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revista eletrônica

e-metropolis
ISSN 2177-2312

Vinculada à rede interinstitucional do Observatório das Metrópoles (UFRJ),


a revista eletrônica de estudos urbanos e regionais e-metropolis é editada
por uma equipe de professores e pesquisadores e tem por objetivo principal
suscitar o debate e incentivar a divulgação de trabalhos filiados ao planeja-
mento urbano e regional e áreas afins. A e-metropolis busca, portanto, se
constituir como um meio ágil de acesso democrático ao conhecimento, que
parte do ambiente acadêmico e almeja ir além deste, dirigindo-se a todas
as pessoas que se interessam pela dinâmica da vida urbana contemporânea
em seu caráter multidisciplinar.
Publicadas trimestralmente, as edições da e-metropolis mantêm, em geral,
uma estrutura que se compõe em duas partes. Na primeira parte da revista
encontram-se os artigos estrito senso, que iniciam com um artigo de capa,
no qual um especialista convidado aborda um tema relativo ao planejamen-
to urbano e regional e suas interfaces, seguido dos artigos submetidos ao
corpo editorial da revista e aprovados por pareceristas, conforme o formato
blind-review. A segunda parte é composta por uma entrevista, por resenhas
de obras recém-lançadas (livros e filmes), pela seção especial – que traz a
ideia de um texto mais livre e ensaístico sobre temas que tangenciem as
questões urbanas – e, finalmente, pelo ensaio fotográfico, que faz pensar
sobre as questões do presente da cidade por meio de imagens fotográficas.
Para submissão de trabalhos, o corpo editorial recebe artigos, ensaios
fotográficos, resenhas e textos para a seção especial em fluxo contínuo, as-
sim como sugestões e críticas. Para mais informações, sugerimos consultar
Observatório das Metrópoles
o site da revista: www.emetropolis.net.
Prédio da Reitoria, sala 522
Cidade Universitária – Ilha do Fundão
21941-590 Rio de Janeiro RJ

Tel: (21) 2598-1932


Fax: (21) 2598-1950

E-mail:
emetropolis@bservatoriodasmetropoles.net

Website:
www.emetropolis.net
editor-chefe
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

editores
Ana Carolina Christóvão
Carolina Zuccarelli
Eliana Kuster
Fernando Pinho
Juciano Martins Rodrigues
Patrícia Ramos Novaes
Pedro Paulo Machado Bastos conselho editorial
Renata Brauner Ferreira Profª Drª. Ana Lúcia Rodrigues (DCS/UEM)
Samuel Thomas Jaenisch Prof Dr. Aristides Moysés (MDPT/PUC-Goiás)
Prof Dr. Carlos de Mattos (IEU/PUC-Chile)
Prof Dr. Carlos Vainer (IPPUR/UFRJ)
Profª Drª. Claudia Ribeiro Pfeiffer (IPPUR/UFRJ)
assistente Prof Dr. Emilio Pradilla Cobos (UAM do México)
Thaís Velasco Profª Drª. Fania Fridman (IPPUR/UFRJ)
Prof Dr. Frederico Araujo (IPPUR/UFRJ)
Profª Drª. Héléne Rivière d’Arc (IHEAL)
Prof Dr. Henri Acserald (IPPUR/UFRJ)
Prof Dr. Hermes MagalhãesTavares (IPPUR/UFRJ)
Profª Drª. Inaiá Maria Moreira Carvalho (UFB)
Prof Dr. João Seixas (ICS)
Prof Dr. Jorge Natal (IPPUR/UFRJ)
Prof Dr. Jose Luis Coraggio (UNGS/Argentina)
Profª Drª. Lúcia Maria Machado Bógus (FAU/USP)
Profª Drª. Luciana Corrêa do Lago (IPPUR/UFRJ)
Profª Drª. Luciana Teixeira Andrade (PUC-Minas)
Prof Dr. Luciano Fedozzi (IFCH/UFRGS)
Prof Dr. Luiz Antonio Machado (IUPERJ)
Prof Dr. Manuel Villaverde Cabral (ICS)
Prof Dr. Marcelo Baumann Burgos (PUC-Rio/CEDES)
Profª Drª. Márcia Leite (PPCIS/UERJ)
Profª Drª.Maria Julieta Nunes (IPPUR/UFRJ)
Profª Drª. Maria Ligia de Oliveira Barbosa (IFCS/UFRJ)
Prof Dr. Mauro Kleiman (IPPUR/UFRJ)
Prof Dr. Robert Pechman (IPPUR/UFRJ)
Prof Dr. Robert H. Wilson (University of Texas)
Profª Drª. Rosa Moura (IPARDES)
Ms. Rosetta Mammarella (NERU/FEE)
Prof Dr. Sergio de Azevedo (LESCE/UENF)
Profª Drª. Simaia do Socorro Sales das Mercês (NAEA/UFPA)
Profª Drª Sol Garson (PPED/IE/UFRJ)
Profª Drª. Suzana Pasternak (FAU/USP)
Editorial
parte orientadas pelos modelos difun-
didos por organismos internacionais
como o Banco Mundial e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento. 
Abordando temas diversos, as
nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 questões levantadas pelos autores
permanecem totalmente pertinentes
às discussões atuais a respeito das

A
metrópoles, e aos questionamentos
presentamos a nossos leito- tos territoriais e o ajuste espacial que vêm sido insistentemente levan-
res a nova edição da Revista na cidade olímpica, Orlando Santos tados a respeito de que tipo de cidade
e-metropolis, na qual esta- Junior e Patrícia Novaes argumen- queremos e a quem ela deve atender
mos trazendo temas que remetem a tam que o contexto da preparação da em suas reformulações, sua espacia-
aspectos bastante atuais das metró- cidade do Rio de Janeiro para rece- lidade, seu planejamento e sua polí-
poles brasileiras. Começamos com ber dois megaeventos esportivos, a tica.
nosso artigo de capa, A hinterlândia, Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Na entrevista desta edição, Eri-
urbanizada?, no qual o professor de Olímpicos em 2016, levou a profun- ck Omena de Melo entrevista Marie
Teoria Urbana da Harvard Univer- das reestruturações urbanas da cidade Huchzermeyer, professora da Esco-
sity, Neil Brenner, traz uma nova e do seu padrão de governança, que la de Planejamento e Arquitetura na
perspectiva crítica a respeito da cha- caminharam em direção ao que pode Universidade Witswatersrand, em
mada “Era Urbana” ao novamente ser caracterizada de uma urbanização Joanesburgo. Huchzermeyer tem de-
problematizar os conceitos e as teo- neoliberal. Neste contexto, os auto- senvolvido um estudo sobre a rela-
rias que regem o nosso conhecimento res discutem como a  reconfiguração ção da produção intelectual de Henri
sobre os fenômenos de urbanização. urbana de alguns espaços da cidade Lefebvre com a noção do “direito à
Em um primeiro momento, Brenner podem apontar para processos de cidade” na perspectiva das regiões
problematiza a metodologia de men- gentrificação e para o aprofundamen- semi-periféricas e seus movimentos
suração urbana utilizada pela Orga- to das desigualdades socioespaciais. sociais urbanos. Ao discorrer sobre
nização das Nações Unidas (ONU), Em seguida o texto Hierarquia, os resultados desta pesquisa, a pro-
que anunciou em seu relatório que policentrismo e complexidade em fessora traça um quadro comparativo
mais de 50% da população mundial sistemas urbanos, de Carlos Gonçal- da questão do direito à cidade em seu
já estaria vivendo em meios urbanos ves, trata de como a discussão sobre país natal, a África do Sul, e no Bra-
desde 2008. O autor levanta dúvi- a configuração dos sistemas urbanos sil, além de explicar o seu interesse
das acerca do que é designado como mantém centralidade nos estudos re- pela relação entre Lefebvre e o con-
“zona urbana” para cada país e, di- gionais e urbanos. O autor propõe, texto latino-americano como produto
retamente, para seus respectivos con- nessa perspectiva, as possibilidades de uma tentativa de leitura das cida-
textos demográficos, culturais e so- de se integrar analiticamente as no- des a partir da periferia.
ciais, indicando, portanto, que esses ções de hierarquia, de rede, de po- A seção especial apresenta alguns
dados mereceriam análise mais qua- licentrismo e de complexidade na resultados do curso de extensão “As
litativa. Além disso, o autor também compreensão dos sistemas urbanos. cidades e a produção de subjetivida-
cita que existem na atualidade certos Finalizando, temos o artigo Reas- des”, desenvolvido pelos estudantes
fenômenos de urbanização que estão sentamento involuntário em projetos do Programa de Pós-Graduação em
invisíveis ao paradigma científico he- de saneamento em Belém do Pará. Psicologia (UFRJ), uma reflexão co-
gemônico. Como exemplo, ele fala O texto de José Julio Ferreira Lima letiva sobre os processos de segrega-
da hinterlândia como representante e de Monique Bentes Machado Sar- ção socioespacial em curso e sobre a
de um conjunto de paisagens e terri- do Leão analisa alguns episódios de experiência sensível dos corpos na
tórios que, mesmo não dispondo de remoção e reassentamento decorren- cidade.
uma “imagem urbana”, são espaços tes de grandes projetos de saneamen- Por fim, em nosso ensaio foto-
fundamentais à reprodução das cida- to que foram realizados pelo poder gráfico, apresentamos o trabalho de
des. Por ser uma grande abastecedora público na cidade de Belém ao lon- Fabiano Gozzo, que nos mostra um
de recursos naturais às necessidades go das últimas décadas. Os autores outro olhar sobre a Estação Brás do
urbanas de produção, a hinterlândia apresentam alguns pontos críticos Metrô de São Paulo. O “olhar passa-
também é um espaço urbanizado, dessas intervenções e questionam as geiro” de Gozzo acompanha “a poé-
mas que não recebe atenção. soluções que vem sendo adotadas e tica urbana” do labirinto de cimento e
No artigo Rio de Janeiro: Impac- as diretrizes dessas ações, em grande ▪
ferro da estação. 
editorial

Índice nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016

Capa Especial
06 A hinterlândia, urbanizada? 35 Reassentamento 49 Derivas urbanas
The hinterland, urbanized? involuntário em projetos e percursos subjetivos:
de saneamento em um relato da experiência
Por Neil Brenner
Belém do Pará de produção do curso
Tradução: Pedro Paulo “As cidades e a produção
Involuntary resettlement
Machado Bastos de subjetividades”
in sanitation projects
in Belém, Pará Urban drift and subjective
courses: a story on the
Por Monique Bentes
experience of lecturing
Artigos Machado Sardo Leão
“Cities and the production
e José Júlio Ferreira Lima
12 Rio de Janeiro: Impactos of subjectivities” course
territoriais e o ajuste Por Alice Vignoli Reis,
espacial na cidade olímpica Karoline Ruthes Sodré
Rio de Janeiro: territorial
Ensaio e Rafael Ostrovski
impacts and the spatial
adjustment in the
44 Um olhar passageiro
A passenger look
Olympic city
Por Orlando Alves Por Fabiano Gozzo Entrevista
dos Santos Junior
e Patrica Ramos Novaes 54 Por uma leitura
léfèbvriana da periferia
For a Léfèbvrian reading
26 Hierarquia, policentrismo of the periphery
e complexidade em
Com Marie Huchzermeyer
sistemas urbanos
Hierarchy, polycentrism Por Erick Omena
and complexity
in urban systems
Por Carlos Gonçalves

ficha técnica
Projeto gráfico A Ilustração de capa foi feita por
e editoração eletrônica Renato Mãozão Tupinambá,
Paula Sobrino arquiteto e urbanista.
r.maozao@gmail.com
paulasobrino@gmail.com http://renatomaozao.wix.com/maozao

Revisão
Aline Castilho
alinecastilho1@hotmail.com
capa

Neil Brenner

A hinterlândia,
urbanizada?
C
omeço este artigo com a lem- popularmente aceito, o leitor pode
brança já familiarizada de um acabar desconhecendo a outra perspec-
fato aparentemente inexpug- tiva de interpretação deste autor sobre
nável e que foi divulgado a partir de o tema. É até mesmo capaz de que
uma fonte confiável: em 2007 os es- as expectativas de leitura recaiam em
tatísticos da Organização das Nações ideias mais comuns sobre as cidades,
Unidas (ONU) determinaram que tais como qual seria o papel delas nas
mais de 50% da população mundial, transformações globais da atualidade,
naquele momento, já estava vivendo ou sobre a reestruturação em curso pela
em áreas urbanas. Embora permeada qual vêm passando. Isso nos levaria a
por esforços que procuram decifrar o levantar tais questões seguidas de um Neil Brenner
modo como se deu a acelerada indus- debate, nesses termos, sobre as cidades. é professor de Teoria Urbana e Diretor do
Urban Theory Lab da Harvard Graduate
trialização capitalista no século XIX no Todo mundo parece concordar que School of Design. É cientista político
eixo da Europa-América do Norte, a elas são unidades espaciais elementares e geógrafo. Seu mais recente livro é
noção de um mundo em urbanização da idade urbana contemporânea. Con-
Implosions / Explosions: towards a Theory
of Planetary Urbanization. Nesta obra,
tornou-se hoje um quadro interpreta- tudo, a que mais o conceito de urbano ele discute a necessidade de se parar de
tivo onipresente1. E em virtude de o poderia possivelmente referir-se? pensar a cidade como uma coleção de
prédios e de pessoas ocupando um deter-
início deste artigo trazer um dado já
minado espaço definido para dar início ao
enfoque, em vez disso, na ideia de que
A PROBLEMÁTICA a urbanização é um processo histórico
e global que se estende a cada
1 Neil Brenner and Christian Schmid, “The
‘urban age’ in question,” International Journal
DA URBANIZAÇÃO rincão do planeta.

of Urban and Regional Research, 38, 3, 2014, nbrenner@gsd.harvard.edu


731-755. Para dados mais específicos divul-
A noção de urbanização tem sido uti-
gados pela ONU, acesse: <http://esa.un.org/ lizada de maneiras surpreendentemen- __________
unpd/wup/>. Acessado em 5 jul. 2016. te a-teóricas, como se fosse uma base Tradução: Pedro Paulo Machado Bastos

6 nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis


capa

de interpretação puramente descritiva e empírica pertrófica”, seja por meios de aumento da densidade
para referenciar uma tendência natural de organiza- e extensão das áreas metropolitanas já existentes, seja
ção espacial humana. Dentro desse contexto, como por meio da criação de novas zonas de assentamento
Ross Exo Adams explica: “Assim como as condições urbano ex nihilo às margens de antigas áreas rurais ou
climáticas, a urbanização é algo que existe ‘à nossa dos principais corredores de transporte; ou através da
revelia’, uma condição bastante ‘complexa’ de ser intensificação do fluxo migratório do rural para ur-
apresentada como um objeto restrito à análise dos bano ocasionado pelos efeitos nocivos de programas
seus próprios termos e, portanto, complexa de ser de ajustamento estrutural de terra, grilagem, expan-
mapeada, monitorada, comparada e catalogada”2. A são agroindustrial, pilhagem ecológica etc.6.
compreensão empirista, naturalista e quase ambien- Por outro lado, esta urbanização vista singular-
talista da urbanização persistiu de várias maneiras ao mente como o reflexo do crescimento das zonas ur-
longo do século XX. Nas décadas mais recentes, os banas da cidade é autoevidente. Analisando-as pela
modelos naturalísticos de urbanização ganharam no- ótica de um nível empírico básico, as limitações dos
vos enquadramentos interpretativos com base no vo- dados divulgados pelo Censo da ONU sobre a urba-
lume de dados produzido pelas ciências estatísticas, nização são bem conhecidas. O problema simples,
que, por sua vez, tendem a considerar a densidade mas ainda aparentemente intratável, ao qual o soci-
urbana como uma condição basicamente semelhan- ólogo Kingsley Davis já havia dedicado grande aten-
te ao de um sistema biológico fechado sujeito a leis ção crítica na década de 1950, refere-se ao fato de
científicas, previsíveis e, portanto, tecnicamente pro- que cada Censo Nacional utiliza seu próprio critério
gramáveis3. para medir as condições urbanas, tornando inconsis-
As declarações contemporâneas da ONU quan- tentes os dados comparativos internacionais sobre a
to a este mundo majoritariamente urbano em que urbanização. Na década atual, por exemplo, entre os
estamos vivendo, assim como as principais vertentes países que demarcam seus tipos de assentamentos ur-
dos discursos de políticas globais voltadas ao planeja- banos com base no tamanho da população (101 dos
mento e ao desenho urbano, ainda compreendem o 232 Estados Membros da ONU o fazem), o limiar
fenômeno da urbanização através de um dispositivo4 para tal classificação varia de 200 para 50 mil pessoas;
de conhecimento naturalista, a-histórico e empirista. menos de 23 países optam pelo mínimo de duas mil,
Nesse caso, a urbanização é vista como o crescimen- ao passo que 21 outros países especificam tal valor
to populacional simultâneo à difusão espacial das para cinco mil. Uma série de problemas em termos
cidades, sendo, portanto, concebida como tipos ge- de comparabilidade surge daí, tendo em vista que
néricos e universalmente aplicáveis de assentamentos as localidades “urbanas” dentro de uma jurisdição
humanos. Uma vez entendida essa ideia, a era urbana nacional podem ter pouco em comum com aquelas
contemporânea representaria, então, uma congrega- classificadas do mesmo modo em outro lugar.
ção de tendências que aumentam cumulativamente Outros critérios de mensuração baseados em re-
a população nos centros urbanos. Por esse ângulo, ferências da administração pública, densidade, infra-
a metanarrativa da era urbana contribuiria para ser- estrutura e/ou em índices socioeconômicos utiliza-
vir a um quadro não apenas de interpretação, mas dos pelos outros 131 Estados Membros da ONU,
também de justificativa a uma enorme variedade de quando comparados entre si, contribuem ainda mais
intervenções espaciais destinadas a promover, segun- para desalinhar um conjunto de dados já extrema-
do classificação do geógrafo Terry McGee, a “domi- mente heterogêneo. Algumas áreas administrativas
nância da cidade”5. deveriam ser, portanto, automaticamente classifica-
Em todo o mundo, o objetivo comum de tais es- das como urbanas? O critério de densidade popu-
tratégias de urbanização é o de construir a “cidade hi- lacional, se houvesse, seria o mais apropriado para
classificá-las como tais? A concentração de níveis de
emprego não rurais deveria ser vista como peculiar a
2 Tradução livre. Ver original: Ross Exo Adams, “The burden of áreas urbanas (como acontece na Índia, apesar de tal
the present: on the concept of urbanisation,” Society and Spa-
critério levar em conta apenas os residentes do sexo
ce, disponível em: <http://societyandspace.com/2014/02/11/
ross-exo-adams-the-burden-of-the-present-on-the-concept- masculino)? Em suma, esta rápida análise de como
-of-urbanisation/>. Acessado em 5 jul. 2016. a ONU tabula e interpreta seus dados revela que a
3 Brendan Gleeson, “What role for social science in the ‘ur-
ban age’,” International Journal of Urban and Regional Re-
search, 37, 5, 2013, 1839-1851. 6 Max Ajl, “The hypertrophic city versus the planet of fields,”
4 Brenner e Schmid, “The ‘urban age’ in question.” em Neil Brenner (ed.), Implosions/Explosions: Towards a Study
5 Terry McGee, The Urbanization Process in the Third World. of Planetary Urbanization (Berlin: Jovis, 2014), pp. 533-550;
London: Bell & Sons, 1971. Mike Davis, Planet of Slums (London: Verso, 2006).

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 7


capa

noção de um mundo majoritariamente urbano não é las propriedades do processo de urbanização7.


um fato, assim, tão evidente. É, antes de mais nada, Em segundo lugar, no dispositivo do saber hege-
um artefato estatístico construído por meio de um mônico, a urbanização é definida como o crescimento
agrupamento grosseiro de dados dos Censos nacio- das “cidades” enquanto unidades de assentamento es-
nais, que, por sua vez, derivam de definições incon- paciais limitadas dentro de um território. Esta equa-
sistentes do fenômeno a ser mensurado. ção conceitual (urbanização = crescimento da cidade),
juntamente com a hipótese igualmente difundida da
limitação espacial, exige, por lógica, diferenciar as
INCORPORANDO O ENTORNO cidades, enquanto unidades, de locais supostamente
CONSTITUTIVO não urbanos existentes fora delas. Entretanto, a de-
marcação de uma dicotomia coerente entre urbano
Aqui surge um problema teórico mais profundo dian- e não urbano tem se mostrado problemática desde
te do discurso da era urbana contemporânea. Mesmo o momento em que se deu o aceleramento da indus-
se a especificidade do crescimento da “cidade” fosse trialização do capital em todo o mundo no século
relacionada a outras formas de reestruturação demo- XIX. Assim sendo, na perspectiva popular do dispo-
gráfica, socioeconômica e espacial, sendo possível, sitivo do saber urbano, é preliminarmente necessá-
deste modo, ser coerentemente delineada também rio delinear o que seria um “entorno não urbano”
por meio de indicadores geoespaciais avançados que (lembrando-se, ao mesmo tempo, de que este se trata
detectassem certas aglomerações (por exemplo), a de um local que contribui diretamente na constitui-
questão permaneceria: como esboçar o processo de ção urbana das cidades), pois somente nesses termos
urbanização em termos conceituais? Apesar de sua é que a heterogeneidade particularizada ao urbano
representação generalizada como um parâmetro ge- poderia ser mais bem demarcada; embora, por ou-
nérico e neutro permeado por relações espaciais, o tro lado, delineá-lo também se mostraria impossível,
processo de urbanização deveria ser submetido a um uma vez que (a) não existem critérios padronizados
exame mais teórico. Desse modo, pelo menos duas para diferenciar tipos de assentamentos urbanos de
grandes fissuras epistemológicas seriam reveladas não urbanos; além de que (b) as aparentes fronteiras
– logicamente irresolúveis, mas que acarretam pro- entre assentamentos urbanos e seu suposto “exterior”
blemas analíticos recorrentes – dentro do dispositivo não urbano têm sido constantemente expandidas e
hegemônico do conhecimento urbano. reformuladas em todas as escalas espaciais.
Em primeiro lugar, tal como é popularmente en- Apesar da renitente naturalização e incorporação
tendida, a urbanização implica a difusão universal das tipologias históricas de assentamentos (urbanos,
das “cidades” como unidades elementares de assenta- suburbanos, rurais, silvestres) no discurso geográfico
mento humano. Contudo, como são amplamente sa- popular, a extensão territorial inevitável de grandes
bidas, essas unidades de assentamento, supostamente centros urbanos para as suas “franjas”, periferias e
universais, têm assumido diversas morfologias e sido Umlände tem sido amplamente observada pelos ur-
igualmente reorganizadas através de uma variedade banistas e planejadores urbanos do século XXI. Na
de escalas espaciais. Também têm sido remensuradas verdade, apesar da tendência em ser relegado pelo câ-
por meio de uma ampla gama de forças institucionais, none das narrativas históricas, o processo de extensão
políticas, sociais, militares e ambientais, e articuladas territorial urbano foi uma das preocupações forma-
distintamente às suas áreas vizinhas, paisagens e ecos- tivas na qual a concepção moderna da disciplina de
sistemas, bem como a outros centros populacionais planejamento urbano se consolidou. Em outras pa-
mais distantes. Diante deste contexto, e dada esta lavras, este campo do conhecimento tem procurado
heterogeneidade que caracteriza os padrões atuais de desde o princípio guiar-se por um viés mais territorial
aglomeração, a noção universal do que “é” a cidade do que simplesmente circunscrever-se a condições de
poderia ser mantida? E se nós rejeitássemos de fato a análises básicas na produção do seu saber, tais como
equação hegemônica simplista que formula a urbani- densidade populacional e identificação de assenta-
dade que caracteriza as cidades, não deveríamos tam-
bém abandonar a visão de urbanização tida como um
processo universal único de difusão espacial? Como
alternativa, a heterogeneidade e a diferenciação não 7 Ver Jenny Robinson, “Cities in a world of cities: the com-
parative gesture,” International Journal of Urban and Regional
deveriam ser reconhecidos apenas como atributos Research, 51, 1, 2011, 1-23; e Ananya Roy, “The 21st century
empiricamente complexos, mas também como atri- metropolis: new geographies of theory,” Regional Studies, 43,
butos intrínsecos, produzidos sistematicamente, pe- 6, 2009, 819-830.

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capa

mentos espaciais bem limitados8. Assim, se confrontarmos essa interação inevitá-


Não menos importante, o desenvolvimento das vel entre acumulação e espoliação dos arranjos es-
aglomerações capitalistas têm sido intimamente en- paciais, considerando também a difusão massiva das
trelaçado com as transformações em grande escala de condições urbanas através das paisagens variadas do
espaços não urbanos, muitas das vezes localizados a capitalismo global, a concepção de urbanização ba-
consideráveis distâncias dos grandes centros de ca- seada na ideia de “assentamentos” poderia ser manti-
pital, trabalho e comércio. Mumford descreveu esta da? Poderia, ainda, o “fenômeno” urbano continuar
relação como a ação combinada entre “up-building”, ancorado exclusivamente “dentro” da cidade?11 De
isto é, a implantação de um conjunto de tipos de fato, à medida que as rígidas limitações analíticas im-
indústria e de infraestrutura, tanto verticais e hori- postas por essas suposições “pontilhadas” do urbano
zontais como subterrâneos, e “un-building” (Abbau), vão ficando mais flexíveis, os dualismos estáticos da
que seria o processo de degradação de paisagens ao teoria urbana popular (cidade/campo, urbano/rural,
redor das zonas urbanas da cidade por meio da in- interior/exterior, sociedade/natureza) também se tor-
tensificação do papel desses locais como supridores nam mais capazes de serem rapidamente superados.
de energia, matérias-primas, água e comida, e tam- Desse modo, novos horizontes analíticos se abrem: as
bém como autogestoras dos resíduos produzidos geografias da urbanização podem ser produtivamen-
dentro de suas fronteiras9. te reconceitualizadas em formas que deem visibili-
Com a desapropriação das populações outrora dade não apenas aos variados padrões e tendências
rurais por meio do adensamento territorial para o de aglomeração, mas também à contínua produção e
aumento do uso da terra, a chegada de investimen- transformação do tecido urbano, que se constitui de
tos de infraestrutura de larga escala e a industrializa- maneira desigual por vastas áreas onde predomina a
ção progressiva de economias rurais, em geral para atividade industrial (agricultura, extração, silvicultu-
custear a extração, cultivação, produção e circulação ra, turismo e logística). Geografias que, ainda hoje,
de mercadorias, facilitou diretamente o crescimento são classificadas erroneamente em função da herança
urbano das cidades através de mudanças colossais e deixada pelas noções do que seria o interior, o rural,
abruptas, se não desiguais, de naturezas industriais e a hinterlândia e/ou o deserto.
ambientais em todo o planeta. Dadas as totalizações e os pontos cegos associa-
Por esse ângulo, o rural, o interior ou a hinter- dos ao dispositivo do conhecimento urbano herda-
lândia não podem ser reduzidos a meras áreas coad- do, como uma teoria urbana que não considerasse
juvantes de cultivo que deram o suporte necessário um lado “externo” e oposto ao urbano conseguiria
para catapultar as operações econômicas principais se posicionar na busca por novas perspectivas pro-
dos grandes centros populacionais. Independente- dutivas tanto para o campo da pesquisa como para o
mente da sua composição demográfica, desde a den- campo da ação, diante de paisagens de urbanização
sa rede de cidades em torno do Rio Ganges ou do emergente em nível planetário?12
Rio Java ao deserto estéril da Sibéria ou o deserto dos
estepes de Gobi, ao longo da história do desenvol-
vimento capitalista global desigual, os espaços “não DESENHANDO OUTRAS
urbanos” têm sido continuamente operacionalizados URBANIZAÇÕES
a favor de processos de formações urbanas. Estes es-
paços são, portanto, estrategicamente centrais aos As estratégias teóricas propostas aqui têm o objetivo
processos de destruição criativa que sustenta a “urba- não simplesmente de permitir um melhor reconhe-
nização do capital”, no mesmo grau de importância cimento concreto da complexidade empírica existen-
dos extensos e densos centros urbanos que por muito te no estudo dos centros urbanos, mas também de
tempo monopolizaram a atenção dos urbanistas10. prover uma base epistêmica para reconceitualizar as
propriedades essenciais deste processo que estamos
8 Ver John Friedmann e Clyde Weaver, Territory and Func-
investigando, abrindo, portanto, novos horizontes
tion. Berkeley: University of California Press, 1979. Como
contrapartida, ver o livro Cities of Tomorrow (Cambridge, Johns Hopkins University Press, 1985.
Mass.: Blackwell, 2002), de Peter Hall, que incorpora uma 11 Henri Lefebvre, The Urban Revolution. Traduzido para o
abordagem cêntrica da cidade na história do planejamento inglês por R. Bononno. Minneapolis: University of Minne-
urbano. sota Press, 2003 [1970]; Brenner e Schmid, “Towards a new
9 Lewis Mumford, The City in History. New York: Harcourt, epistemology.”
Brace and World, 1961, 446-481. 12 Neil Brenner, “Urban theory without an outside,” em Im-
10 David Harvey, The Urbanization of Capital. Baltimore: plosions/Explosions, pp. 14-35.

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capa

para entender e influenciar a urbanização contem- • A forma capitalista de urbanização continua a


porânea. Como Christian Schmid e eu chegamos a produzir padrões contextuais de aglomeração, mas
argumentar em outro artigo, as fissuras epistêmicas isso tem transformado inevitavelmente, do mesmo
tanto do discurso como da prática urbana contem- modo, espaços não urbanos em intensas e extensas
porânea só poderão ser transcendidas através de uma zonas de infraestrutura industrial – as paisagens ope-
ruptura radical com o dispositivo do conhecimento racionais. Em contraste às conhecidas hinterlândias,
urbano hegemônico devido à condição urbana em nas quais diferentes “dádivas” da natureza presentes
que este se ancora13. Em qualquer campo intelectual nesses locais (como matérias-primas, fontes de ener-
e prático, novos dispositivos de interpretação conse- gia, trabalho, comida e água) são apropriadas para a
guirão emergir somente quando as condições histó- produção de commodities, as paisagens operacionais
ricas desestabilizarem esses enquadramentos dóxicos consistem no redesenho industrial das atividades ex-
da pesquisa, engendrando, dessa maneira, a busca de trativistas, agricultoras e logísticas desses territórios
uma base alternativa de compreensão e transforma- para engendrar uma melhor otimização das condi-
ção do mundo. Como evidenciado na recente rodada ções sociais, institucionais, biológicas, ecológicas e
de debates epistemológicos entre urbanistas críticos, de infraestrutura que favoreçam a acumulação de
o campo da teoria urbana parece atualmente estar no capital, em geral voltado à exportação. Assim sendo,
cerne de tal questão. enquanto as hinterlândias são meras “incubadoras”
Nesse contexto, o atual renascimento do interesse da produção de commodities dentro de um determi-
no rural, no interior e na hinterlândia entre muitos nado terreno, as paisagens operacionais, por sua vez,
arquitetos, teóricos e urbanistas já seria a representa- são espaços planejados mediante as configurações do
tividade de um saliente, mas ainda indeterminado, espaço urbano-industrial, sendo reflexivamente dese-
desenvolvimento desta problemática. Mas, será que nhados e monitorados para acelerarem e intensifica-
essas iniciativas mais focadas no “rural” seriam apenas rem a acumulação de capital no mercado mundial.
parte de uma mudança estratégica por parte dos ar-
quitetos no desenvolvimento de projetos mais criati- As implicações dessas ideias para as intervenções
vos de captação de energia alternativa? Ou, pensando arquitetônicas nos variados espaços não urbanos do
de outra forma, uma exploração arquitetônica mais mundo ainda precisam ser elaboradas. No mínimo,
sistemática de espaços não urbanos do mundo po- pelo menos, já levantam dúvidas sobre qualquer
deria contribuir com o projeto de desenvolvimento abordagem que aspire a criar enclaves fortificados e
de novas análises, perspectivas e desenhos do nosso privatizados (voltados ao turismo de luxo ou espe-
tecido urbano planetário em emergência? Duas pro- cializados em atividades industriais de exportação)
postas em vias de conclusão poderiam oferecer algum nesses antigos meios rurais. Sem mencionar a ênfa-
tipo de suporte para esta “empreitada”: se que a implicação dessas ideias vem incidindo no
desafio de se estabelecer modos políticos e democra-
• A herança deixada pelo vocabulário que descre- ticamente coordenados (além de alternativas social
ve os espaços não urbanos – rural, interior, hinterlân- e ambientalmente sãs) de integração entre os vários
dia – está enquadrada em um fundamento bastante lugares, regiões, territórios e ecossistemas em que os
externalista que tende a diferenciar esses espaços em seres humanos dependem coletivamente para a nossa
termos analíticos e espaciais com relação às zonas vida planetária em comum. À medida que essas ideias
tradicionalmente urbanas das cidades. Entretanto, vão mobilizando novas capacidades de constituição
hoje em dia, é preciso encontrar novas formas de in- deste campo em emergência, os arquitetos e urbanis-
terpretar e mapear os variados territórios, paisagens tas passam a ser confrontados por uma importante
e ecossistemas do planeta em urbanização de modo escolha ética quanto à natureza de intervenção do seu
com que não sejam binariamente postas em oposição trabalho: ajudar na produção de eficientes paisagens
a essas “cidades” e/ou com que não tenham suas utili- operacionais para a acumulação de capital, ou, em
dades operacionais desvalorizadas quando observadas troca, explorar novas formas de apropriação e reorga-
através do fetiche dos critérios demográficos. A “não nização das geografias de urbanização das não cidades
cidade” não pode mais ser vista como algo exterior ao para usos coletivos e/ou de bem comum.
urbano; ela vem se transformando em terreno estra- A perspectiva apresentada aqui neste artigo é
tegicamente essencial para a urbanização capitalista. orientada por um projeto contraideológico, no qual
os urbanistas dedicados ao estudo desses espaços não
urbanos têm importância elementar de contribui-
13 Brenner e Schmid, “Towards a new epistemology of the ção. Neste sentido, como nós poderíamos visualizar,
urban.” e, portanto politizar, essas “teias” abrangentes, mas

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capa

geralmente invisíveis, que enredam o estilo de vida predeterminados por questões tecnológicas ou pela
urbano com a silenciosa e violenta acumulação por necessidade econômica, os projetos de urbanização
espoliação e a destruição ambiental que ocorrem são um meio e produto da energia, imaginação, luta
nas nossas hinterlândias e paisagens operacionais e experimento das políticas coletivas. Seria possível
do mundo? Ainda que os urbanistas levantem for- imaginar, por exemplo, uma forma de urbanização
mas distintas de inteligência e de capacidades de vi- em que vários padrões de assentamento e de arran-
sualização espacial para esses locais, paralelamente, jos estruturais diferenciados fossem cultivados dentro
eles têm um papel inestimável em construir novos de um enquadramento holístico de desenvolvimento
mapas cognitivos do tecido urbano constituído desi- territorial baseado na prevalência ecológica e na ges-
gualmente a nível planetário. Em troca, esses mapas tão equilibrada dos recursos? Poderíamos imaginar
propiciariam as tão necessárias diretrizes de orien- também uma forma de urbanização em que as famí-
tação a todos aqueles que aspiram a redesenhar em lias e as comunidades que optassem por permanecer
formas mais socialmente progressistas, politicamente em zonas menos densamente povoadas ou remotas
inclusivas e igualitariamente ecológicas o nosso te- conseguissem desfrutar, mesmo assim, do acesso às
cido urbano. Tendo em vista que esses argumentos infraestruturas públicas viáveis, aos meios de subsis-
desafiam o dogma da cidade hipertrófica – isto é, a tência sustentáveis e a alguma medida de controle po-
suposição predominante de que as cidades cada vez lítico sobre as condições básicas que permeiam suas
maiores representam o inevitável futuro da humani- vidas cotidianas? Talvez o papel dos urbanistas dedi-
dade –, eles também ampliam o horizonte para que cados a desenhar os espaços não urbanos do mundo
imaginemos uma alternativa de urbanização. Muitas seja este, o de facilitar a imaginação e a produção des-
urbanizações são, de fato, possíveis. Em vez de serem tas alternativas de urbanizações. ▪

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artigos

Orlando Alves dos Santos Junior


Patrícia Ramos Novaes

Rio de Janeiro
Impactos territoriais e o ajuste espacial na cidade olímpica

Resumo
Argumenta-se, neste artigo, que estão em curso diversas mudanças na cidade do Rio de
Janeiro, que caminham em direção ao que pode ser caracterizada como uma urbanização
neoliberal. Em particular, deve-se considerar o contexto da preparação da cidade do Rio
de Janeiro para receber dois megaeventos esportivos, a Copa do Mundo de 2014 e os Jo-
gos Olímpicos em 2016. Neste contexto, discute-se a hipótese da ocorrência de processos
Orlando Alves
de gentrificação em algumas áreas da cidade do Rio de Janeiro, especialmente na área
dos Santos Junior
é sociólogo, doutor em planejamento
do porto, no bairro da Barra da Tijuca e na Zona Sul.
urbano e regional, professor do Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Palavras-chave: Urbanização neoliberal; Megaeventos esportivos; Conflitos urbanos;
Regional – IPPUR da Universidade Federal
Gentrificação. do Rio de Janeiro – UFRJ, pesquisador
da rede Observatório das Metrópoles.

Abstract orlando.santosjr@gmail.com

This article argues that the various changes the city of Rio de Janeiro encompass in the
recent period, walking toward what can be characterized as a neoliberal urbanization,
are involving a process of creative destruction of urban structures, institutional arrange- Patrícia Ramos Novaes
ments and management regulations of urban space. In particular, it considers the process é assistente social, doutoranda em plane-
jamento urbano e regional (Instituto de
of preparation of the city to receive two sports mega events, the World Cup 2014 and the
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regio-
Olympic Games in 2016. In this context, we discuss the hypothesis of the occurrence of nal – IPPUR da Universidade Federal do Rio
gentrification processes in some city areas of Rio de Janeiro, especially in the Port area, de Janeiro – UFRJ), pesquisadora da rede
in the neighborhood of Barra da Tijuca and in the South zone. Observatório das Metrópoles.

Keywords: Neoliberal urbanization; Sport mega-events; Urban conflicts; Gentrification. patricia.r.novaes@gmail.com

____________________
Artigo recebido em 16/06/2015
artigos

INTRODUÇÃO instituição de parcerias público-privadas e a adoção


de novos arranjos institucionais de gestão do espaço
Argumenta-se, neste artigo, que estão em curso di- urbano e de mudanças na legislação anteriormente
versas mudanças na cidade do Rio de Janeiro, que vigente, em especial aquela relacionada aos parâme-
caminham na direção do que pode ser caracterizado tros construtivos.
como uma urbanização neoliberal, envolvendo um Na terceira parte, busca-se refletir sobre a
processo de destruição criativa de estruturas urbanas, relação entre as transformações nas configurações ur-
de arranjos institucionais de gestão, e de regulações banas vinculadas à Barra da Tijuca, a Área Portuária e
do espaço urbano. a Zona Sul e os processos de valorização imobiliária,
Em especial, há que se considerar o contexto de envolvendo possíveis processos de gentrificação e eli-
preparação da cidade do Rio de Janeiro para receber tização social na cidade do Rio de Janeiro.
dois megaeventos esportivos, a Copa do Mundo de Não se pode deixar de registrar, pelo fato
2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Parece haver de muitas dessas transformações ainda estarem em
fortes indícios de que estes dois megaeventos estão curso, que as análises delineadas neste ensaio se cons-
associados a profundas mudanças na reestruturação tituem simultaneamente em resultados parciais de
urbana da cidade e no seu padrão de governança ur- pesquisa e hipóteses a serem desenvolvidas.
bana, sustentada por uma coalizão de interesses eco-
nômicos, políticos e sociais que conduz esse projeto.
Tomando como base a concepção de neoliberaliza- O AJUSTE ESPACIAL NEOLIBERAL
ção como processo, o objetivo deste artigo é discutir NO RIO DE JANEIRO
os impactos espaciais, ou o ajuste espacial nos ter-
mos propostos por Harvey (2005), decorrentes da Como já demonstrado em diversas análises (Castro,
crescente adoção do empreendedorismo urbano e da et al., 2014; outras), é possível afirmar que nos últi-
urbanização neoliberal na cidade do Rio de Janeiro. mos anos ocorreram reestruturações urbana na cida-
Este ajuste espacial seria expresso pela reconfiguração de e mudanças no seu padrão de governança urbana
urbana de certos espaços, notadamente a Barra da na direção daquilo que poderia se considerar uma
Tijuca, a Área Portuária e a Zona Sul, apontando na nova rodada de mercantilização ou neoliberalização
direção do aprofundamento das desigualdades socio- (Ribeiro e Santos Junior, 2013; Castro et al., 2015;
espaciais da cidade do Rio de Janeiro e para possíveis Santos Junior, 2015). De acordos com as análises,
processos de gentrificação. As mudanças em curso este processo está diretamente associado ao contexto
parecem estar em grande medida legitimadas discur- de preparação da cidade do Rio de Janeiro para rece-
sivamente pela realização desses megaeventos e do ber dois megaeventos esportivos: a Copa do Mundo
suposto legado social que os mesmos seriam capazes de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Neste senti-
de proporcionar à cidade, o que permite interpretar do, estes megaeventos se constituiriam em veículos
essas mudanças como um projeto de modernização por meio dos quais estaria ocorrendo esta nova roda-
neoliberal. da de mercantilização da cidade.
Para alcançar o objetivo proposto, o artigo está Com base em Polanyi (2000, p. 289), pode-se
estruturado em três partes. Na primeira, busca-se dizer que “o conflito entre o mercado e as exigências
refletir sobre a emergência da governança empreen- elementares de uma vida social” marca a história do
dedorista e da urbanização neoliberal no contexto capitalismo, se traduzindo em rodadas de mercan-
específico da cidade do Rio de Janeiro. Dando se- tilização. Os fatores vinculados à reprodução social
quência, na segunda parte, busca-se refletir sobre passaram a ser geridos com base nos preços autor-
o papel exercido pelo poder público na promoção regulados e em rodadas de desmercantilização, nas
das transformações verificadas, que não se restringe quais estes mesmos fatores são protegidos por meio
a viabilizar os projetos de renovação urbana a serem de convenções e regulações que limitam o mercado,
promovidos pelo capital privado. De fato, a Prefeitu- subordinando-o a mecanismos de proteção e garantia
ra do Rio de Janeiro aparece como a principal pro- de direitos sociais. Assim, ao acionar a ideia de uma
motora dos projetos de renovação urbana que estão nova rodada de mercantilização na cidade pretende-
sendo implementados, atuando de diversas formas, -se indicar exatamente o processo por meio do qual
envolvendo a articulação ou elaboração dos projetos, o acesso a certos bens e equipamentos necessários à
o financiamento direto de diversas intervenções, a reprodução social estaria sendo desregulado e subor-
concessão de incentivos fiscais e isenções de impos- dinado à lógica mercantil de preços autorregulados.
tos para a atração dos empreendimentos privados, a Para este argumento, parte-se da concepção de

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artigos

que a progressiva substituição das ideias e políticas externas de financiamento, e novos investimentos di-
vinculadas ao liberalismo social1, ou políticas keyne- retos ou novas fontes de emprego”. (p. 172);
sianas, pelas ideias e políticas neoliberais expressam o (ii) A promoção de atividades empreendedoras,
modelo que hoje denominamos de neoliberalização. por parte da coalização de poder e da parceria públi-
De início, é preciso considerar que o liberalismo co-privada, subordinadas ao mercado, que, como to-
social também se manifestou de forma diferenciada das as demais atividades capitalistas, estão “sujeitas a
nos diversos países e contextos nacionais conside- todos os obstáculos e riscos associados ao desenvolvi-
rados. Mas pode-se, de uma forma muito sintética, mento especulativo, ao contrário do desenvolvimen-
caracterizá-lo como a combinação dos princípios do to racionalmente planejado e coordenado”. (p. 173);
liberalismo clássico (sobretudo o foco no indivíduo e (iii) O enfoque do empreendedorismo urbano
a ênfase no mercado) com o Estado-Nação redistri- está ligado a lugares específicos da cidade, capazes de
butivo que teria o papel de intervir para garantir algu- atrair o capital privado e proporcionar rentabilidade
mas das condições econômicas fundamentais para o aos investimentos, e não ao conjunto do território, o
exercício das liberdades individuais defendidas. Entre que implicaria grandes riscos de aumento das desi-
as intervenções aceitas e justificadas estavam as polí- gualdades socioterritoriais.
ticas de habitação pública e de zoneamento urbano, Nesse contexto, a ascensão do neoliberalismo,
as leis antitruste, as políticas de segurança alimentar o acirramento da competição interurbana e a difu-
e de renda mínima. Em síntese, o argumento mais são do empreendedorismo urbano trariam diversas
importante para justificar essas intervenções estava implicações para a dinâmica das cidades. Tomando
fundado na ideia da imperfeição dos mercados autor- como referência a abordagem de Harvey (2005 ),
regulados, que poderiam colocar em risco o funcio- pode-se destacar como uma dessas implicações “[...]
namento da sociedade sem a intervenção promovida a ênfase na criação de um ambiente favorável para os
pelos governos (Hackworth, 2007). negócios acentuou a importância da localidade como
Já o neoliberalismo, como Harvey afirma, poderia lugar de regulação concernente à oferta de infraestru-
ser entendido como tura, às relações trabalhistas, aos controles ambientais
e até à política tributária em face do capital interna-
uma teoria sobre práticas de política econômica cional” (Harvey, 2005, p. 180).
que afirma que o bem-estar humano pode ser mais Entre os efeitos desse processo, pode-se destacar
bem promovido por meio da maximização das li- o aumento da flexibilidade espacial das empresas e do
berdades empresariais dentro de um quadro insti- capital, decorrentes das novas posturas adotadas pelo
tucional caracterizado por direitos de propriedade empreendedorismo urbano. Entretanto, ao mesmo
privada, liberdade individual, mercados livres e li- tempo, as medidas promovidas também tenderiam a
vre comércio. O papel do Estado é criar e preservar
um quadro institucional apropriado a tais práticas
gerar processos homogeneizadores entre as cidades,
(Harvey, 2008, p. 2). na medida em que as estratégias inovadoras que es-
tariam sendo adotadas pelas mesmas, com o objeti-
vo de se tornar atraentes como centros culturais e de
Como diversos autores apontam, existe uma re- consumo, tenderiam a ser replicadas e copiadas pelas
lação entre a ascensão do neoliberalismo nos países demais cidades, o que poderia tornar efêmeras as van-
centrais e a emergência de um novo padrão de gover- tagens competitivas eventualmente alcançadas.
nança, caracterizada pelo empreendedorismo urbano Nesse contexto, na busca pela atração de capitais,
(Harvey, 2005; Hackworth, 2007), entendendo por poderia se constatar a proliferação de projetos espe-
governança certo padrão de interação entre o gover- culativos, de alto risco, pelas administrações locais,
no, a sociedade e o mercado (Santos Junior, 2001). o que seria expresso na multiplicação de projetos de
Segundo Harvey (2005), a governança empreen- turismo, de espetáculos culturais e de eventos espor-
dedorista neoliberal seria caracterizada por três ele- tivos.
mentos centrais: Além disso, a governança da cidade cada vez mais
(i) A constituição de uma coalização de poder, se assemelharia à governança das empresas privadas,
que sustenta a governança empreendedorista, confor- o que permitira caracterizá-la como uma governan-
mada em torno da “(...) noção de ‘parceria público- ça empreendedorista corporativa empresarial, ou de
-privada’, em que a iniciativa tradicional local [a ini- governança empreendedorista neoliberal. Nessa pers-
ciativa privada] se integra com os usos dos poderes pectiva, a ênfase da gestão recairia sobre os lugares ou
governamentais locais, buscando e atraindo fontes áreas da cidade capazes de atrair investidores, e não
mais sobre o conjunto do território, o que poderia
1 David Harvey caracteriza as políticas vigentes antes do neo- agravar as desigualdades intraurbanas e gerar proces-
liberalismo de liberalismo embutido (Harvey, 2008).

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artigos

sos de decadência ou abandono das áreas negligen- processo de destruição criativa de estruturas urbanas,
ciadas. instituições de gestão e marcos regulatórios adequa-
Esse processo seria atravessado por muitas con- dos à dinâmica de acumulação de capital em um
tradições que abririam novas possibilidades de ação mercado desregulamentado, funcionando com base
política envolvendo disputas em torno dos projetos nos princípios neoliberais. Em outras palavras, a ur-
de cidade. Nessa perspectiva, uma das características banização neoliberal expressaria o conjunto de polí-
dos processos de neoliberalização seria a emergência ticas e práticas visando a mercantilização das cidades.
de novos conflitos urbanos em torno da produção, Neste contexto, entende-se que a crescente ado-
gestão e apropriação da cidade (Hackworth, 2007). ção do empreendedorismo urbano na cidade do Rio
Apesar de esse processo ter sido reconhecido ini- de Janeiro poderia atingir de forma específica a con-
cialmente nos países centrais, também se verifica a figuração urbana de certos espaços, apontando na
transformação da governança urbana das cidades direção do aprofundamento das desigualdades socio-
brasileiras na perspectiva da governança empreen- espaciais da cidade. As mudanças em curso estariam
dedorista neoliberal, marcada por especificidades, sendo em grande medida legitimadas discursivamen-
como todas as demais cidades. De fato, o neolibe- te pela realização dos megaeventos em curso e do su-
ralismo pode ser considerado, como argumenta Ha- posto legado social que os mesmos seriam capazes de
ckworth (2007, p. 11), um “(...) processo altamente proporcionar à cidade. Nessa perspectiva, a Prefeitu-
contingente que se manifesta e é vivido de forma ra do Rio de Janeiro denominou Projeto Olímpico o
diferente, através do espaço. A geografia do neolibe- conjunto de intervenções planejadas para a cidade,
ralismo é muito mais complicada do que a ideia do incorporando sob esta marca tanto as intervenções
neoliberalismo”.2 vinculadas à Copa do Mundo de 2014 como aquelas
Nesse sentido, utiliza-se o conceito de neolibera- vinculadas às Olimpíadas de 2016.
lismo realmente existente, tal como formulado por Tomando como base essas formulações, a hipóte-
Theodore, Peck e Brenner (2009), compreenden- se deste artigo seria de que a cidade do Rio de Janeiro
do que o neoliberalismo não deveria ser concebido estaria vivendo um processo de modernização neoli-
como um sistema acabado, mas como um processo beral, marcado pela progressiva adoção do padrão de
de transformação socioespacial. É por esta perspec- governança baseado no empreendedorismo urbano,
tiva que estes autores entendem os “processos con- envolvendo, nos termos propostos por Theodore,
temporâneos de neoliberalização como catalizadores Peck e Brenner (2009):
e expressões de um processo de destruição criativa a) o desmantelamento e a destruição de estru-
do espaço político-econômico existente, e que se dá turas urbanas, arranjos institucionais e regulações
em múltiplas escalas geográficas.” (Theodore; Peck; vinculadas às gramáticas existentes no município do
Brenner, 2009, p. 3). Rio de Janeiro e à história da cidade, visando à des-
A compreensão destas transformações requer que regulamentação da economia, à promoção de uma
se leve em consideração “as interações, dependentes nova rodada de mercantilização da cidade e ao fe-
das trajetórias e contextualmente específicas, que chamento dos espaços públicos de participação a elas
ocorrem entre os marcos regulatórios herdados, por vinculados.
um lado, e os projetos emergentes de reformas neo- b) a construção de novos espaços urbanos, insti-
liberais orientados para o mercado, por outro. Ou tuições, modalidades de gestão pública e de regula-
seja, projetos cuja aparência e conexões substanti- ções institucionais adequados aos princípios do neo-
vas os definem como significativamente neoliberais liberalismo e à governança urbana empreendedorista
(Theodore; Peck; Brenner, 2009, p. 3)”. neoliberal.
Entendida como um processo socioespacial, c) a manutenção de espaços urbanos, arranjos
a neoliberalização poderia ser interpretada como institucionais e regulações públicas anteriores que
uma modalidade de ajuste espacial (Harvey, 2005), são fundamentais para o exercício do poder da nova
expressando-se na forma de uma urbanização neoli- coalização empreendedorista, na medida em que esta
beral (Hackworth, 2007; Theodore, Peck e Brenner, tem que compor com as antigas coalizões de poder
2009). Nestes termos, a urbanização neoliberal seria vinculadas à trajetória política da cidade e às suas
caracterizada por uma dinâmica que envolveria um diferentes gramáticas, universalismo de procedimen-
tos, clientelismo, patrimonialismo e corporativismo.
Apesar de se verificar transformações urbanas em
2 Nas palavras do autor: “Neoliberalism (...) is a highly con-
outras áreas da cidade, observa-se que o ajuste espa-
tingent process that manifests itself, and is experienced diffe-
rently, across space. The geography of neoliberalism is much cial neoliberal em curso na cidade do Rio de Janei-
more complicated than the idea of neoliberalism.” (Hackwor- ro, envolveria especificamente o bairro da Barra da
th, 2007, p. 11), tradução livre dos autores.

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 15


artigos

Disponível em <http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/arquivos/2905_aps_%C3%Adndice.JPG>.
Fonte: Instituto Pereira Passos, 2010, marcações dos autores.

Acessado em dez. 2015.


Figura 1:
Mapa do Município
do Rio de Janeiro Tijuca, a Região Portuária e a Zona Sul (Figura 1), ajuste espacial promovido pela governança empre-
por Área de
Planejamento – As pois estas áreas estariam sofrendo mais fortemente os endedorista neoliberal que, de forma diferenciada,
áreas do Ajuste impactos da urbanização neoliberal. impacta as cidades dos países centrais (Hackworth,
Espacial Neoliberal:
Zona Portuária, A mudança na espacialidade da cidade parece ca- 2007).
Zona Sul e Barra da minhar na direção da combinação de quatro configu-
Tijuca, 2015.
rações urbanas: (i) no fortalecimento da centralidade
da Zona Sul, por meio da valorização das favelas da O PODER PÚBLICO COMO
região e de seu entorno, em especial das suas áreas AGENTE PROMOTOR DA
privilegiadas pela localização, que passariam a atrair URBANIZAÇÃO NEOLIBERAL
um segmento das classes médias; (i) na revitalização
da centralidade decadente da área Central, por meio Através de investimentos públicos em sistemas de
da renovação urbana da área portuária, na perspectiva mobilidade urbana, vias expressas, viadutos, túneis
de atrair novas empresas e residências voltadas para e redes de infraestrutura, percebe-se que estão em
as classes média e alta; (iii) na criação de uma nova curso profundas transformações urbanas no bairro da
centralidade na Barra da Tijuca, por meio da intensi- Barra da Tijuca, na Área Portuária e na Zona Sul da
ficação da valorização e elitização desta região, que se cidade do Rio de Janeiro. No que se refere aos inves-
torna progressivamente uma área não apenas de ex- timentos em mobilidade, percebe-se que a Barra da
pansão imobiliária, mas um centro de negócios e ser- Tijuca é beneficiada com os sistemas de transportes
viços econômicos; e (iv) na continuidade da expansão BRTs (Bus Rapid Transit - Ônibus de Trânsito Rápi-
na periferia metropolitana, tanto na perspectiva do do) Transcarioca, Transolímpica e Transoeste; a Barra
crescimento da favelização quanto na diversificação da Tijuca e a Zona Sul são beneficiadas com a exten-
dos núcleos residenciais voltados para as classes de são da linha 4 do metrô, que ligará as duas regiões; e
média renda. O que é importante demarcar é que es- a área portuária recebe o sistema VLT (Veículo Leve
sas mudanças na espacialidade e o surgimento dessa sobre Trilhos, do inglês Light Rail Vehicle - LRV).
complexa configuração urbana não seriam resultado Excetuando o BRT Transcarioca, que foi financiado
de uma aleatoriedade, mas seria a expressão local do com recursos da Copa do Mundo, todos os demais

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artigos
kEMb-sijamSU&hl=en_US>, marcações dos autores. Acessado em dez. 2015.
Fonte: <https://www.google.com/maps/d/viewer?mid=zIuph2nQ5vl4.

Figura 2:
Favelas
Selecionadas
investimentos são vinculados à preparação da cidade água e saneamento e construções habitacionais. Mas da Zona Sul,
para receber as Olimpíadas de 2016. outros investimentos também foram e estão sendo Rio de Janeiro,
Além do metrô, a Barra da Tijuca ainda está sen- realizados nas favelas Pavão-Pavãozinho e Cantaga- 2015.
do beneficiada com outros investimentos em infraes- lo (situadas entre os bairros de Copacabana e Ipane-
trutura vinculados às Olimpíadas, envolvendo obras ma), Vidigal (no bairro do Leblon), e Santa Marta
de esgotamento sanitário, duplicação de avenidas e a (no bairro de Botafogo)4, todas situadas em áreas de
construção do Parque Olímpico, que está em execu- grande valorização imobiliária (Figura 2). Todas es-
ção em uma área de 1,18 milhão de metros quadra- tas favelas também receberam Unidades de Política
dos, onde antes existia o Autódromo do Rio, com Pacificadora – UPPs, passando a integrar a política
previsão para se transformar posteriormente em uma de segurança do governo de estado de combate ao
área renovada com parque e espaços de moradia para tráfico nas favelas.5Essas favelas não são as únicas a
a população de média e alta renda. receber programas de urbanização e de segurança pú-
A região portuária também é palco de uma das blica, mas há fortes indícios de que as intervenções
maiores intervenções em curso na cidade, a Ope- em curso tenham impactos diferenciados nas favelas
ração Urbana Consorciada da Área de Especial In- da Zona Sul em relação a outras favelas da cidade,
teresse Urbanístico da Região Portuária do Rio de situadas em áreas menos nobres e sem tanto interesse
Janeiro, criada em 2009. Neste projeto de renovação do mercado imobiliário.
urbana, que abrange 5 milhões de metros quadrados, No processo de renovação urbana em curso, per-
são implementadas ações relacionadas à moderniza- cebe-se a criação de novos arranjos de gestão de ser-
ção da infraestrutura urbana, saneamento ambien- viços e equipamentos públicos e dos próprios espaços
tal, redes de informática e telecomunicações, entre urbanos reconfigurados, sobretudo por meio da ins-
outros serviços.
Já na Zona Sul parece ocorrer uma situação mais 4 O complexo de favelas do Pavão-Pavãozinho e do Cantaga-
complexa, pois além da extensão da linha 4 do me- lo foi beneficiado com obras do Programa de Aceleração do
trô, observa-se investimentos públicos em segurança Crescimento – PAC, iniciado em 2008, que realizou diversas
obras de urbanização e saneamento, reassentou moradores em
pública e na urbanização das favelas. Algumas delas,
novas moradias e implantou um elevador visando a facilitar
tais como Babilônia e Chapéu Mangueira, situados o acesso dos moradores, com um mirante no alto da favela.
no bairro do Leme, são beneficiados pelo programa O Morro Santa Marta também foi beneficiado com obras de
Morar Carioca Verde3, que prevê diversos inves- urbanização do PAC, após a instalação da primeira Unidade
timentos tais como iluminação pública, redes de de Polícia Pacificadora, em dezembro de 2009.
5 A favela Santa Marta foi a primeira a receber a UPP, em
2008. As favelas Babilônia / Chapéu Mangueira e Cantagalo /
3 Cf. <http://www.cidadeolimpica.com.br/projetos/morar- Pavão-Pavãozinho receberam o programa em 2009; e a favela
-carioca/>. Acesso em: nov. 2014. do Vidigal, em 2012.

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artigos

tituição de Parcerias Público-Privadas - PPPs, em ge- da cidade diz respeito à destruição criativa de regula-
ral promovidas no contexto da preparação da cidade ções favoráveis ao mercado (Hackworth, 2007; Theo-
para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de dore; Peck; Brenner, 2009). Tal como observado nos
2016. Como destaca Hackworth (2007, p. 61), “(...) Estados Unidos e nos países centrais, esse fenômeno
um dos fundamentos da governança neoliberal no também pode ser verificado no contexto do Rio de
âmbito local é a cooperação público-privada. Estas Janeiro e envolve a adoção de novas regulações vincu-
alianças podem variar consideravelmente na forma, ladas aos projetos de renovação urbana em curso na
mas crescentemente espera-se que os governos mu- cidade, apontando para um padrão de intervenção do
nicipais sirvam como facilitadores do mercado, em poder público crescentemente marcado pela adoção
vez de atuar nas falhas dos mercados”.6Vários são os de regulações de exceção, subordinadas aos interesses
exemplos desta cooperação público-privada no caso do mercado nas áreas que estão sendo objeto de re-
do Rio de Janeiro, envolvendo, entre outros, a reno- novação urbana.
vação da Área Portuária, por meio da Operação Ur- Em segundo lugar, no caso do Rio de Janeiro, per-
bana Porto Maravilha que se realiza através da maior cebe-se o papel ativo do poder público na promoção
parceria público-privada do Brasil, e a construção do das transformações verificadas, não se restringindo
Parque Olímpico, a segunda maior do país. a viabilizar os projetos de renovação urbana a serem
As parcerias público-privadas concedem a admi- promovidos pelo capital privado. Nessa perspectiva, a
nistração de equipamentos e serviços por um deter- Prefeitura do Rio de Janeiro aparece como o principal
minado período de tempo, e implicam a participação promotor dos projetos de renovação urbana que estão
do Estado por meio de alguma modalidade de trans- sendo implementados, atuando de diversas formas,
ferência de recursos públicos, como isenções fiscais, envolvendo a articulação ou elaboração dos projetos,
obras de infraestrutura, transferência de patrimônio o financiamento direto de diversas intervenções, a
ou de recursos orçamentários. concessão de incentivos fiscais e isenções de impos-
Os contratos mediante PPPs revelam duas ques- tos para a atração dos empreendimentos privados,
tões importantes. A primeira diz respeito à mudan- a adoção de novos arranjos institucionais de gestão
ça no padrão de atuação das empresas privadas que do espaço urbano e de mudanças na legislação ante-
passam de executoras de grandes obras a gestoras de riormente vigente, em especial aquela relacionada aos
equipamentos e serviços públicos7. A segunda ques- parâmetros construtivos. Nesse processo, não se pode
tão é relacionada a riscos da subordinação da gestão deixar de registrar a participação de outras esferas do
de equipamentos e de espaços públicos à lógica do poder público, do governo federal e do governo esta-
mercado, tendo em vista que as empresas gestoras dual, sobretudo no que diz respeito aos investimentos
desses equipamentos e espaços públicos passam a diretos e ao financiamento das intervenções, como
tomar decisões vinculadas à eficácia econômica e à no caso das obras de mobilidade dos BRTs, do VLT
maximização do lucro de seus investimentos. No caso e do metrô.
do Porto Maravilha e do Parque Olímpico há que se Além disso, em terceiro lugar, as transformações
ressaltar que a gestão privada diz respeito a grandes nas configurações urbanas vinculadas à Barra da Tiju-
espaços urbanos da cidade do Rio de Janeiro. ca, Área Portuária e Zona Sul parecem estar associa-
Um aspecto a ser considerado na análise das trans- das a processos de valorização imobiliária, gentrifica-
formações urbanas na perspectiva da neoliberalização ção e elitização social.

6 Tradução livre dos autores. No original, “(…) one of foun- URBANIZAÇÃO NEOLIBERAL E
dations of neoliberal governance at the local level is public-
-private cooperation. These alliances can vary considerably in GENTRIFICAÇÃO NA CIDADE DO
form, but city governments are increasingly expected to serve RIO DE JANEIRO
as market facilitators, rather than salves for market failures.”
7 No caso do Rio de Janeiro, as PPPs são geridas pelas se- A discussão sobre os impactos territoriais da urbani-
guintes empresas: PPP do Porto Maravilha – Consórcio Porto
zação neoliberal no Rio de Janeiro envolve a discus-
Novo, integrada pelas Construtoras OAS, Odebrecht e Ca-
rioca Engenharia; PPP do Parque Olímpico – Consórcio Rio são em torno de possíveis processos de gentrificação
Mais, integrado pelas construtoras Odebrecht, Andrade Gu- em algumas áreas da cidade.
tierrez e Carvalho Hosken; PPP do VLT do Porto – Consórcio Utilizamos aqui o conceito de gentrificação com
VLT Carioca, integrado pelas empresas CCR Actua, Invepar, base nas formulações de Neil Smith (1987; 2006),
Odebrecht Transport, RioPar, RATP e Benito Roggio Trans-
porte; PPP do BRT Transolímpica – Consórcio Rio Olímpi-
que implica o processo de reestruturação das áreas
co, formado pelas construtoras Invepar, Odebrecht TransPort centrais, em decadência e ocupadas pela população
e CCR. de baixa renda, pela ação de atores coletivos públicos

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artigos

e privados (empreendedores, setor imobiliário, ban- de renovação dos espaços urbanos.


cos, gestores públicos, proprietários individuais) mo- E, por fim, a dimensão espacial. Para Hackworth
vidos tanto pela característica locacional quanto pelo e Smith (2001), esse novo momento caracterizou-se
preço da terra menos valorizada em relação a outras pela generalização do processo de gentrificação, pois,
áreas da cidade. Assim, renovações de moradias ou nesse período, mais do que reabilitação de moradia
até novas construções para classe média, além do para classe média, a gentrificação envolveu a recons-
estabelecimento de empresas e serviços nestas áreas, trução de todo um modo de vida, a partir da trans-
passam também a atrair novos moradores, e este efei- formação das áreas de lazer e consumo nos bairros.
to aos poucos acaba propiciando a saída dos antigos Além disso, a ideia da gentrificação como um fenô-
pelo aumento do custo de vida e descaracterização meno generalizado permite identificar que este fenô-
do espaço. meno não só se estendeu a outras partes do mundo,
As formulações de Smith buscam ressaltar quatro mas também se estendeu para além das áreas centrais
aspectos centrais que estão por trás do conceito de tradicionais, ou seja, para outras localidades na cida-
gentrificação. Primeiro, a dimensão de classe. Nesse de, redefinindo-se a escala daquilo que era tido como
caso, argumenta-se que estaria em curso, pelo menos centro urbano.
potencialmente, uma mudança dos agentes deten- Além destas quatro características presentes nas
tores da posse da terra urbana nas localidades que formulações de Smith, propõe-se considerar uma
estariam sendo objeto da renovação urbana, substi- quinta característica, sugerida por Pereira (2014),
tuindo setores das classes populares por segmentos centrada no capital simbólico presente nas áreas que
das classes média e alta. sofrem processos de gentrificação. Com base nas for-
Em segundo lugar, o diferencial de renda da terra mulações de Ley (1978), de Bourdieu (2007) e de
(rent gap). Smith (2007) propôs uma tese explicati- Hervey (1993), Pereira (2014) sugere que alguns cen-
va da gentrificação que se funda sobre a produção tros urbanos tidos como degradados são capazes de
do espaço urbano. Para o autor, a substituição dos atrair agentes portadores de capital simbólico, mes-
detentores da posse da terra urbana nas localidades mo que não tenham capital econômico. Estas áreas,
centrais das cidades seria explicada mais como o re- onde poder-se-ia observar uma defasagem entre o
sultado da dinâmica do capital do que como decor- capital simbólico e o capital econômico, seriam es-
rência de preferências e interesses pessoais. Assim, a paços passíveis de sofrerem processos de gentrifica-
reestruturação das áreas centrais atraiu os atores co- ção.
letivos públicos e privados que produzem o espaço Nesse sentido, Pereira considera que esta aborda-
urbano (empreendedores, setor imobiliário, bancos, gem permite perceber que as possibilidades de valo-
gestores públicos, proprietários individuais) tanto rização associadas aos processos de gentrificação “vão
pela característica locacional quanto pelo preço da além dos ciclos de realização e depreciação dos capi-
terra menos valorizada em relação a outras áreas da tais incorporados ao espaço urbano e da ampliação da
cidade. Neste sentido, a renovação de moradias ou escala das cidades.” (Pereira, 2014, p. 321), tendo em
até novas construções para classe média, além do vista que a renda potencial de um determinado espa-
estabelecimento de empresas e serviços nestas áreas, ço seria influenciada não apenas pela sua localização,
passa também a atrair novos moradores. Segundo mas também pelos atributos simbólicos associados ao
este ponto de vista, o processo de gentrificação se mesmo. Ao mesmo tempo, esta abordagem permite
inicia a partir de decisões e atuações de uma coalisão “entender por que os centros – e não qualquer lu-
de atores no espaço urbano. gar da cidade – são áreas especialmente propensas a
Em terceiro lugar, a gentrificação como estratégia passar por um processo desse tipo” (Pereira, 2014, p.
de renovação urbana. Nesta perspectiva, os processos 321).
de gentrificação não seriam concebidos apenas como Como reconhecido pela literatura sobre o tema,
resultado da lógica do mercado imobiliário, mas as experiências de gentrificação são muito diversifica-
como uma estratégia de classe, da coalizão domi- das (Janoschka; Sequera; Salinas, 2014), envolvendo
nante, envolvendo uma particular interação entre o contextos culturais, econômicos e políticos especí-
poder público e os agentes privados, na qual são ado- ficos, que se conectam de maneira muito complexa
tadas políticas e implementadas ações voltadas para com as dinâmicas econômicas nacionais e globais.
a promoção da gentrificação. Para Smith (2006), o Tendo isto em vista, e levando em consideração a
papel do Estado é essencial nos processos de gen- abordagem em torno da gentrificação aqui delineada,
trificação, na medida em que cria as condições para será discutido a seguir algumas hipóteses em torno
atuação dos empreendedores imobiliários através de dos impactos sociais do ajuste neoliberal na cidade
programas de ajuda financeira ou políticas públicas do Rio de Janeiro.

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 19


artigos

Tabela 1: Valorização Imobiliária dos Bairros Leblon, Leme e da favela do Vidigal – 2008-2015.

Leblon Favela do Vidigal Leme

Valorização em Valorização em Valorização em


Valor do m² Valor do m² Valor do m²
Mês de referência relação a 2008 relação a 2008 relação a 2008
(R$) (R$) (R$)
(%) (%) (%)
Set / 2008 11.252,49 xx 2.372,74 xx 7.069,09 xx

Set / 2009 12.408,30 10,27 3.161,63 33,25 7.618,79 7,78

Set / 2010 14.982,28 33,15 7.050,49 197,15 10.780,19 52,50

Set / 2011 16.310,29 44,95 6.317,33 166,25 12.464,37 76,32

Set / 2012 15.997,13 42,17 8.870,68 273,86 12.923,54 82,82

Set / 2013 15.322,74 36,17 9.318,15 292,72 13.490,36 90,84

Set / 2014 13.973,17 24,18 9.991,72 321,10 12.928,38 82,89

Set / 2015 13.386,00 18,96 8.757,00 269,07 11.657,00 64,90

Fonte: <http://www.zap.com.br/imoveis/fipe-zap-b/>, valores atualizados e tabulados pelos autores, com base na variação de: ORTN/
OTN/BTN/TR/IPC-r/INPC, disponível em <http://www.tjmg.jus.br/data/files/E0/53/AC/DC/10D4051088CF93050D4E08A8/Fatores_
Atualiz_Monet_1015.pdf>. Acessado em 6 jun. 2016.
Observação: Os dados do m² da Favela do Vidigal e do Bairro do Leblon para setembro de 2011 são referentes ao mês de outubro
de 2011, em razão da inexistência de informações para o Vidigal no mês de setembro deste ano.

Como dito anteriormente, o ajuste espacial neoli- O caso da Zona Sul


beral incide sobre três áreas específicas, a Zona Sul, a
Região Portuária e o bairro da Barra da Tijuca, recon- As transformações urbanas na Zona Sul da cidade
figurando estes espaços na perspectiva de fortalecer, apontam para uma dupla tendência: se por um lado
revitalizar ou constituir centralidades na cidade. estas transformações promovem uma ressignificação
O diferencial do preço do solo urbano existente das favelas, por outro lado, estimulam a revalorização
entre estas áreas e o seu entorno, relativamente des- do entorno destas áreas.
valorizado em razão do abandono pelo poder públi- As favelas situadas nesta região tem sido objeto
co, da ocupação por classes populares e da violência, de programas habitacionais de interesse social, volta-
poderia torná-las atrativas tendo em vista seus po- dos para o reassentamento dos próprios moradores,
tenciais de valorização. Assim, se poderia observar a como no caso das favelas da Babilônia, do Pavão-
desvalorização relativa de certos bairros do entorno -Pavãozinho e Cantagalo, e do Santa Marta.8Tais
da Barra da Tijuca (Recreio, Vargem Grande, Jaca- programas de habitação de interesse social, voltados
repaguá e Curicica), em relação à Barra da Tijuca; da para a população de baixa renda, contrariariam a te-
área portuária em relação ao centro do Rio de Janei- oria da gentrificação, ao se constituírem em políticas
ro; das favelas Babilônia, Chapéu Mangueira, Pavão- que evitam a substituição das classes populares pelas
-Pavãozinho, Cantagalo, Vidigal e Santa Marta, bem elites.
como dos seus respectivos entornos, em relação aos Ao mesmo tempo, percebe-se que estas favelas
bairros da Zona Sul nos quais se encontram. O atual têm sido objeto de ativas políticas culturais e sociais
preço do solo urbano e dos imóveis tornaria atrativas promovidas pelo poder público e pelo setor privado.
essas áreas para os agentes do mercado imobiliário
que, promovendo a renovação urbana das mesmas,
8 Entre 2009 e 2015, na favela do Pavão-Pavãozinho e Can-
poderia se beneficiar da incorporação do potencial de
tagalo foram construídas 120 unidades habitacionais de
valorização decorrente das suas privilegiadas localiza- interesse social no âmbito do Programa de Aceleração do
ções. No entanto, pelo menos até o momento, pa- Crescimento, promovido pelo Governo do Estado do Rio de
rece pouco provável apostar no desaparecimento das Janeiro; na favela da Babilônia foram construídas 117 unida-
classes populares do cenário urbano destes espaços. des habitacionais de interesse social no âmbito do Programa
Morar Carioca Verde, de responsabilidade da Prefeitura Mu-
De fato, os processos de transformação urbana destas nicipal do Rio de Janeiro. E na favela Santa Marta está pre-
áreas parecem mais complexos, colocando dúvidas vista a construção de 64 unidades habitacionais de interesse
sobre esta explicação simplista. social pelo governo do Estado do Rio de Janeiro.

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artigos

Em todas elas, verificam-se a instalação de hostels, ba- processos como gentrificação, pelo menos no senti-
res e casas noturnas, que atraem turistas e moradores do clássico do termo; (ii) intensa valorização imo-
da cidade, em um processo de resignificação simbóli- biliária das áreas situadas no entorno das favelas da
ca destas áreas.9 Nestas favelas também encontram-se Zona Sul, proporcionadas pela resignificação das fa-
trilhas que levam a mirantes com vistas privilegiadas velas como um ativo simbólico positivo, tornando
da cidade, sendo que um dos maiores shopping centers estes espaços, já ocupados pelas classes médias e altas,
da Cidade, o Shopping Center Rio Sul, é patrocina- ainda mais elitizados; (iii) risco de gentrificação da
dor de uma delas, a trilha da Babilônia.10 favela do Vidigal, ou pelo menos de algumas de suas
Nesse sentido, cabe indagar se esta resignifica- áreas melhor situadas e de mais interesse do mercado
ção não teria por objetivo tornar a favela um ativo imobiliário.
simbólico capaz de revalorizar seu entorno, situado
em bairros de alta valorização imobiliária (Botafogo,
O caso da Zona Portuária
Leme, Copacabana, Ipanema e Leblon).
A favela do Vidigal parece ser um caso a parte, O projeto de revitalização da Zona Portuária, deno-
tendo em vista se constituir na única favela onde os minado de Porto Maravilha, é implementado por
grandes grupos imobiliários atuam, além de ser uma meio da Operação Urbana Consorciada da Região
das poucas favelas da Zona Sul que não possuem Portuária do Rio de Janeiro, e abrange 5 milhões de
programas de habitação de interesse social promovi- metros quadrados. Deste total, aproximadamente
do pelo poder público. Com uma vista privilegiada 3,8 milhões fazem parte da Área de Proteção do Am-
para o mar, esta favela, ou pelo menos parte dela, biente Cultural (APAC) dos bairros Saúde, Gamboa
pode efetivamente estar vivendo processos que se as- e Santo Cristo, que incluí ainda algumas favelas, en-
semelham aos processos de gentrificação. tre as quais o Morro da Providência e a Pedra Lisa,
Para discutir esta hipótese, pode-se comparar a além do Morro da Conceição. A população total re-
valorização imobiliária de três áreas selecionadas: o sidente na área da Operação Urbana era 29.953 pes-
bairro do Leblon, que concentra população de alta soas, em 2010, segundo o Censo do IBGE, cujo o
renda e se constitui em um dos metros quadrados perfil pode ser caracterizado como de baixa e média
mais caros da cidade; a favela do Vidigal, vizinha ao renda.
bairro do Leblon, e o bairro do Leme, que tem em Desde 2010, vem se dando um processo de reo-
seu interior a favela da Babilônia (Tabela 1). É inte- cupação da área, financiado pela venda de Certifica-
ressante notar que todas estas áreas parecem sofrer dos de Potencial Adicional de Construção (Cepacs),
uma forte valorização imobiliária após a instalação que afeta de forma diferenciada os diferentes setores
das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas fa- da área portuária, que têm potencial construtivo di-
velas do Vidigal e da Babilônia (ambas em 2009). ferenciado segundo o número máximo de pavimen-
Além disso, percebe-se uma alta valorização na favela tos que é possível construir em cada setor (Figura 3).
do Vidigal e também no bairro do Leme, talvez como Além disso, o projeto de renovação urbana envolve
impacto dos programas de urbanização e das políti- fortes investimentos no patrimônio histórico e cul-
cas de resignificação da favela Babilônia. A queda na tural e na construção de artefatos culturais marca-
valorização imobiliária, verificada a partir de 2014, damente pós-modernos, como o Museu do Amanhã
provavelmente pode ser explicada como decorrência e o Museu de Arte do Rio de janeiro – MAR, que
da crise econômica vivida pelo Brasil. também expressam a intencionalidade de resignifica-
As transformações em curso na configuração ur- ção simbólica da região.
bana da Zona Sul da cidade sugerem que este ter- Tendo em vista a existência de uma grande área
ritório está vivenciando processos combinados de: de preservação cultural, de uma população de bai-
(i) resignificação simbólica das favelas situadas nesta xa e média renda, e de muitas favelas, parece pouco
região, gerando uma relativa elitização heterogênea provável que a região portuária sofra um processo
destes espaços, sem que se possa caracterizar estes de gentrificação na sua totalidade. Assim, a hipó-
tese mais plausível é a de que os setores de maior
potencial construtivo sofram o risco de processos de
9 A favela Babilônia foi tema de uma telenovela brasileira, gentrificação, acompanhados de relativa elitização
exibida pela maior rede de televisão, a Rede Globo, exibida
heterogênea no restante da área. Reforçando esta hi-
entre 16 de março e 28 de agosto de 2015.
10 Cf. <http://www.riosul.com.br/shopping_cidadania. pótese, constata-se que os grandes empreendimentos
php>, acessado em 13 out. 2015. imobiliários e comerciais que estão sendo lançados

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aspx.>, acessado em ago 2014. Obs.: Na figura, estão destacados os subsetores e setores
Fonte: CDURP, <http://www.portomaravilha.com.br/web/sup/OperUrbanaApresent.

segundo o número máximo de pavimento que é possível construir.


Figura 3:
Número Máximo
de Pavimentos na região se situam exatamente nas áreas de maior de assentamentos informais nestas áreas, de interes-
por Setor – Projeto
Porto Maravilha -
potencial construtivo, tais como o projeto residencial se dos agentes econômicos promotores da renovação
2009 de alta renda Porto Vida e o projeto corporativo Torre urbana, se torna um obstáculo ao processo de apro-
Carioca Concal11. É nesta mesma área que se situam priação desses espaços e de sua inserção nos circuitos
os maiores vazios urbanos e onde foram promovidas de valorização do capital vinculados à produção e à
diversas remoções, entre as quais se destacam as ocu- gestão da cidade. Efetivamente, uma das principais
pações Flor do Asfalto (30 famílias), Quilombo das formas de enfrentamento desse obstáculo pelo poder
Guerreiras (70 famílias), Casarão Azul (70 famílias) público tem sido a promoção de processos de remo-
e Zumbi dos Palmares (133 famílias), apesar de se ção, os quais envolvem reassentamentos das famílias
constatar outras remoções em toda a área portuária nas áreas periféricas, principalmente por meio de
(Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de programas de habitação de interesse social subsidia-
Janeiro, 2015). dos pelo governo federal – o programa Minha Casa
Minha Vida –, e também de diversas modalidades de
indenização com valores abaixo do mercado, o que
O caso da Barra da Tijuca
impede a permanência destas famílias na mesma área
O bairro da Barra de Tijuca tem como característica da qual foram removidos. A partir de uma perspec-
ser ocupado predominantemente por complexos con- tiva mais ampla, é possível interpretar esse processo
dominiais de edifícios altos, shopping centers e centros como uma espécie de despossessão, com a transfe-
comerciais e empresariais. Porém, diversos bairros no rência de patrimônio sob a posse das classes popu-
seu entorno, tais como Jacarepaguá, Curicica, Recreio lares para outros segmentos de classe, configurando
e Vargem Grande, são caracterizados por serem ocu- processos de gentrificação em certas áreas da Barra
pados por uma população de renda mais baixa e pela da Tijuca, que progressivamente se constitui em uma
predominância de algumas favelas. São estes bairros nova centralidade da cidade.
que vêm se transformando de forma mais acentuada. De acordo com dados do Dossiê do Comitê Popu-
Constata-se que a existência das classes populares e lar da Copa e Olimpíadas (Comitê Popular da Copa
e Olimpíadas do Rio de Janeiro, 2015), as obras dos
11 Cf. <http://www.imovelrj.com/porto-vida/> e http://www. novos sistemas de mobilidade urbana da Barra da Ti-
imovelrj.com/torre-carioca/>. Acessados em 7 jul. 2016. juca, em especial os BRTs Transcarioca, Transoeste e

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artigos

Transolímpica, foram responsáveis pela remoção de puro e extensivo, no qual ocorreria uma completa
cerca de 1.500 famílias, do total das 4.130 famílias substituição das classes populares residentes por seg-
removidas em razão das obras da Olimpíada 2016. mentos das elites sociais e econômica, mas de um
Para a construção do BRT Transoeste, destacam-se as processo combinado e complexo. Neste sentido, en-
remoções de comunidades inteiras, tais como Restin- quanto alguns espaços parecem sofrer os riscos de
ga, Vila Harmonia, Recreio II, Notredame e Vila da serem gentrificados, outros parecem se transformar
Amoedo, totalizando aproximadamente 400 famílias no sentido de se tornarem relativamente mais eliti-
removidas. Além disso, no processo de construção zados e heterogêneos, com a relativa preservação do
do Parque Olímpico (Barra da Tijuca), a Prefeitu- seu perfil popular. Há que se considerar também os
ra Municipal tentou remover a comunidade da Vila conflitos sociais envolvidos nestes processos, que tor-
Autódromo, que fortemente mobilizada e articula- nam seu desfecho ainda incerto.
da com outras redes e organizações sociais, resistiu e A questão a ser considerada diz respeito ao pa-
finalmente conseguiu assinar um acordo de perma- pel que o poder público municipal vem desempe-
nência de 20 famílias.12 Tal vitória, de grande impor- nhando nesse processo. Tal como observado no caso
tância para a comunidade e resultado de uma longa das cidades norte-americanas (Hackworth, 2007), a
história de resistência, não apaga o fato de terem sido Prefeitura do Rio de Janeiro parece estar envolvida
removidas cerca de 500 famílias que residiam nesta diretamente na promoção da gentrificação, atuando
comunidade. tanto na retirada dos obstáculos políticos e econômi-
Nesse sentido, pode-se argumentar que certas cos existentes, tornando-a possível através dos meca-
áreas da Barra da Tijuca estão sofrendo processos de nismos de mercado, como diretamente, promoven-
gentrificação promovidos pelo poder público e isto do a remoção das comunidades de baixa renda e sua
se expressa na medida em que o poder público pro- transferência para localidades mais distantes.
move, ao mesmo tempo, processos de remoções e a Ao longo desta análise, buscou-se trazer alguns
expansão imobiliária nesta região, especialmente vol- elementos que possibilitam interpretar os processos
tada para as populações de mais alta renda. atuais de transformação urbana da Cidade do Rio
de Janeiro como um processo de modernização neo-
liberal, expresso em uma nova rodada de mercantili-
CONSIDERAÇÕES FINAIS zação, associado a um processo de destruição criativa
envolvendo configurações urbanas, arranjos institu-
No decorrer deste artigo, buscou-se interpretar as cionais e regulações urbanísticas e sociais, envolven-
transformações em curso na cidade do Rio de Ja- do certos espaços da cidade, notadamente situados
neiro como uma modalidade de ajuste espacial ne- na Barra da Tijuca, na Área Portuária e na Zona Sul.
oliberal, fortemente impulsionado pela realização Cabe agora, nestas considerações finais, levantar al-
de dois grandes megaeventos, a Copa do Mundo de guns impactos dessa modernização neoliberal sobre
2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Neste contexto, a governança urbana e o futuro da cidade do Rio de
discutiu-se a hipótese da ocorrência de processos de Janeiro.
gentrificação na cidade do Rio de Janeiro, fazendo-se Em primeiro lugar, cabe destacar que esse pro-
algumas ressalvas, dadas as características específicas cesso de mudanças preserva antigos agentes, práticas,
das configurações urbanas e as transformações consi- estruturas urbanas, instituições e arranjos institucio-
deradas, seja na área Portuária, no bairro da Barra da nais e que a emergência de novos agentes, práticas,
Tijuca ou na Zona Sul. estruturas urbanas, instituições e arranjos institucio-
Apesar de se tratar de processos ainda em curso, a nais ocorre se combinando com aquilo que é pre-
análise evidencia que as transformações urbanas em servado. Assim, o que tentou-se mostrar é que não
curso estão associadas à tentativa de fortalecimento, estamos diante da mera continuidade de processos
revitalização ou criação de centralidades na cidade, anteriormente em curso. Há processos novos que
por meio de processos de destruição criativa de estru- não expressam exatamente uma ruptura com as anti-
turas urbanas, de instituições e de regulações públi- gas práticas, mas uma inflexão, na qual a moderniza-
cas e da resignificação desses espaços. Argumentou-se ção neoliberal em curso pode ser considerada conser-
ainda não tratar-se de um processo de gentrificação vadora em muitos aspectos. Nesse sentido, torna-se
um desafio analisar como se combinam as velhas e
as novas culturas políticas.13 De qualquer forma, já
12 Cf. Site da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janei-
ro: Defensoria e Prefeitura firmam Acordo Coletivo de Per-
manência e Urbanização da Vila Autódromo. Ver <http:// 13 O estudo de Guimarães (2015) elucida alguns dos meca-
www.portaldpge.rj.gov.br/Portal/conteudo.php?id_conteu- nismos por meio dos quais se combinam essas velhas e novas
do=3137>. Acessado em 15 abr. 2016. práticas no caso da modernização neoliberal da Barra da Ti-

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é possível inferir que, do ponto de vista da gover- do uma nova coerência estruturada (Harvey, 2004),
nança urbana, esta modernização neoliberal parece que ao mesmo tempo preserva estruturas urbanas,
se aproximar das práticas patrimonialistas, que tanto instituições sociais e agentes presentes no território.
marcam a história da cidade do Rio de Janeiro, e se A combinação do velho e do novo caminha no senti-
distanciar da gestão democrática associada ao ideário do de reproduzir práticas que ameaçam os princípios
do direito à cidade. Nesse contexto, as esferas públi- da gestão democrática e a universalização de direitos
cas de participação são progressivamente substituídas na cidade.
por processos decisórios que subordinam o poder pú- Nesse contexto, caberia refletir sobre as possibi-
blico à lógica do mercado. lidades da constituição de um bloco de oposição às
Em segundo lugar, em sintonia com a abordagem transformações em curso, superando as tendências à
utilizada (Hackworth, 2007), o processo de imple- fragmentação impulsionadas pela coalizão de poder,
mentação desse projeto de neoliberalização envolve e da construção de um projeto alternativo, na pers-
diversas contradições e suscita diferentes conflitos pectiva da afirmação de uma cidade inclusiva, mais
urbanos envolvendo resistências e oposições, por justa e democrática no Rio de Janeiro.
exemplo, no tocante às prioridades dos investimentos
realizados, às remoções de comunidades situadas nas
áreas de intervenção, à inexistência de canais de parti- REFERÊNCIAS
cipação social e às transformações na vida social. Tais
conflitos, protagonizados por uma diversidade de or- BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do
ganizações e movimentos sociais, podem incidir nos julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS:
rumos do projeto de neoliberalização, alterando-o Zouk, 2007.
mais ou menos substantivamente, ou mesmo inviabi- CASTRO, Demian Garcia; GAFFNEY, Christo-
lizando-o, dependendo da força que ele venha atingir pher; NOVAES, Patrícia Ramos; RODRIGUES,
ao longo do tempo, o que reforça a incerteza sobre o Juciano; SANTOS, Carolina Pereira; SANTOS
futuro da cidade. Neste sentido, pode-se prever que JUNIOR, Orlando Alves dos. Rio de Janeiro:
a governança urbana do Rio de Janeiro tenderá a ser os impactos da Copa do Mundo 2014 e das
marcada pelo acirramento da conflitualidade. Olimpíadas 2016. Rio de Janeiro: Letra Capital,
No entanto, como terceiro aspecto, não se pode 2015.
ignorar a força da coalizão de poder que comanda Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de
esse projeto de governança empreendedorista neoli- Janeiro. Megaeventos e Violações dos Direitos
beral, que demonstra força hegemônica e capacidade Humanos no Rio de Janeiro - Dossiê do Comitê
de incorporar de forma subordinada, pelo menos dis- Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro.
cursivamente, os interesses subalternos, compondo Olimpíada Rio 2016, os jogos da exclusão 2015.
com outros agentes e com outras gramáticas políticas Rio de Janeiro, novembro de 2015. Disponível
existentes de forma a se viabilizar a implementação em <http://issuu.com/mantelli/docs/dossiecomi-
deste projeto, resultando na especificidade da cidade terio2015_issuu_01>. Acessado dez. 2015.
neoliberal do Rio de Janeiro. Em síntese, mesmo que GUIMARÃES, Renato Cosentino Vianna. Barra da
de forma subordinada, é preciso reconhecer ganhos Tijuca e o Projeto Olímpico: a cidade do capital.
parciais e fragmentados das classes populares em al- Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do
gumas áreas da cidade, como decorrência dos inves- Programa de Pós-Graduação em Planejamento
timentos que estão sendo realizados, em especial no Urbano e Regional da Universidade Federal do
campo da mobilidade urbana. Rio de Janeiro – UFRJ. Rio de Janeiro, UFRJ,
Em suma, as profundas transformações em curso 2015.
na dinâmica urbana da Cidade do Rio de Janeiro en- HACKWORTH, Jason. The Neoliberal City: gov-
volvem, de um lado, novos processos de mercantili- ernance, ideology, and development in American
zação da cidade, e de outro, novos padrões de relação Urbanism. New York: Cornell University Press,
entre o poder público e o setor privado, caracteriza- 2007.
dos pela subordinação do poder público à lógica do HACKWORTH, J. and N. Smith 2001. The chang-
mercado. Esse processo envolve a destruição criativa ing state of gentrification.  Tijdschrift voor
de estruturas físicas, arranjos institucionais e regula- Economische en Sociale Geografie, 92(4): 464-
ções urbanas e sociais visando à criação de novas con- 477.
dições para a produção e reprodução do capital no HARVEY, David. A Condição Pós-moderna. São
contexto da globalização contemporânea, expressan- Paulo: Loyola, 1993
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24 nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis


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nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 25


artigos

Carlos Gonçalves

Hierarquia, policentrismo e
complexidade em sistemas urbanos
Resumo
A discussão sobre a configuração dos sistemas urbanos mantém centralidade nos estudos
regionais e urbanos. Este artigo concorre para que se possam integrar as noções de hie-
rarquia, de rede, de policentrismo e de complexidade na compreensão destes dispositi-
vos (os sistemas urbanos). Analisando os principais traços que marcaram a transição das
estruturas hierárquicas para lógicas de rede, a afirmação do policentrismo por oposição
a configurações hierárquicos rígidas e o aprofundamento da dicotomia entre segmentar
ou integrar os elementos que compõem os sistemas urbanos, aportamos na necessidade
de compreender estes organismos como sistemas complexos. Escolher entre privilegiar a
componente analítica (interpretação) ou a operativa (intervenção) é redutor e amplifica
os riscos de se desbaratar o potencial de desenvolvimento patente (ou latente) na malha
das relações locais-regionais-globais.

Palavras-chave: Sistemas urbanos; Hierarquia; Redes; Policentrismo; Complexidade.

Abstract
The configuration of the urban systems is a central theme on the urban and regional stu-
dies. This article contributes to accommodate the terms of hierarchy, network, polycen-
trism and complexity when it comes to understand those mechanisms (the urban syste-
ms). The most important characteristics of the hierarchical structures transition to the
reticular systems are considered and the dichotomy between segment and integrate the
elements that comprise the urban systems is analysed. Therefore, the urban linkages
are viewed through the lens of the complex systems. To focus on one of the components
Carlos Gonçalves
é bolsista de Investigação Post-Doc
(both when interpreting and intervening) is reductive and increases the risks of des-
e Pesquisador efetivo do Centro
troying the evident (or latent) development potential in the network of local-regional- de Estudos Geográficos, IGOT,
-global relationships. Universidade de Lisboa.

Keywords: Urban systems; Hierarchy; Networks; Polycentrism; Complexity. c.goncalves@campus.ul.pt

____________________
Artigo recebido em 14/08/2015
artigos

INTRODUÇÃO a delimitações mais rigorosas dos territórios de caça


e das áreas de recolha dos recursos necessários à vida
Cedo se viu refutada a premissa de que as cidades quotidiana. Fomentou, também, a escolha dos espa-
perderiam sentido porque se aboliria o efeito da dis- ços mais adequados à agricultura. Neste processo de
tância. De igual modo, a aplicabilidade da concessão definição da região “subordinada” ao povoado, o gru-
de Batty (2005) focada na ordem hierárquica esta- po fundador contacta com outros semelhantes, esta-
belecida a partir da dimensão dos centros urbanos belecendo-se espaços de fronteira ao longo dos quais
requer análises mais detalhadas. É certo que a hie- se disputavam recursos. Esta fórmula alterar-se-á à
rarquia não perdeu completamente a sua aderência. medida que se instala a percepção de que cooperan-
Contudo, a globalização baralhou as explicações uni- do, aumentam-se as perspetivas de sobrevivência.
camente baseadas na dimensão ou nos arranjos de Antevê-se aqui o embrião dos sistemas urbanos: um
funções. Estes modelos resultam ainda mais fragili- povoado, uma área subsidiária, bandas de negociação
zados quando, adotando uma aproximação determi- de fronteiras, fluxos internos, contactos e trocas com
nística, se relega (sem demais) as cidades mais distan- o exterior.
tes dos centros de decisão para posições periféricas. Foram criados assentamentos para aumentar as
Importa tomar em linha de conta que tanto as capacidades de resistir a ataques de inimigos, para
cidades médias como os pequenos centros urbanos aproveitar circunstâncias favoráveis de acesso a vias
são organismos distintos das grandes metrópoles. Se de comunicação ou para explorar tipos específicos de
não é fácil compreender o que organiza as estruturas recursos naturais. Com o tempo, as interações que
metropolitanas, confundir estas realidades com as daí resultaram conduziram à segmentação das ativi-
que ocorrem em pequenas cidades, mais ou menos dades e ao correspondente incremento da prosperi-
integradas em sistemas urbanos, servirá apenas para dade (e da predisposição para a atingir) destas comu-
reforçar erros de análise (Jacobs, 2000). nidades. O aprofundamento de tais processos segue
Sintetizando a interpretação dos sistemas urba- a par com a proliferação e crescimento das aglome-
nos através de três dicotomias: hierarquia/rede; mo- rações urbanas1. A partir de pequenos aglomerados,
nocentrismo/policentrismo; fracionamento/com- o dispositivo urbano expande-se, dando lugar a vilas
plexidade, pretendemos afirmar a necessidade de (villages) que por sua vez se transformam em peque-
articular hierarquia-policentrismo-monocentrismo- nas cidades (towns). A agregação destas últimas ori-
-policentrismo-fracionamento-complexidade para gina formas mais extensas e complexas, designadas
melhor compreender e potenciar as dinâmicas urba- por metrópoles, megalópoles, cidades globais (“giga-
nas recentes. Apesar de lopolis”). Todavia, é usual que as aglomerações urba-
A ossatura desenhada para sustentar o corpo do nas tenham uma, ou várias, cidades como referência,
artigo compreende, num primeiro momento, discus- estabelecendo-se a partir dela(s) uma teia (mais ou
sões em torno da hierarquia e da intrusão gradual menos hierarquizada) de relações (Batty, 2005).
das lógicas de rede. Depois, sistematizam-se os prin- Procurando acompanhar os padrões de urbaniza-
cipais traços do policentrismo, enquanto proposta ção recentes, vemos surgir novos modelos empíricos
de potenciação de interações. Por fim, aflora-se a agarrados a neologismos conceptuais que rotulam as
dicotomia entre, por um lado, o fracionamento das configurações que se propõem modelar. Colocando
realidades presentes nos sistemas urbanos de modo de parte os organismos urbanos de maior abrangên-
a entender melhor o comportamento de partes es- cia (megalópole, metrópole, área metropolitana), as
pecíficas e, por outro, o efeito integrador proposto cidades ditas médias ou (se se optar por outra apro-
pelo referencial da complexidade. Sublinha-se assim ximação) intermédias, podem ser polinucleadas, po-
o entendimento dos sistemas urbanos enquanto or- dem funcionar numa conurbação, ou podem estar
ganismos complexos (de relações) que não se compa- inseridas em áreas metropolitanas. Podem ainda ser
decem com abordagens parcelares. categorizadas como históricas, podem ser tecnopo-
los, ter matriz logística, portuária, turística etc., ou
dilatar a sua influência funcional por vastas áreas de
ENTRE HIERARQUIA E REDES baixa densidade criando padrões de urbanização di-
fusos, fragmentados, dispersos, com maior ou menor
O impulso para povoar é o interruptor genético dos
sistemas urbanos. Para os que primeiro experimenta-
1 Este processo de expansão pode ser visto como quantita-
ram fixar-se, os sítios de paragem permitiram explo- tivo populacional, número de famílias, contingente de mão
rar relações de proximidade e facilitar a obtenção de de obra, área ocupada, energia consumida ou capacidade de
mantimentos. Esta mutação civilizacional conduziu afirmação num dado sistema urbano.

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artigos

suburbanização, periurbanização, rurbanização. hierarquia (porventura com rearranjos) do que para a


Aprofundando o conceito de cidade média, Costa sua dissolução. Ou seja, desencadeia mais fluxos intra
(2002) associa-a à ideia de dimensão ótima, encaran- e inter sistemas urbanos.
do-a como uma entidade econômica e socialmente Correlacionada com a lógica de hierarquia está
equilibrada. Numa visão geral, coloca-se em causa a a conceção de polarização, de modo que as funções
diversidade, por via da polarização. Por outro lado, desempenhadas pelos centros urbanos ligam-se dire-
o aumento da densidade de relações joga a seu favor. tamente com a sua dimensão. Deste modo, as opor-
No que diz respeito ao quadro onde operam as ci- tunidades proporcionadas pela cidade global (fruto
dades não metropolitanas, a importância destes nós da centralidade, quantidade e diversidade das suas
depende mais do modo como se articulam com os funções) serão exponencialmente maiores do que nas
demais pontos da rede e como conseguem projetar pequenas cidades isoladas ou em sistemas urbanos
o seu contributo para melhorar a sua organização do regionais. As amenidades que uma cidade pequena
que com a dimensão que apresentam. Contudo, é propõe integram, de igual modo, a matiz funcional
certo que as cidades de menor dimensão integram re- da cidade média, acoplando-se nesta as funções que a
des comandadas por outras maiores. Esta constatação pequena não consegue atrair. A cidade grande apre-
é sustentada pelo facto do número de grandes aglo- senta as condições presentes nas pequenas, nas mé-
merações ser menor do que o das pequenas (Batty, dias e ainda propõe as que nesta última não encon-
2005). Está aqui embutido o modelo Chistalleriano tram mercado que justifique a sua presença. Todavia,
por onde se desenha uma cadeia de dependências esta linearidade deve, também, ser passada por um
entre aglomerados, produzidas pela posição que ocu- crivo mais fino.
pam numa estrutura hierárquica, ajustável consoante É necessário chamar à coação os efeitos negativos
o grau de diferenciação das funções que disponibili- que as aglomerações urbanas comportam. Inscrevem-
zam. -se no quadro dos custos, por exemplo: a saturação
Para esta leitura, que privilegia as relações hie- de equipamentos, a produção de resíduos e ruído ou
rárquicas entre cidades organizadas em sistemas as deseconomias decorrentes do congestionamento
urbanos locais, em escalas regionais, em estruturas de tráfego. Isto é, fatores deste tipo funcionam como
metropolitanas ou em configurações globais, muito travões que bloqueiam (no curto ou no longo prazo)
contribuiu (e ainda contribui) o fator distância. As as trajetórias de desenvolvimento. É neste jogo feito
mutações verificadas nesta impedância (a distância) entre maior dimensão, maior diversidade e riqueza
são motivo para que Cairncross (1997), observando funcional, logo, mais oportunidades de fazer perdu-
os efeitos das telecomunicações, defenda que o papel rar um modelo de desenvolvimento e entre maior di-
da distância tenderia a reduzir-se, banalizando a im- mensão, mais congestionamento, mais pressão para a
portância da localização. Por esta via, esboroar-se-ia homogeneização, mais deseconomias de escala, logo,
a estrutura hierárquica. A verificar-se esta tese, todos mais condições para gerar bloqueios, que se situa o
os indivíduos e todas as atividades seriam livres de equacionamento da capacidade de projetar resiliência
migrar para os subúrbios e destes para o espaço rural, evolutiva pelos (e nos) modelos de povoamento.
porquanto as oportunidades (também as mais dife- A ação combinada dos efeitos da dispersão espa-
renciadas) deixariam de ser monopólio das aglomera- cial e da crescente integração das atividades econô-
ções. Segundo este vaticínio, as famílias e as empresas micas, com expressão global, reorientou o posicio-
distribuir-se-iam aleatoriamente, satisfazendo as suas namento e o papel das grandes cidades. Estas, no
necessidades a partir de qualquer tipo de localização. entendimento de Sassen (2001), são tributárias das
Os motores de desenvolvimento, organizados a partir seguintes transformações globais: i) desmantelamen-
de polos de maior densidade, dariam lugar a padrões to do poder industrial localizado nos grandes centros
disseminados “anarquicamente” pelo território. dos EUA, de Inglaterra e também do Japão; ii) a ace-
Hall (1999) encarrega-se logo de contrapor esta leração da industrialização de boa parte dos países em
leitura. Primeiro faz notar que tanto os efeitos das co- desenvolvimento; e, iii) a internacionalização das in-
municações quanto os dos transportes (mesmo que se dústrias financeiras potenciadas pela internet.
instale uma tendência para a redução de preços) nun- Cada um destes fatores alterou a geografia das
ca serão inócuos. Depois, refuta a hipótese de que as grandes cidades, catapultando-as para um patamar no
telecomunicações teriam como resultado a redução qual a economia é predominantemente internacio-
das necessidades de deslocação, demonstrando que as nal. Assiste-se ao abandono, por parte desta categoria
verificações empíricas atestam o oposto: maior densi- de cidades, das lógicas de concentração do comércio.
dade das redes de transportes e de telecomunicações Em substituição, emerge uma matriz de funciona-
contribui mais para a polarização e para o reforço da mento que favorece a sucção dos fatores cruciais de

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artigos

organização e exercício de poder na economia global. Communities - Directorate-General for Regional Poli-
As cidades globais servem de localização privilegiada cies, 1992), que informou as propostas do Esquema
para o setor financeiro e para empresas com serviços de Desenvolvimento do Espaço Comunitário (Co-
altamente especializados (que destronaram as do se- missão Europeia, 1999). Esta perspetiva cria um
tor industrial na liderança da criação de riqueza). São contraponto ao modelo de polarização em torno,
igualmente palco da afirmação de centros de produ- primeiro, do eixo banana azul e depois, do pentá-
ção de inovações que alimentam os setores líderes e, gono. A sua pertinência afirma-se à medida que se
para finalizar, afirmam-se como mercados para pro- consolida o propósito de alargar as áreas dinâmicas
dutos tidos como inovadores (Sassen, 2001). do espaço comunitário, esbatendo, deste modo, as
Deste modo, o novo modus operandi destas cida- disparidades existentes e crescentes no território da
des incutiu impactos tanto na estrutura econômica União Europeia.
internacional quanto na forma urbana. A cidade Esta resposta de política, orientada para a confi-
global concentra o controlo sobre uma vasta porção guração de sistemas urbanos polinucleados, deveria
de recursos. Enquanto organização urbana, social e reproduzir-se em várias escalas. Seguindo a síntese
econômica a cidade é marcada pelas estratégias dos presente em DGOT-DU e MCOTA (2004) viabi-
setores financeiros e outros com níveis elevados de lizar-se-ia assim: i) a criação, na União Europeia, de
especialização (da industria e dos serviços). É a esta mais territórios competitivos à escala global; ii) a
matriz restrita de nós, com capacidade de polarização criação de um sistema de regiões metropolitanas po-
crescente, que Sassen (2001) atribui a classificação de licêntrico e equilibrado, bem assim, a estruturação de
cidades globais: lugares privilegiados para a acumu- clusters e redes de cidades respaldando políticas tran-
lação de capital e para a fixação de centros de poder seuropeias2; iii) a criação de estratégias de desenvol-
institucional e privado. Simultaneamente, também é vimento espacial que privilegiassem redes de cidades
nestas que se verificam maiores níveis de iniquidades. considerando, neste plano, os espaços transnacionais
Resta saber se concentram, ou não, maior resiliência e transfronteiriços3; iv) a melhoria da estrutura de
evolutiva. funções dos espaços urbanos e intraurbanos inseridos
A globalização traz consigo produção e disponi- em sistemas metropolitanos.
bilização (exponencial) de informação, ou seja, po- Na origem da adoção do policentrismo, como
tência, conhecimento e inovação. Num contexto de instrumento de política de ordenamento e de desen-
aceleração das mudanças, comprimem-se os lugares volvimento territorial, está a European Spatial Deve-
onde se localizam centros de comando e de decisão lopment Perspective (ESDP) adotada pelos ministros
(Ferrão, 1995). O mesmo autor diz-nos que a posi- responsáveis pelo planeamento regional e urbano
ção que cada centro urbano ocupa, ou ocupará, no dos Estados Membros da União Europeia, reunidos,
contexto da rede urbana nacional ou internacional, em maio de 1999, na cidade de Potsdam. O docu-
não é regido por mecanismos determinísticos. mento, aprovado nessa reunião, propõe que as po-
líticas de desenvolvimento, com impacto espacial,
deveriam ser coordenadas de forma a configurar, ou
ENTRE MONOCENTRISMO a consolidar, trajetórias de desenvolvimento susten-
E POLICENTRISMO tável. As principais orientações de política visam: i)
ao desenvolvimento de um sistema urbano equilibra-
O desenvolvimento dos meios de transporte, dos do e policêntrico e uma nova relação urbano-rural;
modos de comunicação e a especialização crescente ii) à capacidade de assegurar equidade no acesso a
das cidades fez com que os modelos monocêntricos infraestruturas e a redes de conhecimento; e iii) ao
(hierarquizados de modo rígido) perdessem parte da desenvolvimento sustentável pela gestão prudente e
sua aderência à realidade e vissem fragilizada a sua pela proteção das paisagens naturais e culturais (Co-
capacidade de ancorar o desenvolvimento urbano. O missão Europeia, 1999, p. 11).
sistema urbano polinucleado emerge do esforço de Enquanto orientação para as políticas de orde-
busca por alternativas aos centros fortemente pola- namento e de desenvolvimento do território, o po-
rizadores disfuncionais e congestionados. Tal ocorre licentrismo granjeia crescente relevo. Esta proposta
no seio da discussão sobre o sistema urbano europeu de leitura das dinâmicas territoriais surge intercalada
no final dos anos 1990.
Sob a designação de grape model, o conceito de
2 Lisboa e Porto entram nesta estrutura especialmente se se
policentrismo surge referenciado em Kunzmann e considerar o sistema urbano da Península Ibérica.
Wegener (1991) transposto, depois, para o estudo 3 Podiam ser apresentados vários exemplos, desta natureza.
da Comissão Europeira (Commission of the European Gomes et al. (2010) representam um esforço nesse sentido.

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artigos

com uma proposta para o desenvolvimento urbano interpõe-se ao modelo unipolar hierarquizado infle-
mais equilibrado, incorporando maior coesão, dialo- xível, no qual uma única cidade (ou região metro-
gando de modo mais profícuo com as áreas rurais, politana) emerge como motor de desenvolvimento,
garantindo maior sustentabilidade. O conceito de capitalizando o seu potencial na subjugação dos res-
policentrismo surge associado a outras noções tais tantes centros que gravitam na sua região de influên-
como: complementaridade entre centros urbanos cia. Tal domínio pode materializar-se, por exemplo,
(Meijers, 2006), potenciação de sinergias (Meijers, no efeito de sucção de novos investimentos ou de
2007), configuração de regiões urbanas policêntricas fixação de atividades inovadoras. Os centros secun-
(polycentric urban region - PUR) (Bailey & Turok, dários, colocados na dependência direta do centro
2001; Robert & Sako, 2001) e funcionamento dos polarizado, transformam-se (por exemplo) em dor-
sistemas urbanos em rede (Burger, 2013; Camagni & mitórios e, mesmo os que se apresentam com outras
Salone, 1993). valências específicas, emprestam gradualmente a sua
Oferecendo um contraponto aos modelos de de- identidade ao centro.
senvolvimento hierarquizados e monocêntricos, o Qualquer outra cidade que, colocando-se dentro
policentrismo congrega em si uma proposta de di- destes anéis de influência, procure combater a perda
fusão dos processos de desenvolvimento, recorrendo de identidade, terá dificuldades em conseguir orga-
a fórmulas para fazer com que estruturas urbanas nizar a sua própria rede de ligações. Nestas estrutu-
pontuadas por centros de menor dimensão se pos- ras monocêntricas, fronteiras administrativas rígidas
sam afirmar com capacidade de ascender aos recur- somadas a rivalidades, ou a défices de entendimento
sos que qualificam as vidas dos residentes, de que as institucional, colocam uma cidade da periferia de um
grandes aglomerações metropolitanas são detentoras. centro polarizador numa posição particularmente
De modo simples, coloca-se em confronto o modelo frágil. Por um lado, porque recusa tirar partido dos
monocêntrico com outro de cariz policêntrico (Ri- benefícios da aglomeração, por outro, porque vê di-
chardson, 1988). ficultada a sua capacidade de gerar uma trajetória de
No topo das preocupações do ordenamento e do desenvolvimento própria.
desenvolvimento do território, está a busca de respos- No caso em que o modelo de desenvolvimento
tas que contraponham a ancoragem dos motores do urbano procura convergir para um funcionamento
desenvolvimento em determinados centros. Buscam- sistêmico do tipo rede urbana policêntrica, todos
-se explicações para o facto de não se conseguir fazer os centros estabelecem relações bidirecionais com
com que mais centros urbanos consigam atrair deter- os demais. O principal nó não perde essa condição,
minados tipos de investimento, oferecer e integrar-se contudo, procura se beneficiar das ligações com os
em redes de transportes mais robustas, gerar inova- restantes, construindo relações de complementarida-
ção, respeitar os recursos ambientais, atingir determi- de. Cada um dos centros procura desenvolver as suas
nados patamares de sustentabilidade. É neste quadro potencialidades endógenas, tendo em conta as opor-
que o conceito de policentrismo assume destaque. tunidades que resultam do funcionamento em rede
Traz no seu significado a possibilidade de se formular (potencia ligações intra e inter).
uma cadeia de relações entre centros urbanos de tal Levar avante a configuração deste imaginário re-
modo densa que permita a geração de funcionamen- produz-se, por exemplo, na localização de um parque
tos sistémicos ou em rede (Hague & Kirk, 2003). empresarial na cidade de menor dimensão, aprovei-
Articulada conjuntamente, essa agregação de tando a oferta de espaço a preços mais acessíveis e/ou
centros tem possibilidade de gerar massa crítica que a qualidade ambiental envolvente (amenidades difí-
viabiliza vitalidade empresarial, aumenta a oferta de ceis de concretizar na cidade central), atraindo novas
serviços e capitaliza amenidades. Processos de de- empresas que se beneficiam de um mercado alargado.
senvolvimento policêntrico trazem consigo esbati- O centro comercial reconfigura-se para responder às
mentos de fronteiras, relativização de barreiras his- valências de mercado e de produção de uma região
tóricas, desvalorização de estruturas administrativas, alargada, um parque temático fixa-se num pequeno
secundarização de rivalidades para dar lugar a robus- lugar e atrai famílias de toda a região, as ofertas de
tecimento de corredores de comunicação (físicos e lazer articulam-se em rede procurando tirar partido
virtuais), aprofundamento de trabalho conjunto e dos recursos locais, redes de informação regionais co-
de estratégias de cooperação mais efetivas (Hague e ligem a oferta cultural, as oportunidades de empre-
Kirk, 2003). Esta interpenetração de escalas é vista go, as articulações entre os sistemas de transportes e
como modularidade no paradigma que sustenta a re- equipamentos etc., a estratégia de promoção engloba
siliência do desenvolvimento urbano. o sistema urbano, as fronteiras administrativas esba-
Como se disse, o desenvolvimento policêntrico tem-se: passam a ser vistas como pontes, deixando

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artigos

de ser barreiras (Hague e Kirk, 2003), conferindo ricas subjacentes ao policentrismo), Davoudi (2003)
consistência ao percurso de desenvolvimento. Nes- desbrava a literatura dedicada, apresentando uma
ta imagem hipotética, caracterizadora do funcio- reflexão na qual coloca em confronto as estruturas
namento de um sistema urbano policêntrico, estão de organização do território mono e policêntricas. A
subjacentes a busca por maior racionalidade, um autora levanta a hipótese de existir um desligamento
desenvolvimento urbano mais equilibrado e maior entre a absorção política e técnica do segundo mode-
distribuição de atividades econômicas pelas várias lo, face às dinâmicas de transformação em curso, que
cidades/regiões. No geral o potencial de competitivi- parecem indiciar uma quebra na tendência do pa-
dade aumenta e dissemina-se (Burger, 2013). drão descentralizador, ao mesmo tempo que se afir-
Certo é que o conceito de policentrismo adquire mam processos híbridos de concentração/dispersão.
vários significados, tantos quantas as escalas em que Descobrem-se evidências que estabelecem uma
se pode materializar. No espaço da União Europeia, relação circular entre condições econômicas e re-
onde, como se disse, se encubou o conceito, a sua centralização urbana. “Regiões que, à medida que
maior missão é estimular processos de desenvolvi- o processo de reconcentração ocorre, conseguem
mento, para além da área normalmente designada de atrair mão de obra e residentes, capacitam-se para
pentágono, equilibrando e conferindo maior capaci- melhorar os quadros de vida urbana. Regiões mais
dade a outras regiões de se integrar em sistemas urba- vulneráveis, do ponto de vista econômico, estão mais
nos europeus e globais. Este posicionamento estra- expostas a espirais de descentralização e de declínio”
tégico responderia à necessidade que a Europa tem (Cheshire, 1995, citado em Davoudi, 2003, p. 983).
de aumentar a sua representação na configuração Trata-se, pois, de adensar as teias de complexidade
de regiões que competem no sistema urbano global. que caracterizam as cidades. O nível de complexida-
Posicionado na escala dos países, o policentrismo de que comportam é um dos elementos centrais na
responderia à necessidade de disseminar as políticas adaptabilidade que conseguem gerar.
de competitividade, reduzindo as disparidades, au-
mentando a coesão, esbatendo as fronteiras entre os
vários patamares (e cidades neles posicionados) dos ENTRE FRACIONAMENTO
sistemas urbanos nacionais. E COMPLEXIDADE
Tomando uma leitura regional, o conceito de sis-
temas urbanos policêntricos (Bailey e Turok, 2001) Para fomentar a sustentabilidade nos sistemas ur-
concentra boa parte da relevância desta estratégia. banos, é necessário observar a malha complexa das
Compreende conjuntos de áreas metropolitanas, relações entre atividades e pessoas e destas com as
separadas por trajetos históricos e modelos espaciais ossaturas, construídas e biofísicas, de modo a que se
divergentes que deslocam a sua orientação para as- minimize a energia utilizada e se maximizem as pos-
sumir a expressão de amplas regiões urbanas fun- sibilidades de trocas profícuas. A redução da comple-
cionais, densificando a sua matriz de interrelações xidade (criando-se texturas urbanas do “tipo árvore”)
(Burger, 2013). Nas constelações urbanas policên- bloqueia os fluxos, incrementando a fragmentação e
tricas, capitaliza-se competitividade, respondendo, o afastamento entre pessoas e espaços. “As cidades
porventura, com um acréscimo de potencialidades históricas têm sobrevivido e prosperado, graças ao
face às estruturas monocêntricas. Estas aglomerações processo de incremento da complexidade, absorven-
se beneficiam de bacias de emprego alargadas, diver- do sucessivas transformações, sem perder o essencial
sidade e especialização de serviços, nós posicionados da sua estrutura” (Salat, Bourdic e Nowacki, 2010
no topo das redes de transportes (portos, aeropor- p. 167).
tos), evitando efeitos nefastos, geralmente associados Num sistema urbano, todos os seus elementos
a centros de maior densidade: congestionamento, interagem. Esses elementos podem agrupar-se em
insegurança, poluição (Faludi, 2004). estruturas morfológicas, econômicas, sociais ou am-
Resumindo, a aplicação do modelo policêntrico, bientais. Todas contribuem separadamente, todavia
visto como alternativa ao de expressão monocên- interferem, através das múltiplas articulações que de-
trica/hierárquica, pode direcionar-se para escalas sencadeiam, para uma arquitetura fluida de relações.
intraurbanas, interurbanas ou interregionais. Para Dito de outro modo, o resultado do comportamento
além de contextualizar o conceito de modo mais de cada um dos elementos não decorre das condições
abrangente (dando conta de que a sua raiz se esten- que encerra em si próprio, mas das interações que
de até aos sociólogos da Escola de Chicago e de nos estabelece com os demais (Rocha, 2012). A evolu-
apontar as dificuldade de tornar claros os princípios ção, enquanto correia de transmissão dos processos
conceptuais, os alicerces teóricos e as análises empí- de mudança, é comandada por essa teia de ligações.

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 31


artigos

Isto desloca o foco da análise da observação direta das Os sistemas urbanos abeiram-se do colapso sem-
propriedades de determinado sistema (subsistema, pre que se simplifique a teia de relações que os supor-
ou componente especifica de um qualquer sistema) tam. Tal decorre ainda da calibração do modelo ten-
para aportar na natureza e na extensão das conexões. do como bitola a matriz de interações geradas num
Os sistemas urbanos, enquanto sistemas comple- tempo específico, porque é sabido que na realidade o
xos (Bretagnolle et al., 2006; Albeverio et al., 2008; tempo é uma variável intrinsecamente mutável que
Salat, Bourdic & Nowacki, 2010; Rocha, 2012), impõe variações em todas as outras. As representa-
não são dispositivos cuja configuração se estabelece ções mecânicas e simplificadas afastam-se, de modo
uma vez perpetuando-se, depois, para todo o sempre. crítico, da realidade que pretendem analisar (Albeve-
Muito pelo contrário, estes estão sujeitos a mudanças rio et al., 2008) (figura 2).
permanentes em função das pequenas variações que A dinâmica de uma população pertencente a uma
se vão introduzindo reiteradamente nas suas múlti- cadeia alimentar exemplifica os efeitos de retorno
plas variáveis. A acumulação de pequenas mudanças num ecossistema real, onde tem lugar subsistemas pa-
pode precipitar uma grande transformação, que obri- ralelos que se sobrepõem criando padrões em que os
ga a sobressaltos nas trajetórias de desenvolvimento, dos níveis hierárquicos superiores se alimentam dos
conduzindo, no extremo, a que se configure uma que se posicionam abaixo. A cadeia retroalimenta-se
nova matriz de funções (figura 1). por esta via, bem assim, pela reciclagem de todos os
O comportamento que produz a bifurcação (nova fragmentos de carbono e de minerais que decorrem
matriz de funções) deriva da teorização em torno da da mortalidade. Tal sucede se se modelar a dinâmica
noção de catástrofe, desenvolvida na física. Resumi- populacional, fixando taxas de natalidade, de mor-
damente, o foco da teoria formula-se da seguinte for- talidade e de sobrevivência assumindo sempre que
ma: uma pressão sobre qualquer entidade induz-lhe quem se posiciona nos patamares mais elevados da
um movimento. Os incrementos na quantidade de hierarquia elimina os demais. Ou seja, a cadeia meta-
pressão são reproduzidos na extensão do movimento. bólica seleciona os que apresentam maior performan-
Esta linearidade reproduz um comportamento típi- ce. Todavia, na realidade não é exatamente assim que
co. Menos comum, mas não menos possível, é que acontece, o que obriga a que se questione a validade
por via de pressões ínfimas decorram, como respos- do modelo dinâmico para representar o “sistema real”
tas, rupturas dramáticas. Este tipo de resposta é de- (Albeverio et al., 2008).
signado por catástrofe. Os sistemas urbanos são, por definição, difíceis


Figura 1: Perspetiva sincrônica da interligação de trajetórias de desenvolvimento em sistemas urbanos4

4 Num sistema complexo os trajetos de desenvolvimento, estão em permanente reconfiguração. Uma crise ou um distúrbio (uma interferência
nas múltiplas configurações que se estabelecem entre as estruturas) podem aproximar o sistema de um limiar, ou fazer com que este seja ultrapas-
sado. Aqui, iniciam-se novos trajetos que, por sua vez, hão-de estruturar uma nova configuração para o sistema.

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artigos

Figura 2:
Interações num
de delimitar, pelo que as configurações propostas, agregação coletiva (com forte ou fraca coesão), ema- sistema que entra
por norma, desenham-se por referência aos propósi- nam estruturas de regulação social. Bretagnolle et al., em colapso quando
é simplificado; com
tos a que se destinam. São sistemas abertos pelo que (2006) apresentam o exemplo da evolução das cida- base em Albeverio
evoluem constantemente, incorporando mudanças des francesas, nas últimas décadas, afirmando que, et al.(2008)
técnicas, sociais, administrativas, ou de qualquer independentemente das variações de tipo funcional,
outra natureza. Resultam da articulação, interação dimensão, localização, de um modo geral, todas
e sobreposição de múltiplas redes. Categorizar a sua mostram capacidade de se adaptarem rapidamente às
estrutura, atribuindo-lhe estas dimensões de comple- várias ondas de inovação técnica e social. Tal resul-
xidade, não conduz à conclusão de que a organização tou, na maior parte dos casos, de comportamentos
dos sistemas urbanos obedece a princípios estocás- de imitação que não obedecem a uma cadeia hierár-
ticos. Não obstante as diferenciações que se possam quica de transmissão de indicações. O padrão apro-
estabelecer entre os nós do sistema urbano (ou da xima-se mais de um arranjo de fragmentos sobre-
multiplicidade de interações que possam ocorrer postos que se vão contagiando a partir de qualquer
nas suas fronteiras), é certo que as suas trajetórias de posição ou localização. A completude desta estrutura
desenvolvimento assentam em alguns denominado- é de difícil definição e desvia-se da possibilidade de
res comuns. Capacidade de adaptação à mudança, enquadramento em esquemas do tipo hierárquico.
adaptabilidade, seletividade, cooperação e imitação O sentido geral da trajetória do sistema urbano
(Bretagnolle et al., 2006) são algumas dessas caracte- incorpora, por esta via, interações geradas entre os
rísticas transversais. elementos da microescala, ao mesmo tempo que res-
ponde aos que se forjam no plano da macroescala.
Geram-se (ou anulam-se) assim, continuamente,
EM CONCLUSÃO novas propriedades. Articulando hierarquia-policen-
trismo-monocentrismo-policentrismo-fracionamen-
Os sistemas urbanos resultantes das mais variadas to-complexidade amplifica-se a compreensão das
contingências (determinada distância a uma metró- dinâmicas urbanas recentes. Apesar de constituírem
pole, partilha de uma identidade cultural ou geográ- diferentes focos (que tanto podem ser vistos de modo
fica, pertença a uma bacia de emprego, a uma domi- isolado como através da sua interação dicotômica)
nância funcional ou a uma parceria circunstancial) sobre os dispositivos que captam as relações entre
reproduzem uma miríade de comportamentos co- polos urbanos, quanto maior o esforço de integração
letivos que no extremo se disseminam, deixando de entre as diferentes leituras, maior será a capacidade
responder a um núcleo de controle, não raras vezes, de interpretar e de potenciar a teia de fluxos que os
afirmam mecanismos de auto-organização. Dessa configuram.

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 33


artigos

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artigos

Monique Bentes Machado Sardo Leão


José Júlio Ferreira Lima

Reassentamento involuntário em
projetos de saneamento em Belém do Pará

Resumo
A principal estratégia de intervenção para melhorias em assentamentos precários em
Belém do Pará tem sido por meio de projetos de macrodrenagem com o objetivo de
sanear e integrar essas áreas a malha formal da cidade. Por sua vez, os projetos geram
alto número de deslocamentos involuntários. Ao analisar experiências de reassentamento
ocorridas em Belém, questiona-se a operacionalização das políticas operativas para re-
assentamento involuntário de agências internacionais de financiamento (Banco Mundial e
Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID) e a capacidade de promoverem a trans-
Monique Bentes
formação urbana que pretendiam. Há uma dificuldade para soluções de reassentamento
Machado Sardo Leão
é graduada em Arquitetura e Urbanismo
na cidade, levando ao confronto do discurso das políticas operativas com o formato final
pela Universidade Federal do Pará (2010),
do reassentamento. Apesar do reassentamento, ao longo do tempo, adquirir um papel Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela
importante na forma de compensação para a população deslocada, observa-se que as Universidade Federal do Pará - PPGAU/
políticas operativas tendem a ser uma universalização de soluções, levando a limitação UFPA (2013). Atualmente é professora
dos cursos de arquitetura e urbanismo da
de estratégias de reassentamento.
Universidade da Amazônia (UNAMA) e da
Palavras-chave: Reassentamento; Remoções; BID; Banco Mundial; Cidade de Belém; Universidade Federal do Pará (UFPA).

Estado do Pará. monique.bentes@gmail.com

Abstract
The main upgrading intervention strategy in slums in Belem has been through major José Júlio Ferreira Lima
drainage projects in order to reorganize and integrate these areas in the formal fabric of é graduado em Arquitetura pela Univer-
sidade Federal do Pará (1986), mestrado
the city. In turn, the projects generate a high number of involuntary displacement. The em Arquitetura - Fukui University (1991),
analysis of resettlement experiences occurred in Belém Pará state, this paper questions mestrado em Desenho Urbano - Oxford
the implementation of operational policies for involuntary resettlement devised by inter- Brookes University (1994) e doutorado em
Arquitetura - Oxford Brookes University
national funding agencies (World Bank and Inter-American Development Bank - IDB) and
(2000). Atualmente é professor associado
the ability to promote urban transformation as planned. There is a difficulty for resettle- da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
ment solutions in the city, three cases studies indicate a confront of operational policies’ e dos Programas de Pós-graduação em
discourses with the final resettlement. Despite the relocation, over time, have a major Arquitetura e Urbanismo e de Geografia
da Universidade Federal do Pará e pes-
role in compensation for displaced people, it is observed that the operating policies tend
quisador do Observatório das Metrópoles,
to be universal solutions, leading to limiting relocation strategies. Núcleo Belém.

Keywords: Resettlement; Remotions; IDB; World Bank; City of Belém; Pará state. jjlimaufpa@gmail.com

____________________
Artigo recebido em 19/06/2016
artigos

INTRODUÇÃO tados e à eclosão de movimentos sociais em defesa


do direito à moradia e melhoria das condições de
A remoção e o reassentamento são ações que impli- vida nas favelas (Bueno, 2000; Maricato, 2011). Nos
cam mudança de uma população de um local para meios acadêmicos, observam-se diversos trabalhos
outro através de um deslocamento involuntário. O contrários às remoções e que discutiam o processo
termo “remoção” pode ser entendido como o proces- de urbanização das cidades, colaborando para denun-
so de retirada da população de suas casas e ou terras, ciar e para entender seus efeitos. Esses movimentos
ocorrendo de forma pacífica, através de negociações e contribuíram para construção de uma nova forma de
devida entrega de compensações pela perda dos bens pensar o urbanismo e para a nova política que seria
ou de forma forçada. Segundo a ONU, remoções formulada com a redemocratização do país no final
forçadas (tradução do termo forced eviction) ocor- da década de 1980.
rem quando há violação de direitos humanos, com a Apesar do avanço legal das políticas urbanas,
presença de ilegalidade e/ou quando não é garantida ainda se observam processos de remoções e reassen-
para as famílias a segurança de uma moradia (Un- tamentos não pacíficos e desrespeitosos quanto aos
-Habiat, 2011). direitos da população. No Brasil ainda é possível
O termo “reassentamento” refere-se à transferên- observar casos considerados retrógrados, com a pre-
cia de pessoas de seu local de origem para algum as- sença de despejos forçados ou indenizações baixas
sentamento planejado. O reassentamento é compre- que não solucionam o problema habitacional para
endido como uma estratégia voltada à resolução de os moradores. Os projetos trazem, em seu escopo, a
questões habitacionais para populações que sofrem preocupação em desvincular a imagem da remoção
deslocamento involuntário. Acredita-se que, mesmo com ares de limpeza social. As justificativas tendem
tendo a característica de ser introduzida de “forma a ser diferentes (ou nem tanto) das usadas no pas-
secundária” (já que sempre é pré-requisito de um sado. Remoções são justificadas frequentemente em
projeto maior), reassentamentos têm aparecido como nome do desenvolvimento econômico e da expansão
um padrão no tratamento dado à problemática ha- imobiliária, em que os pobres urbanos são os mais
bitacional, principalmente quando se trata de inter- atingidos (e prejudicados) com despejos que visam à
venções em assentamentos precários no país. Institui- liberação de terras (Maricato, 2011; Rolnik, 2012).
ções financeiras como o Banco Mundial e BID têm Assim, a remoção é uma marca da forma de segrega-
empregado amplamente o termo “reassentamento ção do processo urbano brasileiro, excludente para os
involuntário” (tradução de involuntary resettlement) pobres e a favor dos interesses econômicos.
para definir parte do processo de deslocamento em Neste trabalho são analisados episódios de remo-
projetos financiados pelas instituições. ção e reassentamento em intervenções urbanas em
Neste trabalho, há o interesse em abordar remo- Belém do Pará. Busca-se entender como essas ações
ções e reassentamentos que ocorrem em assentamen- vêm ocorrendo a partir do exame dos planos de re-
tos precários de áreas urbanas, como “pré-requisito” assentamento criados em programas de saneamento
de projetos de infraestrutura ou em programas de que apresentaram relevância, tanto pelo número de
urbanização de favelas. A trajetória de intervenções deslocamentos involuntários como pela dimensão
urbanas em áreas favelizadas no Brasil foi marcada da proposta de reassentamento. Nota-se em todos os
por ações de remoção. As primeiras intervenções da- estudos de caso a influência de políticas externas e o
tam a década de 1930, período marcado por uma modelo de intervenção relacionados ao Slum upgra-
visão preconceituosa, no qual estes espaços eram ding, modelo considerado o mais eficaz para a Or-
retratados como patologia, calamidade pública a ser ganização das Nações Unidas (ONU) e instituições
sanada (Valladares, 1980; Bueno, 2000). Assim, a econômicas nacionais e internacionais para interven-
prática mais usual por um longo período baseava-se ção em áreas de assentamento precário.
na erradicação de favelas, dentro de uma lógica em
que a retirada da população era defendida, tanto pela
vulnerabilidade ambiental a que estavam submetidas, O PAPEL DAS AGÊNCIAS
como por representarem uma “população marginal” INTERNACIONAIS NO
que deveria ser ressocializada em conjuntos habita- REASSENTAMENTO
cionais de preferência longe do centro das cidades,
com remoções, à base de força e violência (Valladares, Destaca-se o papel das agências internacionais de
1980; Bueno, 2000). financiamento na forma como o reassentamento
No período de 1970/1980 a remoção forçada e apresenta-se no país, sobretudo no que se refere às
insatisfação com os conjuntos habitacionais levaram políticas operativas das financiadoras que, por serem
a movimentos de resistência de moradores reassen- obrigatórias aos mutuários, são aplicadas como um

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artigos

conjunto de ações quase como “receitas de bolo”. As do plano de ação Cities without slums (cidades sem
agências financeiras começam a reorientar seus pro- favelas), que visava a difundir mundialmente um
gramas habitacionais, visando a extinguir ou a mini- consenso a respeito do slum upgrading como política
mizar o número de remoções dos projetos na década urbana mais eficaz de combate à pobreza urbana. Na
de 1970. Em 1976, com a I Conferência do Habitat, agenda da política urbana recente das agências, en-
a ONU exercia pressão nas instituições, além de que tram questões como a sustentabilidade de cidades e
havia uma questão econômica para estas, já que as da minimização da degradação do meio ambiente, é
experiências eram dispendiosas e demonstravam-se valorizada a noção de cidades competitivas e preza-se
ineficazes (World Bank, 2004). pela boa governabilidade e bom gerenciamento das
O Banco Mundial e BID orientaram projetos de cidades (Cavalcanti, 2008).
urbanização de favelas (slum upgrading) e autocons-
trução, a exemplo do Site and services projects lan-
Políticas operacionais
çado pelo Banco Mundial, em 1975, incentivando
de “reassentamento involuntário”
projetos de lotes urbanizados (Davis, 2006; Arantes,
2004). Os projetos seriam compatíveis com a escas- Nas décadas de 1990 e 2000, observa-se a consoli-
sez de recursos e a baixa capacidade de pagamento dação da influência das instituições financiadoras,
da população a que se destinavam e indicavam o como o Banco Mundial e o BID, nas políticas urba-
mutirão como meio adequado de diminuição dos nas no Brasil e em outros países em desenvolvimento.
custos e ampliação da participação (Bueno, 2000). A respeito do reassentamento, as diretrizes dos dois
O Banco defendia uma política habitacional através bancos têm cumprido um papel fundamental, atra-
de um método mais pragmático em relação às pos- vés da obrigatoriedade da adoção de suas políticas
sibilidades financeiras (ability to pay). Consideradas operativas (Operational Policies - OP), constituídas
mais “realistas”, deveriam compreender a capacidade de diretrizes para governos mutuários que definem
de pagamento dos pobres (affordability) e a possibili- estratégias de desenvolvimento e fornecem orienta-
dade de seu trabalho gratuito (self-help). ções para decisões operacionais.
Através do financiamento de lotes urbanizados e O Banco Mundial adota a OP 4.12 de 2001 (re-
urbanização de favelas em países do terceiro mundo, visada em 2013) e o BID a OP 710 de 1998, cujos
o Banco Mundial passa a exercer enorme influência objetivos se assemelham e têm como prioridade mi-
nestes países, o que permitiu a inserção de suas pró- nimizar impactos provenientes do reassentamento
prias teorias e parâmetros na política urbana brasi- e promover, sempre que possível, a recuperação da
leira (Davis, 2006). Essas orientações passaram a população em relação à situação anterior e melho-
ser observadas no Brasil em programas alternativos rar suas condições de vida (World Bank, 2001; IDB,
criados pelo BNH a partir de 1975. Destaca-se o 1999).
PROFILURB (Programa de financiamento de tra- O Banco Mundial adota orientações sobre reas-
mas saneadas) criado para financiamento de lotes ur- sentamento involuntário, na década de 1980, quan-
banizados, com infraestrutura básica, com ou sem a do estudos encomendados identificavam que as expe-
unidade habitacional, e o PROMORAR (Programa riências de reassentamento eram fracassadas devido à
de Erradicação da Sub-habitação) que tinha como série de impactos negativos como o empobrecimento
objetivo a erradicação ou recuperação de áreas faveli- da população deslocada (World Bank, 2004; Cernea,
zadas através de saneamento e urbanização, incluin- 2003). O termo “reassentamento” na OP 4.12 pos-
do o financiamento de moradias (Bueno, 2000). sui significado mais abrangente do que relocalização
O Brasil se tornou o principal laboratório de física, incluindo também medidas de compensação e
ações de urbanização de favelas pelo Banco Mundial reparação decorrentes de perdas econômicas e sociais
e pelo BID na América Latina (Arantes, 2004). Os causados pelo deslocamento (World Bank, 2004).
bancos financiaram projetos de infraestrutura (prin- Segundo a OP 4.12, o deslocado tem direito de rece-
cipalmente relacionados ao saneamento) e equipa- ber habitações ou local para habitar, é determinado
mentos públicos. Além de projetos físicos, os bancos que o mutuário do projeto preste apoio durante o
irão defender ações de política social, inserindo pro- período de transição do deslocamento e recomenda
jetos de capacitação profissional e geração de traba- que sejam ofertados para a população financiamento
lho e renda, relacionados aos novos princípios de de- de crédito e cursos de capacitação profissional, itens
senvolvimento adotados pelos bancos, que incluem que estariam ligados ao objetivo de promover o de-
como objetivo o combate à pobreza urbana, vistos senvolvimento (World Bank, 2001).
no Poverty World Development Report (Relatório de A trajetória do reassentamento no BID também
Desenvolvimento da Pobreza do Mundo) (1990) e se inicia na década de 1980, quando o reassenta-
na Cities Alliance (Aliança de cidades) (1999), através mento inicialmente estará incluído entre questões

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 37


artigos

socioculturais consideradas relevantes durante a O diagnóstico apontava densidade alta, problemas


preparação e análise de projetos. Em 1990, através com infraestrutura e habitação e indicadores socio-
do Comitê de Gestão de Meio Ambiente (CMA) se econômicos que revelavam um perfil de população
dá maior importância a questões de reassentamento pobre e de baixa escolaridade. Já neste material, eram
(IDB, 1998). Sendo, em 1998, aprovada a política identificadas as bacias estudadas como aquelas mais
operativa OP 710, específica para reassentamento próximas ao centro urbano consolidado e que apre-
involuntário, documento vigente atualmente (IDB, sentavam dados alarmantes sobre a qualidade de vida
1998; IDB, 1999). A OP 710 apresenta, como prin- na cidade.
cipais referências, os estudos realizados pelo Banco O diagnóstico serviu de subsídio para que fossem
Mundial (IDB, 1998). Nota-se a mesma preocupa- elaborados projetos de intervenção sanitária e urba-
ção em evitar o reassentamento ou minimizar sua di- na, cunhados como de recuperação de baixadas, re-
mensão, justificada pela complexidade, custos eleva- sultou na experiência piloto de intervenção em um
dos, além de ser uma atividade de risco, ou seja, que trecho de igarapé na bacia do Una e, posteriormente,
não consegue restaurar as condições socioeconômicas no projeto de macrodrenagem para a bacia como um
da população deslocada (IDB, 1998; IDB, 1999). O todo. Na década de 1990, são realizadas pelo poder
Plano de Reassentamento é visto como uma oportu- público outras obras voltadas para as baixadas, como
nidade para o desenvolvimento econômico e social, e a ocorrida na bacia do Tucunduba, experiência de
não apenas como uma atividade paliativa. Enfatiza-se intervenção de “urbanização de favelas” que trazia
ainda que o plano deve ser centrado na satisfação das conceitos novos para a ação habitacional na cidade,
necessidades das pessoas afetadas, em vez de somente porém só em parte concretizadas.
“abrir caminho para o projeto principal” (IDB, 1998, Após a virada do século, apesar de existirem ou-
p. 28). tros projetos que envolvam reassentamentos em Be-
Através da análise das diretrizes para reassenta- lém, destacam-se as obras na bacia da Estrada Nova,
mento formuladas pelas duas agências financiadoras, que, nesse momento, apresenta, entre as três bacias,
chega-se a conclusão de que há uma semelhança na a maior densidade populacional. A proposta se dife-
redação das duas políticas operativas em vigor, o que rencia das demais pelos objetivos do projeto “Portal
generaliza o procedimento. Documentos produzi- da Amazônia”, pensado para a orla do Rio Guamá,
dos pelas próprias agências indicam problemáticas que pretende a transformação urbana da área através
causadas por deslocamento e reassentamento, de- da mudança do uso do solo e de atividades sociais e
monstrando que há falhas no planejamento propos- econômicas.
to e na forma de atuação das instituições (Cernea,
2003; World Bank, 2004). O papel regulador das
Programa de Recuperação
políticas operativas, por conseguinte, necessita ser
das Baixadas (Igarapé São Joaquim)
mais explorado como instrumento de cobrança das
diretrizes. Acredita-se que a preocupação de viabili- O Programa de Recuperação das Baixadas (PRB) de
zar uma quantidade maior de empréstimos colabora 1976 surgiu a partir de um convênio entre a Prefeitura
para aprovações e acompanhamentos superficiais de Municipal de Belém (PMB), a Superintendência do
projetos. Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), o Depar-
tamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS)
e o Governo do Estado do Pará, como resultado do
PROJETOS DE SANEAMENTO EM diagnóstico “Monografia das Baixadas de Belém”
BELÉM E O REASSENTAMENTO (Sudam; DNOS; Pará, 1976). O PRB contava com
uma experiência piloto no Igarapé São Joaquim, na
Para o estudo de caso, são delimitadas experiências Bacia do Una. A proposta previa alojamentos provi-
de reassentamento que ocorreram em projetos de sórios para os remanejados e o retorno de famílias,
macrodrenagem em três bacias hidrográficas de Be- após o saneamento (Abelém, 1980). Porém, a solu-
lém, as bacias do Una, Tucunduba e Estrada Nova ção de reassentamento foi o conjunto Providência,
(Ilustração 01). A adoção das bacias hidrográficas é no então distrito de Val-de-Cães (aproximadamente
utilizada pela administração pública de Belém como 2,5 km de distância). Das famílias remanejadas, 222
unidade territorial de planejamento desde a metade receberam lotes de 150 m² com habitações construí-
do século XX. Na década de 1970, o trabalho deno- das pelo programa de Financiamento de Construção
minado Monografia das Baixadas de Belém (Sudam; ou Melhoria de Habitação de Interesse social (Ficam
DNOS; Pará, 1976) delimitava por bacias hidrográ- I) e 606 receberam lotes dotados com alguns serviços
ficas as áreas de “baixadas”, termo que fazia referên- de infraestrutura e obras complementares de urbani-
cia a características físicas e local de moradia pobre. zação (Abelém, 1980). O Conjunto Providência, que

38 nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis


artigos

recebia recursos do programa


Promorar, tinha como modelo a
produção de lotes urbanizados,
a exemplo das políticas urbanas
das agências internacionais da
época.
O processo de remoção rea-
lizar-se-ia por etapas, nas quais
era feita uma triagem para en-
quadramento no financiamento
habitacional, de acordo com a
renda familiar e as indenizações
a receber, as famílias eram enca-
minhadas para Companhia de
Desenvolvimento e Adminis-
tração da Área Metropolitana
de Belém (Codem) da Prefei-
tura ou para a Cohab. Segundo
Abelém (1980), em geral as fa-
mílias dirigidas à Codem não se
enquadravam nos requisitos do
Sistema Financeiro de Habita-
ção (SFH) em vigor, oferecen-
do-se dois tipos de casas ambas
com 31m², sendo a primeira
construída com madeira nova e
a segunda com madeira usada e
Ilustração 1:
aplainada procedente das casas Belém continental,
demolidas. A indenização pagava o valor total da casa das de compensação e reabilitação para os deslocados delimitação
ou parte dele, sendo que os proprietários não rece- e incentivar a participação social em todo o processo. das bacias
hidrográficas,
biam nenhum valor pecuniário. O Projeto Una traz aspectos novos no que diz destaca-se as
A população reassentada para o Conjunto Pro- respeito ao reassentamento. Haviam princípios que bacias objetos
de estudo
vidência sentiu reflexos no seu orçamento domésti- favoreciam o deslocado, como a garantia ao direito
co devido ao aumento nas despesas de alimentação, de compensação pelo deslocamento, seja este total
habitação e transporte. Muitos não puderam arcar ou parcial, e foi dada a opção de escolha para o mo-
com os custos do financiamento do SFH, fazendo rador, optando entre receber uma indenização em
com que desistissem ou repassassem a casa, levando, dinheiro ou receber a indenização em dinheiro e um
quase sempre, a família do mutuário a retornar/ocu- lote urbanizado indicado pelo programa.
par irregularmente outras áreas de baixadas (Vallada- Segundo o cadastro seriam necessários 2.460 lo-
res,1980; Abelém, 1989). tes urbanizados para o reassentamento, o que repre-
sentava 88% dos lotes previstos para remoção total.
Conforme reivindicação do movimento social, assim
Projeto de macrodrenagem
como o BID recomendava, procurou-se apontar lo-
da bacia do Una
tes próximos da área de intervenção, com distância
O projeto de Macrodrenagem da bacia do Una foi de no máximo 1,5 km, o que não foi realizado na
executado entre 1993 e 2004 pelo Governo do Esta- sua totalidade, justificado por questões financeiras
do, sendo considerado o maior projeto de saneamen- e dificuldade na desapropriação de terrenos (Pará,
to urbano da América Latina financiada pelo BID 1992). A principal solução encontrada foi a implan-
na época de sua execução (Pará, 2013). Notam-se, tação do Conjunto Paraíso dos Pássaros, que em sua
no Plano de Reassentamento, os princípios definidos concepção lembra o modelo site and services projects.
pelo BID no documento “Estratégias e procedimen- Construído entre 1996 e 1998, com recursos do Pró-
tos sobre questões socioculturais, relacionados ao -Moradia da Caixa, possuía 2.057 lotes urbanizados,
meio ambiente” de junho de 1990 (IDB, 1998). Este porém, cerca de 62% das famílias reassentadas se-
documento possuía princípios básicos para o reassen- riam deslocadas de áreas localizadas em uma distân-
tamento, entre eles: a necessidade de oferecer medi- cia maior do que 1,5 km.

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 39


artigos

O projeto urbano do conjunto oferecia infra- do imóvel (em geral, valor baixo, que dificultava a
estrutura básica e equipamentos públicos, além da compra de outra casa).
proposta da autoconstrução dirigida, com diálogo de Em 2001, foi lançado pela PMB, o Plano de De-
técnicos com a população reassentada. Neste sentido, senvolvimento Local (PDL) Riacho Doce e Panta-
a aproximação com a universidade contribui na in- nal, comunidades localizadas nas imediações da área
serção de princípios de urbanização de favelas e pro- de intervenção da primeira fase da macrodrenagem
visão habitacional de interesse social, à luz das discus- do Igarapé Tucunduba (Belém, 2001), atendendo
sões que se faziam no meio acadêmico. A consultoria diretamente 1.537 famílias. O PDL era financiado
técnica foi formada por um convênio entre a Cohab/ pelo Governo Federal através do Habitar Brasil/BID
PA e o Paru/UFPA (Programa de Apoio à Reforma (HBB), criado em 1999, com o objetivo de finan-
Urbana, vinculado à Universidade Federal do Pará). ciar projetos de urbanização de favelas. No entanto,
Prestava-se consultoria para a população no projeto o HBB, segundo Cavalcanti (2008), seria uma for-
arquitetônico, na construção das unidades e no pro- ma sutil da difusão da agenda urbana do BID para
cesso de definição da ocupação de cada lote. Contu- as cidades brasileiras através da obrigação de regula-
do, a proposta era limitada pelo orçamento, já que mentos e normas. O PDL também se alinhava às di-
as indenizações eram baixas, dificultando a execução retrizes da administração municipal, que defendiam
das obras e a qualidade final da moradia. Apontam- itens como a participação da população no processo
-se que as principais dificuldades de adaptação dos de gestão da cidade (Barbosa, 2003; Souza, 2004).
reassentados ocorreram pela localização do conjunto, Assim, o PDL propunha duas opções para o mo-
pois, estava, na época, desarticulado da malha urbana rador deslocado: participar do reassentamento pro-
da cidade. gramado para área (com direito a auxílio aluguel) ou
ser indenizado em dinheiro de acordo com a avalia-
ção do imóvel (Belém, 2001). Observou-se a parti-
Projeto de macrodrenagem Tucunduba
cipação da comunidade no processo de elaboração
O projeto Tucunduba foi resultante da revisão pro- do projeto habitacional, realizado através de reuniões
jetual de obras de macrodrenagem na bacia do Tu- com moradores e técnicos da PMB. O primeiro pro-
cunduba iniciadas na década de 1990. A revisão do jeto habitacional propunha 609 novas unidades ha-
projeto foi feita em convênio com a PMB e UFPA bitacionais, que possuíam diferentes tipologias e que
e trazia solução que preservava o leito natural do seriam distribuídas conforme a especificidades das fa-
igarapé Tucunduba (Barbosa, 2003). O projeto era mílias e procuravam atender a solicitação dos mora-
justificado por favorecer tanto aspectos ambientais dores (Belém, 2001). A primeira situação adversa ao
como culturais, facilitando a permanência do rio cronograma foi em dezembro de 2001, decorrente do
com a função de via para escoamento e comércio de incêndio na área que atingiu 96 famílias, exigindo a
mercadorias, própria da região amazônica. O com- construção de alojamentos provisórios. Outra adver-
prometimento com aspectos sociais e econômicos da sidade foi a inviabilização da desapropriação de um
comunidade levou o projeto a ser reconhecido pela terreno de 70.935,12 m² pertencente à União, mas
Caixa como umas das 20 Melhores Práticas em Ges- sob a posse da Cooperativa Habitacional de Funcio-
tão Local no Brasil e estar entre as 100 melhores do nários da UFPA (Belém, 2001).
mundo, do Prêmio Global de Excelência Best Prac- A segunda proposta foi elaborada prevendo a
tices and Local Leadership Programme, conduzido pelo construção de 27 blocos de apartamentos. Essa mu-
CNUAH/Habitat (Barbosa, 2003). dança, apesar de ter sido aprovada pela população
Inicialmente foi proposta a transferência de pes- (como a diretriz do HBB exigia) com 85% dos votos,
soas para locais que fossem próximos à área de in- em geral não foi bem vista, pois era contrária ao que
tervenção. Entretanto, pela dificuldade em encontrar havia sido discutido nas reuniões participativas (Sou-
terrenos que comportassem o número de famílias, za, 2004). Essa mudança de postura seria atribuída,
optou-se pelo reassentamento no conjunto Eduardo segundo os técnicos do PDL, à pressão do cronogra-
Angelim, localizado aproximadamente a 20 km do ma que a execução do projeto deveria seguir, sob o
local, com 382 unidades habitacionais de 25 m² em risco da perda do recurso (Souza, 2004). A posterior
lotes de 120 m² e 180 m², além de contar com uma troca de gestão municipal paralisaria a execução das
escola e posto de saúde (Barbosa, 2003). A dificulda- obras, que se estenderam por mais de uma década.
de na aceitação do conjunto, pela distância, e a rei- Isto leva à vulnerabilidade social das famílias pela in-
vindicação dos moradores resultaram na adoção de certeza sobre a moradia, além da sensação de descré-
novas estratégias, como a compra de casas, permuta e dito em relação ao projeto, que acabou não tendo a
indenização em dinheiro, estabelecidas pela avaliação participação social anunciada.

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artigos

Projeto de macrodrenagem da área), o que representa uma decisão contrária às


da sub-bacia 01 da Estrada Nova recomendações acerca da proximidade dos núcleos
de destinação de populações reassentadas. A propos-
O projeto de macrodrenagem da bacia da Estrada ta, a princípio, não foi bem aceita pela maior parte
Nova foi proposto pela PMB em 2006. O planeja- das famílias, pois havia a expectativa de não se afastar
mento das obras de macrodrenagem se deu através do local de origem, já que a área seria beneficiada
da divisão em quatro sub-bacias, que acabaram pos- pelo Portal da Amazônia, além da proximidade com
suindo diferentes projetos, linhas de financiamento a área central da cidade onde se tem acesso a ser-
e gerenciamento de obras1. As obras na Sub-bacia viços públicos (Belém, 2011). Segundo os técnicos
01 foram as primeiras a serem executadas, conta- do projeto, mesmo considerada inapropriada pela
vam com financiamento do BID e com uma equipe distância, a decisão tinha como fator principal a ne-
própria, composta por técnicos de várias secretarias cessidade de obedecer às diretrizes do BID, referente
da PMB. Em paralelo, a prefeitura levou a cabo a ao prazo máximo para que moradores recebessem o
implantação do que foi denominando de Portal da auxílio moradia, o que no caso dos moradores em
Amazônia, obra correspondente a uma proposta de questão já iriam completar dois anos.
requalificação das margens do Rio Guamá, através O conjunto recebeu 115 famílias. Apesar de
de aterro de terrenos do leito do rio para a consecu- projetos de acompanhamento, são descritas várias
ção de obras viárias e parque linear. Financiado com dificuldades que estas enfrentam com a mudança,
recursos federais (Ministério do Turismo e PAC Ha- como gastos com contas e transporte e atividades
bitação), o Portal da Amazônia incluiria a construção comerciais prejudicadas pela perda da clientela e da
de habitações em área antes ocupada na maior parte dinâmica do local de origem. Para os técnicos2, ape-
por vilas de palafitas. sar de considerarem a mudança complexa, sob uma
O planejamento do reassentamento da Sub-bacia perspectiva técnica e sanitária, aponta-se a qualidade
01 seguia como modelo a política operativa OP 710 ambiental melhorada e a oportunidade de moradia
do BID, sendo elaborados dois documentos: o Plano fora de uma situação de precariedade.
Diretor do Processo de Relocalização de População O plano de reassentamento para os atingidos
e Atividades Econômicas (PDR) e a criação do Pro- pelas obras do Portal da Amazônia seguia as reco-
grama Específico de Relocalização (PER), elaborados mendações da Caixa e empregava duas formas de
respectivamente em 2009 e 2011. O PDR propunha atendimento aos deslocados: a indenização em di-
a construção de habitações na área, recursos finan- nheiro e o reassentamento de famílias em situação de
ceiros para a aquisição de material de construção e risco, selecionadas conforme avaliação de técnicos da
de moradia própria, apoio técnico na elaboração e PMB (Belém, 2009). Durante o processo, relatou-se
execução dos projetos arquitetônicos e complemen- falhas de comunicação da Prefeitura com a popula-
tares e, indenização em dinheiro, sendo exposto que ção atingida; atrasos na entrega da habitação e do
proprietários de moradias afetadas, com valor infe- auxílio moradia; indenizações baixas e negociações
rior, também poderiam, como decisão, optar por in- arbitrárias. O Residencial Portal da Amazônia, loca-
denização em dinheiro, em substituição à permuta lizado próximo à orla, que contaria com 221 unida-
pela casa no conjunto habitacional. Algo que seria des, financiado através de recursos do PAC Habita-
desaconselhável, já que o valor baixo da indenização ção, encontra-se com obras paralisadas desde 2012.
não seria capaz de ajudar na aquisição de uma nova Do total das unidades, apenas 16 foram entregues,
moradia considerada adequada, colaborando para o enquanto as outras famílias, ainda não transferidas,
deslocamento dessas famílias para outras áreas precá- estariam recebendo auxílio aluguel. A troca da gestão
rias (Belém, 2011). municipal, em 2013, fez com que os projetos habita-
Segundo o PER, 355 famílias, no total, seriam cionais passassem por revisão, estando ainda incon-
deslocadas na sub-bacia 01, das quais 142 seriam re- clusos em junho de 2016.
assentadas (Belém, 2011). A solução para o reassen-
tamento foi a conclusão do Residencial Comandante
Cabano Antônio Vinagre, que seria utilizado para o SÍNTESE DA TRAJETÓRIA DO
reassentamento de famílias deslocadas pelas obras de REASSENTAMENTO EM BELÉM
duplicação da Av. João Paulo II (6,5 km de distância
Constata-se, na trajetória de reassentamentos em Be-
lém, a consolidação do padrão slum upgrading, em
1 As Sub-bacias 02, 03 e 04, com início de obras posteriores,
possuem recursos do governo federal através do PAC. A sub-
-bacia 02 é gerenciada pela Secretaria Municipal de Urbanis- 2 Informação obtida através de entrevista com técnicos em
mo – Seurb e a 03 e 04 pela Sesan. 2013.

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 41


artigos

projetos que visam à melhoria urbana e minimização a lógica econômica.


do reassentamento (Quadro 1). O Plano de Reassen- O método de avaliação dos imóveis tem induzi-
tamento, como instrumento, é utilizado para estabe- do a indenizações baixas. A avaliação mais usual é a
lecer garantias ao deslocados e desenhar alternativas partir do cálculo de materiais de construção e estado
para o atendimento aos atingidos pelas obras. No en- de conservação. Como parâmetro, utiliza-se a tabe-
tanto, quando as diretrizes das políticas das agências la Sinapi (Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e
financiadoras são aplicadas como modelos universais, Índices da Construção Civil), produzida pelo IBGE
há um distanciamento das especificidades regionais. e Caixa. Isto dificulta a negociação com moradores e
A tendência dos últimos reassentamentos é seguir a melhora nas condições de habitação do deslocado.
estritamente o modelo padrão recomendado pelos
agentes financiadores, pela preocupação em aprovar
projetos e, portanto, permitir execuções. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Pode-se dizer que a concepção dos projetos rara- IMPASSES DO REASSENTAMENTO
mente contempla medidas que modifiquem profun- EM BELÉM
damente a lógica que cria desigualdades, no acesso à
moradia para estas populações; ao contrário, são ado- Ações de reassentamento em Belém foram analisadas,
tadas soluções, já questionadas, como as que podem confrontando a orientação de agências financiadoras
levar à segregação. A urbanização de favelas, como internacionais e posicionamentos nacionais sobre o
modelo hegemônico, funciona mais como ideia do tema. Como os recursos para esses projetos urbanos
que como concepções técnicas de projeto efetivo. de grande escala tiveram como principal fonte de fi-
Observa-se que questões técnicas levaram a ajus- nanciamento, parte externa, em que o BID represen-
tes na forma do reassentamento em todas as experi- ta o maior contratante, tornou-se importante a in-
ências estudadas, como a dificuldade em desapropriar vestigação das políticas operativas de reassentamento
terrenos em locais próximos da intervenção. Em rela- desenhadas pelo Banco, as quais possuem grande in-
ção a proposta urbanística e habitacional, observa-se fluência do Banco Mundial. O slum upgrading, como
que não há estudos maiores que relacione a tipologia modelo de intervenção adotada nos projetos em Be-
Quadro 1:
Trajetória do regional da casa e/ou ligue ao modo de vida do mora- lém, foi, em si, representativo do(s) tratamento(s)
reassentamento dor. Em geral, quando há o esforço técnico, em busca dado(s) à questão das remoções e reassentamentos
em Belém,
conforme análise
de adaptação ao contexto local, este é limitado pelas na cidade. Conforme a permanência da população
dos estudos diretrizes das agências financiadoras e se mantém sob começa a ser apoiada, observou-se a inserção de al-
de caso

Posição sobre reassentamento das Agências Modelo de Projetos de reassentamento


Década
Internacionais intervenção urbana em Belém

A ONU combate remoções e defende reorientação PRB São Joaquim: Conjunto


Produção de lotes
de programas habitacionais. Providência (PROMORAR).
1970 urbanizados e
O Banco Mundial propõe modelos alternativos para Loteamento com financiamento
“autoajuda”
áreas favelizadas. da casa.

Primeiras diretrizes sobre o reassentamento são


inseridas na agenda dos bancos. Estudos sobre Projeto Una: Conjunto Paraíso
Urbanização de favelas e
1980 impactos de remoção e reassentamento. A prática dos pássaros. Loteamento com
autoconstrução.
de remoção é condenada, defende-se o direito do autoconstrução dirigida.
deslocado à compensação.

Diretrizes sobre o reassentamento são exigidas Urbanização de


em projetos financiados pelos bancos (OD 4.30 favelas, ênfase em Projeto Tucunduba: Conjunto
Banco Mundial/ CMA-BID). Reassentamento é visto sustentabilidade, boa Eduardo Angelim (com opção de
1990
como programa de desenvolvimento, com objetivo governança e estratégias permuta) a 20 km da área.
de melhorar as condições anteriores das famílias de desenvolvimento PDL: Reassentamento no local.
atingidas. institucional.

Projeto Estrada Nova:


Reassentamento no local e no
2000 Vigência das políticas operacionais (OP 4.12 Banco
Idem. Residencial Comandante Cabano
Mundial /OP710 BID).
Antônio Vinagre (a 6,5 km da
área).

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artigos

ternativas na forma de atendimento à população que BUENO, L.M. de M. Projeto e favela: metodologia
sofre deslocamento involuntário. para projetos de urbanização. Tese de Doutora-
Observa-se que a adoção da indenização finan- do. São Paulo, FAUUSP, 2000.
ceira como principal medida compensatória é pre- CAVALCANTI, Ana Cláudia Rocha. A difusão
judicial ao deslocado, pois simplifica, através do da agenda urbana das agências multilaterais
pagamento do valor monetário, a problemática ha- de desenvolvimento na cidade de Recife. Tese
bitacional que este deverá resolver. Conclui-se que a (doutorado), Desenvolvimento Urbano, Univer-
quantificação de indenizações financeiras (como úni- sidade Federal de Pernambuco. Recife: 2008.
ca forma de atendimento ao deslocado) é um indica- CERNEA, Michael. For a New Economics of
dor para consequências sociais mais desiguais. Ocor- Resettlement: A Sociological Critique of the
re uma problemática no planejamento e execução de Compensation Principle. In: International So-
reassentamentos em Belém. Há uma dificuldade em cial Science Journal, 2003, nr 175. Paris, UNES-
favorecer a permanência dos moradores próximo do CO: Blackwell.
local de origem, mesmo que isto esteja programado. DAVIS, Mike. Planeta Favela. Ed Boitempo. São
Apesar de a participação social ser incentivada, ainda Paulo, 2006.
é observada dificuldade de uma maior integração da IDB (Inter-American Development Bank). Invo-
população nas decisões do projeto. A execução de- luntary Resettlement Operational Policy and
morada das obras leva ao descrédito pela população Background Paper (OP 710). Washington,
atingida e à vulnerabilidade de famílias que esperam D.C. October 1998.
por suas moradias definitivas. MARICATO, Ermínia. O impasse da política ur-
A provisão habitacional, compensação justa e re- bana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.
organização social e espacial do local destinado aos PARÁ, Governo do Estado. Plano de Reassenta-
reassentamentos ainda são temas complexos para se- mento. Projeto de Saneamento para Recupera-
rem resolvidos. Considera-se necessário maior con- ção das Baixadas do Una. Belém: Companhia de
trole geracional dos projetos executados, além da re- Saneamento do Pará/BID, 1992.
visão de diretrizes, buscando soluções mais sensíveis _____. Relatório final Una. Belém: ALEPA/Comis-
às especificidades locais. são de Representação da Bacia do Una, 2013.
ROLNIK, Raquel. Remoções forçadas em tempos
de novo ciclo econômico. Carta Maior. Agosto
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ABELÉM, Auriléa Gomes. Urbanização e remo- id=20790>. Acesso em: 05 de junho de 2013.
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ARANTES, Pedro Fiori. O ajuste urbano: as políti- ocupação urbana do Riacho Doce (Belém).
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sertação (mestrado). Universidade de São Paulo, 2006.
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. SUDAM; DNOS; PARÁ, Governo do Estado. Mo-
BARBOSA, Maria José de Souza (Coord). Estudo nografia das baixadas de Belém: subsídios para
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Tucunduba, Gestão de Rios Urbanos - Belém/ 1976.
Pará (versão condensada). Belém: UFPA, 2003. UN-HABITAT. Forced eviction: Global crisis,
BELÉM, Prefeitura Municipal de. Plano de desen- Global solutions. United Nations Human Set-
volvimento local Riacho Doce e Pantanal. Vo- tlements Programme (UN-HABITAT). Nairobi,
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da Amazônia. Programa de Aceleração do Cres- The Worldbank, 2004.
cimento PAC. SEURB. 2009. ______________. OP 4.12, Involuntary Resettle-
___________. Plano Específico de Reassentamen- ment. The Worldbank, december 2001.
to – PER (Sub - Bacia 01 – Trecho 1). Programa VALLADARES, Lícia do Prado, Passa-se uma casa:
de Saneamento da Bacia da Estrada Nova PRO- Análise do Programa de Remoção de Favelas do
MABEN. 2011. Rio de Janeiro, Zahar, Rio de Janeiro, 1980. ▪
nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 43
ensaio

Fabiano Gozzo

Um olhar passageiro
01 - As torres de TV

A
da Avenida Paulista
Estação Brás do Metrô de São para seus afazeres cotidianos, para o e a vista para o
Paulo pode ser medida apenas trabalho, para o lazer, para os terminais Centro emolduradas
pelos prédios de
com superlativos. Segundo a rodoviários, para fazer integração com apartamentos.
administração do Metrô de São Pau- as dezenas de linhas de ônibus muni-
lo, são 23.350m2 de área construída, cipais e intermunicipais que fazem da
atendendo nos horários de pico 60 mil Estação Brás o seu ponto final.
passageiros por hora. Sua inauguração A região do Brás foi predominan-
aconteceu em 10/03/1979 e faz a liga- temente industrial até o começo dos
ção dos bairros da Zona Leste de São anos 1970, quando as poucas casas e
Paulo, a mais populosa, ao Centro da vilas de operários começaram a ter vizi-
cidade e aos demais bairros via malha nhos morando em novas casas, alguns
metroviária. prédios de apartamentos passaram a Fabiano Gozzo
Além de ligar a casa do paulistano fazer companhia para os escritórios e, é publicitário (Faculdade de Co-
ao trabalho, ainda é passagem obriga- mais recentemente, com os galpões ce- municação Social Cásper Líbero),
tória para mais de um milhão de usu- dendo espaço para mais moradias ver- pós-graduado em gestão ambiental
(Universidade 9 de Julho de São Paulo
ários diários que vêm dos mais de 30 ticais e até parques, num processo de - Uninove) e professor universitário
municípios vizinhos à capital paulista. reocupação e reurbanização da região nas áreas de propaganda, marketing e
De lá, as multidões embarcam para central de São Paulo. Antes reduto de administração.
longas jornadas de trem ou Metrô, imigrantes italianos, e durante décadas fabiano.gozzo@gmail.com

44 nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis


ensaio
ensaio

abrigo para migrantes nordestinos, hoje o Brás rece- por um instante, o que irá ver olhando a partir do
be povos andinos, como os bolivianos. estômago da grande baleia?
Este ensaio visa acompanhar a poética urbana E agora, após a colocação de barreiras de flandres
partindo do ponto de vista de quem vem de fora: nas laterais das vias suspensas, ainda é possível ver
o choque em ver tantas pessoas, muros altos, gigan- algo além do frio metal?
tescas colunas de concreto, galpões e telhados cin- Por fora, a pintura vermelha e branca disfarça a
zentos, a cidade emoldurada por prédios enormes, rudeza das vias, mas preserva a privacidade dos pré-
as indústrias que ainda sobrevivem, os trens de carga dios que foram construídos décadas após a chegada
e passageiros, que seguem seu percurso todos os dias do Metrô. O morador quer ter sua janela fechada
do ano, sem exceção, o brilho reluzente do aço pra- para os olhos dos usuários, e para isso, impede que,
teado dos vagões de passageiros, as cores e logotipos de dentro, o passageiro possa enxergar a cidade, os
das empresas de logística, o labirinto de cimento e prédios, a luz do sol e o horizonte cada dia mais dis-
ferro com piso de borracha pastilhada, produzida tante.
preta e agora acinzentada após os anos de uso. A Estação Brás do Metrô de São Paulo abre suas
Ao olhar a sua volta, o que um usuário vê? Ao se portas às 4:40h e encerra suas atividades à meia-noite
aquietar e observar, há algo a vislumbrar de dentro durante a semana, às 0:30 aos domingos e à 1:00h
da Estação Brás? Se o passageiro parar sua corrida aos sábados. ▪

02 - Os galpões centenários que abrigaram gerações operárias.


Alguns são parte do pátio do Metrô, usados para reparos. Outros
ainda estocam produtos carregados pelos trens de carga. Aos
poucos também devem ceder espaço a moradias e escritórios.

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 45


ensaio

03 - O encontro das linhas de Metrô, suspensas,


e as tantas linhas de trens intermunicipais.

(abaixo)

04 - Mesmo em meio a tanto ferro, pedras,


fuligem e borracha, árvores e plantas
persistem em acompanhar os trilhos. Aqui
o verde destoa do cinza onipresente e do
vermelho-ferrugem.

05 - Fim do expediente, mas a jornada ainda


será longa para passageiros e funcionários.

06 - A escuridão de paredes humanas,


movendo-se em grandes massas nos enormes
corredores, indo de trem para o Metrô ou
inverso. Não pare, você será arrastado.

07 - À esquerda, as chapas de aço recentemente colocadas impedem que o passageiro olhe, ainda
que involuntariamente, para as janelas dos prédios próximos. Ao mesmo tempo que preservam a
privacidade do morador, cegam o usuário, que, privado de movimento no vagão lotado, agora também
46 nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis está proibido de enxergar ainda que prédios distantes e lúgubres e velhos telhados de galpões.
ensaio

08 - Os trens de carga, a malha ferroviária, as torres de alta tensão e a pressa diária.


À esquerda, operários mantêm as linhas nos intervalos das passagens dos trens.

09 - As plataformas de embarque/desembarque,
o sair e o chegar de trens vindos dos quatro cantos.

(no centro)
10 - Fuligem, ferro, pedra e ausência de sorrisos entre
os rostos que passam apressados, desfocando e sumindo.

(acima)
11 - Grandes são as distâncias a percorrer, seja do
subúrbio, seja na grande metrópole. O trabalho não
é interrompido, noite ou dia, exceto pela passagem
de uma composição, atrasando em alguns instantes as
atividades dos operários nas vias.

(ao lado)
12 - Bem abaixo do braço da grua é possível ver ao longe
as torres da Catedral da Sé, que marca o centro de São
Paulo. No caminho, prédios novos e velhos coexistem na
nº 25que
cidade ▪ se
ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis
redesenha. 47
e
anr tsiagioos

13 - É dia claro, passado pouco do meio-dia, mas a luz é 14 - Transporte integrado. Metrô, trem
interrompida pelo telhado, o concreto, os muros. Segurança e metropolitano, linhas de ônibus e monotrilho.
proteção contra a chuva. Ausência de paisagem ou brisa. E milhões de passageiros todos os dias.

15 - Ferro, pedra e operários. As enormes máquinas


seguem seu caminho. A casa, ainda que próxima,
desaparece escondida atrás das armações.
48 nº 25 ▪ ano 6 | junho de 2016 ▪ e-metropolis
especial

Alice Vignoli Reis


Karoline Ruthes Sodré
Rafael Ostrovski

Derivas urbanas
e percursos subjetivos
um relato da experiência de produção do curso
“As cidades e a produção de subjetividades”

E
ste artigo pretende relatar a ex- tundentes apelos por uma vaga, o que
periência do curso de extensão nos mostrou uma necessidade latente
“As cidades e a produção de em discutir a cidade que produzimos e
subjetividades”, oferecido no primei- como esta cidade produz subjetivação,
ro semestre de 2016 pelo Programa de formas de vida.
Pós-Graduação em Psicologia da Uni- A ideia de conceber e oferecer um
versidade Federal do Rio de Janeiro curso de extensão com esta temática
(UFRJ) e ministrado pelos mestrandos surgiu no âmbito do grupo de estu-
em psicologia Alice Vignoli Reis, Pe- do Cidades e Subjetivação (cujo nome
dro Legey de Abreu Lima e Karoline também inspirou o título do curso de
Ruthes Sodré e pelo graduando em extensão), ao longo do ano de 2015.
psicologia Rafael Ostrovski. Fomos O primeiro encontro se deu entre os
convidados pela revista e-metropolis a mestrandos Karoline Ruthes, Pedro
Alice Vignoli Reis
relatar esta experiência devido ao inte- Abreu e Lima e Alice Reis, em vista
é graduada em psicologia (USP) e mes-
resse pela relação estabelecida no curso de projetos de pesquisa que versavam tranda em psicologia pela UFRJ.
entre os estudos urbanos e os estudos sobre o tema da cidade e da produção alice.v.reis@gmail.com
no campo da produção das subjetivi- de subjetividades, porém com enfo-
dades. Nos parece que talvez este deba- ques diferentes: Alice estuda a relação
te ainda esteja pouco aprofundado no entre os processos de subjetivação e a Karoline Ruthes Sodré
é graduada em psicologia (UFRJ) e
campo acadêmico, apesar de alguns te- segregação socioespacial, a partir de mestranda em psicologia (UFRJ).
óricos já trabalharem de maneira con- um trabalho performático, realizado
karoline.ruthes@gmail.com
sistente esta relação, como a professora junto a jovens da Favela da Mangueira,
Paola Jacques Berenstein (UFBA). Ao em torno de práticas de convivência e
divulgarmos o curso, fomos surpreen- circulação no espaço da cidade; Pedro Rafael Ostrovski
didos pela quantidade de pessoas que estuda a criação de subjetividades e tec- é graduando em Psicologia (UFRJ).
se interessaram pelo tema e pelos con- nologias de mobilidade, mais especifi- rafael.ost3@gmail.com

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 49


especial

camente no que diz respeito ao uso da bicicleta e do des eram muitas, mas foi necessário realizar escolhas,
automóvel em territórios urbanos; e Karoline estuda para adequar os temas ao tempo possível do curso.
as possibilidades de criação do “comum” na cidade, Sentíamos a necessidade de que as aulas pudessem
partindo das experiências de ocupações culturais no se expandir para além do espaço da universidade,
espaço urbano. Como este debate sobre as cidades e, por isso, decidimos que haveria também derivas
está incipiente no campo da psicologia, embora seja pelo espaço público e visitas a ocupações, durante as
bastante atual e esteja cada vez mais intenso, Karoline quais fosse possível uma vivência coletiva do espaço
e Pedro resolveram organizar esse grupo de estudos, da cidade, de forma a fortalecer e enriquecer nossas
ao qual Alice se agregou. Posteriormente, Rafael, que possibilidades de reflexão sobre a temática urbana.
escreve monografia sobre artistas de rua independen- Também decidimos que as aulas seriam conduzidas
tes, também se juntou ao grupo. de forma dialogada e aberta.
No Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Dessa maneira, o curso ficou formatado em doze
UFRJ, há a possibilidade de os alunos de pós-gra- encontros semanais, de três horas cada, com duas au-
duação oferecerem cursos de extensão universitária, las fora da universidade e duas aulas de reverberação
o que acaba se configurando como uma oportuni- após essas experiências. Os temas que elegemos fo-
dade de experiência docente e também de expandir ram os que estavam reverberando para cada um em
a abrangência do conhecimento produzido na aca- nossas próprias pesquisas. Os textos dialogavam entre
demia. Consideramos que é fundamental ampliar o si, com autores de várias áreas, e, assim, sinalizavam o
acesso a este conhecimento, de forma que os saberes quanto esse tipo de estudo emergia na transdiscipli-
produzidos na academia não fiquem apartados da vi- naridade, não sendo o debate exclusivo de uma única
vência do mundo e nem restritos àqueles engajados área de conhecimento. No decorrer do curso conver-
na produção. Este engajamento na pesquisa acadêmi- samos com os textos de Suely Rolnik, Raquel Rolnik,
ca ou científica acaba muitas vezes por ter um caráter David Harvey, Félix Guattari, Michel de Certeau,
instrumental, de obtenção de um título, de cumpri- Richard Sennett, Guy Debord, Paola Jacques, Mar-
mento de normas do produtivismo acadêmico e se celo Lopes de Souza, Antônio Risério, entre muitos
desvia de seu aspecto fundamental, que é aprofundar outros.
o saber coletivo sobre a experiência do e no mundo. Durante o percurso tivemos algumas surpresas.
Consideramos que a possibilidade de ministrar um Ao fazermos a divulgação do curso nas redes sociais,
curso de extensão nos reaproxima deste aspecto e do nos surpreendeu o grande interesse das pessoas: 180
sentido de estarmos enredados em uma pesquisa de pessoas inscritas, com cartas de intenções (item so-
mestrado, além de contribuir para a real sustentação licitado para seleção ao curso) interessantíssimas e
da universidade no famoso tripé: ensino, pesquisa e variadas, que narravam experiências e vontades di-
extensão. ferentes, cada um à sua maneira. Seria um desafio
No final do ano de 2015, movidos pelo interesse escolher as pessoas que preencheriam as 35 vagas
em compor com a extensão universitária, começamos que havíamos estipulado para o curso. Inicialmente
a pensar em construir um curso no qual pudéssemos seriam 25 pessoas, mas aumentamos a oferta de vagas
discutir o tema da produção de subjetividades e a ci- devido à grande procura. Elaboramos critérios que
dade. Nos reunimos algumas vezes para levantar as a seleção seguiria, divulgando-os a todas as pessoas
ideias, os temas, os textos, as nossas expectativas e interessadas:
nossas possibilidades de tempo. Tínhamos até mea- 1. O quanto a carta de intenções estava afinada
dos de fevereiro para fecharmos a proposta e subme- com o objetivo do curso;
tê-la ao edital dos cursos de extensão da UFRJ. 2. Pessoas que fazem parte de movimentos so-
Foram dois os blocos que escolhemos para tra- ciais e/ou coletivos que pensam e fazem in-
balhar no curso: os processos de segregação socioes- tervenções que abordam a temática do curso;
pacial em curso nas cidades e a experiência sensível 3. Professores e funcionários da rede pública de
dos corpos na cidade. São temas que vimos a neces- educação;
sidade de abordar tanto pela aproximação com as 4. Estudantes de diferentes cursos e áreas de co-
nossas pesquisas quanto pela urgência desses debates nhecimento.
nos espaços de formação e discussão fomentados pela Dessa forma, o grupo ficou composto por estu-
universidade. dantes e professores de diferentes cursos, lugares, ida-
A escolha dos textos e materiais didáticos foi fei- des, militâncias. Para exemplificar a mistura: as pes-
ta coletivamente pelas quatro pessoas envolvidas no soas vinham de cursos de teatro, geografia, educação
projeto do curso e divididos entre as aulas que foram física, arquitetura, dança, psicologia, de militâncias
organizadas tematicamente. As ideias e possibilida- na Vila Autódromo, Zona portuária, Observatório

50 nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis


especial

de Favelas, Massa Crítica, Colégio Pedro II, Teatro – Sobre a visita à Horta Comunitária do Gra-
de Operações e rádios livres. Durante o curso, bus- jaú, os membros do grupo relataram que entrar em
camos construir uma linguagem comum, que apro- contato com um espaço de terra acessível dentro do
fundasse as discussões dos textos propostos, mas que bairro e cuidado de forma comunitária fez com que
não fosse hermética a quem não estivesse habituado se conectassem com a ideia do direito à terra e com a
com determinado autor ou conceito. Pensamos for- possibilidade de cuidá-la. Observaram também que
mas de aula que não prendessem os sentidos em uma mexer com a terra cria o sentimento de comunidade
única direção, procurando tanto variar a disposição e ressaltaram o fato destes frutos da terra ficarem dis-
das cadeiras (ora em círculos pequenos, ora em gran- poníveis a quem quer que quisesse colhê-los;
des; sem sentar duas vezes no mesmo lugar), quanto – Da visita ao Quilombo da Serrinha, os partici-
circular as vozes (atentando para o tempo de fala): pantes destacaram a possibilidade do encantamento
menos teatro, mais ágora. do espaço e o quanto este era bem cuidado e habi-
O exercício de pensar e organizar as aulas tem tado. O contato com as aulas de jongo fez com que
sido de grande contribuição para a escrita de nossas pensassem sobre a memória do corpo e a importân-
dissertações. Reler os textos que indicamos na bi- cia de “resistir para garantir que meus ancestrais con-
bliografia, pensando em como discuti-los, faz com tinuassem vivendo em mim”;
que as palavras e ideias ganhem maior densidade e a – Da visita à Vila Autódromo, foram marcantes
discussão das ideias nas aulas aprofunda e diversifica as casas ausentes, que foram demolidas pelo Estado
nossas compreensões e conceitos. Cada participante e o fato dos terrenos terem sido doados para grandes
traz uma singular composição de cidade inscrita em empreiteiras, como Odebrecht e Cyrela;
seu corpo e contribui com suas experiências, leituras – Da visita ao Centro de Educação Multicultu-
e ideias. ral da Serra da Misericórdia, cuja sede ocupa uma
Até o momento, vivemos uma das aulas fora do alocação que havia sido de uma das pedreiras que
espaço da universidade: a visita às ocupações. Os explora o local, o grupo ressaltou a percepção de uma
locais de visitas, definidos junto aos participantes, colonização do espaço e da terra e a importância da
foram: Ocupação Vito Gianotti, Vila Autódromo, resistência a essa colonização. Ressaltaram também a
Quilombo da Serrinha, Centro de Educação Cul- surpresa de descobrir um espaço com tanta beleza e
tural Serra da Misericórdia, Horta Comunitária do natureza tão próximo ao espaço construído da cidade
Grajaú e Escola Cairu. A princípio, pensávamos em e também a surpresa de descobrir, em um tempo de
nos restringir às ocupações vinculadas ao tema da tanta escassez de água, que a Serra tem 14 nascentes.
moradia, mas surgiu no grupo a necessidade de visi- De todos os relatos, ficou muito marcada a rela-
tar também outros tipos de ocupação, e uma pessoa ção entre as ocupações e uma relação de cuidado com
definiu as ocupações de uma forma mais abrangente, o espaço, e também de um espaço voltado, de fato,
como “espaços de resistência e cuidado dentro da ci- para a habitação. Esta palavra vem do latim habitare,
dade”. cujo significado é viver em, morar e está relacionada
Após a visita, compartilhamos os relatos das ex- à palavra habere –- “possuir, ter, manter”. A palavra
periências, que foram realizadas em grupo. Os relatos “morar”, por sua vez, vem do latim morari que quer
e a discussão foram bastante potentes e trouxeram dizer “retardar-se, ficar, viver”. As ocupações parecem
inúmeros elementos para pensar a cidade. Embora revelar espaços voltados para a vida e não para pro-
não seja possível registrar aqui todos os elementos, pósitos outros, estranhos a este caráter vital da exis-
devido a uma limitação de espaço de texto e da me- tência.
mória, seguem alguns pontos que ficaram registrados Ainda faremos uma deriva pelo centro da cida-
em nossos cadernos e em nossas lembranças acerca de, centrada na escuta da paisagem sonora urbana.
do dia: Com esta aula, procuramos propor outras formas de
– Da visita à Ocupação Vito Gianotti ficou re- habitar o espaço da cidade a partir dos sentidos do
gistrado o quanto uma militância e a luta pelo direi- corpo, para poder pensar sobre a relação entre cidade
to à moradia se articulam com a necessidade básica e experiência sensível.
de ter um teto para morar e sobre os desafios e a Movidos pelo elaborar desta escrita, e como for-
potência da autogestão de um espaço de habitação ma de fazer com que as vozes dos participantes tam-
coletiva e também sobre o trabalho de recuperar um bém constassem nesse relato, na aula do dia 30 de
prédio abandonado pelo poder público, tomado pela maio perguntamos a eles o que estavam achando da
vegetação e sujeira, de tornar o espaço habitável e da experiência do curso. Este também foi um momen-
incoerência da insistência deste poder em deixar o to de surpresa para nós – não esperávamos ouvir os
espaço desabitado e descuidado; aspectos que foram pontuados. Relataremos alguns

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 51


especial

destes aspectos que ficaram registrados em nossas espaço de estudo assim afirma uma temporalidade
anotações: que atualmente é muito difícil de viver.
– Foi falado que a maneira como organizamos a A construção coletiva do curso tem sido para nós
aula quebra a forma hierarquizada de transmissão do uma experiência enriquecedora em muitos sentidos:
saber, e todos se sentem participantes na construção como combustível para nossas pesquisas, como labo-
do conhecimento, além de que o fato do curso ter um ratório para nossas intervenções como pesquisadores
caráter aberto e democrático não faz que ele perca o e professores, como espaço para o “comum” no âmbi-
caráter acadêmico; to da produção interdisciplinar e como território de
– Uma das participantes afirmou que o curso a ventilação da própria academia, que na experiência
auxilia a pensar maneiras de quebrar as formas he- da extensão encontra a real possibilidade de abertura
gemônicas de dar aula, nas quais seja possível uma e articulação com as diferentes áreas de conhecimen-
maior troca de ideias entre os alunos. Ela relatou que to e atuação, assim como também com os temas de
o seu caderno está cheio de anotações de falas dos relevância para a sociedade com a qual, por vezes, a
colegas e ressalta o fato de passarmos anos na univer- academia pouco se relaciona.
sidade sem entrar em contato com o pensamento das Entre nossos futuros projetos, logo após o encer-
pessoas que estudam conosco. ramento do curso, estão os planos de organizar, jun-
– Um arquiteto que faz o curso pontuou que a to às pessoas que participaram, um seminário aberto
diversidade de áreas de formação dos participantes do no qual as questões abordadas nesse percurso se ar-
curso enriquece o debate. Ele disse que em sua área a ticulem com as áreas de interesse dos participantes.
discussão sobre a cidade é constante, mas que ele não Também é nosso objetivo retornar com o grupo de
via conexão deste debate com outras áreas do conhe- estudos Cidades e Subjetivação, que acontecerá no
cimento e que também não imaginava que esse tema campus da Praia Vermelha, com horário, dia e local
fosse tão amplamente discutido na geografia. ainda a confirmar. No decorrer do ano de 2015, o
– Uma geógrafa se surpreendeu com a afirmação, grupo funcionou de maneira muito aberta e autoge-
uma vez que o conceito central estudado na geografia rida. Qualquer um dos participantes podiam trazer
é a organização do espaço, mas, por sua vez, disse que para o grupo os desejos de leitura e estudo. Líamos
não imaginava que este debate pudesse ser realizado os textos durante o encontro, debatendo durante a
no âmbito da psicologia. leitura. Pretendemos manter esse formato de leitu-
– Uma outra pessoa afirmou que a palavra que a ra e participação. Também desejamos organizar mais
tem atravessado na experiência do curso é a palavra um curso de extensão que verse sobre o mesmo tema,
COMUM: “como construímos comum a partir da com previsão para o ano que vem.
troca de ideias e como o comum tem nos atravessado Como primeira experiência do curso, já
e nos trouxe até aqui”. Ela afirmou também que o conseguimos visualizar com mais clareza nossos
sentido da palavra OCUPAÇÃO lhe tem reverbera- acertos, nossos equívocos e as possibilidades de
do muito, e que o mais interessante para romper com ação que poderiam ser mais abrangentes ou mais
formas hegemônicas de estar na cidade é estar junto, específicas. Nossa vontade de produzir outro curso
trocar. é também um desejo de amadurecer a experiência,
– Alguém se lembrou do primeiro dia de aula e testando outros métodos, textos e reflexões, mas
disse que foi um dia de euforia, pois havia muita ex- mantendo o tema e o formato, explorando a
pectativa em relação ao curso e apontou como posi- heterogeneidade dos participantes
tivo o fato de havermos trazido uma proposta sobre
a visita às ocupações e termos permitido que ela fos-
se mudada e ampliada. Também foi pontuado que ALGUMAS REFERÊNCIAS
a experiência na ocupação foi significativa e seguiu
reverberando através das semanas. ARAÚJO, Débora. A mulher e o direito à cida-
– Um dos participantes disse que os encontros de. Disponível em: http://blogueirasfeministas.
permitiram “materializar o que é a produção de sub- com/2015/07/a-mulher-e-o-direito-a-cidade/
jetividade”. BENJAMIN, W. O flaneur. In: Charles Baudelaire:
– O curso foi apontado como espaço de reflexão, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:
de produção de conhecimento, de acolhimento e Brasiliense, 1994. p. 33-65.
fortalecimento mútuo; como possibilidade de pen- CAIAFA, Janice. Aventura das cidades: ensaios e
sar em novos jeitos de fazer intervenção, novas ideias etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
para ocupar a cidade; como espaço de rebelião contra p. 89-92.
modos de vida hegemônicos. Constatou-se que um CHAPOLIM; Seixas, Vladimir. Atrás da porta.

52 nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis


especial

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JACQUES, Paola B. Corpografias urbanas. In: Ar- Acessado em 7 jul. 2016. ▪

nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis 53


entrevista

Marie Huchzermeyer

Por uma leitura


léfèbvriana da periferia
Marie Huchzermeyer é professora da Escola de Planejamento e
Arquitetura na Universidade de Witswatersrand em Joanesburgo.
Sua pesquisa trata de políticas de habitação e assentamentos
informais em diferentes contextos a partir de uma perspectiva
histórico-política de garantia de direitos. Em 2004, ela publicou
seu primeiro livro “Unlawful Occupation: Informal Settlements
and Urban Policy in South Africa and Brazil” (Africa World Press),
seguido por outros dois livros em 2011: “Tenement Cities: From
19th Century Berlin to 21st Century Nairobi” (Africa World Press)
Entrevista realizada por
e “Cities with ‘Slums’: from Informal Settlement Eradication to
Erick Omena
a Right to the City in Africa” (UCT Press). Atualmente, Marie Mestre em Planejamento Urbano
e Regional pelo Instituto de Pesquisas
Huchzermeyer está desenvolvendo um estudo sobre a relação
e Planejamento Urbano e Regional
da produção intelectual de Henri Léfèbvre com suas viagens à (IPPUR) da UFRJ e Bacharel em
Turismo. Atualmente é doutorando em
América Latina. Nessa entrevista, ela enfatiza a importância de Planejamento Urbano na Oxford Brookes
University.
interpretações do direito à cidade a partir do ponto de vista de
____________
regiões semi-periféricas e seus movimentos sociais urbanos, além
Tradução: Erick Omena
de abordar outros assuntos relacionados. Revisão: Pedro Paulo Machado Bastos

54 nº 25 ▪ ano 7 | junho de 2016 ▪ e-metropolis


entrevista

Erick Omena de Melo: O influente –, que demandava urbanização durante o período


conceito de direito à cidade colocou de luta contra o apartheid. Um grupo de profissio-
o valor de uso do espaço urbano no
nais progressistas se organizou dentro destas ONGs,
centro de uma nova pauta política
e reconfigurou as possibilidades
presentes nas principais cidades do país, colaboran-
de pessoas comuns intervirem do muito para a constituição desse espaço de lutas
na produção do espaço. Isso está urbanas. Contudo, houve uma grande mudança em
diretamente relacionado com a 1994, quando o governo ganha legitimidade, fazen-
exigência, por parte de movimentos do com que o espaço dessas ONGs começasse a se
sociais urbanos, de um certo
dissipar. E o governo inicialmente passou a atender
protagonismo popular, representado
pelas ideias de “cidadanias
uma boa parte das demandas até então levantadas
insurgentes” e “planejamento de por elas. Só que, depois de dois anos, em 1996, o
base”. Como você vê as diferenças novo governo assumiu um caráter bem neoliberal.
e semelhanças desses processos na Consequentemente, as políticas de cunho mais par-
África do Sul e no Brasil? ticipativo foram abandonadas. Ao mesmo tempo, as
Marie Huchzermeyer: Eu posso falar mais detalha- políticas públicas centradas na promoção do cresci-
damente sobre a África do Sul. E, de diversas ma- mento econômico se tornaram mais proeminentes
neiras, a África do Sul fica para trás em relação ao e o planejamento passou a ser ditado de cima para
Brasil. Isto porque apenas recentemente a população baixo. E assim o desenvolvimento urbano passa a ser
da África do Sul se tornou majoritariamente urbana muito mais uma questão tratada por especialistas do
– 63% dos sul-africanos vivem em cidades, de acor- que algo amplamente debatido.
do com o último censo realizado em 2011. Assim, o Houve, ainda, uma mudança mais recente, oriun-
urbano ainda não assume um protagonismo na cons- da do estabelecimento de novas pautas pelo Fórum
trução das pautas políticas. Enquanto que no Brasil, Urbano Mundial. Dois anos atrás [2014], a determi-
isso já ocorre há um bom tempo – 20 anos atrás, nação era de que os governos desenvolvessem polí-
mais de 80% da população já vivia em cidades. ticas urbanas, o que é uma questão bastante impor-
Na África do Sul, apenas recentemente se tornou tante a ser promovida no continente africano, pois
interessante para partidos políticos pensar de forma pouquíssimos governos tinham uma política urbana
mais criativa sobre o urbano. Porque o eleitorado saiu para suas cidades. E, em resposta a este cenário, e
de áreas rurais e foi para áreas urbanas. Esta é uma também, em parte, em resposta a algumas dinâmicas
mudança que afeta até mesmo o ANC (Congresso internas, a África do Sul desenvolveu uma política
Nacional Africano, partido no poder desde 19941). de desenvolvimento urbano integrada através de um
Isso não significa que o ANC esteja conseguindo processo demorado e de participação bastante redu-
atrair o voto urbano – o que seria importante para as zida. Mas, pelo menos, esta política passou a exis-
lutas urbanas e sua inserção no debate público. Mas tir (embora tentativas anteriores tenham ocorrido,
isso significa que questões como o direito à cidade – elas nunca chegaram a lugar nenhum, uma vez que
com todas as suas implicações para a democratização a pauta rural sempre foi mais importante). Essa é a
dos processos decisórios – não têm ocupado o centro primeira vez que uma política urbana pôde ver a luz
das atenções, um fato até então pouco questionado. do dia e a possibilidade de sua implementação.
Portanto, enquanto no Brasil houve um grande mo- Os criadores desta política urbana não abor-
vimento de reforma urbana que conseguiu impor- daram especificamente o direito à cidade, mas eles
tantes vitórias através de mudanças constitucionais, abordaram questões correlatas, como a necessidade
da aprovação do Estatuto das Cidades e da luta por de urbanizar e reconhecer legalmente assentamentos
sua implementação – não há nada equivalente a isso informais. Ao mesmo tempo, também foi estipulada
na África do Sul. a exigência de tornar as cidades mais eficientes, o que
Havia uma rede bem pequena do setor urbano sempre é um problema a ser superado nas cidades
– representada por ONGs que cresceram no meio sul-africanas, pois o legado do apartheid é também
dos anos 1980 graças à necessidade de prover assis- um legado de grandes ineficiências econômicas. Só
tência técnica a movimentos populares baseados em que essa questão acaba facilmente deixando a ne-
assentamentos informais e conjuntos habitacionais cessidade de um aprofundamento democrático em
segundo plano.

1 O ANC foi o movimento histórico antiapartheid que se


transformou em partido político, levando Mandela ao poder
em 1994, e mantendo-se até hoje no comando do governo
nacional.

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entrevista

EM: Mais recentemente, você são resultado de sua viagem ao Brasil. Para isto, seria
começou a estudar as relações entre necessário examinar seus diários, o que não é algo
a produção intelectual de Léfèbvre
simples e fácil de fazer.
e suas viagens pela América Latina
no início dos anos 1970. Você
acha que essa experiência latino-
americana foi importante para o EM: Você teria mais resultados de
desenvolvimento dos conceitos pesquisa para compartilhar conosco?
léfèbvrianos, como o direito
à cidade? MH: Numa passagem sobre favelas na América La-
tina, perto do final de “A Produção do Espaço”, Lé-
MH: Não diretamente. Ele escreveu “O Direito à fèbvre usa todos os seus conceitos aplicando-os aos
Cidade” (Centauro Editora) em 1967, publicando- assentamentos informais. E ele afirma nesse pequeno
-o já em 1968. Contudo, deve ter surgido bastante trecho que parece haver nelas uma indicação da pos-
interesse neste livro, pois já em 1969 “O Direito à sibilidade de abertura política. Mas também que o
Cidade” foi publicado por uma editora brasileira. espaço dominado é tão repressivo que, na verdade,
Assim, eu acredito que naquele momento havia um isso não acontecerá. Então essa seria a leitura de Lé-
grande interesse do Brasil por esta obra. Mas, com ex- fèbvre sobre aquele contexto muito específico – isto
ceção deste fato, é muito difícil recuperar a memória é, a ditadura. Provavelmente já existiam ali aquelas
daquele período. Logo depois, ele escreveu “A Revo- comunidades eclesiásticas, fomentando profundos
lução Urbana” (Editora UFMG), mas deixando claro debates. Eu acho que não se pode transferir direta-
que ele também escreveu muitas outras coisas entre mente essas reflexões para assentamentos informais
esses dois livros. Contudo, o livro “A Revolução Ur- em qualquer outro país. Mas, por outro lado, muito
bana” também faz referência a “O Direito à Cidade”, da formulação conceitual pode ser aplicada em dife-
desenvolvendo mais a fundo posições e estratégias rentes contextos.
políticas. E dois anos mais tarde ele escreve “A Pro- Eu acredito que ele estava especialmente inte-
dução do Espaço” (La production de l’espace [Editions ressado em tudo que é diferente no espaço urbano
Anthropos]), muito mais voltada para a análise espa- e em alguns tipos específicos dessa diferença. E em
cial, onde, novamente, ele utiliza a análise do direito assentamentos informais. Todos nós concordamos
à cidade. Mais tarde, no fim de sua vida, ele escreve que assentamentos informais são diferentes e é por
“Sobre o contrato de cidadania”. E lá ele também fala isso que os reconhecemos. E Léfèbvre os olha não
da importância do direito à cidade, dentre outros di- como um problema, mas sim o espaço dominado
reitos, como o direito à diferença. Portanto, o pensa- como problema. Sim, ele reconhece que há pobreza
mento de Léfèbvre evoluiu, foi refinado, e, ao mesmo nas favelas, mas há também algo mais. Algo muito
tempo, se manteve bastante consistente. diferente acontece lá, algo que vale prestar atenção e
Contudo, a partir do que podemos concluir, ele que precisa ser entendido.
esteve no Peru e no Brasil em 1972. E, possivelmen- Léfèbvre está interessado em abertura política.
te, aconteceram outras viagens pela América Latina, E ele somente fez essa conexão com assentamentos
provavelmente no México. Isso é algo que eu gostaria informais após ter estado no Brasil. Em trabalhos
de investigar mais. Com a ajuda de Fernando Mal- anteriores a 1972, ele não menciona assentamentos
donado e Erick Omena, eu pude entrar em contato informais e favelas dessa forma, mas depois dessa vi-
com alguns professores brasileiros. Eles acreditam sita ele tece alguns comentários. Um deles é sobre as
que o impacto foi menos de Léfèbvre sobre o Brasil e favelas mexicanas, nas quais a autogestão é notável.
mais do Brasil sobre Léfèbvre. Conforme ele visitava Ele fala sobre um exemplo de 2 mil casas organizando
favelas, ele descobria o quão intensa era aquela vida seu próprio espaço, numa enorme favela do México
social e como havia nela uma possibilidade para que (e eu ainda quero descobrir se ele realmente visitou
o que ele chamava de “urbano” não fosse destruído. este lugar). Mas sobre as brasileiras, ele não diz fa-
Isso me fez prestar atenção especificamente na forma velas brasileiras, mas sim favelas latino-americanas.
como ele escreve e usa favelas em “A Produção do Ele fala sobre essa intensa vida social e sobre esse alto
Espaço”, publicado em 1974. Lá ele escreve de forma nível de autogestão do espaço ou auto-ordenamento
bem diferente em relação aos seus livros anteriores, espacial. Portanto, ele usa este exemplo para dizer que
nos quais ele mencionava favelas e subúrbios como há algo que se parece com o que poderia ser uma
fazendo parte de forças de segregação, insinuando possibilidade de abertura política, por ser tão intensa,
que eles fossem apenas “diferença induzida”. A mi- tão ativa. E por formar uma clara dualidade com o
nha hipótese é de que essas mudanças de abordagem espaço formal e dominado, que é o espaço criado por

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entrevista

urbanistas e pelo Estado. EM: Em termos históricos, você


Porém, ele também afirma que, na verdade, isso encontrou algo particularmente
relevante no que tange às relações
tudo é enganoso. Eu acredito que esta seja uma ava-
entre movimentos sociais urbanos e
liação das ditaduras latino-americanas daquele perío- o direito à cidade na África do Sul e
do, nas quais a repressão e a ideologia são vistas como no Brasil ou, ainda, sobre a relação
algo forte a ponto de administrar essa diferença pro- entre estes movimentos?
duzida pelas favelas. Ele parece sugerir que a classe
trabalhadora e as favelas, e todas as suas ações sozi- MH: Sim. O Movimento dos Sem-Teto e o Movi-
nhas, não são suficientes. Então Lèfébvre fala sobre mento dos Sem-Terra foram uma inspiração para
outras aberturas. E uma delas é o direito à cidade. o Movimento Sem-Terra sul-africano, formado em
A estratégia léfèbvriana tem três pontos. O pri- 2002, ou talvez até um pouco antes. Mas esse movi-
meiro é a autogestão, na qual a autogestão espacial mento parece ter se extinguido. E eu acho que ONGs
parece ser mais preponderante do que a autogestão estiveram por trás de sua criação. Mas ele nunca foi
acontecendo em indústrias. O segundo ponto é que tão forte quanto o Abahlali baseMjondolo2. Embora
o urbano tem que passar para a dianteira política. este último tenha uma história mais curta – apenas
E isso precisa ocorrer de forma intensa, é necessário começou em 2005 –, não havia nenhuma ONG e
haver uma luta por questões urbanas. E o terceiro nem recursos externos fomentando a iniciativa. Ini-
ponto é que o direito à cidade tem que ser concreti- cialmente não havia nem mesmo um ímpeto inter-
zado e expandido. E, portanto, há uma questão sobre nacional neste sentido. Sua emergência aconteceu
direitos aqui. Ele vê o desejo por direitos e a cons- em função de lutas contra ameaças de remoção, que
cientização da necessidade de direitos. E ele também resultaram em péssimas relações com o Estado e o
vê isso como uma abertura política, como um pro- partido governante.
cesso muito importante. E nisso está implícito que É interessante que o Abahlali invoque a expressão
tais lutas partem também de segmentos populares. “direito à cidade” em alguns de seus pronunciamen-
Entretanto, o que nós vemos agora é muito mais tos públicos. Nos últimos anos, eles têm dito algu-
direitos humanos sendo impostos de cima para bai- mas coisas profundas, como, por exemplo, “se existe
xo. Então, quando a ONU diz “precisamos de direi- um direito à cidade, então isso é algo muito difícil
to à cidade” e alguns especialistas dizem que “pre- de ser conquistado”, o que é uma avaliação muito
cisamos fazer isso e aquilo...”, eu não acho que era honesta da realidade. E, na minha análise, eu tenho
isso o que Léfèbvre tinha em mente. Ele se referia a encontrado algumas outras abordagens léfèbvrianas
uma emergência de demandas por direitos, transfor- dentro do Abahlali. Por exemplo, eles insistem em
mando tais direitos em códigos, e seguida por uma se representarem, aquela questão sobre representar a
contínua luta pela implementação desses direitos. realidade... Léfèbvre é muito crítico em relação aos
Mesmo assim, a minha interpretação dos escritos urbanistas – urbanistas significando planejadores,
de Léfèbvre sobre direitos é que, para ele, estes di- arquitetos e todos aqueles tecnocratas que operam a
reitos possuem um caráter transitório. Em um certo serviço do Estado. E o Abahlali definitivamente não
momento, quando o Estado se enfraquece e há mais quer ser representado por urbanistas, não quer sua
democracia de base, direitos serão coisas bem dife- própria realidade representada por eles e insiste que o
rentes daquilo que entendemos agora. Portanto, tais Abahlali como movimento fala por si mesmo.
direitos tem um papel transitório. Com isso eu estou Apesar de todo tipo de contradições presente
tentando me contrapor à escola léfèbvriana anglo- em suas diferentes interpretações do direito à cida-
-saxã, que insinua que Léfèbvre nunca quis que “di- de, pelo menos quando o Abahlali invoca o direito
reito” fosse entendido num sentido jurídico quando à cidade, o faz a partir de sua própria experiência. E
ele disse “direito à cidade”. Eles entendem que isso o faz sobretudo em oposição ao Estado, duma for-
significa apenas um clamor e uma reivindicação. Na ma que desagrada o Estado. E o Estado retalia. E de
minha visão, essa é uma má interpretação, e se você uma forma que realmente se encaixa no pensamento
não pensar com cuidado sobre que direitos legais Lé- de Léfèbvre. Se nós examinarmos o questionamen-
fèbvre tinha em mente, você está perdendo o fio da to léfèbvriano sobre se os assentamentos informais se
meada, perdendo o caminho pelo qual ele está nos constituem em diferenças no espaço urbano ou não e
guiando. Sim, é verdade que em um dado momento se essas diferenças são produzidas ou induzidas, tudo
não haverá mais direitos desse tipo. Mas, eu acho que
você deve esquecer Léfèbvre caso não reconheça esse 2 O Abahlali baseMjondolo é o maior movimento de favelas
aspecto legal. da África do Sul, famoso por suas lutas contra remoções.

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isso depende de se esta diferença resulta num enfren- inspiradas por doadores ou pela Plataforma Global
tamento ao Estado ou não. pelo Direito à Cidade4. Elas têm dinheiro para fazer
Além disso, um assentamento informal apenas algo relacionado ao direito à cidade, e por isso desen-
pode se juntar ao Abahlali se aderir a um processo de- volvem projetos nesse sentido. E para minha frustra-
mocrático e se um certo número de pessoas concorda ção, essas ONGs começaram a trabalhar com o SDI
com uma forma bastante peculiar e democrática de e suas estruturas de comitê, que, é preciso dizer, não
se organizar. Pode-se dizer que aqueles assentamentos são democráticas. O SDI escolhe e nomeia líderes
informais estão começando a se constituir em “dife- comunitários... não há democracia de base. Não há
rença produzida” e que eles estão ativamente lutan- cultura de democracia de base.
do contra o Estado e o sistema. Mas eles ainda não É interessante que uma parte da base filosófica do
possuem o potencial de uma abertura política, nesse SDI venha dos situacionistas – e já se escreveu sobre
contexto específico, porque o ANC é incrivelmente isso. Os situacionistas internacionais eram um pe-
forte, podendo ser bastante repressivo. E, sobretudo queno grupo de pessoas que, em um dado momento,
em Durban, a política local do ANC é muito violenta tiveram contato com Léfèbvre. Léfèbvre os descreve
e desonesta, e o Abahlali experimenta isso de uma como caóticos e talvez subversivos, em um certo sen-
forma muito direta. Eles tiveram membros assassina- tido. Eles influenciaram o trabalho de Léfèbvre e seus
dos. E você falou sobre insurgência... para aqueles as- pensamentos sobre o urbano. Mas, tempos depois,
sentamentos informais sobreviverem, realmente, luta eles se separaram. Eu acho o SDI uma organização
e insurgência são fundamentais. estranhamente subversiva e bem difícil de enten-
Por outro lado, há também outros assentamentos der. Eles são muito grandes na África do Sul. Nessa
informais afiliados ao SDI3 (Slum Dwellers Internatio- comparação entre Brasil e África do Sul, eu acho que
nal), cuja filosofia está baseada no desenvolvimento realmente vale a pena mencionar o SDI, principal-
de uma relação pacífica com o Estado, uma coope- mente no que tange à forma como eles estão pegando
ração gentilmente descrita como “coprodução”, a carona no direito à cidade, sem de fato praticarem
grande nova expressão da moda. O que na prática seus fundamentos. Na verdade, eles afirmam serem
significa assegurar que os assentamentos informais contra a luta por direitos. Eles têm dito coisas bem
permaneçam sendo “diferença induzida”, isto é, depreciativas sobre advogados de direitos humanos e
aquela diferença sob o controle do Estado. sobre a luta por direitos, sempre se dizendo melhores
Embora o Abahlali continue sendo apartidário e do que estes grupos, pois eles pacificam os pobres e os
aberto a qualquer pessoa, eles definitivamente apren- fazem trabalhar de forma construtiva com os gover-
deram que não podem trabalhar com o ANC. Então nos. É muito problemático quando o direito à cidade
eu acho que para os assentamentos informais real- se transforma em um slogan que qualquer um pode
mente produzirem diferenças que desafiam o Estado, usar.
a relação com profissionais e técnicos é interessante.
Léfèbvre geralmente se refere à classe trabalhadora,
EM: O que despertou seu interesse
ele não se refere a pessoas vivendo em assentamen-
pela relação entre Léfèbvre e o
tos informais enquanto tais na sua teoria. Mas ele diz contexto latino-americano?
que a ação da classe trabalhadora é crítica, é muito
importante. É importante que a classe trabalhadora MH: Eu acredito que o Brasil é importante para a
assuma o planejamento. E tudo isso está na filosofia leitura de Léfèbvre a partir do hemisfério sul. Por-
léfèbvriana de necessidade de redução do Estado. A que, nos anos 1970 e 1980, havia um movimento
democracia, para ele, nunca é um estágio final, mas ativo no Brasil para efetivar os conceitos com os
sempre uma progressão na qual o Estado se torna quais Léfèbvre estava trabalhando, como “autoges-
mais e mais enfraquecido enquanto outros processos tão” e “democracia de base”. Eu me perguntava se
participatórios assumem o protagonismo. Então, Lé- eles haviam tomado emprestado esses conceitos de
fèbvre estava dizendo que a classe trabalhadora de- Léfèbvre. Pode ser que não. Havia outros teóricos,
sempenha um papel muito importante, mas que isso e provavelmente até mesmo Léfèbvre trabalhou com
não é suficiente. estes conceitos como ideias já existentes. Não se trata
Em relação ao direito à cidade na África do Sul, de dizer que Léfèbvre inventou a ideia de autoges-
há algumas ONGs que têm pensado sobre o assunto,
4 Esta plataforma é uma iniciativa recente, que desde 2014
3 O SDI é um movimento internacional de moradores de fa- envolve uma série de organizações da sociedade civil de diver-
vela, com origem na África do Sul e na Índia e atualmente sas partes do mundo. Entre os representantes brasileiros estão
presente em dezenas de países. o Instituto Pólis e o Fórum Nacional de Reforma Urbana.

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tão. Mas é algo que ele pensou ser muito importante, brasileiro com Léfèbvre. E para isso o engajamento
dando preponderância a esta ideia no seu trabalho e de Léfèbvre com o Brasil também é relevante.
utilizando-a na sua filosofia política. E o mesmo vale Assim, meu principal interesse era entender o que
para “democracia de base”. Eu não conheço nenhu- ele estava falando sobre direitos. E minha leitura é
ma outra região, além da América Latina, onde este que de fato ele falou sério sobre direitos legais, em-
tipo de pensamento era tão preponderante nos anos bora de forma bastante peculiar. Isso tem sido exage-
1970 e 1980. Mesmo quando eu fui para o Brasil radamente desconsiderado pela literatura anglo-saxã.
pela primeira vez, em 1997, era sobre isso que as pes- O outro interesse era olhar para os assentamentos in-
soas trabalhando com favelas e com as comunidades formais através do olhar de Léfèbvre e entender como
eclesiásticas conversavam. E as discussões giravam ele percebeu o que ele chama de favelas na América
em torno da conscientização contra o clientelismo e Latina (ele também falou de favelas na França, quero
outros tipos semelhantes de prática política. dizer, da periferia da França).
E, na verdade, o fato de Léfèbvre ter estado no Alguns advogados aqui na África do Sul têm tra-
Brasil parece ter se refletido naquela experiência, já balhado a partir de uma perspectiva jurídica sobre o
que ele a menciona (talvez ainda haja manuscritos direito à cidade. Embora os pesquisadores dominan-
não publicados a serem descobertos). E também por- tes do Norte anglo-saxão digam “nem pense sobre
que o direito à cidade ganhou força como conceito uma interpretação jurídica do direito à cidade”, isso
no Brasil – através dos Fóruns Sociais Mundiais em é o que acaba acontecendo no Sul. É algo que é pos-
Porto Alegre, que ocorreram por um longo período, sível ser feito aqui na África do Sul, conforme expli-
entre outros encontros – tendo suas profundas raízes cado pelos meus colegas Marius Pieterse e Thomas
no movimento de reforma urbana. Coggin, por conta da forma em que nossos direitos
Pesquisadores brasileiros, e sobretudo Edésio Fer- estão dispostos na nossa constituição e como foram
nandes, afirmam que o Brasil concretizou o direito interpretados pela corte constitucional. Isso é algo
à cidade por um caminho institucional através do realmente fascinante.
Estatuto da Cidade, muito embora, para esta pers-
pectiva, a estrada não termine aí e nem seja fácil de
ser trilhada. Além disso, estes pesquisadores afirmam EM: Você diria que esse é um novo
que o Estado está muito contraditório no momento campo de estudos léfèbvrianos?
atual. Mas os pesquisadores anglo-saxões enxergam
essa afirmação de que o Brasil institucionalizou um MH: Sim... mas depende de como isso tudo será re-
direito à cidade como algo a ser tratado com muita cebido. É preciso inserir esse tipo de pensamento no
cautela, e educadamente desconsideram tudo isso. É mundo acadêmico anglo-saxão. E eu creio que isso
necessário lidar com essa discordância se o objetivo tem um certo impacto. Nós teríamos que ver se há
for usar Léfèbvre a partir do hemisfério sul, e se o que uma abertura para essa forma de leitura a partir da
se quer é entender melhor o Brasil e o engajamento periferia.▪

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