos. Ajuda
fundamental sem a qual não seria possível este trabalho.
Homenageio, ainda, meus avós, tios e primos que muitas vezes privados do
meu convívio ficaram ultimamente por conta de meus afazeres durante a realização
do curso e da dissertação.
Em um Estado democrático de Direito. Modelo teórico de
Estado que eu tomo por base, as normas jurídico-penais
devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos
cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia
de todos os direitos humanos.

Claus Roxin
RESUMO

ROMA, Rodrigo da Silva. Sociedade de risco e bens jurídico-penais transinidividuais:


argumentos favoráveis à legitimação no contexto da sociedade complexa. 2013. 198
f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

A teoria da sociedade de risco foi estabelecida por Ulrich Beck no ano de


1986 por meio da obra Risikogesellschaft - Auf dem Weg in eine andere Mordene.
Beck propõe um novo rumo para a pesquisa sociológico segundo o qual o parâmetro
clássico de estudo das ciências sociais baseado na luta entre classe deveria ser
superado, pois esse modelo seria incapaz de explicar as complexas relações da
sociedade moderna (pós-industrial) em que a característica principal não mais se
encontra na disputa entre detentores do capital e explorado, mas, sim, em tentar
reduzir ou repartir de modo mais justo os riscos sociais. Foi estabelecida a teoria da
sociedade de risco a partir do incremento da tecnologia (por exemplo, energia
nuclear, produção de alimentos transgênicos, etc). Com essas novas técnicas
científicas praticamente impossível é conter os riscos sociais, uma vez que são
neste momento difusos, ou seja, atingem um número indeterminado de pessoas.
Neste ambiente de proliferação de riscos a demanda social direcionada à proteção
por meio de intrumentos de controle dos riscos ganha papel de destaque. O
sentimento social de insegurança baseia-se, principalmente, no fato de não ser mais
o ser humano capaz de prever todos os efeitos das condutas a que está sendo
diariamente exposto. Diante desse novo quadro social, o Direito, em especial, o
Direito Penal não deve mostrar indiferença às necessidades de proteção. Neste
contexto, questiona-se se o Direito Penal clássico, isto é, o Direito Penal produzido
segundo bases Iluministas tipicamente liberal-burguesas do final século XIX
conseguirá fornecer respostas úteis a um modelo social tão diferente daquele
originalmente considerado. É necessário um arcabouço teórico próprio aos dias
atuais, sem desconsiderar o avanço no campo dos direitos humanos. Defende-se na
presente dissertação ter o Direito Penal por escopo a proteção de bens jurídicos,
desde que, evidentemente, estejam lastreados no princípio da dignidade humana
que serve de inspiração a todos os ordenamentos materialmente democráticos na
atualidade. Não se pode negar o relevante papel assumido pelo bem jurídico-penal
individual como contenção do jus puniendi estatal, no entanto, tal instrumento teórico
deve ser combinado a outro: o bem jurídico-penal transindividual. Como técnica
dogmática visando à gestão dos riscos por meio do Direito Penal destinado à
proteção de bens jurídicos transindividuais adotar-se-á, geralmente, a utilização de
tipos penais de perigo abstrato. Por fim, expõe este trabalho como pode ser
empregado o bem jurídico-penal transindividual em zonas de difusão de riscos como
a genética e o meio-ambiente.

Palavras-chave: Sociedade de Risco. Gestão de riscos e Direito Penal. Crimes de


perigo abstrato. Bem jurídico-penal transindividual.
ABSTRACT

ROMA, Rodrigo da Silva Roma. Risk society and transidividual legal interests:
legitimating arguments in favor of complex social context. 2013. 198 f. Dissertação
(Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 2013.

The risk society theory was developed by Ulrich Beck in 1986, in his work
entitled Risikogesellschaft - Auf dem Weg in eine andere Mordene. Beck proposes a
new perspective for sociological research, according to which the classical parameter
in the Social Sciences, based upon class conflict, should be overcome because it
would be unable to clarify the complex relations inherent to modern (post-industrial)
society in which the main feature is no longer the conflict between capital owners and
the exploited, but actually trying to reduce or share in a fairer manner the social risks.
The risk society theory was established in the context of technological progress (e.g.
nuclear power, genetically modified food, etc). These new techniques made it
virtually impossible to contain social risk, because it became diffuse, in other words, it
affects an indetermined number of people. In this environment of increasing
risk,social demands for protection through risk management instruments obtain a key
role. Social feelings of unsafeness are based, mainly, upon the fact that human
beings are no longer able to predict all the effects of the acts to which they are
subject to on a daily basis. In the face of this new social frame, Law and especially
Penal Law cannot show indifference to the need of protection. In this context, we
question if the classical Penal Law – which is the Penal Law produced according to
the liberal bourgeois principles of the European enlightenment from the last quarter
of the nineteenth century – will be able to give helpful answers to a social framework
so much different from the original one. A theoretical framework that fits the present
day becomes necessary, while not disregarding the progress made in the field of
human rights. In the present dissertation is advocated the standpoint that the
objective of Penal Law is the protect legal interests, provided that, evidently, they are
based on the principle of human dignity which is the inspiration to all materially
democratic Law systems of the present day. The relevant role that individual penal
legal interests play in containing the state’s ius puniendi is undeniable. However, this
theoretical instrument has to be combined to another one: the transindividual penal
legal interest. As a dogmatic tecnique that aims at risk management through Penal
Law, usually abstract danger crimes will be adopted. Finally, it is presented in this
work how the transindividual penal legal good can the employed in fields of diffusion
of risk such as genetics and the environment.

Keywords: Risk society. Risk management and Penal Law. Abstract danger crimes.
Transindividual penal legal interest.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................10
1 A SOCIEDADE DE RISCO ....... ............................................................................ 14
1.1 O risco: conceito e fundamentos ..................................................................... 14
1.2 Subjetivismo e Objetivismo no conceito de risco .......................................... 23
1.3 Os riscos na Era Pós-Industrial ....................................................................... 25
1.4 Os riscos e o fenômeno da individualização .................................................. 31
1.5.Riscos e novos movimentos sociais ............................................................... 35
1.6 Da sociedade de classes à sociedade de risco: Marx, Weber, Luhmann e
Beck .......................................................................................................................... 40
1.7 A sociedade de risco e a modernidade reflexiva ............................................ 54
2 O DIREITO PENAL E A GESTÃO DOS RISCOS SOCIAIS .................................. 58
2.1 Considerações preliminares ............................................................................ 58
2.2 Crimes de perigo e controle de riscos ............................................................ 66
2.2.1 Crimes de perigo concreto ............................................................................... 69
2.2.2 Crimes de perigo abstrato ................................................................................ 71
2.2.2.1 Considerações gerais .................................................................................... 71
2.2.2.2 Histórico ........................................................................................................ 76
2.2.2.3 Teses contemporâneas nos crimes de perigo abstrato ................................. 82
2.2.2.3.1 Wilhem Gallas e a periculosidade dos tipos penais.................................... 82
2.2.2.3.2 Teses dualista e monista nos crimes de perigo abstrato ............................ 84
3 TEORIA DO BEM JURÍDICO-PENAL ................................................................... 99
3.1 Primórdios: a influência filosófica .................................................................. 99
3.2 A evolução histórica do bem jurídico no Direito Penal ............................... 102
3.2.1 A influência do Iluminismo em Feuerbach: a ofensa ao direito subjetivo ...... 102
3.2.2 O bem jurídico-penal a partir de Johann Michael Fraz Birnbaum ................... 110
3.2.3 Karl Binding, Franz von Lizst e a afirmação do bem jurídico-penal ................ 114
3.2.4 A Escola de Kiel: um retrocesso da teoria do bem jurídico ............................ 120
3.3 Teorias Contemporâneas ............................................................................... 124
3.3.1 Teorias Sociológicas ..................................................................................... 124
3.3.2 Teorias Constitucionalistas ............................................................................ 134
3.4 Harm principle e a legitimação das normas penais: um diálogo acerca da
legitimidade do Poder Punitivo Estatal nos sistemas jurídicos da common law
e da civil law ......................................................................................................... 144
4 BEM JURÍDICO-PENAL TRANSINDIVIDUAL .................................................... 151
4.1 Da escolha da nomenclatura ......................................................................... 151
4.2 O bem jurídico-penal transindividual como objeto de proteção ................ 153
4.3 Críticas ao Direito Penal do Risco: novas propostas ................................. 159
4.3.1 A concepção monista-pessoal do bem jurídico-penal e o Direito de Intervenção:
Windfried Hassemer ............................................................................................... 159
4.3.2 O Direito Penal de duas velocidades: Jesús-Maria Silva Sánchez................ 165
4.3.3 A proteção dos contextos da vida: Günther Stratenwerth ............................. 167
4.4 Aplicações do bem jurídico-penal transindividual ...................................... 169
4.4.1 Engenharia genética, diversidade e integralidade do patrimônio genético ... 169
4.4.2 Meio ambiente e Direito Penal ...................................................................... 176
4.4.2.1 Desenvolvimento sustentável e futuras gerações ...................................... 176
4.4.2.2 Antropocentrismo ou ecocentrismo na legitimação do bem jurídico no Direito
Penal Ambiental ..................................................................................................... 181
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 186
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 189
10

INTRODUÇÃO

O atual sistema de desenvolvimento sócio-econômico é marcado por


incertezas, uma vez que o modelo produtivo não se apresenta integralmente seguro
diante das inovações tecno-científicas. Durante dois séculos, aproximadamente,
pensou-se que os avanços tecnológicos trariam somente benesses à vida em
comunidade. Não cogitou o homem, entretanto, os conseqüentes impactos que o
desenvolvimento científico poderia acarretar à vida na Terra. Com o fim da Segunda
Guerra o modelo de produção capitalista foi transformado. Novas técnicas de
produção foram incorporadas ao dia-a-dia do modelo capitalista. Encontrava-se a
sociedade na era pós-industrial. Desenvolvimento nas telecomunicações, no
transporte e na robótica, apenas para citar alguns exemplos, modificaram a forma de
o ser humano entender e interagir com o planeta e, também, lidar com as relações
sociais. Atrelados às novas técnicas de produçaõ em massa os riscos passam a ser
considerados elementos cada vez mais presentes nesse cenário social atual e
complexo.
A crença presente no início do pós-industrialismo indicava métodos de
detecção de riscos praticamente infalíveis. Dizia-se, por exemplo, que o receio de
um desastre nuclear deveria ser afastado, uma vez que tal modo de produção
energético era o mais limpo, barato e, principalmente, seguro já criado pelo homem.
Cumpre destacar que toda essa crença na infalibilidade humana e no cálculo dos
riscos nucleares ruiu com o desastre nuclear de Chernobyl no ano de 1989. Poder-
se-iam citar inúmeros outros exemplos de desastres que não foram de forma eficaz
detectados como os fenômenos da deposição ácida no Atlântico Norte nas décadas
de 1970 e 1980 ou, ainda, a incapacidade da racionalidade humana em prever de
forma eficaz a extensão dos danos, bem como o perigo de contaminação decorrente
do vazamento nuclear em Fukoshima (Japão) em 2011. Diante da imprevisibilidade
de resultado e da possibilidade de difusão de riscos a um número incalculável de
pessoas, a racionalidade humana mostrou-se impotente e falha diante desse novo
cenário social em que desastres tornam-se cada vez mais destrutivos. E mais, o ser
humano percebeu que não detinha o controle de todos os resultados que poderiam
acarretar danos à coletividade.
A tentativa de impor limites à proliferação dos riscos tem no Direito um
especial aliado, eis que este ramo das ciências humanas aplicadas visa,
11

primordialmente, manter a vigente estrutura social íntegra. A partir de uma


sociedade preocupada e insegura com os riscos oriundos desse novo momento
histórico, tem lugar um amplo sentimento social de insegurança e um discurso
voltado à necessária e urgente contenção dos riscos. Ocorre que esse controle não
poderá ser realizado de forma absoluta, uma vez que se faz presente no sistema
capitalista a exploração da incerteza como uma típica forma de especulação, pois o
risco deve ser entendido como um fator necessário ao desenvolvimento econômico,
eis que se mostra um dos pilares da moderna economia, qual seja, a invenção de
novas técnicas visando o incremento da produtividade do modelo capitalista
presente.
No campo da contenção de riscos, uma sociedade cada vez mais
amedrontada visualiza o direito penal como uma forma de salvação, ou melhor, uma
maneira de solucionar suas mazelas, uma vez que muitas vezes outros ramos do
ordenamento jurídico mostram-se ineficazes. Nesse ponto, surge a crença em um
direito penal gestor dos riscos sociais. Tudo isso deve ser analisado com o máximo
de critério possível sem esquecer princípios básicos como a ultima ratio e a
fragmentariedade, e, também, de princípios neoconstitucionalistas como a
razoabilidade e proporcionalidade (vedação ao excesso e à proteção deficiente). A
sociedade de risco - com suas novas forças produtivas - acaba por considerar o
direito penal um garantidor do um papel de preservação das expectativas sociais
diante de tantas incertezas presentes na pós-modernidade. Cabe destacar que a
norma penal, como o instrumento de controle social mais agressivo à disposição do
Estado, deverá ter sua incidência pautada em princípios e regras que visem à
manutenção ou ao estabelecimento de um ambiente social típico de um Estado
Democrático de Direito. Necessária, portanto, uma averiguação cuidadosa sobre sua
utilização. A atuação do direito penal além dos limites impostos pelo modelo
democrático com respeito à dignidade humana significará arbitrariedade e
desrespeito aos direitos fundamentais.
Visando a entender esse novo cenário social complexo e, também, com o
intuito de responder aos anseios de proteção, pergunta-se se mecanismos
tradicionais do direito penal continuam a merecer plena aplicabilidade e, mais, se
são suficientes à atual demanda social por proteção/contenção de riscos. Basta ver,
por exemplo, a tradicional definição de crime como a lesão ou ameaça de lesão e,
também, a cada vez maior importância nos ordenamentos jurídicos das figuras
12

tópicas utilziadoras dos tipos penais de perigo abstrato. Ou, ainda, quando se
entende que o Direito Penal tem por escopo a proteção de bens jurídicos, pode-se
questionar se tal proteção visa eminentemente bens individuais ou se poderá lançar
mão o ordenamento repressivo de uma categoria de bens jurídico-penais coletivos
ou, para ser mais exato, bens jurídicos transindividuais.
De toda forma, adianta-se, desde já, que o objeto de estudo desta dissertação
encontra-se na tentativa de compatibilizar as novas formas de proteção social por
meio do direito penal tendo como base um modelo social calcado no risco. Como
forma de resposta, defende esta dissertação a aplicabilidade do conceito de bem
jurídico-penal transindividual.
O presente trabalho, excetuando-se a introdução e a conclusão, divide-se em
quatro capítulos: no primeiro - a sociedade de risco – procurou-se abordar as
contribuições sociológicas de Ulrich Beck, formulador do conceito de sociedade de
risco, em especial, acerca da mudança do paradigma de análise social de uma
sociedade de classes para uma sociedade que tenta administrar a difusão de riscos.
Estudaram-se, também, alguns dos fenômenos sociais complexos e atuais como a
individualização que contribui para a alienação do debate político e,
consequentemente, perda da capacidade crítico acerca do papel desempenhado por
legislador penal. São expostas contribuições de cientistas sociais predecessores a
Beck, tais como Engels, Marx e Weber. No fim do primeiro capítulo aborda-se a
modernidade reflexiva, teoria esta desenvolvida mais recentemente e que serve a
complementar a sociedade de risco; No segundo capítulo - o direito penal e gestão
dos riscos sociais – analisa-se dos riscos penalmente permitidos e o emprego de
tipos penais de perigo abstrato como forma de controle dos riscos expondo a
evolução histórica dessa categoria delitiva ao longo dos anos. A terceira parte da
dissertação - a teoria do bem jurídico-penal – aborda a evolução histórica do bem
jurídico-penal, em especial, o debate entre teorias contemporâneas sociológica e
constitucionalista e o polêmico debate entre o conceito monista de bem jurídico e a
teoria sociológica inspirada em Luhmann e Parsons. E, por fim, um último capítulo é
destinado ao bem jurídico-penal transindividual – conceito, críticas e, por derradeiro,
a aplicação do bem jurídico-penal transindividual no campo da engenharia genética,
principalmente a humana e, também, o bem jurídico-penal transindividual e sua
aplicação na tentativa de resguardar o meio ambiente. Após os quatro capítulos
elencados, parte-se na direção de uma conclusão afirmativa e apoiadora da teoria
13

do bem jurídico, em especial, com o emprego da categoria dos bens jurídico-penais


transindividuais. Em primeiro plano, a grande fonte desta dissertação foi a doutrina
nacional e estrangeira, seja no campo do direito como, também, no campo de outras
ciências humanas e sociais aplicadas. Adotaram-se, ainda, algumas decisões de
tribunais pátrios e internacionais acerca de pontos específicos. Quando se optou
pela realização de citações diretas em vernáculo não nacional, entendeu-se melhor
não se traduzir as passagens realizadas em vernáculo estrangeiro; seja porque boa
parte das passagens resume-se a textos em espanhol, o que contém clara
proximidade com a língua portuguesa, seja, ainda, porque se procurou expressar
ipsis literis o verdadeiro sentido da passagem trazida pelo doutrinador estrangeiro
citado.
14

1 SOCIEDADE DE RISCO

1.1 O risco: conceito e fundamentos

À primeira vista, o conceito de risco parece destituído de relevância especial


em tempos atuais, eis que desde pretéritas eras a colocação do homem em
situações arriscadas já integrava a realidade humana. Basta pensar, por exemplo, a
vida penosa, brutal e, principalmente, curta que a maioria dos habitantes do planeta
na Idade Média1 desfrutava. Hodiernamente, continua-se frente a frente com a
incerteza dos comportamentos humanos diante do futuro. Estabelecer diferença
entre o convívio humano em situações arriscadas ao longo dos anos é um dos
objetos desta primeira parte da dissertação. Por agora, busca-se inserir a ideia que
risco e perigo não são conceitos sinônimos. A diferença encontra-se exatamente no
binômio conhecimento/aproveitamento das situações potencialmente lesivas na
esfera de atuação do ser humano. Em suma, o risco pode ser conceituado como o
perigo conhecido ou aproveitado pela sociedade moderna, isto é, o comportamento
arriscado sempre esteve presente nas relações humanas. O que sofre alteração a
partir da modernidade é a tentiva de conhecer e aproveitar do cálculo do perigo a fim
de se evitar a ocorrência dos fenômenos não desejados. O perigo conhecido e
aporoveitado passa a ser entendido portanto como o risco. Segundo Ulrich Beck,
“modern society has become a risk society in the sense that is increasingly occupied
with debating, preventing and managing risks that itself has produced 2”.

1
Geofrey Blainey assim caracteriza a vida na Idade Média: “as estações quentes, alguns poucos séculos mais
tarde, começaram a alterar-se. Até a ilha mediterrânea de Creta entrou numa fase mais fria, por volta do ano de
1150. Na Alemanha e na Inglaterra, o frio chegou talvez um século depois, e os anos entre 1312 e 1320 foram
não só frios como também chuvosos, ao contrário do usual. Como boa parte dos grãos tinha de ser reservada para
a semeadura do ano seguinte, a colheita insuficiente levava à fome. Em 1316, talvez uma em cada dez pessoas de
Ypres morreu de desnutrição. Em alguns lugares, a carne humana chegava a ser consumida. As precisões
religiosas no Oeste da França refletiam os tempos difíceis. Às vezes, eram compostas de inúmeras pessoas
esquálidas e descalças, algumas das quais praticamente nuas. As colheitas escassas também afetavam o
abastecimento de roupas de preço baixo, pois os pobres faziam suas vestimentas de fibras de linho, cultura
igualmente afetada pelas condições desfavoráveis do tempo. Na verdade, a extrema necessidade pode ter levado
à substituição do cultivo de linho pelo de grãos”. BAILEY, Geofrey. Uma breve história do mundo. São Paulo:
Editora Fundamento Educacional, 2011, pp. 147-148.
2
BECK, Ulrich. Living in the world risk society. Economy and Society. Volume 35. Londres: Routledge, Taylor
& Francis Group, 2006. p. 329. A seguir, breve esclarecimento acerca da diferança entre risco e catástrofe: “risk
does not mean catastrophe. Risk means the antecipation of catastrophe. Risks exists in a permanent state of
virtuality, and become ‘topical’ only to the extent that they are antecipated. Risks are not ‘real’, they are
‘becoming real’ (Joost von Loon). At the moment t which risks become real – for example, in the shape of
terrorist attack – they cease to be risks and becomes catastrophes. Risks have already moved elsewhere: to the
anticipation of furthers attacks, inflation, new markets, wars or reduction of civil liberties. Risks are always
events that are threatening.”
15

Na Idade Média não existia um conceito específico de risco, uma vez que este
àquela época era considerado sinônimo de perigo3. Entretanto, a ausência de um
conceito formal não significava a conclusão que àquela época as pessoas não
detinham ao menos uma concepção abstrata de comportamentos suscetíveis a
falhas, ou seja, condutas que poderiam levá-las ao prejuízo de um futuro
desconhecido, isto é, ações arriscadas. A dúvida/incerteza quanto ao desconhecido
configurava o perigo. Em outro turno, a conceituação dos riscos e sua utilização para
a convivência humana é característica mais recente. Teria surgido, principalmente, a
partir do período Renascentista. Pode-se ser resumida na seguinte frase a distinção
entre risco e perigo: o risco é um conceito renascentista, fabricado e científico; o
perigo é conceito que sempre acompanhou o homem e liga-se a circunstâncias
causais que afetem a vida diuturna do ser humano. Já Ulrich Bech assim diferencia
riscos dos perigos: (i) os riscos têm um caráter de permanência e continuidade; (ii)
perigos não são relacionados com instituições consolidadas e conseqüências gerais
controláveis da produção industrial e sistemas técnicos4.
Peter Berstein expõe a diferença entre o passado e o presente no tocante aos
riscos argumentando que hoje o ser humano não mais confia seu futuro unicamente
à vontade indeterminada de deuses ou, simplesmente, a forças da natureza5:

the revolutionary idea that defines the boundary between modern times and
the past is the mastery of risk: the notion that the future is more than a whim
of the gods and that men and women are not the passive before nature.
Until human beings discovered a way across thar boundary, the future was a
mirror of the past or the murky domain of oracles and soothsayers who held
a monopoly over knowledge of anticipated events.

Diante do exposto nas doutrinas de Beck e Berstein vislumbra-se que o perigo


sempre esteve presente na vida humana e que o conceito de risco é um conceito
fabricado, isto é, uma elaboração teórica no sentido de ser uma situação de
aproveitamento ou relacionamento entre o homem e o perigo. No passado, o
cotidiano não necessitava da análise constante das atividades potencialmente
danosas. As guerras, as catástrofes e as epidemias eram consideradas fenômenos

3
Cfe. GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole. Tradução de Maria Luíza X. A. Borges. 6ª Ed. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2007.p 32.
4
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Tradução Jorge Navarro, Daniel Jiménez
e Maria Rosa Borrás. Buenos Aires: Paidós, 1998. p. 28.
5
BERSTEIN, Peter L. Against the gods: The remarkable histoy of risk. Nova York: John Villey & Sons Inc.,
1996. p. 1.
16

isolados que, em geral, advinham da vontade dos deuses6 e que em nada podiam os
homens fazer para impedi-los7.
As culturas antigas não teriam de se preocupar em elaborar um conceito de
risco. O vocábulo risco passou a ganhar plena utilização em sociedades orientadas
ao futuro, significa dizer que pressupõe uma sociedade que tenta ativamente romper
com seu passado, característica primordial da civilização industrial moderna (a partir
dos séculos XVII e XVIII)8.
As mais importantes culturas anteriores à moderna, entre as quais a primeira
civilização chinesa, a civilização grega e a romana, tradicionalmente, viviam do
passado, isto é, usavam majoritariamente ideias transmitidas por seus ancestrais
acreditando em destino, sorte ou vontade dos deuses9.

Nas culturas tradicionais, se alguém sofre um infortúnio, ou, ao contrário,


prospera – bem, essas coisas acontecem, ou esse era o desígnio dos
deuses e dos espíritos. Algumas culturas negaram por completo a idéia de
acontecimentos casuais. Os azandes, uma tribo africana, acreditam que o
infortúnio que se abate sobre alguém é resultado de feitiçaria. Uma pessoa
adoece, por exemplo, porque um inimigo andou praticando magia negra10.

6
V. ENGELS, Friedrich. Sociologia dos Juristas in ENGLES, Friedrich; GIANNOTTI, José Arthur, ARNOUD,
André Jean, SIMÕES, Carlos; POULANTZAS, Nicos e CHAUÍ, Marilena. Crítica ao Direito: São Paulo: LECH
– Livraria e Editora Ciências Humanas, São Paulo, 1980, p. 1: “Na Idade Média a concepção de mundo era
essencialmente teleológica. A unidade no mundo europeu, que não existia de fato no interior, foi realizada no
exterior pelo cristianismo, contra o inimigo comum – os Sarracenos. É o catolicismo que foi o recipiente da
unidade do mundo europeu, grupo de povos em relação mútuas constantes no curso de sua evolução. Essa união
teleológica não se limitava ao domínio das ideias. Tinha uma existência real, não só na pessoa do papa, que era
seu centro monárquico, mas sobretudo na Igreja organizada feudal e hierarquicamente , e que, na sua qualidade
de proprietária de aproximadamente um terço do solo, detinha em cada país um poder político enorme. O Clero
era, além disso, a única classe culta. Compreende-se assim que o dogma da Igreja deveria ser o ponto de partida
e a base de todo o pensamento. Direito, ciência da natureza, filosofia, a regra aplicada a todo o conhecimento era
simples: o seu conteúdo concorda com os ensinamentos da Igreja?”.
7
Os riscos, num primeiro momento, eram impossíveis de mensuração. Num segundo momento, em especial a
partir do século XVIII, passaram os homens a medir os riscos de condutas, bem como seus possíveis resultados.
Ocorre que na atualidade, em razão de um modelo econômico de desenvolvimento e uso de recursos de forma
desmedida e despreocupada, a expansão dos riscos se dá de uma forma que a sua própria mensuração fica
complicada. Não é a existência do risco que qualifica a sociedade atual, mas sim a dimensão desse risco. É o
risco expandido a todo o sistema social.
8
Cfe. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willins. São Paulo: Unesp,
2003. pp. 114-115: “pode-se encarar a industrialização , ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas que se
estende do século XVIII ao XX, como o processo de surgimento de riscos e das respostas. Numa formulação
mais abstrata: como dialética de perigos que, desse modo, se tornam calculáveis pelas respostas institucionais
adequadas. Isso se manifesta concretamente no seguro privado, que vale como o símbolo-chave da prevenção de
risco.”
9
Cfe. GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole… p. 33.
10
Idem Ibidem.
17

Ulrich Beck11 afirma que o elemento diferenciador do risco na pós-


modernidade em comparação ao conceito nas Idades anteriores é a delimitação dos
riscos em âmbitos pessoal versus global12. Exemplificando: para Beck, aquele que
se lançava ao mar no período das Grandes Navegações (início da Era Moderna) em
busca de novas oportunidades, indubitavelmente, já corria risco; ao mínimo, já
elucubrava mentalmente a possibilidade de nunca mais voltar. A diferença entre
passado e presente baseia-se no fato de modernamente o risco deixar de ser
estritamente um conceito pessoal (interno ao agente) passando a ser inserido numa
visão coletiva ou global, ou seja, uma noção que afeta diretamente a vida de toda a
humanidade com impactos generalizados e muitas vezes incomensuráveis13.

Risk makes its appearance on the world stage when God leaves it (van
Loon). Risks presuppose human decisions. They are partly positive, partly
negative, janus-faced consequences of human decisions and interventions.
In relation to risks there is inevitably posed the highly explosive questiono f
social accountability only in extremely exceptional cases. The
acknowledged, decision-governed social roots of risk make it completely
impossible to externalize the problem of accountability. Someone, on the
other hand, who believes in a personal God has at his disposal a room for
manoeuvre and meaning for his actions in the face of threats and
catastrophes. Through prayers ans good works people can win God´s favour
and forgiveness and in this way actively contribute to their salvation, but also
to that of their family and community. There is, therefore,a close connection
between secularization and risk. When Nietzsche announces: God is dead,
then that has the – ironic – consequence that from now on human beings
must find (or invent) their own explanations and justifications for the
14
disasters which threaten them .

Basta ver, no que concerne à extensão ou difusão dos riscos modernos


passando de um conceito individual a um conceito geral ou coletivo, o exemplo

11
Segundo Ulrich Beck, o termo pós-modernidade pode ser dividido em duas fases: a primeira e a segunda
modernidade. A segunda modernidade tem início na década de 1950, tendo atingido seu apogeu vinte anos mais
tarde. Apresenta como elementos característicos a revolução do transporte, revolução da produção industrial e
principalmente a pujança do mercado de capitais (esta denominada de revolução dos capitais). No fim da década
de 1980, outra revolução se fez presente: a revolução da internet. A internet corresponde à revolução do
transporte das estradas de ferro; no lugar da revolução industrial, tem-se a indústria dos chips. BECK, Liberdade
ou Capitalismo.... pp. 34-45.
12
Idem. La sociedad del riesgo... pp. 32-40.
13
Em 1986 um grave acidente ocorreu na cidade ucraniana de Chernobyl. Nenhum estudioso à época soubre
prever quais seriam suas conseqüências a curto, médio ou longo prazo. A quantidade de vítimas fatais e o nível
de contaminação no solo eram desconhecidas. Após mais de 25 (vinte e cinco) anos ainda não se tem o número
exato de mortos. Também não será possível mensurar quantas pessoas indiretamente tiverem suas integridades
físicas afetadas mediatamente o vazamento nuclear.Talvez possa haver um desastre para a saúde ali guardado
pronto para eclodir daqui a algum tempo. O mesmo pode ser dito sobre o episódio da encefalopatia
espingoforme bovina no Reino Unido – o surto da chamada doença da vaca louca – em relação a suas
implicações para os seres humanos. Também não se sabe ao certo no momento qual o número de pessoas
vitimadas e se a doença está devidamente controlada.
14
BECK, Ulrich. Living in the world risk society... p. 333.
18

trazido por Beck envolvendo a destruição de florestas suecas e norueguesas


cinquenta anos atrás. Os dois países nórdicos citados não detêm (desde a década
de 1970) uma planta industrial caracterizada pela emissão de poluentes em grandes
quantidades, portanto seriam incapazes de gerar fenômenos destruidores em
grande escala. Pelo contrário, foram nações precursoras na adoçaõ do ideal de
desenvolvimento sustentável e redução da emissão de poluentes nas atividades
industriais15.
Mesmo com todas as atitudes protetoras, no final da década de 1970, grande
parte das florestas nativas da Suécia e Noruega sofriam prejuízos em larga escala
causado por fenômenos destrutivos causados pela poluição de países próximos. O
efeito destrutivo mais conhecido e sentido à época era a chuva ácida gerada,
principalmente, por nuvens tóxicas expelidas pela grande concentração de poluentes
na atmosfera emitidos por fábricas inglesas situadas no mínimo a seiscentos
quilômetros dos bosques afetados. Tais fenômenos destrutivos ameaçavam
exterminar toda a reserva florestal nórdica acabando, portanto, com todo o bioma de
fiordes, importante fonte de equilíbrio ecológico e também relevante elemento a
compor a renda do setor turístico local16. Quando se imaginaria que indústrias
localizadas a centenas de quilômetros poderiam afetar a vida de cidadãos tão longe
de suas fronteiras? Neste exemplo Beck encontra a diferença entre riscos passados
e futuros, ou seja, riscos aproporiados pelo sistema moderno de produção capitalista
e os chamados riscos primitivos17. No passado, por exemplo, o risco de morrer após
ter contraído a peste limitava-se à esfera de atuação individual ou no máximo na
esfera de atuação de pessoas que tivessem contato com o infectado numa
comunidade próxima, exceção, é claro, se o infectado pudesse transpor fronteiras
numa velocidade rápida, o que não seria muito comum em razão da precariedade
dos sistemas de transportes. Basta ver, por exemplo, que a peste bubônica que

15
Idem. La Sociedad del riesgo... p. 27.
16
Pesquisa recente da Pontifícia Universidade Católica de Minas (Departamento de Ciências Naturais) define o
fenômeno da chuva ácida: “a chuva ácida é um problema que vai atingindo uma escala mundial. Os países mais
desenvolvidos, com maior grau de industrialização, são vítimas das chuvas ácidas, por conta dos enormes
volumes de gases emitidos e lançados na atmosfera. Mas o problema não está restrito a eles. Na verdade, a
chuva ácida provoca problemas para além desses países. Por conta dos ventos as chuvas ácidas acabam atingindo
países com menor quantidade de indústrias e menores índices de poluição atmosférica. Assim, lagos e florestas
do Canadá acabam vítimas das chuvas ácidas por causa das emissões de gases nos Estados Unidos. Na Europa, a
Noruega e a Suécia, embora com poucas fábricas, estão sendo prejudicadas pela acidez da chuva provocada por
emissões em países como a Alemanha e a Inglaterra”. Disponível em
<http://www.ich.pucminas.br/pged/db/wq/wqchuva/introduz.html>. Acesso às 20:28 h do dia 23/08/2012.
17
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo... p. 28.
19

assolou países da Europa Ocidental nos séculos XII, XIII e XIV teve início no norte
da China duzentos anos antes. Em seguida, espalhou-se pela Mongólia e países da
Europa Oriental, até que no século XII chegou a Alemanha, França e Espanha. Ao
contrário, na atualidade, o risco advindo da industrialização é difuso e move-se
rapidamente18. Não resta estabelecido diretamente em caráter individual, fato este
que muitas vezes dificultará sua percepção e seu controle. Em suma, para Ulrich
Beck, la palavra riesgo tenía en contexto de esa época la connotación de coraje e
aventura, no la de la posible autodestruición d ela vida en la Tierra 19.
Outro ponto significativo na tentativa de diferenciar o passado e presente
acerca da discussão entre perigo e risco na sociedade pós-industrial refere-se à
percepção dos riscos que não pode mais ser feita diretamente pelos sentidos
humanos. Pelo contrário, os riscos modernos escondem-se muitas vezes longe de
qualquer chance de percepção do ser humano. São fórmulas físico-químicas aptas a
causar danos à integridade física humana e que são de difícil ou impossível
percepção sensorial. Cabe destacar que os riscos de hoje, para Beck, são um
produto global nascido do progresso originado da industrialização20, generalizados e
muitas vezes irreversíveis21.
Etimologicamente, a origem da palavra risco é duvidosa. Para Anthony
Giddens, o vocábulo provavelmente originou-se a partir de um termo árabe risiku,
termo este aproveitado rapidamente por espanhóis e portugueses e significava
“correr para as rochas ou dirigir-se ao perigo do mar”. Prossegue o sociólogo

18
Sobre o tema, recomenda-se leitura de reportagem intitulada “À caça da gripe assassina” na revista Scientific
American de abril de 2005 acerca da história da difusão da gripe H1N1 que matou entre 1918 e 1919 40 milhões
de pessoas. Segundo Jeffery Taubenberger, Ann Reid e Thomas Fanning, autores do texto, a propagação a nível
catastrófico ocorreu, principalmente, pela imensa onde de descolcamento populacional devido à Primeira Grande
Guerra, onda esta auxiliada pelo desenvolvimento do transporte marítimo e ferroviário. Disponível em
<www2.uol.com.br/sciam/reportagens/a_caca_do_virus_da_gripe>. Acesso em 28/08/2012.
19
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo … p. 27.
20
V. BECK, Ulrich. Critical Theory of World Risk Society: a cosmopolitan vision. Constellation Review. 16 v.,
Massachussets: Blackwell Publishing, 2009, p.7 “The historical uniqueness of the world risk society, which
differentiates this era as much from national industrial society as from earlier civilizations, resides in the
decision-dependent possibility of control over life in earth.” Para o mesmo autor em La Sociedad del Riego..., a
formação social contemporânea adota por completo a visão que o risco figura como grande elemento
caracterizador da sociedade moderna. Em razão da modernização radical das últimas décadas (por exemplo o
projeto genoma humano que ganhou repercussão no ano de 2000)o risco passou a integrar a cultura e política
modernas.
21
Idem. La sociedad del riesgo... p. 31: “Ilustremos esto con um ejemplo. El Rat der Sachverständigen für
Umwelfragen (Consejo de Expertos em Cuestiones Relativas ao Médio Ambiente) constata en su informe que ‘en
la leche materna a menudo se ha encontrado beta-hexaclorociclohexano, hexaclorobenzol y DDT en unas
concentraciones excesivas (1985). Estas sustancias tóxicas están contenidas en insecticidas para plantas que
entre tanto han sido retirados del mercado’. “Estos ejemplos muestran dos cosas: primero que los riesgos de la
modernización se presentan de uma manera universal que es al mismo tiempo específica e inespecífica
localmente: y segundo, cuán incalculables e impredecibles son los intrincados caminos de sus efectos nocivos”.
20

britânico aduzindo que a ideia de risco parece ter sido estabelecida nos séculos XVI
e XVII, sendo originariamente cunhada por exploradores ocidentais ao partirem para
suas viagens pelo mundo22. Daí a importância da palavra para instrumentos
cartográficos de navegação. Risco, em geral, designava área com bancos de areia,
corais ou qualquer outra dificuldade à navegação.
Já no entender de Niklas Luhmann, o termo não derivaria do árabe, mas sim
do latim antigo (risicu) e significava “atuar diante da possibilidade de insucesso23”.
Nas palavras de Peter L. Berstein24, a palavra risco teria origem diversa25:

The word “risk” derives from the early Italian riscare, which means “to
26
dare ”. In this sense, risk is a choice rather than a fate. The actions we dare
to take, which depend on how to free we are to make choices, are what the
story of risk is all about. And that story helps define what it means to be a
human being.

Seja qual for a origem adotada, latina ou árabe, fato é que todas atrelam o
risco ao desenvolvimento de uma ação humana, uma conduta do ser humano na
tentativa de impedir ou diminuir resultados negativos provenientes de infortúnios
futuros e normalmente estranhos à vontade humana.
No século XVII, período de profusão das ideias renascentista, em especial no
ano de 1654, um nobre francês chamado Chevalier de Meré, amante de corridas de
cavalo, jogos de tabuleiro e carteados, desafiou um famoso matemático francês -
Blaise Pascal - a resolver um problema relativamente modesto: apurar as chances
de sucesso de um jogador de cartas antes e durante uma partida. O estudo de um
jogo em andamento mostrou-se bem mais complexo do que se poderia imaginar. O
objetivo de auxiliar a diversão entre nobres marcou o nascimento de uma ciência tão
relevante no estudo dos riscos: a probabilidade. 27
Ao tempo em que Pascal tentava resolver o desafio das probabilidades,
mudanças ocorriam no seio da sociedade europeia. Uma série de alterações
influenciaria por demais o rumo de toda a humanidade. O novo poder bélico gerado
pelos canhões à pólvora reduzia as fortalezas medievais a escombros, a Terra

22
Idem, Ibidem, p. 32.
23
LUHMANN, Niklas. Observaciones de la modernidad. Tradução de Carlos Funtes Gil. Barcelona: Paidós,
1997. p. 64.
24
BERSTEIN, Peter. Against the gods... p. 8.
25
Idem, Ibidem.
26
Em português, o verbo significaria “ousar”.
27
Cfe. BERSTEIN, Peter L. Against the Gods,.... p. 3.
21

finalmente fora confirmada como sendo de formato não quadrado; o movimento de


mecanização da imprensa difundia-se segundo as ideias de Guttenberg28; Rembrant
pintou sua mais famosa obra “Aulas de Anatomia do Dr. Tulp29”, fato que gerou
profundo espanto em toda a comunidade científica, pois reproduzia com precisão a
dissecação de um corpo humano; a arte de Rembrant perturbou a sociedade da
época fazendo-na pensar no paradoxo entre materialidade e alma, uma realidade
jamais vista publicamente nas artes; William Harvey conseguia finalmente
estabelecer o mecanismo de funcionamento do sistema circulatório do corpo
humano 30 e etc. Tais acontecimentos favoreceram a construção de um ambiente de
profunda confiança na certeza científica31. O misticismo ou a crença no sobrenatural
perdia força naquele continente e, por conseqüência, em todo mundo colonizado.
Com o passar dos anos, matemáticos transformaram a teoria da
probabilidade em um poderoso instrumento de organização, interpretação e
aplicação de informações recolhidas para tomadas de decisões. As mais acertadas

28
No século XV, Johannes Guttenberg inventou a imprensa mecânica ocidental. A técnica de imprimir com
caracteres móveis é mais antiga. A origem é chinesa e remonta o ano 105 da Era Cristã. O que fez Guttenberg foi
importar a inovação asiática e imprimir em nível de centenas de cópias em apenas uma semana o livro mais
vendido de todos os tempos, a Bíblia. Em trinta anos, Guttenberg imprimiu milhares de cópias. Sobre o tema,
consultar TOSSERI, Olivier. Guttenberg não invetou a imprensa; Disponível em
<www2.uol.com.br/historiaviva/artigos>. Acesso em 30/08/2012.
29
Óleo sobre Tela datado de 1632 (169,5 cm x 216,5 cm). A obra retrata, em conjunto com a obra Ronda
Noturna, o ponto alto de sua primeira fase de produção. O pintor anima a composição com um numeroso grupo
de pessoas presenciando uma aula de anatomia, por isso a origem do nome da obra de arte. Estilo barroco
flamenco. No primeiro período de sua produção, o artista fez parte de um movimento cultural denominado
Peinture Savante, constituída por uma elite culta, de admiradores da Itália. Seu mestre, Pieter Lastman, é
seguidor de Caravaggio, tendo estudado por dez anos em Roma. Neste período, a pintura de Rembrandt é
dominada pelos tons luminosos em contrastes dramáticos. Seus temas são bíblicos e mitológicos. O acabamento
é cuidadoso, com técnica refinada. Os grupos de figuras são construídos segundo o receituário barroco, com
gestos dramáticos e expressivos, de ação intensa. Fonte: <www.auladearte.com.b>r. Acesso em 23/08/2012, às
20:19h.
30
Cientista inglês nascido em 1578 e falecido em 1657. Em 1628 publica sua obra máxima exercitatio anatomica
de motucordias et sanguines in animalibus na qual expõe suas observações conclusivas sobre a dinâmica da
circulação sanguínea já objeto de notas iniciais e de conceituações básicas em outra obra sua intitulada Lumleian
Lecture (1916). Tratava-se de um pequeno livro com 72 páginas escrito em latim sem os cuidados gráficos
desejáveis para a época. O trabalho de Harvey veio permitir o reconhecimento de uma situação não totalmente
ignorada durante séculos, mas observada apenas de forma parcial e incompleta por vários pesquisadores. De
início, Harvey ressalta com espanto o fato, quase incrível, da ignorância dos médicos antigos sobre a circulação
sanguínea. Como se compreende, os traumas, os ferimentos, as amputações, são altamente informadores sobre
aspectos funcionais das artérias e de veias, e essas trágicas ocorrências foram companheiras permanentes do
homem, em tantos períodos ricos em guerras, em acidentes e em crimes. Apenas com o estudo de Harvey esse
cenário de ignorância parece mudar. Fonte: Sociedade Brasileira de Cardiologia.
<http://publicacoes.cardiol.br/caminhos/08/>. Acesso em 23/08/2012, às 20:34h.
31
BLAINEY, Geofrey. Uma breve história... pp. 208-209: “A onde de descobertas em várias frentes científicas
foi o resultado da colaboração de centenas de estudiosos amadores, observadores de estrelas, médicos e
religiosos que dispunham de um pouco de tempo. Muitos atuavam em áreas diversas e estavam interessados em
resolver uma série de dilemas intelectuais. A revolução científica promoveu um avanço maravilhoso de ver o
mundo.”
22

decisões passariam a ser compostas primordialmente por dados estatísticos que, em


suma, calculavam as chances de (in)sucesso.
A habilidade em se definir o que aconteceria no futuro e escolher dentre as
alternativas possíveis passa a ser traço marcante na sociedade moderna capitalista

Risk manegement guides us over a vaste range of decision-making, from


allocating wealth to safeguarding public health, from waging war to planning
a family, from paying insurance premiums to wearing a seatbelt, from
32
planting corn to make cornflakes .

O risco surgiu, portanto, como a nova dinâmica mobilizadora da sociedade


industrial propensa a mudanças. Tal sociedade deseja determinar seu próprio futuro
em vez de confiá-lo à religião, à tradição ou aos caprichos da natureza. Por seu
turno, o capitalismo moderno difere de todas as formas anteriores de sistema
econômico em suas atitudes em relação ao futuro, pois passa a administrar o risco
tendendo a considerá-lo importante elemento gerador de riquezas.
Os tipos de empreendimento de mercado anteriores ao século XVII eram
irregulares ou parciais. As atividades dos mercadores e negociantes até os séculos
XV e XVI (embrionárias do capitalisto hodierno) não possuíam um efeito muito
profundo na estrutura básica das civilizações tradicionais, que permaneciam
amplamente agrícolas e rurais, concentradas muitas vezes num modelo ainda feudal
de produção e comércio, como acontecia, por exemplo, na Prússia 33.
O capitalismo moderno apresenta como característica fundamental inserir-se
num contexto de futuro passando a calcular o lucro ou, até mesmo, os prejuízos a
ocorrerem. A análise do risco passa, portanto, no cenário capitalista hodierno, a ser
um processo contínuo e típico da estrutura social. Ao lado das ciências da
probabilidade ou estatísticas, a Contabilidade surge como uma importante
ferramenta ao sistema capitalista. A elaboração do método das partidas dobradas,
por exemplo, permitiu o acompanhamento preciso e rápido do rendimento das
quantias aplicadas e mitigação dos riscos de insucesso no empréstimo de dinheiro.

By defining a rational process of risk-taking, these inovations provided the


missing ingredient that hás propelled sciense and enterprise into the world of
speed, Power, instant comunications, ADN sophisticated finance that makes
our own age. Their discoveries about the nature of risk, and the seat the art
and sciense of choice, lie at the core of our modern market economy that

32
BERSTEIN, Peter L. Against the gods... p. 15.
33
BLAINEY, Geofrey. op. cit., p. 210.
23

nations around the world are hastening to join. Given all its problems and
pitfalls, the free economy, with choice at its center, has brought humanity
unparalleled acess to the goods things of life34.

Também merece destaque, precisamente no ano de 1725, a utilização do


conceito de risco por cientistas atuariais que realizavam estudos de expectativa de
vida da população para o Governo Inglês preocupado com o financiamento do
incipiente sistema de seguridade social local35 que nada mais era que uma atividade
administradora de riscos36.

1.2 Subjetivismo e objetivismo no conceito de risco

Acreditar no futuro como um elemento social arquitetado e previsível é


característica basilar da concepção subjetivista de risco. Sobre o tema, vale citar
palavras de Pierpaolo Cruz Bottini37:

O pensamento positivista clássico conceitua o perigo como uma construção


subjetiva do ser humano. Tal ideia parte da concepção de que todos os
fenômenos estão sujeitos à causalidade natural, porém o homem, que não
conhece todos os sistemas e nexos causais, compreende o mundo à sua
volta apenas por meio de generalizações e abstrações. Conceber os
acontecimentos desta forma impede que o ser humano tenha certeza
absoluta dos resultados decorrentes de uma ação concreta. O máximo que
se pode fazer é estabelecer probabilidades, e a probabilidade de ocorrência
de um dano caracteriza a ação perigosa. Assim, o perigo diz respeito à
apreensão subjetiva do acontecimento danoso, que só existe porque o
homem não conhece a relação de causalidade precisa decorrente dos fatos.
O perigo é filho de nossa ignorância, nas palavras de Halschner. O
conhecimento absoluto das conexões naturais entre causas e efeitos
mitigaria a angústia diante do perigo, pois o ser humano já saberia, de
antemão, que tal conduta levaria ou não ao resultado. Os fatos seriam
apenas danosos ou inócuos, e o perigo seria suprimido pela absoluta
certeza dos eventos futuros.

Ainda sobre o subjetivismo científico, Juarez Tavares assevera38:

34
BERSTEIN, Peter L. Against the gods.… p. 2.
35
Idem, Ibidem.p. 4: “By 1725, mathematicians were competing with one another in divising tables of life
expectancies, and the English Government was financing itself through the sales of the life annuities. By the
middles of the century, marine insurance had emerged as a flourishing , sophisticated business in London”.
36
Sobre a história da seguridade social ler CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual
de Direito Previdenciário. São Paulo: Conceito Editorial, 2011. pp. 35-48.
37
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato e Princípio da Precaução da Sociedade de Risco. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. pp. 30-31.
38
TAVARES, Juarez Estevam. Teoria do Injusto. 3ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 6.
24

Da relação, portanto, entre a realidade fenomênica regida por uma ordem


natural e a formulação de enunciados, nasce e desenvolve-se a ciência na
modernidade, cujo modelo é representado pela mecânica de Newton e as
leis do movimento (ma=f), pelas quais, dadas determinadas condições, se
poderiam predizer as conseqüências e descobrir seus antecedentes, quer
dizer, a força (f) empreendida sobre determinado objeto deveria relacionar-
se, necessariamente e tão-só, à sua massa (m) e à sua aceleração (a).

Todavia, a construção subjetivista do risco não passaria imune a críticas. Com


o passar dos anos, percebeu-se que as relações naturais nem sempre seguiam uma
lógica causal e estável. Em especial, a moderna teoria da física quântica contribui
para colocar em crise a tradicional a concepção de perigo acima mencionada39.
Não figurava mais como razoável admitir a possibilidade de conhecimento
absoluto dos nexos causais, simplesmente, porque não havia aquela tão propagada
regularidade dos eventos naturais conforme afirmavam os positivistas. Logo, o
perigo deixava o campo subjetivo passando a ostentar uma realidade objetiva40;
apresentando-se, portanto, com conteúdo real, externo ao ser humano, e, por isso
mesmo, deveria ter seu critério de mensurabilidade e quantificação alterado. É a
probabilidade fática da ocorrência de lesão ou dano que se quer evitar. O tópico
central do discurso do risco é a existência de algo que não ocorreu ainda, mas
poderá acontecer. É a previsão sem a certeza da ocorrência41. Com a concepção
objetiva de perigo passa-se a afirmar o que segue42:

A definição objetiva de perigo como uma situação de fato permite


caracterizar o risco como a qualidade de uma situação que antecede o
perigo. O risco refere-se à tomada de consciência do perigo futuro e às
opções que o ser humano faz ou tem diante dele. É uma forma de
representação do porvir e uma modalidade de produzir vínculos com este
mesmo futuro. Enquanto perigo é destino, o risco relaciona-se com
medição, planejamento e estratégia. O risco será sempre uma qualidade do
agir humano diante de diversas opções colocadas.

As trocas ou o intercâmbio comercial e a transferência do risco não formam


um aspecto meramente casual da economia capitalista. De fato, o capitalismo é
39
V. KNOBEL, Marcelo. Abuso quântico e pseudociência. Jornal Folha de São Paulo. Publicado em 2 de
Dezembro de 2012.
40
Cfe. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato... p. 31.
41
A maior parte dos seguros é baseada em cálculos que levam em conta elementos como idade e sexo. Por
exemplo, seguros automotivos costumam ser realizados de forma mais onerosa para homens até 30 (trinta) anos.
O motivo é simples: estatisticamente, esse gênero é o mais envolvido em acidentes. No caso de seguros
industriais, o preço cobrado para resguardar-se parque fabril no Japão é maior que o valor de uma planta
industrial idêntica na França ou Alemanha, eis que o arquipélago nipônico costuma ser freqüente alvo de
inconsistências naturais. As situações de risco fabricado nem sempre seguem essa lógica atuarial. Em muitos
casos nem percebemos ao certo as reais chances de acontecimento.
42
Idem, Ibidem.... p. 32.
25

impraticável sem ele (o risco). Como assevera Giddens, a sociedade de risco


compreenderia um período em que as consequências da modernidade tornam-se
mais universalizadas e radicalizadas, tendo como ponto de partida um modelo de
produção que determina um novo papel ao risco 43.
O risco torna-se figura crucial para a organização coletiva passando a compor
o núcleo da atividade da atividade social. Surge, então, a sociedade de risco. Ulrich
Beck sintetiza a mudança de paradigma envolvendo conflitos de interesses na pré-
modernidade, modernidade e segunda modernidade na seguinte fórumula: “like
religion wars in premodernity or the conflict of interest between capital and labour in
the first modernity, that is, class conflicts, the clash of risk cultures is the fundamental
conflict of second modernity44”.
Conforme Beck, as ciências sociais modernas falham ao tentar averiguar
objetivamente o risco, uma vez que esses são sobrepostos tal qual um castelo de
cartas onde a retirada de uma pode fazer as outras desabarem. Há de se considerar
não apenas as questões probabilísticas objetivas, mas também buscar a adoção de
uma posição axiológica ou valorativa. E mais, na atualidade, deve o homem
entender seu papel de incapacidade ante à compreensão de todos os riscos em que
se insere. O que cabe é tentar conjugar critérios objetivos e subjetivos na tentativa
de se alcançar uma razoável chance de antever acidentes 45. Basta ver, segundo
Beck, o exemplo da segurança na utilização de reatores nucleares e a inicial crença
na infabilidade das previsões humanas. A intitulada certeza científica não bastou
para prever os riscos de acidentes nucleares 46. O ser humano deve entender que
poderá tentar calcular e controlar os riscos, mas a falibilidade é ínsita ao próprio
sistema.

1.3 Os riscos na Era Pós-industrial47

Em verdad, el siglo XX no ha sido pobre em catástrofes históricas: dos


guerras mundiales, Auschwitz, Nagasaki, luego Harrisburg y Bhopal, ahora

43
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. p. 13.
44
BECK, Ulrich. Living in the world risk society... p. 357.
45
Idem. La Sociedade del riesgo...p. 36.
46
Idem. The Anthropological Schock: Chernobyl and the Countours of Risk Society. Berkeley Journal of
Sociology. Vol.32. 1987. p. 153.
47
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo... pp. 14-15. Cabe destacar que são expressões sinôminas, consoante
Beck, Pós-industrialismo, Pós-modernidade, Sociedade Industrial Moderna ou Segunda Modernidade. Adota-se,
no presente tópico, o termo pós-industrialismo por mera referência em página já citada nesta nota de rodapé em
virtude de Beck tratar o “modesto prefijo ‘post’ la palavra clave de nuestro tiempo”.
26

Chernobil. (...) Hasta ahora, todo el sufrimento, toda la miséria, toda la


violencia que unos seres humanos que unos seres humanos causaban a
otros se resumía a la categoria de los otros (...). Ha llegado el final de los
otros, el final de todas nuestras posibilidades de distanciamiento, tan
sofisticadas; un final que se há vuelto con la contaminación atómica. Se
puede dejar fuera la miséria, pero no los peligros de la era atômica. Ahí
reside la novedosa fuerza cultural y política de esta era. Su poder es el
poder del peligro que suprime todas las zonas protegidas y todas las
diferenciaciones de la modernidad48.

A sociedade de riscos pode ser definida como o modelo em que a produção


social da riqueza vem acompanhada, indistintamente, por uma idêntica produção de
riscos49. Na medida em que são alcançados níveis de forças produtivas e
tecnológicas cada vez maiores, acaba por florescer uma série riscos até então
desconhecidos. O surgimento de elementos desconhecidos acarreta uma nova
categoria de conflitos sociais, dessa vez caracterizada pela partilha dos riscos.
Assim, os conflitos sobre a distribuição dos bens tipicamente presentes no período
inicial do capitalismo moderno tende, segundo Beck, a ser suplantado pelo problema
da repartição de riscos em escala global. Cumpre destacar que isso não significa
necessariamente que a luta entre classes (capitalistas versus proletários) e toda a
distribuição desigual de renda e oportunidades desapareceu. Ao contrário, esse
embate continua a representar a essência do modelo capitalista de produção. O que
é proposto pela teoria da sociedade de risco é um olhar para o mundo em que a
dominação a desigualdade persistem, mas, desta vez, aliadas a um componente
denominado exposição ao risco como, por exemplo, o desastre do Tsunami em 2004
em que os mais pobres compuseram a maior parte das vítimas ou, então, o vírus
HIV no continente africano e a elevada porcentagem de contaminação em boa parte
dos países daquele continente dezenas de vezes superior àquela encontrada em
países da Europa ocidental50. Sobre o tema, vale destacar trecho de entrevista
concedida por Ulrich Beck ao sociólogo brasileiro Arthur Bueno no ano de 2010:

Há um grande mal-entendido. Não nego, evidentemente, a importância cada


vez maior do poder, da dominação e das crescentes desigualdades sociais
numa sociedade mundial de risco. Pelo contrário, meu olhar está realmente
voltado para o modo pelo qual a desigualdade social equivale a uma
desigualdade de exposição ao risco. Por exemplo, as imagens na televisão

48
Idem, Ibidem... p. 13.
49
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Econômico como Direito Penal do Perigo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 33.
50
Segundo a Organização das Nações Unidas, a região mais afetada pelo vírus é a África Sub-saariana que
concentra aproximadamente 80% das mortes derivadas da AIDS no mundo. Fonte:
www.unicef.org/prescriber/port_p16.pdf. Acesso em 11/03/2013.
27

do desastre do Tsunami em 2004 trouxeram a primeira lei da desigualade


mundial de risco – segundo a qual o risco de catástrofes assola os pobres –
para dentro de todas as casas. Há fortes indícios de que a mudança
climática afetará especialmente as regiões pobres do mundo, onde os
problemas de grande crescimento populacional, pobreza, poluição da água
e do ar, desigualdades entre classes e gêneros, epidemias de AIDS e
governos autoritários, corruptos, se sobrepõem. Contudo, para mim o ponto
crucial é que classe é um conceito demasiadamente fraco e antiquado para
dar conta da nova radicalidade e complexidade das desigualdades sociais
numa sociedade mundial de risco51.

Como ensinou Giddens, a sociedade de risco compreende um período em


que as consequências da modernidade tornam-se mais agudas e influem de forma
inédita a dinâmica social. O novo modelo de produção determina um novo papel ao
risco. E neste ponto merece destaque uma categoria de risco elaborada pelo
sociólogo britânico: o risco fabricado. Esta categoria proposta por Giddens é de
suma importância, eis que a maior parte dos riscos atualmente aptos a influenciar
globalmente a vida social tem origem em criações da própria sociedade, isto é, os
riscos com origem nas próprias relações e nos modos de produção da sociedade
pós-industrial.
O risco fabricado surge em oposição ao risco externo tradicionalmente
elaborado no início do desenvolvimento capitalista. Este é o risco proveniente de
fora, ou seja, de fenômenos naturais que não sofrem variação com o
desenvolvimento tecnológico (o que é de difícil ocorrência hoje em dia já que o
sistema de produção global consegue poluir boa parte do globo terrestre),
fenômenos virais adormecidos (também de difícil ocorrência, uma vez que há
mutação genética constante e influenciada por fatores exógenos, por exemplo, a
mutação do vírus H1N1) ou comportamentos humanos considerados primitivos, por
exemplo, um homicídio provocado por ciúmes. Já o risco fabricado é aquele criado
pelo impacto do homem no mundo em razão de seu conhecimento crescente. Na
atualidade, em maior ou menor grau, os riscos sociais sofrem influência das ações
do homem. Difícil, portanto, encontrar um risco externo puro. Talvez um exemplo de
risco externo puro seja a erupção vulcânica em área desabitada.
Um importante exemplo de risco fabricado é o risco ambiental. Este não se
confunde com a simples ocorrência de fenômenos naturais como furações, ondas,
etc, mas tem seus efeitos potencializados pelo comportamento humano. Os riscos

51
BUENO, Arthur. Diálogo com Ulrich Beck. In BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra
modernidade. 2ª Ed. Tradução de Sebastião do Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. pp. 361 e ss.
28

ambientais fabricados são aqueles em que o meio-ambiente sofre profunda


degradação e como contrapartida oferece à sociedade pós-industrial respostas
indesejáveis (exemplos: chuva ácida ou derretimento acentuado das calotas
polares). A seguir breve passagem da obra de Giddens na qual tenta o sociólogo
britânico definir riscos fabricados52:

Em toda a cultura tradicional, poderíamos dizer, e na sociedade industrial


até o início da presente época, os seres humanos que se inquietaram com
os riscos provenientes da natureza externa – de más colheitas, enchente,
pragas e fome. A certa altura, porém, muito recentemente em termos
históricos, passamos a nos inquietar menos com o que a natureza pode
fazer conosco, e mais com o que nós fazemos com a natureza. Isso
assinala a transição do predomínio do risco externo para o do risco
fabricado.
(...)
Nossa sociedade vive após o fim da natureza. O fim da natureza não
significa, obviamente, que o mundo físico ou os processos físicos deixam de
existir. Significa que poucos aspectos do ambiente material que nos cercam
deixaram de ser afetados de certo modo pela intervenção humana. Grande
parte do que costumava ser natural não é mais completamente natural,
embora nem sempre possamos saber ao certo onde termina uma coisa e
começa outra. Em 1998 houve grandes cheias na china, em que muitas
pessoas perderam a vida. A inundação dos grandes rios foi parte recorrente
da história chinesa. Tiveram essas cheias recentes em particular
basicamente o mesmo caráter, ou foram influenciadas pela mudança global
do clima? Ninguém sabe, mas elas apresentaram algumas características
inusitadas que sugerem que suas causas não foram inteiramente naturais.

Vale destacar que o risco fabricado não se refere apenas a fenômenos


naturais. Pode penetrar perfeitamente em outras áreas da vida como o casamento 53
e a família, que na atualidade passam por complexas mudanças nos países

52
V. GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole... pp. 36-37.
53
Numa entrevista a Jonathan Rutherford em 03 de fevereiro de 1999, Ulrich Beck fala de instituições zumbis,
isto é, aquelas instituições sociais que ainda permanecem formalmente vivas, mas que materialmente já se
apresentam descaracterizadas e descabidas. Ele menciona a família como exemplo do novo fenômeno. Para
Beck, a paternidade, a maternidade e o núcleo familiar estão sendo dissolvidos pela segunda modernidade.Em
complemento à idéia de Beck, Baumann aduz que aquilo que está acontecendo nos dias atuais é uma
redistribuição e realocação dos ‘poderes do derretimento’ da modernidade. Primeiro tais novos padrões sociais
afetaram instituições existentes, as molduras que circunscreviam o domínio das ações-escolha possíveis, como os
estamentos hereditários com sua alocação por atribuição, sem chance de apelação. São esses padrões, códigos,
regras e instituições a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação
e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta. Hoje os padrões e
configurações não são mais dados e menos ainda auto-evidentes; eles são muitos, chocam-se entre si e
contradizendo-se em seus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa
parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir. E eles mudaram de natureza e foram
reclassificados de acordo: como itens no inventário de tarefas individuais. Em vez de proceder a política-vida e
emoldurar seu curso futuro, para serem formados e reformulados por suas reflexões. O peso e a trama dos
padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos. BAUMANN,
Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 64 e ss.
29

industrializados54. Basta ver dados estatísticos acerca do número de filhos por


casamento e, também, o índice de divórcios na atualidade. Distanciam-se muito dos
índices apontados, por exemplo, trinta anos atrás55. Há algumas gerações, quando
os nubentes contraíam núpcias, uma instituição tradicional era estabelecida, seja
pela tradição seja pelo costume e que caberia dissolução, em geral, somente pela
morte.
Hodiernamente, os modos tradicionais que serviam de base às práticas do
casamento ora estão sendo dissolvidos ora são implantados de formas diferentes
das tradicionais56. A necessidade de colocação da mulher no mercado de trabalho é
considerada um fator de influencia dessa nova configuração familiar e, também, um
novo exemplo de risco fabricado.
Essa situação de contingência, segundo Luhmann, na convivência cotidiana
dos ajustamentos sociais conduzirá inegavelmente a conflitos. A estrutura de
expectativas ocupa socialmente na atualidade um papel ainda mais importante que
aquele baseado de ocorrência em um eventual ambiente de contradição. Conduzir-

54
Sobre o tema, merecem transcrições as palavras de Maria Berenice Dias quando faz detalhada análise do
casamento e de sua evolução no direito pátrio no decorrer do tempo, esclarecendo que o alargamento conceitual
das relações sociais acabou por deitar reflexos na constituição da família, impondo-a um novo conceito “até o
advento da República, a única forma de casamento era o religioso. Assim, os não católicos não tinham acesso ao
matrimônio. O casamento civil só surgiu em 1891. O conceito de família, identificado com o casamento
indissolúvel, mereceu consagração em todas as Constituições Federais do Brasil. Quando da edição do Código
Civil de 1916, era de tal ordem a sacralização da família, que havia um único modo de constituir-se: pelo
casamento. Somente era reconhecida a família ungida pelos sagrados laços do matrimônio. Não havia outra
modalidade de convício aceitável. O casamento era indissolúvel. A resistência do Estado em admitir
relacionamentos outros era de tal ordem, que a única possibilidade de romper com o casamento era o desquite,
que não dissolvia o vínculo matrimonial e, com isso, impedia outro casamento. Mas a nova realidade se impôs,
acabando por produzir profunda revolução na própria estrutura social. Tornou-se tão saliente o novo perfil de
sociedade, que a Constituição de 1988 alargou o conceito de família para além do casamento. Passou a
considerar como entidade familiar relacionamentos outros. Foi assegura especial proteção tanto aos vínculos
monoparentais – formados por um dos pais com seus filhos – como à união estável – relação de um homem e
uma mulher não sacralizada pelo matrimônio (artigo 226, §3º, da Constituição da República Federativa do
Brasil. Com isso, deixou de ser o casamento o único marco a identificar a existência da família. DIAS, Maria
Berenice. Manual de Direito de Família. 7ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. pp 143-144.
55
Fazendo dados de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, na década de 90, 21,2% em cada 100 casamentos
terminava em divórcio. Já na primeira década do corrente século a porcental passou a 31,7 em cada cem
matrimônios. Fonte: <www.cps.fgv.br/ibre/cps>. Acesso em 08 de maio de 2013.
56
Na atualidade, a jurisprudência brasileira encontra-se em ebulição ao admitir o casamento civil entre pessoas
do mesmo sexo. É o que verificamos da análise do Recurso Especial (REsp)1.183.378/RS julgado em outubro de
2011 pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A 4ª Turma do STJ, por maioria, proveu recurso de
duas mulheres moradoras do Rio Grande do Sul que pediam para ser habilitadas ao casamento civil. Seguindo o
voto do relator, Ministro Luís Felipe Salomão, a turma concluiu que a dignidade da pessoa humana, consagrada
pela CF/88, não é aumentada nem diminuída em razão do uso da sexualidade, e que a orientação sexual não pode
servir de pretexto para excluir famílias da proteção jurídica representada pelo casamento. O mesmo raciocínio
utilizado por essa Corte Superior e, também, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para conceder aos pares
homoafetivos os direitos decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a via do casamento
civil, mesmo porque é a própria Constituição que determina a facilitação da conversão da união estável em
casamento civil.
30

se-á, assim, esse novo modelo social a mudanças entre comportamentos amistosos
ou inamistosos à medida que se espere que o outro veja a ação praticada de acordo
com aquelas características de amizade ou inimizade. O preço desta observação
empírica específica, ou seja, tomar o comportamento do outro (do estranho) como
fonte para o comportamento próprio encontra como final a potencialização do risco,
isto é, a elevação da contingência do simples campo de percepção individual para o
nível da dupla contingência do mundo social. Reconhecer e absorver as
expectativas do outro apenas será possível quando se reconhecer o antagonista
como si mesmo. Na modernidade, dever-se-ia, segundo Luhmann, conceder ao
outro a possibilidade de emitir opiniões mesmo que essas sejam desagradáveis ao
interesse daquele que o autorizou ou, por que não, permitir a liberdade de variar seu
comportamento independentemente de autorizações.
Para o outro ser (o estranho, segundo Luhmann), isto é, aquele que interage
como o sujeito inicial do discurso o mundo moderno também figura como complexo
e repleto de contingências. O outro poderá enganar aquele de quem ganhou o voto
de confiança. O preço dessa absorção de perspectivas estranhas é uma possível
desconfiança tão presente nas relações sociais hodiernas57. Pergunta-se: a
sociedade moderna encontra-se realmente apta a lidar com atitudes diferentes
daquela apresentada pela maioria ou se o ambiente gerado de extrema
desconfiança conduziria a um menosprezo das relações sociais 58? Essa pergunta
feita Luhmann parece ser cada vez mais difícil de resposta à medida que se tornam
ainda mais complexos os sistemas sociais vigentes. Confiar ou desconfiar nas
expectativas sociais também é uma forma de risco fabricado.
Sobre as contribuições de Luhmann, Fernando Rister de Sousa Lima 59
sustenta:

57
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. 1 v.. Tradução Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileito, 1983. p. 47.
58
STRYDOM, Piet. Risk, Environment and Society: Ongoing Debates, Current Issues, Future Prospects.
Philadelphia: Open University Press, 2002. p. 59. “Luhmann bases his argument on the slogan that what cannot
be controlled is not real. Because modern society consists of functionally differentiated systems that can cope
with self-generated risks, only in the terms of their own specific systemics logics – the economy in terms of price,
politics in terms of majorities, law in terms of guilty, science in terms of truth, etc – modern society nor only
cannot cope with environmental and other global risks: these problems do not even exists. Those who give them
expression, such as social movements and counter-experts, are the real source of danger because the noise that
they generate disturbs the smooth functioning of the systems.”
59
LIMA, Fernando Rister de Sousa. Sociologia do Direito. O Direito e o Processo à Luz da Teoria dos Sistemas
de Niklas Luhmann. Curitiba: Juruá, 2005. p. 22.
31

A complexidade é a totalidade de eventos possíveis. O mundo tornou-se


imprevisível, dele podendo surgir diversas situações. Essa complexidade
não é planejada – para não dizer controlável – as relações sociais somente
conseguem ganhar certeza depois de ocorrerem. O futuro é imprevisível(...).
A história mostrou que pensar em valores universais, em previsão do futuro
(sejam nas políticas públicas internas ou externas das nações), controle da
humanidade e nas revoluções em nome do bem comum são formas de
promover a barbárie. A certeza que se tem quando se fala em Economia,
em Direito, no amor e, por que não, em qualquer fenômeno social?, em
qualquer fenômeno social, é a incerteza de porvir. Complexidade e
contingências são palavras de grande valor epistemológico na teoria
luhminiana: a primeira refere-se à realidade das ações; dito de outras
formas, diversidade de alternativas. Não se pode prevê-las e nem controlá-
las; enquanto, na segunda, o futuro é apenas previsão, e não se pode
esperar o seu acontecimento.

1.4 Os riscos e o fenômeno da individualização

A gestão de riscos sociais ganhou importante instrumento teórico a partir o


desenvolvimento das teorias da probabilidade e a apresentação de modelos
matemáticos que passaram a oferecer instrumentos científicos hábeis à mensuração
dos riscos e para a definição das estratégias para atuação do indivíduo em um
cenário capitalista. O gerenciamento atividades arriscadas ganhou cada vez mais
espaço com o surgimento/desenvolvimento de tecnologias avançadas. A potência
dos perigos, a extensão de seus efeitos e a dificuldade científica em reconhecer os
cursos causais atribuem papel de extrema relevância ao tema de gerenciamento de
riscos na atualidade.
A primeira atitude do gerenciador de riscos deve ser a avaliação que envolve
a atividade objeto de análise. É o chamado estudo do impacto das atividades de
risco.
Nas palavras de Beck60, o cálculo do risco necessita de um elemento
acidental. O conceito de acidente, inclusive, como grandeza estatística, é um
acontecimento possível de ser delimitado temporal, espacial e socialmente. Gerir
pressupõe, segundo Beck, conhecer possíveis acidentes. A elaboração de
estratégias de conduta exige a opção entre alternativas viáveis para atingir a
finalidade almejada pelo gestor dos riscos, que normalmente é aquela relacionada a
mitigar os prejuízos ou efeitos indesejáveis da ocorrência do fato que se deseja
remediar. A atividade decisória é precedida de uma análise de possíveis ações e
conseqüências. Em suma, a análise do risco é a observação e a sistematização de

60
BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo... p. 118.
32

dados referentes a uma atividade com o escopo de medir ou calcular seus efeitos
sobre o entorno.

Para essa atividade, o gerente utiliza a observação empírica, auxiliada por


instrumentos de generalização oferecidos pela estatística, como
amostragens, médias, padrões, distribuições, etc. O objetivo é unívoco:
estabelecer padrões de previsibilidade sobre os quais o agente tomará suas
decisões61.

A segunda etapa no processo de gestão de riscos é a determinação do risco


permitido, que consiste na opção entre permitir, desautorizar ou incentivar atitudes
consideradas arriscadas. Trata-se de ação que visa a confrontar custos e benefícios
de uma atividade diante de suas possíveis conseqüências, estabelecendo os níveis
de risco aceitáveis social e economicamente. É decidir entre um caminho ou outro.
Segundo Paulo de Bessa Antunes, um aspecto fundamental da atuação do gestor
de riscos é escolher quais riscos ou danos pretende-se prevenir e quais serão
aceitos62 e, muitas vezes, tal escolha é feita com base no risco percebido e não no
risco real, jamais se podendo esquecer que as batalhas comerciais entre diferentes
interesses podem influir na aceitação de certos riscos.
Assim se pronuncia Paulo de Bessa Antunes63:

Se feita racionalmente a escolha, escolheremos o risco menor em


preferência ao maior. Contudo, nem sempre as escolhas são feitas
racionalmente, pois a percepção do risco nem sempre guarda relação com
o risco real e, muitas vezes, a escolha é feita com base na percepção e não
no risco real. Pensemos no seguinte exemplo: o risco de se morrer afogado
ao se tomar banho em uma banheira é inúmeras vezes maior do que o risco
de um acidente nuclear, que é de 10-14. Segundo o Harvard Center for Risk
Analisys, um tenor de banheiro corre o risco de 1 em 840.000 chances de
morrer afogado. Muito maior que o risco nuclear. Por outro lado, ser atingido
por um raio implica risco de 1 para 3 milhões, segundo a mesma fonte.

Rafaelle de Giorgi define risco permitido (ou aceitável) como o patamar


segurança suportável e necessário à coesão social. Assim, num cenário aceitável de
riscos, os desvios do padrão não seriam, portanto, tão significativos a ponto de
encorajar a restrição de comportamentos64. Nessa segunda etapa, o gerenciamento

61
Cfe. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato... p.55
62
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 31.
63
Idem , Ibidem. p.36
64
DE GIORGI, Raffaele. O risco na sociedade contemporânea. Tradução Cristiano Paixão, Daniela Nicola,
Samantha Droboxski. Revista Sequencia. 28 v.. Florianópolis: Editora Universidade Federal de Santa Catarina,
1994. p. 49.
33

de riscos intenta definir os limites do risco permitido e, por fim, equacionar os


eventuais interesses discrepantes na consideração de condutas arriscadas ou não.
Nas palavras de Bottini, a situação ideal perseguida pelo gerente de riscos será
alcançada quando o gestor puder equilibrar o nível de periculosidade do
empreendimento e o patamar aceitável em relação às necessidades a ele
atreladas65.
Se um ente responsável pela gestão dos riscos conhece o fato e o considera
como seriamente relevante, deverá determinar que um agente seu anuncie-o à
coletividade. Deve o fato arriscado ser amplamente divulgado, pois é preciso que a
informação seja entregue às pessoas ou entes possivelmente afetados para que
considerem ou não que o risco é real e apto a afetá-las direta ou indiretamente. No
entanto, uma divulgação imprecisa pode causar pânico ou estardalhaço. Em
contrapartida, quando realmente é feita uma divulgação excessiva e os riscos
acabam se revelando mínimos, os envolvidos (emissores) são acusados de
alarmismo e o descrédito da função gestora acentua-se.
Suponha-se, agora, que os responsáveis estatais avaliem de início que o
risco envolvido não é real, mas de pequena monta, como fez o governo britânico no
caso da Encefalopatia Espingoforme Bovina66. Em situações como essa, caso os
acontecimentos tomem rumos distintos inclusive com a potencialização dos riscos,
as autoridades passam a ser acusadas de acobertamento ou desídia67.
Essa situação paradoxal denominada de alarmismo-realidade torna-se rotina
na sociedade contemporânea. Ressalte-se que não há uma maneira fácil para lidar
com a divulgação dos riscos. Na maior parte dos riscos fabricados, até mesmo a
existência do risco é posta em dúvida ou, então, é de tão difícil prognose que não se
pode afirmar se o comportamento do agente estatal divulgador enquadra-se na
normalidade ou no excesso.

65
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. op. cit.,... p. 57.
66
Comumente conhecida como o Mal da Vaca Louca. É uma doença neurodegenerativa que afeta o gado
doméstico bovino. A doença surgiu no final da década de 80 na Grã-Bretanha e tem como principal efeito
transmissível ao homem é a alteração do sistema nervoso central.
67
As situações são mais complexas que aquelas apresentadas por estes exemplos. Paradoxalmente, o alarmismo,
segundo Giddens, pode ser necessário para reduzir os riscos enfrentados, contudo quando surte efeitos a
impressão que se tem é que houve exatamente isto, alarmismo. O Caso do vírus HIV é um exemplo. Governos e
especialistas fizeram uma grande divulgação pública com os riscos associados ao sexo não seguro, para que
fosse possível levar as pessoas a um comportamento sexual diferente, estável. Em parte em conseqüência disso
nos países desenvolvidos a doença não se disseminou tanto quanto fora prevista. A reação diante disso foi
questionar o setor público acerca do porquê do alarmismo. GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole... p. 40.
34

Para Ulrich Beck, o cidadão contemporâneo não possui mais condições de


distinguir o perigoso do inofensivo, eis que muitos dos riscos atuais são
imperceptíveis. Ele assevera que “os nossos sentidos nos enganam. No sixth
sense68!”

Os nossos sentidos nos enganam. No sixth sense! Eu creio que essa


experiência de cegueira cultural em face dos perigos imperceptíveis, apenas
divulgados pela mídia e interpretados contraditoriamente pelos
especialistas, constituiu o núcleo do choque. Não é tanto o perigo físico, e
sim a interdição civil: o cidadão já não tem mais condições de distinguir o
perigoso do inofensivo. E todos ficam como marionetes dos especialistas e
das instituições que se contradiziam, que declaravam que estava tudo sob
controle enquanto era o contrário que ocorria permanentemente.

Cumpre destacar que o conceito de risco aceitável não passa incólume a


críticas. Por ser um conceito dinâmico e ligado à complexidade sócio-estatal
moderna, estabelecer um patamar mínimo à aceitação de riscos não é tarefa fácil.
Cita-se, por exemplo, a discussão envolvendo a utilização da substância mineral
asbesto ou amianto dentro das escolas de Nova York. Segundo Paulo de Bessa
Antunes, citando Cass R. Sunstein69, a substituição das telhas foi solicitada pela
associação de pais de alunos sob o argumento de serem altamente cancerígenas,
tudo isso influenciado por reportagens jornalísticas à época que denunciavam casos
de câncer em trabalhadores de fábricas de telhas70. Ocorre que segundo pesquisas
a chance de contrair câncer por meio do contato com o amianto em telhas é da
ordem de 1 para 9 milhões, ou seja, três vezes mais remota que a chance de uma
pessoa ser atingida por um raio. Tão inconsistente pode ser a percepção do risco
que nesse caso, quando a prefeitura confirmou a troca, mas, para isso, deveria
deixar os alunos em casa por algumas semanas os pais passaram a cogitar que
considerar como risco a presença de telhas de amianto não seria tão significativo.

But when it emerged that the removal would cause schools to be closed for
a period of weeks, and when the closing caused parents to become greatly
inconvenienced, parental attitudes turned right around, and asbestos
removal seemed like a really bad idea. As the costs of the removal came on

68
BECK. Ulrich. Liberdade ou Capitalismo... pp. 118-119.
69
SUNSTEIN, Cass. Laws of fear – Beyond the Precautionary Principle. Cambridge: Cambridge University
Press, 2005. p. 48 apud ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental... p. 33.
70
No Brasil, a proibição de comercialização de telhas de amianto é tema polêmico. Há em andamento no
Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 3937 do ano de 2008 questionando
uma lei do Estado de São Paulo (12.684/07) com deferimento de medida cautelar para suspender até a decisão
final a vigência da lei paulista.
35

screen, parents thought much more like experts, and the risks of asbestos
71
seemed tolerable. Ststistically small, and on balance worth incurring .

O conceito do que vem a ser o grau de segurança ideal para a prática de uma
atividade e de quais são os patamares aceitos pela sociedade envolvem decisões
complexas e que passam, em geral, pelo crivo estatal, exatamente para que seja
menos variável e insegura jurídica e socialmente a consideração de um determinado
risco. Apenas o Estado possuiria condições suficientes a determinar quais riscos
seriam aceitáveis, evidentemente, desde que sejam ouvidos os interessados
conforme a importância manifesta dos riscos sociais e respeitados, por óbvio, os
princípios caros aos Estados Democráticos de Direito.
No momento pós-industrialista de desenvolvimento da sociedade e do risco,
Ulrich Beck define que a dialética do cálculo dos riscos é própria ao surgimento dos
Estados Nacionais. Um verdadeiro instrumento necessário à criação da ordem
interna estatal a fim de aglutinar pessoas. E tal importância estatal é mantida à
medida que continua o Estado na posição de agente intermediador das diversas
situações de conflitos envolvendo as mais variadas reivindicações. É o Estado,
segundo Beck, o responsável final por fixar parâmetros jurídicos acerca de quem
será atendido e como serão solucionadas tais demandas envolvendo riscos, o que,
em última análise, define-se como uma decisão política72.
O conceito dinâmico do qual vem a ser o grau de segurança ideal de um
sistema para a prática de uma atividade e, principalmente, de quais serão os
patamares aceitáveis para o risco diante da necessidade de se suprir lacunas
econômicas submeterá o gestor de risco a uma intensa atividade de equilíbrio de
interesses conflitantes. Caberá ao gestor a decisão sobre quais são os termos dos
riscos aceitáveis e os limites dos riscos permitidos. Esta decisão acabará refletindo
uma decisão política no sentido de abrigar interesses de um grupo em detrimento de
outros. Como instrumento de coerção e preservação social encontra-se o Direito. O
que a doutrina sociológica e a doutrina jurídica atuais fazem é tentar estabelecer
parâmetros para os riscos toleráveis à luz dos interesses sociais.

1.5 Riscos e novos movimentos sociais

71
SUNSTEIN, Cass. Laws of fear... p. 48.
72
BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo… p. 33.
36

A lógica da repartição dos riscos da modernização ocupa papel essencial na


atual configuração social. E mais, para Beck, o risco influencia a insegurança social
ou, como prefere denominar73, a sensação de ameaça global, biográfica e cultural
que a modernidade avançada gera na estrutura social hodierna. A soma dos riscos
ou inseguridades atrelada à neutralização recíproca ou incremento dos riscos
constitui elementos centrais na dinâmica social do risco segundo o sociólogo
alemão.

Podemos formular así la conjectura teórica que siguen ambas perspectivas:


en el umbral del siglo XXI, El proceso de modernización desencadenado no
solo há sobrepasado la suposición de uma natureza contrapuesta a la
sociedad, sino también ha desmoronado el sistema intrasocial de
coordenadas proprios de la sociedad industrial: su compreensión de la
ciencia y de la técnica, los ejes entre los que se extiende la vida de las
personas: la familia y el trabajo, el reparto y la separación de la política
legitimada democraticamente y de la subpolítica (en la economia, la técnica
y la ciência).

Para Beck, são os homens individualmenete considerados microtecidos


formadores de um tecido ou corpo social inserto na modernidade e que se despe a
cada momento das formas sociais típicas da sociedade industrial do começo do
século XX. Esse despir-se das qualidades passadas é fenômeno comum na história
social tendo ocorrido, também, segundo Beck, citando Weber, durante a Reforma
Protestante e apresentou como conseqüência a redução da dominação exclusiva e
secular da Igreja Católica e, ainda, gerou a ascensão de uma nova classe ao poder,
a burguesia74. O que difere o movimento social atual do passado é viver do homem
segundo riscos difusos e que não conseguem ser eficazmente previstos. Para Beck,

73
Idem.. La sociedad del riesgo... p. 95.
74
Para a moral católica à época da Reforma, conforme doutrina de Max Weber, a riqueza configurava grave
perigo eis que suas tentações seriam contínuas. Também extremamente perigosa era a ambição que perante o
Reino de Deus era sentimento impuro. Efetivamente condenáveis também eram o descanso sobre a posse, o gozo
da riqueza com sua conseqüência do ócio e o prazer carnal, mas isso significava antes de tudo um abandono do
ideal de vida santa. E, segundo Weber, só porque traz consigo esses perigos de rebaixamento moral é que ter
posses era reprovável pelo Catolicismo. O ócio era perda de tempo diante de Deus. A perda de tempo era o mais
grave de todos os pecados. Cada hora perdida era uma hora a menos na folha de ponto destinada a Deus.
Clareadora é a passagem da clássica obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo: O “descanso eterno
dos santos” está no Outro Mundo; na terra o ser humano tem mais é que buscar a certeza do seu estado de graça,
“levando a efeito enquanto for de dia, as obras daquele que o enviou”. Ócio e prazer, não; só serve a ação, o agir
conforme a vontade de Deus inequivocadamente revelada a fim de aumentar sua glória. A perda de tempo é,
assim, o primeiro e em princípio o mais grave de todos os pecados. Nosso tempo de vida é infinitamente curto e
precioso para “consolidar” a própria vocação. Perder tempo com sociabilidade, como “conversa mole”, com
luxo, mesmo com o sono necessário além da saúde é absolutamente condenável em termos morais. Ainda não se
diz aí, como em Franklin, que “tempo é dinheiro”, mas a máxima vale em certa medida em sentido espiritual: o
tempo é infinitamente valioso porque cada hora perdida é um trabalho subtraído a serviço da glória de Deus.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012. pp. 149-150.
37

a sociedade moderna e seus fundamentos foram abalados pela antecipação de


catástrofes globais (mudança climática, crise financeira, terrorismo) ocasionadas em
imensa maioria pelo avanço tecnológico da pós-modernidade. A profusão de
catástrofes globais acaba por alterar as percepções dos riscos e incertezas
globalmente fabricados caracterizar-se-iam por três aspectos: a deslocalziação ou
difusão geográfica, a incalculabilidade e, por fim, não compreensibildidade 75.
Na pós-modernidade, vive-se dialeticamente entre dois cenários: de um
patamar de vida com qualidade elevada dotado de sistema de seguridade social
eficaz76 passou-se, então, a um modelo que privilegia um destino laboral baseado na
autonomia de realização dos afazeres e, por conseqüência, na assunção dos riscos
por parte dos trabalhadores. Significa uma nova dinâmica para os trabalhadores
assalariados e também para aqueles que detenham o controle da produção77.
Fenômenos como subempregos, desqualificação profissional e o desemprego
massivo marcam a era social moderna. Cumpre destacar que a obra referência de
Beck acerca da Sociedade de Riscos fora lançada em 1986. As críticas feitas há
mais de vinte e cinco anos parecem retomar papel de destaque no cenário social
europeu moderno.
Quanto à análise do fenômeno da desigualdade social, Ulrich Beck aduz que
emerge na sociedade de riscos um fato instigante: tanto para o olhar daquele
investigador que segue bases da teoria marxista quanto para outro de postura
weberniana em nada mudou a atual configuração social. Esta dicotomia aparente
entre teorias e que na prática conduzem a um mesmo olhar é fenômeno peculiar das
ciências sociais modernas. As distâncias entre classes e as formas de ingresso
permanecem inalteradas. Por isso, Beck elabora sua teoria não sobre classes
sociais, mas sim sobre o controle dos riscos. Para Beck, classe é um conceito

75
BUENO, Arthur. Diálogo com Ulrich Beck... p. 368.
76
Cabe destacar que esse modelo sobre o qual foi problematizada a sociedade de risco na obra de Beck é a
modelo social da Alemanha Ocidental. É sabido que a realidade dos países periféricos ainda é distante da
satisfação das necessidades materiais mais básicas de seus cidadãos.
77
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo... p. 102: “hasta ahora, el processo de individualización ha sido
reclamado sobre todo para La burguesia en despliegue. Pero em outra forma también és característico del
trabajados asalariado livre del capitalismo moderno, de La dinámica de los procesos de lo mercado laboral bajo
las condiciones de las democracias de masas em los Estados del bienestar. Para los seres humanos, el ingreso em
el mercado de trabajo va unido siempre a liberaciones respecto de lazos familiares, vecinales y profesionales, así
como respecto de lazos con uma cultura y um paisaje regionales. Estos impulsos a La individualización compiten
con experiências del destino colectivo en el mercado de trabajo (desimpleo masivo, descualificación, etc). Pero
bajo las condiciones generales del Estado social (como las que se han desarrollado em República Federal de
Alemania) conducen a la puesta em libertad del individuo respecto los lazos sociales de clase y de las situaciones
sexuales de hombres y mujeres”.
38

antiquado e insuficiente para dar conta dessa nova realidade social complexa 78.
Desaparecem os entornos sociais marcados pela divisão estamental ou formas de
vidas próprias de uma classe social. Isso não significa que não mais existe
desigualdade social, mas sim que o modelo social vigente não pode mais ser
compreendido de forma linear como era feito por Marx e Weber. A crise do conceito
de classes sociais ocorreu, segundo Beck, principalmente pelos fenômenos da
individuação79 institucionalizada presente na atualidade. Prossegue o filósofo
alemão80:

Surgen formas y situaciones de existencia de tendência individualizada, las


cuales obligan a las personas (en nombre de la propria supervivencia
material) a hacer de sí mismas el centro de sus proprios planos de vida y de
su proprio estilo de vida. En este sentido, la individualización tiende a eliminar
las bases que tiene en el mundo de la vida um pensamiento que emplea
categorias tradicionales de grupos grandes (clases sociales, estamentos o
capas).

Em lugar dos estamentos sociais delineados por Weber aparece o indivíduo


isoladamente considerado. Cabe destacar que não apenas o antigo conceito de
classe sociail sofreu desintegração, mas também uma grande instituição social já
não é mais a mesma: a família. O indivíduo se converteu, portanto, em unidade que
reproduz os acontecimentos sociais no mundo da vida de forma autônoma 81. Dito de
outra forma: os indivíduos (da sociedade de risco) transformam-se em autores de
sua própria existência visando ao mercado. Isso não significa que deixem de sofrer
influências, ao menos implícitas, de instâncias de orientação política ou do que
restou do conceito de família, mas sim que o modelo social não é mais mesmo.
Sobre o tema vale destacar trecho de La sociedad del riesgo: hacia uma nueva
modernidad:

78
BUENO, Arthur. Diálogo com Ulrich Beck... p. 366.
79
Por individualismo ou individualização do ser humano, Ulrich Beck não entende, como a maioria, ser um
fenômeno típico do egoísmo neoliberal. A palavra de ordem na sociedade atual é individualização. Isso não
significa emancipação ou liberdade. Respeita o sociólogo as visões diferentes de individualização já que
sociologicamente cada um é apto a compreender a individualização a partir de uma infinidade de noções
próprias. A noção de individualização para Beck é a mesma que individualismo institucionalizado.
Individualismo institucionalizado não se trata de uma forma de concepção do indivíduo isolado; trata-se, isso
sim, de instituições centrais na sociedade moderna como a necessidade de desenvolver uma biografia própria, de
se desapegar das determinações coletivas. Individualização significa, pois, que se entra numa dinâmica
institucional endereçada unicamente ao indivíduo e não ao grupo. Isso, por sua vez, traz como algumas
conseqüências distanciar as pessoas de diretrizes tradicionais acerca de seus papéis sociais. Na atualidade, muito
mais problemas que eram destinados ao institucional são enviados ao indivíduo.
80
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo... p. 96.
81
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo. p. 98.
39

Más bién, la individualización va acompañada de tendencias a la


institucionalización y estandarización de las situaciones de la vida. Los
individuos puestos em liberdad se vuelven dependientes del mercado
laboral y, portanto, dependientes de la educación, dependientes del
consumo, dependientes de las regulaciones y abastecimientos sociales, de
los planos del trafico, de las ofertas del consumo, de las posibilidades y
modas en asesoriamiento médico, psicológico y pedagógico. Todo esto
remite a la particular estructura del control de las situaciones individuales
dependientes de instituiciones, que también se vuelven receptivas a
configuraciones y orientaciones políticas (implícitas).

Em conseqüência, preleciona Beck que a individualização82 passa a ser


compreendidada como um contraditório processo de socialização moderna. É
possível socialização individualizante perguntam os incomodados. Para Beck,
apesar da dificuldade em se estudar a coletivização a partir de um parâmetro de
formação de modelos individualistas, precisamente, é possível que exista a partir do
individualismo uma situação de novas comunidades socioculturais. É viável que a
partir do convívio dos indivíduos com os riscos da modernização, com recentes e
diferentes situações de perigo, passem a adotar iniciativas típicas de movimentos
sociais. Podem ser formadas, por exemplos, comunidades que busquem contestar
os padrões sociais vigentes e também criticar o próprio modelo de vida do
indivíduo83. Neste sentido Beck traz exemplos de movimentos populares típicos
desse novo momento social pós-industrial. Seriam estes os movimentos em favor do
meio-ambiente, da paz e dos direitos das mulheres. Representam formas de
expressão social a partir de problemas relativamente recentes e localizados aptos a
incomodar indivíduos que se sentem à vontade para formação de grupos que
convivam e discutam tendo como base os mesmos problemas. Feitos são a partir de
um processo de formação de uma identidade tendo como base um ambiente
destradicionalizado e individualizado. São chamados por Ulrich Beck de novos
movimentos sociais. São tais movimentos sinais fortes da modernização reflexiva. É
um novo conceito que Beck começa a delinear chamado de criação de um mundo
comum84.

82
Individualismo institucionalizado ou individuação não significa o modo pelo qual uma pessoa se torna única
ou de uma atomização. É um comceito estrutural que tem relação com o Estado de Bem-Estar (Europeu). A
maior parte dos direitos sociais europeus pós-Segunda Guerra foi concebida como direitos civis, políticos e
sociais voltados primordialmente ao indivíduo, e não para classes.
83
BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo... pp. 114 e ss.
84
BUENO, Arthur. Diálogo com Ulrich Beck... p. 364.
40

1.6 Da sociedade de classes à sociedade de risco. Marx, Weber, Luhmann e


Beck.

Vale lembrar o ponto nodal da teoria social marxista: o conflito de classes a


envolver os capitalistas burgueses e os proletários. Neste ponto reside toda a
dialética do capitalismo.
Tatiana Rotondaro sintetiza a teoria social de matriz marxista 85:

Dentro de uma teoria marxista, estamos acostumados a ouvir que a história


da humanidade poderia ser contada como a história dos sucessivos modos
de produção, e que a passagem de um modo de produção para outro
ocorreria no momento em que as forças produtivas atingissem o auge de
seu desenvolvimento econômico, de tal forma que entrariam em contradição
com as relações de produção, provocando a superação do próprio sistema,
uma superação de estruturas e estratificações responsáveis pela
manutenção do próprio modo de produção. Ainda com base nessa
interpretação, qualquer mudança ocorrida na infraestrutura, na base
material da sociedade, se transformaria em consequentes transformações
na superestrutura – nas instituições sociais que existiam como forma de
manutenção e legitimação das relações de produção fundamentais.

Fábio Ulhoa Coelho analisa que a Revolução Marxista poria fim à anarquia do
mercado característica do capitalisma e, também, propiciaria a planificação central
da economia. Desse modo, o homem acabaria submetendo a organização social
finalmente ao pdoer de racionalidade científica 86.
A diferença entre o projeto de reorganização social no marxismo e o de outros
socialistas reside na consistência científica reivindicada pelo primeiro. Engeles
considerada utópicos os socialistas anteriores, pois teriam formulado propostas de
sociedade igualitárias ignorando as reais forças que atuavam na sociedade. Engels
entende que o projeto marxista é em realidade o primeiro a dedicar-se à metodologia
e à dinâmica da história. Assim, a palavra de ordem do Manifesto do Partido
Comunista exorta a união dos operários de todo o mundo para a defesa de seus
interesses e, também, sob o viés científico-sociológico, buscar a afirmação científica
do objeto de proposição a fim de se obter o meio concreto para racionalizar as
relações sociais.
O fracasso da experiência planificadora econômica, nos países soviéticos, em
9 de novembro de 1989 acabou por revelar algo de falho no projeto marxista, apesar

85
ROTONDARO, Tatiana. Diálogos entre Bruno Latour e Ulrich Beck. Revista Civitas. 12 v. Porto Alegre:
Editora Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), 2012. p. 146.
86
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume I. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. pp. 17-19.
41

de se admitir que durante aproximadamente 80 anos foi a única forma capaz de


rivalizar com o modelo capitalista. Não se está nesta dissertação pretendendo-se
discutir as razões do colapso do marxismo ou do estado soviético e suas repúblicas
satélites, mas sim sinalizar a importância de Marx no desenvolvimento do trabalho
de Beck e, também, sua influência em boa parte dos filósofoso contemporâneos
como Habermas que na década de 60 do século passado já esboçava seu
entendimento sobre os conceitos de racionalização relacionada ao trabalho e a
racionalização das ações comunicativas interiores aos marcos institucionais.
No que concerne ao individualismo em Marx, Ulrich Beck define que o
individualismo burguês dos séculos XVIII e XIX repousava essencialmente na posse
do capital. Além disso, o desenvolvimento de Marx sobre a teoria da identidade
social e política tinha como paradigmas as lutas contra as ordens jurídica e política
vigentes à época ligadas, ainda, à exploração dos mais pobres pelos mais ricos com
práticas de exploração muitas vezes remanescentes do período feudal87.
Muitos, nas palavras de Beck, ainda insistem em considerar a
comercialização da força de trabalho como o momento em que se determina a
oposição das classes no capitalismo e nascimento do individualismo social moderno.
Essa parece ser a visão predominante daqueles que estudam as obras de Marx.
Contudo, na atualidade, em especial em período posterior a Segunda Guerra
Mundial, na Alemanha Ocidental, principalmente, um novo conceito nasce: o
neoindividualismo, influenciado majoritariamente pelas novas relações de trabalho e,
também, por todo o aparato do Estado Social vigente88:

As a consequence everyday life in world risk society is characterized by a


new variant of individualization. The individual must cope with the
uncertainty of the global world by him – or herself. Here individualization is a
default outcome of a failure of expert systems to manage risks. Neither
science, nor the politics in power, nor the mass media, nor business, nor the
law or even the military are in the position to define the control of risks
rationally. The individual is forced to mistrust the promises of rationality of
these key institutions. As a consequence, people are thrown back onto
themselves, they are alienated from expert systems but have nothing else
instead.

A partir das conquistas sociais e políticas obtidas no pós-guerra, Ulrich Beck


defende que perdeu a sociedade alemã seus nexos de identificação como classe.

87
BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo... p. 108.
88
BECK, Ulrich.Living in the world risk society... p. 336.
42

Surgia, então, o verdadeiro sentimento individualista pós-moderno. Tal fato viria a


influenciar o desapego da coletividade à idéia de movimentos sociais tradicionais
baseados em classes sociais89. Importante se faz a transcrição de passagem que
segundo Beck traduz o desapego aos movimentos sociais contemporaneamente:

La diferencia reside también aqui em lo nuevo que surge com el desarrollo


de la República Federal: las “compensaciones” del trabajo asalariado por el
Estado social. Lo mismo tuvo el efecto contrario em las condiciones del siglo
XIX y en las de la segunda mitad del siglo XX. Al contrario de lo que sucedia
em el siglo XIX, hoy los seres humanos ya no son reunidos em grupos
grandes (en “classes” que actúan social y politicamente) bajo la presión de
la miséria y de la vivencia de la enajenación en el trabajo em los barrios
proletarios pobres de las ciudades crecientes. Al revés, sobre el transfondo
de los derechos sociales y políticos obtenidos son despreendidos de los
nexos de clase del mundo de la vida y se ven remitidos cada vez más a si
mismos para obtener su sustento. Regulada por el Estado de bienestar, la
extensión del trabajo asalariado se convierte en una individualización de las
clases sociales. Esto desarrollo no fue um regalo de los bondosos
samaritanos capitalistas a la clase obrera que ellos habían lanzado a la
miseria. Há sido obtenido en uma lucha, y por tanto es expresión de um
fuerte movimento obrero que mediante sus exitos há cambiado sus proprias
condiciones.

Fenômeno similar àquele exposto por Beck foi também estudado duas
décadas antes no Brasil pelo cientista político e constitucionalista cearense Paulo
Bonavides. Em sua obra “Do Estado Liberal ao Estado Social”, o professor da
Universidade Federal do Ceará afirma existir um grave perigo a que fica submetido o
Estado Social e seus cidadãos quando da ocorrência do fenômeno da “politização
da função social pelo Estado como meio de agravar a dependência do indivíduo”.
Como resultado, poderá ganhar força a individualização das classes sociais90. O
Estado Social, por sua própria natureza, seria um estado intervencionista, que
requer sempre a presença militante do poder político nas esferas sociais, o que por
conseqüência faria crescer a dependência do indivíduo.
A circunstância de se encontrar o homem contemporâneo, desde o berço,
acolhido numa rede de interesses sociais complexos e com sua autonomia material
bastante diminuída concorre para que ele em meio a novas atribuições sinta-se
impotente e passe a invocar a proteção estatal como única esperança de salvação
diante de cenários problemáticos. Na sua própria individualidade fica o homem
perdido sem que conseguir interagir e fazer parte do tecido social, restando,

89
Idem, Ibidem.
90
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 9ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2009. pp. 191-
195.
43

simplesmente, um papel de espera da providência estatal. Deste modo, segundo


Bonavides, citando Ernst Forsthoff, o homem angustiado e neurótico da pós-
modernidade não possuiria reservas materiais e mentais para lidar com a crise da
pós-modernidade. Aquele que no início ocupava um largo espaço existencial é, em
dias presentes, segundo Bonavides, um resignatário de toda a esfera material
subjetiva na ordem política que muitas vezes serve a incapacitá-lo de assumir uma
atitude de firmeza. Ao contrário, passa a adotar uma filosofia cada vez mais
isolacionista. A vontade social nesse cenário tende a cair à medida que a
participação efetiva do povo por via de seus representantes também é reduzida.
Denunciara Forsthoff, por exemplo, que na segunda metade da década de 1950 do
século passado havia uma crescente despolitização do eleitorado nos Estados
sociais modernos91. O fundamento era o mesmo: o conformismo individualista
distanciando-os de pautas gerais e coletivas.
Ulrich Beck, por seu turno, argumenta estar cada vez mais distante a luta de
classes nesse cenário de segunda modernidade, pois o indivíduo não se enxerga
mais como um integrante de classes92. Para Beck, o capitalismo em seu estado
eveolutivo atual foi o responsável por reduzir a importância da tensão entre
burguesia e proletariado uma vez que transformou, nas últimas décadas do século
passado, as relações existentes entre bens, capital e propriedade. À época dos
estudos para o desenvolvimento de sua obra, Beck diagnosticou que a Alemanha
Ocidental passara por uma onda alarmante de desemprego. Um número inédito de
pessoas sem ocupação formal econômica ficava por um intervalo de tempo cada vez
mais prolongado sem conseguir desempenhar uma nova atividade. Eram chamados
de desocupados ou desempregados por longa duração.
Ao mesmo tempo, além do desemprego massivo comprovado (12,5 milhões
haviam pelo menos ficado uma vez desempregadas entre 1974 e 1983 – fato inédito
na história daquele país) cresciam os subempregos, geralmente destinados a jovens
que não conseguiam vagas formais no mercado de trabalho, a mulheres e, também,
a imigrantes. Beck chamou tal estado de subemprego de zonas cinzas de
desqualificados.
Ao estudar o desemprego temporário e o desemprego fixo compreendeu o
filósofo alemão que os motivos geradores do fenômeno da falta de vagas de

91
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social... pp. 200-201.
92
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo... pp. 101 e ss
44

trabalho não se relacionavam com o desemprego próprio e tradicional das décadas


iniciais do século XX, a que tantas vezes fez referência a doutrina marxista. Não se
tratava nas décadas de 70 e 80 de problema de venda de mão-de-obra, formação de
exército de reserva de trabalhadores, aumento da mais-valia do capitalista, etc. A
acentuação das desigualdades sociais e o individualismo extremo entrelaçavam-se
nas décadas de crise no final do século como molas propulsoras desse novo
desemprego em massa.
Os problemas do sistema capitalista vigente nas décadas estudadas por Beck
passaram a não ser depurados na tentativa de melhorias. Convertia-se a crise do
sistema em uma crise pessoal. Era o ideal “faça-se por si mesmo” aplicado à
situação contingencial de desemprego. Em suma: se o indivíduo está
desempregado, se ganha pouco, se trabalha muito e não consegue o suficiente para
manter a família, o problema é exclusivamente dele. Deve o cidadão trabalhar mais,
consiguir outro emprego, tirar menos folgas e etc. Sobre o tema, Vera Herweg
Westphal sustenta93:

A tendência da situação “sem classes” das desigualdades sociais evidencia-


se de maneira exemplar na distribuição do desemprego em massa, na
medida em que de um lado estão os desempregados de longa duração ou
os que nunca foram inseridos no mercado de trabalho formal, e de outro
lado, a constância do número de desempregados não implica nos casos
registrados das pessoas atingidas (entre 1973 e 1983 cada terceira pessoa
assalariada já havia estado uma ou mais vezes desempregada). Ao mesmo
tempo, crescem desempregados não registrados oficialmente (no caso de
donas de casa, jovens, aposentadoria antecipada), bem como de ocupados
e subocupados (aqueles com jornada de trabalho e de formas de ocupação
flexíveis). Com isso, desigualdade social é agravada e individualizada,
surgindo uma “nova imediaticidade entre indivíduo e sociedade”. As crises
sociais aparecem como fracasso pessoal.

Nesse ponto, parece o capitalismo das décadas de 70 e 80 do século


passado bem próximo aos ideais da Reforma Protestante que visava ao verdadeiro
ethos do capitalismo. Não são ingnoradas as palavras de Ferdinand Krugger: “do
gado se faz o sebo, das pessoas o dinheiro94”. Acima de tudo, esse é o summum
bonum dessa ética capitalista: ganhar, cada vez mais, dinheiro. Na verdade,
contingências e problemas próprios da época corrente deram novo tom ao

93
WESTPHAL, Vera Herwig. A individualização em Ulrich Beck: análise da sociedade contemporânea. Revista
Emancipação. 10 v. Ponto Grossa: Editora Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná (UEPG/PR), 2010.
p. 422.
94
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo... p. 45.
45

capitalismo. Mas agora outro elemento atrela-se à sociedade: o risco e sua


distribuição.
Na modernidade avançada, a produção social de riqueza vem acompanhada
sistematicamente de uma produção social de riscos95. A sociedade pós-moderna
apresentaria, assim, um modelo social calcado na incerteza, na qual o conceito de
risco apresenta-se, ao mesmo tempo, como um elemento existente e, também,
como elemento a vincular os acontecimentos futuros.
Os problemas e os conflitos sociais de distribuição da riqueza pela sociedade
traduzem-se na sociedade de risco não mais pelos problemas e conflitos que
surgem apenas dessa problemática distributiva, mas sim em razão da produção,
definição e compartilhamento dos riscos produzidos de maneira técnico-científica.
Vale a pena transcrever passagem de O Manifesto do Partido Comunista
(Marx e Engels, 1848)96 acerca da luta de classes como ponto central da história da
sociedade até aquele momento:

A história de toda a sociedade até aqui é a história da luta de classes.


(Homem) livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo (Leibeigener),
burgueses e corporações (Zunftbürher) e oficial, em suma, opressores e
oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma
luta ininterrupta, ora oculta, ora aberta, uma luta que de cada vez acabou
por um reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio
comum das classes em luta.
Nas anteriores épocas da história encontramos quase por toda a parte uma
articulação completa da sociedade em diversos estados [ou ordens sociais
— Stände], uma múltipla gradação das posições sociais. Na Roma antiga
temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média: senhores
feudais, vassalos, burgueses de corporação, oficiais, servos, e ainda por
cima, quase em cada uma destas classes, de novo gradações particulares.
A moderna sociedade burguesa, saída do declínio da sociedade feudal, não
aboliu as oposições de classes. Apenas pôs novas classes, novas
condições de opressão, novas configurações de luta, no lugar das antigas.
A nossa época, a época da burguesia, distingue-se, contudo, por ter
simplificado as oposições de classes. A sociedade toda cinde-se, cada vez
mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes que
directamente se enfrentam: burguesia e proletariado.

Agora que já foram estabelecidas diferenças entre a sociedade de repartição


de riscos aludida por Beck e a sociedade baseada em luta de classes outras
características que deixam o debate mais interessante e indagador se, realmente, é
possível afirmar tal alteração de paradigma, isto é, de uma sociedade baseada no
conflito entre classes para a uma sociedade preocupada com repartição dos riscos.

95
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo... p. 25.
96
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista, [S.I:s.n],1848. Disponível em
<www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em 19/08/2012 às 21:35h.
46

O comunismo, ao propor a abolição da propriedade privada, colocou em


dúvida o último obstáculo que impedia uma sociedade igualitária e liberta das
vicissitudes do trabalho. A luta pela igualdade transformou-se, assim, no movimento
internacional de recriação do homem a fim de que ele pudesse explorar os
meandros de sua criação, suas potências e, principalmente, sua racionalidade. Ao
libertar-se das desigualdades de classes e da fadiga do trabalho, daria por
encerrada sua fase pré-histórica e estaria pronto o homem a conquistar sua
liberdade.
A Revolução Bolchevique de 1917 instalou uma possibilidade de substituição
de um Estado nacional por um Estado marxista baseado na extinção da propriedade
privada dos meios de produção97, na vedação da exploração do capital pelo
trabalho98 e na substituição da alocação de recursos feitos pelo mercado por um
planejamento racionalizado e centralizado feito pelo ente estatal. Marx acreditava
que o proletariado, a classe mais oprimida e, por isso, com muito pouco a perder
com a Revolução, haveria de contestar todas as outras classes existentes,
principalmente, a burguesa sendo, portanto, capaz a classe menos favorecida de por
fim a todo o ciclo de determinação exterior formulada pelo capital99. Alguns anos
após a elaboração do Manifesto do Partido Comunista, Marx por meio da

97
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Feuerbach – A contraposição entre as Cosmovisões
Materialista e Idealista. Tradução Frank Müller, 2005. p 48: “o desenvolvimento da propriedade privada
propiciou o surgimento pela primeira vez das mesmas relações que encontramos no escravismo, só que em
escala mais ampla, na propriedade privada moderna; de um lado, a concentração na propriedade privada, que
começou desde os primórdios de Roma, como se pode comprovar na lei agrária de Licinius, e avançou muito
rápido a partir das guerras civis e, principalmente sob os imperadores; de outro lado, em correlação com esses
fatores, a transformação dos pequenos camponeses plebeus em proletariado, cuja situação intermediária entre os
cidadãos possuidores e os escravos não permitiu nenhum desenvolvimento autônomo”.
98
Idem, Ibidem. p. 112: “a transformação – em razão da divisão do trabalho -, de forças (relações) pessoais em
forças materiais -, não pode ser superada arrancando-se da mente essa representação geral, mas apenas se os
indivíduos submeterem novamente essas forças materiais a si mesmos e abolirem a divisão do trabalho. Só na
comunidade com os outros é que cada indivíduo encontra os mecanismos para desenvolver suas faculdades em
todos os aspectos; é apenas na coletividade, portanto, que a liberdade pessoal torna-se possível. Nos sucedâneos
da coletividade existentes até o momento, no Estado, etc. , a liberdade pessoal tem existido somente para
indivíduos que se desenvolvem nas relações da classe dominante e somente quando pertencentes a uma classe.”
99
Sobre o marxismo, Anthony Giddens é preciso em suas lições introdutórias ao tema: “o marxismo foi uma
criação da Europa do século XX, desenvolvido a partir de uma crítica da economia política. Ao formular essa
crítica, Marx absorveu alguns traços das formas de pensamento social que ele se propunha a combater:
especialmente a concepção de que o Estado moderno (capitalista) estava prioritariamente preocupado em
garantir direitos da propriedade privada, tendo como pano de fundo o crescimento das relações econômicas
mercantis nacionais e internacionais. Faltavam aos textos marxistas clássicos não apenas uma teoria de Estado
mais elaborada mas também uma concepção satisfatória de poder em um sentido mais abrangente. Marx
ofereceu uma análise do poder de classe ou de dominação de classe, mas a ênfase com na “classe” como origem
do poder. Tanto o Estado quanto o poder político poderiam ser superados com o desaparecimento das classes na
antecipação da sociedade socialista do futuro.” GIDDENS, Anthony. Política, Sociologia e Teoria Social.
Encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. Tradução Sibeli Rizek. São Paulo: Editora
Unesp, 1998. p. 75.
47

experiência obtida diante da análise da Comuna de Paris100 sustenta que o


movimento da classe proletária necessitaria para se manter, após a obtenção do
sucesso, de uma ditadura proletariada baseada na democracia101

Os proletários da capital - dizia o Comitê Central no seu manifesto de 18 de


Março - no meio das fraquezas e das traições das classes governantes,
compreenderam que chegara para eles a hora de salvar a situação
assumindo a direcção dos assuntos públicos... O proletariado...
compreendeu que era seu dever imperioso e seu direito absoluto tomar
nas suas mãos o seu próprio destino e assegurar o triunfo apoderando-
se do poder.
(...)
Mas a classe operária não se pode contentar com tomar o aparelho de
Estado tal como ele é e de o pôr a funcionar por sua própria conta.
O poder centralizado do Estado, com os seus órgãos presentes por toda a
parte: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura,
órgãos moldados segundo um plano de divisão sistemática e hierárquica do
trabalho, data da época da monarquia absoluta, em que servia à
sociedade burguesa nascente de arma poderosa nas suas lutas contra o
feudalismo.
A Comuna realizou a palavra de ordem de todas as revoluções burguesas,
um governo barato, abolindo essas duas grandes fontes de despesas que
são o exército permanente e o funcionalismo de Estado.""A supremacia
política do produtor não pode coexistir com a eternização da sua
escravatura social. A Comuna devia pois servir de alavanca para
derrubar as bases económicas em que se fundamenta a
existência das classes e, por conseguinte, a dominação de classe. Uma vez
emancipado o trabalho, todo o homem se torna um trabalhador e o trabalho
produtivo deixa de ser o atributo de uma classe. A Comuna tinha
perfeitamente razão ao dizer aos camponeses: A nossa vitória é
a vossa única esperança.

Em crítica à teoria marxista social, Niklas Luhmann argumenta que um dos


pontos mais problemáticos daquela forma de pensar os movimentos sociais é dar
sobrevalor à economia em detrimento dos demais fatores sociais que também
regem a organização das pessoas.

100
A Comuna de Paris foi o primeiro governo operário registrado na história do Ocidente fundado em 1871 na
Capital Francesa por ocasião da desídia e abandono da população da capital francesa por parte dos governantes
interessados mais em resguardar a classe burguesa, em virtude da invasão da capital francesa pelas tropas
prussianas. A Comuna era composta por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos diversos
bairros da cidade, sendo que boa parte de seus membros era composta por operários ou representantes
reconhecidos da classe operária. A Comuna deveria ser não um organismo parlamentar, mas um corpo ativo
para a resolução dos problemas locais, ao mesmo tempo poder executivo e poder legislativo. Em vez de
continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada dos seus atributos
políticos e transformada num instrumento da Comuna. Os membros da força policial poderiam ser expulsos a
qualquer momento pelo governo central. O mesmo se deu com os outros funcionários de todos os ramos da
administração. Desde os mais altos membros da Comuna até ao fundo da escala, a função pública deveria ser
exercida de forma remunerada sem jamais ultrapassar o valor pago a um operário. A Comuna de Paris durou 62
(sessenta e dois) dias (de 26 de março de 1871 a 28 de maio do mesmo ano).
101
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre a Comuna. Compilação de textos. 1871. Disponível em The
Marxist Internet Archive. Acesso em 19/08/2012, às 23:15h.
48

Para Luhmann, ao adortar-se a posição de que toda a sociedade seria


entendida a partir de uma forma de conflito de classes e interesses dominantes
calcados nas relações econômicas, o pensamento de Marx mostrar-se-ia simplista e
incompleto, pois não se mostrava adequado a realizar uma compreensão suficiente
da dinâmica própria da economia com suas repercussões em outros âmbitos
funcionais e coletivos. Aqui reside a principal crítica de Luhmann ao Manifesto do
Partido Comunista: Marx e Engels deixaram de considerar as concepções
ecológicas acerca do desenvolvimento social 102. Ao analisar o sistema sob esse
paradigma exclusivamente econômico, o cientista social comete um erro uma vez
que passa a desconsiderar uma variedade grande de combinações que interferem
na sociedade.
Também em crítica às idéias comunistas, Ulrich Beck afirma que as posições
de Karl Marx são, na atualidade, opostas à análise do desenvolvimento social a
partir do paradigma da individualização103. Marx subsumiria os processos de
individualização aos processos de formação de classes por intermédio da
pauperização e da alienação do trabalhador. Para Beck, o processo capitalista tal
como Marx o descreveu geraria não apenas a fragmentação social (em classes),
mas também uma forma de resposta da classe operária a partir de sua organização
em sindicatos, por exemplo, com um forte sentimento de solidariedade social. Ocorre
que na atualidade, segundo Beck, outros fatores além das condições econômicas
contribuem para o individualismo como, por exemplo, condições jurídicas, sociais e
de ecológicas104.

Tomemos el ejemplo del derecho laboral. Naturalmente, con la autonomia


salarial aqui se estableció palpablemente la lucha de clases “domesticadas”
como programa colectivo de actuación. El indivíduo puede compreender
esta actuación propia de los grandes grupos y medirla directamente en los
cambios de peso de su monedero. De este modo, a la individualización aún
la están puestos limites evidentes. Al mismo tiempo, con la realización
jurídica de los intereses de los trabajadores han surgido ahora diversos
derechos individuales (en la proteción ante el despido, en el seguro de
desempleo, en la formación, etc.) que el indivíduo tiene que reclamar
recurriendo a la oficina de empleo o, si fuera necesario, a los tribunales. La
juridificación há traslado al movimiento obrero de la calle a los despachos
donde se lleva a cabo, como esperar, sentarse, volver a esperar, volver a
sentarse, rellenar um formulario, rellenar outro y como conversación de
asesoramiento con el funcionario competente, que transforma el antíguo
“destino de clase” en las categorias jurídicas individualizadas del “caso
particular”.

102
LUHMANN, Niklas. Observaciones de la modernidad... p. 26.
103
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo... p. 109.
104
Idem, Ibidem. p. 32.
49

Outro importante sociólogo a quem Ulrich Beck faz comentários é Max Weber
com seus trabalhos que explicam o “capitalismo tardio alemão” e são estudos
fundamentais para a compreensão do avanço rápido do capitalismo naquele país e,
principalmente, como as relações sociais sofreram porifundas alterações. Vale
destacar que a Alemanha apresentou-se à industrialização em posição de atraso
quando comparada, por exemplo, à Inglaterra ou aos Países Baixos. Questões
políticas internas são vistas como o principal elemento retardador do
105
desenvolvimento industrial .
A transição alemã para o capitalismo industrial ocorre apenas no final do
século XIX e, com maior destaque, no início do século XX. Àquele tempo, a maior
potência europeia - a Inglaterra - encontrava-se industrializada há pelo menos meio
século. A transição alemã para o industrialismo capitalista foi marcada pela ausência
da presença histórica de uma autêntica revolução burguesa. Ocorrera,
principalmente, a industrialização alemã por conta da articulação social visando a
um processo para centralização política assegurado pelo militarismo prussiano106.
O interesse de Weber pela introdução do capitalismo na Alemanha chega
como resposta lógica às suas inquietudes relacionadas às características dos
problemas específicos daquela sociedade nas primeiras fases da industrialização.
Disserta Weber, ainda, sobre a problemática da distribuição de terras, da produção
agrícola ainda defasada e, também, do contraste entre a sociedade rural do leste e a
urbana do oeste alemão. A estrutura agrária baseada ainda em modelos feudais do
leste, que formavam a base econômica da Prússia, teria necessariamente de dar
lugar ao capitalismo industrial. Isso não seria nem um pouco fácil, eis que a
produção no leste alemão era feita em propriedades rurais chamadas junkers.
O modelo tradicional da economia alemã era o agrícola tomando como
sustentáculo a exploração do campesinato por meio das relações políticas de mando
e subordinação típicas do feudalismo. No entender de Weber, a industrialização
alemã somente estaria apta ao pleno desenvolvimento quando estivessem
superados os junkers, uma vez que tal modelo exploratório agrícola ainda mantinha

105
A sociologia econômica de Weber é baseada em grande parte em seus trabalhos da mocidade, que abordavam
assuntos diversos, mas sem jamais deixar de lado o capitalismo. Fazia referência a questões agrárias, relações
comerciais, situações dos trabalhadores alemães na agricultura oriental e, também, os recentes fenômenos das
bolsas de valores. Weber sempre se absteve de considerar o capitalismo sob um ângulo único, tipicamente
presente nas concepções marxistas ou materialistas da época. Via àquela época o capitalismo como uma forma
de economia que continuaria ainda por gerações a orientar o mundo.
106
GIDDENS, Anthony Política, Sociologia e Teoria Social... p. 41.
50

a lógica aristocrática e impossível de compatibilização com a necessária idéia de


propriedade de terras e sua comercialização, tal qual ocorrera na Inglaterra séculos
antes com os grandes cercamentos.
Ainda sobre o junker, este nada mais era que um patriarcado rural inspirado
em relações medievais, conforme exposto acima. Com o desgaste de tal modelo de
produção em virtude da expansão do parque fabril que demandava uma quantidade
imensa de matéria prima que as propriedades rurais eram incapazes de fornecer
restava, portanto, como única solução a importação de produtos franceses,
holandeses, ingleses e de suas respectivas colônias. Uma maciça emigração de
trabalhadores dos campos alemães do leste em direção às indústrias do oeste
ocorrera nesta época. Neste ponto encontra-se um contraste entre as obras de
Weber, notadamente o Espírito do Capitalismo e a Ética Protestante107, e aquela
elaborada por Marx e Engels (Manifesto do Partido Comunista)108. Weber rejeitava a
concepção puramente marxista que defendia a posição segundo a qual os
trabalhadores rurais deslocavam-se apenas por questões econômicas (em busca de
emprego, por exemplo). A força central seria a noção generalizada de liberdade
conquistada a partir do rompimento das correntes do trabalho servil e que se
enontrava representada pelas grandes cidades alemãs. Desse debate entre Weber,
Marx e Engels Ulrich Beck aproveita-se, principalmente, para demonstrar o quão rica
era a estrutura social alemã e que não poderia ser simplesmente reduzida a um
deslocamente em razão do interesse econômico.
A partir da década de 1950 conceitos tradicionais que envolviam os
trabalhadores alemães do final do século XIX e do começo do século XX trazidos à
tona por estudos de Weber (por exemplo: tradições sociais e morais baseadas em
padrões estamentais) passam a desabar. A tal fenômeno fez referência Beck na
seguinte passagem: esto vale para el desarrollo hasta los años cincuenta; pero ya
no vale para el desarrollo posterior hasta presente109...

Quedan niveladas las diferenciais entre los trabajadores industriales de la


ciudad y del campo (por ejemplo, la manera industrial-campesina de

107
A ética protestante reúne, combina e projeta, em âmbito geral várias implicações que Weber extrai de sua
interpretação da questão agrária e de seu relacionamento com a política alemã. Idem, Ibidem. p. 74 e ss.
108
Tema-chave em Max Weber é a ênfase da influência do político sobre o econômico. Weber repudiava as
posturas do materialismo histórico posicionando-se de forma contrária à noção segundo a qual os sistemas de
idéias poderiam ser reduzidos em última instância a fatores econômicos. WEBER, Max. A ética protestante e o
espírito do capitalismo... pp. 114 e ss.
109
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo... p.111.
51

economía mixta que aún por entonces estaba muy extendida). En paralelo,
con la reforma educativa crece por doquier la dependencia respecto de la
educación. Grupos cada vez más amplios caen en la resaca de la
aspiración educativa. Al hijo de esta creciente dependência educativa
surgen nuevas diferenciaciones interiores que, aunque acogen líneas de
entornos antíguas, tradicionales, se diferencian esencialmente de éstas por
estar mediadas a través de la educación. De esta manera, quedan
acuñadas nuevas “hierarquias interiores” sociales, las cuales aún no han
sido conocidas correctamente en su significado para la forma y perspectivas
de vida de las personas (ya que estas jerarquias no tocan ni transgriden los
confines que traza la perspectiva de los grupos grandes).

A partir dos comentários de Ulrich Beck tendo com ponto de partida os


ensinamentos de Max Weber acerca formação da sociedade alemã, pode-se inferir
que num intervalo de tempo relativamente curto (de 1930 a 1980) relações sociais
alemãs tradicionais descritas por Weber no começo do século XX como escola,
família e vizinhança sofreram profundas transformações. Desintegraram-se na
década de 1980, segundo Beck, um intervalo de tempo extremamente curto, boa
parte das relações sociais daquele país, o que poderia sinalizar uma das causas da
individualização exarcerbada que culminaria no colapso da teoria das classes
sociais e, ainda, na dificuldade em compreender os riscos sociais hodiernos.
Em síntese, aduz Beck que os modelos sociais expostos por suas duas
grandes referências teóricas (Marx e Weber) do final do século XIX e início do
século XX não serviriam para explicar a realidade no momento vigente na Europa
Ocidental e, especialmente, na Alemanha democrática. Beck não dispensou as
teorias weberianas e marxistas aplicadas à pesquisa sociológica; entretanto,
considera que as relações estudadas na atualidade sofreram profundas alterações
se comparadas com a metade do século XIX ou com a primeira metade do século
XX. Sobre o tema, trecho a seguir110:

Sin embargo, em desarrollo de postguerra se puso em marcha en la


República Federal de Alemania uma dinámica socioestructural que no
puede ser compreendida suficientemente ni en la tradición de la formación
de clases de Marx ni en la tradición de la comunitarización estamental o
mediada por el mercado en clases sociales de Max Weber.

Procede Beck, portanto, à feitura de um estudo detalhado sobre as causas do


colapso envolvendo as relações sociais na Alemanha. De uma sociedade
estamental e baseada em conflito de classes, a sociedade alemã ocidental na

110
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo… p. 114.
52

década de 1980 transformou-se em um modelo social sui generis, isto é, uma


sociedade individualizada e que passa a ter de administrar um novo paradigma vital:
o risco generalizado e suas implicações nas relações vitais entre cidadãos.
Complementa Beck que o grande problema da sociologia atual seria a tentativa de
responder a questões baseadas em problemas equivocados. As questões-guias na
atualidade ficam baseadas em padrões de questões sociológicas de épocas
pretéritas tipicamente marxistas e próprias de um período que já não mais existe.
Questões como estabilidade, reprodução, mobilização e conflito entre classes ainda
devem permanecer sob análise desde que sejam vistas em consonância com
questões modernas como o individualismo institucionalzado e, também, a sensação
de insegurança frente aos novos riscos. Considera Beck, portanto, que caso se
continue a realizar a pesquisa sociológica orientada segundo parâmetros clássicos
mudanças sociais importantes acabarão desconsideradas111. E assim completa o
filósofo alemão formulador da teoria da sociedade de risco:

The mais problem os sociology today is asking the wrong questions. The
guiding questions of social theories are usually orientated to stability and
(re)production of order and not to what we are experiencing and hence must
grasp: an epochoal, discontinuous. Social change in globalized modernity in
the West and in the Rest. A critique of the social sciences, and in particular
of sociology, is therefore a necessary precondition of a social theory for the
twenty-first century. An over-specialized, highly abstracted sociology
infatuated with its methods and techniques, has lost its sense of historical
dimension and fundamental discontinuous change of society. As a result, it
is neither equipped nor inclined to fulfil its proper task of understanding and
situating the current transformation of its research object in the social-
historical frame and thus to offer a diagnostic perspective on the epochal
signature of the new era of Second Modernity112.

As ciências sociais em período posterior à Segunda Grande Guerra


inclinaram-se favoravelmente à direção do fortalecimento e/ou implantação de
políticas públicas sociais tendo como base em uma década e meia de aumento de
taxas de crescimento e em uma política de consenso relativamente estável nas
democracias liberais ocidentais. Com a dissolução do Keynesianismo113, que no

111
BECK, Ulrich. Risk Society Revisited: Theory, Politics and Research Programmes. In: ADAM, Barbara
(org.). The Risk Society and Beyond. Londres: Sage Publicatios, 2005. p. 212.
112
Idem, Ibidem.p. 212.
113
HOBSBAWN, Eric. O Novo Século: entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010. p.
82. Aduz o historiador que nenhuma fórmula econômica poderá ser para sempre válida ou apresentar-se de
maneira universal. As políticas keynesianas funcionaram muito bem nas décadas de 1950 e 1960, em parte
devido às condições políticas, pois os próprios governos se esforçaram para que dessem resultados; mas também
porque havia na época condições especiais. Nesse período, foi possível aumentar os lucros, os salários e os
53

período pós-1945 foi aceito até mesmo em consenso tanto pelos partidos mais
conservadores quanto pelos social-democratas, os partidos políticos conservadores
não apenas subiram ao poder, como também se utilizaram de uma forma de
conservadorismo mais radical. Não era apenas o fato de diversos partidos políticos
conservadores terem alcançado o poder na Europa, mas, sim, o fato de o terem feito
em um clima político de realinhamento e impulsionador a transformações 114.
Pensar a sociedade pós-industrial não é o mesmo que pensar a sociedade
industrial do começo do século passado. Não se nega a existência de um abismo
social entre ricos e pobres. Beck jamais fez qualquer referência a um mundo
igualitário porque sabe dos problemas que envolvem o capitalismo. Para Beck,
desenvolvedor da teoria da sociedade de riscos, os paradigmas que envolvem o
modelo social da luta de classes fazem referência a uma época já passada do
processo de modernização. A distribuição de riquezas e a existência de conflitos
sociais em torno daqueles pontos ficaram para trás, exceto nos países menos
desenvolvidos, onde os modelos sociais encontram-se submetidos a uma pesada
miséria material que impossibilitaria em última instância qualquer chance de luta de
classes. A esse fenômeno típico dos países menos desenvolvidos Ulrich Beck atribui
a denominação de ditadura da escassez115.
O panorama social alemão da década de 1980 continua bem diferente do
brasileiro ou de qualquer outro país subdesenvolvido ou em desenvolvimento.
Apesar dos avanços sociais ocorridos no Brasil na última década ainda estamos
muito distantes da tão almejada a erradicação da pobreza material116.

mecanismos de proteção social sem, ao mesmo tempo, reduzir o crescimento econômico ou produzir uma
inflação descontrolada.
114
Sobre o tema conservadorismo e Europa verificar artigo intitulado 1975 – Thatcher eleita líder dos
conservadores europeus. Revista Carta Capital de 08/04/2013.
115
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo...pp. 40-42.
116
Sobre o tema merece transcrição texto de BRAVA, Silvio Caccia em Le Monde Diplomatique Brasil datado
de 1º de novembro de 2010 acerca da divulgação de recente pesquisa do IBGE sobre a renda do trabalhador
brasileiro: “A ideia de que o Brasil está erradicando a pobreza e se transformando em um país desenvolvido não
é tão bonita quanto parece. Ainda que na última década tenha havido uma melhora em quase todos os
indicadores sociais, a questão é que partimos de um piso muito baixo de políticas públicas. Um piso muito baixo
fruto principalmente de uma política de arrocho muito grande que durante décadas trataram com desprezo o
problema da desigualdade. Os dados do Censo que identificam o rendimento domiciliar per capita, divulgados no
mês de novembro, mostram um cenário de pobreza que não está sendo debatido no espaço público: 25% da
população têm uma renda mensal de até R$ 188. Cinquenta por cento da população têm uma renda mensal que
não ultrapassa R$ 375. Traduzindo numa renda diária, os primeiros têm R$ 6,27, e os segundos, R$ 12,50. E
estamos falando de metade da população brasileira. Essas informações nos levam a perguntar acerca do impacto
efetivo das políticas de combate à pobreza. E nos obrigam a estender nosso olhar para buscar séries históricas,
em que possamos comparar as condições do passado com as atuais. Um dos elementos importantes é o piso
estabelecido pelo salário mínimo. Ainda que de 2002 a 2010 o salário mínimo tenha crescido, em termos reais,
54,25%, o atual salário mínimo de R$ 545 ainda é menor que o de 1985, que a preços de hoje corresponderia a
54

Pode parecer estranho estudar Beck pois este traz à tona debates acerca da
crise de um estado de bem-estar social, enquanto no Brasil ainda se busca a
erradicação do analfabetismo, por exemplo. Quando Beck lança sua obra, no 1986,
a fome era considerada materialmente extinta na Alemanha ocidental. Este é um dos
motivos empiricamente considerados pelo doutrinador quando afirma que aquele
modelo social europeu superou a luta de classes.De fato, a realidade importada da
obra de Beck não pode ser automática e integralmente transportada a realidade
vigente no Brasil, em especial quando formula resposta à individualização moderna
amparada num patamar mínimo de respeito à dignidade humana em que estão
presentes condições mínimas de saúde, educação e moradia, fato que infelizmente
resta distante da realidade nacional. No entanto, são os países mais pobres aqueles
que apresentaram a tendência de maior exposição ao risco nas próximas décadas.
A outros problemas diferentes das necessidades básicas estava exposta a
sociedade alemã à exceção da fome:

En los Estados del bienestar muy desarrollados y ricos de Occidente


suceden dos cosas: por una parte, la lucha por el pan de cada dia pierde
(en comparación con el abastecimiento material hasta la primera mitad del
siglo XX y con el Tercer Mundo, amenazado por el hambre) la urgencia de
un problema cardinal que deja todo en la sombra. En lugar del hambre
aparecen para muchos seres humanos los problemas de la obesidad. Sin
embargo, con ello se sustrae al proceso de modernización la base de la
legitimación que tenía antes: la lucha contra la carencia evidente, por la que
se estaba dispuesto a aceptar algunos efectos secundarios inadvertidos 117.

1.7 A sociedade de risco e a modernidade reflexiva

A segunda modernidade caracteriza-se por seus efeitos reflexos em que se


atinge um nível tamanho de desenvolvimento das forças produtivas que os padrões
clássicos atinentes à sociedade industrial sofreram mudanças profundas.
A organização social entendida por meio de um padrão de vida coletivo,
progresso, controle, pleno emprego e exploração da natureza, que eram
características típicas da primeira modernidade, estão agora, na segunda
modernidade, sendo indeterminados por uma série de processos interligados, tais

R$ 567,35, de acordo com o Dieese. Essa entidade identifica ainda que, para atender aos requisitos da lei do
salário mínimo, este deveria estar em R$ 2.194,76 em janeiro deste ano. Na Argentina, o salário mínimo hoje é
de R$ 765,81. Também cresce a participação da renda dos salários no total da renda nacional. Mas se em 2010
ela foi de 43,6% e melhorou em relação a 2005, quando era de 40,1%, não podemos esquecer que em 1980 ela
era de 50% e, em 1959, de 55,5%”.
117
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo... p. 26.
55

como a globalização, individualização institucionalizada, revolução dos gêneros e,


como não poderia ser diferente, os riscos em escala global 118. O real desafio teórico
e político desta segunda modernidade encontra-se em descobrir uma maneira de a
sociedade lidar com todos esses desafios de forma simultânea119.
Tomando-se como eixo de análise essa relação entre sociedade pós-moderna
e natureza observa-se que a sociedade atual, sobretudo pelo seu avanço
tecnológico e científico, alcançou um nível bastante elevado de desenvolvimento das
forças produtivas, de tal modo que a sua contradição tem, sobretudo, se expressado
na possibilidade de colocar em dúvida a própria manutenção da vida no planeta em
função da ação predatória que o modo de produção capitalista pós-moderno tem
exercido quando da utilização predatória de recursos naturais, isto é, sem considerar
a capacidade de autorreconstrução dos ecossistemas, ignorando muitas vezes o
fato que futuras gerações ainda deverão habitar este planeta.
Em virtude desse novo contexto de mundo, a sociedade industrial foi
modificada sem o planejamento de uma nova etapa normal de modernização. Isso
implicou, segundo Beck, numa radicalização da modernidade que invadiu as
premissas e os contornos da sociedade industrial clássica. As vitórias do capitalismo
e a crise do socialismo acabaram por produzir uma nova forma política mundial.
Se, no fundo, a modernização simples (ou ortodoxa – primeira modernidade)
significou de início a desincorporação e, em segundo lugar, a reincorporação das
formas tradicionais pelas novas formas sociais industriais; então, a modernização
reflexiva passou a significar primeiro a desincorporação e, segundo, a
reincorporação das formas sociais industriais para uma nova modernidade. Este
novo estágio em que o progresso pode se transformar em autodestruição ou
simplesmente na destruição do passado já vivido denomina-se modernização
reflexiva.
Para Scott Lash, o conceito de modernidade reflexiva serve de resposta a
uma inquietante pergunta: qual instrumento teórico servirá a pautar um debate sob o
viés crítico da atual ordem mundial mais que nunca capitalista? Se o marxismo
funcionava especialmente como um contraponto crítico para a sociedade industrial
anterior estruturada em classes e nacionalmente confinada, o que poderia substituir
o marxismo na atualidade em que novos conceitos de nação, classes e identidades

118
Idem, Ibidem. p. 199.
119
Idem. World Risk Society... p. 3.
56

surgem120? Servirá, portanto, como um instrumento de crítica à ordem mundial


capitalista baseada em três pilares: (i) a teoria dos poderes sempre crescentes dos
atores sociais. Segundo Lash, em que pese a existência atual de um certo
retrocesso nas estruturas sociais marcadas pelo individualismo, há novas condições
socialmente estruturas que são aptas a fazer uma sociedade bem informada; (ii) a
dimensão estética da reflexividade. Quer significar o abandono da crítica do
particular pelo geral. Em vez disso, Lash intenta chamar a atenção não para
dimensão cognitiva, mas sim para a dimensão estética da reflexividade. Isso está
situado na tradição – de Boudelaire, passando por Walter Benjamim e chegando até
Adorno – em que a crítica, por sua vez, é da totalidade infeliz da alta modernidade,
dos universais da alta ou pós-modernidade através do particular. Neste ponto o
particular passa a ser compreendido como a estética que envolve não apenas a arte
elevada ou rebuscada, mas sim a cultura popular e arte cotidiana. Por fim, (iii) o
processo de desenvolvimento do “eu” cada vez mais livre dos laços comunitários
ainda não chegou ao fim, isto é, ainda existem laços fortes do indivíduo para a
comunidade, em especial, por meio dos já defendidos por Beck como novos grupos
sociais.
Estranhos à análise da sociedade de risco e da modernidade reflexiva, alguns
adotam como resposta a teoria de Jürgen Habermas acerca da ética da
racionalidade comunicativa. Outros buscam em Michel Foucault a resposta baseada
na ética da racionalidade analítica de poder discursivo. Beck, por seu turno, entende
que a teoria da modernidade reflexiva pode pautar os discursos sociais vindouros 121.
Beck interpreta a sociedade de riscos presente como um produto proveniente
de tal modernização reflexiva, na qual a lógica da distribuição de riqueza é
progressivamente superposta pela lógica da distribuição de riscos, ou seja, por
problemas que atingem a todos indiscriminadamente, ainda que de forma
diferenciada, e, dos quais ninguém consegue estar definitivamente protegido.
Exatamente por essa característica o momento social atual é marcado pela
impossibilidade de se referir aos outros como uma categoria distante daquele que
faz o discurso. Destaca-se que na própria formulação da sociedade de risco, ao
declarar a necessidade de reconhecermos o fim dos “outros”, Beck já insinua sua

120
LASH, Scott. A reflexividade e seus duplos: estrutura, estética e comunidade. In GIDDENS, Anthony;
BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernidade Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna.
Tradução de Maga Lopes. São Paulo: Editora Universidade do Estado de São Paulo, 1995. p. 135 e ss.
121
BECK, Ulrich. La Sociedade del riesgo... pp. 199-210.
57

tendência a uma abertura antropológica que irá se evidenciar quando se conseguir


concretizar a proposta do cosmopolização das ciências sociais.
Como já escrito alhures, o conceito de sociedade de classes gravitava em
torno da distribuição de riqueza produzida socialmente. O novo paradigma da
sociedade de risco desenvolve-se segundo um parâmetro completamente diferente.
Em vez da repartição de riquezas, indaga-se como a sociedade moderna (pós-
industrial) conseguirá minimizar, canalizar ou conviver com os riscos intimamente
ligados ao processo de modernização dos fatores de produção sem, contudo,
sobrepujar os limites aceitáveis do convívio entre os seres humanos122. Ulrich Beck
é otimista. Para o filósofo alemão, a sociedade de risco é uma oportunidade social
global. Sustenta o professor alemão que contra a maioria das teorias sociais
lineares, o sistema social, aparentemente industrial e autônomo, transgrediu sua
lógica e suas fronteiras e iniciou, assim, um processo de autodissolução e
autotransformação. Em vez de se contentar em traçar diversos caminhos e
potenciais no interior da modernidade industrial, a modernização está agora violando
os próprios princípios básicos e instituições sociais, políticas e culturais da
sociedade industrial do Estado-nação. Ela os está demolindo e despertando novas
alternativas e potenciais que se contrapõem à modernidade industrial. Beck assim
resume o possível avanço: a consciência do risco global abre espaço moral e
político que pode fazer surgir uma cultura civil de responsabilidade que transcenda
as fornteiras e os conflitos nacionais. A experiência traumática de que todos são
vulneráveis e a decorrente responsabildiade pelos outros, até para a sua própria
sobrevivência, são os dois lados na crença no risco mundial 123. Nesse sentido, a
percepção pública do risco força as pessoas que não gostariam de ter nada a ver
uma com as outras a se comunicarem. Todos estão destinados a viver com os
outros neste mundo de riscos.
Ao direito penal caberá papel de destaque nesse cenário social complexo
orientado pelos riscos sociais difusos. Como prevenir a ocorrência de riscos por
meio do direito penal e, ainda, se o arcabouço teórico Iluminista pode se mostrar
eficaz nesse cenário social complexo são alguns dos pontos que serão debatidos
nos capítulos seguintes.

122
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo...p. 26.
123
BUENO, Arthur. Diálogo com Ulrich Beck... p. 364.
58

2 O DIREITO PENAL E A GESTÃO DOS RISCOS SOCIAIS

2.1 Considerações preliminares

A afirmação da sociedade de risco gerou uma série de impactos no Direito


Penal, tanto na construção de novas figuras delitivas quanto na compreensão
daquelas já existentes. O modelo baseado em comportamentos socialmente
propensos a risco mostra-se complexo e sem precedente na história do
desenvolvimento social. Sobre o tema, Jorge de Figueiredo Dias mostra
preocupação quanto ao futuro da humanidade aduzindo que a sociedade
exasperadamente tecnológica, massificada e globalizada ganha instantaneamente
novos riscos, eis que o desenvolvimento de tecnologias inéditas traduz-se,
normalmente, na produção dos já citados novos riscos em tempo e lugares
diferentes, distanciados e gerais podendo, inclusive, impactar no futuro da
sobrevivência humana no globo terrestre124.
Tão preocupado quanto Dias está Eric Hobsbawn. O sociólogo britânico
elabora comentários pessimistas quanto ao futuro da humanidade inserta no cenário
capitalista moderno. Segundo o filósofo inglês, os efeitos futuros na vida da
humanidade são inevitáveis e sérios. Atualmente, os seres humanos são capazes de
tornar inabitável o mundo devido aos venenos, à poluição ou ao modo pelo qual a
indústria modifica a atmosfera. Até a primeira metade do século passado ninguém
se preocupava com o futuro das fontes energéticas não-renováveis. Hoje, apesar de
os meios tecnológicos lograrem sucesso em reconhecer recursos alternativos, sabe-
se que permanece o fato de os recursos naturais serem finitos. A percepção deste
problema é relativamente recente. Em escala global, a percepção não existia antes
da década de 1970. Infelizmente, não há dúvida que o poder na humanidade em
destruir o mundo tornou-se bastante presente. E assim resume Hobsbawn: “quanto
maior o número de seres humanos, mais riscos existirão125”.
Ainda sobre o tema, Jesús-Maria Silva Sánchez leciona que o extraordinário
desenvolvimento da técnica é responsável por trazer conseqüências imediatas em
um incremento do bem-estar individual e, também, na dinâmica dos fenômenos
econômicos globais. Porém, não existem apenas conseqüências positivas. Há
impactos negativos neste modelo social lastreado na ideia de risco, principalmente,

124
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral do
crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais ; Coimbra: Coimbra Editora, 2007. pp. 134-137.
125
HOBSBAWN. Eric. O novo século... p. 160.
59

126
no que concerne à configuração do risco como um fenômeno social estruturante .
Assim arremata o professor espanhol:

Isso pelo fato de que boa parte das ameaças a que os cidadãos estão
expostos provém precisamente de decisões que outros concidadãos
adotam no manejo dos avanços técnicos: riscos mais ou menos diretos para
os cidadãos (como consumidores, usuários, beneficiários de serviço público
etc.) que derivam das aplicações técnicas dos avanços na indústria, na
biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações
etc. Mas, também, porque a sociedade tecnológica, crescentemente
competitiva, desloca para marginalidade não poucos indivíduos, que
imediatamente são percebidos pelos demais como fonte de riscos pessoais
e patrimoniais.

À medida que o modelo social vigente necessita dos riscos para o


desenvolvimento das relações econômicas capitalistas de massa, por conseqüência,
acaba o tecido social sofrendo os impactos desse novo modelo de produção e de
organização social. O modelo capitalista hodierno caracteriza-se por sistemas de
produção em larga escala utilizando alta tecnologia e, ainda, apresenta como
conseqüência a difusão de riscos no cenário global. O risco acaba figurando como
conditio sine qua non para o desenvolvimento e a manutenção do atual modelo
produtivo.
Intenta, ainda, o atual modelo de produção descobrir mecanismos adequados
à limitação dos eventos arriscados que, embora tenham avançado quanto à previsão
ou detecção, ainda não são totalmente capazes de avaliar, prever ou controlar todos
os riscos. Esse impedimento ao controle total dos riscos não pode ser compreendido
de uma maneira ingênua. É importante asseverar que o próprio modelo econômico
capitalista nutre-se da inovação e da tomada de posição diante das incertezas para
o seu desenvolvimento127.
Limitar os riscos somente figuraria como aceitável quando esta contenção não
resultar num colapso do sistema de produção. Nesse ponto reside uma questão de
suma importância: o modelo sócio-econômico vigente está interessado em erradicar
os riscos sociais? Resposta negativa se impõe. Não apenas pela impossibilidade
fática ou tecnológica, mas também em virtude do interesse do modelo econômico
vigente em pretender a evolução do sistema de produção e que necessariamente

126
SILVA SANCHÉZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais. Tradução Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp.
28-29.
127
BOWER, Joseph; LEONARD, Herman; PAINE, Lynn. Capitalism and Risk: Rethinking the Role of Business.
Cambridge : Harvard Business Review Press, 2011.
60

acarretará novos métodos de produção que poderão de alguma forma influir nos
riscos. Sobre o tema, Pierpaolo Cruz Bottini pronuncia-se128:

A demanda de expansão do direito penal sobre os novos riscos vem


acompanhada de uma contra-argumentação de ordem econômica, que
sugere a retração dos âmbitos de abrangência das normas criminais, sob
pena de paralisação de todas as atividades produtivas. Mais uma vez o
gestor dos riscos, que pode ser o legislador ou o juiz, em meio a um conflito
que perpassará toda a atividade política criminal.

As consequências lesivas das falhas técnicas ínsitas ao desenvolvimento


tecnológico aparecem como um problema no atual modelo de produção. É o caso,
por exemplo, dos organismos geneticamente modificados. Contudo, esse eventual
risco não significou o impedimento da comercialização, plantação, cria, etc de
organismos modificados. E mais, inevitavelmente, ficará absorvido um percentual de
desconhecimento e/ou acidentes considerados como aceitáveis em razão da
complexidade desses novos desenhos técnicos produtivos.
Dessa forma, segundo Silva Sánchez, tratar-se-á, em realidade, de discutir a
questão envolvendo a localização das denominadas falhas técnicas, da análise do
âmbito do risco penalmente permitido ou da seara do risco penalmente
reprovável129. A polêmica entre os benefícios da biotecnologia e os riscos
indeterminados ainda persiste130, apesar de na atualidade estar a utilização de
organismos geneticamente modificáveis aceita no país131. Veja-se o exemplo a
ilustrar o problema da utilização de transgênico e a base científica é falha na
apuração de suas conseqüências:

128
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato... p. 86.
129
SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. A expansão... p. 30.
130
LEITE. Marcelo. Os alimentos transgênicos. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 33.
131
Sobre o tema, indicada a leitura do texto Desenvolvimento, Estágio no Brasil e Requisitos para uma Política
Nacional de Biossegurança de autoria de Eliana Fontes. Segundo a autora, o cerne da questão de se utilizar
Organismos Geneticamente Modificados passa por uma análise de riscos. Ou seja, se existem riscos, deve-se
considerar a possibilidade de minimizá-los ou, por outro lado, manejá-los. Deixa claro a autora, entretanto, que
não existe risco zero. Assim complemente a pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária: “a
análise de risco é um processo dinâmico com possibilidades de adoção de medidas de curto, médio e longo
prazo. Se há um experimento em laboratório e ocorre um acidente, medidas de mitigação podem ser prontamente
adotadas, minimizando as conseqüências desastrosas. Se se trata de uma liberação no meio ambiente, a
mitigação pode ser bem mais complexa. Essas liberações devem ser monitoradas por um período maior, uma vez
que a biologia e ecologia são processos dinâmicos e interativos que envolvem interações entre diferentes
processos biológicos. Na análise de risco deve-se considerar os processos evolutivos a longo prazo. É importante
ter em mente que análise do risco é um processo dinâmico e não estático”. SEMINÁRIO INTERNACIONAL
SOBRE BIODIVERSIDADE E TRANSGÊNICOS, 1999, Brasília, Desenvolvimento, estágio no Brasil e
requisitos para a política nacional de biossegurança, Brasília: Senado Federal, 1999. pp. 21-30. O diploma
legislativo pátrio que rege a matéria é a Lei n. 11.105/05.
61

No ano de 1989, os Estados Unidos foram alarmados por uma epidemia


misteriosa da síndrome de eosinofilia – mialgia, caracterizada por dor
muscular e pelo aumento de um tipo de glóbulo branco (leucócitos) no
sangue. Mais de 5.000 casos foram registrados, sem que se identificasse de
imediato a origem do mal.Morreram pelo menos 37 pessoas, e outras 1.500
ficaram com sequelas permanentes, antes que a agência de fármacos e
alimentos daquele país, a poderosa FDA, descobrisse uma associação
estatística da síndrome com um complemento alimentar, o triptofano L. A
investigação revelou mais, que 95% dos casos podiam seguramente ser
atribuídos ao triptofano produzido por uma empresa japonesa, a Showa-
Denko. Todo o estoque disponível foi recolhido, mas muito estrago já havia
sido feito – inclusive para a imagem pública da engenharia genética.
Ocorre que o triptofano da Showa-Denko vinha sendo fabricado com o
emprego de bactérias geneticamente modificadas. Elas haviam sido
alteradas para que funcionassem como microusinas de triptofano, ou seja,
para que seus genes comandassem a síntese de enormes quantidades da
susbtância, utilizada na complementação alimentar e no tratamento de
insônia, ansiedade, depressão e tensão pré-menstrual. O que o controle de
qualidade da empresa e a fiscalização sanitária não foram capazes de
prever era que, paralelamente ao triptofano, as bactérias manipuladas
estavam também produzindo quantidades crescentes de uma toxina capaz
de provocar a síndrome. Não se sabe ao certo se ou como a modificação
genética acarretou o problema; uma investigação mais profunda ficou
prejudicada porque a empresa destruiu todos os lotes contaminados. Mas
até hoje o episódio, apesar de misterioso, é citado como exemplo de que a
alteração e inserção de genes no organismo não é assim tão precisa quanto
querem fazer crer os engenheiros genéticos e pode ter efeitos
132
imprevisíveis .

Nesse cenário complexo, o Direito Penal muitas vezes é convocado a cumprir


o papel de instrumento de controle dos riscos e, por isso, padecerá do
questionamento referente ao paradoxo da contenção das atividades inovadoras
diante do modelo econômico vigente e, por conseqüência, deverá tentar solucionar a
dúvida quanto a medida e grau da pena, sobre quais comportamentos são
considerados arriscados e penalmente relevantes e quais outros serão considerados
penalmente permitidos e, por fim, o conflito político que poderá advir da atividade da
gestão dos riscos pelo Direito Penal à luz do modelo de produção capitalista
radicado na capacidade de inovação tecnológica.
O clamor, na atualidade, por uma atuação mais ampla do Direito Penal deve-
se em grande medida à aparente incapacidade de atuação de outros meios de
controle social à contenção de riscos. Tão problemática é a questão que Silva
Sánchez formula a denominação de sociedade de insegurança sentida à sociedade
atual133. Para o jurista espanhol, os mecanismos jurídicos não-penais como o Direito
Civil e o Direito Administrativo figuram na maior parte dos casos inexistentes ou

132
LEITE, Marcelo. Os alimentos transgênicos... p. 36-37.
133
Idem, Ibidem. p. 32.
62

inoperantes134, além, é claro, de a própria ética social estar bastante


135
desprestigiada . A seguir, trecho do livro A Expansão do Direito Penal que
corrobora o posicionamento do doutrinador espanhol anteriormente mencionado:

É inegável que, deixando de lado outras considerações, as normas da moral


social – como normas que são – desempenham uma função de orientação,
ao permitir predizer em certa medida a conduta dos demais, de modo que
caiba renunciar assim ao permanente processo de asseguramento
cognitivo. Mas, então, a ausência de uma ética social mínima torna, de fato,
imprevisível a conduta alheia e produz, obviamente a angústia que
corresponde ao esforço permanente de asseguramento fático das próprias
expectativas, ou a constante redefinição das mesmas. Pois bem, as
sociedades modernas, nas quais durante décadas se foram demolindo os
critérios tradicionais do bom e do mau, não parecem funcionar como
instâncias autônomas de moralização, de criação de uma ética social que
redunde na proteção dos bens jurídicos. Isso expressa uma situação
próxima a anomia que teorizou Durkheim.

Pierpaolo Cruz Bottini aduz que os referenciais éticos perderam seus valores
na sociedade de risco pelo fato de a coesão social garantida pela introjeção de
valores construídos e respeitados pelos diversos grupos comunitários sofrer
constante ameaça advinda de forma de interação social diversa daquela
tradicionalmente concebida. Esta nova forma de interação social é influenciada pela
intensidade das relações econômicas e a globalização tendente à
136
despersonalização dos relacionamentos interpessoais .
Nas lições de Silva Sánchez, um fator fundamental dessa nova realidade
social de riscos é o cenário das atividades econômicas e de produção que geram
indivíduos cada vez mais dotados de instabilidade emocional-familiar. Nesse
contexto de aceleração e incerteza, de obscuridade e de confusão, se produz uma

134
Sobre a inoperância do Direito Civil, Silva Sánchez aduz que o Direito Civil é notadamente um direito para
ressarcimento de danos e algo que está presente no direito privado atual é a chamada securização dos riscos, quer
dizer, a evolução do direito indenizatório leva-se a um caminho de um modelo de seguro em que não se está
interessado em cumprir as funções político-jurídicas clássicas. Por outro lado, o doutrinador espanhol defende
que a partir desse modelo securitário do direito, resta inevitável que o dever de diligência do indivíduo diminua
já que a seguradora responderá pelo montante da indenização, sendo sua responsabilização, no máximo, afetada
pelo aumento do valor dos prêmios de seguro. Logo, teria o modelo de seguro uma conseqüência patente: o
decréscimo da eficácia preventiva do direito da responsabilidade civil por danos. Acerca do Direito
Administrativo, as críticas dirigem-se ao fato de este ramo do direito público inclinar-se cada vez mais à adoção
do princípio da oportunidade ou discricionariedade, fato este que geraria uma maior propensão à corrupção.
Além da discricionariedade exasperada em detrimento da princípio da vinculação, a burocratização das
instâncias administrativa serve a atrapalhar ainda mais a eficácia do Direito Administrativo. O resultado da
falência das duas instância, portanto, mostra-se desolador. Assim, figurará o Direito Penal como único
instrumento eficaz político-social, isto é, como mecanismo de socialização ou de civilização, supondo uma
expansão absurda da ultima ratio. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão... pp. 57-62.
135
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão... p. 58.
136
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato... p. 88.
63

crescente desorientação pessoal (Orientierungsverlust), que se manifesta naquilo


que já se denominou perplexidade da relatividade137.
Outro fator técnico próprio do atual momento de desintegração social
apontada por Silva Sánchez seria a mobilidade. Esta não se restringe à mobilidade
física de suma importância ao desenvolvimento do capitalismo moderno englobando,
ainda, o fluxo de informações. Desenvolveram-se meios técnicos que permitem a o
tráfego de informações independentemente de portadores físicos. O aparecimento,
por exemplo, da rede mundial de computadores contribuiu para abalar a noção de
distância percorrida, uma vez que a informação passou a ser disponibilizada a em
qualquer lugar do planeta, horário ou pessoa. Zigmunt Baumann sustenta que nesse
ciberespaço o que se mostra mais visível é o isolamento, uma condição de não-
interferência ou de não vizinhança. Significa dizer que esse ciberespaço acarreta
uma imunidade frente a interferências de terceiros, um isolamento garantido e
invulnerável138. O espaço urbano onde os ocupantes de diversas áreas poderiam se
encontrar para dialogar ou até mesmo travar batalhas ocasionais face a face,
abordar e desafiar outros, conversar, discutir, debater, concordar ou discordar,
levando seus problemas particulares a níveis públicos e tomando os problemas
provados como problemas públicos teve rapidamente seu tamanho e sua
importância diminuídos.
Os espaços públicos estão cada vez mais suplantados por espaço privados
destinados majoritariamente ao consumo. Espaços onde impera a possibilidade de
pagamento para a garantia do nível de controle necessário a impedir a
irregularidade, a imprevisibilidade e a ineficiência. A sociedade amedrontada pelos
riscos transforma-se cada vez mais em uma sociedade orientada pelo fluxo do
comércio em que relações sociais pautadas na ética coletiva tendem a desaparecer.
Baumann resume 139:

Os locais de encontros eram também aqueles em que se criavam normas –


de modo que se pudesse fazer justiça e distribuí-la horizontalmente, assim
reunidos os interlocutores em uma comunidade definida e integrada pelos
critérios comuns de avaliação. (...) Os vereditos de certo e errado, belo e
feio, adequado ou inadequado, útil e inútil só podem ser decretados de cima
para baixo, de regiões que jamais poderão ser penetradas (...).

137
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. op. cit.,... p. 34.
138
BAUMANN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. São Paulo: Zahar, 1999. p. 27.
139
Idem, ibidem. p. 33.
64

Sobre o tema, Silva Sánchez sustenta ser inegável que a população mundial
na atualidade experimenta grande dificuldade para se adaptar a um ritmo de vida
acelerado, inclusive, com influência da revolução das telecomunicações que
ocasiona a falta de domínio dos acontecimentos da vida, que invariavelmente,
segundo o doutrinador espanhol, traduzir-se-á em insegurança socialmente
sentida140. A atuação dos meios de comunicação transmite uma imagem muitas
vezes desfocada realidade, quer dizer, o que está próximo e o que está distante tem
presença quase idêntica no momento de percepção da realidade. Tal fato corrobora
sensação de insegurança combinada ao sentimento de impotência quanto aos
cursos causais. Determinadas notícias, segundo Silva Sanchéz, poderão atuar como
verdadeiras multiplicadoras de ilícitos e catástrofes gerando uma sensação de
insegurança que não corresponde ao nível de risco objetivo.
Concordando com o exposto pelo doutrinador espanhol, Bottini sustenta que
as amplitudes das lesões possíveis de acontecer são potencializadas pela
intensidade da troca de informações e, também, pelas experiências e sensações
veiculadas pela mídia. A repercussão dos perigos das atividades produtivas pelos
meios de comunicações em massa amplia e intensifica a sensação de insegurança
demandando ainda mais a intervenção penal141.
A falta de clareza na redação dos tipos penais, o largo emprego de normas
penais abertas ou em branco e a fluidez dos bens jurídicos protegidos pela norma
decorrem da situação paradoxal e complexa da moderna sociedade de riscos 142.
Sobre o tema controle de riscos e intervenção penal, Mirentxu Corcoy Bidasolo
expõe que “la legitimidad del control de riesgos por medio de la conminación a
través de consecuencias penales, em particular, de penas privativas de liberdade, es
el punto de partida de la dicotomía que surge en la discusión dogmática penal
actual143”
Ao direito penal resta, portanto, o escopo de conter riscos, mas sem
descuidar simultaneamente da preocupação em não poder levar totalmente a cabo
essa sua função, pois, caso consiga êxito total, levará a ruínas as estruturas do
sistema capitalista moderno, uma vez que o capitalismo em grande parte das

140
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. A expansão... p. 35-38.
141
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato... p. 88.
142
Idem, Ibidem. p. 91.
143
CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Limites objetivos y subjetivos a la intervención penal en el control de
riesgos. In: GOMEZ MARTÍN, Victor (coord.). La Política Criminal em Europa.. Barcelona : Atelier Penal,
[199-]. p. 25.
65

situações convive com avanços tecnológicos e tais avanços não estão destituídos de
riscos: “os riscos não podem ser extirpados do direito penal que cumpre, em muitas
situações, o papel simbólico de apaziguar, por certo período, os anseios populares
por mais segurança144”.
Por isso, pode-se dizer que a demanda social pela expansão do direito penal
mostra-se contraditória. Ao mesmo tempo em que a sociedade demanda a
supressão dos riscos deve, ainda, atender preocupar-se em não deixar que o
ordenamento jurídico dissolva o modelo produtivo e as relações econômicas
vigentes.
Como conseqüência do desenvolvimento industrial e do progresso científico,
tecnológico, industrial e econômico, na sociedade pós-moderna (ou sociedade da
segunda modernidade como prefere Ulrich Beck) realiza-se uma pluralidade de
atividades que possuem um ponto em comum a criação de novos riscos ou o
incremento dos já existentes. Estes riscos não podem mais ser relacionados
exclusivamente a bens jurídicos individuais como a vida ou a liberdade do indivíduo,
cabe dizer, bens tipicamente de cunho liberal-burguês. No entender de Luis Gracia
Martin, as características desses novos riscos sociais são (i) a grande dimensão e
(ii) a indeterminabilidade de pessoas potencialmente ameaçadas 145. Dentro desse
novo marco de riscos incalculáveis, o Direito Penal cuja orientação tradicional
inclina-se à prevenção de riscos calculáveis sofreu uma variação significativa.
Passou a tomar uma posição aliada à precaução ante a incerteza e à
impossibilidade de cálculo exato dos riscos.
Diante do cenário complexo acima exposto, a questão que se faz presente é
apurar a legitimidade da intervenção penal na proteção dos novos riscos. Junto aos
bens jurídicos tradicionais como a vida, liberdade sexual e patrimônio a sociedade
moderna vem assumindo a necessidade cada vez mais intensa de proteger novos
bens. Estes novos bens são dotados em sua maioria de maior complexidade se
comparados aos bens tipicamente clássicos. Neste sentido a mudar de paradigma
de um direito penal cujo escopo é a proteção de bens jurídicos individuais para um

144
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. op. cit.... p. 91.
145
GRACIA MARTIN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do direito penal e para a
crítica do discurso de resistência. Tradução de Érika Mendes de Carvalho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 2005. p. 48.
66

direito penal atento, também, à proteção de bens jurídicos coletivos ou difusos


Corcoy Bidasolo expõe:146

Por conseguinte, la discusión se concreta, en la doctrina penal, en la


legitimidad o ilegitimidad de la protección penal de bienes jurídicos
supraindividuales que, a su vez, se debe encuadrar en el marco de la
sociedad compleja en la que nos encontramos inmersos en los albores del
siglo XXI, y de las consecuentes nuevas necesidades, nuevos valores y
nuevos problemas de ,os miembros de esta sociedad que, aun cuando no
se conciba como sociedad del riesgo, al menos hay que calificarla como
sociedad compleja. En uma sociedad altamente tecnificada e industrializada
com es la nuestra, en que existen una serie de relaciones de interacción
interpersonales anônimas crecientes, se tienen que ir cuestionando y
redefiniendo dinámicamente los intereses merecedores de tutela penal.
Junto a bienes altamente personales como la vida, la libertad sexual o el
patrimônio, la sociedad occidental va assumiendo la necesidad de
intervención penal para la prevención de nuevos riesgos que tienem su
origen en la complejidad estructural de estas sociedad. En princípio, puede
afirmarse que los ciudadanos, en general, no se cuestionan la necesidad de
represión penal de los riesgos de tipo atômico, ecológico, genético o
socioeconômico, por enumerar algunos ejemplos.

2.2 Crimes de perigo e controle de riscos

Para Juarez Cirino dos Santos, conforme o tipo descreva uma lesão do objeto
de proteção ou um perigo para a integridade daquele, distinguir-se-ão os tipos
penais em tipos de lesão ou tipos de perigo. Assim são classificados os tipos penais,
segundo o professor aposentado da Universidade Federal do Paraná: (i) os tipos de
lesão são caracterizados pela lesão real do objeto da ação e (ii) os tipos de perigo
que descrevem somente a produção de um perigo para o objeto de proteção,
distinguindo-se, por sua vez, em tipos de perigo concreto e tipos de perigo
abstrato147.
Sobre os crimes de lesão, Claus Roxin aduz serem esses definidos como
aqueles caracterizados por uma necessária superveniência do dano a um bem
jurídico. A ausência da lesão poderá significar ou um indiferente penal ou, então,
como mais comumente, a caracterização da tentativa. Já os crimes de perigo seriam

146
CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Limites objetivos y subjetivos... p. 28.
147
SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal. Parte Geral. 2ª Ed. Curitiba: ICPC Editora e Lumen Juris, 2007. p.
110.
67

definidos por Roxin como aqueles em que a ação ou omissão somente traduzem
uma ameaça mais ou menos intensa para o objeto da ação148.
Segundo Renato de Mello Jorge da Silveira, os crimes de lesão
corresponderiam a mais evidente reprovação de uma conduta humana em
discordância com os ditames legais. A destruição de um bem significaria a mais
séria intensidade danosa infligida149. Assume-se, portanto, segundo o professor da
Universidade de São Paulo, que o dano reveste-se por um conceito normativo
representando o resultado de uma valoração de um evento imputável a um indivíduo
em relação às exigências de uma determinada norma. Neste sentido, o dano
assumiria posição sinônima de lesão, pois o crime, em última análise, encerraria um
dano jurídico. Na elaboração típica, o legislador estabelece a proteção que julga
necessária à tutela da alteração material da coisa a ser protegida. Pode-se dizer que
o dano consegue caracterizar-se mesmo quando uma modificação visível não
aconteça, ou seja, é passível de configuração danosa um mero desgaste pelo uso
da coisa, por exemplo. O legislador também poderá prescrever essa categoria de
crime de dano como sendo de realização livre, isto é, sem especificidades, ou até
mesmo por meio de uma realização vinculada em que a lei deverá descrever a
modalidade danosa a ser praticada pelo agente.
Já os crimes de perigo, segundo Aníbal Bruno, são aqueles que não
reclamam resultado para que se julgue perfeito um dano efetivo. Necessita-se neste
caso para sua ocorrência uma simples probabilidade de dano. Nessa probabilidade
de dano reside a definição de perigo ou, como prefere Francesco Carrara, citado por
Bruno, reside o dano potencial150.
Em síntese, pode-se definir crime de perigo como aquele que se consuma
pela simples criação de um perigo para o bem jurídico protegido sem, contudo, ter a
obrigatoriedade de produção de um dano efetivo. Nesses crimes o elemento
subjetivo é o dolo de perigo, cuja vontade limita-se à criação de situação de
perigo151.

148
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos de la Estructura de la Teoria Del
Delito. 2ª Ed. Tradução Diego-Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz Y García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. Madri: Civitas, 1997. p. 336.
149
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual. Interesses difusos. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2003. p. 90.
150
BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo 1º. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1967. pp.
222-223.
151
Cfe. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume I. 14ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
p. 224.
68

O progresso técnico-científico vivenciado na sociedade pós-industrial gera


conseqüências não apenas no âmbito da criminalidade tradicional, isto é, aquela
cometida em face de bens jurídicos de matriz individual. A adoção de novas técnicas
e instrumentos destinados à produção de resultados especialmente lesivos ligados,
muitas vezes, ao cenário de sociedade de riscos onde a indeterminabilidade de
vítimas e das conseqüências da conduta figura como conseqüência da conduta não
passa distante das preocupações do Direito Penal nesse momento.
Além dessas novas modalidades delituosas dolosas a incidência de novas
técnicas influi a delinquência não intencional. As conseqüências lesivas ligadas a
falhas técnicas típicas do atual modelo pós-industrial em que existe a propagação de
riscos acaba por encontrar amparo muitas vezes em qualificações culposas ou
dolosa-eventuais.
Nesses casos, há de se decidir se eventuais falhas técnicas encontram-se no
âmbito do risco permitido ou na seara do risco penalmente relevante 152. Sobre essa
atuação penal probabilística ou porcentual, Jorge de Figueiredo Dias sustenta que a
adoção de tal modelo estatístico contradiz a essência da racionalidade penal de um
Estado Democrático de Direito além de em última instância significar um abandono
do direito penal do bem jurídico e de sua base de legitimação153. É que Figueiredo
Dias sustenta ser o modelo probabilístico uma singela tentativa de adotar no sistema
jurídico romano-germânico, em certa medida, o pensamento penal norte-americano
da actuarial justice. A crítica a tal modelo baseia-se exatamente no propósito em não
atuar o Direito Penal sob a pauta de comportamentos de pessoas individualizadas,
mas, sim, com a preocupação em definir a responsabilidade penal fazendo os
culpados responderem como parte de uma estratégia de gestão de riscos.
Sobre o tema, Bottini afirma que a avaliação da legitimidade do Direito Penal
no cenário da gestão dos riscos sociais não prescinde da exigência de reflexão
acerca da necessidade e, também, da eficácia de sua utilização para uma proteção
efetiva de bens jurídicos, bem como a avaliação da extensão dessa proteção por
meio dos limites e garantias inerentes à proteção da dignidade humana 154.
Uma importante ferramenta deste Direito Penal do risco passou a ser a
utilização de tipos penais de perigo, principalmente, de perigo abstrato. Essa

152
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão... p. 30.
153
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I... p. 139.
154
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo... p. 91
69

formatação, segundo Bottini, foi responsável por permitir que na atualidade


ganhasse contornos o Direito Penal do risco em contraponto ao direito penal das
lesões ou o direito penal de conseqüências concretas. A criminalização de condutas
por meio da técnica dos crimes de perigo abstrato visa à antecipação da incidência
da norma a fim de se evitar condutas anteriores à verificação de qualquer resultado
lesivo. O deslocamento do injusto do resultado para a conduta reflete uma
preocupação do gestor dos riscos com prevenção e necessidade de evitar
comportamentos perigosos, tudo isso com o escopo de garantia mais eficaz a
proteção aos bens jurídicos necessários à vida humana e à paz social 155.

2.2.1 Crimes de perigo concreto

Não é finalidade principal deste trabalho dedicar-se de forma pormenorizada


ao estudo da categoria de crimes de perigo concreto, uma vez que a utilização de tal
categoria não sofrera impulso pelo direito penal dos riscos, ao contrário do que
ocorrera com a categoria com os crimes de perigo abstrato. Mesmo assim, algumas
linhas de explicações são necessárias.
Hans Joachim Hirsch define que os crimes de perigo concreto são aqueles
em que “la creación del peligro es un elemento del tipo penal que debe ser constada
por el juez en el caso concreto156”. Segundo Hirsch, essa categoria delitiva encontra
amparo em Welzel e Gallas, sendo certo que sua ocorrência vem a lume no
momento em que uma situação concreta ou real de risco para um objeto
determinado surge.
Acerca do tema, vale citar exemplo de Claus Roxin em que a segurança de
tráfego passa a ser tutelada por um crime de perigo concreto. Para Roxin, o caso de
um condutor que ao fazer uma ultrapassagem imprudente apenas não se choca com
o veículo que trafega em sentido contrário em virtude da destreza ou habilidade do
outro motorista que consegue evitar a colisão configura exemplo de perigo concreto.
Essa seria uma situação em que, segundo o autor alemão, apenas não se verificaria
o resultado danoso por sorte ou acaso. Neste sentido, o reconhecimento do perigo
concreto passa a exigir que o bem jurídico tenha efetivamente entrado no raio de

155
Idem, Ibidem... p. 111.
156
HIRSCH, Hans Joachim. Sistemática y limites de los delitos de peligro. Disponível em
<www.juridicas.unam.mx> Acesso em 13/04/2013.
70

ação da conduta perigosa, o que, por sua vez, exigirá um duplo juízo de verificação
de perigo: um juízo ex ante e outro juízo ex post157.

Los delitos de peligro concreto requieren que en el caso concreto se haya


producido un peligro real para un objeto protegido por el tipo respectivo. El
caso más importante en la práctica es la puesta en peligro del tráfico viario,
en el que, además de las peligrosas formas de conducción allí descritas se
requiere adicionalmente que de esse modo sean puestas em peligro la vida
o la integridad de otro o cosas ajenas de considerable valor. Tales delitos de
peligro concreto son delitos de resultado; es decir, se destinguen de los
delitos de lesión acabados de tratar en lo esencial no por criterios de
imputación divergentes, sino porque en lugar de un resultado lesivo aparece
el resultado de peligro típico correspondiente. Por tanto, al igual que en los
delitos de lesión, en primer lugar ha de haberse creado um concreto peligro
de resultado en el sentido de um riesgo de lesión adecuado y no permitido.
Este peligro, conforme a los criterios de imputación ya desarrollados, ha de
comprobarse por medio de una prognosis objetivo-posterior (por tanto, ex
ante); si falta un peligro de resultado, el hecho tampoco será imputable
aunque se produzca uma efectiva puesta em peligro. Si hay que afirmar que
el peligro del resultado, esse peligro debe haberse realizado en um
resultado que suponga um resultado de peligro concreto y que, como
también en otros casos, ha de incluir todas las circunstancias conocidas ex
post.

A questão atinente a como se configura o perigo concreto é, na lição de


Roxin, ponto ainda repleto de controvérsias158. A jurisprudência alemã certa vez
descreveu-se o perigo concreto como algo que escapa de uma “descripción
científica exacta y que es predominantemente de naturaleza fática, no jurídica 159” e
em outra decisão assentou que o perigo concreto “no se puede determinar con
validez general, sino sólo según las circunstancias particulares del caso concreto 160”.
Apesar das dúvidas, a jurisprudência alemã inclina-se favoravelmente à existência
de alguns pressupostos para a configuração dos crimes de perigo concreto. São
eles (i) a ação incriminada deve ter criado um perigo ao bem jurídico próximo da
lesão e (ii) a existência de um objeto material 161 ou, como prefere Roxin162, um

157
ROXIN, Claus. Derecho Penal...p. 404.
158
Idem, Ibidem.
159
BGHSt 18, 272. Sobre a análise da jurisprudência da Corte Suprema alemã sobre a matéria consultar obra de
KÜPER, Wilfried. Strafrecht Besonderer Teil. Definitionen mit Erläuterungen. 7ª Ed. Berlim, C.F. MÜLLER,
2008. p. 158.
160
BGHSt 22, 432.
161
Souza e Japiassú definem o objeto material como “a pessoa ou a coisa sobre a qual incide a conduta delituosa.
Em suma, objeto material é para onde converge a ação ou omissão descrita no tipo penal respectivo. Desse
modo, não há que se confundir objeto jurídico com objeto material. Assim, no crime de homicídio o objeto
jurídico é a vida, enquanto que o objeto material é o corpo humano.” SOUZA, Artur de Brito Gueiros de.
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 512.
162
Cfe. ROXIN, Claus. Derecho Penal.,...pp. 404-405.
71

objeto da ação em conjunto com o fato de ter o objeto do delito entrado no âmbito
operativo do autor da conduta incriminada.
Sobre o tema, Mirentxu Corcoy Bidasolo argumenta que o maior problema
envolvendo a concepção de crimes de perigo concreto diz respeito à prova da
existência de um resultado perigoso e, por conseguinte, a sua imputação. Para a
doutrinadora catalã, dificultosa mostra-se o aceite da definição tradicional de
exposição do bem jurídico a perigo efetivo, pois, em última análise, é impossível
falar-se em efetividade do perigo, uma vez que a lesão ao bem jurídico nao foi
produzida. A efetividade do perigo deve ser substituída pela idoneidade da produção
do resultado lesivo, o que deve ser comprovado mediante uma análise a partir da
idoneidade do perigo ex ante cumulada a uma perspectiva ex post. Mas como fazê-
lo? E mais, em que a proposta de Corcoy Bidasolo diferencia-se das demais, eis que
idoneidade e possibilidade da efetividade da lesão ao bem jurídico parecem ideais
próximas?
Segundo Corcoy Bidasolo, não será imputável um resultado material tendo
como base uma perspectiva ex post quando se demonstrar que a lesão foi evitada
em conseqüência do controle dos riscos efetuado diretamente pelo autor 163. Em
oposição, será imputável quando a lesão foi evitada simplesmente por outras
circunstancias concorrentes, isto é, à parte do domínio do autor. Reflete a jurista
acerca da impossibilidade de uma resposta plena e segura quanto à evitabilidade a
partir de um comportamento humano, ou seja, no caso concreto o máximo a ser
obtido será uma razoável probabilidade. Caso haja dúvida também razoável acerca
da evitabilidade do dano ao bem jurídico por meio da ação ou omissão, em virtude
do princípio in dubio pro reo, outra resposta que não a impossibilidade de imputação
do resultado perigosa deve ser afastada164.

2.2.2 Crimes de perigo abstrato

2.2.2.1 Considerações gerais

163
CORCOY BIDASOLO. Mirentxu. Algunas cuestiones sobre el injusto típico en los delitos de
peligro.Numero 2. Revista de Derecho Penal de Instituto de Ciencias Penales. Buenos Aires: Instituto de
Ciências Penales, 2007. pp. 97-98.
164
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual... p. 100.
72

Para o direito penal atual, a noção de perigo concreto não pareceu suficiente
para a contenção dos riscos. Nesse sentido, a jurisprudência da Corte Constitucional
Alemã (Bundesverfassungsgericht) entendeu que a concepção legítima nos países
democráticos repousa não apenas no dever de o Estado obrigar-se a preservar os
direitos individuais de cada indivíduo tipicamente protegidos sob o prisma do direito
fundamental à proteção ou de defesa (Abwehrrecht), mas também a garantir os
direitos funamentais contra agressões propiciadas por terceiros (Schutzpflicht des
Staats)165.
Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas proibições de
intervenção (Eingriffsverbote). Expressam também um postulado (ativo) de
proteção (Schutzgebote). Utilizando-se a expressão cunhada por Canaris
pode-se aduzir que os direitos fundamentais expressam não apenas uma
proibição do excesso (Übermassverbote), mas também podem ser traduzidos em
proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote)166.
Inspirada nas lições de Canaris, a Corte Constitucional alemã estabeleceu
uma classificação dos deveres de proteção: (i) dever de proibição (Verbotspflicht) -
consiste no dever de se proibir determinada conduta; (ii) dever de segurança
(Sichesrheitsplicht) - impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra
ataques de terceiros mediante a adoção de medidas diversas e (iii) o dever de evitar
riscos (Risikopflicht) – muito utilizado pelo Direito penal na atualidade - autoriza o
Estado a atuar com o objetivo de evitar riscos para o cidadão em geral mediante a
adoção de medidas de proteção ou de prevenção especialmente em relação ao
desenvolvimento tecnológico.
A adoção dos crimes de perigo abstrato pelo ordenamento alemão atual não
passa livre a críticas. Por exemplo, para Wolfgang Wohlers e Andrew von Hirsch, a
atual fase da dogmática alemã não estaria prestando esforços suficientes na tarefa
de encontrar uma legitimação material convincente aos crimes de perigo abstrato,
resumindo-se à afirmação vaga e imprecisa no sentido de servirem os crimes de
perigo abstrato à proteção de bens jurídicos valiosos, seja lá o que o termo “valioso”

165
Cfe. Gilmar Ferreira Mendes. Voto no HC 102.087/MG. Publicado em 14/08/2012.
166
CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechtswirkungen und Verhältnismässigkeitsprinzip in der
richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts. JuS, 1989, p. 161. apud Voto do Ministro
Gilmar Ferreira Mendes no HC 102.087/MG. Publicado em 14/08/2012.
73

significar. Por isso, afirmam que a categoria residual de crimes de perigo abstrato
figura incompatível com a teoria do bem jurídico-penal167.
Em resposta às críticas de Wohlers e Hirsch anteriormente transcritas vale
menção o o posicionamento de Claus Roxin segundo o qual a atual fase da
realidade social repleta de situações que necessitam da intervenção penal
antecipada a fim de que realmente sejam resguardados interesses vitais dignos de
tutela penal legitima e incentiva a adoção de crimes de perigo abstrato pela
dogmática penal moderna, não havendo qualquer problema de compatibilização
entre a teoria do bem jurídico-penal e os crimes de perigo abstrato168. Evidente que
para uma intervenção penal antecipada de forma legítima princípios constitucionais
típicos de um Estado Democrático de Direito devem ser respeitados. Sobre os
limites impostos ao legislador, cabe breve transcrição de uma conferência datada do
ano de 2004 ministrada por Claus Roxin169:

Hay muchas razones para entender que el legislador actual, aunque que
goza de legitimidad democrática, no puede incriminar algo sólo por que no
le guste. Conductas tales como la de criticar duramente el gobierno,
profesar convicciones extrañas o comportarse en privado de forma
divergente a lo prescrito por las normas sociales no serán del agrado de
aquella autoridad que aprecie una ciudadanía obediente, conforme y fácil de
dirigir. La historia, incluyendo el presente, muestra numerosos ejemplos de
sistemas de justicia criminal que pretenden reprimir tales conductas. Sin
embargo, conforme al estándar alcanzado por nuestra civilización occidental
(marco al que se circunscriben mis consideraciones), la penalización de
uma conducta tiene que poseer una legitimación distinta de la que te otorga
la mera voluntad de legislador.

Complementando os três axiomas relacionados à derivação do conceito de


bem jurídico-penal a partir de Constituição democrática descritos em seu manual 170,
Roxin elenca outros parâmetros aptos a relacionar o direito penal e a construção de
tipos à moderna teoria protetora dos direitos fundamentais, culminando não apenas
numa função legitimadora da teoria do bem jurídico, mas também num cenário
crítico à intervenção desmensurada (e, portanto, inconstitucional) do ius puniendi
estatal. São eles: (i) a simples delimitação da finalidade da lei não constitui um bem

167
HIRSCH, Andrew von. WOHLERS, Wolfgang. Teoría del bien jurídico y estructura del delito. Sobre los
criterios de una imputación justa. In HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de
legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007. p. 287.
168
ROXIN, Claus. ¿ Es la protección de bienes jurídicos una finalidad del Derecho Penal? In HEFENDEHL,
Roland. La teoría del bien jurídico... p.443
169
Idem. Ibidem. p. 444.
170
Segundo Roxin, (i) as cominações penais arbitrárias não protegem bens jurídicos; (ii) as finalidades
puramente ideológicas não protegem bens jurídicos e (iii) as imoralidades não são aptas a afetar bens jurídicos.
Derecho Penal... pp. 56-57.
74

jurídico; (ii) a lesão da própria dignidade não significará necessariamente uma lesão
a bem jurídico; (iii) a proteção de certos sentimentos só podem figurar como dignos
de proteção por meio de bens jurídicos quando estes sentimentos façam referência
à segurança, como, por exemplo, faz o legislador alemão ao criminalizar a incitação
ao ódio, à violência e ao desprezo (§ 130, parágrafos 1º e 2º, StGB) ou condutas
sexuais exibicionistas (§ 183, StGB); (iv) autolesão ou favorecimento à autolesão
não podem significar reprimenda penal, pois a proteção de bens jurídicos se dá
tendo como referência os outros; (v) as leis penais simbólicas não servem à
proteção de bens jurídicos. Entende Roxin serem leis penais simbólicas aquelas que
não servem à proteção de uma convivência pacífica, mas apenas preocupam-se
com finalidade extrapenais, tais como a tranqüilidade do eleitorado; (vi) bem
jurídicos não suficientemente concretos, ou seja, extremamente vagos, imprecisos e
abstratos não possuem um juízo de valor suficientemente formado 171.
Assim, figuram essas novas diretrizes político-criminais cunhadas por Roxin
como verdadeiros referenciais teóricos dignos de um Estado Democrático de Direito.
Observa o jurista alemão que a proteção de bens jurídicos na atualidade não poder
ser considerada o único critério para legitimação de tipos penais. Defende Roxin a
partir da jurisprudência da Corte Suprema alemã que a intervenção penal a estados
prévios é legítima, podendo ocorrer (inclusive, por meio de crimes de perigo
abstrato) até mesmo em casos em que não haja a possibilidade de um evento
lesivo. Por exemplo: a direção feita por um motorista embriagado em rua deserta.
Neste caso, não se está a abandonar a teoria do bem jurídico. Apenas entendendo-a
a partir de um cenário modificado. No caso da direção sob o efeito de álcool, Roxin
sustenta que a justificação especial para a criminalização daquela conduta por meio
de um crime de perigo abstrato se faz necessária pois “un conductor ebrio no está
em condiciones de controlar suficientemente su conducta, de modo que en cualquier
momento puede pasar algo”. Em síntese, propõe Roxin: “las múltiplas precisiones
necesarias en el âmbito de los delitos de peligro abstracto y la punición de los actos
preparatórios precisan de una análisis específico 172”.
Roxin sustenta que nos últimos anos a dogmática penal alemã reacendeu a
importância da teoria do bem jurídico, principalmente, por meio daqueles que

171
ROXIN, Claus. ¿ Es la protección de bienes jurídicos una finalidad del Derecho Penal? In HEFENDEHL,
Roland. La teoría del bien jurídico... p. 443-458.
172
Idem, Ibidem. pp. 453-454.
75

contestam a premissa “el fin de toda amenaza penal debe ser la prevención de
lesiones a bienes jurídicos”, servindo como um importante ponto doutrinário e
jurisprudencial de debate. Emissores de estudos contrários à teoria do bem jurídico-
penal situam-se, por exemplo, Günther Jakobs, Knut Amelung - estes dois melhor
analisados no próximo capítulo) e Günther Stratenwerth para quem o conceito de
bem jurídico acabou sendo extremamente amplo na sua tarefa de controlar os riscos
futuros. Conclui, então, Stratenwerth que ninguém consegue na dogmática penal
alemã atual descrever o que integra o conceito de bem jurídico-penal e, por isso,
necessária a substituição do conceito de bem jurídico pela idéia proteção a relações
de vida como tais (Lebenszusammenhänge als solche)173.
Sobre as críticas de Stratenwerth, Roxin responde:

Stratenwerth remete às múltiplas e variadas definições do bem jurídico na


literatura para logo afirmar que uma definição material universal de bem
jurídico equivaleria a deixar o círculo quadrado, isto é, seria impossível.
Ademais, ele sustenta que o motivo para elaboração de um tipo penal não é
a proteção de bens jurídicos, mas a inconveniência de um comportamento.
Deve-se reconhecer a orientação básica social e legislativa para, por um
lado, querer a manutenção de uma norma determinada ou para, por outro
lado, simplesmente não querer um comportamento174.

Corcoy Bidasolo argumenta que a tendência atual da dogmática penal


europeia não é mais debater de forma favorável ou desfavorável aos crimes de
perigo abstrato e muito menos os possíveis pontos falhos dessa categoria dogmática
que já são há muito tempo conhecidos. Ao invés de ressaltar as críticas tecidas
dever-se-ia, sim, complementá-la. Entre os complementos pode-se mencionar a
natureza do bem jurídico-penal potencialmente posto em perigo e, também, a
ponderação da atividade em questão como sendo apta a ocasionar o perigo de
lesão ao bem jurídico à luz da utilidade social de possível criminalização 175. A
utilidade social é essencial no momento de se estabelecer limites entre os riscos
permitidos e os riscos jurídico-penalmente relevantes, em especial, no atual cenário
social complexo em que se deve também efetuar a análise de riscos tendo como um

173
STRATENWERTH, Günther. Kriminalisierung bei Delikten gegen Kollektivrechtsgütter apud COSTA.
Helena Regina Lobo da. Considerações sobre o estado atual da teoria do bem jurídico à luz do harm principle. p.
136. In GRECO, Luís. MARTINS, Antonio. Direito Penal como crítica da pena. Estudos em homenagem a
Juarez Tavares por seu 70º aniversário em 2 de setembro de 2012. Madri: Marcial Pons Ediciones Jurídicas e
Sociales S.A., 2012.
174
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Organização e Tradução: André
Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 15.
175
CORCOY BIDASOLO. Mirentxu. Exigibilidad en el ámbito del conocimiento y control de riesgos:
teorización... p. 37.
76

dos paradigmas o avanço tecnológico, isto é, um risco deixará de ser considerado


penalmente irrelevante quando não existam meios fora Direito penal aptos a
controlá-los. A legitimidade da atuação incriminadora do legislador penal vincula-se
aos limites axiológicos presentes nos Estados Democráticos de Direito, em especial,
no princípio da Dignidade Humana. Assim complemente a professora de Barcelona:

Sólo en la medida em que se incriminen conductas con suficiente


peligrosidad normativa en abstracto se respetarán los postulados del Estado
de derecho, en particular, el principio de intervención mínima y ultima ratio
del derecho penal.

2.2.2.2 Histórico

A existência da categoria de crimes de perigo abstrato jamais foi pacífica na


doutrina penal. Basta ver, por exemplo, no ano de 1877, as explanações de Karl
Binding por meio sua obra Die Normen und ihre Übertretung sustentando a divisão
tripartida das infrações penais deixando, ao menos no plano classificatório formal,
qualquer menção aos crimes de perigo abstrato. Segundo Binding, as infrações
penais dividiam-se em (i) proibições de lesões (Verletzungsverbote) – vedava
modificação não desejada no mundo exterior, (ii) proibições de perigo
(Gefährdungsverbote) – normas que vedam condutas de ação básica perigosa, ou
seja, atos que originam um perigo concreto ou são idôneos para a produção de uma
lesão. e (iii) as simples proibições ou infrações de polícia (Ungehorsamsstrafe) –
caracterizados como atos ilícitos em si, sem nenhuma referência a um resultado
concreto ou à periculosidade da conduta para permitir a incidência da norma penal.
O injusto penal decorreria da mera prática da conduta, e seria constatado pela
subsunção formal entre descrição normativa e ação. Nestes casos, ao contrário dos
delitos de lesão ou de perigo, que prevêem um acontecimento externo que afeta, ao
menos potencialmente, o bem jurídico, haverá apenas o desvalor da ação 176.
Segundo Angel Tório Lopez, os delitos de desobediência configuram-se como
antepassados primitivos dos delitos de perigo abstrato, o que os aproximaria da
definição atual dos crimes de perigo abstrato177.

176
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge da. Direito Penal Supra-Individual... p. 95.
177
TORÍO LOPEZ, Angel. Los delictos de peligro hipotético: contribuición al estúdio diferencial de los delitos
de peligro abstracto. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. 34 v.. Madri, 1981. p. 831. apud BOTTINI,
Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato... p. 128.
77

Cumpre destacar que Binding apenas considerava como perigosa uma


situação caso fosse esta concretamente percebida, apesar de aceitar em algumas
oportunidades a tipicidade de condutas que não possuíam potencial lesivo, por
exemplo, os chamados bens jurídicos institucionalizados como a segurança dos
transportes públicos ou a confiança no Poder Judiciário. Nestes casos, para Binding,
haveria uma ampliação do objeto de ataque, que implicaria automaticamente a
transformação da conduta em lesão178.
A primeira categoria proposta por Binding relacionar-se-ia a um dano efetivo a
um bem jurídico, razão pela qual, prima facie, não suscitavam problemas
sistemáticos para um sistema penal fundado no desvalor do resultado 179. Já as
proibições de perigo seriam normas a vedar condutas de ações perigosas, ou seja,
atos que originariam um perigo concreto ou um perigo idôneo à configuração de uma
lesão a um bem jurídico-penal. A colocação em perigo estaria caracterizada,
portanto, como uma situação de significativo desvalor jurídico, em razão de uma alta
probabilidade de dano ao bem jurídico que se pretendia proteger.
Segundo Fábio Roberto D’Avilla, a doutrina de Binding mencionava a ideia de
periculosidade concreta quando afirmava que deveriam ser criminalizadas as
condutas aptas a configurar comoção na vida humana 180. A incidência da norma
estaria submetida à ocorrência de uma situação real, havendo, pois, nos
ensinamentos de Binding, um prejuízo à estabilidade do objeto de proteção
normativo. Bottini, ao analisar a divisão proposta por Binding, afirma que as normas
de proibição de perigo seriam, na atualidade, equivalentes aos delitos de perigo
concreto ou aos delitos de perigo abstrato-concreto181, pois ambos trariam em seus
núcleos do injusto a ação perigosa182. Na doutrina de Binding ficaria afastada a
periculosidade da conduta caso o autor, diretamente ou por intermédio de outrem,
privasse a ação de seu perigo potencial. Para Binding, portanto, impossível a

178
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato.,... p. 129.
179
Idem, Ibidem p. 128
180
D’AVILLA. Fábio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a
bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 109.
181
Segundo Roxin, a elaboração do conceito de crime de perigo abstrato-concreto deve-se a Hans Schröder no
ano de 1967 quando da discussão de tipos penais da parte especial do Código Penal alemão, em especial, os §§
186 e 308 (2ª parte): “em dicho grupo han de darse ciertos elementos de puesta em peligro no designados con
más precisión en la ley, que en el § 186 hacen que una expresión sea apta para el menosprecio o la degradación,
o que en § 308 hacen que el objeto incediado resulte apto para la propagación del fuesgo. Estos elementos de
aptitud han de ser determinados mediante interpretacipon judicial; pero ello no cambia el hecho de que se trata
de delitos de peligro abstracto, pues no es preciso que se produzca un resultado de peligro concreto”. ROXIN,
Claus. Derecho Penal... p. 411.
182
BOTTINI, Pierpaolo Cruz; Crimes de Perigo Abstrato... p. 129.
78

presunção iure et de iure das normas de perigo. Exigir-se-ia a possibilidade de


contato entre a ação perigosa e o objeto de proteção para a caracterização do
injusto. Por essa razão, falar-se que Binding fora o pai da categoria de crimes de
perigo abstrato seria uma afirmação dotada de contrassenso.
Vale a pena um elaborar um breve comentário acerca das infrações de polícia
ou simples proibições (Ungehorsamsstrafe). Esta categoria inclui os atos ilícitos sem
nenhuma referência a resultado concreto ou à periculosidade da conduta a ensejar
incidência da norma penal. Assim, ao contrário das duas primeiras categorias
(proibições de lesão e proibições de perigo), que prevêem um acontecimento
externo que ao menos exponha potencialmente a perigo determinado bem jurídico,
nas simples proibições haveria tão-somente o desvalor da ação, característica que
aproximaria as simples proibições da categoria atual dos crimes de perigo abstrato.
Crítico à categoria de crimes de perigo abstrato mostra-se Kurt Rabl183. Para
Rabl, o desvalor do resultado seria sempre o elemento norteador do pensamento
penal, razão pela qual não deveriam ser aceitos tipos penais sem previsão de
resultados de dano ou de perigo concreto. Para Rabl, os crimes de perigo abstrato
seriam, em realidade, crimes de perigo concreto presumidos, nos quais o resultado
de perigo não conseguiria ser demonstrado. Por isso, seria a categoria dos crimes
de perigo abstrato uma mera presunção que poderia ser facilmente refutada pela
prova em contrário de sua não existência. Desta maneira, a única diferença entre
crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto encontrar-se-ia no campo
probatório, isto é, na possibilidade de uma prova em contrário ser produzida
servindo a justificar (ou não) a ocorrência de uma situação perigosa. Sob o ponto de
vista processual, a posição de Rabl do início da década de 30 do século passado
causou sérios problemas, eis que demonstrava serem os crimes de perigo abstrato
incompatíveis com o sistema legal calcado na presunção de inocência. Sobre a
doutrina de Rabl, Bottini aduz:

O pensamento de Rabl, ainda que busque um substrato material para os tipos


de perigo abstrato que os compatibilize com um direito penal de resultados,
cria dificuldades sistêmicas, principalmente em relação ao princípio da
presunção de inocência. Se o autor parte do pressuposto que o fundamento
material dos tipos penais é a lesão ou o perigo concreto, a dúvida sobre a
existência desse resultado deve favorecer ao réu, e não a presunção
normativa abstrata. Não haveria justificativa para que o indivíduo recebesse o

183
RABL, Kurt. Der Gefährdungsvorsatz, Munique: Scheletter, 1933. apud BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes
de Perigo Abstrato... p. 130-131.
79

ônus da prova apenas nos crimes de perigo abstrato. Por outro lado, a
manutenção do princípio in dubio pro reo e a remissão do ônus da prova à
acusação transformariam os delitos de perigo abstrato em tipos de perigo
concreto, o que acarretaria uma interpretação contrária à lei, que aponta para
a distinção entre as duas categorias delitivas.

Segundo Blanca Mendoza Buergo, foi com Cristoph Stübel que ocorreu a
compatibilização entre os crimes de perigo abstrato e o pensamento penal
clássico184. Segundo Stubel, os crimes de perigo abstrato não visariam proteger
antecipadamente um bem jurídico, mas, sim, destinar-se-iam à proteção da
integridade dos mesmos diante de uma ameaça específica. As condutas vedadas
por esses tipos penais, quando cometidas, abalariam o âmbito de proteção à ordem
social protegida.
O resultado lesivo concreto passa a ser indiferente, segundo Stübel. Tal
resultado lesivo em nada auxilia ou prejudica o estudo dogmático acerca dos crimes
de perigo abstrato e, também, não atuará na discussão acerca do momento
consumativo desses crimes. Em resumo: a mera perturbação da ordem social
vigente, por meio da exposição ao risco dos bens jurídicos, já implica a lesão à
manutenção da vida em comum.
Em que pese a importância conferida aos ensinamentos Stübel, foi apenas
com o X Congresso Internacional de Direito Penal realizado pela Associação
Internacional de Direito Penal (1969) que os crimes de perigo abstrato ganharam
novo rumo ratificando sua importância na dogmática hodierna. Uma ampla reforma
dogmática fora desenvolvida a partir de propostas das comitivas italiana e alemã,
tendo como principais formuladores da matéria crimes de perigo abstrato os juristas
Marcello Gallo e Horst Schröder185.
Entendia Schröder que nem sempre a divisão entre perigo abstrato e concreto
mostrava-se clara e, ainda, que, em realidade, o tipo penal em última análise servia
a proteger determinados objetos concretos186. Propôs Schröder uma
subclassificação dos crimes de perigo abstrato distinguindo-os a partir da
concordância formal entre ação e descrição legislativa. Conduziria essas
subcategorias a casos em que a tipicidade devesse ser verificada judicialmente

184
MENDOZA BUERGO, Blanca. Limites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro asbtracto.
Granada: Comares, 2001. p. 91.
185
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge da. Direito Penal Supra-Individual... p.98.
186
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 407.
80

diante da realidade do caso concreto a fim de que fosse comprovada ou não a


idoneidade da ação para a produção de um perigo ao bem jurídico protegido.
A idéia de Schröder, portanto, relativiza a dicotômica divisão entre crimes de
perigo abstrato e crimes de perigo concreto, criando um tipo híbrido (crimes de
perigo abstrato-concreto). Simultaneamente à elaboração dessa nova classificação,
Schröder revelava a problemática acerca confusão entre abstração e presunção,
reclamando a necessidade de prova contra a periculosidade da conduta no caso
concreto, a fim de não se incorrer na simples incriminação pelo fato de desobedecer
a uma norma.
Claus Roxin é um severo crítico à proposta de Schröder. Um dos motivos,
segundo Roxin, é que Schröder vale-se das lições de Cramer, em especial, a tese
segundo a qual crimes de perigo abstrato configuram-se a partir da probabilidade de
ocorrência de um crime de perigo concreto, ou seja, caso seguinda a doutrina de
Schröder, haveria a transformação da categoria de crime de perigo abstrato em uma
espécie de crime de perigo concreto de intensidade menor 187, o que, em realidade,
inclinava-se em sentido oposto à vontade da maioria da doutrina quando da
realização do X Congresso Internacional. Configurar-se-ia, na visão de Roxin, um
retrocesso. Além disso, na prática, quando Schröder propõe admitir a prova em
contrário da ausência de periculosidade nos crimes de perigo abstrato estaria, em
realidade, fulminando a categoria de crimes de perigo abstrato tornando-os
impraticáveis por qualquer tribunal.
Segundo Roxin, os créditos da moderna concepção de crimes de perigo
abstrato deveriam ser dirigidos a dois doutrinadores alemães: Horn e Brehm. Esses
dois juristas arquitetaram as bases da moderna concepção de crimes de perigo
abstrato a partir da ideia da vinculação da punibilidade a uma infração do dever de
cuidado esperado, ou seja, a partir da ideia de um perigo da ocorrência de um
resultado que se pretendia evitar, de tal maneira que os crimes de perigo abstrato
representariam, pois, tipos penais de imprudência sem, necessariamente, terem
conseqüências concretas188.
À nova categoria delitiva apresentada por Schröder apresentaram-se outros
opositores. Um exemplo de críticas foi Manfredi Parodi Giusino ao aduzir não ser
justificado, exceto por um excessivo apego teórico, a criação de uma categoria

187
ROXIN, Claus. Derecho Penal ...p. 408.
188
Idem, Ibidem.
81

autônoma de crimes (além das já tradicionais, debatidas e complexas categoria de


perigo concreto e abstrato). Uma nova categoria não traria qualquer novidade
relevante, uma vez que só apresentaria uma ideia de abstração diminuída se
comparada ao crime de perigo concreto189.
Não só de opositores vive a doutrina de Schröder. Alguns autores nacionais e
estrangeiros são partidários. Destacam-se José Francisco de Faria Costa, Ângelo
Roberto Ilha da Silva e Renato de Mello Jorge Silveira.
Para Faria Costa, os crimes de perigo abstrato-concreto seriam aqueles em
que a prova da inexistência do perigo determinaria o não preenchimento do tipo.
Excepcionalmente, poder-se-ia atribuir à categoria uma presunção relativa de perigo,
admitindo, portanto, prova em contrário a favor do réu190.
Na doutrina nacional, Ângelo Roberto Ilha da Silva posiciona-se favorável à
presunção juris tantum no caso envolvendo crimes de perigo abstrato, eis que
segundo o autor haveria casos em que o bem tutelado não se mostraria ameaçado,
fato este que acarretaria, por conseqüência, o efeito de descaracterizar o delito 191.
Para Silveira, apesar de inúmeras críticas formuladas pela doutrina mundial
acerca da relevância prática das contribuições de Schröder e, também, no sentido
de um possível esvaziamento do conceito de crime de perigo abstrato, a
contribuição do doutrinador alemão merece aplausos, pois foi capaz de combinar
elementos de duas categorias de perigo relativizando substancialmente a separação
radical entre elas, criando um tertium gens. Mas essa não foi a única contribuição de
Schröder elencada por Silveira. Um outro ponto de destaque foi a denúncia da
confusão que se fazia entre abstração e presunção reclamando, pois, a necessidade
de prova contra a periculosidade da conduta no caso concreto com o objetivo de se
evitar a simples incriminação pro mera desobediência192.
Hoje, seguindo as lições de Roxin, Arzt e Tiedemann, deve-se partir de uma
noção de que um comportamento apenas possa ser submetido à tipificação como
crime de perigo abstrato e merecedor de uma pena quando for a conduta

189
SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos Crimes de Perigo Abstrato em face da Constituição. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2003. p. 81.
190
COSTA, José Francisco de Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992.
191
SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos Crimes de Perigo Abstrato... p. 75.
192
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge da. Direito Penal Supra-Individual. p. 100.
82

inconciliável com as condições de uma convivência pacífica, livre e materialmente


segura dos cidadãos193.
O outro protagonista da reforma penal proposta do X Congresso Internacional
de Direito Penal foi Marcello Gallo. Propôs o jurista italiano uma definição diversa
trabalhando, principalmente, na categoria de crimes de perigo concreto. Dentro dos
delitos que tradicionalmente eram tidos como de perigo concreto, deveriam
distinguir-se aqueles em que o delito é mera conduta daqueles em que é de
resultado194. Sobre a proposta teórica formulada por Gallo, Renato de Mello Jorge
Silveira preleciona:

Gallo, considerando que, dentro dos delitos que tradicionalmente se tinham


como de perigo concreto, deveriam distinguir-se aqueles casos em que o
delito é de mera conduta daqueles em que é de resultado, apresenta sua
tese. Assim, ainda que os primeiros casos normalmente se qualifiquem
como de perigo concreto enquanto os segundos exigem uma determinação
abstrata, necessária seria uma subdivisão em perigo concreto-concreto e
perigo concreto-abstrato. Em suma, o problema gravita não na inclusão do
elemento perigo do tipo objetivo, mas, sim, na maneira de se efetuar o juízo
sobre a concorrência ou não do perigo no fato da vida real que se pretende
proteger pela lei penal195.

2.2.2.3 Teses contemporâneas nos crimes de perigo abstrato

2.2.2.3.1 Wilhem Gallas e a periculosidade dos tipos penais

A necessidade de ser ajustado o conceito de crime de perigo abstrato à


realidade social cada vez mais complexa típica dessa era pós-industrial fez com que
novas idéias surgissem com o escopo de fornecer uma explicação mais lógica à
antiga teorização acerca dos crimes de perigo abstrato e, também,
simultaneamente, a fim de corresponder à demanda social pela contenção de riscos.
A tese antiga baseada na periculosidade abstrata formulada pelo legislador ao seu
belprazer não é mais admitida. A voluntas legislatoris deve sempre buscar atender
ideais caros ao Estado Democrático de Direito.
Wilhelm Gallas, partindo do mesmo ponto de Schröder, isto é, dos trabalhos
de Cramer, traçou os primeiros passos dessa moderna teorização da periculosidade
nos tipos penais. Primeiramente, sustenta haver nos crimes de perigo abstrato um

193
ROXIN, Claus. ARZT, Günther, TIEDEMANN, Klaus. Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual
Penal. Tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p.6.
194
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge da. Direito Penal Supra-Individual... p.100.
195
Idem, Ibidem.
83

desvalor na própria ação constituído por um comportamento considerado perigoso


diante de um determinado bem jurídico. Propõe Gallas que ao lado da perigosidade
genérica caminhe necessariamente o trabalho de um julgador a fim de que se
comprove que realmente subsiste o perigo196. Infrações anteriormente consideradas
por Schröder como perigo abstrato-concreto qualificar-se-iam segundo Gallas, muito
mais, como uma técnica legislativa de tipificação de um perigo. Acerca de alguns
casos especiais concebidos por Schröder como perigo abstrato-concreto, nos
ensinamentos de Gallas, deveriam ser considerados crimes de perigo concreto 197.
Em suma: a periculosidade genérica não serviria como motivo para o
legislador considerar um comportamento determinado digno de reprimenda penal.
Ao contrário, o trabalho do legislador servirá como fonte primária ao magistrado para
que no caso concreto possa o julgador verificar se haverá possibilidade de subsumir
o fato concreto ao tipo, de forma a aproximar na prática os conceitos de crimes de
perigo concreto e abstrato.
A partir de Wilhem Gallas fica estabelecida uma importante divisão do perigo,
isto é, a separação de situações em que são vislumbradas condutas de mera
atividade perigosa, em que se esgotaria o crime no desvalor da ação, daqueles
delitos de resultado perigoso, estes com base em um desvalor concreto de um
resultado.
Sobre as contribuições de Gallas198, Bottini sustenta que aquele construiu sua
teoria acerca dos delitos de perigo abstrato dentro de uma linha metodológica mais
ampla e agregadora de postulados do finalismo e do neokantismo, fato que
contribuiu de sobremaneira para a acolhida pelo professor da Universidade de São
Paulo de posicionamento de Gallas199.
É no contexto intermediário entre as teorias finalista e neokantista que Gallas
constrói seu conceito de tipicidade material. Aproximou-se Gallas, num primeiro
momento, da doutrina finalista ao buscar distanciamento de uma definição de injusto
fundada do desvalor do resultado sob uma ótica exclusivamente causal, uma vez
que o causalismo, segundo Gallas, enfrentaria grandes problemas na explicação da
punibilidade da tentativa. Punir a tentativa nesses casos configurar-se-ia

196
GALLAS, Wilhelm. Abstratke und Konkrete Gefährdung. Festschrift für Ernst Heinitz. Berlim, [s.e.], 1992.
apud SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual... p. 101.
197
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. op. cit., p. 101.
198
GALLAS, Wilhem. La teoria del delicto en su momento actual. Barcelona: Bosch, 1959.
199
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato...p. 148.
84

exclusivamente vedar comportamentos e seus atributos. Ao mesmo tempo Gallas


percebia a dificuldade de assentar exclusivamente a tipicidade no desvalor da ação,
porque tal posicionamento não justificaria algumas prescrições normativas como
aquela que prevê uma sanção mais elevada para a tentativa consumada. Constatou
Gallas, portanto, que a ação típica deveria ser considerada como um desvalor da
ação inicial passível da agregação de um desvalor adicional provocado pelo
resultado200.
Deve-se salientar que o desvalor da ação vai além do tipo formal, da simples
descrição legal da conduta proibida, devendo encontrar, segundo Gallas, amparo
num substrato material que ampare sua punição. Segundo Gallas, o desvalor da
ação deve-se pautar por um critério de reprovação ético-social do cometimento do
delito201. Os crimes de perigo abstrato, segundo esse doutrinador, não poderiam ser
confundidos com crimes de desobediência, mas, sim, deveriam ser considerados
crimes de perigo possível, isto é, aqueles delitos que teriam a periculosidade
analisada ex ante, diferentemente dos crimes de perigo concreto, em que a
periculosidade passa por uma avaliação ex post. Esta construção foi responsável
pela descoberta de um elemento que está presente na conduta, mas ao mesmo
tempo refere-se ao resultado: a periculosidade202.
A partir da doutrina de Gallas, a utilização do conceito de periculosidade
somada à importância ético-social do desvalor da ação passou a ser considerado
elemento central dos crimes de perigo abstrato203.

2.2.2.3.2 Teses dualista e monista nos crimes de perigo abstrato

A doutrina pós-finalista que fundamenta os delitos de perigo abstrato a partir


da periculosidade pode ser dividida entre os autores que aplicam a doutrina da
periculosidade de Gallas a todos os tipos penais de perigo abstrato, e aqueles que
restringem a exigência de periculosidade a apenas alguns preceitos normativos,
estes últimos denominam-se dualistas.

200
GALLAS, Wilhem. La teoría del delicto en su momento actual...pp. 50-55.
201
Idem, Ibidem.
202
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato... p.149.
203
Idem, Ibidem.
85

Sobre o tema, Mirentxu Corcoy Bidasolo aduz que o conceito de perigo


meramente normativo não é suficiente na atualidade e que os tipos de perigo
abstrato devem sempre levar em conta o aspecto axiológico da proibição:

A resultas de todo ello, para calificar una conducta peligrosa, desde una
perspectiva penal, habrá que verificar la probabilidad de lesión, en el caso
concreto, atendiendo a los bienes jurídico-penales potencialmente puestos en
peligro y el âmbito de actividad donde se desarrolla esa situación, y ello con
independencia de la posibilidad de evitación de la lesión por el autor. Dicha
situación de peligro opera como limite a la actuación incriminadora del
legislador: la legitimidad del castigo de conductas peligrosas está vinculada al
respeto a dichos limites axiológicos, pués sólo en la medida en que se
incriminen conductas com suficiente normatividad em abstracto se respetarán
los postulados del Estado del derecho, en particular, el principio de
204
intervención mínima y ultima ratio del derecho penal .

O juízo de periculosidade seria sempre realizado por uma análise ex ante que
levasse em consideração elementos relacionados ao contexto fático que envolve o
comportamento e, também, elementos estatísticos e probabilísticos que permitam
aferir o potencial lesivo da conduta. Silva Sánchez também é partidário da tese
monista que nega a possibilidade de se definir os delitos de perigo abstrato somente
com a presunção de perigo contida no próprio tipo205. Ao contrário, exige o
doutrinador espanhol a ocorrência de um injusto material revelado pela
periculosidade da conduta. Isso exigiria do intérprete, diante de um comportamento
conforme o tipo penal, um esforço para verificar a previsibilidade da causação do
dano. Uma resposta afirmativa a tal pergunta formaria o elemento indispensável
para a caracterização do tipo penal de perigo abstrato.
Na atualidade, segundo a visão delineada nesta dissertação, a discussão
entre monistas e dualistas deve ser superada. As duas teses defendem ao final a
mesma coisa: a impossibilidade de um normativismo sem limites, quer dizer, a
simples vontade do legislador figura insuficiente à possibilidade de construção de um
tipo penal de perigo asbtrato. A seguir, com a pormenorização da tese dualista,
verificar-se-á que as duas teorias encontram-se ligadas pelo princípio da intervenção
penal fragmentária e, também, pela manutenção da dignidade humana. Contudo,
defende-se aqui ser a teoria dualista mais apta para a contenção dos os riscos

204
CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Exigibilidad en el ámbito del conocimiento y control de riesgos. Revista
Catalana de Seguretat Pública. 13 v. 2003. p. 37.
205
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal... pp. 125 e ss.
86

sociais contemporâneos como faz, por exemplo, na tentativa da construção de tipos


penais de perigo abstrato por acumulação.
A cisão dos crimes de perigo abstrato em duas categorias distintas que
separem a necessidade de periculosidade ou não a depender do tipo penal,
defendendo, por exemplo, que a periculosidade possa ser relevante
independentemente do contexto fático que envolva sua prática, somente foi possível
a partir das lições de Schröder, já descrita linhas acima, quando da elaboração da
classificação crimes de perigo abstrato-concreto, em que a tipicidade deveria ser
verificada judicialmente a fim de pudesse ser comprovada no caso concreto a
situação de periculosidade.
Jürgen Wolter surge como um dos defensores da posição dualista acerca dos
crimes de perigo abstrato. Divide Wolter os delitos de perigo abstrato em próprios e
impróprios. Os primeiros seriam dirigidos às ações em massa, isto é, aquelas
condutas praticadas em setores de risco social onde a padronização o
comportamento se faz necessária como, por exemplo, o trânsito ou o comércio de
armamentos206. Nesse caso, o direito penal encontraria legitimidade para
intervenção a partir de um contexto de periculosidade geral causado a partir do
desvalor da ação. A periculosidade destes âmbitos de organização exige que a
norma penal tenha incidência sobre a simples realização da conduta. Com a
realização da conduta já restaria caracterizada a materialidade delitiva. Estes seriam
os crimes de perigo abstrato próprios.
Já os delitos de perigo abstrato impróprios necessitariam direção à proteção
de bens individuais, isto é, à esfera de interesse de cada cidadão. Nesse caso, o
crime de perigo abstrato impróprio seria composto pela conduta desvalorada e,
também, pela presença de um resultado primário, ou seja, a criação de um risco não
aceito e apto a provocar a lesão ao bem jurídico protegido pela norma – a
periculosidade.
Poder-se-ia questionar, portanto, qual a diferença na teoria de Wolter entre
crimes de perigo abstrato impróprios e crimes de perigo concreto. Segundo Wolter,
nos crimes de perigo concreto faz-se necessária, além do desvalor da ação e do
resultado primário aferível ex ante, a verificação de um resultado secundário

206
WOLTER, Jürgen. Objektive und personale Zurechnung von Verhalten, Gefhar und Verletzung in einem
funktionalen Straftatsystem. Berlim: Duncker & Humblot, 1981. apud MENDOZA BUERGO, Blanca. Limites
dogmáticos… p. 164. No mesmo sentido, BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato... p. 154
87

verificável ex post para a configuração completa do tipo penal. Já os crimes de


perigo abstrato impróprios necessitam somente de um juízo ex ante cumulado à
necessidade menos rigorosa do que se enxerga nos crimes de perigo concreto de
verificação de uma aceitável adequação à lesão de bens jurídicos, de forma muito
similar ao proposto por Schröder quando da teorização dos crimes de perigo
abstrato-concreto.
Roxin também é expoente da tese dualista. Afirma que os crimes de perigo
abstrato são legítimos, desde que o valor da ação indicada vise à proteção de bens
jurídicos, o que somente será possível nos casos em que a conduta perigosa
proibida esteja claramente descrita pela norma e que, também, seja nítida a
referência ao objetivo a ser tutelado pelo legislador 207. Roxin afirma que em alguns
casos a tipicidade da conduta pode ser verificada mesmo que diante de uma
situação fática real não seja possível verificar a lesão ou a ameaça de lesão
concreta a um bem jurídico. Cita como exemplo os casos da condução de veículo
alcoolizado (§ 316 do Strafgesetzbuch – StGB - ou Código Penal Alemão) ou traficar
narcóticos (§ 29I nº1 do Betäubungsmittelgesetz – BtMG - ou Lei de Drogas).
Nesses exemplos, os bens jurídicos protegidos (vida, integridade física, patrimônio e
até mesmo a saúde pública) apesar de não serem expressamente referidos no tipo
penal constituem verdadeiro motivo para criação do preceito penal. Não se exige,
segundo o doutrinador alemão, a produção de um resultado de lesão ao objeto
materialmente protegido. E tal fato não significa desapego do legislador à teoria do
bem jurídico. Pelo contrário: nesses casos o Direito Penal está a atuar por meio de
suas proibições com o objeto de assegurar valores fundamentais á vida em
sociedade e que independem da atuação concreta do conceito de periculosidade 208.
Assim expõe Roxin:

Ello és totalmente correcto en la medida en que el mantenimiento de valores


de la acción sirve para la protección de los bienes jurídicos a los que los
mismos se refieren. Solamente está vedada la protección de valores de la
acción y de la actitud interna flotantes, cuya lesión no tiene referencia
alguna a um bien jurídico209

A partir dos exemplos acima citados por Roxin, o direito penal operaria
também como um instrumento didático a fim de fortalecer as funções de prevenção
geral a fim de resguardar de bens individuais ou particulares e, principalmente, nos
207
ROXIN, Claus. Derecho Penal... p. 60.
208
Idem, Ibidem. p. 410 e ss
209
Idem, Ibidem. p. 407.
88

dias atuais, bens jurídicos transindividuais. É o que acontece, segundo Roxin, no


caso da criminalização de direção de veículo automotor sob o efeito de álcool,
exatamente, com a justificativa a partir do conteúdo preventivo-geral ou didático que
deve ser almejada pelo legislador, independentemente da aferição no caso concreto
da periculosidade pelo julgador.
Günther Jakobs, por seu turno, entende que os delitos de perigo abstrato
estão geralmente postos em sentido similar aos delitos de desobediência, o que
equivale a considerar que o sujeito deverá comportar-se de acordo com a norma
mesmo que no caso concreto esteja descartada a colocação em perigo 210. Isso
porque em uma sociedade complexa como a atual ao legislador e ao aplicador do
direito resta impossível a tarefa de observar todos os movimentos dos cidadãos a
fim de se verificar se o comportamento no caso concreto expôs ou não
individualmente alguém ao risco. Segundo Jakobs, em casos de crimes de perigo
abstrato o que se deseja proteger centralmente são os postulados normativos e para
tanto o legislador deverá descrever a configuração de comportamentos contrários à
norma e, com isso, o que se vai produzir descentralizadamente ficará reduzido à
simples verificação de em que caso se dá a configuração do comportamento
proibido. E nesse caso o legislador proibirá, por exemplo, por meio dos crimes de
perigo abstrato, a condução de veículo automotor sob influência de bebida alcoólica.
Trata-se da vedação de um comportamento previamente à irrupção de um dano,
tipificação esta plenamente legítima diante do cenário social moderno 211.
Jakobs denomina o modelo social atual de sociedade de anonímia 212, isto é,
uma sociedade que se possibilita cada vez mais os contatos relativamente anônimos
ou impessoais, isto é, contatos em que o que prepondera é o papel social
desempenhado pelos indivíduos, independentemente de suas características
pessoais213. Assim expõe o doutrinador alemão:

Por exemplo, todos sabemos qual papel desempenhar uma pessoa


qualquer com a qual outra esbarra num lugar isolado, a saber, que deve
comportar-se de acordo com as regras jurídicas, mas, além disso, não se

210
JAKOBS, Günther. Derecho Penal. Parte General. 2ª Ed. Madri, Marcial Pons, 1997. p. 210-212.
211
Idem. Ciência do Direito e Ciência do Direito Penal. Tradução Maurício Antonio Ribeiro Lopes. São Paulo:
Manole, 2003. pp. 33-34.
212
Idem. ¿ Cómo protege el Derecho Penal y qué es lo que protege? Contradicción y prevención; protección de
bienes jurídicos y protección de la vigencia de la norma. In JORGE YACOBUCCI, Guillermo (org.). Los
Desafios del Derecho Penal en el Siglo XXI. Libro em homenaje al Profesor Dr. Günther Jakobs. Lima: Ara
Editores, 2009. pp. 152-153.
213
Idem.. Ciência do Direito... p. 32.
89

sabe nada relevante sobre essa pessoa, vale dizer, fundamentalmente,


ignora-se se é propensa a agressões ou se procura manter um
comportamento pacífico, ou igualmente se diante dos riscos mostrar-se-á
mais retraída ou entusiástica, etc. Se a essa situação anônima se soma ao
fato de que os participantes dispõem de objetos perigosos, como acontece
no trânsito, então para a orientação não é suficiente que as normas penais
fixem por escrito somente os resultados desejados de uma ação. “Não
causar a morte, nem a perda da liberdade, nem a destruição da coisa, etc”.
Nem que, além disso, durante a experimentação do comportamento se
confie no sadio “entendimento humano das pessoas”, vale dizer, não é
suficiente que os postulados normativos se administrem, neste sentido, de
uma maneira descentralizada. A melhor forma de expressar claramente a
insuficiência da administração descentralizada das normas dá-se por meio
do paradigma do anônimo, cujo melhor exemplo dá-se nas relações de
trânsito: impetuosidades que alguns jovens condutores interpretam como
exercício estimulante mas inócuo das suas capacidades, outros classificam
como – no mínimo – condutas aptas a produzirem lesões, danos etc., e isso
se dá quer se tome o problema a partir de um simples descuido, ainda que
insignifcante, na condução em condições de segurança do veículo, até a
condução em estado de embriaguez (pronto para desmantelar-
se).Descentralizadamente, cada indivíduo pode experimentar impressões
muito distintas sobre o significado de um comportamento.
Em tais casos, o legislador costuma concretizar centralmente os postulados
normativos, e o faz de tal modo que ele mesmo descreve – também sem
mencionar de modo algum o resultado não desejado na ação – a
configuração dos comportamentos contrários à norma e, com isso, o que se
vai produzir descentralizadamente fica reduzido à simples verificação de em
214
que caso se dá tal configuração do comportamento .

Nesse modelo social complexo resta impossível reconhecer de forma


individualizada todas as possibilidades de existência ou não de riscos. O injusto
penal seria, então, exclusivamente formal e surgiria automaticamente quando
verificada a ocorrência do comportamento vedado visando a preservar a força
comunicativa do ordenamento e a garantir a vigência da norma. Nesse ponto Jakobs
faz uma advertência: a punição a um ataque a uma norma (também denominada de
instituição) unicamente se fundamenta quando a instituição seja, por sua parte,
legítima e quando não se encontrem equivalentes funcionais da pena menos
agressivos que esta. Para alcançar essa legitimidade, deve-se recorrer ao chamado
“espírito do tempo”, quer dizer, condições sociais vinculadas à cultura jurídica
próprio de um determinado tempo 215.
Um dos autores brasileiros reconhecidamente adepto da teoria dualista é Luís
Greco. Defende que os crimes de perigo abstrato não podem partir de fórmulas
mágicas ou de soluções globais em que se faz tormentosa a diferenciação entre

214
JAKOBS, Günther.Ciência do Direito...p. 34.
215
Idem. Danosidade social? Anotações sobre um problema teórico fundamental do direito penal. In SAAD-
DINIZ, Eduardo, POLAINO-ORTIZ, Miguel (org.). Teoria da Pena, Bem Jurídico e Imputação. São Paulo:
LiberArs, 2012. p. 103-104.
90

perigo abstrato legítimo e perigo abstrato ilegítimo 216. Propõe, portanto, uma solução
diferente: será preciso formular critérios de distinção um pouco mais complexos do
que uma postura baseada ou não aceitação global ou na rejeição total da figura dos
crimes de perigo abstrato217.
Baseando-se no trabalho de livre-docência de Wolfgang Wohlers218, Luís
Greco afirma ser necessário distinguir diferentes tipos de crimes de perigo abstrato
para ser possível a análise compartimentada de cada um.
O tema da divisão dos crimes de perigo abstrato em diferentes categorias
citada por Greco é alvo de análise, além do trabalho de livre- docência de Wohlers,
em texto intitulado Teoría del bien jurídico y estructura del delito – Sobre los critérios
de una imputación injusta – escrito pelo mesmo doutrinador, mas desta vez em
coautoria de Andrew von Hirsch219.
Segundo Hirsch e Wohlers, os crimes de perigo abstrato não constituem de
nenhuma maneira uma tipologia delitiva homogênea, mas sim um conjunto
heterogêneo de tipos penais com um potencial de risco completamente diferente 220.
Assim, partem os doutrinadores alemães em busca de uma nova classificação apta
a caracterizar cada uma dessas diferentes categorias de riscos relacionados ao tipo
de perigo abstrato. Distinguem os autores três subtipos delitivos dentro do tipo maior
de perigo abstrato: (i) delitos preparatórios (Vorbereitungsdelikte), (ii) delitos
cumulativos e, por fim, (iii) delitos de ação concretamente perigosa (konkrete
Gefährlichkeitsdelikte).
A primeira categoria (delitos preparatórios) pode ser compreendida quando se
deseja criminalizar condutas que mesmo sendo consideradas em si inócuas podem
servir de base para lesão a bens jurídicos. Por exemplo: o porte de armas. A priori, a
posse ou o porte de armas de fogo não significam ameaça direta a qualquer bem
jurídico, mas, nas lições de Hirsch e Wohlers, o porte poderá levar pessoas que
detenham as armas a realizar ofensas a bens jurídicos221. Guilherme Guedes

216
GRECO, Luís. Princípio da Ofensividade e crimes de perigo asbrato – uma introdução ao debate sobre o bem
jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 49, 12 v., 2004. pp. 89-147.
217
Idem, Ibidem.
218
WOHLERS, Wolfgang. Delikstypen des Präventionsstrafrechts – zur Dogmatik moderner
Gefährdungsdelikte. Berlim: Düncker & Humboldt, 1999.
219
HIRSCH, Andrew von. WOHLERS, Wolfgang. Teoría del bien jurídico y estructura del delito. Sobre los
critérios de una imputación injusta. In HEFENDEHL, Roland. La teoría del bien jurídico. ¿ Fundamento de
legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madri: Marcial Pons, 2007. pp. 285-308.
220
Idem, Ibidem. pp. 288-290.
221
Idem, Ibidem... pp. 290-291.
91

Raposo entende que podem existir situações específicas em que o legislador penal,
com o intuito de proteger de maneira mais efetiva um determinado interesse, resolva
optar por antecipar sua tutela a um momento prévio à existência de um perigo real,
criminalizando, pois, de forma autônoma, a prática de um ato de preparação 222. Essa
postura diverge daquela tradicionalmente aceita pela doutrina penal pátria em que
se afirma só apresentarem relevância jurídico-penal crimes consumados ou tentados
ao menos, pois fora daí, quando os atos fiquem apenas na intenção do agente ou
constituam mero ato de preparação para um agir delitivo, seus autores não
respondem penalmente223.
Os pontos centrais do debate acerca dos Vorbereitungsdelikte referem-se à
forma de intervenção penal antecipada e quais critérios a serem observados pelo
legislador penal a fim de que o autor de um ato prévio possa responder pela sua
conduta. Não será permitido ao legislador penalizar de forma autônoma todo e
qualquer ato preparatório sob o argumento de que de alguma maneira está a
proteger um bem jurídico, sob pena de se estar fazendo um juízo antecipatório ad
infinitum224. Algumas tentativas segundo Hirsch e Wohlers apontaram na direção de
impor limites aos delitos preparatórios com base no princípio da adequação social e
no princípio da confiança. Entretanto, esses parâmetros são demasiadamente
imprecisos e nada de concreto trazem à limitação da esfera de imputação 225.
Propõem os juristas alemãesque se atente ao fato de não haver qualquer interesse
legítimo a ser alcançado com aquela conduta preparatória quando as
ações/omissões posteriores não possam ser consideradas ilícitas. Além da
ilegalidade posterior, deve-se sopesar quais interesses em geral intentam ser
alcançados pela antecipação da tutela penal, isto é, se são legítimos ou não e, mais,
se estão integrados na vida moderna 226.
Já a segunda categoria – delitos cumulativos – é considerada penalmente
relevante pelo legislador, mesmo que individualmente não sejam consideradas
relevantes penalmente, porque caso sejam repetidos de forma generalizada, podem
provocar danos de conseqüências incontroláveis.

222
RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do Bem Jurídico e Estrutura do Delito. Porto Alegre: Nuria Fabris
Editora, 2011. pp. 179-180.
223
QUEIROZ, Paulo. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 227.
224
GRECO, Luís. Princípio da ofensividade... p. 122.
225
HIRSCH, Andrew von. WOHLERS, Wolfgang. Teoría del bien jurídico... p. 285 e 293.
226
Idem, Ibidem. pp. 293-294.
92

Hirsch e Wohlers conceituam os delitos por acumulação como aqueles em


que a conduta isolada em questão somente poderá significar ameaças juridicamente
relevantes quando produzidos de forma acumulada. En los delitos cumulativos se
plantea si las conductas que sólo pueden conducir a daños acumulándose con otras
conductas pueden considerarse un injusto merecedor de pena 227. Neste caso, cada
autor contribui de forma pequena para a produção maior e o conjunto de ações é
que configura um prejuízo relevante. Sobre os delitos cumulativos, Hirsch e Wohlres
sustentam:

Delitos cumulativos: conductas que por si solas no pueden menoscabar o


no en una medida relevante un interés protegido juridicamente, pero que
unidas a otras realizadas en la misma dirección pueden conducir a un
menoscabo. El ámbito principal de aplicación de este tipo de delitos es la
proteccción de intereses supraindividuales (colectivos), en los que incluso
constituye el verdadero prototipo de tipo penal. Ejemplos de el son, por un
lado, los tipo penales de proteccíon de los medios naturales (§§ 324 y ss.
StGB). Si se considera como bien jurídico protegido el aseguramiento de los
medios naturales necesarios para la supervivencia de la humanidad,
conductas como verter basura en las aguas sólo pueden conducir a
menoscabos jurídicamente relevantes cuando un número significativo de
personas se comporte de esa manera. Esto mismo es aplicable a los tipos
penales dirigidos a la protección de determinadas instituciones estatales o
funciones sociales: exceptuando megainfracciones mas bien poco realistas
(HEFENDEHL), los particulares en absoluto pueden cuestionar su
capacidad de funcionamiento; también aquí los menoscabos relevantes
presuponen una adición de las infracciones correspondientes228.

Para Hirsch e Wohlers, em que pese crítica doutrinária contrária aos delitos
cumulativos segundo a qual se estaria imputando um resultado lesivo de uma
conduta praticada por outrem o fundamento encontrado para a legitimação desta
categoria reside no fato de a vida social possuir ao mesmo tempo direito e deveres,
ou seja, algumas condutas devem ser adotadas por todos os cidadãos a fim de que
sejam evitadas conseqüências trágicas para a sociedade. Não se trata de uma
responsabilidade objetiva, mas, sim, e um dever de cooperação. Todos devem
cooperar para a manutenção e garantia dos bens coletivos necessários à existência
e á funcionalidade social, existindo um dever geral de cooperação (duty of
cooperation).

Para los miembros de una sociedad organizada estatalmente, los deberes


jurídicos individuales no se limitan al mero respeto del naminem laede, sino

227
Idem, Ibidem. p. 299.
228
HIRSCH, Andrew von. WOHLERS, Wolfgang. Teoría del bien jurídico...p. 288.
93

que incluyen además la obligación de colaborar para garantizar el estado en


229
el que cada uno puede recibir lo suyo (suum cuique tribuere) .

Os delitos cumulativos diferenciam-se dos preparatórios, pois nestes últimos o


resultado lesivo futuro que se pretende evitar é causado basicamente por uma
conduta posterior relativamente autônoma em relação à ação inicialmente praticada,
enquanto no caso dos delitos por acumulação o dano advém de um somatório de
ações realizadas em um mesmo sentido. A técnica de vedação a condutas
cumuladas visa, geralmente, à proteção de bens jurídicos coletivos, por exemplo o
meio ambiente, que dificilmente, dada sua magnitude, poderiam ser afetados
significativamente por um único comportamento humano, a ordem tributária e etc.
A legitimação dos delitos por acumulação encontra dois fundamentos: (i)
pode-se legitimar a ameaça e, também, a imposição de uma sanção penal como
forma de se intentar o restabelecimento da norma vulnerada que vedava
inicialmente determinado comportamento com vistas à impedir a acumulação de
resultados e (ii) a intromissão estatal por meio da ameaça da pena e, também, pela
sanção criminal dar-se-á em razão da limitação do âmbito de liberdade do autor da
conduta quando esta liberdade ponha em risco direitos fundamentais de outros
cidadãos, desde que tal juízo de ameaça ocorre de forma razoável desde o ponto de
vista social e, ainda, encontra proporcionalidade na sanção aplicada.
A necessidade de limitação da pena aos casos em que a produção de efeitos
ocorra de forma realista de dá a partir de uma consideração óbvia que praticamente
toda a conduta levada a cabo por um número suficientemente grande de pessoas
tenderia a gerar conseqüências indesejáveis. Por exemplo: uma pessoa que passeia
pela rua cantando não trará problemas maiores; entretanto, se milhares de pessoas
resolvessem sair às ruas no centro de uma metrópole simultaneamente cantando tal
fato, provavelmente, inviabilizaria uma série de outras condutas, tais como falar ao
telefone ou ouvir um sinal sonoro de um apito de guarda de trânsito. Ora, a partir
desse exemplo de Hirsch e Wohler poder-se-ia considerar as condutas dos
transeuntes ofensivas à ordem pública230. No entanto, na prática, em muitos poucos
casos poder-se-ia verificar situação similar a esta. Assim, o legislador não precisará
se preocupar com situações que não pareçam de ocorrência factível.

229
Idem, Ibidem… p. 300.
230
HIRSCH, Andrew von. WOHLERS, Wolfgang. La teoría del bien jurídico... p. 301.
94

Outra limitação imposta aos delitos cumulativos é a produção de efeitos


acumulados relevantes, ou seja, as condutas vedadas quanto produzidas poderiam
se dar com vistas à ruptura do chamado dique de contenção que ao final poderia se
conduzir a resultados catasfróficos reconhecidos. Ressaltam Hirsch e Wohlers que
não existem conhecimento científico exato hábil a confirmar ou contradizer essa
presunção baseada na “ruptura do dique de contenção” 231. Advertem que uma
postura futurista/abstrata poderia ensejar a criminalização de interesses ínfimos ou
que em último plano poderia legitimar uma intervenção penal quase arbitrária e que,
por fim, poderia se legitimar a proibição de várias técnicas produtivas hodiernas,
uma vez que todas elas, de alguma maneira, estariam aptas a afetar bens jurídicos.
Propõem Hirsch e Wohlers que os delitos de acumulação só poderão ser
considerados como tais quando puder se provar algo mais que a simples exposição,
mas sim uma probabilidade lógica baseada em indícios e, ainda, puder intentar-se o
esboço de um mecanismo penal atrelado às teorias psicológicas e das ciências
sociais.
A terceira e última classificação de delitos de perigo abstrato proposta por
Wohlers refere-se aos delitos de ação concretamente perigosa (konkrete
Gefährlichkeitsdelikte). São os tipos que proíbem uma ação que levará a uma
situação não mais controlável pelo agente e, portanto, perigosa para o bem
jurídico232. Os crimes de perigosidade concreta são aqueles em que a ação penal
tipificada por si só já figura como apta a causar um dano ou uma situação de perigo
real ao bem jurídico independentemente da superveniência de outra ação
humana 233.
Para Hirsch e Wohlers, por mais que se intente estabelecer deveres
específicos a casos concretos, inevitavelmente, deverá o legislador, em virtude de
ter de regular situações da vida infinitamente variáveis, valer-se de normas gerais
vinculantes tendo como parâmetro “una persona estándar inexistente en la vida real
tanto respecto a la definicón de los respectivos interesses afectados como también
respecto a la importancia de los eventuales de estos intereses234”.
A situação em que um motorista com uma quantidade de álcool no sangue
superior ao limite permitido por lei, mesmo que tal condutor seja extremamente

231
Idem, Ibidem. p. 302
232
GRECO, Luís. Princípio da ofensividade... p. 121.
233
RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico... p. 193.
234
HIRSCH, Andrew von. WOHLERS, Wolfgang. La teoría del bien jurídico... p. 306.
95

capaz de guiar o veículo sem acarretar riscos, enquadra-se nesse ponto de “homem
parâmetro” defendido por Hirsch e Wohlers. O argumento favorável a essa
padronização baseia-se no fato de a segurança viária massiva não poder-se pautar
de forma suficientemente segura a partir da tolerância individual de cada
condutor235.

Un ejemplo de ellas son las conducciones bajo los efectos de bebidas


alcohólicas (§ 316d StGB). Los perigos procedentes de um conductor no
apto para conducir no pueden ser controlados ni por él mismo – si no, no
sería no apto para conducir -, ni por participantes del tráfico. Como se trata
de peligros para la vida y la integridad física de terceros y no es evidente
com qué intereses que deban reconocerse, teniendo em cuenta la
comprensión normativa de la sociedad, como de un valor cuando menos
comparable debería argumentarse para la ejecución de tales conductas
peligrosas, no puede dudarse de la legitimidad de los tipos penales
correspondientes236.

A partir da doutrina de Hirsch e Wohlers consegue extrair três requisitos


cumulativos a serem observados pelo legislador por ocasião da criminalização de
ações de perigosidade concreta. São elas: (i) criação de um dano relevante ao bem
jurídico tutelado. Quer dizer, para que uma conduta seja proibida deve o legislador
aferir a partir de dados empíricos e técnicos existentes se a conduta proibida
encontra-se ultrapassando o limite que é tradicionalmente tolerado pelos
cidadãos237; (ii) a relevância do bem jurídico tutelado para o indivíduo e para a
sociedade. Não será aceitável criminalizar condutas cuja única função seria facilitar
o cumprimento de uma função administrativa; (iii) por fim, a transindividualidade dos
riscos criados pelo comportamento perigoso. Pressupõe que os riscos criados a
bens jurídicos essenciais não podem ser mantidos sob o controle do agente de
forma suficientemente segura e, também, não podem ser compensados por atitudes
de terceiros.
As recentes mudanças do Direito Penal tendo como ponto de partida a
sociedade de risco propõem novas formas de relacionamento humano mediatizadas
por tecnologias antes inimagináveis. Essa alteração dos padrões humanos de
atividades cria a contradição que sustenta o argumento da ineficiência do sistema

235
Em sentido contrário a esse modelo ideal de homem, Juarez Cirino dos Santos argumenta que o grande
problema desse modelo paradigmático reside na dificuldade em se definir o modelo adequado e que, em geral,
tal modelo acaba sendo influenciado de forma excessiva pela vontade do legislador ou, em último grau, pelo
julgador (nos casos de delitos imprudentes). Deve-se lembrar como é vaga a expressão “em condições normais”.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral... pp172-173.
236
HIRSCH, Andrew von. WOHLERS, Wolfgang. La teoría dek bien jurídico.,... p. 307-308.
237
HIRSCH, Andrew von. WOHLERS, Wolfgang. La teoría del bien jurídico... p. 308.
96

penal na atualidade preocupado em lidar não apenas com o antigo padrão de


criminalidade, mas, também, com novos padrões de existência delitiva. Todavia, a
atuação penal deve conhecer limites. Desta maneira, torna-se fundamental
identificar os critérios que o legislador penal poderá utilizar para proibir a prática de
condutas em si potencialmente perigosas sem que isso signifique a interferência
ilegítima na liberdade individual, tudo isso atendendo as necessidades da vida
moderna238.
Alamiro Velludo Salvador Netto mostra-se favorável e conformado com o que
denomina criminalização difusa moderna. Segundo o professor da Universidade de
São Paulo, tais mudanças na dogmática e na política criminal traduzidas por bens
jurídicos transindividuais e crimes de perigo abstrato possuem a capacidade de
tentar garantir o desenvolvimento social de modo determinado e sob um aspecto
gerenciado239.
A missão de compatibilizar as modernas necessidades sociais de contenção
de riscos não é fácil. Conhecer o direito penal seus novos limites para a proteção de
bens jurídicos (tradicionais, isto é, individuais e, também, transindividuais) ainda é
tarefa que necessita de desenvolvimento. Certo é que não se poderá renegar o
princípio da dignidade humana, bem como demais princípios caros ao ideal de
Estado Democrático de Direito.
Com certo pessimismo acerca da nova fase do direito penal, Juarez Tavares
mostra-se contrário às proposições de Wohler e Hirsch. Segundo o professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como pano de fundo de toda a
proposição dos doutrinadores alemães, encontra-se a função desse novo direito
penal na sociedade pós-moderna consoante os ditames do sistema capitalista pós-
industrial, sistema este que alijou os indivíduos das relações materiais,
transformando-os em simples elementos funcionais de comunicação, arremata
Tavares. Tal postura dogmática defendida por Hirsch e Wohlers resultará, segundo
Tavares, em um direito penal exclusivamente dotado de um caráter simbólico e que
não se mantém fiel à proteção da dignidade humana 240.

238
RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico...p. 194.
239
SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade Penal e Sociedade de Risco. São Paulo: Quartier Latin,
2006. p. 122.
240
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Bien Jurídico y función en Derecho penal. Tradução Monica Cuñarro.
Buenos Aires: Hamurabi, 2004. pp. 60-63.
97

Em que pese a doutrina do professor brasileiro acima citado, não é sua


posição comungada na presente dissertação. É fato que o modelo de relações
sociais tranformou-se nas últimas décadas e, também, que o modelo individualista
exacerbado deteriorou boa parte dos mecanismos de controle social informais, como
a igreja, a família e os centros comunitários. Paradoxalmente, vive-se num mundo
de massas atomizadas, quer dizer, uma sociedade marcada por situações
existenciais individuais que raramente se comunicam. Além disso, a sociedade de
risco continua sem conseguir lidar com o problema da miséria, da pobreza e da
exclusão social, principalmente, nos países periféricos. A desigualdade social
equivale a uma desigualdade na exposição aos riscos. Basta ver, por exemplo, as
imagens dos desastres naturais nos últimos anos em que claramente os pobres
foram os mais prejudicados. Basta pensar, por exemplo, a tutela penal do meio
ambiente. Manter a estrutura tradicionalmente proposta na matriz individualista é
desconsiderar que por mais de duzentos anos os ideais das revoluções burguesas
pautaram o direito penal. Claro que avanços foram vistos, por exemplo, os princípios
tradicionalmente elencados (legalidade, subsidiariedade, etc). No entanto, deixar o
direito penal alheio à evolução da teoria sociológica e, também, de outros ramos do
Direito como o direito constitucional e os microssistemas jurídicos não é uma boa
opção para manutenção saudável da sociedade. Ao direito penal não está conferida
a possibilidade de escusar-se de cumprir sua missão de proteção de bens jurídicos e
manutenção da qualidade mínima necessária à vida em sociedade.241.
Para isso, necessários são novos instrumentos teóricos. O direito penal ligado
ao Estado Democrático de Direito limita-se à proteção de bens necessários á vida
humana242. A norma penal somente estará autorizada a agir quando houver uma
violação de bens jurídicos fundamentais243. O direito penal será o último recurso do
Estado para promover o controle social. Se a sanção penal é uma medida de
restrição à dignidade humana; logo, sua utilização será legítima apenas quando
existam condutas que atentem contra esta mesma dignidade244.
Sobre o momento de hipertrofia penal, pode-se sustentar com base nas lições
de Bottini que, na atualidade, os tipos penais de perigo abstrato multiplicaram-se a

241
DIEZ RIPOLLÉS, José Luis. A Racionalidade das Leis Penais. Teoria e Prática. Tradução Luiz Regis Prado.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. pp. 92 e ss.
242
Sobre o princípio da lesividade consultar LUISI, Luiz. Os Princípios Penais Constitucionais. 2ª Ed. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
243
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. Barcelona: Bosch, 1982. pp. 60 e ss.
244
BOTTINI, Pierpalo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato... p. 206.
98

fim de tentar apaziguar a população e demonstrar socialmente a capacidade de


reação do Estado frente aos novos riscos. É uma disputa pela recuperação da
legitimidade perdida diante da incapacidade de compreender e regulamentar a
produção de riscos. Contudo, não se pode considerar legítima a tipificação de
condutas que não se mostrem aptas, ao menos, potencialmente, a lesionar ou a
colocar em perigos bens jurídicos.
Afirmar que o Direito Penal próprio de um Estado Democrático de Direito
limita-se à proteção de bens jurídicos necessários à dignidade da pessoa humana
passa, inclusive, pela vedação da proteção deficiente e, também, pela
impossibilidade de excessos. É preciso aceitar o papel subsidiário do direito penal,
bem mostrar-se apto a promover o controle social sempre que este relacionar-se à
manutenção da dignidade humana e, também, seja o último recurso disponível ao
Estado. Em nenhum momento, estas afirmações por si mesmas mostram-se
incompatíveis com os crimes de perigo abstrato ou com os bens jurídicos
transindividuais, conforme proposto por Tavares. O ponto nodal é utilizar esses
novos instrumentos com o fito de preservação da dignidade humana e dos ideais de
um Estado Democrático de Direito.
99

3 TEORIA DO BEM JURÍDICO-PENAL

3.1 Primórdios: a influência filosófica

O conceito de bem – do latim bonum – é multifacetado, isto é, pode ser


estudado com base em diferentes prismas tais como o filosófico245 e o jurídico. A
partir do referencial jurídico - predominante neste trabalho - o bem passa a ser
compreendido a partir de uma divisão tricotômica, isto é, conforme a semântica246, a
definição ideal e, por fim, a definição real 247. Esta última definição faz referência à
relação do bem com o mundo fenomênico do ser, ou seja, o bem passa a ser
entendido enquanto entidade autônoma ligada ao mundo fatos e, a posteriori, ao ser
apropriado pelo Direito, deve no ordenamento jurídico encontrar previsão à proteção.
Influenciando a realidade, a definição real (majoritária para a doutrina jurídica)
considera bem é tudo aquilo que agrada ao homem. Por exemplo, dinheiro, casa,
herança e, até mesmo, a integridade física e a moral248.
Os bens da vida quando submetidos à tutela jurídica originam bens jurídicos,
tornando-se ponto de referência para determinado interesse humano sobre o qual
incidirá uma situação jurídica relacionada a um titular que se valerá do direito para
assegurá-lo249.
Cumpre destacar ser o bem jurídico um conceito amplo e utilizado não
somente no direito penal, mas, também é utilizado em outros ramos do direito250.
Sobre a importância do bem jurídico para o direito penal, Luiz Regis Prado
argumenta que o bem jurídico é capaz de transmitir uma base empírica e de vínculo
com a realidade, ligando objeto e sujeito. Segundo Prado, “sem a presença de um
bem jurídico de proteção prevista no preceito punitivo, o próprio direito penal, além

245
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 116: “bem é, em geral,
tudo o que possui valor, preço, dignidade, a qualquer título. Na verdade, bem na linguagem moderna é a palavra
tradicional para indicar o que na linguagem moderna se chama valor. Um bem é um livro, um cavalo, um
instrumento, qualquer coisa que se possa vender ou comprar. Um bem também é a virtude humana, a dignidade,
o decoro, uma ação virtuosa ou um comportamento aprovado.”
246
Segundo o dicionário Michaelis, bem é tudo o que é bom ou conforme a moral. Benefício. Virtude. Proveito,
utilidade. Disponível em <http://michaelis.uol.com.br>. Acesso em 20/05/2013.
247
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 4ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2009. p. 17.
248
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 23ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010. p.
343.
249
TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 92.
250
Ver, por exemplo, JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva,
2010. p. 1044.
100

de resultar materialmente injusto e ético-socialmente intolerável, careceria de


sentido como tal ordem de direito251”.
Segundo Gustavo Tepedino, Heloísa Barboza e Maria Celina Bodin de
Moraes, para a ciência jurídica, o conceito de bem é erguido a partir do viés
histórico-relativo. Histórico porque a idéia de utilidade detém significado variável de
acordo com as diversas épocas da cultura humana. Relativo pois a variabilidade é
apurada em face das necessidades diversas pelas quais passa o homem. Nos
primórdios da humanidade, as necessidades eram puramente vitais respeitantes à
defesa e à sobrevivência do indivíduo e/ou do grupo. As coisas (res) úteis e
apropriáveis ligavam-se à vida orgânica e material dos homens. Com a evolução da
espécie humana e o desenvolvimento da vida espiritual expresso na arte, na ciência,
na religião e na cultura surgiram novas exigências que acarretam uma alteração
quanto à noção de bem a ter sentido diverso do primitivo alcançando, assim, um
sentido mais amplo, complexo e exigente a partir a nova gama de relações humanas
que ganhavam espaço252.
Na atualidade, a doutrina jurídica conceitua bem como tudo aquilo que tem
valor para o ser humano, isto é, o elemento que possui utilidade sob qualquer
aspecto. Seria, pois, o objeto de aprovação ou de satisfação em qualquer ordem de
finalidade sendo favoravelmente útil à vida humana 253.
Fortemente relacionado ao conceito de bem e muitas vezes passível de
confusão existe outro elemento: a utilidade. Por utilidade entende-se a qualidade
que tem o objeto para a satisfação das necessidades humanas. O que é um bem,
por ser útil, é útil enquanto um bem, já dizia Ulpiano254. Quer significar, então, que a
utilidade é um atributo inseparável do conceito de bem. Já interesse, por seu turno,
filosoficamente, aponta-se como conceito distinto. Interesse para a filosofia significa
uma relação subjetiva entre indivíduo e determinado bem. Interesse significa,
portanto, o juízo emitido pelo sujeito acerca da necessidade sobre determinada
utilidade, uma avaliação sobre o valor de um objeto para a satisfação de uma

251
PRADO, Luiz Regis. op. cit.,... p. 18.
252
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil
Interpretado conforme a Constituição. Volume I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 171.
253
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. No mesmo sentido:
CALIXTO, Marcelo Junqueira. Dos bens. In A parte geral do Novo Código Civil na perspectiva civil-
constitucional. TEPEDINO, Gustavo (coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
254
AMARAL, Franciso. op. cit. pp. 309-310..
101

necessidade255. Plácido da Silva, citado por Rodolfo de Camargo Mancuso, define


que o interesse, em sua acepção jurídica, revela a existência de uma “intimidade de
relações entre pessoas e coisas, de modo que aquela tem sobre estas poderes,
direitos e vantagens, faculdades ou prerrogativas.” A expressão interesse (jurídico)
deteria, assim, como referencial uma situação centrada em determinado valor
inscrito pela norma256.
Na história da filosofia, duas correntes foram responsáveis pelo
desenvolvimento da noção de bem. A primeira, de matriz platônica, situa o bem
como uma realidade desejável, perfeita ou suprema. É também intitulada de vertente
metafísica. Há de ser destacado que Platão não escrevera propriamente um diálogo
sobre bem, mas dele fizera referência em algumas passagens de A República.
Abaixo segue transcrição de trecho de A República contido em obra de James
Paviani257:

Quem não for capaz de definir com palavras a idéia de bem, separando-a
de todas as outras, e, como se estivesse numa batalha, exaurindo todas as
refutações, esforçando-se para dar provas, não através do que parece, mas
do que é, avançar através de todas essas objeções com um raciocínio
infalível, não dirás que uma pessoa nestas condições conhece o bem em si,
nem qualquer outro bem, mas, se acaso toma contato com alguma imagem
é pela opinião, e não pela ciência que agarra nela, e que a sua vida atual a
passa a sonhar e a dormir, pois, antes de despertar dela aqui, primeiro
descerá a Hades para lá cair num sono completo?

A passagem de Platão traduz uma dificuldade geral para a filosofia da época:


a definição de bem para os filósofos antigos ligada à definição de bem contida em A
República delineia uma noção estritamente relacionada ao objeto necessário à
satisfação das necessidades humanas relacionando, sempre, bem e o ideal de
justiça258. Esta, aliás, foi a principal contribuição do conceito metafísico.. Segundo
Abbagnano, a contribuição platônica confere verdade aos objetos cognoscíveis e ao
homem o poder de conhecê-los259.
Uma segunda acepção filosófica acerca do conceito de bem tem origem em
Aristóteles. Apesar de imperfeita a noção anteriormente idealizada por Platão,

255
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... p. 18.
256
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos. Conceito e Legitimação para agir. 7ª Ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 24
257
PAVIANI, James. A idéia de bem em Platão. Revista Conjectura. 17 v , 2012. p. 70.
258
GHIRALDELLI JUNIOR, Paulo. História Essencial da Filosofia. Volume 1. São Paulo: Universo dos Livros
Editora, 2009. p. 60 e ss
259
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário... p. 116.
102

sustenta Aristóteles que aquela é justa e útil ao conectar os termos bem e


necessidade. Contudo, para Aristóteles, o conceito de bem é formado em torno de
noções mais amplas que a necessidade humana tais como a felicidade e a atividade
racional da alma. Por isso, não considerou Aristóteles, como fez Platão, que a noção
de bem deveria estar situada numa realidade transcendente inspirada num ideal tão
distante quanto a justiça260. Aristóteles, nas primeiras linhas de Ética a Nicômaco,
afirma que o bem é tudo aquilo a que todas as coisas visam. Todas as ações, a arte,
a técnica, a investigação em geral, enfim, todo o objetivo visa a algum bem. Ação
esta sempre influenciada pela finalidade de satisfazer os anseios da alma 261.
Em que pese a riqueza de abordagens filosóficas sobre o tema, em razão de
ser a presente dissertação um trabalho jurídico, optou-se com trazer os
ensinamentos filosóficos como elementos de apoio ao conceito jurídico de bem,
prestigiando a importância da interconexão entre os ramos filosófico e jurídico das
ciências humanas, eis que o bem mostra-se como um referencial capaz de atribuir
ao convívio humano uma idéia de realidade desejável, de um fim a ser alcançado,
finalidade esta também presente no direito. Para o direito, o conceito jurídico de bem
é o conteúdo das relações sociais que possuem utilidade aos seres humanos e que
sejam, também, apropriadas pela própria ordem jurídica. Neste ponto, os teóricos do
direito mostraram-se sabeis quando fizeram de um conceito tão abstrato e
originariamente pertencente à filosofia um ponto de referência para ciência do direito
e, mais, difundir o conceito de bem jurídico a vários campos das ciências jurídicas,
tornando-o um conceito comum, independentemente da se estar a discorrer sobre
Direito Penal, Direito Civil, Direito Ambiental, etc 262.

3.2 A evolução histórica do bem jurídico no Direito Penal

3.2.1 A influência do Iluminismo em Feuerbach: a ofensa ao direito subjetivo

Antes de se passar à análise das contribuições de Paul Johann Anselm von


Feurbach ao desenvolvimento da teoria do bem jurídico-penal, faz-se mister breves
comentários acerca do momento histórico na segunda metade do século XVIII na
Europa. O fenômeno jurídico ao longo das eras serve a um propósito claro:

260
PAVIANI, James. A ideia de bem em Platão.,... p. 72.
261
GHIRALDELLI JUNIOR, Paulo. História Essencial da Filosofia... pp. 80 e ss.
262
Sobre a relação direito e filosofia consultar KAUFMANN, Arthur. HASSEMER, Windfried. Introdução à
Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de
Oliveira. Lisboa [Portugal]: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
103

acompanhar os movimentos sociais, traduzindo-os em princípios, regras ou demais


mandamentos úteis à estabilização das relações sociais. Sobre a contribuição do
Direito às relações sociais, Louis Assier-Andrieu aduz, parafraseando Augusto
Comte, que nenhuma sociedade poderá existir sem o respeito concedido a certas
noções fundamentais estabelecidas pela Ordem Jurídica263.
O Iluminismo 264 (ou a Era da Razão) surgiu a partir de um ambiente
intelectual revolucionado com as descobertas científicas relativas à física e à
matemática como, por exemplo, aquelas que comprovaram que universo estava em
constante movimento e que a Terra não ocupava lugar central no cosmos.
Bertrand Russell define o Iluminismo como um momento de revalorização da
atividade intelectual humana que pretendia, por meio de grandes escritores e
cientistas, levar à humanidade conhecimentos científicos hábeis a contornar o
extenso período de ignorância determinista influenciada pela Igreja Católica 265.
Uma das características gerais da Idade Moderna européia foi a progressiva
perda de autoridade da Igreja e uma crescente valorização da autoridade científica.
Enquanto no passado muitos fatos eram aceitos com base na autoridade da
religiosidade, a partir da segunda metade do século XVIII, o trabalho científico
assume papel de relevo passando a ocupar posição central na vida social. Assim
como ocorrera na esfera da religião com o protestantismo lançando a idéia de que
cada um deveria julgar por si, no campo científico, os homens deveriam observar a
natureza em vez de confiar cegamente naqueles que pronunciavam doutrinas
míticas há muito estabelecidas.
Segundo Lorenzo Morillas Cueva, duas correntes principais influenciaram o
Iluminismo: o racionalismo cartesiano e o empirismo inglês. Sobre tais contribuições
expõe o catedrático da Universidade de Granada:

La primera [racionalismo cartesiano] da lugar a un abstracismo moral de


carácter axiomático, mientras la segunda converge en uma moral epicúrea e
individualista. Moralismo abstracto y utilitarismo son los dos motivos
dominantes de toda la filosofía social del iluminismo, en la que permanecen

263
ASSIER-ANDRIEU, Louis. O Direito nas Sociedades Humanas. Tradução Maria Ermantina Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2000. p.15.
264
Movimento cultural da elite intelectual européia que procurava mobilizar o conceito de razão, a fim de
reformar a sociedade e o conhecimento prévio. Promovia o intercâmbio cultural e, também, questionava a
intolerância e as arbitrariedades do Estado e da Igreja.
265
RUSSELL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental. A aventura das ideias dos pré-socráticos a
Wittgenstein. Tradução Laura Alves e Aurélio Ribeiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001... p. 330.
104

desunidos y en oposición pero frecuentemente coexistiendo y


confundiéndose en uma ideología contradictoria.
Este bifronte contenido iluminista incide en el terreno jurídico con uma
especial fisionomía que da lugar por una parte a las tesis contractualistas y
de otra a los iusnaturalistas. El contractualismo es la consecuencia más
lógica y coherente del empirismo individualista y la afirmación más explícita
de su utilitarismo. El iusnaturalismo, por contra, es la afirmación de un
Derecho ideal de carácter racional y Divino, la fe en una justicia eterna a
cuya racionalidad evidente hay que someterse; es el reconocimiento, en
suma, de um Derecho enteramente transcendente e Independiente de todo
humano querer. Ambos se presentan unidos con el carácter de
266
antihistoricidad .

Cumpre destacar que esse cenário então recente de relações entre Estado
(novo) e Igreja (antiga) mostrava-se contraditório, eis que seus soberanos ainda
mantinham a afirmação do poder real baseada nos direitos divinos não combinando,
portanto, com livre expressão de opiniões sobre a religião e com o afastamento do
regime clerical.
O ilícito penal em período pretérito ao Iluminismo definia-se em suas
dimensões teológica e/ou privada267. No cenário anterior à Ilustração, o crime era
considerado um atentado à divindade ou lesa-majestade. O delito figurava, antes de
tudo, como um pecado e as penas usualmente aplicadas significavam a expulsão, a
eliminação (morte) ou o sacrifício à divindade do infrator e, ainda, as penas eram
consideradas como respostas necessárias à expiação e ao pagamento dos
pecados268. Já na filosofia penal iluminista o problema punitivo desvinculava-se das
concepções religiosas269. O delito passou a encontrar sua razão de existência a
partir do postulado baseado na violação do contrato social270. As concepções penais
sustentadas em postulados iluministas mostravam-se incompatíveis com as leis

266
MORILLAS CUEVAS, Lorenzo. Metodologia y Ciencia Penal. Granada: Universidad de Granada, 1990. pp.
53-54.
267
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... p. 23
268
ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – volume 1.
8ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. pp. 108 e ss.
269
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução Paulo Machado Oliveira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011.pp. 19-20. Sobre o tema religiosidade e Direito Penal, Beccaria aduz: “a justiça divina e a justiça
natural são, por sua essência, constantes e invariáveis, porque as relações existentes entre dois objetos da mesma
natureza não podem mudar nunca. Mas a justiça humana, ou, se se quiser, a justiça política, não sendo mais do
que uma relação estabelecida entre uma ação e o estado variável da sociedade, também pode variar, à medida
que essa ação se torne vantajosa ou necessária ao estado social. Só se pode determinar bem a natureza dessa
justiça examinando com atenção as relações complicadas das inconstantes combinações que governam os
homens. Se todos esses princípios, essencialmente distintos, chegam a confundir-se, já não é possível raciocinar
com clareza sobre os assuntos políticos. Cabe aos teólogos estabelecer os limites dos justo e do injusto, segundo
a maldade ou a bondade interiores da ação. Ao publicista cabe determinar tais limites em política, isto é, sob as
relações do bem e do mal que a ação possa fazer à sociedade”.
270
ROUSSEAU, Jean-jacques. Do contrato social – Princípios do Direito Político. São Paulo: Edipro, 2011. A
primeira edição da obra data de 1762.
105

vigentes à época, carecendo, portanto, de uma profunda alteração nos


ordenamentos jurídicos vigentes.
No século XVIII as mudanças necessárias começaram a ocorrer. Neste
cenário figura de destaque é Cesare Bonesana ou o Marquês de Beccaria (1738-
1794). Em sua principal obra, Dos delitos e das penas, editada em 1764, Beccaria
apresenta uma nova proposta político-criminal de abrandamento e de racionalidade
das leis penais. Entendia o Marquês que as penas deveriam ser proporcionais ao
dano social causado. Refutava, ainda, diretamente, a crueldade das sanções, bem
como a prática de tortura, que era, à época, o meio de prova mais usual para se
chegar à confissão271. Criticava também as penas inúteis, ou seja, aquelas em que a
aplicação seria oposta ao bem público ou insignificante ao fim de impedir novos
delitos.
Sobre do impacto da obra de Beccaria no campo da Justiça Punitiva, Enrique
Ferri aduz:

Su voz, como aguraba en el prefacio del libro, suscitó un estremecimiento


de entusiasmo a través de toda Europa, no sólo entre los pensadores y
criminalistas, sino también entre los reyes legisladores: Catalina da Russia
en sus Instrucciones (1767) a la Comisión para la reforma de las leyes
penales, transcribe casi literalmente las páginas de Beccaria; Leopoldo de
Toscana promulga la Reforma de 1786 que acoge las propuestas más
radicales, comezando con la relativa a la abolición de la pena capital; en las
dos Sicillias, la pragmática de Fernando IV (Ministro Tanucci) que impone la
motivación de la sentencia, conserbaba la tortura; pero ésta fué abolida por
la Ordenanza Militar de 1789(...).
A partir de este momento la legislación penal en todos los países de Europa
señalo continuas transformaciones progresivas hasta los Códigos más
recientes272.

Reagindo às arbitrariedades vivenciadas no Antigo Regime, a vertente jurídica


iluminista procurou estabelecer limites à contenção do ius puniedi estatal, firmando,
pois, um conceito material de delito. Revitalizando idéias inicialmente propostas pelo
Humanismo, incorporou-se ao Direito Penal um verdadeiro refluxo cultural presente
em toda a sociedade da época. Pretendia-se a abolição do conceito de crime-
pecado passando, pois, ao uso da razão para o trato com comportamento criminoso

271
Sobre o sistema processual penal inquisitório ou inquisidor ver LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual
Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume 1. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. pp. 62-79.
272
FERRI, Enrique. Principios de Derecho Criminal. Delincuente y Delito en la Ciencia, en la Legislación y en
la Jurisprudencia. Tradução José-Arturo Rodriguez Muñoz. Madri: Editorial Reus, 1933. p. 34.
106

Luigi Ferrajoli, ao tecer considerações acerca da transformação do Direito


Penal causada pelo Iluminismo, preleciona273:

A ideia de que não existe uma conexão necessária entre direito e moral, ou
entre o direito como é e como deve ser é comumente considerado um
postulado do positivismo jurídico. O direito, segundo esta tese, não reproduz
nem mesmo possui a função de reproduzir os ditames da moral ou de
qualquer outro sistema metajurídico – divino, natural ou racional -, ou ainda
de valores ético-políticos, sendo somente o produto das convenções legais
não predeterminadas ontologicamente nem mesmo axiologicamente. Ainda
no mesmo diapasão, tal doutrina, formulada em sentido inverso, exprime a
autonomia da moral em relação ao direito positivo, bem como de qualquer
outro tipo de prescrição heterônoma e de sua conseqüente concepção
individualista e relativista. Os preceitos e os juízos morais, segundo tal
convicção, não se baseiam nem no direito e tampouco em qualquer outro
sistema positivo de normas – religiosas, ou sociais, oude qualquer outro
modo objetivas – mas, apenas e tão-somente na autonomia da consciência
individual. Ambas as teses supramencionadas constituem uma aquisição
basilar da civilização liberal, além de refletirem o processo por meio do qual,
no início da Idade Moderna, tornaram-se laicos tanto o direito como a moral,
desviculando-se, enquanto esferas distintas e separadas, de qualquer liame
com supostas ontologias de valores.

A partir do contratualismo que influenciou de sobremaneira a obra de


Beccaria, a gravidade do delito passou a ser entendida como um desvalor legal
expresso no tempo. Segundo Nilo Batista et al, a pena a partir do viés contratualista
passa a ser entendida como uma taxa a ser pega na modalidade privação de
liberdade. Dentro de tal concepção contratualista, entendia-se o delito, antes de
tudo, como uma violência contratual passível de ser indenizada por meio da privação
da possibilidade de trabalho por parte do infrator o que, por conseqüência, deixava-o
alijado de vender seu trabalho e, por conseqüência, conseguir o sustento dele e de
sua família274.
Paul Anselm Ritter Von Feuerbach (1775-1833) tem destaque entre os
doutrinadores do período pré-histórico da teoria do bem jurídico275. Influenciado pelo
contratualismo inglês formulou Feuerbach, em 1801, sua teoria segundo a qual o

273
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer; Fauzi
Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flavio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 175.
274
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal
brasileiro: primeiro volume – Teoria geral do direito penal. 2ª Ed.Rio de Janeiro: Revan , 2003. pp. 532 e ss. :
“os penalistas do contratualismo se movimentaram entre as necessidades contraditória de legitimar e de limitar o
poder punitivo. Seu pensamento viu-se restringido pela primeira e alçado pela segunda, debatendo-se nessa
polarização insolúvel.
275
Cfe. JAKOBS, Günhter. Protección de Bienes Jurídicos y conformación de la vigência de la norma. In. Bien
Jurídico, Vigência de la norma y Daño social. JAKOBS, Günther, NAVARRETE, Miguel Polaino, POLAINO-
ORTIS, Miguel. Lima: Ara Editores, 2000. p. 36.
107

crime deveria ser considerado como uma ofensa aos direitos subjetivos276.
Fundando seu pensamento na teoria do contrato social já abordado parágrafos
acima argumentava Feuerbach que diante da inseguridade social vivida à época
deveriam os homens organizarem-se em sociedade confiando ao Estado a
conservação da ordem criada277.
Segundo Feuerbach, conforme o fim próprio do Estado, este só poderia
intervir penalmente quando presente estivesse um delito que causasse lesões a
algum direito dos cidadãos278. Emergia, pois, o Estado como garantidor das
condições da vida em comum. Assim, consoante sua definição de “penas jurídicas”,
considerava-se como núcleo de cada delito a lesão aos direitos subjetivos dos
membros da sociedade (burguesa), isto é, a ofensa a valores considerados
necessários para a vida em sociedade.
Enquanto Kant definia o Direito como “Reicht ist, was durch Freiheit des
Willens wermittels des Sittengesestzes möglich ist (o Direito é aquilo que, através da
liberdade de vontade e mediada pelas leis da moral, é possível)”, Feurbach
estabelecia uma rigorosa separação entre campos do Direito e da Moral. Formulava
entendimento no sentido de o Direito não se caracterizar como simples irradiação da
moral. Deveria, sim, ocupar uma manifestação autônoma da razão prática.
Stéphannos Kareklás sintetiza essa postura de Feuerbach: existem coisas que,
embora não estejam vedadas pelo Direito, sob o fundamento da Moral, não podem
ser feitas. Contudo, em que pese essa proibição no campo da Moral, juridicamente
não seria possível o dever de abstenção da determinada conduta e muito menos
sancioná-la. Era o caso, por exemplo, das condutas de fim eudemonista ou
religiosa279.
Feuerbach dividia os delitos em duas categorias: (i) delitos em sentido estrito
ou lesões a direitos e (ii) infrações de polícia ou delitos menores. Os primeiros
representavam condutas que configuravam ofensa a direitos subjetivos dos cidadãos
e, por conseqüência, ao Estado caberia estabelecer e reprimir as condutas previstas
em lei à luz do princípio do nullum crimen sine lege. A simples realização das
condutas consideradas delituosas já é considerada uma contradição ao direito

276
FEUERBACH, Paul Anselm Ritter Von. Tratado de Derecho Penal comum vigente en Alemania. Tradução.
Eugenio Raul Zaffaroni e Irma Hageimer. Buenos Aires: Hamurabi, 1989.
277
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-individual... p. 38.
278
FEUERBACH, Paul Anselm Ritter Von. op. cit.,… p. 21.
279
Cfe. KARÉKLAS, Stéphanos. Paul Anselm Von Feurbach. Vida e Obra. 1ª Parte. Revista de Direito e
Cidadania. Cabo Verde: Editora Revista Universitária, 2002. pp. 33-36.
108

alheio, tradicionalmente de acordo com ideais burgueses como o direito à vida, à


liberdade e ao patrimônio280. Já as infrações de polícia ou delitos menores somente,
ainda que não lesionassem direitos subjetivos, era justificável a punição, pois
estavam a contrariar a ordem pública e a seguridade social. Desta feita, tanto as
lesões a direitos quanto a manutenção dessa ordem e seguridade poderiam ser
entendidas como socialmente danosas281.
Distanciava-se Feuerbach do direito penal amparado em preceitos religiosos.
Um exemplo é que em sua obra não era aceito, mesmo tratando-se de infrações de
polícia, a sanção a determinadas condutas como as de fim moralista ou religioso,
uma vez que estas eram consideradas como pertencentes à esfera de livre
determinação pessoal do agente, não cabendo ao Estado qualquer intervenção.
Para Birnbaum, principal crítico das contribuições de Feuerbach, as construções
calcadas na ofensa aos direitos subjetivos dos cidadãos eram construídas sem
aprimoramento teórico e, principalmente, metodológico. Em realidade, considerava
Birnbaum que seu predecessor não conseguia estabelecer reais diferenças entre as
categorias de delitos. Por exemplo: incitar práticas relacionadas ao demônio em
locais privados não era conduta considerada ilícito, no entanto, as relações
extramatrimoniais eram consideradas criminosas. Para Birnbaum, evidente era a
contradição e a incoerência em Feuerbach. Como explicar ser a segunda conduta
considerada lesiva à ordem pública ou a segurança social quando realizada com o
conhecimento de terceiros, por exemplo282?
Renato de Mello Jorge Silveira resume as principais críticas às posições de
Feuerbach: inicialmente, a criminalização de condutas que não afetavam direitos
subjetivos como, por exemplo, a difamação de pessoa morta, encontravam-se
incoerentes segundo as propostas de Feuerbach já que o falecido não possuía
direito subjetivo algum violado. Cumpre destacar que Feuerbach jamais fez
referência a vincular a ofensa ao morto como sendo em realidade uma agressão o
direito subjetivo dos herdeiros/sucessores que permaneceram vivos. Outra grande
discussão fazia referência às infrações policiais (polizeivergehen). Ainda que não
lesionassem direitos subjetivos, Feuerbach entendia ser justificável uma punição,

280
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge da. Direito Penal Supra-individual... pp. 36-39.
281
Idem, Ibidem.... p.38.
282
BIRNBAUM, Johann Michael Franz. Sobre la necesidad de una lesión de derechos para el concepto de delito.
Tradução José Luis Guzmán Dalbora. Buenos Aires: Euros Editores S.L., 2010. p.38.
109

pois estas condutas colocavam em perigo a ordem e seguridade social 283.


Evidentemente, diante da importância teórica conferida ao então recente positivismo
jurídico que visava primordialmente à segurança jurídica das relações sociais, a
teoria de Feuerbach relativa a infrações policiais com o escopo fim de proteger do
perigo a ordem e a seguridade social indicava ser excessivamente aberta ou
indeterminada.
A lei, segundo Feuerbach, deveria anunciar ao cidadão, de forma categórica,
o que seria proibido e, ao juiz, igualmente de forma categórica, a obrigação de punir.
Para Feurbach, o fundamento legal da ameaça penal assentava-se na necessidade
da proteção aos direitos dos outros cidadãos. Sem uma sólida previsão legal que
cominasse um mal baseado numa ameaça legal, estar-se-ia simplesmente diante de
uma simples vingança, inadmissível para o momento histórico vivenciado pelo
Iluminismo. Sobre o posicionamento de Feurbach, vale citar trecho de Raúl
Cervini284:

El planteamiente de Feurbach, entonces, si bien apuntado a la eficacia del


derecho penal para animar la prevención general negativa, fue fecundo en
su resultado de tutela de la libertad (cosa que, por outra parte, y para hacer
justicia a Feurbach, a este no se Le escapaba) en la medida en que solo a
la ley se reserva la potestad de distinguir entre los comportamientos lícitos y
los ilícitos, lo que debe hacer con el grado suficiente de nitidez como para
que quines actúan y quienes juzgan, sepan antenerse en todo momento a
pautas precisas de delimitación entre lo justo y lo injusto.

As idéias político-criminais de Feuerbach teriam influenciado a edição Código


Penal da Baviera de 1813. Neste diploma, marcante era a falta de incriminação das
condutas contra a religião e a moral, deixadas aos cuidados das esferas externas ao
direito penal. Apesar das críticas, o pensamento de Feurbach foi de suma
importância na doutrina penalista, tendo influenciado boa parte da produção penal
ocidental moderna.
Basta ver a relevância que os princípios elencados pelo doutrinador alemão
assumiram nas obras modernas. Para Feuerbach, toda imposição de uma pena
deve pressupor (i) a existência de uma norma legal (nulla poena sine lege); (ii) a
necessidade de condicionamento da imposição da pena à existência de uma ação

283
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-individual...p. 38.
284
CERVINI, Raul. El principio de la legalidad y la imprescindible determinación suficiente de la conducta
incriminada en los crimenes contra el sistema financiero. Acesso em 10/01/2013. Disponível em <www.
fder.edu.uy>.
110

delitiva (nulla poena sine crimine) e (iii) a necessidade de condicionamento do fato


legalmente cominado à previsão de lei penal (nullum crimen sine poena legali)285.
Em resumo, apesar das críticas de seus sucessores, pode-se afirmar que o
desenvolvimento teórico iniciado por Feuerbach ofereceu contribuição inegável à
procura de um conceito material de crime. É a partir de Feuerbach que se chama
atenção para a vantagem de se recorrer a critérios materiais para a delimitação do
ius puniendi.

3.2.2 O bem jurídico-penal a partir de Johann Michael Franz Birnbaum

Em 1834, Johann Michael Franz Birnbaum publica, na Alemanha, sua obra


Über das Erfordernis einer Rechtsverleztung zunm Begriff des Verbrechens,
traduzida para o idioma espanhol como Sobre la Necesidad de una Lesión de
Derechos para ele concepto de delito. Trata-se, em realidade, de um artigo de
numerosas páginas produzido com a finalidade de contestar a até então vigente
concepção de delito como ofensa ao direito subjetivo de outrem. A obra
paradigmática de Birnbaum surge num contexto de crítica à Lei do Estado de Baden
sobre crimes ofensivos à honra publicada em 28 de dezembro de 1831. Segundo
Birnbaum, o diploma legal resumia-se a uma produção legislativa contendo
expressões incriminadoras de lesão a direitos de terceiros relacionados à honra e
repleta de conceitos indeterminados e que não estariam aptos a representar
segurança jurídica nem aos cidadãos, nem aos julgadores.
Acerca da importância da obra de Birnbaum posiciona-se Hans Joachim
Hirsch do seguinte modo286:

El concepto de bien jurídico tiene que agradecer su origen a la aspiración de


establecer limites para el derecho penal. Sus comienzos pertencen, por ello,
al círculo de los esfuerzos por desarrollar un concepto material de delito. El
creador alemán de la teoria del bien jurídico, J.M. Birnbaum, escribió, en su
artículo fundacional de 1834, que está en la natureza de las cosas que
además del... concepto jurídico positivo del delito tiene de haber un
concepto natural de él.. Cuando hablamos de um concepto jurídico natural
de delito entendemos por esto aquello que según la naturaleza del derecho
penal puede ser razonablemente valorado como punible por la sociedad y
resumido en um concepto general.

285
FEUERBACH, Paul Johann Anselm von. Tratado de Derecho Penal... p. 63.
286
HIRSCH, Hans Joachim. Acerca del estado de la discusión sobre el concepto de delito. Congresso
Internacional da Faculdade de Direito à Distãncia. Madri: UNED, 2000. p. 372-373.
111

Para Birnbaum, as normas penais não deveriam prever condutas tendo como
base ofensa a direitos subjetivos, mas, sim, basear-se em um conteúdo
individualista apto a identificar o bem jurídico com os interesses primordiais do
indivíduo na sociedade, especificamente, a vida, o corpo, a liberdade e o
patrimônio287.
Segundo Birnbaum, a teoria penal deveria estar orientada não apenas à
limitação do arbítrio legislativo (como pensava Feuerbach), mas deveria também
fornecer elementos concretos para a avaliação, pelo juiz, da legitimidade de uma
incriminação288. Ao partir da noção de direito subjetivo, a teoria de Feuerbach
mostrava-se demasiadamente abstrata, dificultando a identificação daquilo que de
fato o Estado pretendia evitar por meio das criminalizações. Luz sintetisa as críticas
de Birnbaum às contribuições de Feuerbach:

O objeto do delito não se assentaria sobre noções jurídicas abstratas, mas


sim no âmbito fático concreto. Para Birnbaum, o valor tutelado pelo Direito
Penal seria de índole substancial, sendo que as ações tipicamente
antijurídicas não excluiriam nem prejudicariam o direito que determinado
sujeito é titular, mas sim e apenas o bem que juridicamente lhe é atribuível.
Assim, o homicídio de um homem deveria ser considerado como uma lesão
a um bem da vida, e não como uma lesão a um metanível normativo como
seria o direito subjetivo à vida. A teoria feuerbachiana seria, portanto,
marcada por um déficit operativo derivado de um alto e desnecessário grau
de abstração289.

O período vivenciado por Birnbaum foi subseqüente à derrota de Napoleão


sendo denominado de período da Restauração. O movimento de Restauração
desloca a soberania do povo como fonte do poder à soberania do príncipe. Sobre o
momento histórico, Silveira aduz:

É a época do Romantismo, da Escola Histórica do Direito, representada por


Savigny, onde, considerando-se que os costumes, o desenvolvimento
histórico e as normas jurídicas são um todo orgânico, tem-se que o Direito
constitui-se, verdadeiramente, em uma criação histórica. Não mais seriam
de se aceitar, política ou ideologicamente, as teses de Feuerbach. Nova
situação paradigmática haveria de se firmar para adequar o Direito ao
290
momento do pensamento humano .

287
PELARIN, Evandro. Bem jurídico-penal: um debate sobre a descriminalização. São Paulo: IBCCRIM, 2002.
p.55.
288
Cfe. LUZ, Yuri Corrêa. Entre bens jurídicos e deveres normativos. Um estudo sobre os fundamentos do
direito penal contemporâneo. São Paulo: IBCCRIM, 2013. p. 42.
289
LUZ, Yuri Corrêa. Entre bens jurídicos e deveres normativos... p. 42.
290
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal-Supraindividual... p. 40.
112

A concepção voluntarista e codificada do direito presente em períodos


pretéritos era o principal alvo de Savigny. A lei, para Savigny, teria uma concepção
secundária na produção do direito podendo, inclusive, muitas vezes, ser danosa ao
desenvolvimento social, em virtude de seu poder de imobilizar o ordenamento
jurídico e até mesmo insensibilizá-lo frente às mudanças sociais. O ideal de direito
codificado serviria para promover a petrificação do direito, paralisando-o no tempo.
Segundo Savigny, o direito deveria representar o produto espontâneo da cultura que
teria origem a partir do espírito do povo manifestado nos usos e costumes e no
trabalho dos jurisconsultos. Assim, a noção de direito como ato supremo de vontade
do legislador, amplamente reconhecida em Feuerbach, restaria incompatível com a
chamada Escola Histórica do Direito291. Contudo, cumpre destacar que Savigny não
desprezava o papel conferido à codificação. Intentava sim realizar o encontro do
corpo (formal) legalista com a alma do ordenamento jurídico, isto é, o aspecto
material292.
Formulando críticas à concepção de crime como ofensa a direitos subjetivos,
Birbaum propõe o seguinte problema a fim de chegar à conclusão de que a teoria da
lesão a direitos subjetivos é, além de ineficaz, incoerente e artificial293. Segue
questionamento: em quatro situações diferentes, quatro indivíduos disparam seus
fuzis carregados cada qual com uma bala294.
O primeiro indivíduo, sabedor que com sua atitude alguém poderá ficar ferido,
mesmo assim, sem clara e manifesta intenção de lesionar alguém, efetua o disparo
e o projétil atinge de raspão o ombro da vítima. O segundo indivíduo, sabedor que
com sua atitude alguém poderá lesionar-se, mesmo assim, não possui a intenção de
causar ferimento físico a qualquer pessoa, mas dispara a arma, sendo que o projétil
acaba, por azar, atingindo pessoa que morre. O terceiro indivíduo era dotado do
animus de atingir alguém e também era sabedor dos riscos que um tiro poderia
acarretar à integridade física de outrem, mas, por falta de preparo técnico, erra o tiro.

291
ASSIER-ANDRIEU, Louis. O Direito nas Sociedades Humanas... pp. 111-113. Segundo Assier-Andrieu, o
direito em Savigny fixava-se em caráter particular ao povo como a linguagem, os costumes e a organização
social. Nenhum desses elementos teria existência autônoma, pois unia-se à singularidade do povo. Para Savigny
deveria o Direito obedecer a um momento de tendência popular chamado necessidade interna e social, não
podendo derivar exclusivamente da vontade do legislador como fizera Napoleão com edição do Código Civil
francês de 1804.
292
BIRNBAUM Johann Michael Franz. Sobre la necesidad de una lesión de derechos para el concepto de
delito... p. 38.
293
Idem, Ibidem. p. 50.
294
Idem, Ibidem 52-55.
113

O quarto indivíduo também possuía a intenção de causar a morte de terceiro.


Também era plenamente sabedor dos riscos que sua conduta poderia acarretar.
Maneja muito bem a arma e seu único tiro é fatal.
Após exemplificar as quatro situações acima descritas, Birnbaum conclui que
segundo a doutrina vigente à época, amplamente baseada nas obras de Feuerbach,
apenas os últimos três casos configurariam delito em sentido estrito, delitos graves
ou delitos contra os direitos subjetivos de outrem. Segundo Feuerbach, aquela
primeira conduta seria passível somente de punição por meio de uma infração
policial. Incoerente, classifica Birnbaum, a resposta dada por Feuerbach ao caso do
primeiro atirador. Neste caso não haveria ontologicamente, exceto pela questão
envolvendo dolo, culpa e tentativa, que também Feuerbach não aborda ao
responder a questão, qualquer diferença entre as quatro condutas, uma vez que
todas elas corresponderiam a ações que contrariam por si sós os direitos de outras
pessoas (exemplo: nos quatro casos o direito à integridade física ou à vida foi
violado).
Difícil é aceitar o motivo pelo qual não se compreenderia o primeiro caso
como um delito próprio ou em sentido estrito. A criminalização, portanto, não poderia
ser realisticamente afirmada como uma lesão a direitos subjetivos, eis que em todas
as situações propostas os direitos subjetivos (à vida ou à integridade física) foram
violados. Para Birnbaum, a doutrina de Feuerbach mais se preocupava em justificar
uma punição a uma conduta típica de um caso concreto a efetivamente elaborar
uma teoria ampla acerca existência de uma lesão diretamente radicada na realidade.
Amparado nas lições de Stübel, Birnbaum aduz 295:

Si en las dos primeras situaciones hemos supuesto el mismo hecho e


idêntica culpa, ¿ será entonces el mero resultado lo que determina la índole
de la acción? Es muy cierto cuando Strübel, autor digno de respeto y
agraciado por el sentido práctico: “El signo distintivo de uma acción no
puede ser buscado en uma circunstancia casual. La natureza de la acción
no depende del acaso. Si uma acción no és antijurídica cuando queda sin
resultado, tampoco puede ser tal cuando lo tiene”. Y con no menor acierto
afirma en otro pesaje: “aquel el cual no es permitido privar de un bien a
outro, tampoco puede hacer u omitir nada que coloque ese bien em riesgo
de que se pierda. Otra cosa seria contradictoria y absurda. El derecho de
exigir que nadie nos lesione, pues, comprende em si, al mismo tiempo y sin
contradicción alguna, el de exigir que nadie nos coloque em peligro
jurídicos. Por ende, atendiendo a este segundo derecho analógico, las
acciones juridicamente peligrosas constituyen lesiones de derechos”

295
BIRNBAUM, Johan Michael Franz. Sobre la necesidad de una lesión de derechos para el concepto de delito...
p. 53.
114

O ponto de destaque na obra Birnbaum é a elevação de novos referentes


ontológicos de ilicitude penal com a impressão de um novo sentido à idéia de
danosidade social. Enquanto Feuerbach apelava para a disfuncionalidade na ordem
jurídico subjetiva, Birnbaum, diante do momento histórico direcionado ao positivismo,
formulava doutrina tendo como paradigma a lesão ao bem jurídico296 apontado para
o mundo exterior e objetivo.
Era fundamental, segundo Birnbaum, a existência de um bem diretamente
fundado na realidade297. O direito penal somente poderia incidir sobre fatos
efetivamente danosos à coexistência social desde que fossem lesivos e entidades
reais (empírico-naturais)298. Nos exemplos dos quatro atiradores propostos, com
vistas criticar Feuerbach, Birnbaum expõe que as quatro situações foram lesivas a
entidades reais (pessoa) e mereceriam punição a título de conduta delituosa em
sentido estrito.
Procurou Birnbaum, principalmente, identificar objetos materiais e definir
aqueles que na realidade seriam ofendidos por condutas delitivas. Contestava a
abstração teórica e genérica própria da teoria dos direitos subjetivos. Afirmava que
os comportamentos delitivos não ameaçavam a existência de direitos, mas, sim, de
bens, devendo, portanto, a tutela penal incidir sobre bens e não sobre a asbtrata e
intagível violação de direitos subjetivos. O problema da doutrina de Birnbaum,
segundo Eduardo Correia, é que tal concepção acabava por dar margem a um
positivismo estreito, apto a confundir o objeto da tutela jurídico-criminal com o objeto
da ação, ou seja, a pessoa ou a coisa sobre a qual, no plano causal, a atividade se
desenvolve299.

3.2.3 Karl Binding, Franz von Lizst e a afirmação do bem jurídico-penal

296
Cumpre destacar que o termo bem jurídico ou bem jurídico-penal não consta expressamente na obra de
Birnbaum. Chega Birnbaum a utilizar uma série de expressões de tipo descritivo, as quais se identificam com
esse conceito. Contudo, graças a tais formulações, é que lhe foi conferido o título de formulador do conceito de
bem jurídico. Cfe. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual... p.41.
297
Cfe. SCHÜNEMANN, Bernd. El derecho penal es la ultima ratio para la protección de bienes jurídicos: sobre
los limites inviolables del derecho penal en un Estado liberal de derecho. Bogotá: Universidad Externato de
Colombia, 2007. pp.13-14.
298
Cfe. RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico...p. 74. Completa o autor: “é possível perceber que
a doutrina de Birnbaum manteve a busca por um conteúdo material do delito que foi iniciada por Feurbach, mas
modificou sua tônica, deixando de apelar para a disfuncionalidade das relações jurídicas intersubjetivas, outrora
privilegiada pela compreensão do crime como lesão a um direito subjetivo, e passando a se basear na ideia de
lesão a realidades empírico-naturalísticas, ou seja, de ofensa a bens concretos pertencentes ao mundo exterior”.
299
CORREIA. Eduardo. Direito Criminal. Volume I. Coimbra: Almedina, 2001. p. 278.
115

Historicamente, a afirmação do conceito de bem jurídico ocorre com o positivismo


jurídico, especialmente, no Direito Penal, a partir das contribuições de Karl Binding e
Franz Von Lizst.
Diante do estado de insegurança jurídica reinante a sociedade do final do
século XIX almejava superar a metafísica do período racionalista anterior cujos
desdobramentos abstratos eram percebidos como impedimentos ao
desenvolvimento das relações sociais300.
O positivismo jurídico301 foi resultado de uma nova mentalidade no âmbito da
doutrina do direito amparada em ensinamentos do positivismo sociológico
precedente. Encontrou no dado real do direito positivo o material empírico a ser
utilizado na observação científica, adotando perante aquele cenário fático um
método descritivo e classificatório assemelhado, em parte, ao utilizado nas ciências
naturais302.

Em algum momento, a tensão entre positivismo e organicismo


necessariamente teria de explodir. Nem todos os autores da época foram
cegos a esta tensão, mesmo no auge da influência do organicismo
positivista. Ao perceber esta crise, foi surgindo uma tendência – já
preparada por autores anteriores – que tentou separar nitidamente o saber
jurídico do saber social. Chamou-se de “positivismo jurídico-penal” a esta
tendência ou atitude frente ao problema da criminalidade e de sua
repressão. Assim como o positivismo naturalista é culto ao fato, o
positivismo jurídico pode ser definido como o culto ao fato “jurídico”, isto é,
considerando que o “fato” no jurídico, são as leis (as leis positivas). O único
direito e toda a sua base de interpretação são as leis, a letra da lei303.

Binding representou na Alemanha uma primeira versão desse positivismo


jurídico no campo penal que alçava a papel de destaque a cientificidade baseada no
método científico capaz de resolver as questões que a sociedade viesse a
apresentar304. Para Zaffaroni e Pierangeli, Binding foi o expoente dos penalistas
positivistas305. É verdade que quando Binding iniciou o trabalho de redação de sua

300
RAPOSO, Guilherme Guedes. op. cit., ... p. 79.
301
Sobre o positivismo jurídico necessária é a indicação para leitura de BOBBIO, Norberto. O positivismo
jurídico. Lições de filosofia do Direito. Tradução de Marcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São Paulo:
Ícone, 2006.
302
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: volume 1 – parte geral...p. 68.
303
ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal... p. 266.
304
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – volume 1. 10ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011. p. 100: “o objeto da ciência do direito positivista é tão-somente o Direito positivo, estabelecido,
formado pelos códigos e leis, e depurado de considerações políticas, éticas, filosóficas ou sociais, ficando
evidente sua anteposição a qualquer referência de índole jusnaturalista. Estes últimos aspectos podem ser objeto
de exame do jurista, mas estão fora de seu campo de pesquisa científica. A realidade jurídica é estudada à
margem dos fenômenos sociais”.
305
ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. op. cit.,... p. 267.
116

obra sobre normas no ano de 1872306 vivia-se ainda a expectativa segundo a qual
seriam os legisladores amplamente responsáveis e competentes zeladores da
dignidade do conceito de bem jurídico penal 307. Com o passar dos anos, notou-se
que nem sempre a intenção do legislador acompanhava finalidades nobres.
Renato de Mello Jorge Silveira assim resume a concepção de Karl Binding
acerca de bem jurídico308:

Com a Escola Positiva, diversas concepções metodológicas se fazem


presentes. Karl Binding, em particular, tinha para si que o delito consistia na
lesão de um direito subjetivo do Estado, havendo total congruência entre a
norma e o bem jurídico, sendo, a primeira, a única e definitiva fonte de
revelação deste. A essência do direito penal seria, assim, formada por
normas que são dedutíveis da lei penal e, que, conceitualmente, são
anteriores a ela, consistentes em um imperativo de ordem a proibir a
realização de uma determinada conduta.

A partir Binding percebe-se uma opção em se considerar a teoria do bem


jurídico a partir de um paradigma normativista extremado. Caso tal posição fosse
adotada de forma rigorosa, ao legislador seria atribuído um poder ilimitado de definir
a conduta punível. Neste ponto é possível verificar como as lições de Feuerbach e
Binding caminham em direções diamentralmente opostas, pois a afirmação de
Feuerbach de que algumas condutas intrinsicamente já representavam ofensa a
direitos de outras pessoas não faz sentido frente à opção clara de Binding pelo
caminho positivo-normativista, isto é, para que fossem consideradas criminosas
caberia principalmente a vontade do legislador. Segundo Karl Binding, (i) o conceito
de direito subjetivo mostrara-se impreciso, devendo ser substituído por algo mais
concreto, tarefa esta realizada por Birnbaum quando desvenda o conceito de bem
jurídico e, finalmente e (ii) apenas o legislador é competente para definir o que
merece ser reprovado ou não penalmente, isto é, inexistem direitos inatos com
existência pré-jurídica, pois todos os direitos deveriam necessariamente ser criados
por lei. Instaurada estava, portanto, a noção normativa-positivista de bem jurídico.

306
BINDING, Karl. Die Normen und ihre Uebertretung apud SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, Direito Penal
Supra-individual... p. 43.
307
Alguns autores como Armin Kaufmann atribuem a Binding a paternidade da expressão bem jurídico quando
da 1ª edição da obra de Binding já citada em nota de rodapé precedente houve a utilização do termo Rechtsgut.
Veja-se passagem: “Rechtsgut ist alles na dessen unverändeter und ungestörter Erhaltung das positive Recht
nach seiner Ansicht ein Interesse hat, was es deshalb durch seine Normen vor unerwünscheter Verletzung oder
Gefährdzung zu sichern bestred ist” apud KAUFMANN, Armin. Teoria de las Normas. Fundamentos de la
dogmática penal moderna. Tradução Enrique Bacigalupo e Ernesto Grazon Valdés. Buenos Aires: Depalma,
1977. p. 91.
308
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-individual... p. 43.
117

Binding define bem jurídico-penal da seguinte forma 309:

[bem jurídico-penal] é tudo aquilo que as olhos do legislador tem valor como
condição de uma vida saudável dos cidadãos; tudo o que não constitui em
si um direito, mas apesar disso, tem, aos olhos do legislador, valor como
condição de uma vida sã da comunidade jurídica, em cuja manutenção
íntegra e sem perturbações ela (a comunidade jurídica) tem, segundo o seu
juízo, interesse, e em cuja salvaguarda perante toda a lesão ou perigo
indesejado, o legislador se empenha através das normas

Jorge de Figueiredo Dias argumenta que, caso se pretendesse agir na


atualidade consoante as bases de Binding haveria uma redução vigorosa do
conteúdo material do crime, reforçando-se somente o aspecto formal do delito310.
O bem jurídico-penal funda-se, conforme as concepções de Binding, apenas
no direito positivo vigente. Portanto, para o doutrinador haveria sempre uma
congruência absoluta entre a norma e o objeto de tutela penal, sendo a norma a
única e definitiva fonte da revelação do bem jurídico311. Sobre o tema, Paulo Vinicius
Spordeler de Souza complementa:

Trata-se, portanto, de uma concepção intrassistemática e acrítica. Os bens


jurídico-penais são perspectivas unicamente a partir do legislado. Por
sugerir uma compreensão de Estado de Direito em termos puramente
formais – sobrelevando-se demasiadamente a autonomia e o papel do
legislador – Binding denegou à intervenção punitiva qualquer legitimação
material, abrindo-se as portas ao alargamento incontrolável das área de
criminalização312.

Binding desenvolve duas categorias para a tutela penal de bens jurídicos. As


normas conhecidas como normas proibitivas e as normas intituladas sancionadoras
de desobediência ao mandato legal. Em ambas as categorias haverá a premissa
que todos os crimes afetariam bens jurídicos, inclusive os delitos formais 313.
Sob a mesma égide positivista, adotando, entretanto, uma metodologia 314
diferenciada quanto à questão da autoridade e da legitimidade do legislador e da lei

309
Cfe. BINDING, Karl. Die Normen und ihre Uebertretung apud SOUZA, Paulo Vinícius Spordeler de. Bem
jurídico-penal e Engenharia Genética Humana. Contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-
individuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 57.
310
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral... p. 22.
311
COSTA ANDRADE, Manoel. Consentimento e Acordo em direito penal (contributo para a fundamentação
do paradigma de um paradigma dualista). Coimbra: Coimbra Editora, 1991. pp. 51.
312
SOUZA, Paulo Vinicius Spordeler de. Bem jurídico-penal e engenharia genétoca humana... p. 58.
313
AMELUNG, Knut. Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft apud SOUZA, Paulo Vinicius Spordeler
de. Bem jurídico-penal e engenharia genétoca humana... p. 59.
314
Sobre o tema, Souza argumenta que o método em Binding classifica-se em positivista formal-normológica,
enquanto em Lizst a classificação dá conta de positivista naturalista-sociológico. SOUZA, Paulo Vinícius
Spordeler de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana... p. 58.
118

penal para a definição do bem jurídico-penal, combate Lizst a exasperada


concepção formalista defendida por Binding.
Para o doutrinador de Viena, todo o direito existe por amor aos homens e teria
por finalidade principal a guarda da vida humana. A proteção de interesses humanos
seria, portanto, a essência do direito315. Caso um interesse necessário à vida
humana e à preservação da vida social fosse ameaçado, perfeitamente, caberia
conversão em um bem jurídico-penal, desde que outros ramos do ordenamento
jurídico não bastassem para a sua preservação 316.
Lizst afirma ser a vida, e não o direito, o elemento responsável por converter o
interesse humano em bem jurídico. A liberdade individual, a inviolabilidade do
domicílio, o segredo epistolar já figuravam como interesses dignos de tutela mesmo
antes que qualquer carta constitucional ou legislação penal que pudesse positivá-
los.
Influenciado pela doutrina dos Interesses de Jhering317 e fundamentando a
sua tese do objeto da tutela jurídico-penal em um conteúdo material antissocial do
ilícito Lizst entende serem independentes a existência do bem jurídico penal e a
definição considerada como delituosa pelo legislador. Em resumo, a norma jurídica
ao invés de definir o bem jurídico, o encontra seguindo as necessidades sociais.
Este posicionamento faz referência, portanto, a um conceito pré-positivo ou
metajurídico de bem jurídico-penal. Em resumo: ao legislador, segundo Lizst,
caberia somente descobrir ou desvendar diante da realidade social vigente qual(is)
bem(ns) jurídicos careceriam de proteção conferida pela norma penal. Assim
preleciona Costa Andrade318:

O que fundamentalmente está em causa na construção de Lizst é a


problematização da própria legitimidade da norma penal. Uma resposta cuja
resposta só poderá, segundo o autor, encontrar-se a partir da dimensão
teleológica da norma, do seu fim, isto é, numa sede exterior à própria
norma. Uma resposta que, para além disso, terá de estar sempre em
consonância com o postulado segundo o qual todo direito existe por causa
do homem. Compreende-se deste modo que, aos olhos de Lizst, o conceito
de bem jurídico não apareça como mera categoria da dogmática penal, que
esgota a sua valência e fecundidade teórica no contexto “duma doutrina
geral do direito penal”.

315
LIZST, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tradução Higino Duarte Pereira. Campinas: Russel,
2003. p. 139.
316
Idem, Ibidem.
317
Cfe. COSTA ANDRADE, Manuel. Consentimento e Acordo em direito penal... pp. 62-63.
318
COSTA ANDRADE, Manoel. Consentimento e Acordo em direito penal... pp. 66-67.
119

Como ressalta Costa Andrade, o que fundamentalmente está presente na


obra de Lizst é a problematização da própria norma penal cuja resposta somente
pode ser encontrada à luz de uma análise teleológica que vise primordialmente a
máxima “todo direito existe por causa do homem319”.
Compreende-se deste modo que segundo a visão de Lizst o conceito de bem
jurídico não poderia ser considerado uma simples categoria da dogmática penal. A
teoria do bem jurídico deve aparecer como uma fronteira da abstrata lógica jurídica
com uma relevância que transcende a esfera da dogmática penal e atingindo o
campo da política criminal320. Em vez de criações do direito, os bens jurídicos devem
ser tratados como criações da própria vida às quais se deve assegurar proteção.
Luiz Regis Prado aduz que Lizst, por meio de seu positivismo naturalista de
sentido globalista (die gesamte Strafrechts), concebeu o direito penal como um
núcleo em torno do qual deveriam agrupar-se todas as demais ciências penais. Lizst
distinguia claramente ciência normativa cujo método dogmático é o lógico-dedutivo
da política criminal321.
Para Tavares, a noção de bem jurídico proposta por Lizst representava o
produto da ideia privatística de delito a imperar nas últimas décadas do século XVIII,
que se intrometera na formulação da teoria do injusto desde Jhering e constituía um
pressuposto indeclinável da vida material. E continua

Aqui, o marco penal encontra suas delimitações no momento subjetivo, quer


dizer, na materialização do exercício da capacidade de contratar por parte
do sujeito, de modo que, protegendo-se o interesse, se concebe a vida
social como um resultante de pretensões individuais, as quais, dependendo
de sua importância se vêem amparadas pela norma de direito público. Não
obstante a origem privatística desse conceito, deve-se reconhecer que há
aqui, se bem que ingênua, uma ideia utilitarista da norma penal sobre a
base de uma realidade. O interesse não é algo imaginário, é algo
perceptível, assim, por exemplo, a manutenção da vida, da integridade
corporal322 (...).

Independentemente das críticas que são feitas na atualidade, há de ser


reconhecida a importância das contribuições doutrinárias Binding e Lizst, eis que
estes juristas grandes responsáveis pela consolidação e divulgação, cada qual à sua

319
Idem, ibidem. pp. 67-68.
320
SOUZA, Paulo Vinicius Spordeler de. Bem jurídico-penal e Engenharia Genética Humana... p. 62.
321
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... p. 29-30.
322
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto... pp. 187-188.
120

forma, da teoria do bem jurídico elaborada por Birnbaum e que pemanece até hoje
no Direito Penal323. Sobre a relação entre Birnbaum, Binding e Lizst, Souza ensina:

Enquanto a virada de Birnbaum pode ser qualificada como uma revolução


cega, por ter sido operada predominantemente político-criminal dogmático,
a teoria de Lizst ao ter-lhe dado olhos, eleva aquela categoria [bem
jurídicos] também a um patamar superior – extra-sistemático -,
transformando o bem jurídico-penal em um verdadeiro conteúdo da política
criminal legislativo-dogmática, significando um fundamental critério
legitimante da atividade legislativa do poder de punir324.

3.2.4 A Escola de Kiel: um retrocesso à teoria do bem jurídico-penal

Após a consolidação da teoria do bem jurídico-penal efetuada por Binding e


Lizst, o caminhar doutrinário não cessou. Infelizmente, nem todas as contribuições
posteriores tinham a intenção combinar a missão de proteção aos bens jurídicos
com o respeito à dignidade humana. Antes de se começar a análise das teorias
contemporâneas do bem jurídico, que normalmente fazem referência ao Estado
Democrático de Direito e, também, ao princípio da dignidade humana, faz-se
necessário dissertar acerca da Escola de Kiel (Kieler Schule), movimento que
desconfigurou a teoria do bem jurídico atrelada à limitação do jus puniendi estatal
servindo somente ao ideal de legitimação da intervenção penal na Alemanha nazista
a partir da década de 30. Sobre as agruras do nazismo, Nelson Hungria faz breve
relato da brutalidade perpetrada pelos alemães durante a Segunda Guerra
Mundial325:

O incêndio dos ghettos fez-se rotina da execução do plano de eliminação


total dos judeus. Dizia Himmler que matar judeus “não passava de um
expurgo de piolhos”, e “destruir piolhos não é uma questão de ideologia,
mas uma questão de limpeza”. O general Stroop, com volúpia sádica, assim
e referia ao incêndio do ghetto de varsóvia: “deliberei destruir todo o
quarteirão de resistência dos judeus, fazendo deitar fogo a cada grupo de
casas... Muitas vezes, os judeus permaneciam nos edifícios em chama até
que não pudessem mais suportar o calor, e, receosos de ser queimados
vivos, preferiam saltar dos andares superiores depois de arremessarem ao
leito da rua colchões e móveis... Com os membros quebrados, tentavam
ainda rastejar até as casas indenes em fogo...” e Hitler pôde dizer: “Na
Polônia, o estado de coisas ficou inteiramente definido. Como os judeus não
quisessem trabalhar, foram mortos. Se não podiam trabalhar, deviam
morrer. Tinham que ser tratados como bacilos de tuberculose. Nada tem
isto de cruel, pois é sabido que mesmo as criaturas mansas da natureza,

323
WELZEL, Hans. Derecho Penal. Parte General. Tradução Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque
Depalma Editor, 1956. p. 6.
324
SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico-penal e Engenharia Genética Humana,... p. 65.
325
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. pp. 367-368. V. 4.
121

como as corças e os gamos, devem ser mortos para que não possam fazer
estragos.”
(...)
Não havia limites à perversidade, nem tréguas à fúria assassina. Só a
matança dos judeus atingiu um algarismo de estarrecer: dos 9.600.000 de
israelitas existentes na Europa dominada pelos nazis, 60% pereceram. Os
cadáveres eram enterrados aos montões, ou levados para os fornos de
cremação, ou devido à carência de matérias-primas, eram aproveitados
(inédita profanação) para o fabrico de sabão.

Representada, principalmente, por F. Schaffstein e G. Dahm326 sustentava


Kieler Schule o direito penal do autor (Taterstrafrecht)327, procurando, pois, construir
uma base teórica para o direito penal nacional-socialista alemão328.
O direito penal do autor propunha que o delito fosse entendido como sintoma
de um estado de autor. Aquele que praticasse a conduta criminosa deveria ser
considerado um ser inferior em comparação às demais pessoas normais. Segundo
Batista et al, tal inferioridade é para uns de natureza moral e, por conseguinte, trata-
se de uma versão secularizada de um estado de pecado jurídico; para outros, de
natureza mecânica e, portanto, trata-se de um estado perigoso329.

326
SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico-penal e Engenharia Genética Humana...pp. 96-97: “para
Schaffstein, o interesse do legislador em proteger certos bens jurídico-penais não pode ser apreciado de forma
autônoma, pois aquele vem limitado ou contemplado pela relevância de outros fatores preponderantes e
transcendentes. Assim, embora não negando que constitui tarefa essencial do ordenamento jurídico-penal
proteger certos valores relevantes na sociedade, Schaffstein não considera admissível que o dogma da tutela de
bens jurídicos penais seja o único Leitmotiv do legislador penal para a criação de figuras delitivas, pois junto a
este aspecto existem outras questões relacionadas ao pensamento nacional-socialista que conduzem a uma
necessária revisão histórico-dogmática daquela categoria. Ademais, diferentemente da sistemática clássica, que,
assentada nos esquemas jurídico-naturais do Iluminismo, entendia o conteúdo do delito como ofensa ao bem
jurídico protegido, o pensamento nacional-socialista do direito penal estabelece como pedra de toque a idéia da
violação de um dever (Pflichtverletzung). Por outro lado, entende Dahm que a noção de direito deve ser
compreendida como um ordenamento da vida do povo, uma realidade sentimental interna. O direito não consiste
num mero aglomerado de normas nem numa forma exterior do ser social, senão um ordenamento realista, vital,
interno. [...] O delito não integra somente uma oposição á lei formal, mas também um ataque contra a ordem
fundamental do povo, assim como contra a moral do mesmo e a lei interna da comunidade. Representa uma
posição ao ordenamento autoritário estabelecido através do Estado, e, com isso, à lei interior de uma nação. A
natureza do injusto não poder ser vista no contraste de interesses e de objetos de tutela, senão na rebelião contra
a comunidade e a sua lei interna. Este retrocesso do fato ao autor e do tipo à vontade corresponde a uma maneira
de pensar que não vê a essência do delito na violação de um ordenamento externo e de singulares bens jurídicos,
mas sim na própria desagregação da sociedade em seu entorno”.
327
BOCKELMANN, Paul. apud ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos, La
Estructura de la Teoria del Delito. Tradução Diego-Manuel Luzón Peña. Madri: Civitas, 1997: “lo que se hace
culpable aqui al autor no es ya que haya cometido un hecho, sino que solo el que el autor sea ‘tal’ se convierte
en objeto de la censura legal”.
328
Também não se deve esquecer do direito penal fascista que se caracterizava por atribuir ao direito penal a
finalidade de proteger o Estado, estabelecer gravíssimas penas para os delitos políticos definidos subjetivamente,
proteger o partido oficial e, além disso, pelo amplo predomínio da prevenção geral mediante intimidação.
Segundo Zaffaroni e Pierangeli, o autoritarismo fascista orientava-se, em geral, pelo pensamento neo-hegeliano.
O Código Penal Italiano de 1930 mostra-se obra confessa do fascismo (Código Rocco). Manual de Direito
Penal... p. 289.
329
BATISTA, Nilo. ZAFARONI, Eugenio Raul. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro... p. 131.
122

Para esse direito penal, o estado é uma escola autoritária, na qual o valor
fundamental é a disciplina, de acordo com as pautas – intensamente
difundidas pelas agências comunicacionais – que as pessoas devem
introjetar (não apenas cumprir), e as agências jurídicas são tribunais
disciplinares que julgam até que ponto as pessoas internalizam as
orientações estatais, sem se importarem com o que tenham feito mais do
que como habilitação para a intervenção penal. Não se censura o ato, mas
a existência: os operadores jurídicos traduzem a onipotência do estado
onisciente, implacável com os dissidentes330.

Enquanto para alguns autores partidários do conceito positivo-normativo de


bem jurídico o delito constitui uma infração ou lesão jurídica cujo desvalor esgotar-
se-ia no próprio ato; para os partidários da Escola de Kiel, o ato seria apenas uma
lente que permitiria ver a real característica do autor considerando o delinquente um
ser inferior moral, biológica e psicologicamente. O saudável sentimento do povo
alemão assegurava a irracionalidade dessa Escola331.
Dois exemplos na Alemanha da década de 30 relacionados ao direito penal
do autor merecem destaque: a Lei de Delinqüência Habitual (1933) e a Legislação
de Guerra do regime nazista editada em 1939, também, conhecida como
Ordenações de Guerra.
Quanto ao primeiro diploma, Roxin elenca seus pontos marcantes: (i) o § 20
prescrevia uma pena de prisão em caso de terceira condenação,
independentemente do delito praticado, se da valoração global das ações pudesse
deduzir-se que o autor seria um delinqüente habitual e perigoso. Neste ponto,
importante não era a conduta considerada em si, mas sim se o autor pertencia ao
tipo de criminoso habitual e perigoso; (ii) § 51 II previa a redução da pena para
casos de semi-imputabilidade como uma faculdade do juiz e não como direito do
condenado; (iii) a previsão de tipos penais como rufianismo 332, vagabundagem333,

330
Idem, Ibidem... p. 132 e ss.
331
Cfe. MUÑOZ CONDE, Franciso. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu Tempo – Estudos sobre o Direito
Penal no Nacional-Socialismo.4ª Ed. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. pp.
186-192.
332
No Direito Penal brasileiro, o rufianismo encontra previsão no art. 230 do Código Penal: Tirar proveito da
prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por
quem a exerça: pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. §1º Se a vítima é menor de 18 (dezoito)
anos e maior de 14 (catorze) anos ou se o crime é cometido por ascendente, padrasto, madastra, irmão, enteado,
cônjuge, companheito, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou por quem assumiu, por lei ou
outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: Pena – reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. §
2º Se o crime é cometido mediante violência, grave ameaça, fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre
manifestação de vontade da vítima: Pena – reclusão, de 2 (dois) anos a 8 (oito) anos, sem prejuízo da pena
correspondente à violência. Sobre o crime, Heleno Claudio Fragoso preleciona “esta, sem dúvida, a forma mais
sórdida de lenocínio, constituindo parasitismo ao negro ofício da prostituição, de cuja renda miserável participa.
Era aos rufiões que Justiniano chamava pestíferos. A lei penal punindo o rufianismo visa reprimir a exploração
123

mendicância334, etc que, em última análise, não serviam a coibir a existência


concreta de delitos, mas somente o modus vivendi de uma camada da população335.
O Estado nazista fez surgir o ideal inconcebível da raça superior, raça esta
que não podia interagir com aquelas outras consideradas por inferiores (judeus,
negros, ciganos e defidientes físicos)336.
Assim, a pena não funcionava como punição ou simples vingança, seu
objetivo era apenas a segregação daqueles que atacavam a teórica integralidade e
superioridade do povo alemão. A punibilidade foi estendida para antes dos atos
preparatórios, como, por exemplo, o ato de planejar a morte de um líder nazista.

de prostitutas, o que altamente ofende a moral pública.” E prossegue afirmando que os autores alemães, a
propósito do rufião, baseados em decisão da Suprema Corte daquele país costumavam referir-se à necessidade de
reunir o autor daquele crime determinandas características típicas, sendo fundamental para a existência do crime
não apenas a prática da infração cominada, mas também a personalidade característica do agente (Wesen und Art
des Täters). Tratava-se, segundo Fragoso, de uma verdeira admissão da teoria do tipo normativa de autor, o que
seria de pronto incompatível com a ordem jurídica brasileira. Admitia, todavia, a incriminação do rufianismo,
pois segundo Fragoso configurava um estilo de vida antissocial que deveria ser exprimido como um
comportamento jurídico habitual. FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal. Parte Especial. 3ª
Edição: Rio de Janeiro: Forense, 1981. pp. 68-69. Em que pese contribuição doutrinária de Fragoso esta
dissertação mostra-se contrária à criminalização do rufianismo. Como descrito pelo próprio tipo, tirar proveito é
o núcleo típico, quer dizer, a conduta principal do rufião é a extração de lucro, o que é perfeitamente aceitável no
capitalismo. Vários agentes servem como intermediários de atividades em geral e são pagos por meio de
comissionamento. Contudo, o Código Penal visa a punir a atividade do agenciador de prostituição sendo certo
que a mercancia sexual não é atividade ilícita. Pune-se o rufianismo simplesmente por ser uma conduta
moralmente condenável. Havendo livre vontade de quem se envolve na prostituição nenhum grave mal causaria
o agenciador da atividade, com exceção dos casos em que houvesse delito violento que buscasse escravizar
alguém para a prática de relações sexuais. A favor da extinção do crime de rufianismo do Código Penal está
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2010. p. 155.
333
No Brasil, a vagabundagem ou vadiagem encontra previsão no art. 59 da Lei de Contravenções Penais. Diz o
referido dispositivo: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter
renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a próprio subsistência mediante ocupação
ilícita: Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses. Parágrafo único: a aquisição superveniente de
renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a punibilidade”. Vale destacar que
até a consecução desta dissertação a vadiagem continuava sendo contravenção no direito penal brasileiro.
Encontrou-se em pesquisa no sítio da Câmara dos Deputados nada menos que 14 (catorze) projetos de lei que
visavam à revogação da contravenção. Parece que o projeto de lei em fase mais adiantada é o de número
4668/2004 de autoria do deputado federal José Eduardo Cardozo. Enviado à Comissão de Constituição e Justiça
daquela Casa em 21/12/2004 retornou em 08/08/2012. Em 22/08/2012 seguiu ao Senado Federal. Desde
20/09/2012 em relatoria do Senador Pedro Tacques. Em doutrina, Renato de Mello Jorge Silveira argumenta:
“não se pode aceitar, assim, em dias atuais, a manutenção desta figura como ainda válida. Caiu ela em desuso,
quer por sua configuração discriminatória, quer, mesmo, pela evolução do Estado e a percepção da
impossibilidade de intervenção na vida dos cidadãos, os quais têm ampla liberdade de desempenhar suas vidas.
SILVEIRA, Renato de Melo Jorge. Comentários à Lei de Contravenções Penais – arts. 59 a 65. In: SALVADOR
NETTO, Alamiro Velludo (coord.). Comentários à Lei de Contravenções Penais. São Paulo: Quartier Latin,
2006. pp. 278-279.
334
O art. 60 da Lei de Contravenções Penais (já revogado) previa como contravenção “mendigar, por ociosidade
ou cupidez: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses. Parágrafo único: aumenta-se a pena de um sexto
a um terço, se a contravenção é praticada: (a) de modo vexatório, ameaçador ou fraudulento; (b) mediante
simulação de moléstia ou deformidade; (c) em companhia de alienado ou menor de dezoito anos (revogado pela
Lei 11.983/2009).”
335
ROXIN, Claus. Derecho Penal... p. 181.
336
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro... p. 605.
124

Outra medida de claro desrespeito à dignidade humana era vedar práticas sexuais
entre raças, prática esta que se relacionava à idéia da não mistura da raça superior
com as inferiores. Até mesmo a introdução da esterilização como medida de
segurança foi posta em prática nesses casos. Em 1935, institui-se no Estado Nazista
a adoção do princípio da analogia, consagrado no art. 2º do StGB, no qual
introduziu-se o seguinte texto: “É punível aquele que comete um ato declarado
punível pela lei ou que, conforme a ideia fundamental de uma lei penal e o
sentimento do povo, merece ser punido. Se nenhuma lei penal for diretamente
aplicável ao ato, o ato é apenado conforme a lei que se aplique mais adequada à
idéia fundamental337
Segundo Anton Oneca, citando Schaffstein e Dahm, para a Escola de Kiel, o
crime não era só fundamento, senão ocasião da pena; o Estado utilizava a pena
para tornar visível aos olhos de todos o seu poder. Por meio da pena manifestava-se
simbolicamente a dignidade do Estado338.
Após a Segunda Guerra, período em que a repercussão do comportamento
nazista chocou o mundo, o direito penal da Kieler Schule foi duramente criticado e,
por consequência, a partir do novo cenário político desenhado no Ocidente, a
manutenção daquele tipo de ordenamento totalitário e prejudicial à dignidade
humana mostrava-se impossível de perpetuação, eis que significava,
339
fundamentalmente, desrespeito total aos direitos humanos .

3.3 Teorias Contemporâneas

3.3.1 Teorias sociológicas

Após 1945, a democracia, para o Ocidente, passa a ser considerada modelo


ideal de conformação da sociedade política desejosa em se estruturar de maneira
plural, livre de preconceitos ou perseguições. No ambiente comunitário, o indivíduo
participa das decisões comuns e encontra condições de desenvolvimento de suas
potencialidades particulares. Nesse sentido, Kelsen passa a conceber a democracia

337
Idéia similar à adoção da analogia em matéria penal encontrava-se presente no Código Penal Soviético de
1926, que tinha no art. 16 a seguinte redação: “quando algum ato socialmente perigoso não esteja previamente
previsto no presente código, o fundamento e a extensão de sua responsabilidade determinarão em conformidade
com os artigos do mesmo relativos aos delitos de índole análoga”. Cfe. LUISI, Luis. Os Princípios
Constitucionais Penais. 2ª Ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. p 21.
338
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... p. 33
339
Sobre a punição dos líderes nazistas após a Segunda Guerra ver JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O
Tribunal Penal Internacional. A internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
125

como o caminho para a realização da liberdade. Advertia, entretanto, que a noção


de democracia, ao se tornar palavra de ordem obrigatória em qualquer discurso
moderno, poderia sofrer abusos e deformações, de modo que seu emprego como
um simples vocábulo convencional acabaria por retirar-lhe seu verdadeiro sentido
340
.
O Estado verdadeiramente democrático encontra sua legitimidade na
participação popular nos mais variados aspectos da vida comunitária. Destacam-se
as lições de Jürgen Habermas acerca da participação popular e a legitimidade da
produção legislativa penal: a questão de legitimidade, em especial no Direito Penal,
não deve condicionar-se única e exclusivamente ao preenchimento de requisitos
formais. Como observou Habermas, o direito legítimo somente se coadunará com
um tipo racional de coerção jurídica quando este sirva a salvaguardar motivos
importantes para a obediência ao direito341. Habermas, preocupado com o sentido
que essa soberania popular pudesse ocasionar às normas, adverte que a vontade
popular, fruto do consenso, muitas vezes é passível de influência de propaganda.
Um povo comovido, conduzido ou entusiasmado, como expõe Habermas ao citar o
exemplo do nazismo, pode gerar grande ameaça aos direitos humanos.
Após a crise do conceito de bem jurídico provocada pela Escola de Kiel 342,
concepções modernas surgiram, principalmente, com a intenção de promover uma
nova valorização da teoria do bem jurídico ou, então, atribuir como missão do Direito
Penal não a defesa de bens jurídicos isoladamente 343, mas sim a manutenção da
vigência da norma penal atrelada ao interesse da sociedade. Estas últimas teorias,
mais recentes, dividem-se em teorias funcionalistas constitucionais e sociológicas,
respectivamente344.
O primeiro doutrinador funcionalista sociológico exposto nesta dissertação é
Knut Amelung. Segundo este autor, o conceito de bem jurídico deve ser reservado

340
KELSEN, Hans. A democracia. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 25.
341
ENCARNAÇÃO, João Bosco. Filosofia do Direito em Hebermas. Revista Impulso. Piracicaba: Unimep –
Metodista, 2003. Acesso em 01/12/2012. Disponível em <www.unimep.br/phpg/editora
/revistaspdf/imp20art04.pdf>.
342
HIRSCH, Hans Joachim. Acerca del estado... p. 373.
343
POLAINO NAVARRETE, Miguel. Protección... p. 42: “desde la primera mitad del siglo XIX hasta bien
entrada el siglo XX, durante un largo período de tiempo, nadie cuestionaba la virtualidad del concepto de bien
jurídico como elemento definidor de la función esencial del Derecho penal. El bien jurídico era um dogma casi
intocable en la Ciência penal. Y, por eso, llegamos a lo mismo: durante todo esse tiempo, existia acuerdo en que
la función esencial, legitimante, del Derecho penal era la protección de bienes jurídicos, sea como fuera la
forma que esos se entendían”.
344
Cfe. TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. pp. 184 e ss.
126

aos estados das coisas que tenham sido valorados de forma positiva por quem cria
o direito, o que significa, hoje em dia, caber tão-somente ao legislador a eleição de
bens jurídicos, tendo como intenção agir de forma a impedir um comportamento
perturbador à sociedade345.
O uso atual do conceito de bem jurídico na argumentação dogmática, tanto
pela jurisprudência quanto pela doutrina, argumenta Amelung, origina-se de uma
norma de conduta baseada em um juízo de valor do legislador que indica certos
estados de coisas como paradigmas 346.A partir deste juízo, extrair-se-ão limites à
aplicação da norma. Quando a interpretação dirigir-se além ou aquém do bem
jurídico normalmente trazido pelo tipo penal tentar-se-á aferir se será possível com
aquele mandamento jurídico alcançar a finalidade perseguida pelo legislador. Nesta
medida, o conceito de bem jurídico obtido a partir de um valor jurídico construído e
exteriorizado pelo legislador, figura como uma forma de interpretação teleológica dos
tipos penais constantes na parte especial dos códigos.
A crítica mais forte de Amelung direciona-se à doutrina denomina por ele de
tradicional, na Alemanha. Para Amelung, o ponto negativo situa-se no modo de
interpretação adotado atualmente acerca dos bens jurídicos fundamentados,
primordialmente, no critério teleológico, critério este que ocasionaria uma
desqualificação do conceito de bem jurídico de um sentido material para uma
categoria exclusivamente formal, positivista e vazio de conteúdo sendo, ao mesmo
tempo, indeterminada e suscetível de influências políticas seguindo quaisquer
orientações, inclusive forças desprovidas de um padrão crítico apto a fundamentar a
atuação do legislador347. Sobre o tema, vale transcrever passagem de Amelung em
que há a crítica direcionada à concepção de bem jurídico estritamente legalista
presente no cenário dogmático da Alemanha da década de 1980:

345
AMELUNG, Knut. El concepto de bien jurídico en la protección penal de bienes jurídicos. In: HEFENDEHL,
Roland. La Teoria del bien jurídico.¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios
dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007.
346
Amelung menciona três fundamentos pelos quais a contraposição entre sua concepção baseada sobre a
sociedade e uma concepção que se fundamente no indivíduo não deveria ser superada: (1) os interesses da
sociedade e do indivíduo podem solapar-se ou imbricar-se de maneira imediata; (2) uma sociedade desenvolvida
seria capaz de propiciar ao indivíduo melhores condições de desenvolvimento e melhores oportunidades para a
sobrevivência individual; (3) os múltiplos processos de interação em um sistema social altamente diferenciado
com a instalação ou institucionalização de direitos fundamentais jamais poderiam realizar-se por meio da coação
direta estatal, mas sim através da cooperação de cada um dos indivíduos por meio do processo que denomina
incremento das possibilidades de comunicação. Em resumo, para Amelung, no esforço de proteção da sociedade
encontrar-se-á espaço para a proteção dos indivíduos. JAKOBS, Günther. Danosidade Social?... p. 96.
347
AMELUNG, Knut. El concepto... pp. 233-238.
127

El concepto de bien jurídico en si mismo no dice nada sobre el contenido


que hayan de tener los juicios de valor para poder convertir algo en um bien
jurídico, y por ello está abierto a casi cualesquiera valoraciones,
transferiéndolas al sistema dogmático jurídico-penal por médio de sus
numerosas funciones en el mismo, sin que éste se vea categorialmente
sacudido por cada nueva norma y tenga por ello que ser reconstruído.
Gracias a esta característica el dogma del bien jurídico se convierte en um
punto de conexion de la política con la dogmática, y el concepto de bien
jurídico en um concepto complementario de la positividad del Derecho que
348
traslada el dinamismo de lo político a la estabilidad del sistema jurídico .

Sobre a doutrina de Knut Amelung, Helena Regina Lobo da Costa resume:

Amelung confere ao bem jurídico uma função meramente interpretativa.


Quanto à função de crítica e delimitação do direito penal, aduz que se trataria
do resultado de uma série de equívocos históricos. Ademais, diz o autor, em
uma sociedade valorativamente plural ou multicultural não há consenso sobre
os valores que poderiam ser considerados legítimos, razão pela qual a
legitimação deveria ser fundada em um procedimento – o procedimento
legislativo democrático349.

Amelung opta por desenvolver um conceito de bem jurídico amparado num


padrão crítico a servir de contrapeso ao trabalho legislativo. São estabelecidas
bases numa nova definição de delito baseada em conceitos pré-jurídicos calcados
nas perturbações da convivência humana agrupados sob a rubrica danosidade
social que serve de referência à tentativa de conceituar materialmente o delito.
Amelung designa um modo de agir como socialmente perturbador quando este se
fizer prejudicial à concepção permanente do sistema social 350. Por que Amelung faz
referência ao sistema social e não à pessoa? Isso poderia soar politicamente
incorreto, indaga Jakobs. O próprio Jakobs, citando Amelung, responde: “se o direito
penal deve garantir as condições de vida humana em comunidade, então a reflexão
deve ter origem no sistema social e não na pessoa”. E prossegue Jakobs:

Isso parece politicamente incorreto – quem escreve tal coisa recebe a crítica
de que com isso aproxima-se de maneira perigosa da suposta e já superada
idéia cínica, segundo a qual o direito é o que é útil para o povo -, o que não
é desconhecido por Amelung e, por isso, expõe de maneira clara que não
se trata de uma declaração política, mas sim descritiva: a teoria dos sistema
não legitima quando designa as condições de existência de um sistema –

348
Idem, Ibidem p. 263.
349
COSTA, Helena Regina Lobo da. Considerações sobre o estado atual da teoria do bem jurídico à luz do harm
principle.p. 136. In GRECO, Luís. MARTINS, Antonio. Dogmática Penal como crítica da pena. Estudos em
homenagem a Juarez Tavares por seu 70º Aniversário em 2 de setembro de 2012. São Paulo: Marcial Pons,
2012.
350
AMELUNG, Knut. Der Rechstguts in der Lehre vom strafrechtlichen Rechtsgüterschuktz. apud JAKOBS,
Günther. Danosidade Social? Anotações sobre um problema teórico fundamental do Direito Penal. In Teoria da
Pena, Bem jurídico e imputação... p. 94.
128

“ditadura”, “bando de gangsters” – e, por essa razão, “uma instituição


apenas é legítima quando é eticamente correta351.

Segundo Amelung, o postulado a partir do qual as normas jurídicas sempre


devem proteger bens jurídicos somente terá validade se por trás desse objeto da
proteção houver outro argumento a fundamentar a legitimidade fática de sua
atuação: as condições adequadas de vida em comunidade. Em suma, a utilidade
fática da teoria dos bens jurídicos deverá necessariamente encontrar amparo nos
limites constitucionais explícitos ou implícitos, desde que, evidentemente, mostrem-
se úteis à coletividade sob o ponto de vista de tentar impedir o avanço de condutas
socialmente danosas. Ao legislador moderno caberá rechaçar a positivação de bens
jurídicos inúteis, isto é, que não sejam socialmente danosos. Contudo, no caso de
haver utilidade da incriminação levando-se em consideração além da danosidade
social limites constitucionais implícitos e explícitos restará obrigado o legislador a
realizá-la sob o mesmo fundamento de impedir condutas socialmente nocivas,
sempre, aliás, respeitando caracteres especiais do Direito Penal como a ultma ratio
e proporcionalidade.
As normas penais funcionariam, portanto, como instrumentos positivadores
dos bens jurídicos. Entender-se-ão as normas, assim, como elementos estruturais
do sistema social amparados pela Constituição. Amelung reafirma seu perfil
funcionalista sistêmico quando propõe ser a sanção penal um instrumento de
validade para a eficácia de uma norma de conduta.
Para Amelung, a posição doutrinária da dogmática alemã falha ao tratar o
bem jurídico como um conceito normativo quase puro ou acabado, desconsiderando
aspectos do sistema social vigente. Em crise estaria a doutrina tradicional, eis que
permanece incapaz de atender as reais expectativas normativas e, por conseguinte,
impotente a gerar tranqüilidade àqueles atendidos pelo sentido de proteção da
norma.
Claus Roxin expõe dois problemas relativos à doutrina de Amelung que
baseia o conceito material de delito a partir de uma teoria do dano social: (i) o viés
funcionalista sistêmico baseado em Parsons e Luhmann conduziria necessariamente
à tutela do indivíduo como um objeto de proteção a fim de resguardar um interesse
maior, ou seja, um objeto mediato localizado em posição inferior ao interesse social.

351
JAKOBS, Günther. Danosidade social?... p.95.
129

Tal sustentação, na visão de Roxin, poderia significar permissividade ao sacrifício do


indivíduo se assim fosse melhor ao interesse social, o que estaria na contramão da
prevalência da dignidade humana; e, (ii) a teoria proposta por Amelung seria
radicalmente oposta à concepção liberal do direito penal, uma vez que dsconsidera
o fato que nas modernas democracias o Direito visa a servir/proteger o indivíduo e
não o contrário. Diante disso, num Estado Democrático de Direito, o indivíduo há de
ser protegido por sua própria condição humana, independentemente, se faz ou não
parte do tecido social352.
Contando com o mesmo ponto inicial traçado por Amelung, ou seja, a teoria
dos sistemas353 de Luhmann354 e Parsons355, Günther Jakobs ergue sua doutrina em
termos ainda mais críticos ao bem jurídico que aquela feita por Amelung 356.
Comunga Jakobs das críticas aduzidas por Amelung acerca da atual fase da
dogmática penal alemã asseverando que na atualidade as contribuições doutrinárias
acerca da teoria dos bens jurídico-penais são acríticas357.

352
ROXIN, Claus. Derecho penal... p. 68,
353
Sobre a teoria dos sistemas, Juarez Tavares aduz: “a teoria geral dos sistemas é, no fundo, uma teoria
estruturalista, pois busca fundar o método científico na determinação das chamadas tipologias estruturais, que
desempenhariam o papel de princípio unificador da atividade especulativa. O elemento caracterizador dessa
tipologia é representado pela noção de sistema, que simboliza a organização dentro de um processo de
informação. A norma jurídica está situada dentro daquilo que se denominou círculo regulativo e funciona como
uma operadora de informações do justo e do injusto, pelo qual se devem orientar as decisões jurídicas”.
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto... pp. 54-55.
354
LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 2009. A Teoria dos Sistemas
Sociais, para Luhmann, é a forma mais adequada de realizar a análise da atual complexidade do mundo,
ultrapassando as formas clássicas dentro da sociologia. É uma teoria que estuda simultaneamente o sistema
social com ponto de partida no conceito de complexidade e, também, adaptando-se à multicentralidade existente,
sem impor um único ponto de partida para a observação do mundo, seja a socialização, seja a luta entre classes
ou as trocas simbólicas. Para a Teoria dos Sistemas de Luhmann, há várias divisões simultâneas e efêmeras em
funcionamento no mundo complexo e as pessoas não mais cobstituem o agente social por excelência, mas parte
do ambiente dos sistemas sociais, operando em conjunto com estes, a cada momento em que tomam parte nas
comunicações dos sistemas.
355
PARSONS, Talcott. A estrutura da ação social. Vol. II. Petrópolis, 2010. A teoria social de Parsons parte da
ideia basilar de Durkheim, isto é, a de que a educação e a socialização se equivalem. Os estudos de Parsons
acerca da teoria social podem ser classificados como funcionais-estruturalistas. Adota Parsons um viés
organicista, entendendo o sistema social como um instrumento analítico capaz de descrever a ação social. Assim,
a sociedade, para Parsons, ém um sistema estruturado sobre quatro pilares: (i) o cultural, (ii) o econômico, (iii) o
social ou o imperativo funcional e o (iv) político. Com efeito, a sociedade, enquanto sistema, adapta-se ao meio
ambiente no qual está inserida. Sobre os pilares do desenvolvimento da teoria de Parsons, Beno Sander leciona:
“a economia é a unidade funcionalmente diferenciada que satisfaz as necessidades de adaptação da sociedade. A
política é a unidade que tem por função a consecução dos objetivos em sociedade. A cultura satisfaz as
necessidades de manutenção estrutural da sociedade. Por fim, o imperativo funcional ou o social significa a
interação de todos os elementos anteriormente citados a fim de que haja a sobervivência e manutenção da vida
social”.SANDER, Beno. Consenso e conflito: perspectivas analíticas na pedagogia da administração da
educação. São Paulo: Pioneira, 1984. pp.24-25.
356
Ver, por exemplo, JAKOBS, Günther. Fundamentos do Direito Penal. Tradução de André Luis Callegari. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. pp. 138 e ss.
357
Idem., Danosidade social?... p. 93.
130

A teoria de Jakobs é centrada no conceito de um direito penal funcional, ou


seja, na ideia de que o Direito Penal é definido a partir da função que cumpre no
sistema social358. O sistema jurídico seria, no entender de Jakobs, um subsistema
social a compor o sistema social mais abrangente. Ao direito penal caberia o escopo
de estabilizar as normas determinantes da identidade social, ou seja, aquelas
normas fundamentais cuja infração generalizada impediria uma convivência social
minimamente harmoniosa.
Jakobs afirma ser a finalidade do direito penal assegurar a validade fática e a
vigência das normas jurídicas, servindo a garantir expectativas indispensáveis ao
funcionamento do sistema social359. Por meio da imputação de condutas, ocupa o
direito penal o escopo de estabilizar a ordem social, mantendo a segurança dos
cidadãos. Jakobs assevera não ser o Direito Penal um muro protetor erguido em
volta de bens jurídicos penais pré-existentes, mas, sim, algo em transformação no
compasso do avanço e das demandas socialmente relevantes.
Quando alguém deixa de cumprir seus deveres nas relações jurídicas
geralmente acarretará a quebra das expectativas sociais e como conseqüência,
mais ou menos intensa, ocasiona a eclosão de um conflito social. Em síntese, para
Jakobs, o delito não é privação de qualquer meio para desenvolvimento de outrem,
mas apenas a perturbação da estrutura normativa da sociedade360. Esta perturbação
da estrutura normativa da sociedade é muito bem por Amelung como danosidade
social361. Discordando das propostas funcionalistas sistêmicas de Amelung e
Jakobs, Tavares sustenta que embora seja correto associar-se todo o sistema
normativo à danosidade social produzida pelo delito, os funcionalistas (sistêmicos)
utilizam tal critério como simplesmente um princípio conformador e não como
fundamento material de criminalização362.
Bernd Müssig, analisando as contribuições de Jakobs, aduz que o direito
penal serviria, na concepção daquele funcionalista sistêmico, como uma
estabilização contrafática a expectativas de condutas relevantes para o conjunto da

358
Idem,. Sociedad, norma y persona en una teoría de un Derecho penal funcional. Cuadernos de Doctrina y
Jurispridencia Penal, v.5., n.9. Buenos Aires: s.e., 1999. pp. 19-58.
359
JAKOBS, Günther. Danosidade social?... pp. 93 e ss.
360
JAKOBS, Günther. Danosidade social?... p. 103.
361
AMELUNG, Knut. El concepto... pp. 244-246.
362
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto... p. 196.
131

sociedade. A finalidade do direito penal seria, portanto, prestar a garantia da


vigência das normas e, por conseguinte, a garantia da vigência do Direito 363.
Além das críticas formuladas ao excessivo apego ao conceito de bem jurídico
que, segundo Jakobs, ensejaria a proteção de bens jurídicos ausentes de
legitimidade364 como, por exemplo, a proteção de sentimentos ou o asseguramento
de instituições que pouco serveriam a uma sociedade democrática, argumenta,
ainda, que o papel da dogmática alemã atual quando elege como categoria
fundamental de todo o sistema penal o bem jurídico conduziria, inevitavelmente, a
uma desconsideração do estado do autor, estado este que não significa a volta ao
direito penal antidemocrático, pelo contrário, é a chance, segundo Jakobs, de
verdadeira interpretação do comportamento social 365. Caso se decida pela adoção
da teoria do bem jurídico, sustenta Jakobs, correr-se-á o risco de aceitar tudo aquilo
que é posto em uma relação positiva como sendo um bem. O que pode ser
qualificado como um perigoso ataque a um bem jurídico deve somente ser admitido
como tal quando a conduta intentar prejudicar o estado de integralidade da
sociedade366 adverte Jakobs.
Em crítica à posição de Jakobs, na doutrina nacional, Luiz Regis Prado
sustenta que a admição da posição do doutrinador alemão, significará ma erosão do
conteúdo liberal do bem jurídico, o que poderia dificultar a limitação do jus puniendi
estatal. Continuando as críticas, afirma Prado: “trata-se de uma concepção

363
MÜSSIG, Bernd. Desmaterialización del bien jurídico y de la política criminal. Sobre las perspectivas y los
fundamentos de una teoría social del bien jurídico crítica hacia el sistema. Revista Ibero-Americana de Ciências
Penais, ano 2 , n. 4. Porto Alegre: Centro de Estudos Ibero-Americanos de Ciências Penais, 2001. p. 178: “el
Derecho penal garantiza – desde la perspectiva del conjunto de la sociedad – el Derecho como estructura de la
sociedad y, com ello, la configuración fundamental de ésta.; y desde la perspectiva individual garantiza las
condiciones fundamentales de las interacciones sociales mismas: el modelo fundamental de orientación para la
configuración de los contactos sociales. Esta concepción contiene un momento preventivo sólo en la medida en
que la existecia misma de estructuras actualiza la dimensión social de la comunicación y, com ello, la del prorio
sistema social; em consecuencia de la confirmación demostrativa de las estructuras existentes remite hacia el
futuro”.
364
A legitimidade, segundo Jakobs, é caracterizada como “que seja legítimo é algo que se configura como
espírito de um tempo (e que é apreendido especulativamente pela filosofia) e ademais será apresentado como
estável enquanto espírito vinculado com a cultura jurídica transmitida e dedicado à conservação e incremento
dessa cultura. Esse espírito, que preenche e reflete a – concebida enfaticamente – realidade do presente, não pode
obviar-se se queremos que oo direito seja determinador da realidade. Se confrontarmos o espírito dos tempos
com veementes e acalorados postulados político-jurídicos, então o espírito parecerá frio, porquanto que se
encontra vinculado com o que é factível e, na qualidade de espírito de uma sociedade complexa seu conteúdo
não pode sersempre algo demasiado. Hassemer descreveu, com seu desenvolvimento bastante diferenciado da
experiência valorativo-existencial ou do acordo normativo, como o espírito dos tempos se converte em algo
subjetivo: o que pe vinculante rege-se pela comunicação, não por sujeitos”. JAKOBS, Günther. Danosidade
Social?... pp. 105-106.
365
JAKOBS, Günther. Fundamentos do Direito Penal... p.116.
366
Idem, Ibidem. pp. 112-113.
132

formalista, vazia de conteúdo, que pode ser incompatível com os postulados do


Estado Democrático de Direito 367”.
Em tom ainda mais severo, Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar afirmam que a
teoria do bem jurídico é indispensável para dotar de eficácia o princípio da
lesividade368. Em outro ponto, chegam a comparar a doutrina de Jakobs, amparada
na validade fática das normas, àquela direito penal do autor, próprio de regimes
ditatoriais369, pois tende Jakobs a reduzir o direito penal ao interesse estatal no
adimplemento das obrigações derivadas dos papéis normativizados: “não se pode
ignorar que sempre que se enuncia o conceito de bem jurídico através de uma
generalização, seja o são sentimento do povo ou a validez das normas, está-se
reduzindo a complexa e multifária diversidade os bens jurídicos a um bem único,
ensaio que tem como precedente Hegel ao caracterizá-lo como lesão à vontade
geral370.
Antonio García-Pablos de Molina sustenta que as contribuições de Jakobs
favorecem não apenas o arbítrio punitivo, mas, também, com a substituição do
conceito de bem jurídico pelo conceito de funcionalidade do sistema perderá a
Ciência Penal o último apoio de crítica ao Direito Penal positivo. E assim arremata o
professor espanhol371:

Por outro lado, um funcionalismo de signo normativista, além de conceber o


Direito Penal segundo uma perspectiva de pura eficácia (substancialista),
posto que para a incidência da sanção penal bastaria o rompimento de uma
norma, rejeita o princípio da ofensividade, entendido como uma lesão ou
perigo de lesão a um bem jurídico, que deve ocupar hoje, a latere de outros

367
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... p. 36.
368
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro. Segundo volume: teoria do delito, introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. Rio de
Janeiro: Revan, 2010. pp. 215-216. Sustentam os doutrinadores que a teoria do bem jurídico é antes de tudo uma
teoria visando à limitação do poder punitivo estatal, mesmo se tratando de uma tarefa extramenente difícil, pois:
“a decisão política criminalizante, sempre determinada por conjunturas do poder, por demandas publicitárias do
populismo penal: as emergências desnudam o uso oportunista da ultima ratio”. E prosseguem, em trecho
favorável à adoção da teoria do bem jurídico, apesar de todas as vicissitudes: “que o conceito limitativo de bem
jurídico tenha se pervertido num conceito legitimante, que faculta metodologicamente uma criminalização
ilimitada, é prova suficiente de sua incapacidade para a tarefa redutora. Quem não define para quê serve a pena
está impossibilitado de distinguir entre poder punitivo legítimo e ilegítimo, e também de indicar o poder político
até onde não se apresente poder jurídico para contê-la. Em outras palavras: o estado de polícia sempre avança até
onde o Estado de Direito consentir. Mas os equívocos do conceito legitimante de bem jurídico não nos devem
conduzir a descartar o conceito limitativo”.
369
Batista et al , cuidadosamente, expõem a diferença entre a doutrina de Jakobs e aquela típica do direito penal
nazista, posto que Jakobs não pauta sua imputação numa Gesinnung (numa disposição anterior), mas sim na
violação de um papel social.
370
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro. Segundo volume: teoria do delito, introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade... p. 219.
371
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flavio; BIANCHINI, Alice. Direito penal:
introdução e princípios fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p.259.
133

princípios garantistas, o centro do sistema penal, fundado no modelo de


Estado Constitucional e Democrático de Direito.

Sobre as críticas direcionadas à sua teoria, Jakobs posioiona-se no sentido


de que a substituição da ideia de bem jurídico pela ordem normativa autorizaria a
utilização do direito penal para a tutela de qualquer ordem normativa,
independentemente de seu conteúdo. Esta conclusão, segundo o autor, é
equivocada, pois a teoria do bem jurídico também não forneceria ao direito penal um
potencial crítico; assim, ambas as escolhas teóricas (vigência da norma ou proteção
de bens jurídicos), ao final, seriam escolhas de conteúdo político, e não científicas,
uma vez que (i) o pensamento de uma funcionalização de todas as atividades
estatais sobre a base do indivíduo conduziria a um parâmetro monista de desapego
total à coletividade; (ii) a fundamentação de que a proteção dos sujeitos é
consequência de uma concepção contratualista é retrógrada, eis que recusa a
circularidade das relações sociais e (iii) em alguns casos o delito não significa a
destruição de um bem, mas, sim, sua não realização como, por exemplo, do delito
de prevaricação372.
Miguel Polaino Navarrete373 discorda da vertente doutrinária que tenta ligar a
posição funcional sistêmica de Jakobs à Escola de Kiel. Polaino Navarrete sustenta
que na atualidade, principalmente na Alemanha, o conceito de lesão a um dever de
preservação da vigência da norma sofre preconceitos em virtude de uma automática
remição ao Direito Penal nazista. Contudo, entende ser essa tentativa difamatória
excessiva, eis que em última instância todo delito pressuporia uma lesão a um
dever, e, este aspecto orientaria com razão o funcionalismo moderno, sempre
amparado nos direitos humanos e na dignidade do homem. Assim, complementa
Polaino Navarrete:

El delito atenta contra el deber de todo ciudadano de comportarse de


acuerdo a la norma, esto es – para decirlo con terminologia jakobsiana – de
comportarse como persona em Derecho. El delito es lesión contra um deber

372
JAKOBS, Günther. Danosidade Social?... p. 93-98. Sobre as afirmações calcadas no conceito individual-
monista de bem jurídico Jakobs, parafraseado Aristóteles, afirma: “quem não possa viver em sociedade, ou – por
ser autossuficiente – não necessite dela, não pe mebro do Estado, é ou uma besta ou um Deus. A recém-esboçada
teoria monista-individual do bem jurídico não se apoio, em todo caso, na essência da sociedade, mas sim no
indivíduo, cujo desenvolvimento deve constituir abertamente o propósito final do fim do mundo”.
373
POLAINO NAVARRETE. Miguel. Protección de bienes jurídicos y confirmación de la vigência... p. 38. No
mesmo sentido, isto é, em discordância daqueles que criticam Jakobs, atribuindo a maior parte das críticas as
características de “anedoctas o malintencionadas descalificaciones” ver POLAINO NAVARRETE, Miguel. El
valor de la dogmática em Derecho Penal. Homenaje al profesor Dr. Gonzalo Rodríguez Mourullo. Madri:
Civitas, 2005. pp. 837-852.
134

de respeto de los demás ciudadanos (y de sus respectivos bienes): todo


delito es infracción de un deber mínimo de cuidado o de respeto de los
demás ciudadanos. Otra cosa es el contenido de ese deber, esto es, los
concretos bienes jurídicos o valores que cada Sociedad y cada sistema, de
acuerdo a sus preferencias y sus necesidades sociales (esto és, en
terminologia funcionalista sistêmica: a sus expectativas sociales) considere
conveniente tutelar. Pero ello no excluye que el concepto de lesión de deber
pueda ser útil en la Dogmática penal, sino todo lo contrario.

3.3.2 Teorias constitucionalistas

O Estado moderno se consolidou, ao longo do século XIX, sob a forma de


Estado de Direito. Segundo Dalmo de Abreu Dallari, os sistemas políticos dos
séculos XIX e início do século XX nada mais significaram que a crença na afirmação
das ideias modernas de um Estado Democrático com raízes no século XVIII 374. Na
maior parte dos países europeus, a fórmula adotada no século XIX foi a monarquia
constitucional375. Segundo José Afonso da Silva376, o Estado de Direito é um
conceito tipicamente liberal e suas características básicas são: (i) a submissão ao
império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada
como ato enunciado formalmente pelo Poder Legislativo, (ii) a divisão dos poderes,
que separaria de forma harmônica e independente os Poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário e, por fim, (iii) enunciado e garantia dos direitos individuais 377.
Um Estado de Direito exclusivamente em sentido formal tem sua gênese no
exato momento em que passa a viger em seu território uma ordem jurídica cujos
preceitos materiais e procedimentais sejam observados pelos órgãos de poder e por
particulares. Necessariamente insculpido sobre uma ordem legal, sob o manto do
governo da maioria, um Estado de Direito formal nem sempre estará preocupado em
atender os ditames sociais fundados na dignidade humana. Tem-se como exemplo o
Estado nazista que formalmente era classificado como Estado de Direito, mas que
materialmente era um estado de exceção.

374
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 25ª Edição. São Paulo: saraiva, 2005. p.
145.
375
Cfe. BARROSO, Luis Roberto. Direito Constitucional Contemporâneo. Conceitos fundamentais e a
construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p.40.
376
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores. 26ª Ed,
2006. p. 113.
377
Quanto ao conceito de Estado Direito, José Afonso da Silva salienta que é perceptível que seu conceito
dependa da própria ideia de Direito. Por isso, a expressão Estado de Direito pode ter tantos significados e
designar tantas coisas diferentes quanto a palavra Direito. Por exemplo: havia um Estado de Direito Feudal, bem
como um Estado de Direito burguês, outro Nacional e etc. Disso derivaria, segundo o mestre do Largo de São
Francisco, a ambiguidade da expressão Estado de Direito, sem mais qualificativo que lhie implique o conteúdo
material. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo... p. 113.
135

A ideia de lei genérica e abstrata, fundada pelo Estado legislativo, supunha


uma sociedade homogênea, composta por homens livres e iguais e dotados das
mesmas necessidades. É claro que essa pretensão de liberdade e igualdade foi
rapidamente negada pelas circunstãncias concretas da vida, inexoravelmente
formada por pessoas e classes sociais diferentes e com necessidades e aspirações
completamente distintas.
A lei genérica ou universal, assim como a sua abstração ou eficácia temporal
ilimitada, somente seriam possíveis em uma sociedade formada por iguais, o que
figura utópico, ou, então, em uma sociedade em que o Estado ignorasse as
desigualdades sociais para privilegiar a liberdade, baseando-se na premissa de que
a liberdade somente seria garantida de os homens fossem tratados de maneira
formalmente igual, independentemente de suas desigualdades concretas. Merece
destaque, como faz Luiz Guilherme Marinoni378, que a igualdade social ou material
constitui requisito para a efetivação da própria liberdade, ou melhor, para o
desenvolvimento da sociedade. Conclui-se, portanto, que a liberdade somente
poderia ser usufruída por aquele que tivesse o mínimo de condições materiais para
uma vida digna379. Surge, então, o Estado preocupado com as questões sociais que
impediam a justa inserção do cidadão na comunidade. É o Estado Social.
Segundo Paulo Bonavides380, o grito ideológico da década de 20 do século
passado exprimia a dor de um grande parto: o das Constituições de inspiração
socialista ou socializante, cuja versão ocidental, após a Segunda Guerra Mundial,
traduziu-se de forma mais recatada no Ocidente como o constitucionalismo do
Estado Social.
A noção moderna de democracia somente viria a se desenvolver mais adiante
quando se incorporaram à ideia de Estado de Direito novas discussões como a fonte
legitimadora do poder e a representação política. Apenas quando já se adentrava ao
século XX é que foram completados os termos da complexa relação de poder a fim
de se formar o conceito de Estado Democrático de Direito. São os termos dessa
equação: quem decide (fonte do poder), como decide (procedimento adequado) e o

378
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2007. p. 41.
379
Cfe. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegra:
Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. pp. 5-10.
380
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. pp. 102
e ss.
136

que pode ou não pode ser decidido (conteúdo das obrigações negativas e positivas
dos órgãos de poder381). Sobre o tema, José Afonso da Silva382 aduz:

A democracia, como realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade


da pessoa) de convivência humana, é conceito mais abrangente do que o
de Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica da democracia
liberal. A superação do liberalismo colocou em debate a questão da sintonia
entre o Estado de Direito e a sociedade democrática. A evolução desvendou
sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito, nem
sempre de conteúdo democrático. Chega-se agora ao Estado Democrático
383
de Direito que a Constituição [brasileira] acolhe no art. 1º como um
conceito-chave do regime adotado, tanto quanto o são o conceito de Estado
de Direito Demcorático da Constituição da República Portuguesa (art.2º) 384
e o de Estado Social e Democrático de Direito da Constituição Espanhola
385
(art. 1º) .

A democracia que dá liga aos Estados modernos deve ser composta de de


conteúdo material, ou seja, mais que um governo da maioria deve ser um governo
para todos e, também, de conteúdo formal. A democracia em sentido formal inclui a
ideia de governo da maioria e de respeito aos direitos individuais geralmente
realizáveis por meio de abstenção ou cumprimento de deveres negativos pelo
Estado386. Já a democracia em sentido material é mais que um governo da maioria,
é um governo para todos. Isso inclui não apenas grupos de menor
expressão387.Para a realização da democracia nessa dimensão mais profunda e
verdadeiramente material, impõe-se ao Estado não apenas o respeito aos direitos
individuais, mas, também, a promoção de outros direitos de conteúdo social
necessários ao estabelecimento de patamares mínimos de igualdade material. Ainda
na linha de evolução constitucional, o último quarto do século XX assistiu ao

381
Cfe. BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo... p. 40.
382
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo... p. 112.
383
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a
cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o
pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
384
Art. 2º da Constituição da República Portuguesa de 1976. A República Portuguesa é um estado de direito
democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no
respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de
poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia
participativa.
385
Art. 1º da Constituição Espanhola de 1978: España se constituye en um Estado social y democrático de
Derecho, que proougna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la igualdad y
el pluralismo político.
386
V. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2ª Ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009. pp. 55-57.
387
V. BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo. pp. 123 e 131.
137

surgimento de uma nova gama de direitos – a terceira geração ou dimensão388 – que


se caracteriza pela transindividualidade e cujos titulares ligam-se por um vínculo de
solidariedade (direitos difusos). Incluem-se neste grupo, por exemplo, os direitos ao
meio ambiente equilibrado, a preservação do patrimônio históricio, artístico e cultural
e, ainda, a preservação do patrimônio genético humano389.
O constuticionalismo democrático do início do século XXI ainda tenta conciliar
as complexas relações entre soberania popular e direitos fundamentais, entre
governo da maioria e vida digna e liberdade para todos, tudo isso em um almejado
ambiente de justiça, pluralismo e diversidade390.
Nesse ambiente de constitucionalismo democrático, as teorias constitucionais
do bem jurídico-penal procuram formular critérios capazes de impor de modo
necessário ao legislador limites ao direito de criar o ilícito penal.

388
Cfe. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional...p. 569: “com efeito, um novo polo jurídico de
alforria se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e
universalidade, os direitos fundamentais de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX
enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses do indivíduo, de um grupo
determinado ou de um Estado. Tem primeiro destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de
sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já
enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos
anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao
desenvolvimento da paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade”.
389
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações.§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao
Poder Público:I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das
espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as
entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da
Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a
supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos
atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a
que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e
substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;VI - promover a educação
ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII -
proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.§ 2º - Aquele que explorar recursos
minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo
órgão público competente, na forma da lei.§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente
sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da
obrigação de reparar os danos causados.§ 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar,
o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei,
dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos
naturais.§ 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias,
necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.§ 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua
localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.
390
V. BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo... p. 41.
138

Segundo Luiz Regis Prado391, o conceito de bem jurídico deve ser inferido a
partir da Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas
político-criminais. Podem as teorias constitucionalistas serem divididas em (i) teoria
estrita e (ii) teoria geral ou ampla. No Brasil, Janaína Conceição Paschoal 392 prefere
denominá-las, respectivamente, de teoria da constituição como limite positivo ao
Direito Penal e teoria da constituição como limite negativo. O ponto em comum
dessas duas teorias, segundo Paschoal, é o fato de o legislador ordinário somente
poder utilizar a tutela penal para a proteção de bens jurídicos reconhecidos explícita
ou implicitamente pelo Texto Constitucional como relevantes ou caros a uma
determinada sociedade393.
A diferença entre as teorias reside na característica de a teoria ampla ou geral
faz referência ao texto maior de modo genérico, amplo, abrangente, isto é, fazendo
remissão à forma de Estado (Democrático de Direito) estabelecida, aos princípios
que inspiram a norma fundamental e com base nos quais se constrói o sistema
punitivo394; enquanto a teoria estrita ou negativa dos limites aduz que para a máxima
intervenção estatal no campo da tutela penal ser admissível não basta que a lei
penal não entre em conflito com a Constituição, conforme prevê a teoria adversa,
mas, sim, deverá o legislador penal, necessariamente, criminalizar condutas que
firam os valores de relevância constitucional. Trata a teoria estrita do princípio da
legalidade não só na legislação infraconstitucional, mas na própria Constituição, a
qual reflete os valores sociais395. Segundo Prado396, as teorias constitucionais
estritas são mais comuns na doutrina italiana, representada, principalmente, por
Franco Bricola397 que faz análise do Direito Penal daquele país tendo como
parâmetro o art. 13 da Carta Política Italiana398. O professor da Universidade
Estadual de Londrina arremata399:

391
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... p. 52.
392
PASCHOAL, Janaína Conceição. Constitucionalização, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. pp. 55 e ss.
393
PASCHOAL, Janaína Conceição. Constitucionalização...p. 59.
394
Cfe. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... p. 52.
395
Cfe. PASCHOAL, Janaína Conceição. op. cit.,. p. 59.
396
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... p. 54.
397
BRICOLA, Franco. Teoria generale del reato. Novissimo digesto italiano. Torino: Unione Tipográfica-
Edutrice Torinese, tomo XIX, 1957. p. 15 apud PASCHOAL, Janaína Conceição. op. cit.,... p. 61.
398
Art. 13 da Constituição Italiana: La libertà personale è inviolabile.(i) Non è ammessa forma alcuna di
detenzione, di ispezione o perquisizione personale, né qualsiasi altra restrizione della libertà personale, se non
per atto motivato dell'Autorità giudiziaria e nei soli casi e modi previsti dalla legge.(ii) In casi eccezionali di
necessità ed urgenza, indicati tassativamente dalla legge, l'autorità di Pubblica sicurezza può adottare
provvedimenti provvisori, che devono essere comunicati entro quarantotto ore all'Autorità giudiziaria e, se
139

De outro passo, as teorias constitucionias estritas, representadas por F.


Bricola, E. Musco, F. Angioni, J. J. González Rus e E. Gregori, orientam-se
firmemente e em primeiro lugar pelo texto constitucional, em nível de
prescrições específicas (explícitas ou não), a partir das quais se encontram
os objetos de tutela e a forma pela qual deve ser revestir, circunscrevendo
dentro de margens mais precisas as atividades do legislador
infraconstitucional.

Consoante a teoria geral, majoritária na doutrina e, também, à qual este


trabalho adere-se, costuma-se fazer referência à Constituição de modo genérico,
isto é, a criminalização que não desrespeite claramente o texto constitucional será
admitida, ainda que o bem jurídico a ser tutelado não esteja previamente citado pela
Carta.
Assim, para os defensores da vertente da limitação negativa, o Estado poderá
tipificar condutas atentatórias a valores que não tenham sido reconhecidos pela
Constituição, desde que tal criminalização não afete os valores constitucionais
implícitos ou explícitos. Pietro Nuvollone400, por seu turno, entende que a
Constituição é incapaz de esgotar todos os bens cujas ofensas são passíveis de
criminalização. É lugar comum, segundo o doutrinador italiano, que em algumas
circunstâncias (por exemplo, a proteção à vida) a Constituição expressamente
mencione a necessidade de tutela. Contudo, devido a fatores históricos e culturais
novos bens jurídicos merecedores de proteção poderão surgir e ocupar um papel
legítimo no cenário democrático, mesmo não estando previamente reconhecidos
pela ordem constitucional vigente. Neste mesmo sentido posiciona-se Nilo Batista401.
Para o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, não deve haver um
catálogo pré-estabelecido de bens jurídicos à espera do legislador
infraconstitucional, mas, sim, que esses bens devam ser formulados a partir de um
contexto histórico e social que determine sua imprescindibilidade, evidentemente,
desde que respeitem a dignidade humana. Deve ser evitada, segundo Batista, a
criminalziação de condutas simplesmente seguindo a orientação positivada pelo
legislador constituinte originário no corpo da Carta Polítca.

questa non li convalida nelle successive quarantotto ore, si intendono revocati e restano privi di ogni effetto.(iii)
È punita ogni violenza fisica e morale sulle persone comunque sottoposte a restrizioni di libertà.(iv) La legge
stabilisce i limiti massimi della carcerazione preventiva.
399
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... p. 54.
400
NUVOLLONE, Pietro. La problemática penale della costituzione. Aspetti e tendenze del diritto
costituzionalle: scritti in onore di Costantino Mortati. Milão: Giuffrè, 1957. p. 491
401
BATISTA, Nilo Batista. Introdução Crítica ao Direito Penal brasileiro. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
p.96.
140

Perfilhando-se àquela corrente doutrinária geral, ampla ou negativa também


posiciona-se Claus Roxin. Ao analisar o moderno direito penal, Roxin fundamenta-se
na noção de Constituição, mais especificamente, da ideia de Estado Democrático de
Direito402. Segundo o catedrático alemão, a proteção de bens jurídicos é um dos
elementos que deve definir a intervenção penal, em consonância com a finalidade
de proteção subsidiária dos bens jurídicos, excluindo-se, portanto, a tutela penal de
imoralidades ou contravenções403.
Roxin define os bens jurídicos como “circunstancias dadas o finales que son
útiles para el indivíduo y su libre desarrollo en marco de un sistema social global
estructurado sobre la base de esa concepción de los fines o para el funcionamiento
del proprio sistema404”. O conceito de bem jurídico em Roxin torna mais visíveis os
problemas do limite do ius puniendi estatal e pode levar a uma solução racional dos
mesmos405. Ao legislador penal adepto de tal conceito proposto por Roxin deverá
vedar incriminações arbitrárias que não protegem bens jurídicos, bem como
tipificações puramente ideológicas e meramente imorais406. Além disso, os princípios
constitucionais também funcionariam com o escopo de limitar a atuação do
legislador, ou seja, não se poderá proteger por meio do direito penal bens jurídicos
desprovidos de importância constitucional.

402
ROXIN, Claus. Derecho Penal... p. 55.
403
Idem, Ibidem... pp. 56-57.
404
ROXIN, Claus. Derecho Penal... p. 56.
405
Idem, Ibidem. p. 58.
406406
Sobre a vedação da criminalização de condutas meramente imorais ou ideológicas Roxin busca resolver
dois problemas comumente tratados na doutrina penal: tráfico de drogas e maus tratos a animais. Nesses casos,
qual seria o fundamento da intervenção punitiva estatal? Para Roxin, “la punibilidad de la venta de drogas etc.,
se justifica por la incontralabilidad, que de lo contrario se produciría, de su difusión y de su peligro para
consumidores no responsables, sobre todo también para los jóvenes menores de edad”. Ainda quanto às drogas,
especificamente acerca do consumo pessoal de narcóticos, Roxin mostra-se desfavorável à criminalização: “ello
ya no es compatible con una concepción del Derecho penal orientada al bien jurídico y se aproxima
peligrosamente a un Derecho penal de la actitud interna”. Acerca da proteção penal conferida aos maus tratos
a animais: “um punto neurálgico lo constituye también el tipo de los malos tratos a animales (§ 17 TierSchG),
que siempre se cita como prueba de que incluso sin lesión a bienes jurídicos há de admitirse la punición. Y
efectivamente cabe preguntar cómo va a ser útil para la libertad del ciudadano o el aseguramiento del sistema
social la ‘protección de la vida y bienestar del animal’, a la que quiere servir la TierSchG según sus própias
manifestaciones. No obstante, hay que considerar admisible la punición de los malos tratos a los animales. Pero
ello no significa que en este caso se proteja una mera concepción moral, sino que hay que partir de la base que
el legislador, em una espécie de solidariedad entre las criaturas, también considera a los animales superiores
como nuestros semejantes, como ‘hermanos distintos’, y los protege como tales. Según esto, en la protección de
la convivencia humana se incluye también, aunque con diferente atenuación, junto a la vida humana em
formación la vida de los animales superiores. Su sentimiento de dolor se equipara hasta um cierto grau al del
hombre. El § 90 a BGB responde a dicha concepción”. Idem, Ibidem... p. 59.
141

Jorge de Figueiredo Dias407 preleciona que o direito penal de um Estado de


Direito material deve submeter-se a um rígido esquema de legalidade, sistema este
que se preocupa, antes de tudo, com a consistência dos direitos, das liberdades e
das garantias da pessoa; mas, por essa mesma razão, desloca-se segundo ideais
de justiça na promoção e na realização de todas as condições (políticas, sociais,
culturais e econômicas) para o desenvolvimento mais livre possível da
personalidade de cada indivíduo. Na acepção do catedrático português, o Estado de
Direito material ou o Estado Democrático de Direito deve ser fundamentalmente um
Estado de justiça.
Concordando com as concepções democráticas do Direito Penal servindo á
ideia de consolidação do conceito bem jurídico plasmado na Constituição, como uma
forma de limite ao jus puniendi estatal, Santiago Mir Puig408 aduz

O princípio do ‘Estado de Direito’ impõe o postulado da submissão do poder


punitivo ao Direito, o que dará lugar aos limites derivados do princípio da
legalidade. A ideia de ‘Estado Social’ serve para legitimar a função de
prevenção na medida em que seja necessária para a proteção da
sociedade. Isso já implica vários limites que giram em torno do requisito
necessidade social da intervenção penal. Por fim, a concepção do ‘Estado
democrático’ obriga, na medida do possível, a colocar o direito penal a
serviço do cidadão, o que pode ser visto como fonte de certos limites que
hoje são associados ao respeito a princípios como a dignidade humana, da
igualdade e da participação do cidadão.

No contexto deste Estado de Direito material, a função da dogmática jurídico-


penal transformou-se de sobremaneira. O jurista deixou de ser um simples silogista
limitado a deduzir do texto da lei as soluções dos concretos problemas jurídicos da
vida. Tornou-se, então, um indivíduo sobre quem recairá a indeclinável
responsabilidade de alcançar a solução mais justa para cada um dos problemas a
afetar direito e sociedade.
Desse raciocínio funcionalista constitucional acerca da teoria geral do bem
jurídico constitucional emergem, segundo Roxin409, algumas conseqüências
importantes a fundamentar a atuação penal:

(i) a cominação arbitrária de penas é incapaz de proteger de bens jurídicos: “las


conminaciones penales arbitrárias no protegen bienes jurídicos y son

407
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral... p. 27.
408
MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: Fundamentos e Teoria do Delito. Tradução Cláudia Vianna Garcia e José
Carlos Porciúncula Neto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007... p. 38.
409
ROXIN, Claus. Derecho Penal... p. 55-60.
142

410 411
inadmisibiles ”. Para Roxin , não se poderá exigir respeito às leis por
parte de um cidadão se a incriminação da conduta mostrar-se inútil à
manutenção dos direitos individuais ou, também, incapaz for a incriminação
de assegurar a capacidade funcional de um sistema no qual está incluído.

(ii) O bem jurídico não deve servir a finalidades puramente ideológicas ou


moralizantes: a manutenção de ideologias, como, por exemplo, o ideal de
pureza ariana, a orientação heterossexual e a difusão de pornografia
envolvendo adultos não podem ser condutas consideradas atentatórias ao
Direito Penal, pois nada afetam de forma concreta um bem jurídico, mas
somente transmitem orientações de ordem moral412.

413
(iii) Proibição de incriminação de condutas internas : ideias, desejos,
convicções, aspirações e sentimentos não podem constituir fundamento do
tipo penal414. O projeto mental do cometimento de um crime não será
punível. A priori, em qualquer hipótese, segundo Roxin415, será necessária à
conduta interna sua associação à realização externa416.

410
Idem, Ibidem. p. 56.
411
Idem, Ibidem.
412
Idem, Ibidem... p.57. Contrário à posição de Roxin acerca da vedação da utilização de bens jurídico-penais a
situações imorais, Mir Puig aduz: “es excesivamente incocreta. En realidad sirve sólo para excluir la
punibilidad de los hechos exclusivamente imorales, y aun en este ámbito lo difícil será en muchos casos decidir
si el hecho atenta o no únicamente en la Moral... En cuanto a la consecuencia que pretende extraer Roxin de su
concepción, de que no cabe penalizar al puro ilícito administrativo, no se desprende de la limitación del ius
puniendi a la protección de bienes jurídicos, sino del carácter subsidiário del Derecho penal... La formulación
peca, por lo demás de excesivo naturalismo que substituye a un verdadero desarrollo social del bien jurídico”.
Cfe. MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal... p. 132.
413
Cfe. HASSEMER, Windfried. Bienes jurídicos em derecho penal.Estudios sobre la Justicia Penal. Homenaje
al Profesor Julio B. Maier. Buenos Aires: Editorial del Puerto, 2005. p 63.
414
V. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ... p. 92.
415
ROXIN, Claus. Derecho Penal.,... p. 56.
416
O próprio Claus Roxin relativiza esse mandamento em Conferência ministrada no Peru e na Colômbia no ano
de 2004. Trancrições das palestras encontram-se anexas à obra coletiva Teoria del Bien Jurídico organizada por
Roland Hefendehl...: “El principio de protección de bienes jurídicos no puede ser considerado el único criterio
para legitimación de los tipos penales. En la doctrina jurídico-penal alemana se discute intensamente sobre la
justificación democrática de la tendencia de nuestro legislador a adelantar la intervención penal a estádios
previos a la lesión del bien jurídico. Así, por ejemplo, la conducción bajo los efectos del alcohol se pune incluso
cuando no ha ocurrido nada, y la punición por estafa consumada de seguro tiene lugar cuando uno hace
desaparecer su propriedad para luego declararla como robada ante el seguro. En tales casos, muy numerosos
en la legislación más reciente, el principio de la protección de bienes jurídicos sólo és útil em forma modificada.
Sin duda: los preceptos que he puesto como ejemplo sirven a la protección de bienes jurídicos; el primero de
ellos a la de la integridad física, la vida y los valores patrimoniales en el tráfico rodado, el segundo, a la del
patrimonio de las empresas de seguro. El problema de estos preceptos es que la conduta incriminada aún se
sitúa muy lejos de la auténtica lesión de bienes jurídicos. Del concepto de protección de bienes jurídicos sólo se
sigue que en los supuestos de antelación considerable de la punibilidad se precisa una justificación especial de
por qué ésta es necesaria para la protección efectiva de un bien jurídico”. ROXIN, Claus. ¿ És la protección de
bienes jurídicos una finalidad del Derecho penal? In Teoria del Bien Jurídico... p. 454.
143

Além de Roxin, outro autor de destaque que sustenta ser Constituição limite e
fundamento à criação de tipos penais visando à proteção a bens jurídicos é Hans-
Joachim Rudolphi. Segundo Rudolphi417, ao Direito Penal amparado na Constituição
cumpre a função de proteger de possíveis ataques a normal convivência dos
indivíduos na sociedade, evitando, desta forma, a ocorrência de comportamentos
socialmente danosos.

El reconocimiento de que el jus puniendi del Estado se halla legitimado


constitucionalmente para el fin de la protección de bienes jurídicos siempre
que, por sus efectos preventivo-generales y preventivo-especiales,
constituya um médio adequado, necesario y proporcionado para combatir
las lesiones de dichos bienes, es precisamente lo que justifica la existencia
de los diversos niveles de imputación.

Adverte, ainda, Rudolphi que o Estado de Direito é mais que um simples


Estado de legalidade, só encontrando sua verdadeira legitimidade na ideia de justiça
material. O bem jurídico nesse contexto é concebido como uma valiosa unidade de
função social, indispensável para a sobrevivência da vida da comunidade 418.
Estabelece Rudolphi419 três condicionantes para a concretização do bem jurídico
como um juízo de valor do ordenamento positivo baseado na Constituição. São eles:
(i) o legislador não é livre em sua decisão para elevar à categoria de bem jurídico-
penal qualquer juízo de valor, estando vinculado às metas ou fins almejados pela
Constituição; (ii) Além do fator valorativo do bem jurídico, deverá o legislador levar
em consideração as condições e as funções em que se baseia a sociedade dentro
de um marco constitucional e (iii) respeito ao princípio da lesividade e da intervenção
mínima e fragmentária do Direito Penal. Como Assevera Prado, que um tipo penal
seja portador de um bem jurídico não significará automaticamente que não sejam
necessárias avaliações desse bem jurídico diante de ações concretamente aptas a
lesioná-lo ou colocá-lo em perigo.

417
RUDOLPHI, Hans-Joachim. El fin del Derecho Penal del Estado y las formas de imputación jurídico-penal.
In: SCHÜNEMANN, Bernd. El sistema moderno del derecho penal. Cuestiones fundamentales. Montevidéu:
Editorial B de F, 2012. p. 91.
418
Idem. Die verschiedenen Aspekte des Rechtsgutsbegriffs. In Festschrift für Richard M. Honig. Göttingen
[Alemanha]: Verlag, 1970. apud PRADO, Luis Regis. Bem jurídico-penal... p. 54.
419
RUDOLPHI, Hans-Joachim. Systematischer Kommentar zun StGB. apud CUELLO CONTRERAS, Joaquín.
Presupuesto para una teoría del bien jurídico protegido em Derecho penal. Anuario de Derecho Penal y Ciencias
Penales. Disponível em <www.cienciaspenales.net/portal/page/portal/IDP/ANUARIO_LISTA/1980-1989>.
Acesso em 17/05/2013.
144

Cumpre destacar que a doutrina segundo a qual seria a Constituição o limite à


teoria dos bens jurídicos não é imune a críticas. Wolfgang Wohlers420 formula
considerações negativas à tal concepção ao afirmar ser criticável a adoção de
padrões externos (principalmente do direito constitucional) ao direito penal à teoria
do bem jurídico e, até mesmo, que a adoção de tais parâmetros exógenos poderia
significar uma barreira ao desenvolvimento teórico e metodológico próprio do direito
penal421.
Sustentava Wohlers422 que o direito constitucional não conseguiria fornecer
instruções suficientemente claras à teoria do bem jurídico, uma vez que é
demasiadamente amplo e preocupado com aspectos político-organizacionais do
Estado. Se por um lado não resta dúvida que o direito penal deve respeitar o
princípio da proporcionalidade, por outro turno, duvidosa mostra-se a utilização da
proporcionalidade na tentativa de elegerem-se critérios minimamente concretos
acerca de quais comportamentos mereceriam ser punidos ou não. Citando Lagodny,
Wohlers arremata:

Es llamativo que Lagodny, que ha sido de los primeros en ocuparse a fondo


de esta temática, ahora se incline por querer dar la vuelta a la tortilla: no es
el Derecho penal el que debe aprender del Derecho constitucional qué
puede y que no puede hacer, sino que és el Derecho constitucional el que
debe aprender del Derecho penal cuáles son sus déficit. Com
independencia de que evidentemente ni la dogmática ni el Legislador penal
pueden esperar a que la dogmática constitucional haya cumplido su tarea.

3.4 O Harm Principle e a legitimação das normas penais: um diálogo acerca da


legitimidade do poder punitivo estatal nos sistemas jurídicos da common
law e civil law

420
WOHLERS, Wolfgang. Las jornadas desde la perspectiva de un escéptico del bien jurídico. In
HEFENDEHL, Roland (org.). La Teoría del Bien Jurídico.¿ Fundamento de legitimación de Derecho Penal o
juego de abalarios dogmático? Tradução Rafael Alcácer, Maria Martín e Iñigo Ortiz de Ubina. Madri: Marcial
Pons, Ediciones Jurídicas e Sociales S.A., 2007. p. 404.
421
Idem, Ibidem.
422
Idem, Ibidem. pp. 404-405. Apesar de tecer críticas ao chamado parâmetro externo (o Direito Constitucional),
Wolfgang Wohlers não dispensa a importância do conceito de bem jurídico para a dogmática moderna, conforme
se vê em trecho a seguir colacionado: “ahora bien: que la dogmática de bien jurídico por si sola no pueda
posibilitar ninguna decisión sobre la legitimad de las normas penales no significa ni que la teoría del bien
jurídico deba ser rechazada en su conjunto ni que pueda ser dada de baja. El bien jurídico es ese algo
protegido, y se mantiene como el punto de partida para la comprobación de la legitimidad de las normas
penales. En este desarrollo es importante a continuación, uma vez más, precisar el concepto de bien jurídico,
también em cuanto el contenido, lo que quiere decir, sobre todo, manternelo más concreto posible”. Em sentido
oposto à posição de Wohler ver, na mesma obra, texto de Roland Hefendehl intitulado De largo Aliento: el
concepto de bien jurídico.
145

O harm principle consiste no mais significativo critério para a análise da


legitimação das normas penais nos países anglo-saxões423, sendo, inicialmente,
delineado nos campo do direito constitucional e da ciência política a partir da
clássica obra On Liberty (1859) de autoria de John Stuart Mill424.
Mill expunha uma relação antagônica entre autoridade e liberdade no
exercício do poder e questiona como o poder consegue ser legitimamente
desempenhado diante da sociedade sem que seu exercício implique limitações
inconcebíveis às liberdades individuais e, portanto, resulte em uma possível ofensa
ao saudável desenvolvimento do futuro das relações entre pessoas.
O filósofo inglês desenvolveu a teoria do harm principle em um ambiente
repleto de críticas aos poderes dos monarcas ingleses e o constante debate entre
limitadores e adeptos do princípio da máxima “the king can do no wrong”. Segundo o
harm principle, cada indivíduo deteria o direito de agir da forma que pretendesse,
desde que suas ações não fossem aptas a causar prejuízos a outra pessoas425. Se a
ação resta apta a afetar apenas a esfera individual de quem a está realizando então
nem o Estado nem outros cidadãos poderiam intervir. Em suma, sobre si, sobre seu
próprio corpo ou sobre sua mente, o indivíduo é soberano, não cabendo qualquer
interferência estatal ou privada.
A crença de que ninguém pode ser forçado a agir ou ser impedido de atuar
exceto quando suas ações ou omissões puderem significar invasão à esfera de
liberdade de outros cidadãos é tônica da obra de Mill. Assim resume o filósofo
inglês:

The object of the Essay is to assert one very simple principle, as entitled to
govern absolutely the dealings of society with the individual in the way of
compulsion and control, whether the means used be physical force in the
form of legal penalties, or the moral coercion of public opinion. The principle
is the sole end for which mankind are warranted, individually or collectively,
in interfering with the liberty of action of any of their number, is self-
protection… The only purpose for which power can be rightfully exercised
over any member of a civilised community, against his will, is to prevent
harm to others. His own good, either physical or moral is not a sufficient
warrant. He cannot rightfully be compelled to do or forbear because it will be
better for him to do so, because it will make him happier, because, in the
opinion of others, to do so would be wise, or even right. These are good
reasons for remonstrating with him, or reasoning with him, or persuading

423
COSTA, Helena Regina Lobo da. Considerações sobre o atual estado da teoria do bem jurídico à luz do harm
principle.In: GRECO, Leonardo; MARTINS, Antonio. Direito Penal como crítica da pena. Estudos em
homenagem a Juarez Tavares por seu 70º Aniversário em 2 de setembro de 2012.São Paulo: Marcial Pons, 2012.
p. 133
424
MILL, John Stuart. On Liberty. Filadélfia: The Pennsylvania State University, 1998.
425
Idem, Ibidem. pp. 66 e ss.
146

him, or entreating him, but not for compelling him, or visiting him with any
evil in case he do otherwise. To justify that, the conduct from which it is
desired to deter him, must be calculated to produce evil to someone else.
The only part of the conduct of any one for which he is amenable to society,
is that which concerns others. In the part which merely concerns himself, his
independence is, of right, absolute. Over himself, over his own body and
mind, the individual is sovereign426.

O modelo de exploração com tirania, segundo Mill, estava fadado ao fracasso,


além de ser tipicamente um elemento comum a sociedades e governos atrasados
social, política e economicamente. Duas formas de contestação dos regimes
políticos vigentes na Europa até a segunda metade do século XIX eram comuns: (i)
rebeliões ou resistências – resultavam discussões ou conflitos militares visando ao
reconhecimento de imunidades (political liberties or rights) que intentavam
estabelecer limites acerca do seria violar ou não a lei nacional; e, (ii) constitucional
checks – com o consentimento da população, alguns escolhidos passaram a
representar os interesses dos eleitores diante dos soberanos. O problema é que
durante os primeiros anos destas representações, os déspotas costumavam
dissolvê-las com frequência. Assim definiu Mill427 o conturbado momento político
europeu de instabilidade envolvendo as relações entre soberanos e súditos que no
fim daquele século iria culiminar do início do desenvolvimento dos Estados nacionais
de Direito:

To the first of these modes of limitation, the rulling power, in most European
countries, was compelled, more or less, to submit. It was not so with the
second; and to attain this, or when already in some degree possessed, to
attain it more completely, became everywhere the principal object of lovers
of liberty. And so long mankind were content to combat one enemy by
another, and to be ruled by a master, on condition of being guaranteed more
or less efficaciously against his tirany, they did not carry their aspirations
beyond this point.

A liberdade social baseada no harm principle visava impor limites aos


governantes. A partir da contribuição de Mill, o harm principle desenvolveu-se
doutrinária e jurisprudencialmente. Hoje, serve o harm principle serve como
parâmetro para intervenção penal nos países anglo-saxões428. Dennis Baker429 cita
como exemplo de aplicação da teoria do harm principle o caso Lawrence v. State of

426
MILL, John Stuart. On Liberty…pp. 12-13.
427
Idem, Ibidem. p. 4
428
COSTA, Helena Regina Lobo da. Considerações sobre o atual estado da teoria do bem jurídico à luz do harm
principle... p. 140.
429
BAKER, Dennis. Constitutionalizing harm principle. Criminal Justice Ethics Review, v.27, nº2, [S.I., s.n],
pp. 3-28. Disponível em www.quaestia.com /library. Acesso em 17/05/2013.
147

Texas julgado pela Suprema Corte Estadunidense no ano de 2003 como um caso
claro de adoção do harm principle 430.
Adentrar o Estado à esfera da liberdade individual privada do cidadão
prejudicaria o ideal de não intervenção baseado no harm principle de Mill. A exceção
configurar-se-ia nos casos em que ocorre ou está prester a acontecer a violação ao
direito fundamental de outrem. Baker analisa o caso Lawrence vs. Texas da seguinte
forma431:

In Lawrence v. Texas the U.S. Supreme Court also made moral and
evaluative judgments when it interpreted the due process right as protecting
atypical sex practices in private between consenting adult partners.
In that case, the majority overruled Bowers v. Hardwick and held that: “it is
a promise of the constitution that there is a realm of personal liberty, which
the government may not enter.” The majority opined that the intimate adult
consensual conduct at issue (homosexual relations) was covered by that
liberty. the majority did not interpret the liberty interest involved as a
fundamental liberty. What it did was apply a standard that falls somewhere
between the strict scrutiny and the rational basis review standards.
In the U.S., a law that punishes a person who exercises his or her
fundamental liberties is upheld only where it can be shown that it is narrowly
tailored to achieve its policy goal (that is, narrowly tailored to achieve a
compelling government purpose). Under the rationally related test, a
challenged law will be upheld if it is substantially related to a legitimate
government purpose. “the legitimate government purpose need not be
the actual objective of the legislation—only its conceivable objective.
Since only those laws that lack a conceivable legitimate purpose will fail
this test, courts almost never fnd a law to be unconstitutional when non-
fundamental liberties are burdened.” Importantly, non-objective accounts of
harm have been enough to satisfy this requirement.
In Lawrence v. Texas the majority stated that: “the Texas statute
furthers no legitimate state interest which can justify its intrusion into the
personal and private life of the individual.” It also applied a rational basis test
(legitimate governmental interest test) with the traditional fundamental
privacy right in mind, but it did not apply a strict scrutiny test (compelling
state interest test).It held that the petitioners’ threshold liberty interest could
be overridden only if the legislature could show that it would further a
legitimate state interest. Lawrence was a case where the court rightly
interpreted (through a moral reading) that the activities involved fell within
the moral purview of the privacy right, and where the court’s moral reading
also found that the state could not demonstrate that it has a substantial
interest in having the exercise of that right overridden. the signifcance of the

430
Breve resumo do caso: John Gedes Lawrence e Tyron Garner foram flagrados pela polícia dentro de casa
fazendo sexo oral após ter sido a polícia alertada por vizinhos sobre um possível desentendimento com armas.
De acordo com a seção 21.06, item C, do Código Penal do Texas a prática de qualquer ato envolvendo um
desvio do curso natural do ato sexual configuraria crime, desde que realizado por pessoas do mesmo sexo.
Especificamente, o desvio do curso normal do ato sexual seria, consoante o diploma repressivo daquele estado:
“any contact between any part of the genitals of one person and the mouth or anus of another person; or . . . the
penetration of the genitals or the anus of another person with an object”. No fim, a Suprema Corte Americana
reconheceu a inconstitucionalidade do referido artigo, pois violaria uma série de comandos constitucionais,
dentre eles a igualdade de proteção, a liberdade de orientação sexual e a proteção da privacidade, tudo isso, à luz
de um sobreprincípio do direito anglo-saxão: o harm principle, eis que não houve qualquer ofensa à liberdade de
outros indivíduos com a prática do mencionado ato sexual dentro do domicílio dos apelantes. Um resumo
completo do caso pode ser encontrado em <www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/lawrence.html>
431
BAKER, Dennis. op. cit., p. 26.
148

courts to look (even though inadvertently and somewhat instinctively) for


objective reasons for justifying criminalization decisions that interfere with
fundamental rights cannot be overstated, because the current bench of the
Supreme court is dominated by judges who tend to use a very
unconvincing form of originalism to produce results that are totally out of
keeping with the moral rationale of the rights being interpreted

Além da contribuição ao tema desenvolvida pela Suprema Corte dos Estados


Unidos da América, Helena Regina Lobo da Costa 432 cita importantes nomes da
doutrina penal anglo-saxã que dissertaram sobre o harm principle ou, numa tradução
livre para o idioma português, o princípio do dano.São eles: Herberth Lional
Adolphus Hart nas obras The morality of Criminal Law (1964) e Punishment and
Responsibility (1968) e Patrick Delvin (The Enforcement of Morals – 1959). Esses
dois juristas analisaram a importância do aspecto moral na produção de normas
jurídicas, em especial, normas jurídico-penais, o movimento intitulado legal moralism
e os limites da intervenção estatal.
Segundo Delvin, sociedades são facilmente desintegráveis quando expostas
a pressões externas, em especial, influências oriundas da deterioração de
sentimentos morais que pode ocasionar disfunção do corpo social. Delvin alerta que
nem todos os sentimentos sociais podem ser considerados legítimos e, também,
alguns não poderão ser proibidos ou fomentados por lei433. Para tentar estabelecer
um padrão mínimo de interferência estatal estabelece três parâmetros: (i) a
privacidade deve ser respeitada, (ii) o direito apenas deve intervir quando restar
claro que a sociedade não tolera tal comportamento e, por fim, (iii) a direito não pode
ser entendido como um remédio para todos os problemas sociais.
Hart discorda de Delvin. Argumenta Hart que muitas vezes as conclusões a
que chega Delvin acerca do legal moralism poderão desencadear o populismo
judiciário. Nem sempre mudanças de valores morais ou sociais representarão
obrigatoriamente desintegração da sociedade ou implicarão necessidade de

432
COSTA, Helena Regina Lobo da. Considerações sobre o estado atual da teoria do bem jurídico à luz do harm
principle... p.140.
433
Vale mencionar exemplo polêmico Delvin em sua obra Enforcement of Morals (1959): “we should ask
ourselves in the first instance whether, looking ato t calmly and dispassionaly, we regard it as a vice so
abominable that its mere presence is an offense. If that is the genuine feeling of the society in which we live, I do
not see how society can be denied the right to eradicate it” apud. DWORKIN, Ronald. Lord Delvin and
Enforcement Laws. The Yale Law Journal, maio, 75 v. 1966. pp. 986-1005. No entanto, segundo Delvin, as
práticas sexuais entre adultos de forma privada nao deveriam ser consideradas criminosas se realizadas em
ambiente privado. Na definição de Delvin, comportamentos homossexuais em público poderiam gerar a
exposição e a corrupção de outros cidadãos. Por isso, a fim de se proteger a decência, as condutas homossexuais,
desde que ostensivas, deveriam ser proibidas na Inglaterra. A posição de Delvin passou longe da imunidade a
críticas. Juristas americanos, principalemente, Hart e Dworkin criticaram a posição de Delvin.
149

mudança legislativa. Adotando-se opinião favorável à mudança poderia, por


exemplo, estar padecendo de uma demasiada influência dos meios de comunicação
de massa434.
Apesar das contribuições generosas à teoria do harm principle no campo
penal efetuadas por Hart e Delvin, Helena Regina Lobo da Costa cita como o mais
influente jurista a estudar a teoria do harm principle e sua aplicação no direito penal
Joel Feinberg por meio de sua obra intitulada The Moral Limits of the Criminal Law:
Harm to Others435.
Acerca da importância de Feinberg, a professora da Universidade de São
Paulo sustenta que esse autor conferiu ao tema uma fórmula mais detalhada que a
inicialmente elaborada n o século XVIII por John Stuart Mill. Para Feiberg, será uma
boa razão para legitimar a intervenção penal quando, provavelmente, sirva a
prevenir, eliminar ou reduzir danos a outras pessoas que não o próprio autor e,
evidentemente, não haja outros meios menos gravosos de intervençãço estatal que
sejam igualmente efetivos e que possuam custos menores à liberdade individual,
mesmo que esta liberdade seja do infrator436.
Algumas das páginas mais importantes da obra de Feinberg dedicaram-se ao
desenvolvimento dos critérios práticos a servir o legislador na tarefa de estabelecer
quais condutas deveria criminalizar. Estes critérios receberam a denominação de
mediating maximus. São eles: (i) avaliação do risco, ou seja, a gravidade ou
probabilidade de dano. Maiores as chances de afetação, maior a legitimidade para
se qualificar a conduta como criminosa; (ii) avaliação do risco em face do valor social
contraposto. Quanto mais relevante socialmente o valor colocado em risco pelo
comportamento, maior a legitimidade de proteção e (iii) avaliação de side-
constraints, isto é, a criminalização somente seria admitida em casos tais que as
condutas criminosas pudessem significar a violação de direitos fundamentais 437.
Parece claro um ponto em comum entre teoria do harm principle e teoria do
bem jurídico: a intenção de delimitação material do campo de atuação do direito
penal. O harm principle por meio da ideia de dano (atual ou potencial) e o bem
jurídico por meio da lesão ou exposição a perigo de um elemento essencial para o

434
Idem, Ibidem.p. 989.
435
FEINBERG, Joel. The Moral Limits of Criminal Law. Volume 1. Nova York: Oxford University Press, 1984.
436
COSTA, Helena Regina Lobo da. Considerações sobre a atual teoria do bem jurídico à luz do harm
principle... p. 141.
437
Idem, Ibidem.
150

desenvolvimento social figuram como conceitos próximos, evidentemente,


entendidas e respeitadas as diferenças entre e os sistemas jurídicos da civil law e da
common law.
O papel conferido em seus respectivos sistemas ao bem jurídico e ao harm
principle são semelhantes, em que pesem diferirem quanto ao seu desenvolvimento
histórico e conteúdo. Tanto é verdade que Wolfgang Wohlers propôs uma fusão
entre a teoria do bem jurídico e a teoria do harm principle 438. Segundo Wohlers, os
dois sistemas poderiam atuar de forma complementar a fim de garantir legitimidade
às normas penais, bem como servir a limitar âmbitos de responsabilidades das
condutas praticadas por agentes.

438
WOHLERS, Wolfgang. citado por BUNZEL, Michael. SCHIMIDT, Juana. STOLLE, Peer. Teoría del bien
jurídico y harm principle. In HEFENDEHL, Roland (org.). La teoría del bien jurídico... p. 424.
151

4 BEM JURÍDICO-PENAL TRANSINDIVIDUAL

4.1 Da escolha da nomenclatura

Juan Bustos Ramirez439 afirma que a concepção tradicional de bem jurídico-


penal de caráter individual ou microssocial não estaria apta a compreender a nova
gama de relações sociais presentes na atual sociedade complexa. Daí a
necessidade de auxílio por meio de uma nova categoria inspirada na
macrossocialidade das relações jurídicas. Essa nova categoria é composta pelos
bens jurídicos transindividuais, denominação preferível nesta dissertação.
Ainda seguindo as lições de Bustos Ramirez, os bens jurídicos difusos
dividem-se em três categorias: os bens jurídicos institucionais, os bens jurídicos
coletivos em sentido estrito e, por último, os bens jurídicos de controle 440.
Os bens jurídicos institucionais são aqueles relacionados ao funcionamento
básico de um sistema. Visam estabelecer vias ou procedimentos organizativos e
conceituais para assegurar a proteção de bens jurídicos individuais. Bustos Ramirez
cita como exemplos de bens jurídicos institucionais a administração da justiça, a fé
pública e a segurança viária ou de tráfego.
A segunda categoria de bens jurídicos difusos é composta pelos bens
jurídicos coletivos em sentido estrito. Correspondem tais bens jurídicos à
necessidade de satisfação dos interesses econômico-sociais com a participação de
todos os indivíduos no processo social geral. Bustos Ramirez não cita exemplos de
bens jurídicos em sentido estrito em seu artigo Los bienes jurídicos colectivos. Ao
pesqisar a doutrina de Klaus Tiedemann, em especial, a obra Manual de Derecho
Penal Económico – Parte General y Especial – podem ser considerados exemplos
desta segunda categoria os crimes contra a organização do trabalho, o meio-
ambiente, a circulação de mercadorias, a publicidade comercial 441, a relação de
consumo (incluindo a falsificação de produtos), os crimes contra a economia
financeira pública e, ainda, os crimes contra as sociedades de capital 442

439
BUSTOS RAMIREZ, Juan. Los bienes jurídicos colectivos. Repercusiones de la labor legislativa de Jimenez
de Asúa en el Código Penal de 1932. Revista de la Faculdad de Derecho Universidad Complutense. Madri:
Universidade Complutense, 1986. pp.152-153.
440
Idem, ibidem. p.161.
441
TIEDEMANN, Klaus. Manual de Derecho Penal Económico – Parte general y especial. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2010. p.42.
442
Idem, Ibidem. pp.251 e ss.
152

A terceira e última categoria é aquela relacionada aos bens jurídicos de


controle. Referem-se à organização estatal a fim de que esta consiga cumprir suas
funções normais de regular a vida em sociedade de forma geral e abstrata. Nessa
categoria Bustos Ramírez fornece os exemplos dos delitos contra a autoridade e os
crimes contra a segurança interna ou externa.
Apesar de respeitável a classificação proposta por Bustos Ramirez, sabe-se
que está longe de ser pacifico o tema. Por exemplo, Jorge de Figueiredo Dias
prefere a denominação bem jurídico coletivo, mas admite na doutrina ser comum o
uso de expressões como bens jurídicos sociais, macrossociais, comunitários ou
universais, sem qualquer distinção entre elas. Segundo o doutrinador português, não
haverá entraves à utilização de qualquer uma das denominações elencadas, desde
que seja feita referência à mesma categoria de proteção, quer dizer, deverão os
bens jurídicos coletivos serem marcados pela possibilidade de gozo por por um
contingente indeterminado de pessoas443.
Na doutrina nacional, também não há uniformidade quanto à nomenclatura
utilizada. Luiz Regis Prado prefere a denominação bem jurídico metaindividual. Faz
o citado doutrinador uma subdivisão que lembra de alguma forma a contribuição de
Bustos Ramirez:

Segundo a diretiva aqui veiculada, opta-se por classificá-los em: a) bens


jurídicos institucionais (públicos ou estatais) nos quais a tutela supra-
individual aparece intermediada por uma pessoa jurídica de Direito Público
(v.g., administração pública, administração da justiça); b) bens jurídicos
coletivos que afetam um número mais ou menos determinável de pessoas
(v.g., saúde pública, relação de consumo) e c) bens jurídicos difusos que
tem caráter plural, indeterminado e dizem respeito à coletividade como um
todo (v.g., ambiente, patrimônio cultural). Mas tanto os bens jurídicos
coletivos como os difusos tem como ligação ou referência o indivíduo, por
menor que seja (aspecto complementar), que se apresenta mais intensa,
menos tênue (bens coletivos), ou menos intensa, mais tênue (bens difusos),
dependendo do nível dessa ligação (relação de proximidade). Na verdade, o
que fica aqui sufragado é que o indivíduo como pessoa, como pessoa, o
cidadão deve ser sempre o destinatário maior de toda norma jurídica, há de
ser a referência última de qualquer bem jurídico.

Todas as contribuições elencadas acima servem a subsidiar a escolha da


nomenclatura utilizada nesse trabalho. De início, cabe destacar que não se cuidará
da análise dos bens jurídicos coletivos institucionais, geralmente ligados à
administração pública ou a administração da justiça, uma vez que nada possui essa

443
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral... pp. 133 e ss.
153

categoria de novidade ou qualquer tipo de nova relação com os recentes


paradigmas penais advindos da sociedade de risco. Sobre o tema, Luiz Regis Prado
por meio de sua obra Curso de Direito Penal brasileiro aduz que os crimes contra
administração pública seriam conhecidos desde o Código de Hamurabi e o Código
de Manu não havendo, portanto, nenhuma razão de classificá-los como bens
jurídicos metaindividuais.
O cenário alterado exatamanete pela sociedade de riscos refere-se às duas
últimas categorias de bens jurídicos transindividuais. Não será considerada nesta
dissertação a distinção quanto à maior ou menos indeterminabilidade de pessoas ou
de grupos atingidos ou ameaçados para que seja feita a diferença entre coletivos e
difusos. Em realidade, neste trabalho, considera-se inútil a diferenciação entre os
bens jurídicos coletivos e os bens jurídicos difusos, pois mesmo diante de uma
massa indistinta de pessoas, agentes sempre serão considerados, ao menos do
ponto de vista hipotético, para que seja possível a configuração da lesão ou o
prognóstico de lesão a um bem penalmente protegido.
E como denominar essa nova categoria de bens jurídicos? Prefere-se aqui a
denominação bens jurídicos transindividuais. O motivo é já ter a legislação pátria
adotado essa nomenclatura. Faz-se desde o ano de 1990 com a edição do Código
de Defesa do Consumidor, em especial, no art. 81. Perceba-se, desde já, que
transindividual aparece como gênero que é subdividido nas espécies difuso e
coletivo. Conforme já exposto, como não se preocupará esta dissertação com a
diferença entre as duas categorias menores, a palavra transindividual figura como
adequada, pois englobará os dois conceitos em análise.

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas
poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares
pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo,
categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica base.

4.2 O bem jurídico-penal transindividual como objeto de proteção

La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad anunciou o fim de uma
sociedade industrial em que os riscos para a existência individual ou comunitária
154

provinham de acontecimentos naturais ou de ações humanas próximas e definidas


pelo direito penal tradicional444, extremamente antropocêntrico, baseado em bens
jurídicos clássicos como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade e o patrimônio445.
A sociedade industrial foi substituída, segundo Beck, por uma sociedade
exasperadamente tecnológica, massificada e global, onde a ação humana, muitas
vezes autônoma, revela-se apta a produzir riscos globais, isto é, riscos difusos em
locais e tempo largamente distanciados pela ação que os provocou. E mais uma
característica: devido à alta potencialidade tecnológica do mundo moderno, muitas
dessas novas ações poderão extinguir a vida humana na Terra446.
Para Jorge de Figueiredo Dias447, a adequação do direito penal à sociedade
de risco implicará, necessariamente, uma nova política criminal que abandone a
função minimalista de tutela de bens jurídicos individuais passando a aceitar uma
nova função promocional e propulsora de valores orientadores da ação humana na
vida comunitária. Propõe o autor uma nova leitura no plano da legitimação
substancial do direito penal com base na teoria do contrato social rousseauniana.
Querer manter o direito penal erguido sob esta base liberal-contratualista significará,
no entender de Dias, a confissão resignada de que ao direito penal não pertence
nenhum papel na proteção das gerações futuras. Ainda sobre o tema, o catedrático
da Faculdade de Direito de Coimbra448 expõe:

A ciência do direito penal começa a reagir a estas dificuldades.


Reconhecendo que não pode ficar à espera que se verifiquem resultados
lesivos das condições da vida da humanidade – trate-se de lesões
ecológicas, genéticas, económico-financeiras, terroristas... – para só então
fazer intervir o arsenal punitivo: este deverá ser chamado, se quiser ser

444
Sobre a incapacidade do modelo calcado no Direito Penal tradicional ou liberal para enfrentamento
apropriado dos novos modos de ameaça originada pela sociedade de risco, Dino Carlos Caro Coria defende a
adoção da categoria de bens jurídicos coletivos, admitindo-os como uma categoria autônoma da ciência penal, tal
qual feita por Corcoy Bidasolo. Para Caro Coria, “ciertamiente, el modelo penal liberal, en orden a privilegiar la
esfera de la libertad, fur articulado, principalmente, como instrumento de protección de los llamados bienes
jurídicos individuales, para lo cual cimentó una dogmática funcional a dicha tutela y obediente de los princípios
de la legalidad, lesividad y causalidad. De esto modo, el DP clásico de protección de bienes jurídicos, se
concentra en uma relación individualizable entre autor y vítima, pues sus critérios de atribuición, que
actualmente proporcionan seguridad jurídica, se han desarrollado sobre tal fundamento y para esa función. En tal
orden la inidoneidad de los tradicionales intrumentos y categorias jurídicas, obedece a que se sustentan en la
ignorancia de datos fundamentales sobre esos nuevos riscos que se desea controlar. CARO CORIA, Dino Carlos.
Sociedad del riesgo, bienes jurídicos colectivos y reglas concursales para la determinación de la pena en los
delitos de peligro con verificación de resultado lesivo. Revista Peruana de Ciencias Penales, ano V, nº9. Lima:
Cultural Cuzco, 1992.
445
V. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral... p. 134.
446
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo...pp.85-88.
447
DIAS, Jorge de Figueiredo. op. cit., ... p.135.
448
DIAS, Jorge de Figueiredo. op. cit,... p 140.
155

minimamente eficaz, logo relativamente a qualquer contributo significativo


para o potencial perigo do qual o resultado lesivo irá. Num futuro por
ventura longínquo, derivar, por mais quotidiano e anódino que esse
contributo pareça, em si mesmo considerado.
(...)
Ora, justamente, a categoria do bem jurídico-penal, enquanto figura ligada à
tutela de interesses individuais concretos, falha completamente nos crimes
referidos ao futuro. Perante a impossibilidade de resolver os problemas
surgidos no limiar do século XXI com os instrumentos dogmáticos do século
XVIII, uma tutela eficaz das potenciais vítimas do futuro deve ser
prosseguida também pelo direito penal449.

No mesmo sentido do catedrático de Coimbra, Paulo Silva Fernandes


argumenta ser extremamente conservador o entendimento daqueles que visam
salvaguardar o direito penal (de matriz liberal) das novas mudanças desejosos de
mantê-lo silente e imóvel na “torre de marfim dos seus traços clássicos de tutela,
atirando para outros discursos punitivos não-penais, portanto (leia-se, v.g. direito
adminstrativo) ou até mesmo para meios de intervenção não-jurídicos a resposta
aos novos desafios inerentes à sociedade de risco 450”.
Além de Figueiredo Dias e Paulo Fernandes, Claus Roxin também se afasta
das teses contrárias ao direito penal do risco sustentando que diante do novo
modelo de social explicitado por Beck não há equívoco em pensar o direito penal de
forma ampliada, ou seja, visando campo de atuação relacionado aos novos riscos da
vida. Nesse caso, conforme Roxin, necessárias serão incriminações prévias e,
também, eleição de novos bens jurídicos. No entanto, somente devem ser

449
Em algumas passagens de sua obra Direito Penal – Parte Geral Figueiredo Dias apresenta uma teoria
complementar e mais radical à teoria do bem jurídico coletivo: Lebenszusammenhänge als soche (relações ou
contextos de vida enquanto tais). Amparado em Stratenwerth Figueiredo Dias sustenta que em certos casos a
tutela dos grandes riscos e das gerações futuras pode passar pela assunção de um direito penal do
comportamento.em que são penalizadas e punidas as puras relações da vida como tais. Significa dizer que servirá
a Lebenszusammenhänge als soche à punição de certas espécies de comportamentos em nome da tutela dos bens
jurídicos coletivos e só nesta medida se encontra legitimada. Segundo Dias, “desta maneira se manterá a
fidelidade possível ao paradigma jurídico-penal iluminista que nos acompanha e se espera possa continuar a ser
fonte de desenvolvimento e do progresso; e possa continuar a ser fonte de desenvolvimento e de progresso; e
possa continuar assim a assumir seu papel insubstituível na contenção dos mega-riscos da sociedade pós-
industrial e na função tutelar dos interesses também das gerações futuras”. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito
Penal. Parte Geral... p. 154. Em sentido similar às propostas de Figueiredo Dias, Mirentxu Corcoy Bidasolo
também manifesta preocupação com assegurar futuro às novas gerações. Segundo a professora espanhola, a nova
dogmática penal deve seguir a direção assinalada pelos bens jurídicos coletivos sem que isso implique o
menosprezo de princípios garantistas. Para Corcou Bidasolo, “los bienes jurídicos supraindividuales son
autônomos pero ello no excluye que, em cuanto intereses predominantes en la sociedade, sólo podrán ser
calificados como tales y, en consecuencia legitimada la intervención penal para su protección, aquéllos que
sirvan al mehor desarrollo personal de cada uno de los indivíduos que la conforman”. CORCOY BIDASOLO,
Mirentxu. Limites objetivos y subjetivos a la intervención penal en el control de riesgos. In: MIR PUIG,
Santiago; CORCOY BIDASOLO, Mirentxu (orgs.). La política criminal em Europa. Madrid: Atelier penal, [s.n].
p. 30.
450
FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, Sociedade de Risco e o futuro do Direito Penal. Panorâmica de
alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 74.
156

consideradas legítimas as condutas proibitivas tomadas pelo legislador se a luta do


direito penal contra o risco observar “la referencia al bien jurídico y los restante de
princípios de imputación propios del Estado de Derecho: y donde ello no sea posible,
debe abstenerse de intervenir el Derecho penal451”.
Como conseqüência do desenvolvimento e do progresso científico,
tecnológico, industrial e econômico na sociedade pós-industrial, realiza-se uma
pluralidade de atividades que originam uma gama de novos riscos. Assim acontece,
por exemplo, com engenharia genética, tecnologia nuclear, informática, emissão de
poluentes na atmosfera, fabricação e comercialização de produtos potencialmente
perigosos para a vida ou a saúde dos consumidores e etc452.
Esta evolução científico-tecnológica leva o legislador a proteger penalmente
novos bens jurídicos. Além da criação de novos, também a doutrina e a
jurisprudência debatem sobre a reinterpretação de alguns outros bem jurídicos
tradicionalmente considerados. Por último, nas palavras de Corcoy Bidasolo o
sistema jurídico poderá processar e condenar alguém pelo cometimento de um
crime de perigo sem que efetivamente tenha se esperado a produção de um
resultado lesivo453. Para a doutrinadora espanhola, a partir de uma perspectiva
preventiva geral negativa e positiva não há que se questionar a eficácia dos crimes
de perigo abstrato nem a categoria de bens jurídicos coletivos. Assim conclui Corcoy
Bidasolo:

sin embargo, desde uma perspectiva de prevención general negativa, su


eficacia es innegable, por cuanto, mientras un empresário (abarcando con
este término a los administradores, gerentes consejeros...) puede minimizar
cualquier sanción, por elevada que sea,y contabilizarla como gasto o/y
repercutiria en el producto, es mas difícil que asuma personalmente un
proceso penal, cuanto más uma condena.
Así mismo, tampoco puede menospreciarse su eficacia desde uma
perspectiva de prevención general positiva, por cuanto, su criticada
naturaleza de Derecho penal simbólico sirve como reconocimiento de la
importancia de los bienes protegidos. Siendo cierto que un precepto penal
que sólo tiene un valor simbólico debe rechazarse, no lo es menos que el
significado simbólico es positivo cuando confluye con otras funciones, por
cuanto sirve al reconocimiento social de la importancia de esse concreto
bien jurídico y con el se produze una maior sintonia entre las valoraciones
sociales y las jurídicas. Por consiguiente, la función simbólica que tienen
algunos de estos delitos contra bienes jurídicos supraindividuales no sólo no
es criticable sino que es necesaria, siempre y cuando está no sea la única
función que cumplan.

451
ROXIN, Claus. Derecho penal... pp. 60-63.
452
Cfe. GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos... p.49.
453
CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Límites objetivos e subjetivo... p.38.
157

Sobre essa consequente e inevitável ligação entre sociedade de risco e bem


jurídico-penal coletivo, Mendoza Buergo454 afirma que os campos de
desenvolvimento da política e da dogmática penal, naturalmente, não podem
permanecer alheios às mudanças sociais ocasionadas por esse novo modelo social.
A partir do exposto, verifica-se a ocorrência de uma ampliação ao conceito de
bem jurídico que passa a abarcar não somente aqueles delimitados
tradicionalmente, mas também os bens jurídicos de caráter geral, coletivo,
transindividual ou difuso. Segundo José Luis Díez Ripollés455, esses novos bens
jurídicos seriam diferentes dos bens jurídicos tradicionais à medida que possuem os
bens coletivos em sua configuração o escopo de proteção de interesses relevantes
para a manutenção da sociedade, sendo certo que no modelo social atual foi
perdido, muitas vezes, o referencial tipicamente individual erguido sob as bases das
Revoluções Burguesas. Figueiredo Dias sustenta que a verdadeira característica
dos bens jurídicos coletivos é o fato de poder ele ser gozado por todos e por cada
um, sem que ninguém possa ficar excluído desse aproveitamento 456.
Sobre o tema, Gerhard Seher457 aduz que o Direito Penal, nas últimas
décadas do século passado, sofreu profundas transformações em âmbitos que
transcenderam o seu marco tradicional de aplicação. Para Seher, de um lado,
aumentou-se a atenção do Direito Penal aos interesses ou valores coletivos e, de
outro, a ameaça da pena foi estendida a condutas classificadas como de perigo
abstrato458.
A mencionada mudança de postulados por que passou o direito penal, de um
bem jurídico individual calcado em lesão ou ameaças concretas de lesão para outro
visando à produção de tipos de perigo abstrato visando à proteção de bens jurídicos

454
MENDOZA BUERGO, Blanca. Gestión del Riesgo y Política Criminal de Seguridad en la Sociedad del
Riesgo. In: AGRA, Candido; DOMINGUEZ, José Luis; GARCÍA AMADO, Juan (ed.). La seguridad en la
sociedad del riesgo. Un debate abierto.Barcelona: Atelier, 2003. pp. 67-89.
455
DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. La Política Criminal en la encrucijada. apud CALLEGARI, André Luís;
COLET, Charlise Paula; WERMUTH, Maiquel Ângelo; ANDRADE, Roberta Lofrano. Direito Penal e
Globalização. Sociedade de Risco, imigração irregular e justiça restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2011. p. 23.
456
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral...p.150.
457
SEHER, Gerhard. La legitimación de normas penales basada en principios y el concepto de bien jurídico. In:
HEFENDEHL, Roland (org.). La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o
juego de abalorios dogmático? Madri: Marcial Pons, 2007. pp. 69-70.
458
Idem, Ibidem.
158

coletivos ou transindividuais é característica central do chamado Direito Penal


moderno. Assim define Seher459:

Hay algo común a los postulados de este moderno Derecho penal: ya no se


acomodan a la estructura tradicional de delitos, basada en la lesión por un
agente de una posición juridicamente protegida de otra persona concreta y
a quien se impone una pena por la producción de ese resultado. Y es
debido a ello por lo que esa evolución arroja no poças cuestiones de
legitimad, que han sido ya planteadas y que han generado una cada vez
más intensa discusión sobre el princípio actualmente vigente de legitimación
de normas: la teoría del bien jurídico.

No mesmo sentido, Gracia Martín460 denomina este novo direito penal ligado
à proteção destinada a bens jurídicos transindividuais de direito penal moderno.
Para o autor espanhol, este novo Direito seria próprio do atual momento vivenciado
pela sociedade de risco. O controle e a prevenção dos riscos (de grandes
dimensões e sujeitos indeterminados) são considerados como tarefas que devem
ser assumidas pelo Estado, e para a realização de tais objetivos o legislador recorre
ao tipo penal de perigo abstrato como instrumento técnico adequado por excelência.
Silva Sánchez461, do mesmo modo que os autores anteriormente citados,
alerta para a necessidade de proteção desses novos bens jurídicos transindividuais:

Assim, a combinação da introdução de novos objetos de proteção com a


antecipação das fronteiras de proteção penal vem propiciando uma
transição rápida do modelo ‘delito de lesão de bens individuais’ ao modelo
‘delito de perigo (presumido) para bens supra-individuais, passando por
todas as modalidades intermediárias. Os legisladores, por razões como
expostas, promulgaram e promulgam numerosas novas leis penais, e as
respectivas rationes legis, que obviamente não deixam de guardar relação –
ao menos indireta – com o contexto ou prévias de fruição de bens jurídicos
individuais mais clássicos, são elevadas de modo imediato à condição de
bens penalmente protegidos (dado que estão protegidos). Assim, junto aos
delitos clássicos, aparecem outros muitos, no âmbito socioeconômico de
modo singular, que recordam muito pouco aqueles. Nesse ponto, a doutrina
tradicional de bem jurídico revela – como mencionado anteriormente – que,
diferentemente do que sucedeu nos processos de despenalização dos anos
60 e 70, sua capacidade crítica no campo dos processos de criminalização
como os que caracterizam os dias atuais – e certamente o futuro – é
sumamente débil.

Assim, de uma concepção clássica desenvolvida, inicialmente, por Birnbaum


em que o critério do bem jurídico era uma limitação do jus puniendi a fim de gerar
uma maior segurança jurídica, e historicamente vinculada à pessoa individualmente

459
Idem, Ibidem. p.71.
460
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos... p.49.
461
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. A Expansão... p. 113.
159

considerada, passou-se, na atualidade, ao escopo de tutela de bens jurídicos


transindividuais. Segundo Marta Rodriguez de Assis Machado, as conseqüências
dessa mudança de paradigma causaram uma alteração da compreensão do
conceito de bem jurídico resultando no seu afastamento, muitas vezes, da
objetividade natural, bem como do eixo individual tipicamente liberal-burguês462.

4.3 Críticas ao direito penal do Risco: novas propostas

4.3.1 A concepção monista-pessoal de bem jurídico-penal e o Direito de


Intervenção: Windfried Hassemer

Após a exposição de fundamentos do direito penal do risco, cabe destacar


posições contrárias. A primeira delas é sustentada por doutrinadores afiliados a
Escola de Frankfurt e destaca-se como principal nome Windfried Hassemer.
Diante do surgimento dos riscos sociais modernas e da dificuldade apontada
para seu controle, há parte da doutrina a sustentar que o direito penal não deve
figurar como instrumento de tutela de novos ou grandes riscos próprios da
sociedade presente. Ao contrário, há a necessidade de ser preservado o patrimônio
ideológico oriundo do Iluminismo Penal, reservando ao direito penal o seu âmbito
clássico de tutela, isto é, direitos individuais463, reforçando-se o ideal da presença de
um autêntico bem jurídico pessoal.
Windfried Hassemer surge como principal expoente desse movimento crítico,
intitulado Escola de Frankfurt, da expansão do direito penal na chamada sociedade
de risco. Segundo Hassemer, a teoria do bem jurídico-penal baseia-se em uma
tradição de formação teórica das ciências penais interessadas em seguir o princípio
da legalidade penal, da proporcionalidade da pena, do controle da justiça penal e,
também, em qualificar a conduta criminosa não com base no autor, mas, sim, no
fato464.
Conforme esses paradigmas, restaria impossível a aceitação da formulação
vaga e imprecisa que se tenta impor na atualidade. Argumenta o professor da
Universidade de Frankfurt que se deve rechaçar qualquer intenção de vincular o

462
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade de Risco e Direito Pena. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp.
102-103.
463
HASSEMER, Windfried. Segurança Pública no Estado de Direito. Revista Brasileira de Ciências Criminais,
São Paulo, nº 5, 1994. pp. 55-69.
464
Idem,. Bienes jurídicos en el Derecho penal... p.63.
160

direito penal a produção de tendências gerais, manutenção de certos modos de vida


ou convenções morais, pelo contrário, dever-se-á buscar sempre o maior grau de
definição possível para criminalização de condutas465.
Segundo Hassemer, a produção penal moderna é repleta de exemplos que
afastam o direito penal do escopo de proteção de direitos fundamentais e dos ideiais
caros aos Estados Democráticos de Direito. Por exemplo, cita o autor alemão uma
série de medidas exclusivamente simbólicas adotadas pelos legisladores hodiernos.
A lei alemã n. 16 do ano de 1979 fulminou previsão legal de qualquer prazo
prescricional assassinatos cometidos por nazistas a partir de condutas cometidas
após o ano de 1954. No entender de Hassemer, esse diploma apresenta finalidades
puramente políticas e pedagógicas466. Basta ver o caso Demjanjuk e seu processo
em Munique. Expôs a denúncia que o acusado (com cerca de 90 anos no momento
da persecução) tomou parte culpavelmente na morte de algumas dezenas de
milhares de pessoas em um campo de concentração nazista. Essas acusações
foram formalizadas décadas após a conduta perpetrada pelo agente, acolhidas
quando do julgamento. Esse absurdo de imposição de pena, segundo Hassemer, fez
com que se questionasse (i) a quem serviria uma ação penal e a imposição da pena
após tantos anos?; (ii) poder-se-á evitar o retorno do Nacional-socialismo
precisamente com a punição de seus criminosos?; (iii) é o direito penal, afina,
apenas um direito penal para dias de sol, que, para além da criminalidade cotidiana,
deve baixar suas armas tão logo se a própria geografia do Estado e da sociedade é
modificada? Sobre o caso Demjanjuk, conclui Hassemer 467:

O criminoso de guerra está há muitos anos socialmente integrado e não


necessita de nenhuma renovada influência da pena estatal (prevenção
individual); o impedimento do retorno à ditadura precisamente por meio do
direito penal (prevenção geral) constitui uma absurda esperança; nessa
armadilha não caem as teorias absolutas. Da mesma forma não funcionam
essas teorias como uma parte da realidade da pena: crimes gravíssimos
não podem ser compensados de forma justa e adequada (adequação), e a
persecução criminal seletiva continua escandalosa (justiça de persecução);
neste ponto, as teorias clássicas também não parecem racionais. Neste
sentido, a roupagem constitucional é muito limitada.

465
Idem, Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Pena y Estado, Revista
hispanolatinoamericana, n. 1., 1991... p.25.
466
HASSEMER, Windfried. Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos... p. 26.
467
HASSEMER, Windfried. Punir no Estado de Direito. In: GRECO, Luis; MARTINS, Antonio. Direito Penal
como crítica da pena. Estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º aniversário em 2 de setembro de
2012. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p.340.
161

Outro exemplo, segundo Hassemer, de destaque é a legislação alemã de


proteção ao meio-ambiente. Teria o legislador alemão intentado fazer um apelo
moral aos cidadãos atribuindo-os consciência ecológica, somente.
Percebe-se, na atualidade, uma alteração na clássica limitação e justificação
da punição estatal pela proteção de bens jurídicos, fazendo-se com que essa
proteção passe a ser vista, pelo contrário, como um critério de ampliação da
intervenção do poder punitivo estatal468.
Analisando as contribuições da Escola de Frankfurt, André Luis Callegari e
Cristina Reinholf da Motta alertam para o fato de que a proteção de bens jurídicos
ultrapassaria sua função de limitação à incriminação de condutas que não os
lesionassem para a assunção de um caráter de punição. Conforme os autores,
“houve um aumento considerável de tipos penais protegendo bens jurídicos num
mandato para penalizar em lugar de uma proibição condicionada de penalização 469”.
No mesmo sentido, para Hassemer470,

la protección de bienes jurídicos se ha convertido en un criterio positivo para


justificar decisiones criminalizadoras, perdiendo el carácter de criterio
negativo que tuvo originalmente. Lo que clasicámente se formuló como un
concepto crítico para que el legislador se limitara a la protección de bienes
jurídicos, se ha convertido ahora en una exigencia para que penalice
determinadas conductas, transformándose así completamente de forma
suprepticia la función que originariamente se le asignó.

Nesse contexto, a proteção dos bens de caráter transindividual contradiz a


noção clássica individualista de bem jurídico471 e proporciona, segundo Callegari, a
substituição de bens concretos à tutela de “funções, instituições e modelos de
organização, restando ao Direito Penal, deste modo, ser um reforço às normas
administrativas472”.

468
Cfe. MENDOZA BUERGO, Blanca. Gestión del riesgo y política criminal... p. 69-70.
469
CALLEGARI, André Luis; MOTTA, Cristina Reinholf. Estado e Política Criminal: a expansão do Direito
Penal como forma simbólica de controle social. In: Política Criminal, Estado e Democracia... p. 13
470
HASSEMER, Windfried. Persona, mundo e responsabilid. Bases para una teoría de la imputación en Derecho
penal. Madri: Tirant lo Blanch, 1999. p. 47.
471
Cfe. HASSEMER, Windfired. Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos... p. 33. Segundo
este doutrinador, os bens jurídicos transindividuais ou, como prefere, universais tratam-se, na realidade, de uma
antecipação da lesão aos bens jurídicos, no sentido de assegurar somente o bem-estar dos homens puramente em
um sentido somático e não preocupados em resguardar a vida ou a saúde das pessoas, preocupa-se mais essa
nova categoria a proteger a saúde pública, o funcionamento do mercado, a função empresarial, etc.
472
CALLEGARI, André Luis; COLET, Charlise Paula; WERMUTH, Maiquel Ângelo; ANDRADE, Roberta
Lofrano. Direito Penal e Globalização... p. 27.
162

Sergio Moccia alerta para o fato de na atualidade estar a assumir o


ordenamento penal uma função meramente dirigista, deixando de somente
repreender condutas que imediatamente ataquem a um bem e castigando, por outro
lado, a não observância de normas organizativas ao invés de fatos socialmente
danosos473. Passa, segundo o doutrinador italiano, o direito penal por um momento
de crise involutiva que tende a desrespeitar os direitos fundamentais dos
indivíduos474.
E o caminho para superar a crise não será diferente de, necessariamente,
realizar-se uma reflexão sobre a finalidade, âmbito e características do sistema
penal do Estado Democrático (e Social) de Direito. Moccia não põe o indivíduo
acima da sociedade, mas considera que a intervenção penal somente será legítima
e atenderá o bem comum da sociedade caso sejam respeitados os direitos do
sujeito em relação à autonomia e à dignidade.
Sobre o atual momento do direito penal na pós-modernidade e a necessidade
de respeito às limitações impostas pelo modelo de Estado Democrático de Direito,
Moccia aduz:

Quando la postmodernità chiede forme di controllo pena più flessibili, più


dinamiche, anche ai fini di una semplificazione processuale, il complesso dei
principi dello stato di diritto, quali determinatezza, personalità della
responsabilità, offensività, materialità, frammentarietà, sussidiarietà – viene
ad essere insopportabilmente sacrificato. È posisibile sostenere Che
l’accentuata disattesa di questi principi rappresenta, per le sue implicazioni,
l’esempio più evidente della perditta di valore di quelle idee-guida Allá base
del diritto penale dii derivazione iluministica, quali tutela di liberta e dignità
dell’uomo, che rappresentano i valori supremi dello stato di diritto.

Segundo Hassemer, figura impossível ao direito penal fornecer respostas


para a criminalidade proveniente das sociedades modernas e, portanto, deveria o
ser reduzido a núcleo sendo, portanto, os problemas advindos dos riscos da pós-
modernidade resolvidos por meio de uma construção denominada de Direito de
Intervenção (Interventionsrecht). A esta nova classe, entre o Direito Civil e o Direito
Público, entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, com um grau de
formalidades e garantias inferior ao Direito Penal, mas igualmente acompanhado de
uma carga reduzida de sanções, caberiam os delitos que não viessem a agredir de
maneira intensa bens jurídicos.

473
MOCCIA, Sergio. Emergência e defesa de direitos fundamentais, n.25. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo, n. 25, 1999.
474
Idem. Ibidem.
163

Segundo a proposta do Direito de Intervenção, a solução para os problemas


sociais modernos passaria, necessariamente, por retirar parte da importância dada
ao direito penal, restringindo-o, somente, à proteção de bens jurídicos individuais.
Reduzir-se-ia a um “Direito Penal básico”. E desta base (ou núcleo) fariam parte
todas as lesões de bens jurídicos individuais, bem como a sua colocação em perigo
de forma grave (p. ex. a condução sob efeito de bebidas alcoólicas e o incêndio) 475.
Mirentxu Corcoy Bidasolo critica a formulação proposta por Hassemer e
outros acerca do direito básico ou nuclear. Para a doutrinadora espanhola, o
problema encontra-se em definir quais situações significariam a colocação em perigo
de forma grave, uma vez que esta categoria de riscos graves englobaria
praticamente a totalidade dos novos riscos sociais como, por exemplo, a segurança
viária, o meio-ambiente e a delinqüência fiscal. Além disso, o direito penal tradicional
calcado em as contribuições Iluministas, segundo Corcoy Bidasolo, não é um
parâmetro fidedigno de respeito aos direitos individuais fundamentais. Argumenta
Corcoy Bidasolo que existe a moderna tendência cada vez mais proeminente de
aumento do número por parte do direito penal tradicional em criminalização de
condutas muitas vezes de forma desrespeitosas aos princípios da proporcionalidade
e da subsidiariedade476.
Paulo Silva Fernandes leciona o ponto principal de críticas à proposição de
Hassemer é que até o presnete momento não se conseguiu ainda definir quais
limites atrelados à pretendida base do direito penal, além, é claro, de não se
conseguir ainda determinar o que seria uma “colocação em perigo de forma
grave477”.
Jorge de Figueiredo Dias também se mostra contrário à proposta de
Hassemer. Segundo o doutrinador português, em casos graves como a
disseminação do HIV, danificação da camada de ozônio, lixos tóxicos, clonagem
reprodutiva dos seres humanos, etc. a punição dos agentes não poderá reduzir-se a
sanções civis ou administrativas, ainda que intensificadas. Afirma o catedrático
português que admitir uma solução nesses casos diferente do direito penal
acarretaria enorme confusão na lida com os princípios jurídico-penais da
subsidiariedade e de ultima ratio, uma vez que ao subtrair à tutela e às sanções

475
Cfe. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual... p. 68.
476
CORCOY BIDASOLO, MIrentxu. La Política Criminal em Europa... p. 30.
477
FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, Sociedade de Risco e Direito Penal... p. 76.
164

penais condutas tão gravosas que põem em risco a vida humana no planeta, o
resultado a ser alcançado pelo direito penal será contrário à proteção da dignidade e
da solidariedade entre os habitantes e, também, para os futuros habitantes do
planeta478.
No entanto, cabe destacar que o próprio Hassemer parece ter mitigado sua
posição monista-pessoal extremada quando assume que o conceito de bem jurídico-
penal não pode ficar imóvel diante da “roda da história” e distante da realidade social
que acabam por influir em instrumentos de proteção modificados 479. Expõe o
mencionado doutrinador:

Hasta hoy, continúa siendo mi opinión que:


- el bien jurídico resulta irrenunciable como parametro de una buena política criminal;
- se lo debe concentrar en su tradicional núcleo negativo y crítico del derecho penal;
- también constituyen bienes jurídicos en el sentido del derecho penal los bienes
jurídicos universales
- estos bienes jurídicos universales, empero, deben ser funcionalizados a partir de la
480
persona ;
- por medio de bienes jurídicos vagos, y al mismo tiempo, extremamente generales,
uma política criminal moderna y de amplio alcance no sólo amenaza
desproporcionadamente la libertad ciudadana sino que también daña el concepto
tradicional de bien jurídico.

Independentemente das críticas direcionas ao Direito de Intervenção, apesar


de não ser partidária esta dissertação do monismo-pessoal, as contribuições de
Hassemer merecem destaque, uma vez que o doutrinador alemão entende o direito
penal de forma crítica e, também, entende-o como um sistema erguido sob a
perspectiva de uma unidade de institutos ou regras, tendo certa também uma
perspectiva funcionalista do Direito. Dessa forma, ao funcionalismo caberá analisar
de forma global todo o sistema social. Além dessa contribuição à análise
funcionalista do Direito Penal, Hassemer consegue reafirmar o Direito Penal
conforme uma perspectiva constitucional de respeito aos Direitos Humanos,
pelejando, inclusive, contra as disposições penais exclusivamente simbólicas. Esse,
inclusive, é um dos elementos mais notáveis da contribuição de Hassemer, ou seja,

478
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral... pp. 146-147.
479
HASSEMER, Windfried. Bienes Jurídicos y Derecho penal... p. 66.
480
Sobre o tema, Corcoy Bidasolo sustenta que Hassemer admite que não poderá o Direito Penal moderno
prescindir da categoria dos bens jurúdicos universais, entretanto deverá funcionalizá-lo tendo como parâmetro a
proteção de um bem jurídico individual, além de descrever as condutas previstas no tipo penal de forma mais
precisa possível. A catedrática de Barcelona entende que a referência anterior a interesses individuais não deve
prosperar, pois os bens jurídicos coletivos são autônomos, somente podende ser qualificados enquanto categoria
própria, uma vez que em alguns casos a retrorreferência a um bem jurídico individual é meramente uma questão
retórica, não podendo ser comprovada na prática. Evidentemente, a adoção de bens jurídicos coletivos não
significará a derrocada dos princípios garantistas e de preservação da dignidade humana. CORCOY
BIDASOLO, Mirentxu. La Política Criminal en Europa... p. 28.
165

a volta do estudo do bem jurídico-penal a partir de uma função limitadora ou crítica


do ius puniendi.

4.3.2 O Direito Penal de duas velocidades481: Jesús-María Silva Sánchez

Silva Sánchez antevendo que seria muito difícil impedir a expansão do direito
penal, e, também, ilógico seria manter a teoria do delito atrelada a idênticas
exigências dogmáticas do passado482. Renuncia, portanto, Silva Sánchez à teoria do
delito como uma elaboração geral e uniforme do ilícito penal, visto que a
manutenção do antigo paradigma significaria um retrocesso ao sistema de garantias
fundamentais. Assim expõe Silva Sãnchez483 acerca da modernização do direito
penal:

Modernamente, em contrapartida, se rechaça por muitos a possibilidade de


construir de modo completo o sistema dogmático do Direito Penal sobre a
única base das verdades – supostamente permanente e imutáveis – inerentes
às estruturas lógico-objetivas. Desse modo, sem negar a importante função
de limite que tem a realidade do ser – em particular o conceito de pessoa e os
direitos que lhe são inalienáveis -, a que obviamente não pode opor-se à
construção dogmática, tende-se de modo crescente a construir o sistema, no
seio de um campo ontológico que se estima bastante amplo, sobre a base de
conceitos normativos. Estes adquiririam seu conteúdo concreto sob
perspectivas teleológicas, conformadas a partir das finalidades político-
criminais do Direito Penal. Umas finalidades político-criminais que não se
produzem a meras considerações utilitaristas – sociais – de eficiência
empírica, senão que compreendem de modo essencial considerações
valorativas específicas que se trata de extrair de um princípio de respeito á
dignidade humana às garantias fundamentais do indivíduo (definitivamente,
são culturais).

Silva Sánchez propõe a formação de dois blocos de ilícitos. O primeiro


conjunto formado seria pelos ilícitos para os quais se comina pena privativa de
liberdade, e outro englobaria o conjunto residual de condutas às quais se atribuiriam
sanções outras, isto é, penas não privativas de liberdade. Por isso, falar-se-á em
direito penal de duas velocidades, com regras de imputação e princípios de garantia

481
Vale ressaltar que Silva Sánchez já admite a existência de um Direito Penal da terceira velocidade, isto é, jus
puniendi apto a incidir na tentativa da manutenção dos fundamentos últimos da sociedade constoituída na forma
de Estado. Silva Sánchez cita como exemplos os delitos patrimoniais profissionais, os delitos sexuais violentos
ou reiterados, os fenômenos da criminalidade organizada e o terrorismo. Para o autor espanhol: “sem negar que a
terceira velocidade de Direito Penal descreve um âmbito que se deva aspirar a reduzir a mínima expressão, aqui
se acolherá com reservas a opinião de que a existência de um espaço de Direito Penal de privação de liberdade
com regras de imputação e processuais menos estritas que as do Direito Penal de primeira velocidade, com
certeza, é, em alguns âmbitos excepcionais e por tempo limitado, inevitável.” SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María.
A Expansão... pp. 148-154.
482
Idem, Ibidem... p.84
483
Idem, Ibidem. p.85.
166

funcionando a dois níveis de intensidade, conforme se esteja diante de um dos


blocos de ilícitos.
Contudo, apesar de críticas formuladas, Silva Sánchez não se distancia por
completo do conteúdo doutrinário proposto por Hassemer, eis que aquele também
considera necessária, no cenário atual de sociedade pós-moderna, a existência de
um modelo de imputação penal imbuído de menor intensidade garantística a
exemplo do proposto por Hassemer484. A diferença fundamental entre Hassemer e
Silva Sánchez pode ser resumida no fato que este considera que as novas
categorias delitivas não deve ser situada fora do campo de atração do direito penal
não sendo, portanto, possível considerá-los um ramo autônomo ou, como prefere
Hassemer, uma disciplina sui generis ocalizada entre o Direito Penal e o Direito
Administrativo ou entre o Direito Civil e o Direito Público485.
Jorge de Figueiredo Dias aduz que na obra Silva Sánchez a tratar a expansão
do direito penal pode notar-se a preocupação daquele doutrinador espanhol em
manter a existência de um pilar onde ainda valham os princípios do direito penal
clássico dirigidos à proteção subsidiária dos bens jurídicos individuais, à imputação
(objetiva e subjetiva) e, também, à culpa e à autoria puramente individuais486.
Silva Sánchez estabelece uma reserva absoluta destinada aos
comportamentos ameaçados com penas privativas de liberdade. Esses devem ser
enquadrados no núcleo duro ou clássico do direito penal tradicional, ou seja, tudo
isso visando a defesa dos direitos, liberdades e garantias individuais 487. E na
periferia dos bens tipicamente individuais encontrar-se-iam os novos riscos sociais,
e, sobre estes aqueles princípios tradicionais restariam amortecidos ou mesmo
transformados dando lugar a outros princípios de amplitude controlada. Nas palavras
de Silva Sánchez e muitas vezes mais adequados à realidade contemporânea488,

A ausência de penas corporais permitiria flexibilizar o modelo de


imputação. Contudo, para que atingisse tal nível de razoabilidade,
realmente seria importante que a sanção fosse imposta por uma
instância judicial-penal, de modo que preservasse (na medida do
possível) os elementos de estigmatização social e de capacidade
simbólico-comunicativa próprios do Direito Penal.

484
FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, Sociedade de Risco e o Futuro do Direito Penal... p. 140.
485
Cfe. GRACIA MARTIN, Luis. Prolegômenos... p. 109.
486
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral... p. 141.
487
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão... p.146.
488
Idem, Ibidem. p.147.
167

Jorge de Figueiredo Dias não se mostra favorável à proposta de Silva


Sánchez. Para catedrático de Coimbra, acreditar que os problemas penais na
sociedade de risco terão solução conferida por meio do direito penal de duas
velocidades é uma afirmação equivocada. Que o direito penal deva distinguir o
direito penal clássico do chamado direito penal secundário ou administrativo não há
qualquer novidade na contribuição de Silva Sánchez. O ponto central do debate
refere-se a não possuir esse direito penal de segunda velocidade elementos
suficientes à contenção dos riscos modernos ou, como prefere Figueiredo Dias,
mega-riscos. Seria incoerente, por exemplo, impedir penas mais graves e de maior
eficácia preventiva a condutas de maior potencialidade lesiva para a humanidade,
como, por exemplo, dos delitos praticados contra o meio ambiente 489.
Crítico de Silva Sánchez e Hassemer, Gracia Martin nega qualquer chance de
sucesso ao movimento por ele denominado de administrativização do direito penal.
Para Gracia Martin, também incoerente é a afirmação tendente a flexibilizar as
garantias penais, pois o direito penal contemporâneo deve-se comportar em
absoluta consonãncia com os ideias típicos de um Estado Democrático não
admitindo, portanto, qualquer relativização. Normalmente, segundo Gracia Martin, a
relativização ou flexibilização está direcionada à manutenção de uma ideologia
conservadora e reacionária, portanto, não destinada a resolver qualquer problema,
mas somente manter os proprietários e pessoas mais abastadas longe da
intervenção penal, deixando apenas os mais pobres expostos à intervenção
penal490.

4.3.3 A proteção dos contextos da vida: Günter Stratenwerth

Günter Stratenwerth em conferência proferida no ano de 1993 propôs uma


terceira via para resolver a questão de “aseguramiento del futuro con los medios del
Derecho penal491”. Segundo Roxin, Stratenwerth pronunciou-se contrário ao direito
penal puramente funcionalista que, pois este desprezaria as garantias de um Estado
Democrático de Direito, eis que se preocuparia somente com as formas eficazes de
promoção da segurança social frente aos riscos do futuro. Propusera Stratenwerth
uma nova dogmática que conduziria ao abandono do conceito de bem jurídico.

489
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral... p.148.
490
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos... p.110.
491
ROXIN, Claus. Derecho Penal.. p.62.
168

Deveria, assim, segundo Stratenwerth, caminhar essa nova dogmática penal


no sentido da proteção de relações (ou contextos) da vida enquanto tais, sem que
fosse necessário reconduzir a necessidade de proteção a interesses pessoais de
qualquer um dos participantes num dado contexto 492.
Stratenwerth argumenta que a sociedade é construída a partir de largas
experiências entre os seus componentes e o sistema de normas e valores
representativos é alcançado por meio de um consenso básico para a vida social e
que este sistema segue, necessariamente, os passos da vida cultural, não se
podendo, de nenhum modo, reivindicar validez universal à visão liberal de mundo
sobre a qual se apóia constantemente a decisão político-criminal de se considerar
alguns valores como bens jurídicos penalmente relevantes493.
Será possível, sem recorrer-se ao conceito de bem jurídico legitimar as
normas penalmente consideradas não remetidas diretamente a interesses
individuais ou a convicções valorativas gerais, pergunta Stratenwerth. A resposta,
segundo o próprio, é positiva devendo obedecer, necessariamente, ao
reconhecimento do outro com um ser moral. Isso não significa desprezar a distância
já estabelecida entre direito e moral e que não devem ser considerados relevantes
penalmente comportamento simplesmente imorais 494. O que propõe Stratenwerth é
considerar as normas sociais de comportamento como aptas a gerar a proteção
penal legítima, uma vez que na atualidade há em boa parte dos países ocidentais a
cultura de preservação dos direitos humanos, isto é, não se vive mais na
discricionariedade absoluta495. Stratenwerth de forma explícita elabora seus
comentários considerando o ambiente democrático posterior à Segunda Guerra em
seu país de origem, fato que não poderá ser automaticamente repassado a outras
nações ou povos. Aduz Stratenwert que imperava nos movimentos sociais da época
o desejo de jamais repetir as atrocidades do regime nazista e as violações aos
direitos fundamentais e nisso repousava o escopo e fundamental comum do
interesse geral da sociedade496:

492
Cfe. FERNANDES, Paulo Silva. Direito Penal, Sociedade de Risco e Globalização... p.81.
493
STRATENWERTH, Günter. La Criminalización en los delitos contra bienes jurídicos colectivos. In:
HEFENDEHL, Roland. La teoría del bien jurídico. ¿ Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de
abalorios dogmáticos? Madri: Marcial Pons, 2007. p. 368.
494
Cfe. ROXIN, Claus. Derecho Penal... p.64
495
STRATENWERTH, Günter. op. cit.,... p. 370.
496
STRATENWERTH, Günter. La Criminalización en los delitos contra bienes jurídicos colectivos... pp. 366-
367.
169

Éste era el estímulo para alcanzar nuestra meta de entender lo que había sucedido
en el pasado, el estímulo para el propio estudio, el estímulo para nuestro
compromiso com las polémicas políticas y periodísticas de la época, desde la lucha
contra el rearme de Alemania hasta la caída de un neonazi que había sido
nombrado ministro de cultura por el FDP de la baja Sajonia. Con esto quiero decir
que, respecto de la forma de Estado que progresivamente renasció, no nos
interesaba, o por lo menos no en primeira línea, el marco de las condiciones de
nuestra libertad personal. Más importante era la consecución de una comunidad que
se correspondiera en la medida de lo posible con nuestras convicciones sobre cómo
deberían convivir de aqui en adelante los seres humanos de nuestra procedencia, y
con las tareas con las que deberían comprometerse también como grupo. Una
comunidad con la cual pudieramos identificarnos en nuestra existencia social.

4.4 Aplicações do bem jurídico-penal transindividual: o patrimônio genético e


o meio ambiente

4.4.1 Engenharia genética, diversidade e integralidade do patrimônio genético497

A ideia de engenharia genética liga-se intimamente à de manipulação


genética, designição que possui maior abrangência e, por isso, segundo Maria
Auxiliadora Minahim498, não consegue exprimir com pertinência a natureza das
atividades desenvolvidas no campo da genética.
No campo da biologia, entende-se por engenharia genética a possibilidade de
intervenção e contrução de novas características em um dado organismo, mediante
transferência (inserção) ou extração de fragmentos específicos, isto é, a
manipulação, em geral, de DNA499.
Segundo de Paulo Vinicius Sporleder de Souza, a engenharia genética
humana pressupõe a modificação genética do genoma ou de determinada célula ou
organismo particular por meio de uma forma programada de adição, substituição ou
supressão de determinado(s) gene(s)500. Os progressos da engenharia genética
humana advêm das mais variadas fontes científico-tecnológicas: trabalhos com
células-tronco adultas, de origem humana ou animal, cultivadas em laboratório ou

497
Sabe-se que a Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05) não Abordou apenas do patrimônio genético humano.
Dissertou, ainda, acerca da pesquisa, comercialização, liberação no meio ambiente e o consumo de Organismos
Geneticamente Modificados (OGM), isto é, de outras entidades biológicas além do ser humano (art. 3º). No
entanto, a fim de se querer restringir o âmbito da pesquisa e, também, por considerar a discussão acerca do
patrimônio genético humano mais atraente à luz do embate entre concepções monista-pessoal e dualistas de bem
jurídico escolhe-se tratar somente da parte da Lei 11.105/05 que faz referência á engenharia genética humana.
498
MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p.
113.
499
CASTRO FILHO, Sebastião de Oliveira. Liberdade de investigação e responsabilidade ética, jurídica e
bioética. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro (org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios, 2001. p.
354.
500
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico-penal e Engenharia Genética Humana... pp. 175.
170

implantadas em bichos e até no homem ou estudos com células embrionárias in vitro


ou introjetadas em animais501.
A legislação brasileira adota em grande parte o conceito biológico de
engenharia genética. A Lei n. 11.105/05 (art.3º) considera engenharia genética “a
atividade de produção e manipulação de moléculas ADN, ARN recombinante”, uma
transcrição do conceito feito pela revogada lei que disciplinava a matéria (Lei n.
8.974/95 – art. 3º).
A partir da capacidade tecnológica de manipulação do material genético, a
correção e/ou o tratamento genético podem se dirigir a fins terapêuticos ou para fins
reprováveis de seleção genética de determinadas características biológicas dos
seres humanos ou, até mesmo, pela criação de novos seres híbridos e aberrações
humanas502. Sobre o atual momento de dúvidas nos campos biomédico e jurídico,
Eduardo de Oliveira Leite503 aduz:

O mundo jurídico, que é o que nos interessa, viu-se, de uma hora para
outra, solicitado, tanto pelos pesquisadores como pelos profissionais, que o
invocavam como meio de garantir mais segurança e maior legalidade à
audácia das novas práticas, evitando as eventuais demandas diante dos
tribunais.
Ora, o desenvolvimento ilimitado das ciências biomédicas provocou reações
em cadeia para as quais o homem não estava preparado, nem material nem
espiritualmente falando.
O exemplo mais veemente do que se está afirmando pe é a inseminação
artificial humana, enquanto restrita ao campo médico, não gera maiores
questionamentos. Quando, porém, transposta ao mundo jurídico provoca
uma infinidade de dúvidas, ainda não resolvidas (ao menos quanto à
imunidade desejada).
(...)
A partir da década de 1970, o que se constatou foi exatamente isso: o
descompasso, senão a inadequação, quando não, a ausência de normas
capazes de responder suficientemente às necessidades e indagações
humanas.

José Afonso da Silva ao realizar uma leitura do art. 225, II, da Constituição
brasileira aduz que a intenção do legislador constituinte originário foi preservar a
diversidade biológica, em qualquer espécie, incluindo, portanto, a humana. Essa
manutenção da variabilidade genética, segundo o mestre paulista, é
simultaneamente um seguro e um investimento visando à manutenção das opções

501
PIVETTA, Marcos.Células-tronco. A Lei de Biossegurança vai impulsionar a pesquisa nacional. Revista
FAPESP.São Paulo, abril. 2005. p. 30.
502
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico-penal e Engenharia Genética Humana... pp. 176.
503
LEITE, Eduardo de Oliveira. O Direito, a Ciência e as Leis Bioéticas. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro
(org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios, 2001. pp. 103-104.
171

de vida futura504. Souza presta homenaghes ao trabalho da Assembleia Nacional


Constituinte quando esta reconheceu a possibilidade dos efeitos colaterais
provenientes de técnicas de engenharia genética mal desenvolvidas, provavelmente,
implicando efeitos nocivos a gerações futuras505.
Segundo Guilherme de Souza Nucci, o cuidado do Poder Público em relação
à engenharia genética é compreensível e recomendável desde a constituição de
1988 que trouxe em seu bojo o art. 225 a fim de tutelar sob a rubrica genérica o
meio-ambiente, incluído nesse dispositivo, também, o bem jurídico diversidade e
integralidade genética506.
Prossegue o doutrinador paulista aduzindo que sem a intenção de impedir o
progresso, mas, ao mesmo tempo, evitando-se o marasmo científico, deve o Estado
fiscalizar, com eficiência, o setor de pesquisa e manipulação genética507.
A edição da Lei n. 11.105/05508 foi uma clara manifestação de estar o
legislador infraconstitucional preocupado com o futuro da manipulação genética e,
principalmente, com o respeito à dignidade humana, pois complementou o conteúdo
da Lei n. 8.974/95 que não acompanhou boa parte dos avanços tecnológicos como,
por exemplo, a clonagem509.
Inserido está no contexto dessa nova lei o Direito Penal, sempre devendo-se
observá-lo como ultima ratio. A lei em comento prevê tipos penais e conseqüentes
sanções penais para aqueles que resolvam descumprir as regras estabelecidas no
campo da engenharia genética. Cumpre destacar que Lei n. 11.105/05 trouxe seis
novos crimes. Alguns especificamente direcionados à tutela da engenharia genética
humana (arts. 24, 25 e 26) e outros encontram destinação á proteção de organismos
geneticamente modificados (OGM) que, comumente, são chamados de
510
transgênicos .

504
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
p. 840.
505
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. op. cit.,... pp. 325.
506
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª Ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010. pp. 123-124.
507
Idem, Ibidem. p. 124.
508
A exposição de motivos da Lei n. 11.105/05 determina que esse diploma legislativo tem como finalidade a
regulamentação dos incisos II, IV e V do art. 225 da CF, estabelecer mecanismos de fiscalização de situações
que envolvam Organismos Geneticamente Modificados e criar o Conselho Nacional de Biossegurança.
509
SILVA, José Afonso da. Comentários... pp.840-841.
510
Sobre transgênicos consultar LAJOLO, Franco Maria; NUTTI, Marília Regini. Transgênicos: bases
científicas de sua segurança. São Paulo: SBAN, 2003.
172

Art. 24. Utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o art. 5o
desta Lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Art. 25. Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto


humano ou embrião humano:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Art. 26. Realizar clonagem humana:


Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Art. 27. Liberar ou descartar OGM no meio ambiente, em desacordo com as


normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e
fiscalização:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 1o (VETADO)
§ 2o Agrava-se a pena:
I – de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se resultar dano à propriedade alheia;
II – de 1/3 (um terço) até a metade, se resultar dano ao meio ambiente;
III – da metade até 2/3 (dois terços), se resultar lesão corporal de natureza
grave em outrem;
IV – de 2/3 (dois terços) até o dobro, se resultar a morte de outrem.

Art. 28. Utilizar, comercializar, registrar, patentear e licenciar tecnologias


genéticas de restrição do uso:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Art. 29. Produzir, armazenar, transportar, comercializar, importar ou exportar


OGM ou seus derivados, sem autorização ou em desacordo com as normas
estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e
fiscalização:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.

Os crimes contra o patrimônio genético, identidade, diversidade ou


integridade do patrimônio genético humano seriam aquelas condutas que, de forma
programada, permitiriam modificar (total ou parcialmente) o genoma com fins não
terapêuticos e reprováveis511. Em suma, as finalidades da engenharia genética
humana não poderão ser desviadas do caminho de ajudar a prevenir ou tratar
enfermidades genéticas, a este escopo atribui-se da denominação de engenharia
genética terapêutica, também conhecida como eugenia negativa512.
A eugenia tem como objetivo a busca da melhora da espécie humana seja
eliminando doenças hereditárias, seja pelo aprimoramente de características 513. A
eugenia positiva ocorre quando existem ações destinadas a favorecer a transmissão

511
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico-penal e Engenharia Genética Humana... p. 176
512
O primeiro caso analisado na jurisprudência mundial a respeito da legitimidade ou não de procedimentos
eugênicos ocorreu no ano 1927 (caso Buck v. Bell). Considerou a Suprema Corte dos Estados Unidos da
América constitucionais as leis de trinta estados da federação que estabeleciam esterilização compulsória para
mulheres mentalmente retardadas. Essa obrigatoriedade vigorou até a década de 1970. O argumento da Suprema
Corte Americana era que a esterilização compulsória destinava-se à proteção e à segurança do Estado. KEVLES,
Daniel. In the Name of Eugenics. Genetics and the Uses of Human Heredity. Nova York: Knopf, 1985.
513
MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia... p. 130.
173

de caracteres mais próximos ao arquétipo concebido em busca de um ser humano


padrão. Já a eugenia negativa é definida como medida que intenta evitar a
transmissão de caracteres não desejáveis, sobretudo, aqueles que provocam
doenças. Alberto Silva Franco, citado por Minahim. distingue, ainda, o que chama de
engenharia genética sobre células germinativas em terapêuticas e não terapêuticas,
incluindo no primeiro grupo aquela voltada à eliminação das imperfeições do
genoma, que criam enfermidades hereditárias514.
Qualquer forma de manipulação que exceda ou modifique essa finalidade
(engenharia genética não terapêutica) merece reprimenda estatal. Segundo Souza,
a mens legis visando à proibição da engenharia genética não terapêutica deve-se ao
potencial de lesividade que esses novos instrumentos tecnológicos podem causar
quando sofrem influências de fatores eugênicos positivos515.
Diante do exposto acerca da engenharia genética, nota-se ao mesmo tempo
reverência e temor. É admirada porque consegue possibilitar avanços e benefícios a
complexas questões de saúde como fazem as pesquisas desenvolvidas por
cientistas brasileiros em conjunto com alemães que utilizam células-tronco da
medula óssea dos próprios pacientes para tratar seus problemas cardíacos ou,
ainda, o trabalho de pesquisa desenvolvido pelo Instituto de Neurociências da
Universidade Federal do Rio de Janeiro que produziram células nervosas in vitro na
tentativa de um dia conseguir encontrar cura para as doenças
neurodegenerativas516.
Já o lado negativo dos avanços genéticos traduz-se pela possibilidade de
degradação humana à medida que passarão a ser escolhidos a sobreviver apenas
os melhores ou os mais indicados ao incremento da raça criando, praticamente,
seres humanos sob medida. Desconsiderar-se-á, portanto, tendências ou
propriedades genéticas não-patológicas tipicamente presentes nos seres humanos,
fatores estes que fazem do genoma humano uma base genética tão rica.
Desde a conferência de Asilomar no ano de 1975 realizada na Califórnia em
que se reuniram aproximadamente 140 especialistas da área de engenharia

514
MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia... p. 131.
515
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. op. cit.,... p. 187. Para Souza, a eugenia negativa tem como objetivo
apenas evitar ou prevenir a extensão de patologias genéticas e é perfeitamente admissível no Direito. Ao
contrário, a eugenia positiva intenta o melhoramento da espécie humana pelo aperfeiçoamento de seus caracteres
genéticos, significa dizer, é melhorar a espécie a fim de se conseguir chegar á raça perfeita. Neste ponto reside o
perigo.
516
PIVETTA, Marcos.Células-tronco. A Lei de Biossegurança vai impulsionar a pesquisa nacional...p.33.
174

genética para debater e alertar sobre os possíveis riscos e impactos da crescente


engenharia genética humana, a discussão político-jurídica tem se propagado de
forma crescente no cenário mundial517.
Na década de 1980 do século passado as iniciativas político-legislativas
começaram a ganhar importância na Europa destacando-se, pioneiramente, as
recomendações do Conselho da Europa518 e os informes legislativos realizados por
comissões especiais em países como Alemanha519, França520, Noruega521, Suécia522
e Espanha523.
Na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da
UNESCO, de 11 de novembro de 1997, foi reconhecido que o genoma humano 524
está relacionado à dignidade humana, sendo o genoma humano, por um lado, base
dessa dignidade (art. 1º) e, por outro lado, não podendo essa dignidade ser
desrespeitada, em razão das características desse genoma, uma vez que essa
mesma dignidade determina que os indivíduos não podem ser reduzidos às suas
características genéticas (arts. 2º e 6º). No mesmo sentido, essa dignidade não pode
ser desrespeitada pela pesquisa e aplicação genéticas (arts. 10, 11, 15 e 21).
Quanto à identificação da identidade genética como bem jurídico, essa não é
unânime. A Constituição de 1988 não fez qualquer referência á expressão,
preferindo usar os termos diversidade e integridade do patrimônio genético. No
entanto, cumpre destacar que a locução identidade genética vem sendo adotada de
forma majoritária na doutrina e na jurisprudência internacionais ao longo das últimas

517
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico-penal e Engenharia Genética Humana... p. 333.
518
Recomendação 934 do Conselho da Europa (1982). Esta recomendação aduz que os direitos à vida e à
dignidade humana incluíam o direito a herdar o patrimônio genético inalterado. Fonte: Conselho Nacional de
Ética para as Ciências da Vida de Portgual (Ministério da Saúde). Parecer sobre a proteção jurídica das
invenções biotecnológicas, ano de 1993. Disponível em <www.cnecv.pt>. Acesso em 20/05/2013.
Dois anos após a edição da Recomendação 934, no ano de 1984, o Conselho da Europa editou a Recomendação
16 que estabelece disposições específicas sobre o uso da tecnologia do ADN recombinante em seres humanos,
inclusive definindo-o como a formação de um novo material genético que não existia de maneira natural no
organismo original.
519
Lei de Proteção a Embriões (Embryonenschutzgesetz) de dezembro de 1990.
520
Leis 94-653/1994 e 94-654/1994.
521
Lei 56 de 1994.
522
Lei 115/91.
523
Lei Orgânica 10 , de 23 de novembro de 1995.
524
Sobre o genoma humano, ver DIEDRICH, Gislayne Fátima. Genoma Humano: Direito Internacional e
Legislação brasileira In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro (org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios,
2001. pp. 224-225. Segundo a autora: genoma humano é o conjunto de estruturas gênicas contendo o projeto de
construção e funcionamento de todo o corpo humano. O genoma é composto por 46 filamentos enrolados em
pacotes, os cromossomos, que, por sua vez, são constituídos por uma macromolécula chamada ácido
desoxirribonucléico.
175

décadas525. Assim ocorre, por exemplo, com o texto da Recomendação n. 1.100


de1989 produzido pelo Conselho da Europa526, fazendo referência à utilização de
embriões e fetos humanos na investigação científica. Sobre o tema, vale transcrever
item 7:

7.Considerando que el embrión humano, aunque se desarrolla en fases


sucesivas indicadas mediante distintas denominaciones (cigoto, mórula,
blástula, embrión, feto), no sólo manifesta una diferenciación progresiva
como organismo sino que también mantiene la continuidad de su identidad
biológica y genética.

A denominação do bem jurídico em questão como sendo a identidade


genética também é acolhida, também, pela doutrina especializada. Costa Andrade
entende ser a identidade genética um bem de relevo social e jurídico inquestionável
e que merece um autônomo dever de tutela penal por parte do Estado 527.
Em sentido similar, Ferrando Mantovani, citado por Souza, aduz que deve o
direito penal estender o manto de proteção por meio de sua tutela a este novo bem
jurídico intitulado identidade genética e a todas as novas formas de ofensa à
dignidade humana que desta nova relação originem-se528. O único ponto discordante
da posição de Mantovani é que ele considera a identidade genética um bem jurídico
individual. Entretanto, não parece ser a posição do doutrinador italiano a melhor
opção. Defende-se nesta dissertação a vertente ideológica segundo a qual o bem
jurídico-penal identidade genética humana faz parte da categoria de bens jurídicos
transindividuais, uma vez que além de ganharem relevo no momento histórico pós-
industrial tipicamente caracterizado por Beck como sociedade de risco; e, possuirem
todas as características adequadas àqueles novos riscos causados pelo avanço
tecnológico, ainda, conservam a amplitude lesões ou ameaças a sujeitos
indeterminados (aspecto subjetivo). Basta ver, por exemplo, os casos de
criminalização da prática de engenharia genética em célula germinal humana, zigoto
humano ou embrião humano, em que o sujeito passivo não é o projeto de ser

525
Cfe. SOUZA, Paulo Vinicius Spordeler de. A criminalidade genética. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
p. 81.
526
Comunidade Europeia. Resolução 1.100/1989. Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Disponível
em <www.biblio.unam.mx/libros/5/2290/30.pdf>. Acesso em 20/05/2013.
527
ANDRADE, Manuel da Costa. Direito Penal e modernas técnicas biomédicas. As conclusões do XIV
Congresso Internacional de Direito Penal. Lisboa, Revista de Direito e Economia. Ano 15, 1989, pp. 376 e 378.
528
MANTOVANI, Ferrando. Diritto Penale e tecniche bio-mediche moderne. apud SOUZA, Paulo Vinícius
Sporleder de. Bem jurídico-penal e Engenharia Genética Humana... p 351.
176

humano que está sendo alterado, mas, sim, toda a sociedade 529. Ainda sobre a
transindividualidade do bem jurídico identidade humana Souza aduz: “o bem jurídico
identidade genética possui uma natureza supra-individual, cujo portador titular é toda
a humanidade530”.

4.4.2 Meio ambiente e direito penal

4.4.2.1Desenvolvimento sustentável e futuras gerações

A palavra ambiente indica o lugar, a esfera, o círculo, o sítio, recinto ou o


espaço que envolve os seres vivos e as coisas. A partir desse conceito aponta José
Afonso da Silva ser redundante a expressão mais utilizada no país tanto em termos
doutrinários quanto em produção legislativa, o meio ambiente, uma vez que, sob o
ponto de vista semântico, ambiente fornece a ideia de meio em que se vive e vice-
versa531. Contudo, às vezes, é de propósito deliberado o uso cumulativo de termos
sinônimos como uma necessidade de reforçar seu sentido e alcance. Assim fez o
legislador nacional constituinte, quando empregou a expressão meio ambiente em
vez de somente ambiente no art. 225 da Constituição Federal.
O conceito de meio ambiente deve abranger o conjunto de elementos
naturais, artificiais e culturais compreendendo, por conseguinte, o solo, a água, o ar,
a fauna e flora, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e
espeleológico, de modo a gerar a seguinte classificação: (i) meio ambiente natural
ou físico – constituído pela biosfera, que dizer, pelo conjunto de todos os
ecossistemas da Terra. O meio ambiente natural é conceituado pelo art. 3º, I, da Lei
n. 6.938/81 como sendo “o conjunto de condições, leis, influências e interações de
ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as
suas formas”; (ii) meio ambiente artificial, formado pelo espaço urbano construído,
consubstanciado no conjunto de edificações e pelos equipamentos públicos tais
como ruas, praças, área verdes plantadas, enfim, todos os assentamentos de reflexo
urbanístico e, por fim, (iii) meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio artístico,

529
NUCCI, Guilherme de Souza Nucci. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas...p. 128 também mostra-se
favorável ao enquadramento da identidade genética humana como bem jurídico transindividual.
530
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico-penal e Engenharia Genética Humana... p. 383.
531
SILVA. José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 8ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p.17.
177

histórico, turístico, paisagístico, arqueológico e espeleológico (cavidades naturais


como cavernas e outros fenômenos cársticos.
José Afonso da Silva aduz que o meio ambiente dificilmente estará a existir
em apenas uma das categorias acima elencadas, pois a interação entre elas torna o
mundo em que vive o ser humano mais rico no sentido de conexão de valores 532.
Ainda sobre o tema, o professor aposentado de Faculdade de Direito do Largo de
São Francisco533 leciona:

A indicação dos três aspectos revela apenas uma visão jurídica, fundada no
fato de que estão sujeitos a regimes jurídicos diversos. A doutrina tem-se
debruçado sobre a questão da unidade ambiental, com alguma divergência
que tende a desaparecer. É clara a ideia de bem cultural como aquele que
constitui testemunho material dotado de valor civilizatório, que oferece ao
jurista uma noção aberta, como nota Mario de D’urso. Mais difícil tem sido a
definição de bens ambientais, à vista de sua heterogeneidade, aflorado,
contudo, na Itália forte tendência a assimilá-los aos bens culturais. De fato,
“é muito difusa a doutrina que contesta a existência de bens ambientais
naturais, pois que, na realidade natural, eles não existem como “bens”, uma
vez que é sempre a obra humana que torna possível a sua fruição,
incorporando-os, assim, à própria civilidade como fonte de emoção. Quer
dizer, por aí, que o meio ecológico, natural, se transforma em meio
ambiente, cultural, como vida humana objetivada, na medida em que se lhe
reconhece um valor que, assim, lhe dá configuração de um bem de fruição
humana coletiva.

Toshio Mukai, por seu turno, também advoga a noção globalizante ou unitária
do meio ambiente. A necessidade de uma noção global de ambiente resulta não só
da multiplicidade de aspectos que caracterizam as atividades danosas para o
equilibro ambiental e, por conseguinte, de uma planificação global, mas também da
necessidade de relacionar o problema da tutela do ambiente com os direitos
fundamentais da pessoa534.
A partir de um viés econômico535, é possível afirmar que o meio ambiente é o
espaço onde se encontram e de onde se retiram os recursos naturais, como
elementos primordiais da produção. Segundo Luiz Regis Prado 536, a humanidade
ainda depende do ambiente natural, não apenas para a energia e os materiais, mas,
também, para os processos vitais de manutenção da vida, tais como ciclo do ar e da
água. Em consequência, a sobrevivência humana depende do entendimento e da

532
Idem, Ibidem.p.19.
533
Cfe. SILVA, José Afonso da.Direito Ambiental Constitucional... p.17.
534
MUKAI, Toshio. Direito Ambiental Sistematizado. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.. p. 5.
535
Sobre o tema meio ambiente e economia, ver NUSDEO, Fabio. Curso de Economia. Introdução ao Direito
Econômico. 7ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. pp. 402 e ss.
536
PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente.3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.66.
178

ação inteligente para preservar e melhorar a qualidade ambiental simultaneamente à


necessidade material de exploração da natureza.
Sobre a complexa relação entre desenvolvimento econômico e meio
ambiente, Mirentxu Corcoy Bidasolo aduz

La Ilustración potenció el Estado moderno que debía impulsar el progreso


tecnológico, por lo que en un primer momento del desarrollo industrial e
incluso durante gran parte del Siglo XX se favorecía el desarrollo sin fijarle
limite alguno. No obstante, las primeras controversias sobre las
consecuencias del aumento contínuo de la producción industrial aparece ya
en el siglo XIX, en aquellos países en los que la Revolución Industrial se
desarrolla, y, entre los diversos problemas que se suscitan el que más
directamente se corresponde con el actual debate sobre los problemas
econômicos derivados de la protección del médio ambiente es el que se
plantea sobre las consecuencias que el crecimiento económico acarrea para
los recursos naturales de los que disponde.
(...)
Es ya en la última cuarta parte del Siglo XX cuando el debate adquiere una
nueva dimensión puesto que se cuestionan abiertamente los beneficios del
desarrollo econômicos y se advierte de los problemas que origina y , muy
especialmente, de aquellos que atañen directamente al objeto de este
trabajo; la destrucción de los recursos naturales y el consiguiente
desequilibrio del ecosistema que resulta afectado en cadena.

A proteção jurídica do meio ambiente não é recente. O que se faz inédito é o


método de proteção combinando, na maior parte das vezes, sanções civis,
administrativas e penais e, também, a conscientização global acerca da necessidade
de tutela. Renato de Mello Jorge Silveira cita como primeira codificação destinada à
proteção do meio ambiente (águas) o Rivers Polluction Prevention Act (1876) 537.
Todavia, assume o doutrinador paulista que apenas com a instituição da era pós-
industrial fora atribuída maior relevância jurídica ao tema, principalmente, em razão
da profusão dos riscos socialmente criados.
O conceito de equilíbrio não é um conceito estranho ao direito. Pelo contrário,
a busca do equilíbrio nas relações sociais tem sido um fim a ser alcançado pelas
legislações. Em conclusão, pode-se afirmar que a contribuição humana ao equilíbrio
ecológico há de levar em conta que a relação homem-natureza não há de ser
exclusiva de parasitismo, mas beneficamente pode ser uma relação de simbiose.
Com esta postura moderna voltada à sustentabilidade intenta-se, em
realidade, optar por um desenvolvimento econômico qualitativo capaz de propiciar
uma real elevação da qualidade de vida e do bem-estar social. Isso significa

537
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-individual... p. 134.
179

desenvolvimento sustentável, ou seja, um desenvolvimento equilibrado e racional do


ponto de vista ecológico buscando a satisfação das necessidades humanas sem o
comprometimento dos recursos equivalentes de que necessitarão no futuro outras
gerações538. Sobre o desenvolvimento econômico e a preocupação das futuras
gerações, Paulo de Bessa Antunes leciona que o princípio do desenvolvimento
sustentável insere-se numa zona de fricção entre o livre desenvolvimento econômico
e o princípio da precaução. Compreender e harmonizar ambos os princípios figura
essencial na tentativa de se poder alcançar um bom nível de proteção ambiental 539.
A finalidade de reconhecer às futuras gerações o status de portadoras de
direitos humanos encontra legitimação na moderna conjuntura de sociedade de
risco, uma vez que “em causa está a própria subsistência da vida no planeta e é
preciso, se quisermos oferecer uma chance razoável às gerações vindouras, que a
humanidade se torne em sujeito comum da responsabilidade pela vida”540.
A sustentabilidade não deve ser arguída apenas no aspecto doutrinário. Esse
conceito apresenta fundamentos constitucionais, uma vez que o art. 225 da CF/88
impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações 541.
Requer, como seu requisito indispensável, um crescimento econômico que envolva
equitativamente a redistribuição dos resultados do processo produtivo e a
erradicação da pobreza, de forma a reduzir as disparidades nos padrões de vida e
melhor atendimento da população542. Sobre o desenvolvimento sustentável, Aline da
Veiga Cabral Campos 543 elenca cinco pontos fundamentais para o sucesso dessa
diretiva ambiental contemporânea: (i) atendimento às necessidades básicas da

538
Cfe. CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Los delitos relativos a la ordenación del território y el medio
ambiente: una persectiva criminológica. In: CORCOY BIDASOLO, Mirentxu; RUIDIAZ GARCIA, Carmen.
Problemas Criminológicos en las sociedades complejas: Navarra: Univesidad Pública de Navarra, (s.a). pp. 55-
56.
539
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental... p.25.
540
Cfe. CÂMARA, Guilherme Costa. O direito penal secundário e a tutela das futuras gerações. In: D’AVILA,
Fabio Roberto; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. Direito Penal Secundário. Estudos sobre crimes econômicos,
ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 230.
541
Cfe. SILVA, José Afonso da.. Direito Ambiental Constitucional... p. 25.
542
Nesse sentido encontra-se o Princípio 5 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento:
“para todos os Estados e todos os indivíduos, como requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável,
irão cooperar na tarefa essencial de erradicar a pobreza, a fim de reduzir as disparidades de padrões de vida e
melhor atender às necessidades da maioria da população do mundo”. Disponível em
<www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>
543
CAMPOS, Aline da Veiga. Precaução ambiental na era do Direito Penal Secundário. In: D’AVILA, Fabio
Roberto; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. Direito Penal Secundário. Estudos sobre crimes econômicos,
ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 100.
180

população; (ii) solidariedade para com as gerações futuras; (iii) participação popular;
(iv) preservação dos recursos naturais e (v) efetivação de programas educativos.
O Supremo Tribunal Federal, no ano de 2005, quando julgou a Medida
Cautelar (MC) em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de número 3.540/DF
concluiu que o legislador constituinte originário positivou o princípio do
desenvolvimento sustentável no corpo da Carta Política em virtude de ser o meio
ambiente um direito fundamental de terceira geração dotado da característica de
transindividual, uma vez que visa a preservação do meio ambiente e a impedir que
eclodam, no seio da coletividade, conflitos intergeracionais decorrentes de uma
possível exploração econômica futura e predatória do meio ambiente. A seguir
encontra-se transcrita a ementa do julgamento:

MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE


(CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE
METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE
NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA
SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A
ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE,
CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS
ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E
SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS
SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI -
SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO
PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA,
CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU
PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS
PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A
INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE
PROTEÇÃO ESPECIAL - RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II,
C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE
TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS
DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES
(FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A
QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO
AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À
ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO
REFERENDADA - CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE
MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO
AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO
FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS. –
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um
típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o
gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a
especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras
gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ
164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a
garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos
intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos
se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral.
Doutrina. A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM
181

DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A


PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. - A incolumidade do meio ambiente não pode
ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações
de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade
econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada,
dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente"
(CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio
ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço
urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter
legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio
ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são
inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança,
cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos
ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. A
QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A
NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO
AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO
ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. - O princípio
do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente
constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais
assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio
entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a
invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores
constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não
comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos
direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de
uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e
futuras gerações. O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDIDA
PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001: UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA
DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. - A Medida Provisória nº
2.166-67, de 24/08/2001, na parte em que introduziu significativas alterações no art.
4o do Código Florestal, longe de comprometer os valores constitucionais
consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário, mecanismos
que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidas no âmbito
das áreas de preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e
lesivas ao patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama
proteção mais intensa, agora propiciada, de modo adequado e compatível com o
texto constitucional, pelo diploma normativo em questão. - Somente a alteração e a
supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente
protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da
Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal. - É lícito ao
Poder Público - qualquer que seja a dimensão institucional em que se posicione na
estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) -
autorizar, licenciar ou permitir a execução de obras e/ou a realização de serviços no
âmbito dos espaços territoriais especialmente protegidos, desde que, além de
observadas as restrições, limitações e exigências abstratamente estabelecidas em lei,
não resulte comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quanto a tais
territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º,
III).

4.4.2.2 Antropocentrismo ou ecocentrismo na legitimação do bem jurídico no direito


penal ambiental?

Quanto ao bem jurídico protegido pelo direito penal ambiental a doutrina


posiciona-se a partir de três paradigmas: (i) teoria antropocêntrica; (ii) teoria
182

ecocêntrica e(iii) Teoria antropocêntrica-ecocêntrica (ou mista). A seguir, descrição


de cada uma delas.
A teoria antropocêntrica não considera o meio ambiente um fim em si mesmo.
Entende esta vertente teórica que a proteção meio ambiente visa a tutelar bens
jurídicos estritamente baseados em um referencial individual, isto é, aqueles bens
jurídicos que levam em consideração o paradigma liberal-clássico baseado no
indivíduo. Não são reconhecidos, portanto, como autônomos os bens jurídicos
ambientais ou ecológicos, mas sim originam-se em decorrência de valores ou
necessidade de preservação individual. Souza 544 admite, ainda, consoante a teoria
antropocêntrica, a criminalização de interesses difusos por meio de bens jurídicos
transindividuais, desde que respeitada uma condição: a tutela da saúde pública e a
tutela qualidade de vida comunitária não são autônomas. Apenas recebem proteção
em virtude de imediatamente fazerem referência a bens jurídicos individuais.
Sobre a teoria antropocêntrica, José Urquizo Olaechea545 sustenta que esta
põe como limite os bens jurídicos presididos por pessoas humanas, ou melhor, bens
jurídicos que apresentam como titulares apenas o ser humano considerado na sua
individualidade. O ponto inconveniente segundo Urquizo Olaechea é que haverá, se
defendida a teoria antropocêntrica, uma diminuição na categorização de bens
jurídicos, transformando-os basicamente em vida, liberdade, honra e patrimônio.
Assim exemplifica o autor a teoria monista-pessoal ou monista-antropocêntrica546:

El criterio de condición necesaria es un límite, y no un nuevo instrumento para


calificación o valoración de conductas . Como enseña Mir en el “caso del tabaco”. No
cabe negar que la salud pública es un interés colectivo que afecta cada indivíduo,
pero habrá que exigir un determinado grado de lesividad individual para que importe
al Derecho penal, y, asimismo, la protección penal que merece dependerá también
de esa lesividad individual.

Segundo Corcoy Bidasolo547, a defesa da teoria antropocêntrica mostrar-se-á


dissonante da realidade dos valores predominantes na sociedade de risco. O
controle dos riscos tecnológicos, segundo a doutrinadora catalã, com o fim de
manter-los sob o controle (risco permitido) é, na atualidade, um dos deveres do

544
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. O meio ambiente como sujeito passivo dos crimes ambientais. In:
D’AVILA, Fabio Roberto; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. Direito Penal Secundário. Estudos sobre crimes
econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 270.
545
URQUIZO OLAECHEA, José. El bien jurídico. Lima, Revista Peruana de Ciencias Penal, ano III, nº6,
p..826.
546
Idem, Ibidem.
547
CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Problemas criminológicos en las sociedades complejas... p.69.
183

Estado. Além disso, aguardar a configuração individual de uma conduta, geralmente,


com crimes de resultado ou, ainda, com crimes de perigo concreto mostrar-se-á
demasiadamente arriscado sob o ponto de vista da função preventiva do
Ordenamento Jurídico, com especial atenção ao mandamento constitucional trazido
pelo art. 45 da Carta Política espanhola548.
Quanto à segunda isto é, isto é, a teoria ecocêntrica esta sofreu profunda
influência do pensamento da ecologia profunda ou radical (deep ecology) e inspirou-
se em um movimento filosófico-cultural que visava destituir o mundo de sua visão
antropocêntrica. A partir de uma perspectiva holística, a deep ecology considera o
homem um dos muitos integrantes da natureza. Juridicamente, segundo a doutrina
da deep ecology a natureza passa a ser considerada como sujeito de direito e o
homem, ao lado de plantas e outros animais, é considerado apenas um membro da
sociedade biótica549, quer dizer, para o direito penal seria o homem apenas um dos
possíveis objetos da ação, isto é, “o ser animado ou inanimado – pessoa ou coisa –
sobre o qual se realiza o movimento corporal do autor que pratica uma conduta
típica no círculo dos delitos a cuja descrição pertence o resultado tangível550”.
Em resumo, sustenta a teoria ecocêntrica que o meio ambiente deve ser
compreendido como um fim em si mesmo sendo justificada a proteção penal
independentemente de qualquer relação com o homem e com as suas
necessidades, pois a natureza possui valores próprios que merecem ser tutelados
de forma autônoma pelo direito penal.
A teoria ecocêntrica, portanto, não está orientada propriamente à proteção
das condições de desenvolvimento, existência e das necessidades dos seres
humanos. Segundo esta teoria, pode-se dizer que o meio ambiente constitui-se em
titular exclusivo de determinados bens jurídicos ecológicos, tais como: a limpeza ou
saúde da água, do ar e do solo, a vida dos animais, a dignidade dos animais e das
plantas e o equilíbrio ecológico.
Partidário da a teoria ecocêntrica Guilherme Gouvêa de Figueiredo sustenta
ter feito o legislador infraconstitucional quando da edição da Lei n. 9.605/98 (arts. 29
e seguintes) opção clara e manifesta em considerar o meio ambiente um sujeito de

548
Art. 45 da Constituição Espanhola de 1978: Todos tienen el derecho a disfrutar de un medio ambiente
adecuado para el desarrollo de la persona, así como el deber de conservalo.
549
Cfe. SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. O meio ambiente como sujeito passivo dos crimes ambientais... p.
271-272.
550
Cfe. PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente... p. 99.
184

direitos. Sustenta Figueiredo que com a leitura feita da legislação ordinária no Brasil
pode ser notado que os bens jurídicos como o equilíbrio ecológico da água, do ar e
do solo551. Cabe destacar, entretanto, que o autor não considera bens jurídicos
ecológicos estanques a qualidade do solo ou da água, ou, então, a fauna e a flora.
Prefere o doutrinador agrupá-los sob a rubrica de um bem jurídico macroecológico
intitulado ciclo biológico natural. Figueiredo complementa sua posição 552:

Assim, por exemplo, a liberação de resíduos tóxicos em um rio não se pune


em virtude da afetação desse mesmo rio, considerado singularmente, mas
sim, tendo-se em conta as conseqüências prejudiciais para o ciclo biológico
peculiar a um sistema natural (ecossistema), do qual o rio é parte integrante
(morte da fauna local, contaminação alimentar, perigo para a saúde das
pessoas etc).

Por fim, a teoria antrocêntrica-ecocêntrica ou mista reconhece que existem


bens jurídicos ambientais autônomos, mas estes também devem ter como referência
o ser humano. Entende-se que o meio ambiente, mesmo sendo considerado um fim
em si mesmo, deve ser alvo de proteção penal tendo em vista a ideia relacional de
responsabilidade do homem não só para com a natureza, mas também para com as
gerações futuras. Segundo esta teoria, ao lado dos bens de cunho clássico
percebidos sempre com o tradicional espectro individual, foram criados ou
desvendados, no momento da criação da sociedade de risco, novos bens jurídicos.
Trata-se, em realidade, de uma combinação das duas teorias anteriores. Segundo
Renato de Mello Jorge Silveira553, a legitimidade de proteção de bens jurídicos
transindividuais encontrará fundamento de legitimidade somente quando estejam
lastreados nos interesses fundamentais da vida da pessoa e da sociedade.
Corroborando esta posição, Maria da Conceição Ferreira da Cunha aduz: “estas
duas dimensões co-essenciais ao direito penal não deveriam ser consideradas
antagônica, mas complementares. O que se está sempre em causa são os valores
essenciais à vida do homem que é, por essência, um ser comunitário554”.
Parece ser esta a posição doutrinária mais coerente. Depreende-se desta
visão que tanto o meio ambiente quanto a humanidade apresentam-se como
legítimos titulares de bens jurídicos relacionados aos crimes ambientais. Na

551
FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Crimes Ambientais e Bem Jurídico-Penal. (Des)criminalização,
redação típica e (in)ofensividade. 3ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. p.135.
552
Idem, Ibidem. p. 137.
553
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-individual... p. 57.
554
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime. Uma perspectiva de criminalização e
descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995. p. 199.
185

realidade, ambas as classes de bens jurídicos encontram amparo no bem-estar


individual e social do ser humano podendo ocorrer a convivência pacífica entre as
categorias. O bem jurídico transindividual atuará como complemento a fim de ser
assegurado o rol basilar de direitos fundamentais dos cidadãos555.

En definitiva, entonces, una reordenación de los bienes jurídicos a partir del


significado en el sistema de los bienes jurídicos colectivos vienen a
constatar la relación de complementación en que están los bienes jurídicos
referidos al funcionamiento del sistema respecto de aquellos que
constituyen las bases y condiciones del mismo. Complementación que hay
que entenderla en el sentido de que los bienes jurídicos relativos al
funcionamiento del sistema están en relación teleológica con aquellos que
constituyen sus bases y condiciones, es de decir, tienden a asegurar una
libertad e igualdad material de los sujeitos.

Possível concluir, portanto, que os bens jurídico-penais transindividuais


relacionados ao meio ambiente e, por que não, ao patrimônio genético são tutelados
por si, isto é, pela sua simples existência, mas, todavia, não deixam de ter como
referencial uma necessária relação constitutiva com o ser humano, tendo em vista a
sua dignidade e o desenvolvimento da pessoa enquanto ser social integrante da
coletividade.

555
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Los bienes jurídicos colectivos... p. 163.
186

CONCLUSÃO

O direito penal, como tradicionalmente proposto, bem como seu arcabouço


teórico-dogmático e, também, a política criminal acabam por refletir todo um sistema
social de influência Iluminista liberal-burguesa. A construção desse modelo visava,
sobretudo, à contenção do poder punitivo estatal apresentando como finalidade a
evitação de um controle absoluto do Estado sobre a vida de seus cidadãos.
Consoante tal concepção de direito penal, a liberdade, a igualdade, a segurança
jurídica e o patrimônio configuravam orientações centrais à vida em sociedade.
Assim, à luz daquele panorama histórico, intentava-se sair de uma realidade calcada
na arbitrariedade movendo-se em direção um sistema fulcrado num padrão mínimo
de racionalidade que, em última análise, visava, dentre outros princípios, mas, em
especial o princípio da legalidade, evitar o arbítrio estatal. Todo esse movimento
político e jurídico-penal indicava os anseios da emergente classe burguesa nas
últimas décadas do século XVIII.
A partir da segunda metade do século XX verificou-se uma profunda alteração
no modo de organização social. Era a pós-modernidade ou, como prefere Baumann,
a modernidade recente. O modelo capitalista sofreu uma profunda alteração das
formas de produção. As ondas tecnológicas influenciaram novos meios de
transporte, comunicação, robótica e etc. modificando, por consequencia, a forma de
entendimento do ser humano acerca do mundo. Era o fim da era industrial e o
período a ser vivenciado na atualidade mostra-se diferente de qualquer outro. Com o
o advento de novas tecnologias, uma mudança de paradigma ocorrera. De uma
sociedade fulcrada no conflito de classes para uma sociedade que ainda tenta
entender como lidar/repartir com incertezas. Espalharam-se os riscos de forma
global atingindo lugares geograficamente distantes das zonas de produção e
pessoas indeterminadas.
Com isso, toda a capacidade humana de previsão dos possíveis resultados
prejudiciais à vida na Terra passa a ser questionada. Ao lado dessa incapacidade
diante das profundas alterações acarretadas por novas tecnologias, outros fatores
contribuem para o medo ou a insegurança generalizada na sociedade: a atuação
dos meios de comunicação em massa e o papel da opinião pública. Além disso, há,
segundo Silva Sánchez a atuação massiva dos gestores atípicos da moral que
187

encabeçam uma tendência crescente de ampliação do Direito Penal no sentido de


uma crescente proteção de seus respectivos interesses.
O modelo social atual passa a ser compreendido como uma sociedade de
risco. O campo de atuação da ciência penal não pode ficar circunscrito apenas
àquele decorrente da teoria liberal-burguesa fundada, principalmente, no ideal bem
jurídico-penal individual. É preciso mais: nos dias correntes, são evidentes novas
formas de criminalidade que, muitas vezes, põem em xeque interesses sociais
gerais, inclusive, aqueles relacionados à manutenção do próprio sistema social.
A crença em métodos científicos infalíveis passou a ser na atualidade um
mito. São remotas as possibilidades de neutralização dos novos riscos sociais seja
por impossibilidade tecnológica, seja porque o próprio sistema capitalista não
comporta tal neutralização. O problema, portanto, não radica mais nas decisões
humanas que gerariam riscos, mas sim naquelas que os distribuem. Esse
contraponto é apontado por Beck como a principal diferença entre a teoria
sociológica clássica (ou marxista) e a teoria sociológica contemporânea. Aquela
seria incapaz de analisar os fenômenos sociais correntes, pois coloca em primeiro
plano as relações econômicas. Esse fator, segundo Beck, empobreceria o debate. O
cerne da discussão atual repousa na configuração do risco de procedência humana
como fenômeno social estrutural.
A pós-modernidade trouxe consigo característcas próprias apresentando
como problema para o direito penal uma série de alterações tanto no campo da
dogmática penal quanto no campo da política criminal. Dois desses exemplos de
mudanças de paradigmas clássicos foram tratados nesta dissertação – crimes de
perigo abstrato e bens jurídico-penais transindividuais -, bem como dois recentes
campos de preocupação – meio ambiente e patrimônio genético. Toda a alteração
não pode desconsiderar a real necessidade de avanço de institutos típicos das
Ciências Penais, mas não poderá jamais esquecer o respeito à dignidade humana,
princípio basilar de um Estado Democrático de Direito.
A crescente interdependência dos indivíduos na vida social dá lugar, cada vez
em maior medida, que a inetgridade de bens jurídicos de um sujeito dependa da
realização de condutas positivas (controle de riscos) por parte de terceiros.
A proteção de bens jurídico-penais transindividuais não pode ignorar o papel
do direito penal como um Direito mínimo, isto é, aquele segundo o qual estará o todo
188

ordenamento repressivo lastreado em princípios como ultima ratio, subsidiariedade e


proporcionalidade, tanto em fase legislativa como em fase judicial.
Muita precaução deve existir quando da elaboração de tipos penais que visem
à tuetla de bens jurídico-penais transindividuais a fim de que não se cometa o erro
de enveredar-se pelo caminho do simbolismo penal exclusivo. Um direito penal
minimamente harmônico deverá conviver simultaneamente com a aceitação da
tutela transindividual versus limites individuais. A política criminal nesse contexto de
sociedade de risco deve ser entendida como elementos de apoio às construções
dogmáticas penais para a legitimação de sua proteção penal sem, contudo, perder
sua função crítica.
189

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