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FINLEY, Moses I. Escraviddo antiga e ideologia moderna, Traducdo de Norberto Luiz Guarinello. Rio de Janeiro, Graal, 1991, 208 p. Pedro Paulo A. Funari Gragas & acurada tradugio de Norberto Luiz Guarinello (departamento de Histéria, USP), chega ao leitor brasileiro um livro de Moses I. Finley que tem influenciado nao apenas especialistas na Antigilidade Classica como uma gama de pesquisadores interessados em temas como a escravidio moderna ¢ a formagio de uma ideologia nos tempos modernos. O livro, originalmente publicado em 1980, recolhe quatro conferéncias proferidas no College de France, em 1978, Finley come¢a com um relato detalhado de como surgiu o interesse moderno pela escravidao antiga e como a historiografia sobre o tema desenvolveu- se desde o século XVIII até os anos setenta deste século (capitulo primeiro). Em seguida, trata de como as antigas sociedades escravistas surgiram e como se transformaram no processo que desembocaria no feudalismo medieval (capftulos segundo e quarto). O capftulo terceiro ocupa-se de como a escravidao funcionava no interior dos sistemas econémicos ¢ politicos antigos ¢ como esta instituigéo cra encarada moral ¢ socialmente. Finley recua até a propria Antigiiidade, em seu estudo da historiografia da escravidao antiga, ressaltando, porém, que_os antigos interessavam-se pelo tema como algo contempordneo, n&o hist6rico. Também os pensadores medievais, renascentistas e até iluministas voltaram-se para o tema de maneira paradigmitica, nao investigativa. Apés um estudo dos antiquaristas, em especial Wallon, registra-se uma ruptura epistemolégica marcada pela Histéria de Roma de Mommsen. Seu uso de termos como sistema escravista e economia escravista, contudo, nao tiveram grande aceitagdo entre os historiadores profis- sionais. Demonstra como o tema da escraviddo antiga interessou tedricos de horizontes tao diversos como Karl Marx e Max Weber, embora ressalte a pouca penetragZo dessas discussdes entre os especialistas. Destes, o mais eminente foi Eduard Meyer. Finley, no entanto, faz criticas duras a Meyer, caracterizando seus argumentos como “absurdos”. Ressalta, de modo perspicaz, que a sua autoridade advinha do fato de reforgar idéias hem aceitas pela ideologia dos historiadores profissionais da sua época. Passa, mais brevemente, por Gustave Glotz, Jules Toutain, Tenney Frank e W.E. Heitland para centrar-se em Westermann (e, indiretamente, no seu precursor, Rostovtzeff). Termina o percurso historiografico com Vogt, Vittinghof © Kiechle. Conclui que a escravidio antiga, ainda a ser inteiramente entendida, depende de uma histéria da 199 sociedade greco-romana como um todo, objeto dos trés capitulos seguintes. Em “o surgimento de uma sociedade escravista’’ (capitulo segundo), Finley comega com um estudo da terminologia referente aos trabalhadores antigos, analisando dos ébvios douloi ¢ serui (escravos) aos mais dificilmente traduziveis pelarai, lagi, clientes, coloni ¢ erus, entre outros. Considera que nao é 0 ntimero de escravo o mais importante, mas seu lugar na sociedade. Refuta a origem normalmente aceita da escravidio antiga: a guerra. A demanda por escrayos precedia a sua oferta, Para Finley, a cscravidao foi o resultado de uma concepgdo de mundo segundo a qual o homem livre era quem nao vivia sob 0 dominio e trabalhava para outrem. A criagao desse homem livre num mundo de baixa tecnologia levou ao estabelecimento de uma sociedade escravista. No capitulo terceiro, Finley centra-se nas ambigilidades sociais ideolégicas inerentes & escravidao, em particular, em como a humanidade do escravo era negada ¢ reconhecida de maneira alternada. As rebelides escravas, comparadas ao quilombismo da América moderna, so analisadas em suas diferentes manifestagdes. Em “O Declinio da Escravidao Antiga” (capitulo quarto), Finley comega alertando para a dificuldade de diferenciar escravos de servos, escondidos, muitas vezes, sob os mesmos termos (seruus, colonus). Logo de inicio, lembra, provocativamente, que Marc Bloch considerava a Alta Idade Média um periodo com, talvez, maior numero de escravos do que no auge do escravismo antigo. Considera Finley que houve um lento declinio no ntimero de escravos, com uma queda, contudo, menor do que se supunha. Examina, em seguida, as teorias que procuram explicar esse declinio. Ressalta que houve um declfnio significativo, no conjunto do mundo romano, na produgao de mercadorias. Os grandes latifundidrios passam a viver, em regime de auto-suficiéncia, no campo, encolhendo o consumo e as compras no mercado. O fator decisive na substituigdo lenta dos escravos por dependentes foi a mudanga na estrutura politico-militar. © exército mercenério ou profissional, em substituigdo & milicia cidada, permitiu a sujeig&éo dos cidaddos pobres ao trabalho assalariado ou dependente, Além disso, em amplas 4reas do Império a mao-de-obra agricola continuou, na esséncia, nas formas de dependéncia anteriores ao dominio romano. Assim, embora os escravos tenham subsistido na Antigilidade tardia, nao eram mais os principais produtores. O livro de Finley possui, entre suas virtudes, a leveza que induz © leitor a sua fruigio imediata. Embora erudito, suas citagdes sio facilmente digeridas e suas explicagdes ¢ interpretagdes, sempre claras, nao apresentam dificuldades, mesmo para o piiblico Ieigo. A concepgio 200 teérica de Finley tem como caracteristica marcante a explicagao psicolégica, A partir de uma interpretagio sociolégica de matriz weberiana, Finley atribui & concepgao de mundo (Weltanschauung ) dos atores histricos a feigio e as tranformag6es da sociedade. Assim, a origem e 0 declinio da escravidao sao atribufdos a um ethos, ou a um desejo, que, essencial e inexplicavel por definigao, explica o préprio fenédmeno da escravidao. Surgiu porque havia demanda, nao oferta, de escravos; entrou em declinio porque os pobres, privados do servico militar, perderam a vergonha de trabalhar. Nao precisa explicar como a reforma do exército por Mario (século II a.C.) apenas séculos depois viria a, efetivamente, substituir escravos por servos, jd que sua explicagao nao é factual mas axiomdtica. Talvez o exemplo mais claro da despreocupagao de Finley com a emtpeiria face a sua interpretagao que dispensa provas, refira-se & tranqiiilidade com que se dispensa de andlises detalhadas. Referindo-se A quadragésima sétima oragdo de Libanio de Antiéquia (p. 132), afirma que “georgoi, hoi ergazomenoi, oiketai, somata, douloi e ergatai (so) termos que acredito sejam sinénimos, todos relativos a camponeses sirios”. Exemplos como este se repetem, também, no que se refere & sua cosciente mescla de regides ¢ perfodos diversos em uma Unica linha de argumentagio. No final das contas, 0 raciocinio de Finley € impossivel de ser confirmado ou negado, ja que é axiomiético, vago e impreciso. Ao concluir sua obra, afirma que “o mundo da Antigilidade tardia nao era mais uma sociedade escravista... contudo, a organizagdo da economia rural nao parece ter-se transformado”. A aparente aporiada frase dificulta sua critica: se a organizagio nao mudou do escravismo ao trabalho dependente, 0 que mudou, apenas e tio somente, foi o status do lavrador, antes escravo e depois dependente. O préprio Finley, contudo, refere-se a substanciais diferengas na vida do campo. Nao se deve, entretanto, deixar de admirar seja a beleza, seja a grandeza de uma obra que nao teme apresentar-se como uma interpretagao frente a muitas outras. Finley, no bom estilo weberiano, rejeita o positivismo de uma suposta descrigéo dos fatos. Afastando-se do marxismo vulgar e do néo- positivismo francés —- Paul Veyne niio ¢ sequer citado por Finley — ndo se excusa de apresentar indmeros pontos de vista diversos dos seus. Nao fossem Os outros muitos motivos ja assinalados, sé por isso j4 valeria a leitura de Finley. 201

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