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Contardo Calligaris (/colunas/contardocalligaris/)

ccalligari@uol.com.br (mailto:ccalligari@uol.com.br)

Miguel morreu por viver num mundo com poucos


adultos
Em suma, a desigualdade social do país não ajudou a criança, de apenas cinco anos

17.jun.2020 às 23h15

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2020/06/18/)

No dia 2 de junho, no Recife, um menino de cinco anos, Miguel Otávio, caiu


do nono andar de um prédio de alto padrão e morreu.
(https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/menino-de-5-anos-que-estava-aos-cuidados-da-patroa-da-mae-morre-

apos-cair-de-predio.shtml)

Miguel estava naquele prédio acompanhando a mãe, Mirtes Renata,


empregada doméstica de uma família composta por Sarí Côrte Real, Sérgio
Hacker, prefeito de Tamandaré, no litoral pernambucano, e os dois filhos
pequenos do casal.

Mirtes desceu para passear com a cachorra da família. Enquanto isso, uma
manicure estava fazendo a unha de Sarí.

Miguel queria fugir atrás da mãe e da cachorra, mas era uma saída rápida,
apressada —mais simples Miguel esperar em casa.
O vídeo da câmera de segurança mostra que Miguel entrou no elevador.
Houve um diálogo dele com Sarí (a câmera não capta som —presume-se que
fosse para convencer Miguel a ficar no apartamento). No fim, Sari apertou o
botão da cobertura —suponho que fosse um lugar onde Miguel gostasse de
brincar.

Miguel, sozinho no elevador, apertou vários botões e desceu no nono andar,


onde talvez ele já soubesse que a laje do ar condicionado era acessível. Foi
para lá que ele foi e de lá despencou. Será que viu a mãe de longe, tentou
chamá-la?

A história parece feita para meditar sobre o sistema brasileiro de castas: a


necessidade de Mirtes levar o filho para o trabalho; a pouca paciência (como
disse a própria Mirtes) de Sarí, que deixou Miguel subir pelo elevador; o
estranho paralelo entre o cuidado com a cachorra e o não cuidado com
Miguel.

A isso se acrescentou a descoberta de que Mirtes (mais a mãe dela e outra


funcionária) eram de fato empregadas pela prefeitura de
(https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/prefeito-que-empregava-mae-de-menino-miguel-como-domestica-a-

mantinha-como-funcionaria-municipal.shtml)Tamandaré

(https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/prefeito-que-empregava-mae-de-menino-miguel-como-domestica-a-

mantinha-como-funcionaria-municipal.shtml),
como se o privilégio, no Brasil, sempre
estivesse ligado a alguma improbidade administrativa —por exemplo, um
funcionário-fantasma pago com dinheiro público.

Assisti várias vezes ao vídeo do elevador. Naqueles breves instantes se


decidiu a morte de Miguel. O que faltou para que ele se salvasse?
Ilustração de Luciano Salles para coluna de Contardo Calligaris de 18.jun.2020. - Luciano Salles

Ao receber repórteres do G1 de Pernambuco na casa dela, Mirtes comenta:


(https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/14/caso-miguel-imagens-ineditas-mostram-o-que-aconteceu-no-

predio-de-onde-menino-caiu-minutos-apos-a-queda.ghtml)“As paredes estão um pouco


descascadas porque ele pegava as ferramentazinhas e queria brincar de
pedreiro”. E comenta que quando ela não podia levar o filho, Miguel
aprontava: “Subia na grade, ficava gritando, mamãe, me leva, me leva... Era
cheio de energia”.

Cuidado: a “energia” de Miguel não foi responsável pela morte dele. Miguel
morreu um pouco por pertencer a uma classe da qual os privilegiados fazem
pouco caso e, mais ainda, ele morreu porque ao redor dele estavam faltando
adultos, cruelmente.

O que significa adulto neste caso? Simples: um adulto é alguém que não é
dirigido pelo medo de perder o amor da criança e, portanto, não está com
medo de frustrá-la.
Eu cresci num lar privilegiado, mas em que adultos havia de sobra. Uma
situação inversa à de Miguel (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/e-se-fosse-ao-contrario-
gritam-manifestantes-sobre-morte-de-miguel.shtml) pode servir de exemplo. Imaginemos que

minha mãe saísse e eu fizesse uma birra e me enfiasse no elevador para


correr atrás dela; a empregada me puxaria pelo braço ou pela orelha para
fora do elevador e talvez acrescentasse um tapa na bunda final —tudo sem
medo de que eu a odiasse por isso e sem medo que minha mãe discordasse
dela. Minha mãe, voltando, concordaria e acrescentaria uma punição, do tipo
“para cama direto depois do jantar”.

Voltando a Miguel, Sarí foi preguiçosa porque, afinal, era “só” o filho da
empregada? Ou Sarí, de qualquer forma, não saberia puxá-lo do elevador no
grito ou na marra porque ela, Sari, não é uma adulta, ou seja, está com medo
de frustrar uma criança?

Miguel morreu de uma incapacidade social de dizer não a um menino de


cinco anos que pode aprontar porque sabe que os adultos todos, mãe ou
“patroa”, vão acabar cedendo.

Em algum momento, a partir da segunda metade do século passado,


perdemos a capacidade de criar e educar, porque a frustração infantil se
tornou, para nós, um espetáculo insuportável.

O amor moderno pelas crianças é perfeitamente narcisista: queremos vê-las


“felizes” como gostaríamos de ter sido e não fomos. Queremos que encenem
a felicidade à qual aspirávamos e que não conquistamos. Elas são o remédio
contra nossas frustrações. Como poderíamos frustrá-las?

Explicação sociológica complementar —as famílias pós-divórcio são o


ambiente ideal para que se instaure uma luta em que exigir ou frustrar está
fora de questão, porque vai que a criança gosta mais dos outros?

Em suma, a desigualdade social não ajudou. Mas, antes disso, Miguel morreu
por viver num mundo com poucos adultos.

Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e
'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)
witter.com/ccalligaris)

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ENDEREÇO DA PÁGINA

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2020/06/morte-
de-miguel-parece-feita-para-meditar-sobre-o-sistema-brasileiro-de-
castas.shtml

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