Édouard Glissant

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Édouard Glissant

Romancista, poeta e ensaísta, Édouard Glissant nasceu em setembro de 1928 na


cidade de Sainte-Marie, na Martinica. Desde a juventude, Glissant se filia às ideias
revolucionárias e milita pela libertação das colônias. É isso que, em 1946, faz ele ir à
Paris para estudar Filosofia na Sorbonne e Etnografia no Museu do Homem. Na capital
da França metropolitana, ele participa ativamente dos debates literários e culturais, bem
como das mobilizações de luta contra a colonização. Em 1965, Glissant volta para a
Martinica e cria, em 1967, uma instituição privada de educação que visa um ensino
focado na história e na geografia da Martinica; é o Instituto Martiniquense de Estudos
(IME). Poucos anos depois, em 1971, ele funda a revista Acoma, revista crítica das
sociedades antilhanas que já anuncia seu ensaio Le discours antillais.

Publicado somente em 1981, Le discours antillais é o primeiro estudo a falar


sobre o conceito da antilhanidade, pelo qual Glissant é conhecido. A partir da
antilhanidade, o autor martiniquense elabora vários conceitos sobre a identidade e a
literatura antilhana. Dentre eles, o processo da crioulização e o conceito da Poética da
Relação são os mais famosos. Desde 1990, com a publicação de Poétique de la
Relation, até 2011, ano de sua morte, Glissant desenvolve esses dois principais
conceitos através dos seus romances, ensaios e poesias.

Crioulização

O processo da crioulização é abordado a partir da Poética da Relação, conceito


que, por sua vez, deriva da Antilhanidade. A Antilhanidade, como já vimos, designa não
apenas uma união política das Antilhas, mas entende essa união como uma comunidade
cultural. Mesmo com línguas crioulas e histórias um pouco diferentes, teríamos uma
cultura compartilhada. A linguagem e a história dessas ilhas são conjuntas e os povos
sofreram e lutaram da mesma maneira contra o domínio europeu. É daí que nasce a
Poética da Relação, que, como o nome já diz, trabalha com a ideia da relação entre as
ilhas. Essa relação se dá, segundo Glissant, justamente pela crioulização, que seria um
processo próprio das culturas nascidas da colonização. As Antilhas são um lugar de
intensa crioulização, ou seja, são formadas por uma mistura de povos e culturas vindos
de outros lugares. É o que Glissant chama de “crioulização dos mundos”. A partir dessa
noção de crioulização mais ampla, o autor aborda o que me interessa mais
especificamente: a crioulização linguística.
A crioulização linguística deriva desse ambiente de misturas, da criação da
língua crioula e, sobretudo, da fala e do uso dessa língua. Assim como a crioulidade,
que é posterior à crioulização, ela se inscreve na mesma tentativa de criar uma nova
linguagem escrita e, por consequência, uma literatura. Para tanto, Glissant vai se basear
no que ele considera a gênese da literatura antilhana e a consolidação da língua crioula:
os contos crioulos tradicionais. Porém, ele não postula apenas a inserção de palavras ou
expressões em língua crioula, como fez a crioulidade, que ele chama de crioulismo:

Para mim a crioulização não é o crioulismo: é, por exemplo, engendrar uma


linguagem que teça as poéticas, talvez opostas, da língua crioula e da língua
francesa. O que eu chamo de poética? O contador de história crioulo se serve
de procedimentos que não pertencem ao espírito da língua francesa, que lhe são
mesmo opostos: os procedimentos da repetição, reduplicação, insistência,
circularidade. As práticas da listagem (...) que esboço em muitos de meus
textos, essas listas que tentam esgotar o real não numa fórmula, mas numa
acumulação, a acumulação precisamente como procedimento retórico, tudo
isso me parece muito mais importante do ponto de vista da definição de uma
linguagem nova, mas muito menos visível. (...) A acumulação de parênteses,
por exemplo, ou de incisos, que é uma técnica, não intervém de maneira
decisiva no discurso francês (GLISSANT, 1996a, apud FIGUEIREDO, 1998,
p. 88).

Assim, Glissant tenta passar os elementos e procedimentos do contador de


história, que são orais, para a forma escrita. Para ele, a criação de uma literatura consiste
em voltar às origens, às tradições; por isso a escolha pelos contos orais. O autor então
explica sua estética após ter começado uma construção de um ciclo de romances em que
tenta reproduzir não a língua crioula em si, mas a retórica dos contos crioulos. Para dar
conta da rítmica da língua crioula, ele usar como base o implícito: sua ideia é hibridizar
a língua francesa com a “economia” da oralidade. E essa economia se dá a partir dos
procedimentos de listagem, repetição, reduplicação, insistência e circularidade.

A obra de Glissant é então impregnada da fala do contador de uma maneira


camuflada, diferente dos adeptos da crioulidade, que preferem utilizar os crioulismos
mais perceptíveis. O que acontece é a criação de um inventário do imaginário antilhano
a partir de uma acumulação de personagens e de espaços-tempo. Um mesmo espaço-
tempo criado em La Lézard (1958) irá se repetir nos próximos romances com os
mesmos personagens que vão evoluindo, envelhecendo e dialogando com o autor.
Assim, temos quase como um jogo de espelhos, onde vários alter egos repetem-se,
transformam-se e discutem interminavelmente.
Seguindo sua estética da oralidade, no romance Malemort (1975) a presença
coletiva dos contos orais vão aparecer através de uma pluralização dos personagens, por
exemplo. O narrador passa do “eu” para o “nós”, concebendo assim os indivíduos não
apenas separadamente, mas como parte de uma comunidade. Segundo Eurídice (1998),
essa criação de um sujeito coletivo pode ser entendida no contexto das literaturas
ocidentais. A crise do sujeito se relaciona com a ruptura do “romance de formação”, que
contava normalmente a história de um personagem principal a partir de uma ótica
psicológica e moral. Os autores na Europa rompem com isso, escrevendo e teorizando
contra a criação de um romance de dimensão social, política ou psicológica. Assim,
Glissant identifica isso e observa que para os colonizados ainda é preciso a criação de
um sujeito, ainda é preciso falar sobre a dimensão social e política. É nesse contexto que
temos a criação desse sujeito pluralizado, fazendo parte de um coletivo, já que por
muito tempo as Antilhas foram apenas entendidas como objetos. A partir de um
movimento estrangeiro, o autor vai adaptando e tentando entender essa sua cultura local.

Assim, toda essa maneira de escrever é algo que foge à regra da língua francesa.
Não seria o que se espera de um romance escrito em francês. Ao retomar dessa maneira
a voz do contador de histórias, ao pluralizar o narrador, fugindo de uma clareza
pressuposta nos romances franceses, Glissant pretende fazer um uso menor desse
gênero. O autor também passa a chamar o narrador do seu romance de déparleur, que
em francês significa “alguém que fala sem discernimento, que divagar”; em crioulo,
significa “delirar, divagar, contradizer-se”. É exatamente o que ele busca: acumular
informações dos mesmos personagens e mesmas histórias que vão evoluindo conforme
o passar do tempo nos diversos livros de maneira confusa, sem a clareza e a precisão do
romance linear.

Por exemplo: em Le quatrième siècle o navio negreiro que trouxe os primeiros


Longoué e Béluse se chama Rose-Marie enquanto que em Tout-monde, cada
vez que o narrador menciona o navio, deixa em suspenso se é Rose-Marie ou
Marie-Anne. O mesmo movimento em espiral leva-o a pular de um assunto
para outro sem se preocupar com as célebres transições do discurso francês e
ele comenta, entre parênteses, que é outra marca da não-linearidade:
“(il n’y a aucun rapport avec Madame Perelle, mais vous êtes habitué à ces
sautes que je pratique)” (GLISSANT, 1993, p. 494). (FIGUEIREDO, 1998, p.
88)

Sua estética, por fugir do que a língua francesa espera, acaba fugindo também de
um universal, de normas europeias impostas. Rompendo com a linearidade tradicional, a
sua narrativa espiralada mostra algo diferente e improvável aos olhos franceses. Porém,
Glissant não se importa nenhum pouco com a possível não compreensão dos leitores
franceses. Se os franceses não entendem o seu texto, é porque esse tipo de narrativa não
é perceptível na cultura francesa. Para ele, não é necessário “compreender” o outro
através de uma transparência, ou seja, transformá-lo em algo claro para se poder
entender. Ele prefere a opacidade do que é diferente, do que é particular e não
“universal”.

As culturas compósitas da América foram construídas nas margens e sem


nenhuma regra, sem nenhuma clareza. Ao contrário, foram nascendo precipitadamente
por causa da necessidade e da opressão. Considerando isso, o conto oral é um
desdobramento do universo das plantações, do tráfico negreiro, da mestiçagem cultural
e seria a gênese da cultura antilhana. É isso que Glissant quer comunicar com seus
romances e seu texto fragmentado, tão ligado aos contos orais: cada romance evolui e
cria uma poética e uma teoria diferente.

Essa aparente “dessacralização” do texto literário, de acordo com o universal


europeu e sobretudo francês, questiona o que seria universal. Para Glissant, de nada vale
cultuar Paris e não partir da própria história fragmentária e do próprio tempo
segmentado. O importante é entender a realidade em que se vive e não imitar o
universal imposto pelo ocidente. Já que a memória e a história das Antilhas foram
rasuradas, o escritor deve recuperar isso em seus romances e criar o próprio universal.

Criando seu projeto literário a partir da crioulização, Glissant busca conciliar


justamente o absoluto e universal do escrito com o não-absoluto e não-universal do oral
– e da sua cultura também, que não é considerada “universal”. Essa tentativa de uma
síntese crioula entre o Ocidente e as culturas não-europeias é o que a crioulidade e
outros escritores e críticos vão também tentar dar conta. O curioso é que, mesmo
lutando contra o domínio do universal europeu, Glissant e os escritores que seguem sua
linha acabam caindo sempre na escrita de um romance para representar e criar suas
identidades. O conto oral tradicional, enxergado por todos como a gênese da identidade
das Antilhas, é entendido apenas como um ponto de partida e como inspiração para a
escrita de algo que importa de verdade, ou seja, um romance. Contraditoriamente, o
romance faz parte também do universal e é um dos moldes europeus.
Ainda que Glissant escreva um texto híbrido, mesclando as fronteiras do francês
e do crioulo, do oral e do escrito, do real e do ficcional, a sua forma continua sendo
estrangeira e europeia. Na medida em que postula que as Antilhas e os escritores devem
criar a sua metrópole e o seu universal sem se moldar pela França e pela Europa,
Glissant parece não perceber que mesmo assim continua pensando através da Europa. O
autor continua entendendo que a literatura que importa e que é valorizada é apenas a
escrita e, sobretudo, apenas o gênero romance que conta. E esse pensamento e
abordagem é bastante europeu.

Essa escolha por escrever um romance é, sim, bastante europeia, mas também
bastante compreensível. Franco Moretti, em Conjeturas sobre a literatura mundial
(2000), mostra como o romance penetra as culturas periféricas de uma maneira não
autônoma. O crítico italiano se apoia na história econômica-social onde “o capitalismo
internacional é um sistema simultaneamente uno e desigual”, existindo sempre um
centro e uma periferia numa relação crescente de desigualdade. Ele enxerga da mesma
maneira o sistema-mundo literário. Esse sistema literário seria da mesma maneira uno e
desigual, já que no campo da literatura somos também regidos por um centro que
comanda as periferias: “(...) o destino de uma cultura (geralmente uma cultura da
periferia, como precisou Montserrat Iglesias Santos) é cortado e alterado por outra
cultura (do centro) que “a ignora completamente”.” (MORETTI, 2000, p. 175).

Dessa maneira, ao analisar algumas literaturas “periféricas”, como a japonesa e a


brasileira, Moretti encontrou uma mesma reclamação e observação. Tanto Kojin
Karatani e Roberto Schwarz notam que existem certos “problemas” que nascem do
encontro entre a forma ocidental, que é o romance, e a realidade em que vivem.

Ora, que a mesma configuração ocorresse em culturas tão diversas como Índia
e Japão — isso era curioso; e tornou-se ainda mais curioso quando percebi que
Roberto Schwarz descobrira independentemente boa parte do mesmo modelo
no Brasil. Assim, passei em seguida a usar esses indícios para refletir sobre a
relação entre mercados e formas; e então, sem saber direito o que estava
fazendo, comecei a tratar o insight de Jameson como se fosse — sempre se
deve ter cuidado com tais asserções, mas realmente não há outro modo de dizê-
lo — como se fosse uma lei de evolução literária: em culturas que integram a
periferia do sistema literário (ou seja, quase todas as culturas, dentro e fora da
Europa) o romance moderno desponta não como um desenvolvimento
autônomo, mas como uma conciliação entre uma influência formal ocidental
(em geral francesa ou inglesa) e matérias locais. (MORETTI, 2000, p. 177)

O que acontece então é uma tentativa de entrar no sistema universal e de ser


entendido como uma literatura através de formas ocidentais. Glissant, assim como
vários escritores de periferia, tenta conciliar sua matéria local com as formas
estrangeiras almejando provavelmente poder entrar nesse sistema literário mundial e
serem entendidos como literatura. Assim, sua maneira de escrever e de hibridizar a
língua francesa com a retórica do crioulo se justifica. O romance, na lógica do sistema
literário que compreende o mercado, é mais valorizado e é visto como objeto de criação
de identidade. Enquanto o conto, gênero tradicional da identidade antilhana, mesmo
sendo entendido como tal por grande parte dos intelectuais martiniquenses e antilhanos,
acaba não sendo o eleito por Glissant para representar sua cultura no registro escrito. No
entanto, é exatamente isso que Ina Césaire faz resgatando os contos orais tradicionais
em Contes de jours et de nuits aux Antilles (1989).
BIBLIOGRAFIA

FIGUEIREDO, Eurídice. Construções de identidades pós-coloniais na literatura


antilhana. Niterói: EDUFF, 1998.

MORETTI, Franco. Conjeturas sobre a literatura mundial. São Paulo: Novos Estudos
CEBRAP, n. 58, p. 173 – 181, 2000.

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