CONTRIBUICAO A GEOMORFOLOGIA DA AREA DOS CERRADOS
Aziz Ab’Saber
Departamento de Geografia,
Faculdade de Filosofia, Ciéncias ¢ Letras da
Universidade de Sa0 Paulo
In; SIMPOSIO SOBRE O O fato de existir uma superposigao muito expressiva
CERRADO, 1., 1962, So Paul entre os grandes dominios morfoclimaticos e as principais
provincias fitogeograficas das terras intertropicais do Pla-
nalto Brasileiro conduziu o autor a uma série de estudos
visando esclarecer as razdes cientificas de tais coincidén-
BIBLIOGRAFIA cias geogréficas. Tal rumo de pesquisas possibilitou — em
uma espécie de primeira aproximasio — o esclarecimento
preliminar dos diferentes tipos de combinagées de fatos
geomérficos, climaticos, hidrolégicos e pedolégicos que
respondem pela homogeneidade relativa e pela notivel
extensividade dos principais quadros de estruturas de pai-
sagens ¢ de coberturas vegetais desta parte do pais.
Levando-se em consideragio 0 conjunto do terri-
t6rio brasileiro, talvez seja possivel encontrar um ntimero
superior a dez.combinagdes regionais do tipo aludido. En-
tretanto, restringindo-se o estudo a parte intertropical do
Republicado com o titulo “Mares e Moros Planalto Brasileiro, onde em todos os quadrantes o fator
Cerrados ¢ Caatingas: geomorfologia comparada altitude é mais ou menos homogéneo (300-900 m), fica-se
N. Os deménio cea reduzido a trés imensos dominios morfoclimaticos, reco-
potencialidades paisagisticas, Sao Paul bertos a grosso modo por trés das prineipais provincias
cli Editorial, 2003, fitogeograficas do mundo intertropical brasileiro.
‘Trata-se das seguintes grandes unidades morfocli-
miticas e climatobotanicas:
Edusp, p. 117
1. dominio das regides serranas de morros mamelonares
do Brasil Sudeste (rea de climas tropicais ¢ subtropi-
cais — zona da mata atlintica sul-oriental);
2, dominio das depresses intermontanas e interplanal-
ticas do Nordeste semirido (érea subequatorial e tro-
pical semiarida — zona das caatingas);
3. dominio dos chapadées tropicais do Brasil Central
(area tropical de regime pluviométrico de duas estagées
—zona dos cerrados ¢ das florestas galerias)Tais dominios morfoclimaticos, sublinhados
por revestimentos floristicos, constituem os me-
Ihores exemplos de complexos regionais de toda
a fisiografia brasileira. Entretanto, mesmo em,
relagao a eles & impossivel uma delimitagio car-
togrifica do tipo linear, tanto no que se refere a0
setor puramente geomérfico como principalmente
no que diz respeito a fronteiras vivas das areas de
contato de provincias geobotinicas. Tal impossibi-
lidade de delimitacao esta relacionada com 0 fato
de cada dominio possuir uma area core e faixas ou
zonas de transicio, onde se interpenetram, dife-
renciam-se ou se misturam — em mosaico com-
plexo — componentes de duas ou mesmo das trés
reas em contato. E de todo oportuno frisar que
somente as Areas core tém individualizacio propria,
apresentando feigdes geomérficas originais, como
também dreas passiveis de serem tomadas, sem
nenhuma diivida, como areas climax, do ponto de
vista rigorosamente fitogeografico.
Nao ha nenhuma relacao entre as areas
core ¢ as provincias geoldgico-estruturais do pais.
Pelo contrério, dentro dos cores existem terrenos
de diferentes idades ¢ de litologias variadas, per-
tencendo indiferentemente a escudos ou bacias
sedimentares. Entretanto, os cores esto profun-
damente amarrados aos quadros de superposicio
dos fatos geomérficos e geopedolégicos, que so os
principais responséveis pelas condigoes ecolégicas
médias nelas dominantes. Por outro lado, possuem
filiagio muito direta com a histéria paleoclimatica
quaternéria das regiGes onde se fixaram ¢ se expan=
diram.
As “ilhas” de vegetagao exéticas encontradas
dentro das éreas core dos diferentes dominios mor-
foclimiticos ¢ geobotinicos s6 podem ser expli
cadas pela existéncia local de fatores de excecio
de ordem litolégica, hidrolégica, topogrifica €
paleobotanica. Debaixo da influéncia de tais fa-
tores, esses pequenos quadros de excesio consti-
tuem sempre excelentes exemplos de ocorréncia de
condigées ecoldgicas elaboradas por complexos de
convergéncia (“capées” florestais da area dos cer-
rados, “brejos” florestais da area das caatingas, man-
chas de cerrados relictos no interior das caatingas €
matas, manchas de caatingas em compartimentos
de areas de matas).
‘A fea core do dominio morfoclimstico
tropical atlantico, cujo protétipo é encontrado
nos mares de morros florestados do Brasil de
Sudeste, apresenta a seguinte combinacao de fatos
fisiograficos: decomposigo funda e universal
das rochas cristalinas ou cristalofilianas, desde
3-5 m até 40-60 m de profundidade; presencade solos de tipo latossolo ou red yellow podzolic,
superposigio de solos devido as flutuagées
climaticas finais do Quaternério; mamelonizacio
universal das vertentes, desde o nivel dos morros
mais altos até o nivel de alguns terragos fluviais;
drenagem originalmente perene até para o menor
dos ramos das redes hidrogrificas dendriticas
regionais; lengol de égua subterrineo alimentando
permanentemente, durante ¢ entre as chuvas, a
correnteza dos leitos dos cursos de égua; cobertura
florestal continua desde o fundo dos vales até as,
mais altas vertentes e interflivios, desde poucos
metros acima do nivel do mar até aos espigdes
divisores situados entre 1100 m e 1300 m; lengol
de gua superficial de tipo difuso, anastomosado,
correndo pelo chio da flo
e redistribuindo detritos finos ¢ restos vegetais,
com formagio de horizontes A”, A° e Aj nio
incidéncia de raios solares diretamente no solo da
floresta; forte cota de umidade do ar; equilibrio
sutil entre processos morfoclimaticos, pedolégicos,
hidroldgicos e biogeograficos.
No dominio tipico das areas de caatingas,
pelo contrario, impera a seguinte combinagao de
fatos: alteragio muito superficial das rochas, nio
raro com afloramentos de pequenos cabegos ro-
chosos (horizonte de alteragio variando entre 0 €
3 m, em média); presenga frequente de planicies,
semiaridas ligeiramente sulcadas por cursos de
gua temporiios; arranjo geral em vastas depres-
s6es intermontanas ou interplanalticas, oriundas
de fendmenos de pediplanasio ocorridos no de-
correr do Terciério e do Quaternério; drenagem
exorreica intermitente, de perfil relativamente
equilibrado c longo curso; ambiente quente e seco,
com baixa cota de umidade durante o periodo das,
secas; ténues pavimentos pedregosos em formacio
¢ restos de paleopavimentos mais espessos, suba-
tuais; solos rasos e variados, de dificil discrimi-
ago, raras vezes salinos; campos de inselbergs, ora
de resisténcia, ora de posigo; lajedos, superticies
rochosas e campos de boulders frequentes; grande
diversidade na composigio floristica local das ca-
atingas, muito embora com dominio de plantas
xerofiti
Os planaltos tropicais interiorizados da
porgao centro-oeste do pais constituem por si sé
um dominio de paisagens morfolégicas ¢ fitogeo-
grificas inteiramente diferente do que se observa
na paisagem dissecada dos mares de morros flo-
restados, como igualmente diverso do quadro de
paisagem das depressées intermontanas semid-
ridas, revestidas por diferentes tipos de caatingas,
sta durante as chuvas
de estrutura mesomérfica.
Quando se atinge as dreas tipicas de Goigés e Mato
Grosso, 20 invés de se encontrar florestas por todos
os niveis de topografia, como é 0 caso do Brasil de
Sudeste, ou de se encontrar caatingas extensas nas
rasas depresses interplandlticas ou intermontanas,
como seria 0 caso do Nordeste semirido, depara-se
com 0 arranjo clissico, homogéneo ¢ monétono da
paisagem peculiar as areas de savanas. As formacdes
vege z nfo sejam tipicamente de savanas,
mas 0 arranjo e a estrutura de paisagens constituem
uma amostra perfeita dos quadros paisagisticos zo-
nais, que caracterizam esta unidade to frequente
do cinturo intertropical do globo.
‘Nos interflivios elevados dos “chapadées”,
onde predominam formas topogrificas planas e
macigas, ¢ solos pobres (latossolos ¢ lateritas), apa-
recem cerrados, cerradées ¢ campestr:
via de regra descem até a base das vertentes, ce-
dendo lugar no fundo aluvial dos vales as florestas
galerias, em geral largas e continuas. Nesse mosaico
ordenado de vegetagio subestépica e de vegetagio
florestal tropical, cada componente oposto tem sua
posi¢fo exata na topografia, na trama de solos e
no quadro climatico e hidrolégico diferenciado ali
existente.
A drenagem superficial da ar
composta por duas nervuras hidrogréficas apenas
totalmente integradas durante a estagdo chuvosa,
H4 uma drenagem perene no fundo dos vales que
responde pela alimentagao das florestas galerias,
nos intervalos secos. E existe uma trama fina e mal
definida de caminhos de agua intermitentes, nos
interfitvios largos, a qual, associada com a pobreza
relativa dos solos, responde pela ecologia do cerrado.
Na estagao seca, 0 lengol de agua permanece abaixo
das talvegues desses pequenos vales de enxurrada,
somente tangenciando as cabec
raso e pantanoso, onde medram os buritizais (dates).
Em compensagio, no fundo dos vales, o lengol de
gua subterraneo alimenta permanentemente a
correnteza, independentemente das estagdes: dai
a perenidade dos grandes, médios e pequenos rios
da regio. Ai, alias, a grande diferenga hidrolégica
entre 0 Centro-Oeste e o Nordeste semisrido,
A vegetasao dos cerrados, tendo se adaptado
€ se desenvolvido, em algum momento do Quater-
nario (ou mesmo dos fins do Terciério), a esta estru
tura de paisagens, de planaltos tropicais interiori-
zados, dotados de solos lateriticos, é certamente um
dos quadros da vegetago mais arcaicos do pais. A
medida que a rede frouxa dos vales com drenagem
perene se expandiu, as florestas galerias filiadas as
grandes provincias florestais contiguas (mata ama-
is talve7
08 quais
do cerrado é
s em anfiteatrozénica e matas atlantica e do Rio Parana) tém se
interpenetrado pelo vasto dominio dos cerrados.
Da mesma forma que a erosio fluvial, regressiva
a expansio das galerias florestais tém sido de tipo
remontante.
Por seu turno, as depressdes intermontanas
norte-orientais do Planalto Brasileiro ganharam
reas em detrimento da redugio dos paleoespagos
dos chapaddes centrais. Isto significa que 0 do-
minio morfoclimatico do Nordeste semiarido, de
tipo marcadamente azonal, ganhou areas do do-
minio morfoclimético tropical, de duas estagbes,
do Brasil Central. Isto nos explica em grande parte
porque existem cerrados nos interflivios da cha-
pada de Araripe ¢ nos altos dos chapado
franciscanos, a cavaleiro das caatingas situadas em
nivel bem mais baixo, correspondentes a largas de-
presses intermontanas e interplandlticas.
Os cerrados revestiram parcial ou totalmente
até mesmo os compartimentos mais baixos do
relevo do Brasil Central (érea core) onde durante
08 fins do Terciario e inicios do Quaternario foram
elaborados pediplanos tio ou mais tipicos que os
do Nordeste Oriental. Referimo-nos ao pediplano
Cuiabano ¢ ao pediplano do Alto Araguaia, que
por estarem dentro da rea central do dominio
climitico dos cerrados — a despeito das feigdes
— foram revestidos total ou parcialmente por
cerrados. Tratam-se, alias, dos setores de cerrados
colocados em niveis mais baixos (4 excegio das
ithas de cerrados do Pantanal) dentro dos planaltos
do Brasil Central.
Os capées de matas situados em interfhivios,
no interior da area core dos cerrados, esto para
a regio exatamente como os diferentes tipos de
brejos florestais do Nordeste esto para as caatingas.
‘Tratam-se de pequenos quadros morfocliméticos,
geopedoldgicos ¢ hidrolégicos, suficientemente
capazes de comportar condigdes ecolégicas para a
implantacdo de “ilhas” ou nticleos de florestas, de
invasio muito recente dentro dos quadros do Qua-
temario. A diferenca principal entre uma e outra
rea & que, enquanto no Nordeste o fator determi-
nante da génese dos brejos é de origem climatica
local (“ithas” de umidade), no Centro-Oeste o fator
genético bisico depende mais do solo, de sua umi
dade e drenagem superficial perene do que de um
microclima local diferenciado. ‘Trata-se, pois, es-
sencialmente, de condigdes ecolégicas de excesio
no conjunto da grande area dos cerrados. Quando
os capées esto em zona ligeiramente dissecadas
ou mamelonizadas, tem-se a impressio de que, em
pleno dominio dos cerrados, di
esbogo de esquema das condigées morfoclimaticas
peculiares ao Brasil Tropical atlantico.Um fato muito importante e digno do maior
relevo € que néo se conhecem bons exemplos
de relictos de caatingas no meio do dominio
dos cerrados, mas sio muito frequentes relictos
de cerrados no meio do dominio das caatingas
‘A caatinga na visio de Percy Lau.
(Pernambuco, Alagoas, Bahia). Assim, sio comuns
relictos de cerrados em areas de invasio de cerrados
em zonas de matas (Amazonas, Rio Branco, Sio
Paulo, Minas Gerais), cocais (Maranhao), araucérias
¢ pradarias de altitude (Parana).