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O mal-estar da civilização*

SIGMUND FREUD

Sigmund Freud: 06/05/1856 – 23/09/1939

O trabalho psicanalítico nos mostrou que o primeiro nos apresenta um novo


as frustrações da vida sexual são problema. A civilização, porém, exige
precisamente aquelas que as pessoas outros sacrifícios, além do da satisfação
conhecidas como neuróticas não podem sexual.
tolerar. O neurótico cria, em seus
Abordamos a dificuldade do
sintomas, satisfações substitutivas para
desenvolvimento cultural como sendo
si, e estas ou lhe causam sofrimento em
uma dificuldade geral de
si próprias, ou se lhe tornam fontes de
desenvolvimento, fazendo sua origem
sofrimento pela criação de dificuldades
remontar à inércia da libido, à falta de
em seus relacionamentos com o meio
inclinação desta para abandonar uma
ambiente e a sociedade a que pertence.
posição antiga por outra nova.1 Dizemos
Esse último fato é fácil de compreender; quase a mesma coisa quando fazemos a
*
Esse texto corresponde ao Capítulo V de “O mal-estar na civilização”, extraído do volume XXI da Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora,
1969, e publicado in Religião e Sociedade, 15/1, 1990, pp. 120-127. As notas são da edição Standard e se
referem à íntegra do texto.
1
Ver, por exemplo, pág. 62, acima. Para certas observações sobre o emprego por Freud do conceito de
‘inércia psíquica’ em geral, ver nota de rodapé do Editor a Freud, 1915f, Standard Ed., 14, 272.
antítese entre a civilização e sexualidade restrição à vida sexual. Não
derivar da circunstância de o amor sexual conseguimos, porém, entender qual
constituir um relacionamento entre dois necessidade força a civilização a tomar
indivíduos, no qual um terceiro só pode esse caminho, necessidade que provoca
ser supérfluo ou perturbador, ao passo o seu antagonismo à sexualidade. Deve
que a civilização depende de haver algum fator de perturbação que
relacionamento entre um considerável ainda não descobrimos.
número de indivíduos. Quando um
relacionamento amoroso se encontra em A pista pode ser fornecida por uma das
seu auge, não resta lugar para qualquer exigências ideais, tal como as
outro interesse pelo ambiente; um casal denominamos2, da sociedade civilizada.
de amantes se basta a si mesmo; sequer Diz ela: ‘Amarás a teu próximo como a
necessitam do filho que têm em comum ti mesmo.’ Essa exigência, conhecida em
para torná-los felizes. Em nenhum outro todo o mundo, é, indubitavelmente, mais
caso Eros revela tão claramente o âmago antiga que o cristianismo, que a
do seu ser, o seu intuito de, de mais de apresenta como sua reivindicação mais
um, fazer um único; contudo, quando gloriosa. No entanto, ela não é decerto
alcança isso da maneira proverbial, ou excessivamente antiga; mesmo já em
seja, através do amor de dois seres tempos históricos, ainda era estranha à
humanos, recusa-se a ir além. humanidade. Se adotarmos uma atitude
ingênua para com ela, como se a
Até aqui, podemos imaginar estivéssemos ouvindo pela primeira vez,
perfeitamente uma comunidade cultural não poderemos reprimir um sentimento
que consista em indivíduos duplos como de surpresa e perplexidade. Por que
este, que, libidinalmente satisfeitos em si deveremos agir desse modo? Que bem
mesmos, se vinculem uns aos outros isso nos trará? Acima de tudo, como
através dos elos do trabalho comum e conseguiremos agir desse modo? Como
dos interesses comuns. Se assim fosse, a isso pode ser possível? Meu amor, para
civilização não teria que extrair energia mim, é algo de valioso, que eu não devo
alguma da sexualidade. Contudo, esse jogar sem reflexão. A máxima me impõe
desejável estado de coisas não existe, deveres para cujo cumprimento devo
nem nunca existiu. A realidade nos estar preparado e disposto a efetuar
mostra que a civilização não se contenta sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem
com as ligações que até agora lhe de merecer meu amor de alguma
concedemos. Visa a unir entre si os maneira. (Não estou levando em
membros da comunidade também de consideração o uso que dela posso fazer,
maneira libidinal e, para tanto, emprega nem sua possível significação para mim
todos os meios, favorece todos os como objeto sexual, uma vez que
caminhos pelos quais as identificações nenhum desses dois tipos de
fortes possam ser estabelecidas entre os relacionamento entra em questão onde o
membros da comunidade e, na mais preceito de amar seu próximo se acha em
ampla escala, convoca a libido inibida jogo.) Ela merecerá meu amor, se for de
em sua finalidade, de modo a fortalecer tal modo semelhante a mim, em aspectos
o vínculo comunal através das relações importantes, que eu me possa amar nela;
de amizade. Para que esses objetivos merecê-lo-á também, se for de tal modo
sejam realizados, faz-se inevitável uma mais perfeita do que eu, que nela eu
2
Ver pág. 52, acima. Cf. também, “Civilized
Sexual Morality” (1908d.), Standard Ed., 9, 199.
possa amar meu ideal de meu próprio eu comigo. Se disso ele puder auferir uma
(self). Terei ainda de amá-la, se for o vantagem qualquer, não hesitará em me
filho de meu amigo, já que o sofrimento prejudicar; tampouco pergunta a si
que este sentiria se algum dano lhe mesmo se a vantagem assim obtida conta
ocorresse seria meu sofrimento também alguma proporção com a extensão do
– eu teria de partilha-lo. Mas, se essa dano que causa em mim. Na verdade,
pessoa for um estranho para mim e não não precisa nem mesmo auferir alguma
conseguir atrair-me por um de seus vantagem. Se puder satisfazer qualquer
próprios valores, ou por qualquer tipo de desejo com isso, não se importará
significação que já possa ter adquirido em escarnecer de mim, em me insultar,
para a minha vida emocional, me será me caluniar e me mostrar a superioridade
muito difícil amá-la. Na verdade, eu de seu poder; e, quanto mais seguro se
estaria errado agindo assim, pois meu sentir e mais desamparado eu for, mais,
amor é valorizado por todos os meus com certeza, posso esperar que se
como um sinal de minha preferência por comporte dessa maneira para comigo.
eles, e seria injusto para com eles, Caso se conduza de modo diferente, caso
colocar um estranho no mesmo plano em mostre consideração e tolerância como
que eles estão. Se, no entanto, devo amá- um estranho, estou pronto a trata-lo da
lo (com esse amor universal) meramente mesma forma, em todo e qualquer caso e
porque ele também é um habitante da inteiramente fora de todo e qualquer
terra, assim como o são um inseto, uma preceito. Na verdade, se aquele
minhoca ou uma serpente, receio então imponente mandamento dissesse ‘Ama a
que só uma quantidade de meu amor seu próximo como este te ama’, eu não
caberá à sua parte – e não, em hipótese lhe faria objeções. E há um segundo
alguma, tanto quanto, pelo julgamento mandamento que me parece mais
de minha razão, tenho o direito de reter incompreensível ainda e que desperta em
para mim. Qual é o sentido de um mim uma oposição mais forte ainda.
preceito enunciado com tanta Trata-se do mandamento ‘Ama os teus
solenidade, se seu cumprimento não inimigos’. Refletindo sobre ele, no
pode ser recomendado como razoável? entanto, percebo que estou errado em
considerá-lo com uma oposição maior.
Através de um exame mais detalhado, no fundo, é a mesma cosa.3
descubro ainda outras dificuldades. Não
meramente esse estranho, em geral,
indigno de meu amor; honestamente, Acho que agora posso ouvir uma voz
tenho de confessar que ele possui mais solene me repreendendo: ‘É
direito de minha hostilidade e, até precisamente porque teu próximo não é
mesmo, meu ódio. Não parece apresentar digno de amor, mas, pelo contrário, é teu
o mais leve traço de amor por mim e não inimigo, que deves amá-lo como a ti
demonstra a mínima consideração para mesmo’. Compreendo então que se trata
3
Um grande e imaginativo escritor pode Deus quiser tornar completa a minha felicidade,
permitir-se dar expressão – jocosamente, pelo me concederá a alegria de ver seis ou sete de
menos – a verdades psicológicas severamente meus inimigos enforcados nessas arvores. Antes
proscritas. Assim, Heine confessa: ‘Minha da morte deles, eu, tocado em meu coração, lhes
disposição é a mais pacífica. Os meus desejos perdoarei todo o mal que em vida me fizeram.
são: uma humilde cabana com um teto de palha, Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos – mas
mas boa cama, boa comida, o leite e a manteiga não antes de terem sido enforcados.’ (Gedanken
mais frescos, flores em minha janela e algumas und Einfälle, seção I.)
belas árvores em frente de minha porta; e, se
de um caso semelhante ao do Credo quia compensação, utilizá-lo sexualmente
absurdum.4 sem o seu consentimento, apoderar-se de
suas posses, humilhá-lo, causar-lhe
Ora, é muito provável que meu próximo, sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo
quando lhe for prescrito que me ame homini lupus.6 Quem, em face de toda
como a si mesmo, responda exatamente sua experiência da vida e da história, terá
como o fiz e me rejeite pelas mesmas a coragem de discutir essa asserção? Via
razões. Espero que tenha os mesmos de regra, essa cruel agressividade espera
fundamentos objetivos para fazê-lo, mas por alguma provocação, ou se coloca a
terá a mesma idéia que tenho. Ainda serviço de algum outro intuito, cujo
assim, o comportamento dos seres objetivo também poderia ter sido
humanos apresenta diferenças que a alcançado por medidas mais brandas. Em
ética, desprezando o fato de que tais circunstâncias que lhe são favoráveis,
diferenças são determinadas, classifica quando as forças mentais contrárias que
como ‘boas’ ou ‘más’. Enquanto essas normalmente a inibem se encontram fora
inegáveis diferenças não forem de ação, ela também se manifesta
removidas, a obediência às elevadas espontaneamente e revela o homem
exigências éticas acarreta prejuízos aos como uma besta selvagem, a quem a
objetivos da civilização, por incentivar o consideração para com sua própria
ser mau. Não podemos deixar de lembrar espécie é algo estranho. Quem quer que
um incidente ocorrido na câmara dos relembre as atrocidades cometidas
deputados francesa, quando a pena durante as imigrações raciais ou as
capital estava em debate. Um dos invasões dos hunos, ou pelos povos
membros acabara de defender conhecidos como mongóis sob a chefia
apaixonadamente a abolição dela e seu de Gengis Khan e Tamerlão, ou na
discurso estava sendo recebido com captura de Jerusalém pelos piedosos
tumultuosos aplausos, quando uma voz cruzados, ou mesmo, na verdade, os
vinda do plenário exclamou: ‘Que horrores da recente guerra mundial,
messieurs les assassins commencent!’5 quem quer que relembre tais coisas terá
O elemento de verdade por trás disso de se curvar humildemente ante a
tudo, elemento que as pessoas estão tão verdade dessa opinião.
dispostas a repudiar, é que os homens
não são criaturas gentis que desejam ser A existência da inclinação para a
amadas e que, no máximo, podem agressão, que podemos detectar em nós
defender-se quando atacadas; pelo mesmos e supor com justiça que ela está
contrário, são criaturas entre cujos dotes presente nos outros, constitui o fator que
instintivos deve-se levar em conta uma perturba nossos relacionamentos com o
poderosa quota de agressividade. Em nosso próximo e força a civilização a um
resultado disso, o seu próximo é, para tão elevado dispêndio [de energia]. Em
eles, não apenas um ajudante potencial conseqüência dessa mútua hostilidade
ou um objeto sexual, mas também primária dos seres humanos, a sociedade
alguém que os tenta a satisfazer sobre ele civilizada se vê permanente ameaçada de
a sua agressividade, a explorar sua desintegração. O interesse pelo trabalho
capacidade de trabalho sem em comum não a manteria unida; as
4 5
Ver o Capítulo V de The Future of an Illusion ‘Que os senhores assassinos comecem!’
6
(1927a), Standard Ed., 21, 28. Freud retorna ao ‘O homem é o lobo do homem.’ Citado de
tema de amar ao próximo como a si mesmo mais Plauto, Asinaria, II, iv, 88.
adiante, na pág. 105 e segs.
paixões instintivas são mais fortes que os Os comunistas acreditam ter descoberto
interesses razoáveis. A civilização tem o caminho para nos livrar de nossos
de utilizar esforços supremos a fim de males. Segundo eles, o homem é
estabelecer limites para os instintos inteiramente bom e bem disposto para
agressivos do homem e manter suas com seu próximo, mas a instituição da
manifestações sob o controle por propriedade privada corrompeu-lhe a
formações psíquicas reativas. Daí, natureza. A propriedade da riqueza
portanto, o emprego de métodos privada confere poder ao indivíduo e,
destinados a incitar as pessoas a com ele, a tentação de maltratar o
identificação e relacionamentos próximo, ao passo que o homem
amorosos inibidos em sua finalidade, daí excluído da posse está fadado a se
a restrição à vida sexual e daí, também, o rebelar hostilmente contra seu opressor.
mandamento ideal de amar ao próximo Se a propriedade privada fosse abolida,
como a si mesmo, mandamento que é possuída em comum toda a riqueza e
realmente justificado pelo fato de nada permitida a todos a partilha de sua
mais ir tão fortemente contra a natureza fruição, a má vontade e a hostilidade
original do homem. A despeito de todos desapareceriam entre os homens. Como
os esforços, esses empenhos da as necessidades de todos seriam
civilização até hoje não conseguiram satisfeitas, ninguém teria razão alguma
muito. Espera-se impedir os excessos para encarar outrem como inimigo; todos
mais grosseiros da violência brutal por si de boa vontade, empreenderiam o
mesma, supondo-se o direito de usar a trabalho que se fizesse necessário. Não
violência contra os criminosos; no estou interessado em nenhuma crítica
entanto, a lei não é capaz de deitar a mão econômica do sistema comunista; não
sobre as manifestações mais cautelosas e posso investigar se a abolição da
refinadas da agressividade humana. propriedade privada é conveniente ou
Chega a hora em que cada um de nós tem vantajosa.7 Mas sou capaz de reconhecer
de abandonar, como sendo ilusões, as que as premissas psicológicas em que o
esperanças que, na juventude, depositou sistema se baseia são uma ilusão
em seus semelhantes, e aprende quanta insustentável. Abolindo a propriedade
dificuldade e sofrimento foram privada, privamos o amor humano da
acrescentados à sua vida pela má vontade agressão de um de seus instrumentos, de
deles. Ao mesmo tempo, seria injusto certo forte, embora, decerto também, não
censurar a civilização por tentar eliminar o mais forte; de maneira alguma, porém,
da atividade humana a luta e a alteramos, as diferenças em poder e
competição. Elas são indubitavelmente influência que são mal empregadas pela
indispensáveis. Mas oposição não é agressividade, nem tampouco alteramos
necessariamente inimizade; nada em sua natureza. A agressividade
simplesmente, ela é mal empregada e não foi criada pela propriedade. Reinou
tornada uma ocasião para a inimizade. quase sem limites nos tempos primitivos,
quando a propriedade ainda era muito
7
Quem quer que tenha provado as desgraças da essa luta numa exigência abstrata, em nome da
pobreza em sua própria juventude e justiça, da igualdade para todos os homens,
experimentado a indiferença e a arrogância dos existirá uma objeção muito óbvia a ser feita: a de
abastados, deveria achar-se a salvo da suspeita de que a natureza, por dotar os indivíduos com
não ter compreensão ou boa vontade com os atributos físicos e capacidades mentais
esforços destinados a combater a desigualdade da extremamente desiguais, introduziu injustiças
riqueza entre os homens e tudo a que ela conduz. contra as quais não há remédio.
Certamente, se se fizer uma tentativa para basear
escassa, e já se apresenta no quarto das constantes ridicularizando-se umas às
crianças, quase antes que a propriedade outras, como os espanhóis e os
tenha abandonado sua forma anal e portugueses, por exemplo, os alemães do
primária; constitui a base de toda relação Norte e os alemães do Sul, os ingleses e
de afeto e amor entre pessoas (com a os escoceses, e assim por diante.9 Dei a
única exceção, talvez, do relacionamento esse fenômeno o nome de ‘narcisismo de
da mãe com seu filho homem)8. Se poucas diferenças’, denominação que
eliminamos os direitos pessoais sobre a não ajuda muito a explicá-lo. Agora
riqueza material, ainda permanecem, no podemos ver que se trata de uma
campo dos relacionamentos sexuais, satisfação conveniente e relativamente
prerrogativas fadadas a se tornarem a inócua da inclinação para a agressão,
fonte de mais intensa antipatia e da mais através da qual a coesão entre os
violenta hostilidade entre homens que, membros da comunidade é tornada mais
sob outros aspectos, se encontram em pé fácil. Com respeito a isso, o povo judeu,
de igualdade. Se também removemos espalhado por toda a parte, prestou os
esse fator, permitindo a liberdade mais úteis serviços às civilizações dos
completa da vida sexual, e assim países que os acolheram; infelizmente,
abolirmos a família, célula germinal da porém todos os massacres de judeus na
civilização, não podemos, é verdade, Idade Média não bastaram para tornar o
prever com facilidade quais os novos período mais pacífico e mais seguro para
caminhos que o desenvolvimento da seus semelhantes cristãos. Quando,
civilização vai tomar; uma coisa, porém, outrora, o Apóstolo Paulo postulou o
podemos esperar: é que, nesse caso, essa amor universal entre os homens como o
característica indestrutível da natureza fundamento de sua comunidade cristã,
humana seguirá a civilização. uma extrema intolerância por parte da
cristandade para com os permaneceram
Evidentemente, não é fácil aos homens
fora dela tornou-se uma conseqüência
abandonar a satisfação dessa inclinação
inevitável. Para os romanos, que não
para a agressão. Sem ela, eles não se
fundaram no amor sua vida comunal
sentem confortáveis. A vantagem que
como estado, a intolerância religiosa era
um grupo cultural, comparativamente
algo estranho, embora, entre eles, a
pequeno, oferece concedendo a esse
religião fosse do interesse do Estado e
instinto um escoadouro sob a forma de
este se achasse impregnado dela.
hostilidade contra intrusos, não é nada
Tampouco constituiu uma possibilidade
desprezível. É sempre possível unir um
inexequível que o sonho de um domínio
considerável número de pessoas no
mundial germânico exigisse o anti-
amor, enquanto sobrarem outras pessoas
semitismo como seu complemento,
para receberem as manifestações de sua
sendo, portanto, compreensível que a
agressividade. Em outra ocasião,
tentativa de estabelecer uma civilização
examinei o fenômeno no qual são
nova e comunista na Rússia encontre o
precisamente comunidades com
seu apoio psicológico na perseguição aos
territórios adjacentes, e mutuamente
burgueses. Não se pode senão imaginar,
relacionadas também sob outros
com preocupação, sobre o que farão os
aspectos, que se empenhem em rixas
8 9
Cf. uma nota de rodapé do Capítulo VI de Ver Capítulo VI de Group Psychology (1921c),
Group Psychology (1921c), Standard Ed., 18, Standard Ed., 18, 101, e ‘O Tabu da Virgindade’
101n. Um exame bem mais longo do assunto (1981a), Edição Standard Brasileira, vol. XI, pág.
ocorre perto do final da Conferência XXXIII das 184, Imago editora, 1970.
New Introductory Lectures (1939a).
soviéticos depois que tiverem eliminado permitir a existência de tanto sofrimento,
seus burgueses. que provavelmente poderia ser evitado;
Se a civilização impõe sacrifícios tão quando, com crítica impiedosa, tentamos
grandes, não apenas à sexualidade do pôr à mostra as raízes de sua
homem, mas também à sua imperfeição, estamos indubitavelmente
agressividade, podemos compreender exercendo um direito justo, e não nos
melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa mostrando inimigos da civilização.
civilização. Na realidade, o homem Podemos esperar efetuar,
primitivo se achava em situação melhor, gradativamente, em nossa civilização
sem conhecer restrições de instintos. Em alterações tais, que satisfaçam melhor
contrapartida, suas perspectivas de nossas necessidades e escapam a nossas
desfrutar dessa felicidade, por qualquer críticas. Mas talvez possamos também
período de tempo, eram muito tênues. O nos familiarizar com a idéia de existirem
homem civilizado trocou uma parcela de dificuldades, ligadas à natureza da
suas possibilidades de felicidade por civilização, que não se submeterão a
uma parcela de segurança. Não devemos qualquer tentativa de reforma. Além e
esquecer, contudo, que na família acima das tarefas de restringir os
primeva apenas o chefe desfrutava da instintos, para as quais estamos
liberdade instintiva; o resto vivia em preparados, reivindica nossa atenção o
opressão servil. Naquele período perigo de um estado de coisas que
primitivo da civilização, o contraste poderia ser chamado de ‘pobreza
entre uma minoria que gozava das psicológica dos grupos’.10 Esse perigo é
mais ameaçador onde os vínculos de uma
vantagens da civilização e uma minoria
sociedade são principalmente
privada dessas vantagens era, portanto,
constituídos pelas identificações dos
levado a seus extremos. Quanto aos
seus membros uns com os outros,
povos primitivos que ainda hoje existem,
enquanto que indivíduos do tipo de um
pesquisas cuidadosas mostraram que sua
líder não adquirem a importância que
vida instintiva não é, de maneira alguma,
lhes deveria caber na formação de um
passível de ser invejada por causa de sua
grupo.11 O presente estado cultural dos
liberdade. Está sujeita a restrições de
Estados Unidos da América nos
outra espécie, talvez mais severas do que
proporcionaria uma boa oportunidade
aquelas que dizem respeito ao homem
para estudar o prejuízo à civilização, que
moderno.
assim é de se temer. Evitarei, porém, a
Quando, com toda justiça, consideramos tentação de ingressar numa crítica da
falho o presente estado de nossa civilização americana; não desejo dar a
civilização, por atender de forma tão impressão de que eu mesmo estou
inadequada às nossas exigências de um empregando métodos americanos.
plano de vida que nos torne felizes, e por

10
O alemão ‘psychologisches Elend’ parece ser incapacidade de síntese mental que atribui aos
uma versão da expressão de Janet, ‘misère neuróticos.
11
psychologique’, por ele aplicada para descrever a Cf. Group Psychology and the Analysis of the
Ego (1921c).

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