You are on page 1of 2

O problema de Gettier https://criticanarede.com/conhecimento.

html

Crítica
1 de Julho de 2016 Epistemologia

O problema de Gettier
John L. Pollock
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira

É raro em filosofia chegar a consenso acerca de qualquer questão substantiva, mas durante algum tempo existiu um consenso
quase completo sobre o que se designa “análise tradicional do conhecimento como crença verdadeira justificada”. De acordo com
essa análise:

S sabe que p se e só se:

1) p é verdadeira,
2) S acredita que p; e
3) S está justificado em acreditar que p.

No período imediato que antecedeu a publicação do famoso artigo de Gettier (1963) “É o Conhecimento Crença Verdadeira
Justificada?”, esta análise era defendida por virtualmente todos os epistemológos. Mas Gettier publicou o seu artigo e alterou,
praticamente sozinho, o curso da epistemologia. Conseguiu isso apresentando dois contra-exemplos claros e inegáveis à análise
da crença verdadeira justificada. Resumindo o exemplo do Capítulo 1, considere-se Smith que acredita falsamente mas com boas
razões que Jones tem um Ford. Smith não faz ideia do paradeiro de Brown, mas escolhe arbitrariamente Barcelona e, do facto
putativo de que Jones tem um Ford, infere que Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona. Acontece que por acaso Brown
está em Barcelona, pelo que esta disjunção é verdadeira. Além do mais, tal como Smith tem boas razões para acreditar que Jones
é dono de um Ford, está justificado em acreditar nesta disjunção. Mas já que os dados de que dispõe não pertencem à proposição
verdadeira da disjunção, não podemos dizer que Smith sabe que Jones é dono de um Ford ou Brown está em Barcelona.

Ao ensaio de Gettier seguiu-se uma avalanche de artigos que procuravam responder aos contra-exemplos adicionando uma
quarta condição à análise tradicional do conhecimento. A primeira tentativa para resolver o problema de Gettier virou-se para a
consideração de que, nos exemplos de Gettier, o agente epistémico alcança uma crença verdadeira justificada raciocinando a
partir de uma crença falsa. Isso sugeriu a adição de uma quarta condição parecida com o seguinte:

As razões para S acreditar p não podem incluir qualquer crença falsa.

São Paulo - Paris São Paulo - Ilhéus São Paulo - Miami São Paulo - Paris
R$ 2.555 R$ 1.483 R$ 2.603 R$ 2.555

Reservar agora Reservar agora Reservar agora Reservar agora

Contudo, rapidamente se percebeu que se podia construir outros contra-exemplos em que não havia conhecimento apesar de o
agente epistémico não o inferir de crenças falsas. Alvin Goldman (1976) construiu o seguinte exemplo: suponha que está a viajar
pelo campo e que vê o que pensa ser um estábulo; vê isso de forma clara a curta distância, e tem o aspecto de um estábulo, e
assim sucessivamente; além disso, é um estábulo. Tem então a crença verdadeira justificada de que é um estábulo. Mas as
pessoas desse local, para parecerem mais ricas do que realmente são, construíram fachadas de estábulos bem realistas que não se
podem distinguir facilmente do que realmente são quando vistas da auto-estrada. Há mais fachadas de estábulos do que estábulos
reais. Nestas circunstâncias, não é possível concordar que, apesar de ter uma crença verdadeira justificada, sabe que o que está a
ver é um estábulo. Além disso, a crença de que está a ver um estábulo não foi, de forma alguma, inferida da crença na ausência
de fachadas de estábulos. Provavelmente, a possibilidade de existirem fachadas de estábulos é algo que nunca lhe ocorreu, e
muito menos algo que desempenhou qualquer papel no seu raciocínio.

Podemos construir um exemplo perceptivo ainda mais simples. Suponha que S vê uma bola que lhe parece encarnada, com base
no facto de ajuizar correctamente que é encarnada. Mas sem o conhecimento de S, a bola está iluminada por luzes encarnadas e
pareceria encarnada mesmo que o não fosse. Então S não sabe que a bola é encarnada, apesar de ter uma crença verdadeira
justificada para esse efeito. Além disso, a sua razão para acreditar que a bola é encarnada não envolve a sua crença de que a bola
não está a ser iluminada por luzes encarnadas. A iluminação por luzes encarnadas está relacionada com o seu raciocínio apenas
porque o derrota, e não porque é um passo do raciocínio. Estes exemplos, e outros relacionados, indicam que a crença verdadeira
justificada falha como conhecimento por causa do valor de verdade das proposições não desempenhar um papel directo no

1 of 2 14/02/2022 14:03
O problema de Gettier https://criticanarede.com/conhecimento.html

raciocínio que subjaz a essa crença. Esta observação conduziu a um número de análises “anulabilistas” do conhecimento. A mais
simples consistirá em adicionar uma quarta condição requerida desde que não surjam verdadeiras condições de anulabilidade.
Pode ser alcançada da forma seguinte:

Não há uma proposição verdadeira Q tal que se Q fosse adicionada às crenças de S, este não estaria justificado em acreditar p.

Mas Keith Lehrer e Thomas Paxson (1969) apresentaram o seguinte contra-exemplo a esta proposta simples:

Suponha que vejo um homem numa biblioteca a roubar um livro e a escondê-lo debaixo do casaco. Uma vez que tenho a certeza
de que esse homem é Tom Grabit, pois vi-o muitas vezes quando assistia às minhas aulas, afirmo que foi Tom Grabit que roubou
o livro. Contudo, suponha também que a Sra. Grabit, mãe de Tom, afirmou que, no dia em questão, Tom não estava na biblioteca,
que estava mesmo a centenas de milhar de quilómetros de distância, e que quem estava na biblioteca era John Grabit, o irmão
gémeo de Tom. Além disso, imagine que desconheço em absoluto o que disse a Sra. Grabit e que, considerando a presente
definição de anulabilidade, o conteúdo da sua declaração anula qualquer justificação que eu possa ter para acreditar que Tom
Grabit roubou o livro […]

O que se disse antes pode ser aceite até acabarmos a história e ficarmos a saber que a Sra. Grabit é uma mentirosa compulsiva e
patológica, que John Grabit é uma ficção da sua mente doente, e que, tal como eu acreditava, Tom Grabit roubou o livro. Quando
se acrescenta isto, deve ser óbvio que eu sabia que Tom Grabit roubou o livro. (p. 228)

Uma proposta natural para lidar com o exemplo de Grabit é que, além de haver uma verdadeira condição de anulabilidade, há um
anulador da condição de anulabilidade, o que restaura o conhecimento. Por exemplo, no exemplo de Grabit é verdadeiro que a
Sra. Grabit declarou não ser o Tom que estava na biblioteca, mas o seu irmão gémeo John (uma condição de anulabilidade), mas
também é verdadeiro que a Sra. Grabit é uma mentirosa compulsiva e patológica e que John Grabit é uma ficção da sua mente
demente (um anulador da condição de anulabilidade). Contudo, é difícil construir um princípio preciso para lidar correctamente
com estes exemplos apelando a verdadeiras condições de anulabilidade e verdadeiros anuladores da condição de anulabilidade.
Corrigir a proposta anterior da seguinte maneira não funciona:

Se há uma proposição verdadeira Q tal que se Q fosse adicionada às crenças de S, este já não estaria justificado em acreditar p,
então também há uma proposição verdadeira R tal que se Q e R fossem ambas adicionadas às crenças de S, este estaria justificado
em acreditar p.

As dificuldades mais simples apresentadas a esta proposta é que ao adicionar R podemos acrescentar novas razões para acreditar
p em vez de restaurar as razões antigas. Não é trivial ver como formular uma quarta condição que incorpore anuladores de
condições de anulabilidade. Penso que essa quarta condição fornecerá, em última análise, a solução para o problema de Gettier,
mas nenhum tipo de solução deste tipo foi ainda explorado considerado na bibliografia.

John L. Pollock
Excerto de “The Gettier Problem” (1986), Epistemology: Selected Texts With Interactive Commentary, ed. Sven Bernecker (Oxford: Blackwell, 2006), pp. 8–10.

O que procura? Procurar

2 of 2 14/02/2022 14:03

You might also like