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Revista de Economia Politica, vol. 13, n® 1 (49), janeiro-marcol1993 O sistema financeiro e 0 financiamento do crescimento: uma alternativa pés- keynesiana 4 visao convencional* ROGERIO STUDART** J. INTRODUGAO O texto a seguir é uma reflexdo sobre o papel das institui- g5es e mercados financeiros no processo de acumulagao em eco- nomias de mercado. Aqui se contrapdem a visio “convencional” a.uma alternativa p6s-keynesiana, defendendo-se a segunda en- quanto instrumento te6rico para andlise do funcionamento e da funcionalidade do sistema financeiro em economias de mercado. ‘Chamamos de visdo convencional aquela que trata o merca- do financeiro como locus da intermediagdo de capital (enquanto recursos reais) entre poupadores e investidores. Tal visio tende a privilegiar o estabelecimento de um mercado financeiro compe- titivo, com taxas de juros reais positivas e tinicas, como forma de estimular a poupanga, a intermediagdo financeira e o investimen- to. Uma aplicagiio de tal visdo 8 andlise da dimensio financeira do crescimento econémico — que tem dominado os discursos de importantes agéncias de desenvolvimento, tais como o Banco Mundial e o FMI—€ ali- teratura da “liberalizagdo financeira”. Nesta, o principal problema financeiro dos pafses em desenvolvimento é a “repressio financeira”, isto 6, a manutengdo de taxas de juros * Este trabalho foi desenvolvido por ocasiso de uma pesquisa de campo relacionada com o desenvolvimento de minha tese de doutoramento sob a orientagao da professora Victoria Chick. Além de minha orientadora, agradeso os comentérios de Femando Cardim de Carvalho, Fébio Giambiagi, Mauricio M. Moreira ¢ dois referees anénimos c 0 apoio financeiro do CNPq. Os poss{veis erros ¢ omissdes so, entretanto, de inteirares- ponsabilidade do autor. *** Mestre pelo Instituto de Economia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando pe- Ia University College London. 101 abaixo da taxa de equilfbrio (que gerariam uma poupanga e fundos emprestdveis abaixo do potencial) e politicas de crédito seletivo (que distorceriame tornariam menos eficien- te a alocagdo de poupancas). Otexto se utiliza da teoria de Keynes e de desenvolvimentos pés-keynesianos (tais como a hip6tese de fragilidade financeita de Minsky) para apresentar uma critica A vi- so convencional e também para langar as bases de uma alternativa. No que tange a cri- tica, procura-se mostrar que taxas de juros altas ¢ politicas liberalizantes nao provocam aumento da poupanga, muito menos do investimento. Por outro lado, taxas de juros al- tas podem inviabilizar projetos de investimento, gerar incapacidade de repagamento das unidades endividadas e provocar surtos de instabilidade financeira. Na alternativa p6s-keynesiana apresentada aqui, com base no circuito financia- mento-investimento-poupanga-funding, o papel do sistema financeiro é mais complexo cessencial que o de um simples intermediador entre investidores e poupadores. Primei- To, especialmente em situagdes de crescimento, a participagio ativa do sistema bancdrio éessencial na determinagao do volume de financiamento do investimento. Em segundo ugar, a poupanga, embora criada como subproduto do processo multiplicador do inves- timento, pode desempenhar um papel fundamental na consolidagio financeira do passi- vo de curto prazo das empresas inversoras e dos bancos. Tal andlise também apontaa ne- cessidade de um ambiente institucional favorével ao crescimento financeiramente est- vel, tal como a existéncia de mecanismos de financiamento de longo prazo, que nem sempre se desenvolvem somente através das forgas de mercado (muito menos pela sim- ples desregulamentagio do mercado financeiro). Visando discutir os t6picos apontados, o texto se divide, além desta introdugao, em u@s partes: a segdo 2 revé sucintamente a visio convencional sobre o funcionamento ea funcionalidade do sistema financeiro em economias de mercado; a segao 3 apresenta uma visdo p6s-keynesiana alternativa; e a quarta compara as duas visées alternativas, re- sume os argumentos e apresenta as conclusées. 2, POUPANCA COMO FONTE DE FINANCIAMENTO: A VISAO CONVENCIONAL 2.1 A teoria dos fundos emprestéveis, o sistema bancdrio e o mercado de capitais: investimento, poupanca e taxa de juros natural Para 0s cléssicos (Ricardo, por exemplo), a distingdo entre os atos de poupar e in- vestir nao era relevante do ponto de vista te6rico e, portanto, 0 financiamento do inves- timento era diretamente identificado com poupangas individuais. Como observa Chick (1983; 1986), essa visdo é bastante compativel com um estigio de desenvolvimento do sistema monetério onde a moeda-mercadoria é o meio de pagamento por exceléncia, Nesse estigio, 0 crédito representa transferéncias de saldos de moeda-mercadoria de agentes superavitérios para agentes deficitétios, seja diretamente ou através do mercado financeiro. * } Chick (1986) apresenta uma interessante discussio sobre a rclagio entre 0s estégios de desenvolvimento do sistema bancério ¢ a tcoria monetéria, sobre a qual voltaremos a falar. Para uma anélise dessa evolugio nos primérdios da revolugio industrial em diversos pafses europeus, v. Cameron (1967, 1972). 102 Tal perspectiva se torna, entretanto, menos palp4vel quando, com 0 advento do sis- tema bancério modemo, 0 crédito pode se converter simplesmente numa operagao con- tdbil de criagio simultnea de um ativo (empréstimo) e um passivo (depésitos). Como mostra Rogers (1989), o papel da teoria dos fundos emprestdveis mostrar que, mesmo numa economia onde a moeda bancéria representa a maior parte dos meios de pagamen- to, o crédito continua a se comportar como se a economia fosse totalmente dominada por moeda-mercadoria. Ou seja, tal teoria procura estender os resultados da teoria quantita- tiva cldssica a uma economia com um sistema monetério desenvolvido, reestabelecen- do assim a dicotomia classica (entre vari4veis monetérias e reais).? Indiretamente, a teoria dos fundos emprest4veis também restabelece a visio con- vencional sobre o papel do sistema financeiro, qual seja, intermediago de poupangas. O mercado de capitais de maneira geral é definido através de duas curvas: a fungo de pou- panga (inversamente relacionada com a taxa de juros, r) que reflete as preferéncias inter- temporais das unidades familiares; e a curva de investimento, como uma fungdo direta do retorno sobre o capital (rk).’ O equilfbrio no mercado de fundos emprestaveis é alean- gado quando a taxa de juros de mercado (1) se iguala a “taxa natural de juros” (m), que equilibra a poupanga e investimento desejados (logo r=m=rk). O investimento eo cres- cimento seriam determinados, em dltima instancia, pelo estado da tecnologia e pelas preferéncias dos consumidores. A introdugdo da moeda no esquema neocléssico da teoria dos fundos emprestiveis, portanto, nao modifica essencialmente a visaio sobre o mercado financeiro enquanto me- ro intermediador de poupangas. O crédito acima (ou abaixo da “poupanga voluntaria”) € tratado como um fenémeno de desequilibrio e/ou ligado a imperfeigées na intermedia- gio financeira, tais como estruturas nao competitivas ou distribui¢do ineficiente de in- formacées. Uma das caracterfsticas da teoria monetéria moderna é uma convergéncia teérica no sentido da teoria dos fundos emprestaveis. Ap6s a Teoria Geral de Keynes, essa con- vergéncia se da através da s{ntese ncoclAssica hicksiana‘ e da andlise de escolha de por- tif6lio tobiniana. A dltima reinterpreta a teoria da preferéncia pela liquidez de Keynes dentro de uma abordagem de equilfbrio geral, substituindo 0 conceito de incerteza (no que tange as decisées de alocagdo de riqueza financeira ¢ sua relagdo com a taxa de ju- ros) pelo conceito de risco. (V. Pettenati, 1977 e Chick, 1983.) * Determinadas as propensdes a risco dos agentes, a alocaco das poupangas indivi- duais pode ser prevista e 0 portif6lio agregado dos ativos financeiros estabelecido (To- bin, 1958). Variagdes dentro desse portifélio 6timo s6 podem ser obtidas, ceteris paribus, através de mudangas nas taxas de juros. Dessa forma, para que a politica mone- tiria seja eficaz na promogao do crescimento (ou para que o sistema financeiro tenha um 2 Ou seja, tal teoria procura estender os resultados da tcoria quantitativa cléssica a uma economia comum tema monetirio desenvolvido, restabelecendo assim a dicotomia cléssica (entre varidveis monctirias e reais). 3.0 retorno marginal sobre o capital €, por sua vez, definido pela fungao de produgio ¢, logo, pelo estado da tecnologia. 4 Para uma andlise erftica da s{ntese de Hicks (1937), v. inter alia Leijonhufvud (1968), Davidson (1972) © Chick (1983). SRisco aqui édefinido pela variancia do retomo do ativo, onde implicitamente se supBe que a distribuigo pro- bbabilfstica dos retornos (retorno médio ¢ varidncia) seja aprioristicamente conhecida por todos os ageates. Pa~ rauma discussio sobre a diferenga entre os conceitos de risco ¢ incerteza numa revisio critica da teoria da es- colha de portifétio da taxa de juros de Tobin, v. Chick (1983). 103 papel ativo na alocago de recursos reais), é preciso que ela seja capaz de reduzir o retor- no percebido sobre moeda, “forcando” a substituigao de moeda por ativos de capital no portifblio dos agentes (Tobin, 1965). A eficdcia da utilizaco de tal politica como parte da estratégia de promogio do crescimento dependeria, portanto, das hipéteses sobre a formagio de expectativas dos agentes e o grau de substitutibilidade entre ativos.” Em suma: na visdo que se formou a partir da s{ntese neocldssica e da andlise tobi- niana a poupanga continua a representar o sistema financeiro como mero provedor de meios de pagamentos e intermediério de poupangas. Enquanto tal, a funcionalidade do mercado financeito se baliza pela alocacao eficiente de recursos poupados entre diver- sas oportunidades de investimento produtivo, enquanto o volume desses recursos (e, portanto, do investimento e do crescimento) & determinado exteriormente ao sistema. O ambiente institucional s6 ¢ relevante na medida em que se desvia do paradigma do mer- cado competitivo, por exemplo quando a taxa de juros é “reprimida” pelo governo e/ou quando a distribuigao de informacao entre poupadores ¢ investidores finais é feita de forma equanime.* 2.2 A visdo convencional aplicada 4 teoria do desenvolvimento: a literatura da “liberalizagdo financeira” A visio convencional de que o financiamento do investimento pressupde poupan- a prévia também serve de base para andlises mais propriamente ligadas 4 economia do desenvolvimento, ainda que apresentadas em vestes diferentes, Por exemplo, a literatu- ra que se seguiu as obras clissicas de Shaw (1973) e McKinnon (1973) centra sua andli- se no que se cunhou de “repressio financeira” e seus efeitos supostamente deletérios pa- ra paises em desenvolvimento. ° Por exemplo, a manutengo de um nfvel de investimento acima da poupanga voluntéria s6 seria factivel ea- s0 as expectativas inflaciondrias dos consumidores (incorporadas a sua taxa de juros real esperada) respondes- sem lentamente a mudancas de oferta monetiria. Na medida em que, por exemplo, se assmem expectativas Aadaptativas, a intervengdo no livre funcionamento dos mercados de capital através de politicas monetérias ex- pansivas implica um rade-off entre accleragao ¢ investimento e estabilidade de pregos. Para uma andlise das

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