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‘Marisa Tench de Oliveira Foterrada ‘A maior parte dos materiais contidos em Kindermusik, tanto os constituidos por palavras quanto os constituidos por notas musi- «ais, nao podem ser transmitidos da maneira que esto, necessi- tando de mediagao, que inclui, entre outras [fungSes], a “tradugao” dos textos numa linguagem mais adequada ao grau de desenvolvi- mento geral e especifico, individual e coletivo dos destinatérios (Porena, s.d,, p.124), A idéia de mediagao defendida por Porena aponta para a ne- cessidade de formacio espectfica do professor de miisica, $6 a sim, capaz de assumir a responsabilidade a ele conferida por Porena: a de co-autor, capaz de responder pela execucio do projeto. Para conhecer melhor a proposta de Porena, 0 sumério de Kindermusik pode ser mais elucidativo do que qualquer explicacdo: Jogos a dois Vogais/consoantes Dez materiais para mais de dois executantes Dez coordenagées Dez encontros de percussdo com ou sem intervengSes estranhas Dez utilizagses heterodoxas Dez projetos ambiciasos As sessGes sio separadas umas das outras por interliidios: Interidio 1 Seis exercicios para a conquista progressiva do espaco diaténico Dez exercicios politritmicos Cito exercicios para a conquista progressiva do espago eromatico Interbidio 11 ~ para quatro ou seis flautas doces e instrumento com tastes Uma das obras, Der wiedergewonnene kuckuck [O cuco recon- 4quistado], apresenta um interessante processo de composigao, em ue uma melodia é distribufda pontithisticamente por muitas vo- 2es e encoberta por notas que funcionam como uma espécie de cortina, impedindo sua identificagao. A cada repeticdo, algumas 192 ‘De tramase fas das notas vao sendo abandonadas, a partir de alguns critérios pre- viamente expostos pelo autor, até o momento em que a simples melodia se mostra, distribuida entre as partes. Interlidio 111 dez cones diversos Entre eles, Un‘sca un‘ombra — pega coral a vitias vozes Ths coros rituais Interlidio 1V — dois contrapontos a tres Mottetto Duas fuguetas pentafonicas Interlidio V Para quatro violinos ou dois pianos Para violino e violoncelo Duas marchas Micrometamorphosen para quatro instrumentos iguais| © que importa destacar nesse autor é semelhante ao que se viu nos outros autores examinados neste segmento, é a nao linearida- de de propostas, com aulas abertas, com carater de “oficina”, além da grande énfase posta na ctiatividade, tanto do professor quanto dos alunos. Também aqui, a atuacdo se da em procedimentos de rede e néo em linha, como era comum nos mestres anteriores. Murray Schafer Na mesma via percorrida pelos trés educadores apresentados, inserem-se as polémicas idéias de Schafer, que acredita mais na qualidade da audi¢ao, na relagdo equilibrada entre homem e am- biente, e no estimulo a capacidade criativa do que em teorias da aprendizagem musical e métodos pedagégicos. Suas posigées a respeito desse tema vém sendo construidas ha bastante tempo, desde a década de 1960, como resultado da propria pritica e de suas reflexGes a respeito das suas (nem sempre bem-sucedidas) experiéncias escolares durante a infancia e a adolescéncia. 193 Ll -Marica Tench de Oveira Foterada Via de regra, as idéias de Schafer ganham adeptos entusiastas, a0 mesmo tempo que chocam as facgdes conservadoras, néo pela prioridade que confere & escuta, énfase encontrada nos mais con- sagrados educadores musicais deste século, mas pela pouca im- portancia que dé ao ensino de teoria da mtisica. Outra de suas posigdes polémicas diz respeito ao repertério usualmente utiliza- do no ensino de mtisica, pois, no seu entender, a crianga, isenta de tudes: preconceituosas em geral encontradas entre os adultos, tem capacidade para apreciar tanto a mtisica do passado quanto a de vanguarda, e deve ser estimulada a tomar contato com produ- Ges de varios estilos e épocas (Adams, 1983, p.22) Quando jovem, Schafer participou do Projeto john Adaskin, no ‘Canada, que propunha trazer compositores para dentro da escola, ‘com 0 duplo objetivo de estimular os estudantes a desenvolver ha- bilidades criativas e motivar os compositores a escrever para crian- gas e adolescentes. A partir dessa experiéncia, Schafer teve opor- tunidade de testar suas idéias na area da educagéo musical, Observando os alunos das escolas canadenses em que esteve du- rante o projeto, Schafer percebeu que o foco do ensino de miisica continuava centrado na leitura e na memorizagao, sendo que rara- ‘mente eram levados a criar ou estimulados a ouvir 0 que eles ou ‘outras pessoas tocavam ou cantavam, a despeito das inovagbes que ssurgiam no Ambito da produgio artistica contemporiinea. ‘Com Schafer, o treinamento e as regras rigidas so substituidos por propostas destinadas a estimular os estudantes na busca de res- postas as questdes que ele Ihes propée, favorecendo, assim, 0 didlo- go aberto e a discuss4o. Embora, ao contratio de Paynter e Self, Schafer nunca tenha lecionado em escolas, a nfo ser em projetos eesporddicos, em que seus contatos com os alunos foram de curta duragdo, ele logo descobriu a boa relago que mantém com criangas e jovens, 0 que o levou a desenvolver técnicas de trabalho inovado- ras, que Ihe conferiram uma firme reputagao e fama internacional na frea da educagio musical, apesar de que, como ele préprio afir- ma, “no haja evidéncia de que tenham tido um real impacto no Canada” (Schafer, comunicagao pessoal, apud Adams, 1983, p.22). 194 De tramas fos As atividades que Schafer propde poclem ser executadas dentro cou fora da sala de aula, com grupos de qualquer faixa etria e com énfase no som ambiental. Essas atividadles tanto podem ser utiliza- das dentro do curticulo especifico de mtisica como em atividades extraclasse ou mesmo fora da escola, ¢ funcionam como uma espé- cie de “guerrilha” cultural, para lembrar uma expresso de Umberto Eco,‘ na qual brincar com sons, montar e desmontar sonoridades, descobrir,criar, organizar, juntar, separar e reunir so fontes de pra- zer e levam & compreenséo do mundo por critérios sonoros. Schafer nao esta preocupado com 0 ensino sistemitico de mi- sica, com a aplicagdo de técnicas especificas a formagao de instru- mentistas ou cantores, tampouco quer desenvolver e sistematizar procedimentos metodolégicos para uso nesta ou naquela institui- fo de ensino, O que o mobiliza é 0 despertar de uma nova manei- ra de ser € estar no mundo, caracterizada pela mudanga de cons- ciéncia. Essa postura, jédivisada em seus trabalhos nas décadas de 1960 e 1970, vai se evidenciar cada vez mais no decorrer dos anos, pelo seu compromisso com a ecologia, de modo geral, e com a ecologia sonora em especial. Seus prinefpios, idéias e sugestées encontram-se agrupados em varios livros, dois dos quais esto tra- duzidos para o portugués: O ouvido pensante (1991) ¢ A afinasao do ‘mundo (2001). Educagio sonora Por tudo 0 que foi dito até agora, o trabalho de Murray Schafer seria mais bem classificado como educacao sonora do que propria- 4 Umberto Eco, 20 tratar das formas de controle da mensagem por parte da popu- lagio, diz que *as formas no industrais de comunicagio podem torna-se a8 formas de uma futura‘guerrilha de comunicacio’ a continua corregi de pets pectivas, a interpretacio sempre renovada das mensagens", como modos de reintroduzir a dimensio ertica na recepcio passiva (Eco, 1984, p.173-5). Como se pode ver, também quanto a esse aspecto suas posicSes ndo esti distantes das assumidas por Schafer 195 ‘Marisa Tench de Oliveira Fowterada mente educagao musical, termo, em certa medida, comprometido com procedimentos, escolas e métodos de ensino. © que ele pro- pie deveria anteceder e permear 0 ensino da miisica, por promo- ver um despertar para 0 universo sonoro, por meio de ages muito simples, capazes de modificar substancialmente a relagfo ser hu- ‘mano/ambiente sonoro. © nome proposto nao é casual. Em 1991, Schafer iniciou 0 projeto de um texto.a respeito do que chamou educagio sonora. Maior do que seu envolvimento com questdes musicais, esse texto revela seu comprometimento com uma antiga idéia: a qualidade da escu- ta; por meio dela, seria possfvel a cada comunidade avaliar critica- ‘mente 0 ambiente aciistico em que vive e propor solucdes para a melhoria de sua qualidade. Schafer acredita que & preciso voltar 0s exercicios simples, bisicos, de audigdo, para que a capacidade auditiva, to prejudicada pelo aumento indiscriminado de ruido e pelas condigdes da vida moderna, recupere sua plena capacidade. Dessa iléia, surgiu A sound education, publicado no Japdo em 1991 eno Canada em 1992, Em 1994, foi traduzido para o espanhol, em edigdo argentina, sob o titulo Hacia una educacién sonora ‘Ao visitar a América do Sul a partir de 1990, quando minis- trou aulas em varias cidades do Brasil e da Argentina, Schafer pro- pds aos alunos de seus cursos uma série de exercfcios, concebidos como intuito de atingir a mesma finalidade. Schafer acredita que a ‘América Latina, de modo geral, tem sido muito receptiva as suas idéias, mais do que seu préprio pais. Segundo ele, isso se deve & ctiatividade dos latino-americanos, aliada a um menor compro- misso com a tradicdo musical européia; ao menos, diz ele, foi 0 «que pode observar nas comunidades com as quais tem trabalhado. Novos materiais Enquanto a “primeira geragao” de educadores preocupou-se em fazer a crianga desenvolver habilidades de escuta, incentivou 0 movimento corporal ¢ trabalhou suas habilidades de intérprete, 196 De tramas¢ fos como cantores ou instrumentistas, na segunda parte do século XX a preocupagao deslocou-se do ambito da performance para o da composiglo. Essa tendéncia provocou a necessidade de exploragio de formas alternativas de notagao musical, bem préximas dos modos de nota¢do contemporiineos. Na segunda metade do século, pode ser identificado um grupo de compositores preocupados em fornecer a aluunos, com pouca ou rnenhuma experigncia em escrita tradicional de miisica, obras espe Imente planejadas para serem executadas em sala de aula, que no exigem conhecimento de teoria da mtisica ou habilidades em performance para que sejam realizadas. O pressuposto é 0 mesmo das linhas experimentais de composi¢ao que incentivam a explora- fo de sonotidades, prescindindo, porém, de conhecimentos técni- cos, que poderiam afastar essas obras do cotidiano dos alunos e pro- fessores de miisica nas escolas de educagao geral ou especializada. ‘Alguns desses materiais serao examinados neste segmento, como altetnativas possiveis ao educador. O primeiro deles ¢ uma colegio de pequenas obras musicais para serem executadas coleti- vamente, em sala de aula, Esse material denomina-se Jeunes nusiques: Collection de partitions de musique contemporaine e € editado pela Uni- versal Editions, na Austria. A colecSo fol organizada no Centre de Formation de Musiciens Intervenants a I’Ecole, da Universidade de Ciéncias Humanas de Estrasburgo, por Victor Flusser, brasilei- ro radicado na Franga, e co-editada pelo Institut de Pedagogie Musicale et Choreographique de la Cité de la Musique, em Paris. A colegao reiine, em dois volumes, materiais dos compositores David Bedford, Alan Brett, Brian Dennis, George Self, Howard Skempton, Murray Schafer, Bernard Rands, Elizabeth Flusser ¢ Heinz Kratchwill ‘A maior parte das pecas é escrita para instrumentos variados. Os compositores permitem adaptagdes para abrigar materiais dis- poniveis nas escolas; eles especificam, nas pegas: voz e instrumen- to melédico, instrumentos de altura nao determinada, instrumen- tos de sopro ¢/ou cordas, voz. € mao, ou instrumentos ad libitum. Alguns s4o um pouco mais especificos, como pesa para piano pre- 197

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