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Édouard Glissant
Édouard Glissant
Édouard Glissant
Crioulização
Assim, toda essa maneira de escrever é algo que foge à regra da língua francesa.
Não seria o que se espera de um romance escrito em francês. Ao retomar dessa maneira
a voz do contador de histórias, ao pluralizar o narrador, fugindo de uma clareza
pressuposta nos romances franceses, Glissant pretende fazer um uso menor desse
gênero. O autor também passa a chamar o narrador do seu romance de déparleur, que
em francês significa “alguém que fala sem discernimento, que divagar”; em crioulo,
significa “delirar, divagar, contradizer-se”. É exatamente o que ele busca: acumular
informações dos mesmos personagens e mesmas histórias que vão evoluindo conforme
o passar do tempo nos diversos livros de maneira confusa, sem a clareza e a precisão do
romance linear.
Sua estética, por fugir do que a língua francesa espera, acaba fugindo também de
um universal, de normas europeias impostas. Rompendo com a linearidade tradicional, a
sua narrativa espiralada mostra algo diferente e improvável aos olhos franceses. Porém,
Glissant não se importa nenhum pouco com a possível não compreensão dos leitores
franceses. Se os franceses não entendem o seu texto, é porque esse tipo de narrativa não
é perceptível na cultura francesa. Para ele, não é necessário “compreender” o outro
através de uma transparência, ou seja, transformá-lo em algo claro para se poder
entender. Ele prefere a opacidade do que é diferente, do que é particular e não
“universal”.
Essa escolha por escrever um romance é, sim, bastante europeia, mas também
bastante compreensível. Franco Moretti, em Conjeturas sobre a literatura mundial
(2000), mostra como o romance penetra as culturas periféricas de uma maneira não
autônoma. O crítico italiano se apoia na história econômica-social onde “o capitalismo
internacional é um sistema simultaneamente uno e desigual”, existindo sempre um
centro e uma periferia numa relação crescente de desigualdade. Ele enxerga da mesma
maneira o sistema-mundo literário. Esse sistema literário seria da mesma maneira uno e
desigual, já que no campo da literatura somos também regidos por um centro que
comanda as periferias: “(...) o destino de uma cultura (geralmente uma cultura da
periferia, como precisou Montserrat Iglesias Santos) é cortado e alterado por outra
cultura (do centro) que “a ignora completamente”.” (MORETTI, 2000, p. 175).
Ora, que a mesma configuração ocorresse em culturas tão diversas como Índia
e Japão — isso era curioso; e tornou-se ainda mais curioso quando percebi que
Roberto Schwarz descobrira independentemente boa parte do mesmo modelo
no Brasil. Assim, passei em seguida a usar esses indícios para refletir sobre a
relação entre mercados e formas; e então, sem saber direito o que estava
fazendo, comecei a tratar o insight de Jameson como se fosse — sempre se
deve ter cuidado com tais asserções, mas realmente não há outro modo de dizê-
lo — como se fosse uma lei de evolução literária: em culturas que integram a
periferia do sistema literário (ou seja, quase todas as culturas, dentro e fora da
Europa) o romance moderno desponta não como um desenvolvimento
autônomo, mas como uma conciliação entre uma influência formal ocidental
(em geral francesa ou inglesa) e matérias locais. (MORETTI, 2000, p. 177)
MORETTI, Franco. Conjeturas sobre a literatura mundial. São Paulo: Novos Estudos
CEBRAP, n. 58, p. 173 – 181, 2000.