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MANIFESTO PARA

ABOLIR AS PRISÕES
Ricardo Genelhú
Sebastian Scheerer

MANIFESTO PARA
ABOLIR AS PRISÕES

Editora Revan
Copyright © 2017 by Editora Revan
Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte
desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou
via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
Editor
Renato Guimarães
Editora assistente
Mariana Vianna Abramo
Capa
Mariana Vianna Abramo
Ricardo Genelhú
Imagem da capa
Getty Images

Revisão
Janda Montenegro

Diagramação
Patricia Seabra
Impressão e acabamento
(Em papel off-set 75 g. após paginação eletrônica,
em tipos MyriadPro 11/13)
Psi7 - Printing Solutions & Internet 7 S.A.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

F874c
Fragoso, Christiano Crimes de furto e de roubo / Christiano Fragoso, Patricia
Glioche. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Revan, 2017.
276 p. : il. ; 21 cm.

Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7106-585-7

1. Roubo. 2. Furto. 3. Direito penal. I. Glioche, Patrícia. II. Título.


16-38525
           CDU: 343.711+343.712
12/12/2016  13/12/2016
Para toda carne viva que o estigma das instituições totais
não deixou cicatrizar.
AGRADECIMENTOS

À memória de LOUK HULSMAN, NILS CHRISTIE e MASSIMO PAVA-


RINI, cuja luta instalou os artefatos que implodirão os alicerces das
prisões.
Ele se lembrou de uma antiga discussão na prisão: o que era pior, mais
assustador – o campo de trabalhos forçados ou a prisão?
Varlam Chalámov – Contos de Kolimá
SUMÁRIO

MANIFESTO PARA ABOLIR AS PRISÕES......................................................15


INTRODUÇÃO.......................................................................................................23
1 O PRESENTE DO SISTEMA PRISIONAL.....................................................67

1.1 O QUE É O PODER PRISIONAL?...........................................................67

1.2 QUEM SÃO OS SEUS ATORES?.............................................................77

1.2.1 Construindo um inimigo.................................................................77

1.2.2 O inimigo precisa ser conveniente...............................................90

1.2.3. Quem são os seus operadores?................................................. 103

1.3 A QUEM E PARA QUE ELE SERVE?.................................................... 107

1.4 POR QUE ELE FOI INVENTADO?....................................................... 112

1.4.1 A prisão castigo e a prisão armazém: um fracasso


acumulado, mas conveniente........................................................... 112

1.4.2. Para impor dor e sofrimento...................................................... 127

1.4.3 Para reproduzir sua clientela....................................................... 133


1.4.3.1 O ENCARCERAMENTO EM MASSA................................... 133

1.4.4 Para poder decidir sobre


os dissidentes e os inservíveis........................................................... 139

1.4.5 Ele retribui os crimes praticados?.............................................. 143

1.4.6 Ele previne os crimes praticados?............................................. 147


1.4.6.1 ELE PREVINE GENÉRICA E POSITIVAMENTE?................ 151
1.4.6.2 ELE PREVINE GENÉRICA E NEGATIVAMENTE?.............. 154
1.4.6.3 ELE PREVINE ESPECIAL E POSITIVAMENTE?................. 161
1.4.6.3.1 A NÃO (RE)SOCIALIZAÇÃO
COMO CULPA DO ESTADO.................................................................... 165
1.4.6.3.2 QUANTO PIOR, MELHOR. A TEORIA
DA REGRESSÃO E A LESS ELIGIBILITY................................................ 173
1.4.6.3.3 O (RDD) REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO.............. 178
1.4.6.4 ELE PREVINE ESPECIAL E NEGATIVAMENTE?................ 192

1.5 COMO ELE FUNCIONA?....................................................................... 196

1.5.1 O poder prisional se autonomizou


e os seus servidores se emanciparam............................................ 205

1.5.2 A polícia se tornou independente e soberana..................... 228

1.5.3 A seletividade do sistema prisional.......................................... 247


2 O FUTURO DO SISTEMA PRISIONAL...................................................... 259

2.1 UM FUTURO QUE REPETE O PASSADO


E JÁ CHEGA ENVELHECIDO................................................................... 264

2.1.1 A eleição do sistema prisional como


ortopedista moral, educacional e social........................................ 265

12  Manifesto para Abolir as Prisões


2.1.2 A adoção de penas e medidas
alternativas (rectius: opcionais)........................................................ 273

2.1.3 A tentativa do numerus clausus.................................................. 276

2.1.4 A privatização do setor prisional............................................... 278

2.2 A ABOLIÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL


É UMA NECESSIDADE INADIÁVEL...................................................... 286

2.2.1 A abolição da prisão como única opção


viável e as estratégias para que ela aconteça.............................. 286
ANEXOS

MANIFESTO ABOLICIONISTA ITALIANO............................................... 309

MANIFESTO ABOLICIONISTA FRANCÊS............................................... 317

MANIFESTO ABOLICIONISTA FRANCÊS............................................... 323


BIBLIOGRAFIA.................................................................................................... 327
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 329

Sumário  13
MANIFESTO PARA
ABOLIR AS PRISÕES

As provocações
1. Vale a pena continuar utilizando uma ferramenta como a pri-
são, que há 250 anos não cumpre as promessas que faz, como
a de reabilitar os presos, a de intimidar os pretensos criminosos,
a de nos oferecer segurança, etc.? A ponto de realimentarmos
irresponsável e arrogantemente um sistema fracassado e sem
conserto? Apenas para não termos que admitir nossa parcela de
culpa e eliminar as diferenças sociais que nos destacam?
2. Há sentido em permitirmos que o nosso receio do aumento da
criminalidade acabe investindo em uma instituição que amplia
justamente essa mesma criminalidade que tememos, ao invés
de reduzi-la?
3. Quais as vantagens de se tentar melhorar a prisão, deixando-a
mais limpa, bonita e segura, se a sua clientela continuará sendo
composta pelas mesmas pessoas, escolhidas, geralmente, den-
tro de um grupo ao qual nós mesmos pertencemos?
4. Que motivos nos levam a crer que a prisão vai resolver o pro-
blema criminal se, ao compararmos países com prisões bonitas,
limpas e seguras, percebemos que a diferença na redução da cri-
minalidade somente acontece naqueles que investem na igual-
dade ou na assemelhação prévia das pessoas, seja esta financei-
ra, educacional, de oportunidades, etc.?
5. Não é mais lógico acreditar e buscar opções para a solução dos
conflitos que sejam menos seletivas que a prisão e que, elabo-
rando os danos dos que realmente estão envolvidos no drama
social, atendam às suas necessidades o máximo possível?
6. É aceitável que continuemos nos submetendo, e aos outros, à
vontade de alguns que jamais serão aprisionados, como se a
nossa ignorância servisse de proteção para os dominantes?
7. Não está abaixo da inocência ou da covardia o raciocínio de que
a prisão, parecendo ser um mal necessário, apenas serve para
reproduzir a violência mediante a imposição de violência real e
simbólica?
8. Não é hipocrisia de nossa parte requentar o pagamento dos des-
vios de todos mediante a prisão de poucos, enquanto tranqui-
lizamos nossos pensamentos horizontalmente no conforto do
nosso leito?
9. Tem compensado a nossa contribuição, ainda que indireta, para
o fim da humanidade mediante a aceitação do aumento des-
controlado da criminalidade, promovido pelo uso irresponsável,
mas convenientemente maldoso e injusto, da prisão?

As razões
10. A prisão humilha, estigmatiza e impõe uma dor cruel e um so-
frimento inútil e perigoso, todos irreversíveis e potencialmente
multiplicadores da violência recebida.
11. A prisão como castigo substituiu formalmente a prisão como ar-
mazém. Porém, isso não representou uma evolução. Em vez de
ser uma opção melhor, materialmente a prisão sanção acumulou
os seus fracassos e os da sua antecessora formal. Hoje a prisão
serve como depósito dos descartáveis e como castigo dos deso-
bedientes.
12. A prisão é mentirosa e criminosa. Mentirosa porque finge contro-
lar, evitar e prevenir crimes. Na verdade ela os produz e reproduz,

16  Manifesto para Abolir as Prisões


fabricando inimigos. Criminosa porque sequestra quase metade
dos presos e se omite quanto a violações dos seus direitos.
13. A prisão serve ideológica, e não logicamente. O Estado a usa
para permitir a instalação da desgraça e depois se oferecer como
único capaz de resolvê-la. Por isso quanto mais se prende, mais a
prisão se impõe. Então, ela não pretende ser melhor ou melhorar
o preso. A sua falência é a sua maior arma. Simbolicamente ela
também serve para manter as diferenças entre as classes sociais.
Enfim, ela presta para quase tudo, menos para acabar com a cri-
minalidade, ressocializar os encarcerados e proteger as pessoas
contra eles.
14. A prisão divide a sociedade em direito prisional do amigo e po-
der prisional do inimigo. Os amigos são os intocáveis. Já os ini-
migos podem ser presos por conveniência. É quase impossível a
prisão se revoltar contra aqueles que a dominam. Esta autofagia
só acontece quando a exclusão de um elemento da classe do-
minante é estrategicamente interessante ao restante dos seus
membros.
15. Geralmente os que trabalham no sistema prisional não perce-
bem que estão sendo manipulados por ele e acreditam estar
fazendo o que é melhor para todos. Essa alienação é perigosís-
sima porque legitima a prisão como braço a serviço de quem os
manipula.
16. Há ainda os que indevidamente compatibilizam a sua boa fé
com a sua necessidade de se distinguir socialmente. Esses ser-
vidores não conseguem elevar o seu nível pessoal financeiro,
educacional e profissional usando suas próprias forças. Então,
eles rebaixam o nível dos encarcerados mediante humilhações,
extorsões, torturas, etc. Com isso, eles promovem a autoilusão
do destacamento e do pertencimento a uma classe imaginária
superior, bem como a canalização das suas insatisfações.
17. O péssimo estado das nossas prisões é usado para incentivar as
privatizações, cujo objetivo é o lucro. E o investimento no me-
lhor aspecto dos presídios privatizados serve de incentivo para
a ampliação das parcerias público-privadas, com aumento da

Manifesto para Abolir as Prisões  17


lucratividade. Fora dessa ciranda financeira, em que o preso é
desprezado, as prisões bonitas, limpas, seguras e bem intencio-
nadas não deixam de ser um fracasso porque elas continuam
sendo seletivas.
18. Quem convoca ou obtém o apoio da prisão fica em vantagem
porque aparenta estar com a razão, independentemente do que
o outro fez. Basta o que ele representa: o inimigo que dizem nos
assustar. A prisão, então, inverte a lógica da responsabilidade:
aquele que está em liberdade pode ser inocente, mas aquele
que está encarcerado certamente é culpado, mesmo que ele ve-
nha a ser inocentado. A prisão é, portanto, residual.
19. Ao prender mais os afrodescendentes e os pobres a prisão con-
vence as pessoas de que eles cometem mais crimes porque eles
têm a personalidade, geneticamente transmitida, voltada para
o mal.
20. Em época de guerra quem personifica o papel de suposta ame-
aça ao Estado é o inimigo externo. Em época de paz esse prota-
gonismo é encenado pelo inimigo interno. Por ele ser doméstico
e por rondar livremente próximo às pessoas como se fosse uma
delas, estas acabam usando a prisão de maneira preventiva, vi-
sando a reduzir ou a eliminar os riscos. Com isso legitimam que
as prisões antecipem os juízos de reprovação a ponto de posicio-
ná-los antes mesmo da prática de um crime. Primeiro se prende,
depois se buscam e se montam fatos e argumentos para justifi-
car a prisão.
21. Quanto mais liberdade a prisão tem para encarcerar sem moti-
vos, mais livre ela se torna.
22. A prisão se tornou fragmentária. Cada um dos seus operadores
age conforme a sua conveniência. Mas, ela não se tornou subsi-
diária. Ela continua sendo a prima ratio, a primeira a ser convoca-
da. E não somente quando o assunto é criminal. Ela também tem
sido usada como tentativa de correção em questões educacio-
nais, morais, religiosas, sociais, de etiqueta, etc.
23. A prisão se autonomizou. Ela se desgarrou do criminoso, da sua
conduta, do crime, da perseguição, da acusação, da culpabilida-
18  Manifesto para Abolir as Prisões
de, da condenação e da pena e passou a atuar arbitrariamente,
sem se incomodar em ser contraditória e incoerente.
24. Os operadores do sistema prisional converteram as suas preocu-
pações em obsessão, passando a agir também autonomamen-
te para conseguir atender à sua angústia. Como suas angústias
estão desvinculadas da realidade eles aprisionam simplesmente
em razão de uma vontade ou um dever abstrato, sem lastro com
o mundo concreto. Por isso eles têm prendido inocentes e sol-
tado culpados, ou prendido um culpado e deixado outro solto.
25. Os inimigos convenientes da sociedade não conhecem e não
têm acesso ativo ao judiciário. A polícia e a prisão são tribunais
disponíveis apenas contra eles. Enquanto a polícia os acusa, jul-
ga e condena, o judiciário apenas homologa a versão daquela.

A convocação
26. Eleita um mal necessário, a prisão causa mais problemas do que
resolve. Não há alternativa para ela. Nem que a melhore ou que
reduza seus danos. A única saída possível é a abolição das pri-
sões.
27. A abolição das prisões não é utópica. Existiram e existem socie-
dades desaprisionadas. Elas eram e são mais civilizadas que nós.
A prisão é a barbárie. Distópicas são as promessas que ela não
cumpre. Reais são os rastros de sofrimento que ela tem deixado.
Todos os que ela toca, ou que dela se aproximam, são suas víti-
mas: os presos, o pessoal funcional interno (agentes prisionais,
etc.) e externo (policiais), os familiares, os demais cidadãos, etc.
28. Continuar apostando na prisão é um investimento visivelmen-
te fracassado, cujas consequências estão respingando cada vez
mais em nós e em quem amamos.
29. Sustentar a sua manutenção é compactuar com a prática de um
crime estatal. É legitimar a imposição da mesma dor e do mesmo
sofrimento que reprovamos quando produzido pelo criminoso.

Manifesto para Abolir as Prisões  19


30. Não há sentido em acreditar que a prisão vai acabar com a crimi-
nalidade quando o que ela está fazendo é aumentá-la assusta-
doramente a cada dia.
31. É um contrassenso adiar a busca de uma solução mais adequada
para os conflitos que a prisão, principalmente porque, enquanto
isso, tentamos, quando muito, tornar a prisão melhor. Melhorar a
prisão não diminui o sofrimento de todos, apenas o deixa esteti-
camente menos feio e menos indigesto.
32. É possível um mundo melhor. Os países nórdicos e escandina-
vos demonstram isso. Em vez de reprimir, é mais útil, seguro e
digno investir em políticas públicas de redução das desigualda-
des sociais, etc. Porém, é preciso boa vontade e um ato revolu-
cionário. Usar a desculpa de que enquanto não formos um país
de primeiro mundo a prisão precisará continuar sendo um mal
necessário é de um misantropismo seletivo e de um misoneísmo
absurdamente covarde, aptos a atenderem as necessidades mais
terríveis do Estado prisional. Se o problema é anterior à prisão,
em vez de defendermos a sua manutenção horrível como conse-
quência inevitável, devemos lutar para que as situações sociais
desiguais, que a antecedem e que supostamente a justificam,
sejam alteradas para melhor.
33. É preciso menos coragem para buscar alternativa à prisão que
para legitimar – como temos feito –, a sua continuidade como
impositora de suplício, inclusive a pessoas inocentes.
34. É necessário que repensemos urgentemente qual é a condição
social que gostaremos de usufruir e qual é a sociedade que pre-
tendemos deixar para as novas gerações. De tudo, há uma certe-
za: quem se mantiver passivo estará preferindo apoiar indireta-
mente uma instituição que é ingrata e que nem sempre protege
quem a legitimou um dia. Uma instituição que produz corpos
que se revoltarão em breve, sem optar entre quem os defendeu
ou não.
35. Escolher apoiar a prisão ou se omitir diante dos seus crimes pode
integrar o rol de liberdades das pessoas, mas o sofrimento das

20  Manifesto para Abolir as Prisões


consequências dessa escolha pode atingir gravemente a todos,
indistintamente e sem piedade.
36. É obrigação de todos nós tomarmos a melhor decisão, e ela con-
siste primeiro na acreditação de que é possível uma opção me-
nos violenta que a prisão, e, segundo na exigência de implemen-
tação estatal das condições ideais para que as circunstâncias que
conduzem à prática dos crimes não sejam impostas às classes
vulneráveis a elas.
37. Este manifesto não é apenas uma defesa dos inimigos artificiais.
Ele representa um desejo por um mundo melhor, onde menos
pessoas sofram e mais pessoas sejam felizes. Nenhum dos dois
pressupõe a prisão, pelo contrário: são com ela incompatíveis.
Agora é preciso assumir um lado na história. O que defende uma
instituição fracassada e sem conserto ou o que defende que a
melhor prevenção é a igualdade social.
38. Ou será que estamos dispostos a sermos acusados de covar-
des pelas gerações futuras por não termos ao menos tentado?
Sobretudo diante de uma situação prisional que dá inegáveis
amostras de piorar diariamente?
39. Nenhuma tentativa, por mais acusações que ela atraia, pode ser
pior que a questão prisional que estamos vivendo hoje. Nenhu-
ma!

Manifesto para Abolir as Prisões  21


INTRODUÇÃO

E m outras palavras, não é o momento de falar em acabar com as


prisões. Porém, a abolição deste castigo, que é tão cruel quanto irra-
cional, deve ser discutida no momento errado. É a única maneira para
que um dia seja o momento certo.

[…] dito de outra forma, esse não é o momento de falar em supri-


mir as prisões, mas a abolição dessa punição tão cruel quanto irra-
cional deve ser discutida. Então, falar da abolição fora de hora é o
único meio para que um dia chegue a hora [certa]1. (Baker, 2004)

A própria ideia da prisão moderna falhou desde o início. Visto em


retrospectiva, foi uma clara ilusão esperar que a torturante cela indi-
vidual promovesse a maravilha de transformar criminosos em cida-
dãos cumpridores da lei.
A ideia de melhorar as pessoas confinando-as a uma cela solitária
nunca foi muito coerente e convincente. Na primeira prisão modelo
– o Walnut Street Prison, na Filadélfia –, a esperança era levar presos
a uma verdadeira fé em um Deus e a um arrependimento sincero de
seu comportamento pecaminoso no passado. Na solidão de sua cela
o condenado estava livre das más influências de fora dos muros da

1
BAKER, Catherine. Pourquoi faudrait-il punir? Lyon: Tahin party, 2004.
prisão, e também da pressão de outros internos, dos quais o con-
denado não seria capaz de sequer ter um vislumbre durante todo
o tempo de sua estada. Ele estava sozinho com a Sagrada Escritura
e com as suas tentativas de ouvir a voz de um Deus que repreende,
perdoa e corrige.
Evidentemente, o próprio conceito de colocar presos em celas in-
dividuais pequenas tinha sido tomado de empréstimo dos mostei-
ros cristãos tradicionais. A ideia deste sistema, que havia funcionado
bem para os monges por um milênio, também funcionaria com os
delinquentes. Para a surpresa dos seus inventores, porém, o sistema
produziu um número improvável de falhas no sentido de suicídios,
depressões e loucura total. O que eles tinham esquecido de observar
era o simples fato de que os monges não passavam todo o tempo em
suas celas individuais, e que a base de sua vida produtiva era em par-
te comunitária: eles oravam, adoravam, falavam, comiam e bebiam
juntamente com os outros. E foi essa parte do mosteiro que a prisão
celular não replicou. O total e não voluntário isolamento de todos
os outros seres humanos tem uma força que conduz à insanidade.
Hoje isso parece óbvio, mas para os inventores bem intencionados
da prisão esse não parecia ser o caso. Privação sensorial e isolamento
completo era a falha fundamental que estava na origem da prisão
celular, e que a impediu de funcionar da maneira que deveria. Seria
algo como o pecado original do projeto prisional, ou, colocando em
termos menos metafísicos: as prisões foram, desde as iniciais, nada
além do que “erros gigantes petrificados”, como afirmou Eberhard
Schmidt.
Enquanto as prisões permaneceram o que eram – uma multidão
de “celas-gaiolas” em grandes edifícios –, nenhuma das muitas modi-
ficações na Filosofia e na prática correcional conseguiram superar as
influências negativas desta moldura.
A ideia religiosa original da Filadélfia – de um sistema separado
para produzir pecadores fiéis e arrependidos mediante o isolamento
completo –, foi logo rivalizada pelo sistema silencioso de Auburn –
que deixaria prisioneiros trabalhar, porém sem diálogo, em conjunto
por dia, e só os separava à noite –, e reformada apenas ao longo da
linha do sistema progressivo irlandês e de suas diversas variações.
24  Manifesto para Abolir as Prisões
Uma vez que nenhum destes modelos atendeu às expectativas de
seus inventores, o processo de reforma do sistema prisional conti-
nuou até o dia de hoje. Mesmo a mais recente tentativa de moderni-
zação, que é a ideologia do tratamento, já se esgotou.
Treinar as pessoas para uma vida livre, retirando-os da sua liber-
dade, não é uma ideia muito coerente. Como observadores experien-
tes têm apontado uma vez ou outra, não há simplesmente nenhuma
prova de que o tratamento construtivo seja possível sob condições
de privação de liberdade2 (Busch, 1986). No entanto, tem-se tentado
vez após vez. As prisões foram vistas como “tratamento”, centros ou
locais para infratores. Essa “terapia” de longo prazo, porém, não ob-
teve sucesso.
Por outro lado, a história das punições já viu crueldades muito pio-
res do que a prisão. Por uma questão de fato, nenhum dos sistemas
de sanções anteriores já tinha sido tão elogiado por parte dos teóri-
cos e praticantes como o foi a invenção da prisão moderna, também
conhecida como penitenciária. Com o tempo, porém, a promessa da
prisão teve que dar lugar a uma profunda desilusão geral. Acredita-
va-se ser algo como uma panaceia para a delinquência na medida
em que era ao mesmo tempo humana ao condenado e eficaz em
proteger a sociedade. Acontece que as descrições contemporâneas
da realidade do encarceramento em massa tornam difícil acreditar
que as dificuldades pelas quais o sistema prisional sofre poderiam
ser resolvidas pela reforma. Não há nenhuma maneira de preencher
a lacuna entre o ideal de reabilitação e a realidade abusiva e degra-
dante da vida na maioria dos sistemas prisionais do mundo. Não há
modo de melhorar as condições das prisões sem primeiro resolver
o complexo prisional-industrial, as relações de poder e as restrições
fiscais que regem a política da prisão. Sem mencionar a opinião de
um público vingativo e sua exploração e influência por interesses mi-
diáticos.
Em vez de investir na continuação de um movimento de reforma
que há um século tenta aperfeiçoar as condições prisionais polega-
da por polegada, devemos, sim, mirar e seguir em frente. Enquanto

2
BUSCH, 1986.
Introdução  25
aqueles que apostam em reformas fragmentadas estão sendo frus-
trados pela teimosia do sistema, o tempo tem passado e tem produ-
zido prisões obsoletas, sem que eles percebam. Na era digital o con-
trole não depende mais de tijolos e cercas. O tempo está escorrendo
e as prisões estão apenas esperando para serem destruídas, a fim de
serem substituídas por algo melhor. Se a crueldade e a falta de efici-
ência foram o grito de guerra desses reformadores do século XVIII,
que defendiam a substituição de castigos corporais, em parte pelo
modelo penitenciário, chegou o momento da prisão confrontar os
mesmos argumentos: o excesso de desumanidade, ineficácia, custo,
tendência, injustiça e tortura.
É hora de pensar nas prisões sob um ângulo principiológico, mais
realista e com menos desculpas. É hora, em suma, de pensar em algo
melhor que as prisões para que possamos, de uma vez por todas, der-
rubar as suas paredes e fechar esse capítulo na história dos castigos.
Assim como nossa geração é grata aos antepassados por terem nos
deixado um mundo livre de instituições como a combustão de bru-
xas e o chicoteio de escravos, as gerações futuras vão sentir orgulho
de viver em uma sociedade que tenha ultrapassado as dores da pri-
são mediante a substituição desta por uma maneira muito melhor
de reagir ao crime e aos criminosos. A prisão, assim como os castigos
corporais em épocas anteriores, ainda está sendo considerada pelo
homem como indispensável para a manutenção da ordem pública.
Porém, isso é uma ilusão! Nós podemos conviver sem a prisão! Tomar
esta decisão vai ser difícil no início, mas gratificante no final! E será
apreciada como uma grande melhoria da qualidade de vida em favor
do bem de todos!
É hora de encerrar o capítulo das prisões na história da punição.
Para explicar esta posição e para discutir a maneira como realizá-la,
nós escrevemos este texto. Nosso argumento vai contra o aprisiona-
mento como punição para o crime. Ele é direcionado contra os edifí-
cios nos quais a pena de prisão está sendo executada. Com um termo
alemão um pouco antiquado para privações de liberdade punitivas
ordenadas pelo Tribunal, poderíamos dizer: defendemos a abolição

26  Manifesto para Abolir as Prisões


da Strafgefängnis3. Isso é mais do que pedir uma proibição de novas
construções de prisões. E é ainda mais do que defender uma diminui-
ção do sistema prisional, reduzindo-o para metade ou menos do seu
tamanho atual. Isso significa acabar com todas as prisões sem exce-
ção, e independentemente das suas autodescrições muitas vezes eu-
femistas como Justizvollzugsanstalten4, ou instituições correcionais.
É um chamado para pararem a prática de punir as pessoas por meio
do encarceramento. Para enviar as pessoas para a prisão – novas ou
velhas, grandes ou pequenas, ou como quer que sejam chamadas –,
deve-se torná-las tão obsoletas quanto a escravidão de antigamente.
Dito isso, não hesitemos em reconhecer que a instituição peculiar
da prisão teve seus méritos no passado e continua a cumprir algumas
funções importantes nas sociedades contemporâneas. Assim como
essas funções são necessárias e legítimas, elas podem ser interpreta-
das como formas melhores de tratar as coisas. No entanto, uma vez
que o melhor é inimigo do bom, isso – nem nada –, deve nos impedir
de dar esse passo à frente. No final da contabilidade, não devemos
nos cegar pelo lado bom do aprisionamento, sobretudo para desco-
brirmos o que será necessário para substituir a prisão no futuro.
Primeiramente – o que provavelmente é o melhor a ser dito so-
bre a prisão –, a intenção não foi a de apenas ser uma resposta mais
adequada, humanizada e eficaz para o crime que a que a havia pre-
cedido. Embora até certo ponto essa intenção tenha sido mesmo re-
alizada.
Para tanto, basta pensarmos nas execuções, como as de Berlim,
no ano de 1800:

A mulher foi amarrada e rapidamente sufocada, e seus membros


e pescoço foram quebrados por uma série de golpes com o car-
rinho de mão pesado empurrado pelo executor. De acordo com
a prática habitual de manejo dos corpos foi então desamarrada e
presa à roda, que foi colocada na horizontal em um poste vertical

3
Espécie de prisão onde se cumpre a pena privativa de liberdade (exceto
a prisão preventiva, a custódia policial etc.).
4
Termo oficial jurídico-administrativo para prisões.
Introdução  27
longo fixado no chão ao lado do andaime [...] e depois foi cortada
a sua cabeça e colocada em cima do poste5. (Evans, 1997)

Se compararmos esta cena – no qual o castigo parece ser uma de-


monstração da mera nulidade do delinquente quando visto a partir
da torre de poder soberano –, com a imagem do delinquente como
um pecador, e o papel da punição como uma maneira de uma ressur-
reição simbólica, podemos imaginar as profundezas do abismo que
separava o novo sistema do velho. A promessa da prisão, de nunca
mais voltar às atrocidades de outros tempos, foi e é um dos argumen-
tos mais fortes que poderiam ser concedidos em seu favor.
O espetáculo repugnante do pelourinho, das chicotadas públicas,
marcações, mutilações e execuções – mais frequentemente na forma
de enforcamento, mas ocasionalmente também cortando em peda-
ços o corpo de um condenado, cozinhando-o em óleo ou queiman-
do-o na fogueira –, explica as reações positivas dos contemporâneos
para com a invenção da pena de prisão como uma resposta padrão
nova e mais humana para o crime.
Nas sociedades anteriores – as do poder soberano –, as execuções
eram uma espécie de teatro de propaganda em que o condenado
tinha que desempenhar o seu papel como antagonista derrotado
por quem exercia aquele, a ponto de ser esmagado na frente de um
público impressionado que justamente sentia que lhe estava sendo
ensinada uma lição importante da lei e da sua violação, do poder e
da subordinação. A rigor, a ideia de que ao delinquente poderia ser
dada a oportunidade de ser reinserido no grupo da boa sociedade
era completamente estranha ao sistema antigo. Isso explica porquê a
ideia da penitenciária como um meio para punir e reabilitar o crimi-
noso foi uma verdadeira revolução cultural (progresso esse não dimi-
nuído pela visão crítica de Michel Foucault sobre o poder disciplinar
amalgamado).
Em contraste com os espetáculos de sofrimento que caracteriza-
ram a justiça penal europeia desde a Alta Idade Média até o início

5
EVANS, Richard. Rituals of retribution: capital punishment in Germany,
1600-1987. Harmondsworth: Penguin, 1997, p. 194.
28  Manifesto para Abolir as Prisões
da modernidade, a penitenciária foi concebida como um guarda,
não um assassino. Esta prisão moderna sustentou que aqueles con-
finados dentro de suas paredes eram suscetíveis de melhoria e, em
princípio, mereciam uma segunda chance. Não somente uma chance
para saírem pelas portas da prisão, uma vez que eles tinham cum-
prido sua pena, mas para serem capazes e estarem dispostos e lhes
ser permitido reinserir-se na vida cotidiana dos cidadãos comuns.
Livres para começar, como se diz, uma nova vida. Há pouca dúvida
de que a prisão é prejudicial aos seus ocupantes, sobretudo porque
ela é simplesmente um castigo. Porém, isso seria distorcer a verdade,
se negássemos que em alguns casos a prisão também proporcionou
segurança e estrutura para que alguns de seus prisioneiros recon-
quistassem algum controle sobre suas vidas. No entanto, é preciso
reconhecer que a verdade não está em dizer que esta cura é boa para
todos em todas as circunstâncias. O contrário é que é verdadeiro. Para
a maioria das pessoas a prisão é dor, tortura e um monte de dano que
nem sempre é fácil compensar, seja por esforços intra ou extramurais.
A prisão foi concebida como um instrumento multifuncional da
ordem social. Não foi feita apenas para manter o culpado vivo em
vez de eliminá-lo. Também foi feita para manter a sociedade segura
durante o tempo de punição do condenado. Isso teve um efeito cal-
mante sobre as vítimas e sobre o público em geral. Desde que eles
soubessem que o infrator se encontrava preso, podiam, aliviados, res-
pirar fundo e nutrir a esperança de que, uma vez que a pena do preso
fosse cumprida, ele não seria mais um risco para os demais cidadãos.
Essas foram as duas funções mais importantes dessa nova invenção,
e elas ainda são os pilares mais fortes da existência das prisões hoje.
Às duas funções principais da reclusão – ou seja, a reabilitação e a
incapacitação – podemos acrescentar duas outras menos visíveis: a)
que ela fornece uma garantia visível para o público geral, e cumpri-
dores da lei; b) que as infrações mais graves não serão toleradas e que
o próprio risco de uma pena de prisão pode ter um efeito dissuasor
sobre alguns, que de outra forma poderiam sentir-se tentados a co-
meter um crime.
Como Vivien Stern explica:

Introdução  29
Nem tudo pode estar bem dentro dos altos muros da prisão, mas
para aqueles que estão fora, os muros altos, as torres de vigia e
talvez também as histórias de acontecimentos terríveis de dentro
são símbolos do poder punitivo do Estado. É uma garantia para o
público, que estará protegido contra as pessoas que o atacam e
ameaçam a paz pública. [...] O cidadão cumpridor da lei não deve
se preocupar se as prisões são injustas e violentas por dentro e se
elas tornam as pessoas que vão para lá melhores ou piores. Uma
coisa é certa. Prisões protegem a sociedade, segurando pessoas
que, caso contrário, estariam fora roubando, assaltando, aterrori-
zando, contrabandeando, causando danos e espalhando o medo.
Então, as prisões – com suas paredes cinzentas, torres de vigia,
arame farpado e blocos de ninhada, com pequenas janelas grade-
adas –, simbolizam a manutenção da lei. Elas mantêm trancadas
pessoas que fariam mal às outras. Mais do que isso, elas também
previnem o crime de outra maneira [...]. A prisão é como um lugar
sombrio e a perda de liberdade é uma punição muito dura. As
pessoas não querem perder a sua liberdade e o pensamento de
ser enviado para a prisão, para o potencial infrator da lei, evita que
ele cometa um crime. A existência da pena de prisão impede as
pessoas de cometerem crimes. [...] Também [,...] as prisões podem
ser bons lugares, servindo a um propósito útil. Elas podem ser lu-
gares de reforma onde os criminosos entram como pessoas ruins
e saem um pouco melhores. Sendo enviados para a prisão irá ela
ensinar-lhes uma lição [... ou...] dar-lhes uma chance que nunca
tiveram antes de poderem aprender uma profissão, desistirem de
utilizar drogas ilegais ou serem educados [...]6. (Stern, 2006)

O que nos faz entender por que as prisões não estão sendo es-
candalizadas da mesma forma como algumas outras formas de puni-
ção. As prisões são uma parte aceita da realidade social, pelo menos
como um mal necessário. E, para muitos, mais do que isso. As prisões
têm vários efeitos colaterais que falam em seu favor. A construção de
prisões pode, por exemplo, ajudar as zonas desfavorecidas, com o in-
vestimento e o emprego, para não mencionar os acionistas gigantes

6
STERN, Vivien. Creating criminals: prisons and people in a Market Society.
London: Zed Books, 2006, capítulo 2.
30  Manifesto para Abolir as Prisões
do complexo industrial-prisional, composto, por exemplo, pela Cor-
rections Corporation of America.
Tudo isso considerado como um crescimento da prisão desde
seu humilde começo até sua atual posição dominante, e como um
apoio principal indispensável da justiça criminal em todo o mundo
tem todos os ingredientes para uma história maravilhosa de sucesso.
A prisão, então, tenta conciliar uma série de objetivos conflituosos, e
consegue realizá-los por meio do compromisso. Ela tenta expressar
uma forte condenação do comportamento do incriminado, e impe-
dir o ofensor de cometer mais crimes por incapacitação e motivação,
mas também tenta tranquilizar o público em geral no sentido de que
alguns comportamentos simplesmente não serão tolerados pelo Es-
tado, e que o crime não paga, embora a obediência às autoridades,
sim.
Para encurtar uma longa história: embora reconheçamos os méri-
tos e as funções da prisão, chegamos à conclusão de que, quaisquer
que sejam estes méritos e funções, é hora de seguir em frente. Quan-
do o castigo corporal revelou-se muito cruel e muito ineficaz ele teve
que ceder o lugar a uma resposta padrão para o crime: o ideal de
incapacidade e reabilitação mediante o aprisionamento. Séculos de-
pois a prisão não só tem sido profundamente desmascarada, mas a
sua legitimação tem estado sob pressão como nunca antes. Hoje, as
perguntas outrora dirigidas à instituição da punição corporal, cada
vez mais se voltam contra a sua sucessora. A prisão é ineficaz e de-
sumana, portanto, tem que ser abolida, em favor de punições mais
eficazes e mais humanas. Ou, melhor ainda: em favor de algo melhor
que a punição.
A prisão é obsoleta!
Em um momento em que cresce cada vez mais a liberdade pes-
soal – e especialmente a liberdade de movimento que se manifesta
no enorme aumento das atividades de viagens internacionais por jo-
vens de todo o mundo –, a privação de liberdade é um corte muito
mais profundo para os direitos humanos do cidadão do que costu-
mava ser antigamente. Um cidadão comum do mundo desenvolvido
tem um carro – ou talvez dois –, uma bicicleta, um bilhete anual para

Introdução  31
o transporte público e se orgulha de sair em férias para onde quer
que ele goste. Comparado com o horizonte cada vez maior de um
cidadão normal hoje em dia o próprio fato de ser excluído de tudo
isso deve ser nauseante.
A prisão se esgotou como um lugar ideal e como uma resposta
padrão para o crime. Em épocas anteriores, do século XIX até o início
do século XX, os autores saudaram a prisão porque ela não era só
retributiva, mas também era uma forma de reabilitação que servia a
um propósito útil além da mera afirmação do poder do soberano. O
desempenho atual da prisão nunca parece ser capaz de atender às
expectativas. Metaestudos que analisaram os efeitos positivos do tra-
tamento promoveram a decepcionante impressão de que “nada” do
que foi tentado em termos de terapia intramural parece ter produzi-
do resultados convincentes. O próprio pensamento de ver a prisão
como uma espécie de hospital para o tratamento da delinquência se
tornou cada vez mais desacreditado. Este declínio do ideal de reabi-
litação7 (Allen, 1981) contribuiu para a falência geral dos respectivos
esforços e deixou as prisões com o problema do tempo vazio. Quan-
to menos dinheiro e energia foram investidos em programas de tra-
tamento mais o aprisionamento se tornou uma questão de simples
armazenamento, deixando os prisioneiros sujeitos a seus próprios
dispositivos, a seus demônios internos e à sua esperança em serem
protegidos por gangues intramurais. As condições das prisões man-
têm uma síndrome de negligência geral, abuso e sofrimento que já
caracterizavam a instituição na época de John Howard.
Um resultado positivo em meio a uma fé drasticamente diminuí-
da nos benefícios da prisão foi a mudança da ênfase, da prisão para
as sanções financeiras. Na Alemanha, por exemplo, o século XX co-
meçou com uma proporção de 3 para 1 em favor do aprisionamento,
contra sanções financeiras, e terminou com uma proporção de 4 a 1
em favor de sanções financeiras, em relação a penas de prisão. No
curso de um século a pena de prisão deixou de ser uma resposta pa-
drão para ser uma resposta relativamente rara e excepcional para o

7
ALLEN, Francis A. The decline of the rehabilitative ideal: penal policy and
social purpose. New Haven: Yale University Press, 1981.
32  Manifesto para Abolir as Prisões
crime. De todos os condenados menos de 20% receberam uma pena
de prisão no final do século XX. A grande maioria das penas de prisão
foi suspensa e acompanhada por ordens de liberdade condicional.
Cerca de 5% de todos os acusados estão sendo condenados à prisão
imediata. Poderia este percentual, teoricamente, ser reduzido ainda
mais, talvez a 4, 3, 2 ou mesmo 1 ou zero por cento? Para este fim ju-
ízes teriam apenas que se abster cada vez mais de condenar a penas
de prisão. E se condenassem à prisão, teriam que conceder liberdade
condicional a cada vez mais condenados. Ao mesmo tempo, os servi-
ços de liberdade condicional podem e devem ser substancialmente
melhorados para que haja menos revogação das penas suspensas.
Cinquenta anos atrás já havia pessoas que sonhavam com uma redu-
ção radical da prisão, incluindo a sua abolição até o ano 2.0008 (Schu-
mann). O fato de esta data já haver sido ultrapassada não justifica
que a prisão tenha que existir de agora por toda a eternidade. Ainda
é possível e ainda é necessário superar esse sistema obsoleto de in-
fligir dor.
Em um breve, porém importante texto intitulado Post-scriptum
sobre as Sociedades de Controle, de 1990, o filósofo francês e teórico
social Gilles Deleuze argumentou que mesmo em nossa era digital o
tempo já se esgotou para a prisão como um notável instante de am-
biente fechado destinado à obsolescência. Para ele, isto não é nem
bom nem ruim, é apenas um desenvolvimento que tem que ser ob-
servado, analisado e tratado para que se possa tentar estimular seu
lado bom e tentar evitar tornar realidade seu lado arriscado:

Estamos em uma crise generalizada em relação a todos os meios


de confinamento – prisão, hospital, fábrica, escola, família. A famí-
lia é um “interior” em crise, como todos os outros interiores – aca-
dêmico, profissional, etc. As administrações encarregadas nunca
deixam de anunciar reformas supostamente necessárias. Refor-
mar escolas, indústrias, hospitais, forças armadas, prisões. Mas,
todos sabem que essas instituições estão acabadas, indepen-

8
SCHUMANN, Karl F. Eine Gesellschaft ohne Gefängnisse. In Karl F. Schu-
mann, Heinz Steinert, Michael Voß, Hg. Vom Ende des Strafvollzugs. Bie-
lefeld: AJZ, pp. 16-34.
Introdução  33
dentemente da duração dos períodos de validade. É apenas uma
questão de administrar os seus últimos ritos e de manter as pes-
soas empregadas até a instalação das novas forças que baterão à
porta. Estas são as sociedades de controle que estão no processo
de substituição de sociedades disciplinares. “Controle” é o nome
que Burroughs propõe como termo para o novo monstro, um que
Foucault reconhece como nosso futuro imediato. Paul Virilio tam-
bém está continuamente analisando as formas ultrarrápidas de
controle de livre flutuação, que substituiu as antigas disciplinas
que operam no espaço de tempo de um sistema fechado. Não há
necessidade de invocar as produções farmacêuticas extraordiná-
rias, a engenharia molecular, as manipulações genéticas, apesar
dessas serem propostas e programadas para se introduzirem no
novo processo. Não há necessidade de perguntar qual é o regime
mais duro, pois é dentro de cada um deles que forças libertadoras
e escravizadoras se confrontam. Por exemplo, as crises do hospital
como meio de confinamento, clínicas de bairro, asilos e creches
poderiam a princípio expressar uma nova liberdade, mas elas po-
deriam participar também de mecanismos de controle que são
iguais às mais duras das prisões. Não há necessidade de temer ou
esperar, mas apenas de procurar novas armas. [...] Pode ser que
métodos mais antigos, emprestados das antigas sociedades de
soberania, voltem à tona, mas com as modificações necessárias. O
que conta é que estamos no início de algo. No sistema prisional há
a tentativa de encontrar penas de “substituição”, pelo menos para
crimes menores como o uso de coleiras eletrônicas que forçam a
pessoa condenada a ficar em casa durante algumas horas. Para o
sistema educacional há a procura de formas contínuas de contro-
le e o efeito sobre a escola de treinamento perpétuo, o abandono
correspondente de toda a pesquisa universitária e a introdução
da “corporação” em todos os níveis de escolaridade. Para o siste-
ma hospitalar a nova medicina “sem médico ou paciente”, que es-
colhe pessoas potencialmente doentes e indivíduos em risco, que
em nada atesta a individualização – como se diz –, mas, substitui
o corpo individual ou numérico pela cifra de um material “divi-
sível” a ser controlada. No sistema corporativo: novas formas de
lidar com dinheiro, lucros e os seres humanos que já não passam
pela forma antiga da fábrica. Estes são exemplos pequenos, mas
que permitirão a melhor compreensão do que se entende sobre

34  Manifesto para Abolir as Prisões


as crises das instituições, é dizer, a instalação progressiva e disper-
sa de um novo sistema de dominação9. (Deleuze, 1992)

Em uma linha semelhante, os filósofos franceses Michel Onfray e


Tony Ferri, bem como o membro do Parlamento Noël Mamère, o ex-
-presidente do Observatório Internacional das Prisões, Gabriel Mou-
esca, os advogados Lucie Davy e Yannis Lantheaume, bem como o
ex-prisioneiro Philippe el Shennawy, e muitas outras figuras públicas,
intelectuais, ex-prisioneiros e praticantes se pronunciaram a favor do
“maudite cette habitude l’homme qui permet à l’homme et d’enfermer
tenir le emmure10”. Em seu manifesto de 2014, em favor da abolição não
só da prisão, mas também de seus mecanismos e lógicas, afirmaram:

Afirmamos que, no século XXI, encarcerar alguém não significa


puni-lo: significa agir por preguiça e por prolongamento de um
sistema arcaico, ultrapassado e inadaptado às sociedades pós-
-modernas. Exigimos que seja jogado às masmorras da História
esse maldito hábito que permite ao homem encarcerar outro ho-
mem e mantê-lo emparedado. Esperamos que não se passe mui-
to tempo para que a prisão salte aos olhos dos vivos como o sinal
irrecusável do estado de brutalidade, do retardo dos modos e das
sensibilidades no qual vivia a humanidade no século XX, e ain-
da no começo do século XXI. E recusamos que a Justiça continue
condenando a penas de prisão em nosso nome11. (Onfray)

Como Peter Kropotkin já havia dito em 1887:

Se me perguntassem: “O que poderíamos fazer, no entanto, para


melhorar o regime penitenciário?” eu responderia: Nada! Não se
pode melhorar uma prisão. Exceto por algumas pequenas melho-

9
DELEUZE, Gilles. Postscript on the societies of control. Cambridge: MIT.
Press Cambridge. October. 59: Winter 1992, pp. 3-7.
10
Amaldiçoado esse hábito do homem que permite ao outro mantê-lo preso.
11
ONFRAY, Michel et alii. Abolir la prison: ses mécanismes et ses logiques.
Disponível em: <https://blogs.mediapart.fr/edition/les-invites-de-me-
diapart/article/040614/abolir-la-prison-ses-mecanismes-et-ses-logi-
ques>. Acesso em: 30 ago. 2016.
Introdução  35
rias sem importância, não há absolutamente nada a fazer além de
demoli-las.

Em suas recordações, Peter Kropotkin reafirmou sua postura de


que as prisões não poderiam ser reformadas, apenas abolidas:

Cada um sabe que falta de educação, não gostar de trabalhar, in-


capacidade física de esforço sustentado, amor desorientado por
aventura, apostar em propensões, falta de energia, um desejo
não disciplinado e uma falta de interesse na felicidade alheia são
as causas que levam esta classe de pessoas perante os Tribunais.
Porém, durante meu aprisionamento eu fiquei profundamente
impressionado com o fato de que são exatamente esses os defei-
tos da natureza humana – cada um deles –, que geram os presidi-
ários; e eles acabam criando-os porque é uma prisão, e continua-
rá a criá-los, enquanto ela existir.

A prisão tem utilidade limitada!


Para Catherine Baker:

A prisão não melhora os detentos. E, por outro lado, como já


vimos, ela não impede que os crimes aqui mencionados sejam
cometidos: prova disso são os reincidentes. Ela não responde,
portanto, a nenhum dos objetivos aos quais ela se propõe. Assim,
essa é a questão que se coloca: “O que fazer então com aqueles
que ignoram a lei – não a lei escrita, que não é mais que uma triste
herança de um triste passado, mas os próprios princípios da mo-
ralidade gravados no coração de cada um?” Essa é a questão que
nosso século deve resolver12.

Quanto à ressocialização há ampla evidência de que a prisão é


uma das formas menos eficazes de trazer condenados de volta a uma
existência legalizada, seja com ou sem os esforços de tratamento in-
tramural. Para reintegrar as pessoas na sociedade é preciso reforçar
os seus laços sociais e seu senso de autoeficácia por meio de peque-
nas experiências de cooperação, autocontrole e sucesso em lidar com

12
BAKER, Catherine. Pourquoi faudrait-il punir? Lyon: Tahin party, 2004.
36  Manifesto para Abolir as Prisões
os desafios da vida pessoal e profissional do dia a dia. Porém, tudo
isso está sendo dificultado ao invés de ser facilitado por qualquer pu-
nição envolvendo privação de liberdade. E essa já era uma verdade
simples enunciada por John Howard no século XVIII. E a ideia de que
a delinquência é basicamente um tipo de psicopatologia que pode
ser curada por tratamento ou assistência psicológica intramural foi
uma generalização que não combinava com a realidade. Como John
P. Conrad disse: “Nós nunca deveríamos ter prometido hospital”.
Incapacidade. Em alguns casos, prender as pessoas faz diferença
na comunidade respectiva porque durante o seu aprisionamento,
membros de gangues, por exemplo, não podem continuar as suas
atividades. Ainda que o mesmo valha para alguns agressores sexu-
ais graves, incluindo os terríveis (mas pouco frequentes) serial killers,
efeitos de incapacidade são mais limitados do que a maioria das pes-
soas pensam. Isto já é verdade para a maior parte das ofensas sexuais
com sua baixa taxa de reincidência. A maioria dos crimes violentos se
encaixa na mesma categoria: novos crimes estão sendo cometidos
por pessoas sem nenhum registro anterior, ou seja, o risco de rein-
cidência tende a ser baixo. O que significa que estamos com muito
medo dos já condenados e não nos preocupando o suficiente com
aqueles ainda desconhecidos. Em muitos casos a delinquência é par-
te de um mercado ilegal. Este mercado segue as leis da demanda e
do fornecimento e não pode ser influenciado pela prisão de atores
específicos. As personagens, em outras palavras, são intercambiáveis.
Mesmo a prisão de uma organização completa de traficantes de dro-
gas não significa que haverá menos tráfico, mesmo no médio prazo.
Pessoas excluídas estão sendo substituídas por novos recrutas e isso
dá continuidade a competições sobre as aquisições das gangues ou
à criação de organizações de tráfico inteiramente novas. Avaliações
recentes mostram que nem a louvada estratégia de quebrar os car-
téis do crime organizado, mediante a eliminação dos grandes chefes
(kingpins), costuma dar certo. Muito pelo contrário. Essas mesmas

Introdução  37
análises mostraram que as coisas pioraram depois que os grandes
chefes foram presos ou mortos13 (Cockburn).
Impedimento. O conhecimento de que algumas ações podem
acarretar uma pena de prisão pode ser um impedimento em alguns
casos. Ondas de prisões por corrupção podem fazer membros das
classes sociais atingidas serem mais prudentes, privando-se de ativi-
dades ilegais, como lavagem de dinheiro, suborno e similares. Isso é
verdadeiro para atores racionais com uma avaliação sóbria das vanta-
gens e desvantagens de determinadas escolhas econômicas e legais.
Mesmo para eles, porém, não é muito claro em que medida o efeito
dissuasor pode ser rastreado até a existência específica da prisão e
não, por exemplo, até o risco de simplesmente ser pego. Em outras
palavras, talvez, em um mundo sem prisão, o mero risco de ser des-
coberto, escandalizado, gravemente multado e envergonhado, pode
ter o mesmo efeito, ou um efeito dissuasor ainda maior. Criminolo-
gistas concordam que não é tanto a gravidade antecipada, mas sim
a probabilidade prevista de punição que gera um – embora limitado
–, efeito dissuasor.
Prevenção Geral Positiva. As prisões são necessárias para tranqui-
lizar a população em geral sobre a validade da norma depois de ela
ter sido violada pelo delinquente? Criminologistas parecem aceitar
este pensamento até certo grau. Se as violações da norma continu-
assem sem resposta negativa, a norma em si poderia sofrer erosão.
Porém, não há necessidade de inferir a necessidade de uma resposta
negativa que tenha que assumir a forma de prisão. A prisão é apenas
um tipo de punição, e todos os tipos de punição, independentemen-
te da sua aparência, são apenas uma forma de reações negativas. Po-
deria haver também reações sem punição a crimes que iriam lidar
com a delinquência de uma forma completamente diferente e ainda
exercer a influência desejada, mostrando ao público em geral que

13
COCKBURN, Andrew. The kingpin strategy: assassination as policy in Wa-
shington and how it failed, 1990-2015. Disponível em: <http://www.
tomdispatch.com/post/175988/tomgram%3A_andrew_cockburn,_
how_assassination_sold_drugs_and_promoted_terrorism/>. Acesso
em: 30 ago. 2016.
38  Manifesto para Abolir as Prisões
violações de tal norma não serão toleradas. Em outras palavras, pos-
tular a necessidade de uma punição específica, alegando que há uma
necessidade de algum tipo de sanção negativa, não faz sentido.
Expiação. Mas, e as atrocidades excepcionalmente brutais? Elas
não necessitam de uma expiação grave por parte do delinquente? A
prisão perpétua não é uma forma de lidar com eles, a fim de que não
se volte atrás em relação à pena de morte?14 (Arendt,1977)?
Ao todo, o desequilíbrio entre os custos e os benefícios da prisão
fala uma linguagem clara. A inoportunidade da prisão é um fato bem
conhecido entre os criminologistas. O público em geral está sendo
protegido deste conhecimento. Porém, esse véu da ignorância que
paira sobre os fatos estatísticos do aprisionamento é um dispositivo
de proteção poderoso que mantém a prisão afastada da posição de
ser questionada e desafiada e, assim, mantém a estabilidade de um
sistema que, se evidenciasse a sua disfunção, já estaria desacreditado
e destruído há muito tempo.
Resumindo os Direitos Humanos. As prisões haviam sido inventa-
das, entre outras coisas, para proteger os direitos dos condenados,
mantendo-os vivos e respeitando-os como seres humanos, embora
eles estivessem cumprindo uma sentença criminal. No nosso tempo
o conceito de Direitos Humanos tem sido consideravelmente amplia-
do, se comparado com a situação do final do século XVIII. Se a prisão
não existisse, e, se nas sociedades de hoje tivéssemos que inventar
uma resposta padrão para o crime, será que acabaríamos inventando
as prisões? Nós duvidamos. E existem muitas razões para que duvi-
demos de que a prisão seria inventada hoje em dia, na pós-moder-
nidade. De toda sorte, se a prisão não existisse atualmente nós não
a inventaríamos por duas razões. Prisões têm princípios de confina-
mento que se chocam com os Direitos Humanos. Esta colisão assume
duas formas, ambas escandalosas, embora de uma maneira muito
diferente. Por um lado, os princípios simplesmente organizam a vida
cotidiana na instituição de uma forma que alguns Direitos Humanos
essenciais sejam negados. Por outro lado, há uma diferença de po-

14
ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil.
Harmondsworth: Penguin, 1977.
Introdução  39
der estrutural e um clima de “impunidade” em relação aos abusos de
poder por parte dos guardas que tornam a prisão propícia a abusos.
Idealmente, a prisão priva o condenado de sua liberdade de mo-
vimento, mas nada mais. Ela deixa a pessoa intacta e resguarda-lhe
todo o resto dos direitos humanos, civis e sociais garantidos nas Cons-
tituições nacionais e nas Convenções internacionais, com exceção, é
claro, de ela ser confinada a uma área restrita da prisão, pois essa é a
própria ideia de pena prisional: selecionar a liberdade de movimento
como a única da qual o culpado tem que prescindir, e nada mais. A
rigor, a ideia de aprisionamento não existe para levar o delinquente
ao desespero, privação e destruição, mas para ensinar-lhe uma lição
ao restringir a liberdade de movimento. Infelizmente, porém, essa li-
mitação não é totalmente refletida na própria organização da prisão.
Muito pelo contrário, a prisão ainda exibe características pré-consti-
tucionais que tornam difícil acreditar que poderá evoluir para uma
sanção constitucional de acordo com os valores mais importantes de
uma sociedade livre e democrática sob a lei.
Basta isso para apontarmos para três contradições inerentes à pri-
são.
Trabalho forçado. A maioria dos sistemas prisionais requer que os
prisioneiros trabalhem. Este é um peso extra que é uma parte evitá-
vel da prisão e, portanto, deve ser considerado um castigo adicional.
Sua existência volta aos tempos pré-constitucionais em que os prisio-
neiros eram vistos como “escravos do Estado” que foram privados do
estado de cidadãos normais. Mais tarde esse recurso foi legitimado
como parte do castigo. Hoje ele é mais frequentemente visto como
parte do caminho do prisioneiro para a reintegração. O trabalho pri-
sional supõe preparar os prisioneiros: a) para o mercado de trabalho
exterior (apenas no caso de encontrarem trabalho); b) para ajudá-los
a estruturar sua vida diária (como se fossem trabalhadores indus-
triais); e c) para ajudá-los a compensar as vítimas do crime pela sua
perda (o que é quase impossível, haja vista os salários extremamente
baixos pagos pelo trabalho prisional). Se todas estas justificativas são
debatíveis e fracas a razão primordial para a persistência do trabalho
forçado na prisão parece ser a manutenção da ordem dentro da ins-
tituição. As autoridades penitenciárias acreditam firmemente que o
40  Manifesto para Abolir as Prisões
sistema seria incontrolável sem este instrumento. Mesmo o trabalho
sem sentido é visto como melhor do que nenhum trabalho.
A pobreza imposta. No início do sistema prisional a maioria dos
presos era pobre de qualquer maneira. As casas de correção originais,
que antecederam as penitenciárias, armazenavam prostitutas, deve-
dores, mendigos, pobres, doentes, órfãos e delinquentes parecidos.
Era evidente que não estavam sendo pagos pelo seu trabalho, e eles
só recebiam o que era considerado necessário para sustentá-los. Esta
é outra herança dos tempos pré-constitucionais. Hoje, na Alemanha,
o “salário” de um prisioneiro que trabalha foi congelado em 9% do
salário mínimo, o que o mantém muito abaixo deste. Inútil será di-
zer que a pobreza na velhice dos presos está sendo pré-programada
pela discriminação adicional de estarem eles isentos de contribuir
com o Seguro Social. Meses e anos de trabalho na prisão não estão
sendo contados como seguro quando se trata de pedidos de pensão.
Como em alguns outros países, a Alemanha havia prometido fazer
algo sobre tudo isso na década de 1960, quando a reforma da prisão
era mais prioritária na agenda do que é hoje. Mas, desde então, esta
promessa legal foi anulada e nunca conseguiu voltar para a pauta de
qualquer associação política importante, para não mencionarmos as
plataformas eleitorais ou iniciativas legislativas.
Privação sexual. A prisão é uma instituição de sexo único. Esta não
é uma condição necessária para a privação da liberdade, como prova-
do pelo sistema do Gulag russo ou, para citar outro exemplo, a da Pal-
masola Villa, que é uma prisão da Bolívia. Na Europa e em muitos ou-
tros países, no entanto, a ideia de famílias inteiras vivendo junto com
o preso parece estranha e injusta para com os membros inocentes da
família. Por outro lado, o método mais comum de confinamento do
mesmo sexo, ao estilo europeu e norte-americano, impõe um padrão
de vida celibatário sobre os prisioneiros. Isso significa que mulheres e
homens prisioneiros dependem tanto da masturbação, quanto de in-
divíduos de seu próprio sexo para as suas respectivas atividades. Isso,
por sua vez, leva-os à voluntária e involuntária homossexualidade na
prisão. Prisões do mesmo sexo equivalem a uma quantidade consi-
derável de sofrimento mediante estupro e abuso. Estudos realizados
nos EUA (Estados Unidos da América), sugerem que, anualmente, de

Introdução  41
4 a 5 presos, em cada 100, são violados ou abusados por colegas de
prisão, para não mencionarmos os guardas (NYRB). Apesar de algu-
mas tentativas para contrariar essa tragédia mediante a concessão
de “férias da prisão” (licenças temporárias), ou de visitas duradouras
de cônjuges ou familiares, este efeito colateral da prisão persiste em
todo o mundo. E ele permanece não só como uma fonte evidente de
transmissão de doenças infecciosas como a SIDA15 (Síndrome da Imu-
nodeficiência Adquirida), mas, também como uma violação grave e
permanente dos direitos humanos elementares.
Copunição de terceiros. Não há punição dos agressores, a título de
danos colaterais, que não afete também as suas famílias, amigos, co-
legas, etc. Isso é especialmente verdadeiro sobre o aprisionamento.
Não só impede um sexo normal, mas também uma vida social regular
com a família e amigos. Todas essas relações estão sendo radicalmen-
te reduzidas a cartas raras, altamente fiscalizadas e supervisionadas,
conversas telefônicas e visitas. Em um tempo em que a mobilidade
é cada vez maior os presos não estão apenas sofrendo uma privação
familiar ao serem mantidos em gaiolas que nem mesmo um zooló-
gico moderno impõe a seus animais. Eles também estão sendo man-
tidos longe da internet, em um mundo onde a vida social é cada vez
menos imaginável sem os recursos dos meios de comunicação social
remota. O fosso crescente entre o mundo exterior e o atraso artificial
da prisão faz com que ela seja mais dolorosa e prejudicial do que
ela teria que ser. Além disso, um dos assuntos mais tristes do mundo
das prisões é o fenômeno bastante negligenciado que pode ser cha-
mado de copunição das crianças. Não há dúvida de que a detenção
dos pais tem resultados negativos para os menores de idade. Prisões
“familiares” são um esforço compreensível, mas infrutífero. A espe-
rança de melhorias aqui é tão ilusória como teria sido pedir melhorias
graduais na escravidão em vez de perceber suas falhas básicas e agir
em conformidade com elas. Podem todos os males da prisão serem
abolidos sem abolir a instituição como tal? Alguns podem pensar
que bastaria abolir os velhos edifícios, as gaiolas e as torturas que
caracterizavam as prisões não tão modernas (e algumas das muito

15
A doença é mais conhecida como AIDS.
42  Manifesto para Abolir as Prisões
modernas), e espalhar o tipo de prisões que poderia ser chamado
de prisões modelo – com apartamentos, em vez de celas, e pessoal
de serviço, em vez de guardas brutais. Instalações correcionais tipo
hotel, porém, são uma coisa estranha de se imaginar como uma res-
posta padrão para crimes graves. Uma forma menos utópica de lidar
com o problema prisional parece ser abolir a prisão como punição
por completo e ir além desse estágio de evolução na justiça criminal.
Tormento Prisional. “Quantas condenações já vi que eram mais
criminosas que o crime!” Em Baker 11, Montaigne diz:

Talvez o lado negativo mais importante da prisão não sejam suas


deficiências inerentes, acima mencionadas, mas sim aquelas vari-
áveis de sua configuração institucional que aumentam o risco de
incidentes aparentemente isolados.

Exceto em casos muito especiais, tais como Attica, no Estado de


Nova York, ou Carandiru, em São Paulo, as questões prisionais geral-
mente não dão manchetes. A razão para isso não é que as irregula-
ridades, os abusos de poder, as violações dos direitos humanos, as
revoltas e repressões não ocorram, mas porque eles tendem a des-
pertar pouco interesse para além das cidades e dos profissionais dire-
tamente afetados por eles. O público em geral mostra pouco interes-
se, desde que as coisas não ameacem sair da mão completamente.
No entanto, as irregularidades da prisão, também conhecidas
como escândalos da prisão, não devem ser tomadas como uma
questão leve quando se trata de questões do raison d’être16 das pri-
sões. Irregularidades prisionais podem assumir várias formas. Podem
consistir em casos individuais de corrupção, chantagem ou violên-
cia física, seja entre os presos ou entre os presos e os agentes pe-
nitenciários. Ou elas podem assumir a forma de ação coletiva entre
gangues concorrentes presas ou funcionários prisionais, prisioneiros
e policiais. Por exemplo, no caso de motins em grande escala que
podem ou não resultar em massacres definitivos. A grande questão é

16
Tradução livre: Razão de ser.
Introdução  43
até que ponto tais condições irregulares podem ser vistas como um
argumento contra as prisões como tal.
Qualquer crítica das irregularidades normalmente tem como ob-
jetivo melhorar um determinado sistema, e não aboli-lo. Desse ponto
de vista cada cobertura da mídia sobre um escândalo na prisão pode
ser lido como um apelo implícito em favor de algo mais limpo, um
sistema melhor, mais proficiente, em vez de um argumento contra a
prisão como tal. Consequentemente, pode-se alegar que os escân-
dalos na prisão não são muito propensos a dar apoio contínuo aos
argumentos abolicionistas e deveriam, portanto, ficar fora do jogo.
Casos isolados de abuso não provam que há algo de errado com a
prisão, só provam que todo mundo que está na prisão é humano e
sujeito à falibilidade humana.
Por outro lado, no entanto, há também a possibilidade de que
“escândalos prisionais” não sejam apenas incidentes isolados, tendo
raízes sistêmicas. Se, por exemplo, uma determinada condição C é
conhecida por aumentar o risco de escândalos de tipo S acontece-
rem, e se prisões tipicamente mostram a condição C, em seguida a
aparência de S em sistemas de prisão dificilmente poderia ser atri-
buída a condições isoladas e atípicas ou características de persona-
lidade de um guarda ou de um condenado. Em outras palavras, se o
aparecimento de deficiências escandalosas pode ser rastreado para
justamente se encontrar a essência estrutural das prisões como tal,
então seria justificável olhar para as ligações estruturais entre a pri-
são e seus escândalos. Se pudesse ser determinado que as caracterís-
ticas do sistema são propícias a abusos escandalosos de poder, por
exemplo, então não deveríamos fechar os olhos para a possibilidade
de que a prisão, como tal, facilita frequentes e intensas violações dos
direitos humanos, transformando-a em um inferno para muitos de
seus habitantes.
As condições das prisões são notoriamente ruins em países po-
bres simplesmente por causa da falta de fundos para manter uma
instituição profissional ordenada. Prisões romenas são apenas um

44  Manifesto para Abolir as Prisões


exemplo17 (Holy, 1992) de condições que podem ser encontradas em
dezenas de países ao redor do mundo.
“Cerca de 500 presos em 19 prisões romenas protestaram na quin-
ta-feira, com alguns recusando alimento, sacudindo barras, batendo
nas janelas com garrafas, ateando fogo a roupas e gritando”. Acabe
com o governo, informou a imprensa. Um preso em uma penitenciá-
ria no centro da Romênia tentou o suicídio na quinta-feira, de acordo
com relatórios. A Ministra da Justiça, Raluca Prună, disse que as au-
toridades cuidadosamente acompanharam os acontecimentos em
todas as penitenciárias de toda a Romênia, e que a situação estava
sob controle. “Vamos começar a verificar as reivindicações dos presos
e, sempre que elas sejam apropriadas, vamos tentar encontrar solu-
ções”, disse Raluca Prună na quinta-feira. “As condições das prisões
têm melhorado nos últimos anos, mas ainda existem muitos proble-
mas”, acrescentou.
“O protesto começou no início desta semana em uma prisão de
alta segurança em Lasi, no leste do país, e se espalhou para quase
metade das 44 prisões da Romênia”. Raluca Prună disse, porém, que
muitos meios de comunicação exageraram em relação aos protes-
tos, inflamando, assim, a situação. Vários políticos pediram a renúncia
dela, no entanto. Apesar dos esforços para modernização, as prisões
romenas ainda continuam abaixo das normas europeias. Superlota-
ção, atenção médica inadequada e má alimentação continuam a ser
os principais problemas, de acordo com ativistas.

A Romênia tem cerca de 30.000 prisioneiros, mas a situação me-


lhorou em comparação com dez anos atrás, quando havia cerca
de 52.000 presos em um sistema com capacidade para apenas
20.000. De acordo com dados oficiais, o Estado gasta cerca de
500€ por mês por preso, sendo que a maior parte deste dinheiro
está sendo usada para pagar os salários de pessoas que traba-
lham no sistema prisional. O elevado número de presos ainda é
um fardo para o Estado. Muitas prisões ainda têm condições de
higiene inadequadas, com acesso insuficiente à água quente, a

17
HOLY, Cartner. Prison conditions in Romania. New York: Human Rights
Watch, 1992.
Introdução  45
instalações sanitárias, à iluminação natural e à ventilação, além da
má qualidade alimentar, dizem os ativistas.

A lei atribui a cada prisioneiro 4m2. Espaço reconhecidamente pe-


queno, mas que para ser colocado em prática exigiria um grande in-
vestimento. Para melhorar as condições das prisões, em abril de 2016
o governo aprovou várias medidas que exigirão 838.500.000€ em
sete anos. Existem planos para criar 10.895 novas vagas para presos –
incluindo a construção de duas novas prisões para 1.000 presos cada
–, e para modernizar 1.651 lugares em penitenciárias locais em 2023.
Ao longo dos anos, o ECHR (Tribunal Europeu dos Direitos Huma-
nos), tem repetidamente criticado o governo Romeno em razão das
condições desumanas das prisões do país. Em 2010, o ECHR decidiu
em favor de um requerente que – apesar de sofrer de hepatite e hi-
pertensão –, tinha que partilhar uma cela – projetada para armaze-
nar 35 prisioneiros –, com mais 120 detentos. A comida não atendia
suas condições dietéticas. Em outro caso um prisioneiro que sofria
de uma doença pulmonar foi forçado a dividir sua cela com dois co-
prisioneiros tabagistas. Em 2016, o Tribunal de Justiça atribuiu quase
100.000€ em compensações para 18 presos condenados que cum-
priram penas encarceradoras ou foram atualmente presos, por causa
das más condições nas penitenciárias locais.
O CPT 2015 (Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura e De-
sumanização e Tratamentos ou Penas Degradantes), afirmou em um
relatório que:

Numerosas alegações críveis consistentes em maus tratos físicos


(socos, inclusive com luvas reforçadas, chutes com os joelhos e os
pés, e golpes com um cassetete), foram recebidas pela delegação.
Aqueles foram infligidos principalmente sobre os presos em regi-
me de segurança máxima (RMS), e nas unidades de regime fecha-
do de Arad e Oradea, por membros do Grupo Especial de Prote-
ção e Intervenção (vestindo balaclavas ou máscaras). Evidências
médicas compatíveis com as alegações feitas foram encontradas
em um determinado número de arquivos médicos dos presos
nestes dois estabelecimentos. No que diz respeito às condições
materiais nas prisões, o relatório observa um alto nível geral de

46  Manifesto para Abolir as Prisões


superlotação, com apenas 2m² de espaço por pessoa que vive na
Prisão de Mulheres em Târgşor. Estas condições foram ainda mais
agravadas pelo fato de que os prisioneiros, em geral, passam de
20 a 22 horas por dia em suas celas.

Em dezenas de países encontramos males sistêmicos semelhan-


tes. Quênia é apenas outro país onde há uma terrível falta de recursos
que seriam necessários para executar uma instituição tão complexa
como uma prisão. A consequência é sempre a mesma: a corrupção, a
violência e a propagação de doenças infecciosas. Muitos presos não
saem da prisão vivos. O que se segue é um caso extremo, mas não
uma singularidade:

Em 2004, um escândalo foi descoberto em Meru, prisão no centro


do Quênia. Cinco prisioneiros foram encontrados mortos em uma
cela do tamanho de uma cama de solteiro. Sete outros prisionei-
ros também estavam na cela. No início pensava-se que os mortos
haviam sufocado, mas um post mortem mostrou que eles tinham
sido espancados até a morte. Os relatórios disseram que eles ti-
nham se recusado a entrar na cela porque estava superlotada.
Então, os guardas prisionais os espancaram. A cela media um por
dois metros. Quando entraram, eles foram atacados pelos presos
que já estavam dentro. Alega-se que quando a investigação co-
meçou o pessoal da prisão tentou impedir o patologista, chefe do
governo, de realizar autópsias [rectius: necropsias]. Os prisionei-
ros mortos não eram prisioneiros perigosos. Três deles foram de-
tidos enquanto aguardavam julgamento após serem acusados de
produzir cerveja ilegalmente. Os outros dois estavam cumprindo
sentenças de apenas três meses18.

Gostaríamos de pensar em tais casos como eventos isolados. Mas


eles são tudo, menos isso. Para vermos situações parecidas basta que
voltemos nossos olhos para países como Albânia, Brasil, China, e mui-
tos outros. Casos como esse são parte integrante do sistema prisional
como ele realmente é, e em todo o mundo.

18
STERN, Vivien. Creating criminals: prisons and people in a Market Society.
London: Zed Books, 2006 , p. 1.
Introdução  47
E o que é pior: a falta de recursos não é a única – e sequer a prin-
cipal –, causa para a natureza escandalosa da prisão. Como os escân-
dalos da prisão em países ricos e a pesquisa empírica por estudiosos
renomados, como Philip Zimbardo, mostraram o fator mais relevante
para que a violência ocorra se encontra nas disparidades sistêmicas
de poder.
Na área da pesquisa empírica, o famoso Experimento da Prisão de
Stanford, por Philip Zimbardo et alii (1973), demonstrou o poder de
variáveis situacionais. Em um ambiente fechado com dois grupos –
um dos quais é poderoso e o outro, sem poder –, aqueles com poder
são altamente propensos a recorrer à violência física e à brutalida-
de, mesmo quando os membros individuais desse grupo são pacífi-
cos e pessoas “normais”. Em caso de conflito os poderosos tendem a
recorrer à violência e ao comportamento abusivo para obter o que
querem. Eles agem assim desde que eles acreditem estar fazendo a
coisa certa, e enquanto eles estejam convencidos de que não serão
repreendidos por seu comportamento.
Em uma prisão normal os guardas são os que realmente sabem o
que está acontecendo, e são eles que tentam determinar quem me-
rece o quê. Com pouca supervisão administrativa, guardas tendem
a tornar-se bastante autônomos quanto à vigilância “do chefe”. Isso
lhes possibilita exercer mais controle do que serem controlados. Tal
“excedente de controle” que não é controlado por superiores trans-
forma cada funcionário em um pequeno rei. Essa situação é propícia
para os abusos de poder. E, consequentemente, a Teoria de Controle
de Balanço, de Charles Tittle, de 1995, prevê o surgimento de com-
portamento exploratório e humilhante pelos guardas prisionais em
todos os casos em que eles possam atuar de forma descontrolada e
sem medo de serem repreendidos.
Abolição Prisional. As prisões não são uma maneira adequada de
lidar com o crime. Elas estão desatualizadas e são desnecessariamen-
te cruéis. Então, elas são ilegítimas. E deveriam ser ilegais. Então, elas
têm que ser abolidas. À distância. Completamente. De uma vez por
todas.

48  Manifesto para Abolir as Prisões


Mas, o que exatamente significa “abolir as prisões”? A resposta a
esta pergunta é fácil e difícil. É fácil porque evidentemente abolir as
prisões significa acabar com elas totalmente. Com os edifícios – sejam
eles chamados gaiolas, prisões, penitenciárias, centros de detenção
preventiva ou estabelecimentos correcionais –, incluindo paredes e
torres de observação, tijolos, arame farpado, aço e concreto. Claro,
alguns deles podem permanecer e funcionar – como Alcatraz e Au-
burn já fazem –, como prisões que se tornaram pontos turísticos. Per-
correr estas prisões abandonadas provoca arrepios na espinha dos
turistas, e os torna gratos por viverem no mundo contemporâneo e
por não terem que conviver com a época das guilhotinas e andaimes,
nem com as dores da prisão.
É difícil quando começamos a pensar não em edifícios, mas em
presos. A resposta séria à questão precisa de alguma reflexão e, aci-
ma de tudo, de uma diferenciação. Por uma questão de fato, para
descobrir o que pode e deve ser feito sobre a população carcerária
de hoje e seus futuros equivalentes, pode-se exigir que, primeiro,
demos um passo atrás, acalmemo-nos e pensemos sobre o que não
significa abolir prisões.
Em primeiro lugar, abolir as prisões não significa abolir todos os
tipos de confinamento involuntário. Isso pode soar estranho no iní-
cio, mas se torna menos esquisito quando percebemos que “prisão” e
“confinamento involuntário” não são sinônimos. Por uma questão de
fato, “aprisionamento” é apenas um, embora excelente, exemplo de
procedimentos, contextos e instituições que restringem a liberdade
de circulação das pessoas contra a vontade delas.
Basta pensar na quarentena para as pessoas afetadas por uma do-
ença grave e transmissível. Enquanto casos extremos de quarentena
também levantam sérias questões morais e legais que têm de ser tra-
tadas, não há dúvida de que, desde que não exista maneira menos
intrusiva de proteger a saúde pública, quarentena é uma resposta
legítima a uma necessidade social.
Além disso, há casos em que os indivíduos estão sendo subme-
tidos à internação involuntária em um hospital psiquiátrico a fim de
evitar perigos para o paciente e/ou terceiros.

Introdução  49
Finalmente, abolir as prisões não significa abolir a necessidade de
trancar as pessoas que são uma ameaça iminente à vida e à integri-
dade física de outros seres humanos. Mesmo se nós acreditássemos
ser possível, tal como Friedrich Nietzsche, que as sociedades futuras
podem ser capazes de um dia se dar o luxo de deixar os seus agres-
sores “impunes”, a abolição da pena não livraria automaticamente
essas sociedades da necessidade de prender, digamos, assassinos
em série, por razões meramente preventivas. Mesmo uma sociedade
que renuncia à punição retributiva não será necessariamente capaz
de renunciar ao confinamento involuntário por razões preventivas.
Algumas coisas só têm que ser impedidas de acontecer, seja a propa-
gação de uma doença infecciosa, seja a caçada de um assassino serial
a suas próximas vítimas.
Isso não quer dizer que qualquer dessas privações necessárias e
involuntárias de liberdade têm de ser implementadas nas prisões ou
em instalações parecidas. Em nenhuma punição pretendida as con-
dições de vida das pessoas afetadas pela separação espacial do resto
da sociedade devem ser modeladas conforme a penitenciária, mas
sim de acordo com uma casa de classe média, ou pelo menos um
apartamento, tanto no que diz respeito ao tamanho, quanto ao con-
forto. Quem pensa que isso é um exagero deve parar um minuto e
considerar o seguinte: essas pessoas estão sendo forçadas a sacrificar
partes essenciais de sua (qualidade de) vida a favor da vida e da li-
berdade dos outros, sem necessariamente serem “culpadas” ou “más”.
Sem envolver censura e vingança, aqueles que privam estas pessoas
de sua liberdade têm boas razões para fazer tudo o que podem para
tentar compensar os seus sofrimentos da melhor maneira, mediante,
por exemplo, um nível artificialmente elevado de conforto de vida.
Como não podemos deixá-los livres, devemos, pelo menos, tornar
as suas estadas positivas, agradáveis, criativas e emocionantes. Em
suma: como boas e adaptadas segundo as suas necessidades e de-
sejos possíveis.
Em segundo lugar, o que a abolição das prisões não significa é
a manutenção de todos os prisioneiros na prisão, tampouco nada
significa a mudança só do nome da instituição e de seus detentos
para “hospitais/pacientes”, “centro de tratamento/clientes” ou “casas

50  Manifesto para Abolir as Prisões


de prevenção/residentes”. Rotulação fraudulenta é um perigo real
porque ela é ao mesmo tempo sedutora (como uma espécie de resis-
tência subversiva aberta a todos aqueles que fazem parte do sistema
e que são incapazes ou que não estão dispostos a aceitar uma radical
desinstitucionalização), e às vezes difícil de distinguir de um rótulo
válido (por exemplo, uma avaliação de risco correto). É também um
perigo real porque as prisões de hoje estão cumprindo uma função
híbrida de dor, infligindo-a aos presos por causa de seus crimes pas-
sados (= privação de liberdade como uma punição), e impedindo-
-os de cometer mais crimes no futuro (= privação de liberdade como
uma medida preventiva).
Assim, abolir as prisões significa abolir a possibilidade de um
tribunal penal para sentenciar o acusado à pena de prisão. Onde e
quando isso for conquistado, as prisões não serão mais necessárias.
Assim como a abolição da pena de morte significa abolir a possibili-
dade de um tribunal penal para condenar um acusado à morte. Onde
e quando isso é conseguido, câmaras de execução não são mais ne-
cessárias.
Abolir as prisões também significa condenar o tipo penitenciário
arquitetado em edifícios prisionais com as suas fileiras de celas solitá-
rias como seu elemento básico para o esquecimento. A prisão celular
clássica – como havia sido inventada nos EUA e exportada para a Eu-
ropa (Pentonville), de onde as administrações coloniais se espalharam
para os cantos mais remotos do mundo –, nunca cumpriu as expec-
tativas morais de seus fundadores e amigos filantropos. A partir de
hoje é seguro dizer que ela é uma obsolescência, uma desgraça e
uma vergonha. Onde quer que elas existam, as prisões representam
bons museus, mas não devem ser usadas por ainda manterem as
pessoas que vivem em cativeiro em condições que são muitas vezes
piores do que se pode imaginar.
Em vez de prisões. O verdadeiro sentido da punição. Muitas pes-
soas pensam que cometer um crime e ser considerado culpado por
um tribunal significa cadeia ou prisão. Mas, mesmo hoje, na maioria
dos países ocidentais, com prisões ainda em uso e muitas vezes su-
perlotadas, mais de 3/4 de todas as sanções são sanções ambulantes:
sanções financeiras, trabalho comunitário ou diferentes graus de su-
Introdução  51
pervisão. Infratores estão sendo condenados à liberdade condicio-
nal (tendo que procurar um oficial, talvez uma vez por ano, ou várias
vezes por semana, dependendo do julgamento), ou à supervisao in-
tensiva (três a cinco contatos semanais, fora as visitas surpresas por
parte dos agentes supervisores, na residência ou no local de trabalho
do condenado). Criminosos estão sendo condenados à restituição
e multa (sozinha ou em conjunto com a liberdade condicional, com
pagamento às vítimas da criminalidade, ou aos tribunais); à presta-
ção de serviço comunitário (em benefício do indivíduo e da comu-
nidade); a um tratamento por abuso de substâncias e/ou a escrever
um diário (para dar conta das atividades a cada dia e hora); à prisão
domiciliar e/ou monitoramento eletrônico (restringindo o agressor a
ficar em casa, podendo sair apenas para trabalhar, estudar ou tratar
da saúde); ou a uma casa de recuperação como alternativa à prisão
em um ambiente residencial.
Em todos esses casos, criminosos condenados não são enviados
para a prisão, mas eles ainda estão sendo punidos. O Estado reage a
um crime por castigo; e uma punição, por sua própria natureza – nas
palavras do juiz sul-africano Thokozile Maispa, proferidas por ocasião
da condenação de Oscar Pistorius em 2016: “é desagradável, é incon-
veniente, é dolorosa, e certamente não é o que você escolheria para
fazer”.
É importante notar que a punição – a pura punição –, é a dor infli-
gida como uma reação ao passado, ou seja, para um crime ou crimes
que o agressor cometeu no passado. Punição pura olha para trás.
Punição pura serve como expiação. É uma resposta simbólica a um
evento do passado e uma resposta típica para afirmar a manutenção
da validade da norma ofendida.
É igualmente verdade que a punição, a legitimação básica do que
se encontra no passado, quase invariavelmente também visa o futu-
ro. Ela quer prevenir o infrator da reincidência, ela quer curar as feri-
das das vítimas da melhor forma, e quer acalmar a ansiedade pública
que pode ter sido alimentada por crimes perturbadores. Todos estes
são efeitos (secundários) da punição aos transgressores. Mas, não são
eles que estão na raiz das teorias normativas da punição. Se fosse
diferente, ou seja, se a justificação básica da punição estivesse na
52  Manifesto para Abolir as Prisões
prevenção da reincidência, então “medidas de segurança”, sem ele-
mento punitivo, seriam mais preferíveis à “punição”. E naqueles casos
em que não há reincidência a ser temida e a vítima tenha perdoado
o agressor, não desejando vê-lo punido, não haveria mais necessida-
de de justificativa para a punição. Mas, ainda assim, muitas vezes há
fortes sentimentos de uma comunidade que, para restaurar a paz e
a ordem, sente uma necessidade de responder ao crime em questão
com um contrarius actus autoritário.
Pense no caso de Roman Polanski: a vítima de estupro – na época
com 13 anos, e agora com seus 40 – do diretor de cinema havia de-
clarado que ela o havia perdoado e que não desejava que ele fosse
perseguido ou encarcerado. Um editorial do Los Angeles Times afir-
mou as razões pelas quais o processo judicial ainda deveria continu-
ar, mesmo contra a vontade explícita da vítima, dizendo:

O caso contra Polanski não foi trazido para satisfazer seu desejo
(da vítima) por justiça ou a sua necessidade de conforto. Foi tra-
zido pelo Estado da Califórnia em nome do povo da Califórnia.
[...] Os crimes não são cometidos apenas contra indivíduos, mas
contra a comunidade [...] as pessoas acusadas de crimes graves
devem ser presas e julgadas e, se condenadas, devem enfrentar
sua sentença19.

A punição é uma reação específica por causa de seu simbolismo


expressivo. Seu quádruplo significado se encontra – pelo menos se-
guindo Joel Feinberg, em um texto publicado em 1970 e republica-
do em 1994 – primeiro em uma rejeição oficial do ato cometido; e,
segundo, em uma não aquiescência com o que tinha acontecido;
em terceiro lugar, na reafirmação enfática da validade da norma que
havia sido transgredida; e, finalmente, em um tipo de exculpação im-
plícita de todos os demais, que são tacitamente declarados inocentes
através da condenação do réu.

19
DIAMOND, Jared. The world until yesterday. London: Penguin, 2012, p.
110.
Introdução  53
Klaus Günther20 retoma o significado do núcleo da punição como
sendo uma declaração pública de que um determinado evento foi
uma injustiça perpetrada por indivíduos, e que essa injustiça não
é e não será tolerada pela comunidade. Esta declaração, de acordo
com Klaus Günther, tem três destinatários: a) a vítima (que tem a ga-
rantia de que a comunidade não considera o seu mal sofrido como
simplesmente má sorte ou destino, mas como o resultado de ações
injustificadas e não toleradas de um terceiro); b) o infrator (que é in-
formado de que é responsável pelo que aconteceu e de que o seu
comportamento é visto como fortemente condenável); e c) o público
em geral (que recebe a mensagem de que as consequências nega-
tivas serão definidas não como acidentais, mas como uma injustiça
que não pode ser tolerada, e que essa injustiça não é nem deve ser
atribuída à vítima nem ao público).
No curso da história, a punição tem desempenhado um papel
central desde o surgimento de protoestados, e a função da repro-
vação simbólica tem sido associada a certas formas de tratamento
difícil. Durante muito tempo, as execuções públicas eram os símbo-
los mais convencionais de reprovação simbólica. Mais tarde, a prisão
assumiu este papel. Não há nenhuma lei natural que pode impedir as
mudanças que virão. Outras formas de tratamento duro se tornarão
expressões convencionais de reprovação simbólica no futuro. Daí a
relatividade do crime visto que não são poucos os atos que foram
considerados dignos da pena de morte alguns séculos atrás, mas que
hoje são legalmente reconhecidos como completamente legítimos.
Ela só move a punição de um comportamento para os outros, os
recém criminalizados (por exemplo, de ser gay à discriminação an-
tigay). Porém, as punições alteram suas aparências e os seus elemen-
tos essenciais. O que não muda é a função da punição como uma
reprovação simbólica dos respectivos atos puníveis.
Punição sem prisão: os poucos perigosos. Como poderíamos des-
cobrir, sob essas premissas, se as nossas sociedades contemporâneas
poderiam realmente existir sem prisões? Para concretizar esta ques-

20
GÜNTHER, Klaus. 2002, p. 218. [O nome do livro é desconhecido pelos
autores]
54  Manifesto para Abolir as Prisões
tão temos uma proposta: existe uma canção de marinheiros cujas
primeiras palavras são: “What shall we do with the drunken sailor...?”21.
Nós modificamos esta canção colocando questões mais concretas
sobre a prisão. Agora a ideia: se formos capazes de responder satisfa-
toriamente a todas essas perguntas, então podemos continuar con-
fiando no caminho da abolição da prisão.
The drunken sailor [versão modificada]

O que vamos fazer com o marinheiro bêbado; o que vamos fazer


com o marinheiro bêbado; o que vamos fazer com o marinheiro
bêbado; de manhã cedo? O que vamos fazer com o serial killer? O
que vamos fazer com o molestador de criança? O que vamos fazer
com o estuprador que está a vaguear? O que vamos fazer com o
general genocida? O que vamos fazer com os ex-ditadores? De
manhã cedo? [E no final do dia?].

O problema com serial killers é que muitas vezes é considerado


– e está comprovado –, ser altamente provável que eles continuem
com seu hábito se não forem mantidos em confinamento. Mantê-los
sob custódia – ainda que em uma luxuosa mansão com um grande
quintal e jardim –, seria uma medida meramente preventiva e não
teria necessariamente de conter elementos de tortura e de dor extra.
Ainda assim, implicaria uma repreensão simbólica. Este método diria
à vítima que alguém se importa; ao agressor, que ele é visto como
um perigo; e à comunidade, que esse tipo de comportamento não
é e não será tolerado. A função de punição seria cumprida sem real-
mente usarmos a punição.
Em um caso criminal espetacular ocorrido nos EUA, a violação
repetida de uma menina de 18 meses de idade, sob as circunstân-
cias mais terríveis, deu ao ex-guarda costeira Eric Devin Masters uma
pena de prisão de até 200 anos, em abril de 2016. Mesmo que o juiz
Mark Trusock tenha declarado “você é realmente um indivíduo cruel
e precisamos ter certeza de que a você nunca será permitido viver
em sociedade”, a pena de prisão maciça não irá satisfazer todos os

21
Tradução livre: O que devemos fazer com o marinheiro bêbado?
Introdução  55
membros do público. Muitos dos quais acreditavam que ele merecia
a pena de morte pelos atos hediondos que havia cometido. O caso
demonstra que, atualmente, as expressões convencionais de profun-
da indignação moral são o pedido de pena de morte e o de confi-
namento da vida na prisão. Isso não significa que as coisas não po-
deriam, e não deveriam, mudar para punições menos radicais. Aqui,
como no caso de serial killers, a necessidade de desaprovação pública
poderia ser expressa pela supervisão intensiva dentro da comunida-
de. Opções extramurais iriam fornecer ao condenado uma chance
razoável de sobrevivência, duvidosa na prisão, mesmo que mediante
o fornecimento às vítimas de uma tecnologia de vigilância ao vivo e
a certeza de um vigilantismo policial constante sobre o delinquente.
Teria, ainda, que oferecer à comunidade a possibilidade de encontrar
a paz de espírito, sabendo que o condenado está sob controle e inse-
rido em uma atividade produtiva para o grupo.
Um esquema semelhante seria aplicável ao estuprador vaguea-
dor. Mas será que também atenderia à necessidade de simbolismo
expressivo no caso do general genocida? Não há dúvida de que
existe um desejo forte e legítimo por justiça por parte das vítimas
de crimes em grande escala cometidos pelos poderosos. Em alguns
casos, os familiares das vítimas lutam por anos ou décadas a fio para
encontrar os culpados e levá-los à justiça. No caso do cantor popu-
lar chileno, Victor Jara – torturado e, em seguida, alvejado na cabeça
em setembro de 1973, em um vestiário no Estádio de Santiago, Chi-
le, onde milhares de subversivos, ativistas e comunistas foram pre-
sos e detidos pelas forças do general Augusto Pinochet, que tinham
acabado de derrubar o governo eleito de Salvador Allende (o corpo
mutilado de Victor Jara foi encontrado mais tarde, despejado fora do
estádio com 44 ferimentos de bala) –, sua viúva, Joan Turner Jara, e
suas duas filhas lutaram por justiça pelo seu assassinato por mais de
40 anos. De acordo com Dixon Osburn, diretor executivo da sede na
Califórnia do Centro de Justiça e Prestação de Contas, que havia sido
fundamental para mover a ação judicial contra o suposto assassino,
o dia da abertura do julgamento no Tribunal da Flórida, em 2016, foi
não só um “momento emocionante e quase irresistível” para a família,
mas também “um momento poderoso para todos aqueles que pro-

56  Manifesto para Abolir as Prisões


curavam a justiça e a verdade sobre o que aconteceu durante o golpe
de Pinochet”22 (Osburn).
Na ocasião do julgamento, em Jerusalém, do organizador do Ho-
locausto, Adolf Eichmann, Hannah Arendt criticou os argumentos
jurídicos, mas não o resultado do julgamento (Adolf Eichmann foi
executado em 1962). Em vez de tentar pressionar as categorias de
direito penal, Hannah Arendt argumentou que o tribunal deveria ter
se atrevido a oferecer um raciocínio que iria se estender para as cate-
gorias esquecidas da lei natural. Em seu julgamento se lê:

Você admitiu que o crime cometido contra o povo judeu durante


a guerra foi o maior crime da história registrada, e você admitiu
seu papel nele [...]. Estamos preocupados aqui apenas com o que
você fez, e não com a possível natureza não criminal da sua vida
interior e de seus motivos [...]. Vamos supor, por uma questão de
argumento, que tudo não passou de um infortúnio e que você
foi um instrumento disposto na organização do assassinato em
massa; ainda há o fato de você ter realizado e, portanto, apoiado
ativamente uma política de assassinatos massiva. A política não é
como o berçário; [...] em política obediência e apoio são os mes-
mos. E, assim como você foi apoiado e realizou uma política de
não querer compartilhar a terra com o povo judeu e as pessoas
de uma série de outras nações [...] nós achamos que ninguém,
ou seja, de nenhum membro da raça humana se pode esperar o
desejo de compartilhar a terra com você. Esta é a razão, e a única
razão pela qual você deve ser pendurado23 (Arendt, 1977).

O problema com isto é, claro, o precedente. Há muitos crimes que


desafiam todas as noções de humanidade. De genocidas a homicidas
em série, passando pelo estupro de crianças. Para cada um dos cri-
minosos, quando olhamos atentamente para a sua obra e não que-

22
LUSCOMBE, Richard. Trial of former Chile military officer for murder of
Victor Jara opens in Florida. The Guardian, 13 jun. 2016. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2016/jun/13/victor-jara-trial-
-former-chile-military-officer-florida>. Acesso em: 16 fev. 2017.
23
ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil.
Harmondsworth: Penguin, 1977, p. 279.
Introdução  57
remos acreditar no que vemos ou lemos, a monstruosidade do seu
ato, por si só, pode ser encarada como “a razão, e a única razão” dele
“dever ser pendurado”.
Após a Segunda Guerra Mundial, quando a ocupação alemã de
países vizinhos havia terminado, o dia do julgamento tinha chega-
do para os colaboradores. A Noruega enforcou 25 dos contribuintes
mais proeminentes e condenou à prisão, por maus tratos e/ou mor-
tes de prisioneiros, 47 guardas prisionais. Um jovem licenciado, com
o nome de Nils Christie, que mais tarde se tornaria um criminologista
mundialmente famoso, e que havia entrevistado muitos dos guardas
noruegueses do campo, não estava convencido de que o castigo era
necessário ou até mesmo útil. Em vez de pendurar ou prendê-los –
e, assim, reforçar os estereótipos que haviam sido fundamentais em
seus crimes –, argumentou que teria sido muito mais produtivo do
que um julgamento longo e justo, estabelecer os fatos e as respon-
sabilidades, e, assim, chegar a um veredito de culpado, e depois dei-
xar que esses indivíduos envergonhados seguissem seus caminhos.
Pode-se imaginar uma repreensão moral mais devastadora, mais so-
berana do que este ato de deixá-los sair da sala do tribunal em uma
sociedade que sabe, e despreza, o que fizeram?
Há vantagens no jeito de Nils Christie em comparação com a nossa
forma tradicional de reagir. O problema com sentenças eliminatórias
é que elas nos obrigam a descer uma ladeira escorregadia. Por que
se deve esperar que qualquer membro da raça humana queira com-
partilhar a terra com qualquer daqueles seres cuja crueldade congela
o sangue em suas veias? A ideia de que algumas pessoas não mere-
cem viver não é um pensamento novo nem raro na história humana.
Quem ordena ou organiza um genocídio é apenas um exemplo. Mas,
pode-se esperar que alguém queira compartilhar a terra com assassi-
nos sádicos em massa, homicidas em série, estupradores de crianças,
torturadores e terroristas? E o que dizer de políticos corruptos que
empobrecem ou colocam em perigo populações inteiras, enquanto
acumulam milhões e bilhões de dólares em suas contas bancárias em
paraísos fiscais? Na China, muitas das mais de 40 ofensas criminais
que carregam a pena de morte não são violentas, mas sim de natu-
reza econômica.

58  Manifesto para Abolir as Prisões


A questão da prisão não pode ser desconectada das questões
mais profundas e das decisões de natureza ética e política. Quem
opta pelo “direito” do Estado à pena de morte provavelmente irá con-
ceder também o “direito” de manter os criminosos presos como ani-
mais em uma jaula. Quem tem uma visão mais crítica dos direitos do
Estado sobre o indivíduo e uma mais enfática sobre o direito de cada
ser humano à vida e à liberdade tenderá a rejeitar a pena de morte
encarando-a como uma transgressão dos direitos do Estado sobre
os indivíduos, e estará aberto a opções à prisão quando se tratar de
questões de controle social.
Quando crimes não violentos estão em discussão o “direito” do
Estado de encarcerar pode ser questionado por razões de despro-
porcionalidade. Por que responder à não violência com o ato de vio-
lência da prisão? Por que não adotar medidas de direito civil e fazer
o infrator pagar indenizações que equivalem a três, quatro, cinco ou
dez vezes o valor de seus ganhos ilícitos? Por que não inventar algum
trabalho comunitário sério supervisionado para os infratores que
não podem pagar os danos que causaram?
Outros podem se opor ao fechamento de todas as prisões por
causa do mercado de drogas. Nós ouvimos eles dizerem: como po-
demos esperar deter traficantes de drogas perigosas se não pode-
mos nem mesmo ameaçá-los com longas sentenças de prisão? Sem
a ameaça de prisão as pessoas no mercado de drogas provavelmente
continuarão fazendo o que elas têm feito ao longo da história recen-
te, embora com mais facilidade e com uma menor taxa de rotativi-
dade de pessoal. Como hoje, o que aconteceria neste mercado seria
determinado não por intervenções de justiça criminal, mas pelas for-
ças básicas de oferta e procura. As situações – e não apenas por si
sós –, iriam sofrer mudanças drásticas sem a ameaça de prisão, mas,
provavelmente, haveria menos violência em geral. Também pode-
ria ocorrer certo relaxamento no discurso público cedendo espaço
a uma análise mais sóbria do papel da justiça penal no campo das
drogas e da saúde pública.
Ainda mais pessoas poderiam se opor ao fechamento de todas as
prisões por causa de sua preocupação com demônios sexuais. Demô-
nios sexuais existem e alguns deles desafiam a capacidade terapêuti-
Introdução  59
ca da ciência e da psicologia contemporânea, tornando-se continua-
mente perigosos para os outros e elegíveis para instituições de longa
permanência que cuidam de pessoas perigosas, que os prenderão
por razões preventivas. Quanto ao resto dos agressores sexuais – e
provável e felizmente eles serão a grande maioria –, não há dúvida de
que uma vida cotidiana bem apoiada e bem supervisionada em liber-
dade seria a alternativa bem-vinda à prisão. No seu próprio interesse,
bem como no interesse de uma sociedade que tem entendido que o
confinamento, especialmente para essa clientela especial, gera tanto
violência, quanto monstros, os COSA (Círculos de Apoio e Prestação
de Contas), do tipo canadense, são uma eficaz e humana forma de
lidar com este grupo complicado de pessoas em um ambiente de
comunidade.
Em vez da punição é possível imaginar uma sociedade tão cheia
de confiança nas suas capacidades que ela poderia se dar o maior
luxo que existe: deixar impunes os que a tenham ferido.
Friedrich Nietzsche. Abuso físico infantil (surras) é particularmen-
te covarde porque é uma maneira de os adultos desabafarem seu
ódio, frustração e sadismo sobre aqueles que são incapazes de se
defender. Tal crueldade é, naturalmente, sempre racionalizada com
a desculpa “dói mais em mim do que em você”, etc.; ou explicada em
termos morais, como “eu não quero que o meu filho seja frouxo”, “eu
quero prepará-lo para um mundo duro” ou “eu espanco os meus fi-
lhos porque meus pais me batiam e isso me fez muito bem.” Apesar
de tais racionalizações, permanece o fato de que a punição é sempre
um ato de ódio.
Alexander S. Neill. Temos visto que as prisões são apenas uma
expressão da instituição maior e mais abrangente chamada de pu-
nição. Em princípio, portanto, a prisão pode ser substituída por ou-
tras formas de castigo – alguns mais duros, alguns mais leves, alguns
nem isto nem aquilo, apenas diferentes. Dado nosso conhecimento
da variedade de punições (castigos corporais, prisão, sanções finan-
ceiras, trabalho comunitário, etc.), isso é bastante óbvio. O que pode
ser menos evidente: a punição em si também pode ser vista como
apenas uma expressão de uma instituição maior e mais abrangente.
Se a punição é apenas uma forma de “reparar” os danos causados por
60  Manifesto para Abolir as Prisões
um crime, pode haver outras maneiras também, algumas mais duras,
algumas mais leves, algumas nem isto nem aquilo, apenas diferentes.
O dano causado pelo crime é muitas vezes mais complexo e mais
generalizado do que se costuma pensar. Há dano físico, psíquico, e/
ou material, mas, também há algo em um crime que afeta a comuni-
dade como tal e até mesmo a estrutura normativa da ordem social.
Se há de haver alternativa à punição, essa alternativa teria que com-
preender este dano tridimensional. Qualquer alternativa teria que ser
capaz de responder à questão de: a) como ela iria lidar com o desafio
de restabelecer a vítima a seu status completo como cidadão (mate-
rial, emocional, socialmente); b) como ela iria lidar com a restauração
da paz e confiança em uma coletividade abalada; e c) como ela iria
conseguir publicamente reafirmar a validade de uma regra violada, a
fim de evitar a erosão normativa. Crimes ferem as vítimas, mas tam-
bém prejudicam a afirmação do direito à validade. Considerando que
a compensação à vítima pode contribuir muito para desfazer o dano
infligido a ela, a punição cuida de passar a mensagem simbólica do
crime ao público e força a contradição do pensamento de que é fácil
e de que não há problema em desobedecer à lei, e que você pode ir
longe com isso. A punição é central para a ordem normativa, e até da
existência da sociedade porque é um instrumento utilizado para ga-
rantir que um crime não vai revogar a norma que ele desobedece. Ela
serve como o repúdio autorizado da mensagem implicitamente an-
tilegal de cada crime que ocorre. É uma performance (de fala e não-
-discursiva), agindo para restaurar a alegação de que a lei, mesmo se
violada, não perdeu a sua validade. E, como vimos, esta antimensa-
gem contra a mensagem do crime contém não apenas um consolo
para a vítima, mas também uma lição relevante para o agressor, além
de uma garantia vital para a comunidade afetada de que as violações
à lei não estão sendo permitidas.
Em outras palavras: enquanto uma maneira de se livrar das prisões
está em “simplesmente” substituir um castigo por outro – pois é dis-
so que o discurso sobre “opções” trata –, uma opção mais ambiciosa,
mas também mais promissora, está em ir além de qualquer punição
por completo, renunciando a esta, embora não renunciando às suas
funções restaurativas tridimensionais. Se queremos que as nossas

Introdução  61
sociedades não apenas sobrevivam, mas melhorem as condições de
vida para todos e cada um de seus membros, então uma das nossas
preocupações centrais deve ser nos livrarmos da punição sem renun-
ciar às suas funções positivas e necessárias. Colocando de forma mais
clara: após uma infração grave ter prejudicado as vítimas, afetado o
agressor e perturbado a paz pública como podemos conseguir cum-
prir as funções de punição? Ou seja, como enviar uma mensagem
que capacita as vítimas, ensina o agressor e restaura o espírito de co-
munidade sem recorrer à punição? Podemos ativar os elementos de
cura do castigo sem recorrer à punição?
Acabar com o castigo corporal e questionar a necessidade e a le-
gitimidade da prisão são atitudes arriscadas de se tomar. Elas tocam
os arquétipos da punição e, invariavelmente, colocam em questão
a solidez dos conceitos subjacentes. Será que um sistema de justiça
criminal sem a prisão pode continuar a ser um sistema de justiça cri-
minal real? O que sobra das sanções pode ser chamado de punição?
Se nós podemos viver sem prisões, não podemos simplesmente re-
nunciar à punição em geral? É a punição realmente uma necessidade
social e ética?
Uma vez nesse estágio, as nossas noções convencionais de “crime
e castigo” podem começar a desmoronar, levando-nos a questionar
os próprios conceitos de crime, culpa e, para não esquecer, de livre
arbítrio e de responsabilidade individual.
Como Willem de Haan sugeriu em 2010, essas questões devem ser
levadas a sério por todos que se preocupam com a qualidade de vida
nas sociedades contemporâneas, incluindo criminologistas acadêmi-
cos. Em suas palavras:

A criminologia precisa livrar-se dessas teorias da punição que


admitem existir qualidades universais nas formas de punição ou
assumir uma conexão direta entre crime e castigo. Dada a perse-
verança desta noção convencional de punição como essencial-
mente um “bom” contra um “mal”, qualquer esforço de mudança
de noções do senso comum de “crime’ e ‘controle do crime” requer
uma reconceitualização de ambos os conceitos: ‘crime’ e ‘castigo’.

62  Manifesto para Abolir as Prisões


Para discutir a abolição da prisão a pessoa não tem que responder
a todas as perguntas fundamentais. E não machuca pensar por um
minuto em um mundo sem castigo. Evidentemente, a sociedade não
seria capaz de sobreviver por qualquer período de tempo relevante
se a renúncia da punição fosse implicar que estupro e assassinato,
em todo tempo, não teriam qualquer resposta coletiva. Renunciar
a qualquer actus contrarius de todo crime futuro daria carta branca
para aqueles que se deleitam na dominação e exploração dos me-
nos poderosos, e provavelmente levaria ao mais terrível excesso de
vingança privada e retaliação. Em outras palavras, as sociedades não
teriam a atitude de laissez-faire24 em direção ao assassinato, estupro
ou roubo. Elas se desintegrariam.
Esta é a ideia central do conceito e da prática da justiça restau-
rativa como um meio de reparar os danos causados pelo crime às
vítimas, à comunidade, ao infrator e à ordem normativa. A justiça
restaurativa leva em consideração todas as três dimensões do dano,
mas o faz com um procedimento e uma ênfase diferente. O procedi-
mento não ocorre de cima para baixo como em um tribunal penal, e
as perguntas básicas não são “que lei foi violada, quem é o agressor e
que castigo ele merece?”, mas sim “que mal tem sido feito, o que tem
de ser feito sobre este mal, de quem é a responsabilidade de fazer
algo sobre isto, e, nós continuamos a partir daqui?” A ênfase está em
um esforço coletivo para avaliar os danos e repará-los tão bem quan-
to se pode, tendo em vista as peculiaridades do caso e as pessoas
envolvidas. Considerando que o direito penal dramatiza a violação
da norma e a autoridade do Estado, processos de justiça restaurativa
dramatizam o perigo e a necessidade de fazer as pazes e restaurar a
confiança. Enquanto o tribunal penal individualiza, colocando toda
a culpa e dor infligida sobre o culpado, a justiça restaurativa coletiva
foca sobre a situação e sua resolução, e não sobre um indivíduo.
Isso não quer dizer que o agressor não desempenha nenhum pa-
pel. Ele está sendo chamado e levado muito a sério, mas não com o
único objetivo de acusação e condenação, senão com o objetivo de
criar uma consciência do dano causado e da responsabilidade que

24
Tradução livre: Deixai fazer.
Introdução  63
ele pode ser capaz de reconhecer, e das tarefas que ele pode ser ca-
paz de assumir no processo de cura. O culpado é também visto como
uma pessoa com virtudes e defeitos, com culpa e responsabilidade,
mas também com a necessidade de cura.
Se isso soa como romantismo social, então, que seja. Por uma
questão de fato, o romantismo social sempre desempenhou um pa-
pel importante nas tentativas da humanidade de progredir no cami-
nho da civilização (podemos lembrar do papel de Harriet Beecher
Stowe na novela sentimental sobre A Cabana do Pai Tomás, na luta
contra a escravidão). Porém, isso não significa que a justiça restau-
rativa seja apenas uma ideia sem valor prático. Em alguns cantos do
mundo, que podem parecer remotos a partir de uma perspectiva
eurocentrista, a justiça restaurativa é uma prática consolidada, com
resultados impressionantes. Na Inglaterra, um teste empírico de pro-
cedimentos restauradores, em comparação com os processos penais
clássicos, tem produzido resultados surpreendentes em favor da
nova abordagem.
Do ponto de vista da justiça restaurativa, casos criminais podem
ser vistos como conflitos que foram roubados por profissionais, da-
queles imediatamente preocupados, conforme ensinou Nils Christie.
Quando as vítimas, infratores e membros da comunidade se reúnem
sob a orientação de um facilitador experiente, e não de um juiz, para
decidir como lidar com uma “situação problemática”, como afirmou
Louk Hulsman, os resultados podem ser a cura para as vítimas e os
criminosos, restaurando-se aquelas não só em termos materiais, mas
até mesmo “transformacionais”, no sentido de criar uma situação me-
lhor do que aquela a partir da qual o crime se originou, no dizer de
Ruth Morris.
No mundo de hoje a justiça restaurativa não está sendo imple-
mentada como um substituto atacadista para as prisões. Na maioria
das configurações ela é oferecida como um dispositivo de cura. Ao
lado, ou mesmo depois de um julgamento criminal e uma sentença
prisional. Para um exemplo de justiça reparadora pós-sentença ver o
documentário Beyond punishment25, por Hubertus Siegert, de 2015,

25
Tradução livre: Além da punição.
64  Manifesto para Abolir as Prisões
que lembra do papel adicional ao invés do papel da substituição da
penitenciária na era da pena capital. Mas, assim como a prisão era
cada vez mais fundamental na abolição da pena capital em grandes
partes do mundo, a justiça restaurativa tem todo o potencial de fazer
o mesmo com a prisão. Se e como isso poderia funcionar para o bem
das sociedades que adotam a justiça restaurativa depende da força
campal de interesses sociais e influências. Segundo Nils Christie, ne-
nhuma reforma está livre do risco de ser sequestrada, transformada
ou traída. Mas, enxergar uma porta na parede da prisão e não passar
por ela por medo da liberdade: quem iria conscientemente advogar
isso?
A maioria das sociedades históricas humanas não conhecia as
prisões, nem conhecia a punição como uma reação normal ao crime
pelo Estado e suas autoridades legais. E, ainda elas conseguiram ser
bem sucedidas na tarefa de reafirmar a validade da norma violada
pelo perpetrante. O que hoje é chamado de crime era visto como
uma ruptura da ordem natural e/ou como um mal feito a outra pes-
soa, porém não como um crimen laesae maiestatis, uma insubordi-
nação à vontade do governante. É por isso que o modo dominante
de “justiça criminal”, em épocas anteriores, era aquele que se podia
exercer sem punição. A Justiça foi processual e restauradora em vez
de punitivo-retributiva. Reagir a crimes era uma arte que exigia ha-
bilidades comunicativas e um profundo conhecimento de ambos os
respectivos costumes, bem como dos indivíduos interessados e das
famílias. A resolução de conflitos exigia paciência e a mobilização
contínua de boa vontade por parte de todos aqueles que de alguma
forma houvessem sido afetados pelo evento. No final, se tudo ter-
minasse bem, a paz e a segurança eram restauradas, os limites de
comportamento aceitável eram reafirmados ou ligeiramente rede-
senhados, e todas as funções expressivas normalmente atribuídas à
punição eram cumpridas. Porém, sem se recorrer à punição. É hora de
lembrar desse fato quase esquecido para progredirmos em direção a
uma forma de sociedade que esteja ao menos livre de tanto capital e
punição prisional, e, esperamos, finalmente livre também da punição
como tal.

Introdução  65
1 O PRESENTE DO
SISTEMA PRISIONAL

1.1 O QUE É O PODER PRISIONAL?

P ara que uma instituição seja considerada uma prisão, no sentido


de lugar onde a pena privativa de liberdade prevista no artigo 32,
inciso I, do Código Penal é cumprida, é preciso que ela reúna algu-
mas características. São elas: a) a inexistência de separação entre as
três esferas da vida privada, quais sendo, o repouso, a diversão e o
trabalho, que passam a ser usufruídas no mesmo local e sob a mes-
ma autoridade; b) a ausência de privacidade, a homogeneidade do
tratamento e a coletivização das tarefas; c) a cronometrização das
atividades, a sequência programada das mesmas e a sua hierarquiza-
ção gravitacional conduzida por uma equipe de funcionários; d) o de-
senvolvimento monolítico racional do cotidiano prisional, planejado
para suprir a vontade da instituição, e não as necessidades dos pre-
sos; e) a produção da estigmatização, marcando para sempre quem
a prisão toca; e, por fim, mas não menos importante, f) a imposição
desnecessária e cruel de dor, sofrimento, humilhação e exclusão, com
o consequente destreinamento social dos confinados.
Apesar de toda prisão possuir essas características, elas não são
um atributo exclusivo dela. Há outras instituições que exercem, se-
não todos, pelo menos a maioria desses poderes sobre seus inter-
nados. Algumas dessas instituições ou situações de sequestro são
tão semelhantes à prisão que se retirarmos as placas indicativas será
quase impossível distingui-las.
Quando suas condições não são piores que as da própria prisão,
as entidades de internação de menores em conflito com a lei são tão
ruins quanto ela.

SISTEMA DE INTERNAÇÃO DE JOVENS EM ALAGOAS É PIOR


QUE RDD, DIZ JUÍZA
Em um dos casos, adolescentes foram agredidos a socos, chutes e
vassouradas por monitores.
A situação do sistema socioeducativo alagoano foi debatida du-
rante a 228ª Assembleia Descentralizada do CONANDA (Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), realizada nes-
ta semana em Maceió. Na ocasião, a juíza auxiliar da Presidência
do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Marina Gurgel, que repre-
sentou o órgão na audiência pública realizada na quarta-feira,
apresentou balanço da situação “caótica” encontrada nas unida-
des de internação. – “Em alguns casos, a situação de adolescentes
internados aqui em Maceió consegue ser pior do que o RDD (Re-
gime Disciplinar Diferenciado), reservado a presos adultos de alta
periculosidade. Muitos adolescentes passam 23 horas segrega-
dos em alojamentos imundos e recebem alimentação imprópria
ao consumo humano”, disse Marina. A magistrada se reuniu com
integrantes da Justiça do Estado para esboçar uma força-tarefa
contra as violações dos direitos humanos de adolescentes em
Alagoas.
Tortura de adolescentes
Quarenta e seis monitores de unidades de internação de jovens
em conflito com a lei em Alagoas foram afastados de suas funções
após serem acusados de torturar adolescentes. A informação foi
divulgada na sexta-feira pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Entre os relatos que estão sendo investigados pelo Ministério Pú-
blico e pela Defensoria, existe a denúncia de que um grupo de mo-

68  Manifesto para Abolir as Prisões


nitores mascarados teria invadido os alojamentos onde os jovens
dormiam em uma unidade de Maceió e os agredido no dia 16 de
abril, um dia após a visita do presidente do STF (Supremo Tribunal
Federal) e do CNJ, Joaquim Barbosa, ao local em uma vistoria. Na
visita ao NEAS (Núcleo Estadual de Atendimento Socioeducativo)
e à UIJA (Unidade de Internação de Jovens e Adultos), em Maceió,
Barbosa ouviu críticas de adolescentes sobre problemas no for-
necimento de alimentação, serviços de saúde e tratamento dado
pelos funcionários dos locais. – Encontramos uma série de pro-
blemas graves, que envolvem instalações inadequadas, pessoal
não capacitado e penúria de pessoal. No dia seguinte, segundo
relatos feitos pelos internos, funcionários teriam agredido os ado-
lescentes com socos, chutes e golpes de vassoura, como explica a
juíza Ana Cristina Borba Alves, designada pelo CNJ para verificar
a situação do sistema socioeducativo de Alagoas. – Foram pro-
duzidos laudos de corpo de delito que comprovam a prática de
tortura por parte de 18 dos 46 monitores afastados. Nesses casos,
há comprovação material das agressões em procedimentos ins-
taurados pelo Ministério e pela Defensoria Públicos, que lutam
incessantemente contra a tortura26.

A privação da liberdade que essas instituições para menores pro-


duzem não se distingue da experimentada pelos maiores de idade.
E com um agravante: elas incidem sobre um ser ainda em formação,
reconfigurando-o e destreinando-o de maneira amplificada e ainda
mais irreversível que a dos adultos.
Outra instituição total de sequestro que é estrutural e funcional-
mente muito próxima da prisão é o manicômio. Hoje ele está escon-
dido debaixo de vários nomes que parecem mais leves como centros
e serviços de referência e comunidades terapêuticas. Todos esses são
locais de despejo de atípicos mentais ou de problemáticos que não
condizem com o padrão de normalidade psíquica que deseja a so-
ciedade.

26
Disponível em: <http://noticias.r7.com/cidades/sistema-de-internacao-
-de-jovens-em-alagoas-e-pior-que-rdd-diz-juiza-10052014>. Acesso
em: 19 jul. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  69
Mais próximo ainda é o manicômio judiciário, lugar onde são
cumpridas as medidas de segurança, cuja natureza em nada difere
de uma pena criminal a não ser por esse pormenor: a capacidade que
elas têm de ser quase sempre indefinidas. Por elas, o atípico mental é
praticamente condenado a uma dessocialização que o acompanhará
até o final da sua vida. O que contraria diretamente o artigo 5°, inciso
XLVII, alíneas b e d, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, que proíbe que as sanções criminais, ainda que camuflada-
mente, tenham caráter perpétuo e de banimento.
Tão próximo quanto, principalmente no que a prisão revela de
pior, são as instituições que recebem os drogados que são interna-
dos compulsoriamente. Além de todos os efeitos prisionais devasta-
dores, elas privam o cliente de uma autonomia que não prejudicava
terceiros. O uso de drogas faz parte da independência pessoal e não
pode ser objeto de intervenção, sobretudo contra a vontade do usu-
ário. A eventual alegação de que a sua condição compromete a sua
capacidade de perceber e de decidir adequadamente o que é melhor
para si próprio esbarra no limite instransponível da ausência do seu
consentimento e da liberdade de entregar ao próprio corpo o des-
tino que lhe seja mais prazeroso. E, na linguagem foucaultiana, não
seria o corpo uma utopia? De sorte que, qualquer atitude de terceiro
pretensamente substitutiva da vontade do internado involuntário,
ainda que travestida de preocupação, não passa de uma invasão.
Existem outras instituições de sequestro total que, dependendo
da maneira como são administradas, rivalizam com a prisão quanto
ao grau de desumanidade com que tratam seus internos.
Duas delas são o asilo – local costumeiro de espera pela morte –,
e o orfanato – onde os deslocados são submetidos a todos os ele-
mentos que caracterizam um aprisionamento –, embora geralmente
de maneira menos invasiva e agressiva. Obviamente que a aproxi-
mação ou o distanciamento da prisão com o asilo, por exemplo, não
depende apenas de elementos objetivos. A percepção do próprio
internado, ainda que diversa da realidade, é importante para definir
ao menos subjetivamente o grau de semelhança ou diferença. E ela
pode vir exteriorizada por frases de decepção e protesto, cumulados
com permuta: “eu preferiria estar em uma prisão por ter praticado
70  Manifesto para Abolir as Prisões
um crime a ser deixado nesse asilo por meus parentes que somente
querem se livrar de mim”.
Outro instituto total de sequestro é a escola, principalmente por-
que ela impõe um conhecimento que pressupõe uma pasteurização,
na medida em que a vontade e as características do receptor (o alu-
no) são desprezadas. Mas, não apenas por isso. A escola se aproxi-
ma da prisão porque ela também pode estigmatizar profunda e ir-
reversivelmente. O que ela representa ou deixa de representar e o
que nela acontece ou deixa de acontecer é capaz de acompanhar um
aluno até o final de sua vida. Quem estuda em um colégio público de
péssima qualidade localizado na periferia tem grandes chances de
sequencialmente ficar impedido de modificar seu estatuto social e
econômico, autorrealizando a profecia.

NASCER EM BAIRRO POBRE “PREJUDICA ASCENSÃO SOCIAL


POR DÉCADAS”
[...] De acordo com a pesquisa, o local específico da cidade onde
uma pessoa passa os primeiros 16 anos de sua vida é determi-
nante na renda que ela terá muitas décadas depois, mesmo que
mude seu local de residência diversas vezes. A conclusão é uma
má notícia para os que acreditam na possibilidade de ascensão
e mobilidade social. [...] “O bairro é o ponto crítico onde se blo-
queiam as aspirações das pessoas para subir na vida”, disse Mas-
sey à BBC. [...] Para ele, as experiências vividas no local de nas-
cimento também são uma herança da qual é difícil escapar. “Os
bairros pobres tendem a ter taxas mais altas de desordem social,
crime e violência. As pesquisas mostram cada vez mais que a ex-
posição a este tipo de violência não tem somente efeitos de cur-
to prazo, mas também de longo prazo na saúde e na capacidade
cognitiva de seus habitantes”, afirma o pesquisador. “Esses efeitos
não se apagam quando as pessoas crescem.” [...] A vida nos bairros
mais carentes implica frequentar escolas de má qualidade, ficar
mais longe das oportunidades de trabalho e mais perto dos focos
de violência de nossas cidades27.

27
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/
01/150127_bairro_humilde_pobreza_lf_cc>. Acesso em: 13 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  71
Nesse aspecto a segregação territorial, como a que experimentam
moradores da periferia, assume uma terrível característica de prisão
a céu aberto. Nela vigora um paredão de ordem que impossibilita a
mobilidade de dentro para fora, mas não de fora para dentro. Servin-
do como uma espécie de habitat para o turismo circense antropo-
lógico, nela atuam uma vigilância desconfiada, uma estigmatização
definitiva e a imposição de uma dor e de um sofrimento relevados
e substituídos por uma maquiada felicidade ufanista por morar em
uma comunidade de iguais.
Há ainda situações que se assemelham em parte às prisões, com
exceção da autonomia da vontade, pouco existente nestas e às vezes
presente naquelas. São hipóteses de restrição da liberdade pseudo-
emancipáveis.
É o caso dos pacientes dispostos em quarentena, cuja liberdade é
restringida com o fim de prevenir que um patógeno se espalhe. Ou
mesmo de pacientes de hospitais, impedidos de decidir o seu desti-
no ambulante. Enquanto não obtiverem alta médica, deverão ficar
internados.
Deve ser lembrado também o caso dos passageiros de transpor-
tes coletivos públicos, como ônibus, trens, barcos, etc. A liberdade
deles está restringida entre um ponto e outro, haja vista que as regras
de segurança do trânsito e da locomoção não permitem que os veí-
culos parem fora das estações. Todavia, eles têm autonomia para não
embarcarem, ou para desembarcarem na estação que lhes for mais
conveniente.
Não só a restrição da liberdade é algo cotidiano. O condiciona-
mento da liberdade também é diário. Como no caso em que as pes-
soas precisam deslocar-se até determinado semáforo para atraves-
sar a rua. A distância que vai do local onde elas se encontram até
o semáforo representa uma condição: a de aceitar a regra de que a
liberdade será deixada de lado para que a segurança de todos os en-
volvidos seja privilegiada. Sem isso seria difícil manter o princípio da
confiança.
O mesmo acontece com pessoas que aguardam que a senha que
retiraram em um departamento público seja chamada. Enquanto

72  Manifesto para Abolir as Prisões


não são convocadas elas permanecem limitadas em sua liberdade de
realizarem outras atividades. Caso, obviamente, elejam o atendimen-
to aguardado como prioritário.
Terminando, mas sem esgotar todos os exemplos, as concentra-
ções promovidas pelas equipes de futebol de um país equivalem a
certa interdição, e não apenas do itinerário dos jogadores, ainda que
folcloricamente os competidores estejam impossibilitados de prati-
car atividades sexuais ou frequentar bares, por exemplo.
A liberdade tem níveis de intensidade que vão do pleno ao ina-
movível, passando pelas restrições ou condições ao seu gozo. A pri-
vação mais séria da liberdade é representada pelo (RDD) Regime
Disciplinar Diferenciado e pelo encamisamento compulsório de uma
pessoa (camisa de força).
De qualquer maneira é ideológica toda privação séria da liberda-
de, mesmo quando acompanhada de um suposto consentimento,
como no caso do filho que confessa um crime para livrar o pai da
prisão.

RAPAZ CONFESSA CRIME PARA LIVRAR PAI DA CADEIA


Diogo Honorato Carneiro, 22 anos, se apresentou, acompanha-
do de seu advogado, na tarde de ontem, no 5º Distrito Policial
(Bacacheri), e confessou ter atirado em Valdir Rodrigues Alencar,
43 anos, na Rua Germano Beckert, em frente ao Bar da Sueli, no
Bairro Alto. O disparo atingiu a perna da vítima, que morreu em
poucos minutos. “Ele confessou o crime, apresentou o revólver
calibre 38, foi ouvido, indiciado e liberado como prevê a legisla-
ção”, explicou o delegado-titular do 5º DP, Geraldo João Celezinki.
O delegado explicou que no mesmo dia do crime, o pai de Diogo,
Sebastião Marcondes Carneiro, 58 anos, havia sido preso na casa
de seu outro filho, na mesma rua do homicídio. “O advogado da
família deve procurar a Justiça para conseguir liberar Sebastião.
Por enquanto, ele segue preso”, contou o delegado28.

28
Disponível em: <http://www.parana-online.com.br/editoria/policia/ne
ws/645380/?noticia=RAPAZ+CONFESSA+CRIME+PARA+LIVRAR+PAI+D
A+CADEIA>. Acesso em: 13 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  73
Ou do fugitivo que aceita retornar ao confinamento para poder
alimentar-se:

PRESO QUE FUGIU PASSA FOME FORA DA CADEIA E


RESOLVE SE ENTREGAR
Rapaz de 19 anos ficou quatro dias no mato, sem alimentação. Ele
é um dos cinco presos que fugiram da cadeia na semana passada.
Outros dois foram recapturados.
Um dos cincos presos que fugiram da cadeia de Peabiru, a 75
quilômetros de Maringá, na madrugada do último sábado [...],
decidiu se entregar porque estava passando fome fora da prisão.
[...] Alaúna Boiko, 19 anos, ficou quatro dias escondido no mato.
“Eu estava com fome e resolvi voltar, porque lá não tinha comida”,
disse à reportagem. Antes da fuga, ele estava preso há um mês e
meio, por furto. Diante do fato inusitado, a cozinheira da cadeia,
Maria Leni da Silva, contou que a comida que prepara é frequen-
temente elogiada pelos detentos29.

Embora a prisão pareça preocupada com as pessoas de bem, e


até pareça eventualmente tratá-las adequadamente, ela tem uma
ideologia profundamente enraizada e escondida. É a ideologia da
imposição humilhante do castigo, da imposição cruel e sádica do so-
frimento e da imposição desnecessária da dor. Mas, sobretudo a da
prisão pela prisão, em que a única verdade aceitável é aquela que o
aprisionamento revela. A única vontade admissível é a vontade da
prisão. A única certeza acreditável é a de que a prisão é a nossa última
esperança.
Ideologicamente, porém, a única liberdade que ela concede aos
que estão a ela submetidos é a liberdade para eles se despirem de
si mesmos, entregando-se aos seus caprichos. E é justamente em ra-
zão da inegável incompatibilidade entre a sua ideologia real e a que
ela publica que não se pode esperar que algo de bom seja retirado

29
Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/
maringa/preso-que-fugiu-passa-fome-fora-da-cadeia-e-resolve-se-en-
tregar-aask7goo4cnjm6c7mpc1qckzy>. Acesso em: 10 jun. 2016.
74  Manifesto para Abolir as Prisões
de uma instituição tão horripilante, mentirosa e criminosa quanto a
prisão.
Ela é horrível porque mesmo quando tenta ser esteticamente bela
ela é a essência da maldade estéril, da crueldade injustificada e da se-
gregação perigosa. Mentirosa porque há mais ou menos 250 anos ela
repete a mesma promessa não cumprida: a de que ela acabará com a
criminalidade e nos protegerá a tempo. Ocorre que quando ela atua
ela aumenta os crimes em vez de diminuí-los, além de chegar tarde
demais, não conseguindo devolver o bem jurídico ao seu estado an-
terior de não ameaçado ou de não lesionado. E ela é criminosa por-
que para supostamente acabar com os crimes ela comete outros até
piores. Em uma aritmética simples podemos afirmar que atualmente
no Brasil por volta de 1.278 pessoas estão presas por terem praticado
o crime de sequestro30, 31. Agora vamos considerar o seguinte: a) que
em torno de 41%32 dos encarcerados estão presos provisoriamente,
o que representa quase metade da população enjaulada do país; b)
que perto de 37%33 deles serão absolvidos; e c) que nossa população
carcerária em 2014 era de 607.73134 enclausurados. Feitas as devidas
contas encontramos os seguintes resultados assustadores: a) em tor-
no de 250.000 pessoas estão presas provisoriamente, ou seja, sem
uma condenação definitiva transitada em julgado, conforme deter-
mina o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa

30
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, passim. Acesso em: 15 abr. 2016.
31
Embora um pouco diferentes, entendemos por bem somar a quantida-
de de pessoas presas pelo crime de sequestro e cárcere privado (artigo
148, do CP), com a de encarceradas pelo de extorsão mediante seques-
tro (artigo 159, do CP).
32
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em: 15 abr. 2016.
33
Ver <http://www.conjur.com.br/2014-nov-27/37-submetidos-prisao-
-provisoria-nao-sao-condenados-prisao>. Acesso em: 15 abr. 2016.
34
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf >. Acesso em: 15 abr. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  75
do Brasil de 198835; b) dessas, 92.000 serão tardiamente absolvidas,
tendo passado parte das suas vidas indevidamente na cadeia. Isso
significa que em 2014 o Estado aprisionador sequestrava por vol-
ta de 92.000 pessoas. O que equivalia a quase 0,05% da população
brasileira que era, naquele ano, de 202.768.56236 pessoas. Contando
no mínimo com a cumplicidade neutra de várias agências, o Estado
aprisionador sequestra 72 vezes mais corpos que a quantidade medi-
da desse crime quando praticado por pessoas físicas. É esse número,
comparado com os 1.278 presos por sequestro, que nos autoriza a
afirmar que os presídios brasileiros são criminosos. Eles incorrem no
crime genérico de sequestro em uma proporção 7.200% maior que a
de crimes que a prisão finge querer estancar.
Mas, toda prisão é ideologicamente má? Não, embora sua even-
tual eficiência ou bondade não seja suficiente para justificar a manu-
tenção da sua existência. Primeiro porque nenhuma prisão deixa de
ser seletiva só porque ela é limpa, tem boa alimentação, permite a
educação e o trabalho e trata dignamente seus internos. Para tanto,
basta questionar quem gostaria de nela habitar só para poder usu-
fruir essas qualidades. A obviedade retórica dessa pergunta, confir-
mada pela inegável ausência de voluntários no ambiente prisional,
dispensa a resposta. Em segundo lugar, sobretudo porque, como en-
sina a lição agambeniana, não se pode tomar a regra pela exceção. É
a exceção que explica a regra e ela própria. E não o contrário. No caso
brasileiro, a regra de que os presídios são fétidos, insalubres, penosos,
periculosos, desumanos, sádicos e impõem a dor e o sofrimento só
existe porque existem as exceções dos países nórdicos, por exemplo,
onde as prisões são o contrário disso. São essas exceções que provam
o equívoco das prisões brasileiras. Mas, são essas mesmas exceções

35
Em 17 de fevereiro de 2016, a maioria do Plenário do Supremo Tribu-
nal Federal entendeu que a pena pode ser cumprida após decisão de
segunda instância, modificando, assim, anterior entendimento sobre o
artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988.
36
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2014/08/popula-
cao-brasileira-ultrapassa-202-milhoes-de-pessoas>. Acesso em: 15 abr.
2016.
76  Manifesto para Abolir as Prisões
que também não deixam que consideremos que a regra de que as
prisões tropicais são inabitáveis seja considerada uma exceção. De
qualquer modo, nossa realidade prisional doméstica não equivale
ou sequer se assemelha à realidade cativante dessas prisões aliení-
genas. Querer justificar a manutenção das prisões nacionais usando
como paradigma as prisões da Suécia, da Holanda, da Noruega, etc.,
é uma ilusão e uma desonestidade perigosa na medida em que nos-
sas prisões, se algo não for feito, nunca serão como as desses países,
e justamente porque não há interesse em que elas sejam, pois é a sua
manutenção no estágio sucateado em que se encontram que retro e
autoalimenta o sistema e justifica a sua privatização. Em nosso mo-
delo doméstico as melhores condições das prisões público-privadas
apenas romantiza e atrai novos investimentos em uma indústria cujo
lucro exige um aumento na quantidade de presos. Mas, enquanto
essa máquina de gastar gente, que é a prisão publicizada, for lucra-
tiva, rendendo votos, dinheiro e audiência, ela não será modificada.
Para sê-lo é preciso que a sua privatização mostre-se pervertidamen-
te mais atraente. O que não é difícil de acontecer.

1.2 QUEM SÃO OS SEUS ATORES?

1.2.1 Construindo um inimigo


Em qualquer sociedade igualitária ou não todas as pessoas erram.
Mas, quanto mais desigual ela é, mais a prisão é usada por alguns dos
seus membros, e justamente porque a prisão é a ferramenta que ra-
tifica e mantém a desigualdade. Reaproveitando o que escreveu Liev
Tolstoi em Ressurreição, diríamos que: “O único fim das prisões é o
de manter a sociedade no seu estado atual”. A prisão destaca alguns
e esconde outros, ao ponto de, inclusive, naturalizar as diferenças. É
por isso que quem olha para o almoxarifado prisional acredita que os
afrodescendentes cometem mais crimes.

1  O Presente do Sistema prisiona  77


MAPA DO ENCARCERAMENTO APONTA: MAIORIA DA
POPULAÇÃO CARCERÁRIA É NEGRA
[...] Em relação aos dados sobre cor/raça verifica-se que, em todo
o período analisado (2005 a 2012), existiram mais negros presos
no Brasil do que brancos. Em números absolutos: em 2005 havia
92.052 negros presos e 62.569 brancos, ou seja, considerando-se a
parcela da população carcerária para a qual havia informação sobre
cor disponível, 58,4% era negra. Já em 2012 havia 292.242 negros
presos e 175.536 brancos, ou seja, 60,8% da população prisional
era negra. Constata-se, assim, que quanto mais cresce a população
prisional no país, mais cresce o número de negros encarcerados37.

Realmente, em razão do seu estatuto socioeconômico, por exem-


plo, eles são conduzidos a cometer mais crimes detectáveis que as
pessoas influentes.
De todo modo foi essa mesma desigualdade que permitiu que a
história da prisão coincidisse com a história da eleição de inimigos.
De fato os intocáveis pela aprisionamento precisam da prisão para
promover e manter a separação entre quem domina (amigos da pri-
são) e quem é dominado (inimigos da prisão).
Não existem provas de que a possibilidade ou mesmo a certeza
do aprisionamento desestimule quem pretenda praticar um crime.
O mais seguro é acreditar que a sanção prisional é um neutro moti-
vacional: ele não incentiva nem inibe o futuro criminoso. E tanto isso
é verdade que algumas pessoas que praticaram crimes, e foram pre-
sas, voltaram a praticá-los, enquanto outras que nunca os praticaram
cometeram crimes mesmo sabendo da possibilidade do encarcera-
mento. Tudo isso demonstra que a prisão ou não de uma pessoa não
depende do que ela fez, mas sim, do que ela representa. De sorte que
se no momento do aprisionamento ela representa a personagem
que protagoniza o inimigo da peça que está em cartaz, sua prisão
será bastante provável.

37
Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/noti-
cias/junho/mapa-do-encarceramento-aponta-maioria-da-populacao-
-carceraria-e-negra-1>. Acesso em: 10 jun. 2016.
78  Manifesto para Abolir as Prisões
Se o comércio ilícito de drogas for o enredo do drama prisional e a
pessoa for encaixada como traficante, ela terá muito mais chances de
ser aprisionada como inimiga da sociedade. Todavia, se o ator prin-
cipal desse comércio de mercadoria ilícita for uma pessoa blindada,
sua prisão será muito menos provável.

G1 VÊ DIFERENÇAS ENTRE APANHADOS COM DROGAS


G1 divide o universo dos apanhados com drogas. Por que jovens
de classe média flagrados com 300 quilos de maconha não são
considerados traficantes?

Uma imagem divulgada no Facebook pela página Jornalismo B re-


trata como a mídia tradicional reforça, cotidianamente, preconceitos
e estereótipos através de suas abordagens pouco honestas. Para o
portal G1, site de notícias da Rede Globo, um grupo preso com 300
quilos de maconha no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, no último dia
27, merece ser chamado de “jovens de classe média”. Uma semana
antes, o mesmo portal identificou como ‘traficante’ um homem preso
em um bairro periférico da cidade de Fortaleza/CE com 10 quilos de
maconha. Na lógica do referido veículo de comunicação, portar 300
quilos de maconha não configura tráfico de drogas – ao menos no tí-
tulo da notícia – desde que você seja branco, rico ou de classe média.
Foi assim que o caso do helicóptero dos Perrella, de Minas Gerais, fla-
grado com 450 quilos de pasta base de cocaína sumiu do noticiário e
nunca foi encarado com a seriedade necessária38.
Então, não basta a tentativa de rotular alguém como inimigo. Esse
alguém precisa representar um inimigo etiquetável. É por isso que
uma máquina etiquetadora não etiqueta outra máquina etiquetado-
ra. Ela etiqueta apenas objetos, coisas, réus (res = coisas). Ela jamais
decalcará o adesivo de inimigo naquele que a alimenta. A título de
exemplo comparativo:

38
Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/g1-
-ve-diferencas-entre-apanhados-com-drogas.html>. Acesso em: 10 jun.
2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  79
67,7% DOS PRESOS POR TRÁFICO DE MACONHA TINHAM
MENOS DE 100 GRAMAS DA DROGA
[...] De acordo com levantamento do Instituto Sou da Paz com
dados do Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria
da Polícia Judiciária e do Núcleo de Estudos da Violência da Uni-
versidade de São Paulo (USP), mais de 67,7% dos encarcerados
por tráfico de maconha nas prisões do país foram flagrados com
posse de menos de 100 gramas da droga, sendo 14% deles com
quantidade inferior a 10 gramas – algo em torno de dez cigar-
ros. Aliado aos dados dos encarcerados também por tráfico de
cocaína – 77,6% com menos de 100 gramas –, 62,17% dos trafi-
cantes presos no país exerciam atividade remunerada na ocasião
do flagrante, 94,3% não pertenciam a organizações criminosas e
97% nem sequer portavam algum tipo de arma. Ou seja, eram ou
microtraficantes ou usuários39.

E:

A PF E O HELICOCA. ESTRANHO, MUITO ESTRANHO...


[...] O helicóptero da família Perrella foi apreendido com 445 qui-
los de cocaína numa fazenda no interior do Espírito Santo em 24
de novembro de 2013. [...] Apenas quatro míseros dias depois, a
ligação dos Perrellas com o crime foi descartada. Segundo o dele-
gado responsável, Leonardo Damasceno, não existiam indícios de
participação dos parlamentares40.

Mas, quais pessoas podem ser consideradas inimigas passíveis de


prisão? Algumas delas são mais inimigas e mais aprisionáveis que
outras? Antes de tentar responder a essas perguntas é preciso dei-
xar claro que não é o rótulo que cria o crime. O rótulo cria o inimigo

39
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/2014-09-23/677-dos-
-presos-por-trafico-de-maconha-tinham-menos-de-100-gramas-da-
-droga.html>. Acesso em: 10 jun. 2016.
40
Disponível em: <http://www.conversaafiada.com.br/
brasil/2014/11/14/a-pf-e-o-helicoca-estranho-muito-estranho>. Aces-
so em: 10 jun. 2016.
80  Manifesto para Abolir as Prisões
aprisionável. Exemplo disso são as incontáveis prisões de pessoas
que não cometeram o crime pelo qual estão pagando. Além disso,
em razão de vários fatores existem condutas que são mais rotuláveis
como criminosas quando praticadas por certos inimigos, que outras.
Portanto, o fato de se etiquetar alguém como criminoso não resulta
necessariamente em seu aprisionamento. Não existe essa conexão
supostamente lógica do criminoso, do crime, da acusação, da culpa-
bilidade, da condenação e da pena, com a prisão. Como essa estra-
tégia permite a sua atuação arbitrária, ao poder confinante passa a
importar apenas que determinada pessoa, interessante e útil, possa
ser etiquetada como inimigo aprisionável, sem que ele tenha que for-
necer muitas explicações.
Tecnicamente, hoje em dia se acredita mais em um determinismo
que conduziria as pessoas a inescapavelmente praticar determina-
das condutas, que nelas como o resultado de uma escolha refletida
daquelas.

HOMEM É PRESO PELA PM E DIZ QUE TRAFICAVA DROGAS


POR FALTA DE EMPREGO
[...] Aos policiais Jesus Bernardes quis justificar o crime dizendo
que estava traficando por estar desempregado. Na residência do
suspeito, foram encontradas várias porções de crack, já embala-
das para venda, uma quantia em dinheiro, além de diversos obje-
tos com suspeitas de ser produto de furto, possivelmente entre-
gues ao traficante como forma de pagamento41.

Conhecendo previamente quais são as condutas que certo gru-


po de pessoas inevitavelmente irá praticar, o poder prisional mon-
ta suas armadilhas ao longo do caminho que as conduzirá até o seu
destino. Para isso ele dispõe suas arapucas legislativas (tipos penais),
e processuais (polícia, ministério público e magistratura), em locais

41
Disponível em: <http://tvtaquari.com.br/homem-e-preso-pela-pm-e-
-diz-que-traficava-drogas-por-falta-de-emprego/>. Acesso em: 13 jun.
2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  81
estratégicos. Assim, ele impede – ou, no mínimo, dificulta – que os
inimigos aprisionáveis escapem.
Para se construir o inimigo, praticamente:
a. são votadas leis que criam tipos penais que facilitem o aprisiona-
mento das classes dominadas, e não o das classes dominantes.

DEMORA DO CONGRESSO IMPEDE GOVERNO DE COLOCAR


EM PRÁTICA PACOTE ANTICORRUPÇÃO
Em 18 de março de 2015, a presidenta Dilma Rousseff anunciou
um conjunto de medidas de combate à corrupção. Um ano de-
pois, das sete medidas propostas, cinco ainda aguardam por
aprovação do Congresso Nacional. Só foi possível colocar em
prática ações que não exigiam aprovação dos parlamentares: a
regulamentando a Lei Anticorrupção e a instituição de um grupo
de trabalho para agilizar a análise dos processos sobre corrupção,
ações que dependiam apenas do Poder Executivo. O restante das
medidas não saiu do papel porque a tramitação dos projetos não
avançou no Parlamento. [...] “Faz um ano que o pacote anticorrup-
ção – enviado pelo governo – chegou à Câmara dos Deputados”,
lembra o líder do governo na Câmara Federal, José Guimarães
(PT-CE). “Estranhamos e lamentamos a falta de celeridade para
votar esses projetos. O combate à corrupção é dever de todos
nós”, acrescentou o parlamentar. [sic]42;

enquanto que:

CÂMARA QUER PUNIR QUEM FALA MAL DE POLÍTICO NA


INTERNET
Apoiada por Eduardo Cunha, proposta pretende facilitar identifi-
cação e punição de autores de páginas ofensivas contra políticos.
Objetivo é responsabilizar criminalmente provedores, portais e
redes sociais que não retirarem o conteúdo imediatamente do ar.

42
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2016/03/demora-
-do-congresso-impede-governo-de-colocar-em-pratica-pacote-anti-
corrupcao>. Acesso em: 11 jun. 2016.
82  Manifesto para Abolir as Prisões
A Câmara prepara um projeto de lei para acelerar a identificação e
a punição de pessoas que criam páginas ofensivas e difamatórias
contra parlamentares na internet. O texto também vai responsa-
bilizar criminalmente os provedores, portais e redes sociais que
hospedam esses sites. A proposta, que tem o apoio do presidente
da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), está em fase final de elabora-
ção e deve ser apresentada em setembro pelo procurador parla-
mentar, deputado Cláudio Cajado (DEM-BA)43;
b. são realizadas averiguações e abordagens (“batidas policiais”),
em locais social e economicamente desfavorecidos, sobretudo
visando aos estereótipos de sempre.

PM DETERMINA QUE POLICIAIS ABORDEM INDIVÍDUOS DE


“COR PARDA E NEGRA”
Cometer uma discriminação social é tratar alguém de modo dis-
tinto dos demais cidadãos, negando-lhe direitos, em virtude de
uma escolha individual lícita (política, religiosa etc.) ou de con-
dição natural (cor da pele, por exemplo). Entender esse conceito
é salutar para indagarmos o espírito do documento a seguir, pu-
blicado pelo Diário de São Paulo, onde um oficial da Polícia Militar
diz, após a incidência de crimes cometidos por determinado gru-
po denunciado por vítimas locais, que policiais devem abordar
“indivíduos em atitude suspeita, em especial os de cor parda e
negra”44;

c. crimes de sangue e patrimoniais privados são frequentemente


requentados, enquanto que ações envolvendo tortura estatal e
lavagem de dinheiro são relegadas quase ao esquecimento.

43
Disponível em: <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/camara-
-quer-punir-quem-fala-mal-de-politico-na-internet/>. Acesso em: 13
jun. 2016.
44
Disponível em: <http://abordagempolicial.com/2013/01/pm-determi-
na-que-policiais-abordem-individuos-de-cor-parda-e-negra/>. Acesso
em: 11 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  83
Gráfico I.3: Processos criminais recebidos por assunto e por região45:

Região do Brasil
Tipo de crime Centro-
Nordeste Norte Sudeste Sul Total
Oeste
Crimes contra a
67.214 51.555 33.770 78.793 63.017 294.349
vida
Lesão corporal 81.593 14.293 19.476 40.750 32.634 188.746
Crimes contra o
222.974 76.202 87.248 210.397 159.092 755.913
patrimônio
Crimes de
tráfico ilícito e
77.943 39.199 35.675 93.961 82.623 329.401
uso indevido de
drogas
Crimes de
lavagem ou
ocultação de 110 880 47 143 127 1.307
bens, direitos ou
valores
Crimes de
949 247 528 922 1.643 4.289
tortura

d. pessoas influentes são absolvidas ou não são sequer julgadas,


enquanto pessoas tidas como inimigas emboloram nas carcera-
gens.

45
Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal_2015/images/ANUA-
RIO_UM_RETRATO_9_de_setembro_de_2014.pdf>, p. 51. Acesso em:
11 jun. 2016.
84  Manifesto para Abolir as Prisões
Figura 42. Escolaridade da população prisional46.

Analfabeto 6%
Alfabetizado sem cursos regulares 9%
Ensino fundamental incompleto 53%
Ensino fundamental completo 12%
Ensino médio incompleto 11%
Ensino médio completo 7%
Ensino superior incompleto 1%
Ensino superior completo 1%

Todavia, não basta a instalação de armadilhas. É preciso que a po-


pulação apoie o aprisionamento deste ou daquele inimigo. Principal-
mente porque, segundo o anarquismo malatestiano, iludir a popula-
ção fazendo-a acreditar que é ela quem decide é a melhor maneira
de sujeitá-la.

“IMPORTANTE QUE AS AUTORIDADES ELEITAS E OS


PARTIDOS OUÇAM A VOZ DAS RUAS, DIZ SÉRGIO MORO”
[...] O juiz federal Sérgio Moro divulgou nota [...] em que afirmou
considerar “importante que as autoridades eleitas e os partidos
ouçam a voz das ruas” e que “não há futuro com a corrupção sis-
têmica que destrói nossa democracia, nosso bem estar econômi-
co e nossa dignidade”. [...] Nas manifestações que aconteceram
em todo Brasil [...] o juiz da Lava Jato recebeu amplo apoio, bem
como as investigações e autoridades envolvidas nos processos da

46
Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal_2015/images/ANUA-
RIO_UM_RETRATO_9_de_setembro_de_2014.pdf>, p. 58. Acesso em:
11 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  85
Lava Jato. Em Curitiba, sede das investigações, manifestantes co-
locaram nas ruas 10 mil máscaras em homenagem a Moro47.

Para tanto, é necessário que a população não enxergue no inimi-


go aprisionável um semelhante. Ela precisa acreditar que ele se trata
de um outro, diferente da maioria. Ou de algo desprezível, adjetivado
com terminações diminutivas (marginalzinho), ou até mesmo com
uma estética não humana (desantropomorfização: besta, fera, mons-
tro, animal). Tudo animado midiaticamente:

TÁ COM PENA? ADOTE UM BANDIDO!


[...] A queridinha Rachel Sheherazade, “jornalista” do SBT, foi às te-
las nesta semana comentar sobre o ocorrido no bairro do Flamen-
go, quando um grupo de agressores denominados de “justiceiros”,
prenderam um adolescente nu a um poste, depois de espancá-lo
e cortarem uma de suas orelhas. Seria só mais uma aparição tele-
visiva com discurso ultrarreacionário, o qual já nos acostumamos
a ouvir em rede nacional. Mas desta vez, a “jornalista” incitou ex-
plicitamente a violência, quando alegou que “a atitude dos ‘vin-
gadores’ é até compreensível (…) O quê que resta ao cidadão de
bem que ainda por cima foi desarmado? Se defender, é claro! O
contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa
coletiva.” Ou seja, para os que se autodenominam “cidadãos de
bem” é legítimo o uso da violência, julgado e executado por eles
mesmos. São, todos estes, juízes divinos, talvez. Para completar o
discurso que sempre é lançado pela turma dos “direitos humanos
para os humanos direitos” (ou de direita, mesmo) foi repetido: “E
aos defensores dos direitos humanos que se apiedaram do margi-
nalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor
ao Brasil, adote um bandido”. [...] Comentários: [omitido o nome
do(a) comentarista]: [...] Igualmente hipócrita quem invoca direi-
tos humanos para defender bandido. Penso que esses são os que
não sofreram na pele a perda de um ente querido, a mutilação
psicológica que é um assalto ou, o que é pior, não sabe o que é ser

47
Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/
importante-que-as-autoridades-eleitas-e-os-partidos-oucam-a-voz-
-das-ruas-diz-sergio-moro/>. Acesso em: 11 jun. 2016.
86  Manifesto para Abolir as Prisões
vítima de um sequestro, quando a sua vida a mercê da vontade
de “monstros” que se destoam completamente de um perfil do
que pode-se chamar de ser humano. Com todas as desigualdades
existentes no Brasil e no mundo nada justifica comportamentos
atrozes praticados por aqueles que se dizem sujeitos de direitos
humanos. Portanto, parabéns Rachel pelo dom da palavra e pela
sensibilidade! [sic]48

Infelizmente esta estratégia de desumanização do inimigo conve-


niente não é exclusiva das pessoas privadas, partindo também dos
agentes públicos:

Então o traficante é um bicho perigoso, um animal peçonhento,


tem que ser extirpado da face da Terra, o tal do traficante. Devia
ter pena de morte pra essa raça nojenta, maldita. Porque quan-
do vai preso fica de 5 a 15 anos comendo às custa do governo,
comendo às custa dos impostos da população [...], tem que sus-
tentar esses lixo aí [...]. Ele falou: eu tenho direitos, eu sou pai de
família. Quer dizer, um porco desse aí [...] [sic]49.

A rigor, o apoio populacional precisa ser sempre cuidadosamente


cultivado, sobretudo mediante defensivos que finjam dirigir-se ape-
nas contra o inimigo (erva daninha). Se a população perceber que ela
é o alvo ela retirará sua adesão. O defensivo mais potente para esse
fim é a prisão. Ela estranhamente faz com que as pessoas do povo
quase nunca acreditem que estarão na condição de encarceráveis,
do outro. Também é intrigante notar que a prisão tem a capacidade
de aglutinar as pessoas em torno da crença de que elas fazem parte
de um grande e maravilhoso projeto em prol da salvação da socieda-
de. E foi dessa ingenuidade misturada com arrogância que o Estado
prisional se aproveitou para se instalar profundamente.

48
Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/02/ta-
-com-pena-adote-um-bandido.html>. Acesso em: 11 jun. 2016.
49
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=5kY1R9Tl21Y>.
Acesso em: 11 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  87
Após deixar que o caos se implantasse e depois de colher a ade-
são simpática das pessoas à sua cruzada contra o mal, bastava eleger
os inimigos e a maneira de utilizá-los de acordo com os seus inte-
resses (pessoais, empresariais, políticos, midiáticos, etc.). Quase que
unanimemente a maneira escolhida e aplaudida tem sido o aprisio-
namento.
Quem se debruçar sobre os inimigos escolhidos perceberá que
eles sempre pertencem a grupos cujas características são muito
genéricas (traficantes, afrodescendentes, ladrões). A razão é que a
amplitude dessa estereotipagem é o que facilita o enquadramento
daquele que personificará o inimigo previamente formatado. Não é
preciso destacar que com esses limites tão extensos o inimigo pode
ser qualquer um que se assemelhe ao manequim e pertença ao ma-
crossistema vulnerável.
São esses grandes grupos genéricos, contidos dentro do macros-
sistema dominado, que os agentes do poder prisional usam como
parâmetro para poderem atuar. É com base neles que o policial “esco-
lhe” o inimigo da vez, quando realiza uma abordagem.

ORDEM DA PM DETERMINA REVISTA EM PESSOAS “DA COR


PARDA E NEGRA” EM BAIRRO NOBRE DE CAMPINAS (SP)
A PM (Polícia Militar) de Campinas (93 km de São Paulo) deter-
minou, em uma OS (Ordem de Serviço) [...], que seus integran-
tes abordassem jovens negros e pardos, com idade entre 18 e 25
anos, na região do bairro Taquaral, uma das áreas mais nobres da
cidade. Segundo a determinação, dirigida ao Comando Geral de
Patrulhamento da região, pessoas que se enquadrem nessa ca-
tegoria são consideradas suspeitas de praticar assaltos a casas
na região e devem ser abordadas prioritariamente. A orientação
foi passada de forma oficial, em papel timbrado da PM, assinada
pelo capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, e pede que
os policiais foquem “abordagens a transeuntes e em veículos em
atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra,
com idade aparentemente de 18 a 25 anos, os quais sempre estão
em grupo de 3 a 5 indivíduos na prática de roubo a residência
daquela localidade”. A instituição nega cunho racista e disse que
se baseou em uma carta de moradores para ter a descrição dos
88  Manifesto para Abolir as Prisões
suspeitos e determinar as abordagens. O documento, no entanto,
não foi enviado à reportagem50.

Além de outros motivos, parece ser inegável que os agentes en-


volvidos com o aprisionamento dos inimigos agem com bastante
liberdade, embora dentro de um circuito que, apesar de amplo e ge-
nérico, está muito bem delimitado. Por outro lado, esse campo de
inimizades está se expandindo cada vez mais ao admitir a entrada de
novos inimigos e a saída de poucos.

MAPA DAS PRISÕES


Novos dados do Ministério da Justiça retratam sistema falido.
O Ministério da Justiça divulgou [...] os números [...] sobre o sis-
tema prisional brasileiro. Os dados mostram que, cada vez mais,
a prisão tem sido usada como regra, e não exceção – ao contrá-
rio do que determinam as leis e normas internacionais de direi-
tos humanos. Em junho de 2013, o Brasil tinha 574.027 pessoas
presas – a quarta maior população carcerária do mundo, atrás de
Estados Unidos, China e Rússia. A taxa de encarceramento, índice
que calcula o número de presos em cada grupo de 100 mil habi-
tantes, saltou de 287,31 para 300,96 em apenas seis meses. [...]
Entre 1992 e 2013, a taxa de encarceramento (número de presos
por cada grupo de 100 mil habitantes) do país cresceu aproxima-
damente 317,9%, passando de 74 para 300,96. Nos Estados Uni-
dos, o aumento foi de quase 41%. Na China, de 11%. A Rússia foi o
único país do grupo a registrar redução de cerca de 4%. [...] O Bra-
sil possui desde 2011 uma Lei de Medidas Cautelares (12.403/11),
que prevê medidas alternativas para pessoas que respondem a
processos criminais, evitando seu ingresso na prisão, mas a nor-
ma não vem sendo aplicada de maneira adequada. “Esperava-se
que o número de presos provisórios caísse depois da aprovação
da medida, mas os números do MJ mostram justamente o contrá-
rio. O Judiciário precisa entender a dimensão de sua responsabi-

50
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
cias/2013/01/23/ordem-da-pm-determina-revista-em-pessoas-da-cor-
-parda-e-negra-em-bairro-nobre-de-campinas-sp.htm>. Acesso em: 14
jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  89
lidade nessa questão”, diz Rafael Custódio, coordenador do pro-
grama de Justiça da Conectas. Os dados mostram que o número
total de presos provisórios aumentou 107% entre 2005 e 2013. [...]
Contribui para o cenário a falta de investimento dos governos em
alternativas penais – medidas aplicadas a presos já condenados
que permitem o cumprimento da pena fora da prisão. Segundo
dados de 2011 do Ministério da Justiça, só 5% (R$ 4,8 milhões)
dos recursos do Funpen (Fundo Penitenciário Nacional) foram
destinados ao apoio a penas e medidas alternativas. “Ao disponi-
bilizar mais recursos para a construção de presídios e muito me-
nos para as medidas alternativas, o governo estimula a lógica do
aprisionamento nos estados em detrimento de perspectivas que
rompam com a cultura do cárcere. É um recado muito claro de
que não há verdadeiro interesse em construir alternativas”, defen-
de Vivian Calderoni51.

1.2.2 O inimigo precisa ser conveniente


Como visto, não é suficiente que a pessoa se amolde à forma do
inimigo. É preciso que ela seja um inimigo conveniente. E quem de-
cide sobre a conveniência ou não do inimigo são aquelas mesmas
pessoas que decidem sobre a conveniência da atuação ou da omis-
são do poder prisional. Embora a autonomia que elas tenham varie
bastante, essas pessoas podem ser: a) o responsável direto pelo apri-
sionamento; b) a própria pessoa sujeita, em tese, ao aprisionamento;
ou c) um terceiro com poder de decidir sobre a prisão.
A atuação delas depende das vantagens ou das desvantagens re-
sultantes do eventual encarceramento de determinado inimigo – be-
nefícios ou prejuízos que são imprevisíveis, incalculáveis e variam ao
sabor dos interesses e das forças das partes envolvidas. Embora nes-
se cálculo aprisionador ou libertário entrem: a) desde valores recebí-
veis a título de contrapartida (propina); b) passando pelo desconforto
de encarcerar alguém da mesma classe (corporativismo e hierarquia),
ou de entidade a que se respeita e admira (simpatia); c) até second

51
Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/noticia/25378-mapa-das-
-prisoes>. Acesso em: 14 jun. 2016.
90  Manifesto para Abolir as Prisões
codes, que são os códigos ideológicos de um agente penitenciário,
um policial, um promotor ou um magistrado responsável pelo caso,
tendentes a dirigi-los a favor (agente punitivista) ou contra o confina-
mento (agente abolicionista).
Para além do acerto técnico que algumas das opções acima pos-
sam conter (o presidiário realmente é culpado), sua variedade, in-
coerência e contradição não deixam de provocar um desconforto
no cidadão leigo. Para ele é difícil compreender que o respeito ao
Estado democrático e social de direito – mesmo quando liberta um
culpado, em razão de uma prescrição etc. –, é mais importante para a
segurança jurídica de todos, que uma condenação apressada de um
inocente. Esta instabiliza todo o sistema que, a partir desse preceden-
te, pode agir ainda mais arbitrariamente do que já age, sobretudo
contra ele mesmo, na medida em que se torna mais fácil a eleição
aleatória e desmotivada de novos inimigos.
Esta percepção sobre a prisão evidencia que para o cidadão co-
mum a configuração completa do inimigo convinhável se inicia
com a escolha da conduta a ser hostilizada e com a fabricação do
seu molde (lei penal). Embora ela se encerre precocemente já com a
acusação de alguém. Seja ela formal (polícia) ou informal (ministério
público ou judiciário).
Isso ocorre porque a pessoa do povo prefere não se expor ao pe-
rigo. Por consequência, ela raciocina de modo a prevenir a defesa
dos bens que ela acredita lhe serem mais importantes. Com efeito,
ela tende a antecipar o seu juízo condenatório para antes da prisão.
Nesta hipótese, o seu plano defensivo segue a lógica tardeana em
que as pessoas que se sentem delirantemente perseguidas inventam
inimigos que justifiquem a sua angústia – momento a partir do qual
começam a acreditar que se elas se percebem ameaçadas é porque
existe um inimigo à espreita. Daí, para a conversão da crença em re-
alidade, é um pulo.
Com efeito, a prisão conveniente do inimigo passa a ser apenas a
confirmação de um julgamento que a pessoa já encerrou há muito
tempo, e que quase sempre é irreversível. E exatamente porque ele
faz com que a presunção se inverta, passando da inocência para a

1  O Presente do Sistema prisiona  91


culpa: se a pessoa está ou foi presa é porque alguma coisa de errado
ela fez. É porque ela é realmente uma inimiga, ainda que ela venha a
ser absolvida, e independentemente do motivo.
Em Os irmãos Karamazov, Fiódor Dostoiévski escreve:

Aquela tragédia aparecia em relevo, alumiada por uma luz impla-


cável. Depois do que, o presidente perguntou a Mitia: – Acusado,
reconhece-se culpado? Mitia levantou-se: – Reconheço-me cul-
pado de embriaguez, de devassidão e de preguiça – disse ele com
exaltação. – Queria corrigir-me definitivamente, na hora mesma
em que a sorte me feriu. Mas estou inocente da morte do velho,
meu pai e meu inimigo. Não o roubei tampouco, não, não sou
capaz disso. Dimítri Karamazov é um canalha, mas não um ladrão!
[...] Desde o começo, uma particularidade daquele caso afirmou-
-se aos olhos de todos: a força extraordinária da acusação, em re-
lação aos meios da defesa. Todo mundo compreendeu logo isso,
quando se viu os fatos agruparem-se, acumularem-se e o horror
do crime exibir-se pouco a pouco à plena luz. Dava-se conta o
público de que a causa estava bem clara, que a dúvida era impos-
sível, que os debates seriam apenas mera formalidade, estando
mais que demonstrada a culpabilidade do acusado. Penso mes-
mo que nem dúvida havia para todas as senhoras que aguarda-
vam com tanta impaciência a absolvição do interessante acusado.
Mais ainda, parece-me que se sentiriam elas aflitas diante de uma
culpabilidade menos evidente, porque isso teria diminuído o efei-
to do desenlace, quando se absolve o criminoso. Coisa estranha
é que todas as senhoras acreditaram na absolvição quase até o
derradeiro minuto. “Ele é culpado, mas absolvê-lo-ão por huma-
nidade, em nome das ideias novas” etc.

É por isso que enquanto ninguém denuncia ou dispara o alerta,


as pessoas não fantasiam inimigos convenientes a si ou a terceiros. E
também não surge a preocupação com a prisão do denunciado, pois
as pessoas acreditam estar seguras. Enquanto a sirene não é tocada
a prisão não passa de um depósito distante e esquecido, e que esto-
ca inimigos que já não incomodam mais. Porém, basta um leve to-
que no interruptor para que o pânico moral seja reinstalado e sejam
ressuscitadas as políticas prisionais mais duras, todas visando a uma

92  Manifesto para Abolir as Prisões


higienização social que vai deixar os espaços públicos assépticos e
livres dos inimigos patogênicos.
A título de precaução é bom nunca esquecer que a prisão é ingra-
ta e pode se voltar contra aqueles que a mantêm como beneficiários
(políticos, etc.), ou como marionetes (policiais, etc.), considerando-os
como inimigos.

AGENTE PENITENCIÁRIO É PRESO SUSPEITO DE VENDER


DROGAS NA CADEIA, EM GO
No carro dele foram encontrados 3,5 kg de maconha, uísque e
celulares. Ele receberia R$ 3,5 mil para levar os produtos para de-
tentos, diz polícia.
Um agente penitenciário foi preso na noite de quinta-feira [...]
suspeito de vender drogas, bebida alcoólica e celulares dentro do
Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, na Região Metropo-
litana da capital. Ele foi detido depois que o diretor da unidade
desconfiou do comportamento estranho do servidor. [...] Segun-
do a corporação, o suspeito confessou que levaria o material para
dois presos, que respondem por homicídio e tráfico. Em troca,
receberia R$ 3,5 mil. Os três envolvidos foram levados para o 1º
Distrito Policial da cidade52.

Fora dessas hipóteses raríssimas e de acordo com as mensagens


diretas e subliminares que recebemos ao longo da vida o inimigo
perfeito para o poder prisional é aquele que nos assusta e que não re-
presenta uma objeção ideológica à prisão. Resistência e indignação,
portanto, são fatores que podem influenciar no seu enquadramento.
Porém, o fato de ele resistir à prisão não invalida ou diminui sua ade-
quação como inimigo quando há um apoio popular a favor do seu
confinamento. A menos, obviamente, que ele integre o megagrupo
dos ilesos. Neste rol entram o homicida, o estuprador, o ladrão, o tra-
ficante, etc. Eles são convenientes, irresistíveis, conformados e a sua

52
Disponível em: <http://g1.globo.com/goias/noticia/2016/06/agente-
-penitenciario-e-preso-suspeito-de-vender-drogas-na-cadeia-em-go.
html>. Acesso em: 10 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  93
prisão atrai o apoio popular. No outro grupo, e independente do que
fizeram ou deixaram de fazer, entram os inconvenientes, os indigna-
dos e os resistentes. Sua prisão é improvável, para não dizermos im-
possível, mesmo que haja certo clamor popular. Aqueles precisam de
pouco esforço para serem aprisionados; estes não o são, ainda que se
esforcem bastante para serem.
Graficamente, a submissão ou não à prisão pode ser assim repre-
sentada:

Aprisionáveis Intocáveis

Classe baixa: 33,7%  Classe média: 48,5%  Classe alta: 17,8%


Máxima > possibilidade de aprisionamento > Nenhuma45
Menos resistentes à prisão  Mais resistentes à prisão

Zero  Baixo  Médio  Alto  (possibilidade e nível de encarceramento)

(população carcerária) (população ainda livre)

(intocáveis) (ex-intocáveis, presos por conveniência do grupo influente)

94  Manifesto para Abolir as Prisões


Existem, ainda, inimigos isolados e ocasionais. Contra eles o po-
der prisional se volta apenas provisoriamente, e para atender aos
interesses de alguns que utilizam o encarceramento como um meio
de coerção (imposição da sua vontade, etc.), ou de barganha (de-
lação premiada, etc.). E até mesmo como meio de intimidação. To-
davia, antes de continuarmos, é preciso fazer um reparo quanto a
esta última hipótese. No caso, não é a prisão em si que exerce efeito
coativo sobre o seu destinatário, obrigando-o ou convencendo-o
a mudar sua postura ou decisão. Ele não age ou deixa de agir com
receio de ser preso. Ele age ou deixa de agir porque teme perder
privilégios e garantias, caso seja preso – o que é bem diferente. Sob
todos os aspectos, são os efeitos secundários que a possibilidade
da prisão pode ocasionar que o desestimulam, como a perda de
direitos políticos, a perda de poder de negociação de igual para
igual, etc, o que não diminui em nada a necessidade de efetivarmos
a advertência escrita por Liev Tolstoi em Ressurreição: “[...] o atual
Estado social é injusto e [...] todos os homens devem lutar para o
destruir e substituir por um novo regime, onde o indivíduo se possa
desenvolver livremente, etc.”.
Dependendo de quem seja o inimigo é quase certo que a sua con-
sideração como conveniente ou inconveniente ao poder prisional vá
acompanhá-lo por toda a sua vida. Assim como os efeitos estigmati-
zantes impressos pelo eventual confinamento. Todavia, em hipóteses
raríssimas pode acontecer de o seu status ser alterado para melhor
ou para pior, ainda que provisoriamente: a) ou por mérito próprio,
o que é dificílimo e quase folclórico; b) ou por uma decisão de um
terceiro, o que é mais provável, embora pouco ocorrente.
Exemplo do primeiro caso seria o seguinte:

MENINO POBRE ACHA CARTEIRA COM R$ 1.600,00 E FAZ


QUESTÃO DE DEVOLVER PARA O DONO
Muita gente ficaria em dúvida sobre o que fazer caso achasse
uma carteira cheia de dinheiro na rua. Este menino de 16 anos
nem hesitou: morador de Samambaia (DF), Lucas Yuri encontrou
R$ 1.600,00 no lixo e fez questão de devolver a grana ao dono. [...]
A avó do garoto, Maria do Carmo da Silva, revelou que a mãe de

1  O Presente do Sistema prisiona  95


Lucas está desempregada e o dinheiro seria bem útil, mas ressal-
tou que o neto fez a coisa certa. – Isso é motivo de orgulho para
qualquer um53.

E:

A PRISÃO DE CUNHA
Lavagem de dinheiro, definiu o STF, é crime permanente. Eis uma ra-
zão para encarcerá-lo.
[...] No caso Cunha, a consumação delinquencial se alonga, com
ocultação permanente de capitais em contas correntes. Tudo não
declarado no Brasil, com evasão de divisas e dinheiro em odor
de corrupção. Trocado em miúdos, pode-se dar voz de prisão em
flagrante a Cunha. Como reforço, convém lembrar o caso Delcídio
do Amaral, preso preventivamente, tendo o ministro relator Teori
Zavascki sustentado tratar-se o crime de formação de organiza-
ção criminosa, de natureza permanente, e que poderia, até, ense-
jar prisão em flagrante54.

Já do segundo:

DESEMBARGADOR JOGA ENTULHO EM TERRENO E DÁ VOZ


DE PRISÃO A POLICIAL
[...] O magistrado é acusado por moradores da região de ter agre-
dido a dona de casa Ana Paula Bergmann, 43 anos, que reclama-
va do despejo de entulho em um terreno. Ao ver a agressão, o
policial civil afastado Antonio Carlos Poleira sacou uma arma e
deu voz de prisão ao desembargador. “[...] O policial disse que ele
não podia jogar lixo ali e ele (desembargador) disse ‘eu jogo onde
eu quiser’. O vizinho me pediu pra filmar pra ele chamar o meio

53
Disponível em: <http://www.conexaorondonia.com/materia/menino-
-pobre-acha-carteira-com-r$-1.600-00-e-faz-questao-de-devolver-pa-
ra-o-dono.html>. Acesso em: 14 jun. 2016.
54
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/revista/881/a-prisao-
-de-cunha>. Acesso em: 14 jun. 2016.
96  Manifesto para Abolir as Prisões
ambiente. Daí ele veio e me deu um murro. Quando eu estava no
chão o assessor dele me puxou e deslocou meu dedinho”, conta.
‘‘‘O senhor está preso’, ele dizia. ‘Eu sou o poder judiciário; vocês,
seus favelados, um lixo a mais um a menos’. A gente se sente ame-
açado pelo poder judiciário’’, relata a moradora55.

A utilidade que alguns pretendem atribuir à prisão é tão gené-


rica que ela é absurdamente convocada para atuar até como meio
de proteção conveniente do inimigo confinado. Seria uma espécie
de preocupação irônica e contraditória com aquele que é odiado. Es-
tampando o absurdo desse pretenso uso, decidiu o STF (Supremo
Tribunal Federal) que:

PRISÃO NÃO SERVE PARA GARANTIR INTEGRIDADE FÍSICA


A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimida-
de, pela expedição de alvará de soltura em favor de um acusado
de homicídio, preso desde maio de 2008, sob o fundamento de
que é necessário preservar sua integridade física. “Ninguém pode
ser preso para a sua própria proteção”, disse o ministro Joaquim
Barbosa, relator do Habeas Corpus. Para o ministro, o fundamento
utilizado para manter a prisão preventiva do acusado, dada a ne-
cessidade de preservar sua integridade física em razão da revolta
popular que o crime causou, não se sustenta56.

Seu raio de ação foi tão ampliado que a prisão está sendo convo-
cada até para validar uma excepcional melhora do enjaulado, con-
vertendo-o de inimigo útil em amigo mais útil ainda.

55
Disponível em: <http://www.ocafezinho.com/2016/05/22/ele-nao-po-
de-me-prender-eu-sou-desembargador-um-retrato-da-justica-brasilei-
ra/>. Acesso em: 14 jun. 2016.
56
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-dez-05/juiz-nao-man-
dar-prender-garantir-integridade-fisica-reu>. Acesso em: 14 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  97
TRICÔ FEITO POR PRESOS DE JUIZ DE FORA CHEGA À SÃO
PAULO FASHION WEEK
Peças em tricô e crochê fazem parte do desfile da coleção de in-
verno 2015. Produção feita pelos presos já é exportada para 11
países.
Oito detentos da Penitenciária Professor Ariosvaldo Campos Pi-
res, em Juiz de Fora, produziram 20 peças em tricô e crochê para
a coleção de inverno 2015 da grife Iódice, que será apresentada
nesta quarta-feira [...], durante a São Paulo Fashion Week – prin-
cipal evento de moda do país, que segue até sexta-feira [...], na
capital paulista. Os presos integram o projeto Flor de Lotus, que
atualmente trabalha com a reinserção social de 18 homens. “[...]
Eu não esperava que estes homens pudessem fazer tricô e crochê.
O comportamento deles mudou e hoje é exemplar. Agora, acredi-
to que o ser humano pode superar todas as coisas. O que precisa
é oportunidade”, disse a diretora57.

O grau da conveniência da prisão do inimigo varia de acordo com


o nível da sua influência, conformidade e resistência. Não só sobre o
sistema prisional, mas sobre toda a burocracia estatal, empresarial,
etc. Quanto mais influente, desconforme e resistente ele for, mais dis-
tante ele estará da sanção prisional e vice-versa. Dessa maneira, uma
influência, uma irresignação e uma indignação máxima possibilitaria
uma indiferença prisional máxima. Assim como uma influência míni-
ma, uma conformação alta e uma irresistência elevada permitiriam
uma implicação prisional altíssima.
Todavia, mais de uma pessoa detém a capacidade de influenciar o
poder prisional, e ao mesmo tempo. Em razão disso pode acontecer
de alguém, ainda amigo da prisão, perder a disputa para outro ami-
go mais poderoso, convertendo-se em um inimigo conveniente que
passará a atrair mais facilmente o aprisionamento. Entretanto, esta
hipótese não passa de uma exceção. Normalmente a aproximação ou

57
Disponível em: <http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noti-
cia/2014/11/trico-feito-por-presos-de-juiz-de-fora-chega-sao-paulo-
-fashion-week.html>. Acesso em: 14 jun. 2016.
98  Manifesto para Abolir as Prisões
a refração do poder prisional, exercida respectivamente pelo inimigo
ou pelo amigo, são bem mais estáveis e dificilmente são modificá-
veis. Geralmente quem é invulnerável à prisão, vitalícia e hereditaria-
mente continuará sendo. E quem não é, além de já não o ser em vida,
acabará inevitavelmente transmitindo essa certeza do confinamento
aos seus descendentes e a quem lhe seja próximo.
Para os primeiros, a liberdade não é o único prêmio.

PERRELLA, AQUELE DO ESCÂNDALO DO HELICÓPTERO COM


COCAÍNA, PODE OCUPAR CARGO NA MESA DO SENADO
O Senado Federal está prestes a escolher José Perrella (PDT-MG)
para a Segunda Secretaria. Perrella é aquele parlamentar cuja fa-
mília está envolvida no escândalo de helicóptero apreendido re-
cheado com 445 quilos de cocaína58.

E:

FILHO DE PERRELLA VAI ASSUMIR SECRETARIA DO FUTEBOL


Deputado estadual Gustavo Perrella, de 33 anos, foi convidado
pelo ministro do Esporte, Leonardo Picciani (PMDB), e deve ir a
Brasília na próxima segunda-feira acertar os detalhes do cargo;
seu pai, o senador Zezé Perrella, foi presidente do Cruzeiro e é
membro da “bancada da bola”, formada por políticos ligados à
CBF na APFUT (Autoridade Pública de Governança do Futebol); os
dois foram alvo de uma operação da PF que flagrou e apreendeu
445 kg de cocaína em um helicóptero pertencente a Zezé Perrella
em novembro de 201359.

58
Disponível em: <http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noti-
cia/2015/02/perrella-aquele-do-escandalo-do-helicoptero-com-cocai-
na-pode-ocupar-cargo-na-mesa-do-senado.html>. Acesso em: 10 jun.
2016.
59
Disponível em: <http://www.brasil247.com/pt/247/esporte/233594/
Filho-de-Perrella-vai-assumir-Secretaria-do-Futebol.htm>. Acesso em:
10 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  99
Para os segundos, a prisão não é o único castigo.

FAMÍLIA PRESA COM MAIS DE MEIA TONELADA DE


MACONHA NA BR-163
Esta é a maior apreensão de entorpecente registrada na região
Norte
Mãe de 59 anos, dois filhos e dois sobrinhos foram presos em fla-
grante pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), por volta de 22h30
desta quinta-feira [...], transportando mais de meia tonelada de
maconha60.

E:

FAMILIARES DE PRESOS SOFREM COM PRECONCEITO


Quando uma pessoa é presa, toda sua família também acaba
sendo aprisionada pelo preconceito e pelo desamparo. Poucas
pessoas e entidades, porém, se preocupam com o bem-estar e
as necessidades de pais, filhos, irmãos e esposas de quem cum-
pre pena de detenção. [...] “O descaso com as famílias de presos
é um problema gravíssimo no País”, afirma Walter. “Muita gente o
trata (o detento) com preconceito. Até nas portas dos presídios,
quando vão visitar seu parente que cumpre pena, costumam ser
desrespeitados.” Para ele, a sociedade precisa entender que a fa-
mília não tem relação alguma com o crime cometido pelo preso.
Dados da Sofre indicam que 90% dos presos são pobres. Muitas
vezes, a pessoa detida era a principal provedora de sua casa. De-
samparados, os parentes passam a pedir esmolas e até mesmo
a furtar para sobreviver, dando origem a um círculo vicioso. As
famílias também ficam psicologicamente e emocionalmente fra-
gilizadas61.

60
Disponível em: <http://www.correiodoestado.com.br/cidades/familia-
-presa-com-mais-de-meia-tonelada-de-maconha-na-br-163/273974/>.
Acesso em: 10 jun. 2016.
61
Disponível em: <http://www.parana-online.com.br/editoria/cidades/ne
ws/61746/?noticia=FAMILIARES+DE+PRESOS+SOFREM+COM+PRECO
NCEITO>. Acesso em: 10 jun. 2016.
100  Manifesto para Abolir as Prisões
Para os primeiros é como se vigesse um modelo implícito de cor-
porativismo perante o qual algumas pessoas entabularam um acor-
do tácito cuja cláusula principal estaria vazada nos seguintes termos:
somos todos iguais, embora nós sejamos mais iguais na insubmissão
à prisão que os outros.

O “ACORDÃO” DE SENADORES PARA BARRAR A PRISÃO DE


RENAN E JUCÁ
Com mais de 30 senadores citados na Operação Lava Jato, ordem
é votar contra prisão de Renan e Jucá em caso de determinação
do STF.
Um grande acordo envolvendo a base aliada do governo interino
no Senado pretende impedir a concretização do pedido de prisão
do presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), e do senador
e presidente do PMDB, Romero Jucá (RR), feito ao Supremo Tri-
bunal Federal (STF) pelo procurador-geral da República, Rodrigo
Janot. [...] Mesmo que o STF acolha o pedido de Janot, Renan e
Jucá só poderão ser presos se o plenário do Senado aprovar o pe-
dido62.

Literariamente, em O alienista, Machado de Assis expõe cruamen-


te esta questão:

A câmara, que respondera ao ofício de Simão Bacamarte com a


ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do
§ 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adotada sem debate
uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as
pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das fa-
culdades mentais. [...] O vereador Freitas propôs também a decla-
ração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos
ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída
na postura.

62
Disponível em: <http://brasileiros.com.br/2016/06/o-acordao-de-sena-
dores-para-barrar-a-prisao-de-renan-e-juca/>. Acesso em: 10 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  101
Quando muito, de vez em quando admite-se que essa regra seja
reinterpretada, capitulando-a diante da necessidade de se proteger
a coesão do próprio grupo dominante-influente contra eventuais re-
beldias, traições ou insatisfações do mais novo inimigo convertido.
Isso leva a crer que a condição influente da pessoa não é suficiente
para mantê-la distante da prisão. É preciso que as demais pessoas
tão ou mais influentes não vejam vantagem em seu encarceramento.
Esta ressalva é importante porque um policial pode ser tão ou
mais influente que um político figurão de Brasília. A diferença maior
entre ambos nem é tanto a influência sobre a questão prisional, por-
que aquele interfere no nível atacadista, enquanto este, no varejista,
trabalhando ambos hierarquicamente em uma relação de continen-
te e conteúdo. Aquele define os limites da configuração conveniente
dos inimigos e este atua livremente dentro deles. A grande diferença
está na capacidade de resistência e de indignação oferecida em uma
eventual disputa, vencida eloquentemente sempre pelo mais tenaz,
e que feliz ou infelizmente nunca deixou de coincidir com o fabrican-
te interesseiro, revelado na oração tolstoiana encartada em A escravi-
dão do nosso tempo: “as leis não foram feitas para atender à vontade
da maioria, mas sim à vontade daqueles que detêm o poder.”
Desgraçadamente a prisão assume, em tempos de paz, uma fun-
ção de convencimento, usufruída por pessoas que sabem que quem
usa ou ameaça usar a prisão tem grandes chances de atrair para si
a verdade, e, por consequência, captar a simpatia e a concordância
adesiva do povo. A partir daí, fica fácil manter-se na condição de de-
cidir ou influir sobre a conveniência do aprisionamento daquele que
for eleito como inimigo. Se queremos parecer mais próximos da ra-
zão em uma disputa basta que disparemos uma acusação e convide-
mos a prisão para estar ao nosso lado. Nos dias de hoje basta apontar
o dedo indicador: se o acusado for encarcerado, gritarão que a justi-
ça foi feita; se permanecer solto ou for inocentado, acreditarão mais
ainda na sua culpa, adicionada, agora, por uma pitada de conivência.
Tamanha é a força da sua companhia que a carta, Eu acuso...!, escri-
ta por Émile Zola, foi mais persuasiva que a condenação do capitão
injustiçado, derivada de um procedimento só formalmente subme-
tido ao contraditório. No caso, a pretensão de absolvição do capitão

102  Manifesto para Abolir as Prisões


provocaria, quase que inevitavelmente, a condenação à privação da
liberdade do verdadeiro culpado.
Quanto mais o poder prisional puder se sentir confortável e de-
sapegado de explicações, melhor. Então, apesar das vantagens que
esse acasalamento produz, faz algum tempo que o ônus da prova
em questões prisionais já não é mais de quem acusa. Ele foi expor-
tado definitivamente para o lombo dos inimigos convenientemente
acusados. Na adaptação da sentença tolstoiana, como a prisão fará
de tudo por eles, menos descer de suas costas, poderão eles apenas
dobrar-se e submeter-se.

1.2.3. Quem são os seus operadores?


Todos os operadores do poder prisional são investidos de força
pública. Sem esse suporte muitos deles não conseguiriam exercitar
a sua luxúria livremente. Atuando em nome do Estado que, por sua
vez, diz representar a vontade da maioria da população, alguns re-
almente se sentem incomodados com o atual estágio prisional e se
dedicam com boa fé. Considerados os limites permitidos pelo poder
prisional, muitos servidores realmente acreditam e fazem um bom
trabalho. Por mais inacreditável que essa imagem possa parecer, sem
a sua dedicação quase abnegada a condição das prisões conseguiria
ser pior. Entretanto, outros nem sempre exercem com fidelidade o
mandato recebido. Da mesma maneira que é possível que eles apri-
sionem legalmente, ainda que não cumprindo formalmente a sua
função (policial em dia de folga, etc.)

POLICIAL DE FOLGA PRENDE SUSPEITO DE ASSALTO NO


CENTRO DE JOÃO PESSOA
[...] Um homem de 25 anos foi preso no Centro de João Pessoa na
tarde desta quinta-feira [...], por um policial que estava de folga.
[...] O cabo Djário Pinheiro, que realizou a prisão, fazia compras em
uma das lojas da rua Maciel Pinheiro, no Centro, e ouviu três dis-
paros de arma de fogo nas imediações. Em seguida, deparou-se
com um homem correndo com um revólver na mão e que, na sua

1  O Presente do Sistema prisiona  103


frente, roubou uma moto para facilitar sua fuga63, é possível que
eles prendam alguém ilegalmente, mesmo que durante o serviço.

POLÍCIA COMETE EQUÍVOCO E PRENDE “GUGA” ERRADO;


FILHO DE HERMÍNIO NUNCA FOI SERVIDOR DA CÂMARA; [...]
Um erro grave no inquérito da Operação Apocalipse pode ter
comprometido todo o trabalho de 1 ano e 6 meses de investiga-
ção. A constatação foi feita pelos advogados de defesa de Rober-
to Rivelino Guedes, filho do deputado estadual Hermínio Coelho.
Ele foi preso na quinta-feira acusado de participar da quadrilha
desbaratada na Operação Apocalipse, mas houve uma confusão
da própria Polícia Civil64.

Fora uma ou outra exceção, os operadores do poder prisional


(policiais, delegados, promotores de justiça, juízes, agentes peni-
tenciários, diretores de presídio, pessoal de apoio, etc.), trabalham
convertendo suas preocupações em ocupações. A possibilidade da
perda do emprego, do recebimento dos valores ao final do mês, da
sustentação do status que o cargo oferece, da simpatia e do apoio
adquiridos junto ao público em geral, etc., são intranquilidades que
ressurgem sempre que a questão criminal esfria, parecendo estar se
resolvendo. Para se sentirem tranquilos novamente eles precisam
requentá-las. Então, saem à procura de novas personagens que cai-
bam no manequim do inimigo conveniente. Mas, antes eles precisam
prestar contas da sua atividade produtiva. Ao mesmo tempo em que
apresentam os frutos do seu trabalho (inimigos perigosos presos),
eles solicitam a autorização para o emprego de uma maior quantida-
de de veneno e para o uso de defensivos ainda mais potentes, neces-

63
Disponível em: <http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/03/po-
licial-de-folga-prende-suspeito-de-assalto-no-centro-de-joao-pessoa.
html>. Acesso em: 27 jun. 2016.
64
Disponível em: <http://www.rondoniagora.com/geral/noticia/2013/07/
policia-comete-equivoco-e-prende-guga-errado-filho-de-herminio-
-nunca-foi-servidor-da-camara-confira-documentos.html>. Acesso em:
27 jun. 2016.
104  Manifesto para Abolir as Prisões
sários para combater a praga que se alastra incessantemente (novos
inimigos não param de brotar de todos os lugares).
Como o problema prisional nunca tem solução, aumentando a
cada dia graças ao próprio trabalho dos seus operadores, com o tem-
po eles transformam essa sua inquietude em obsessão. Sem conse-
guir suportá-la mais, eles amplificam os eventuais momentos de abs-
tinência em perseguições mais violentas e insaciáveis. Dessa forma
eles concentram nos inimigos que encontram toda a angústia que
eles acumularam desde a última prisão.
E para os policiais a questão é muito mais estressante e agoni-
zante. É que a partir de um determinado momento eles começam a
perceber que as suas forças não conseguem vencer a criminalidade.
Entendendo, com razão, estarem sozinhos e próximos demais dos
conflitos com os supostos inimigos, começam eles a não suportar
sequer a possibilidade de ver frustrada a atividade que finge tran-
quilizá-los e distraí-los, a ponto de permitir-lhes continuar acreditan-
do que eles pertencem ao microssistema dos dominantes. Mas, para
que essa acreditação seja forte o suficiente e renove as forças que
eles dedicam à sua empreitada, eles precisam parar de racionalizar as
questões envolvidas e começar a naturalizá-las.

Quando vi o homem com uma arma em punho, já tendo efetuado


três disparos de arma de fogo e tomando a moto de um idoso por
assalto, percebi que teria que agir. Esperei ele guardar a arma e
subir na moto e o abordei, identificando-me como policial e dan-
do-lhe voz de prisão. Na hora, fui impulsionado pelo meu instinto
policial, não consegui pensar em nada a não ser na segurança das
pessoas que estavam ali e em fazer aquilo para o qual fui treina-
do’, relatou o cabo Djário Pinheiro65.

Então, em cada canto escuro, beco sem saída, viela estreita e la-
deira íngreme eles começam a espremer as situações até encontra-
rem um novo inimigo aprisionável que deixa de ser encarado como

65
Disponível em: <http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/03/po-
licial-de-folga-prende-suspeito-de-assalto-no-centro-de-joao-pessoa.
html>. Acesso em: 27 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  105
pessoa e passa a ser analisado como solução para a manutenção e
reforço do seu status quo – aquele anterior a toda a desgraça trazida
pelos aprisionamentos que eles próprios conduziram. Como esses
aprisionamentos têm apenas um efeito farmacêutico (remediador),
entre a dúvida de não serem os culpados pelo mal que os aflige e a
esperança de conseguirem reverter a sua condição, eles precisam rei-
naugurar suas caçadas e ressuscitar as prisões que eles mesmos ele-
geram como redentoras da sociedade. Atormentados pelo evidente
insucesso das suas investidas prisionais, haja vista que os crimes só
aumentam, eles precisam assumir uma posição cada vez mais con-
servadora, a única capaz de requentar o saudoso destaque que ou-
trora tiveram, sobretudo diante da massa perseguida, que não tem
força para trocar de posição com eles. Depois de vários desses ciclos,
eles decididamente enxergam a prisão não como um fim, mas como
um meio de defender seus interesses. A partir daí eles são definitiva-
mente absorvidos pelo poder prisional e passam a ser mais uma das
suas vítimas. Para eles o poder prisional ganhou uma nova utilidade.
Para o poder prisional eles passaram a ser operadores úteis porque
foram adestrados com sucesso. Só quando for tarde demais é que
perceberão o quanto são descartáveis.

DESVALORIZAÇÃO DA PM: UM POLICIAL É ASSASSINADO A


CADA 32 HORAS
A Fundação Tiradentes, que é uma instituição voltada para o auxí-
lio aos policiais militares, expôs a desvalorização da PM em Goiás.
Em outdoors espalhados por Goiânia, a organização destacou que
um policial é assassinado a cada 32 horas no Brasil. Em Goiás, estes
profissionais estão sendo contratados com salários humilhantes e
sem o menor incentivo para o trabalho. A cobrança da categoria é
por valorização. Sem remuneração digna, contingente suficiente,
treinamento adequado e equipamentos qualificados, a tendência
é que o número de mortes continue subindo66.

66
Disponível em: <http://www.goiasreal.com.br/noticia/3614/desvalori-
zacao-da-pm-um-policial-e-assassinado-a-cada-32-horas>. Acesso em:
27 jun. 2016.
106  Manifesto para Abolir as Prisões
1.3 A QUEM E PARA QUE ELE SERVE?
A prisão castigo (privação da liberdade como um fim em si mes-
mo), não foi eleita uma espécie de substitutivo dos sofrimentos cor-
porais da prisão armazém (privação de liberdade visando a evitar a
fuga do futuro executado), porque ela apenas os maquiou em outro
modelo igualmente torturante. Nele a dor foi parcelada em longas
prestações. Um tipo de pantógrafo que repete no cárcere os proble-
mas sociais.
Ao cozinhar em banho-maria os sacrifícios que impõe a prisão de-
monstra que o seu giro formal não se deu em razão de uma preocu-
pação com o condenado. E o calamitoso estado prisional nacional é
a maior prova disso.
Em hipótese alguma a prisão funciona para os fins previstos no
artigo 59 do Código Penal, que prevê que a pena deve servir como
retribuição e como prevenção dos crimes. A não ser que se entenda a
retribuição como vingança e a prevenção como técnica para se evitar
a modificação do estado desigual da sociedade. Ela não presta para
proteger a sociedade e as pessoas contra os crimes e os criminosos.
Se servisse, milhares de pessoas não seriam vítimas diárias de crimes
praticados, e o problema estaria resolvido. Ou pelo menos estaciona-
do. A prisão se presta a outras finalidades, igualmente menos nobres.
Basicamente, a prisão serve como braço sequestrador-controlador
dos dominantes (os capitalistas, os empresários morais, a autoridade
que pretende exercer seu capricho eventual, etc.), contra os domina-
dos (pessoas descapitalizadas, consumidores inativos, empregados,
subalternos, dissidentes, inaptos, sem papel, invisíveis sociais, etc.).
Ela também serve para impor a vontade de alguns – que em determi-
nado momento ou quase sempre sejam invulneráveis –, sobre outros
– que momentaneamente ou quase sempre estejam vulneráveis. É
dizer, ela existe para manter as estruturas coletivas (macroestruturas)
ou individuais (microestruturas) de poder, garantindo que o desejo
de alguém ou alguns se sobreponha ao de outra ou outras pessoas.
Diretamente, o aprisionamento pode ser a finalidade em si mes-
mo. Como quando alguém deseja que outro seja encarcerado ape-
nas para satisfazer uma vontade sádica sua ou de terceiro.

1  O Presente do Sistema prisiona  107


POLICIAL PRENDE HOMEM QUE ESBARROU NELE E NÃO
PEDIU DESCULPAS
Uma confusão entre dois homens agitou uma esquina de Copa-
cabana, na manhã de hoje. Um deles é policial federal e imobili-
zou o outro, próximo à estação do metrô Siqueira Campos, sob o
argumento de que ele precisava mostrar o documento de identi-
dade. O policial, inclusive, chegou a sacar a pistola. E, no chão, o
homem imobilizado gritava: “eu sou trabalhador”. O vídeo revela
o que pode ter sido o motivo da confusão. É que num determina-
do momento, o agente da PF grita para o outro: “Você esbarrou
em mim e não pediu desculpas”. Quem assistia à cena, debochou
do policial: “Tá de brincadeira, né...”, diz uma pessoa em voz alta.
Uma equipe da Polícia Militar levou os dois para a 12ª DP (Copa-
cabana). Lá, o homem que fora jogado no chão acabou autuado
por porte de droga para uso próprio e resistência. Os dois presta-
ram depoimento, e o caso será encaminhado ao Juizado Especial
Criminal (JECrim)67.

Indiretamente, o aprisionamento pode não ser a finalidade em si


mesmo. Como quando alguém prende, determina ou solicita a prisão
de um terceiro com a finalidade de retirá-lo do caminho em uma dis-
puta política. No Brasil os eventos que ultimamente têm se encaixa-
do nessa hipótese são tão numerosos que dispensam citação.
Outro exemplo seria o do policial que confina alguém, inocente
ou não, simplesmente para bater a sua meta diária de aprisionamen-
tos. E o que é pior: sob a desculpa de estar reduzindo a criminalidade
e, assim, obter vantagens monetárias.

GOVERNO VAI PAGAR R$ 15 MILHÕES EM PRÊMIOS PARA


POLICIAIS
O Governo do Estado vai pagar R$ 15 milhões para 9.884 servi-
dores das polícias baianas. O Prêmio por Desempenho Policial

67
Disponível em: <http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/policial-
-prende-homem-que-esbarrou-nele-e-nao-pediu-desculpas.html>.
Acesso em: 8 jun. 2016.
108  Manifesto para Abolir as Prisões
(PDP) é uma iniciativa que visa à valorização dos integrantes das
forças de segurança estaduais. Ele será destinado a profissionais
que atuam em dezenove Áreas Integradas de Segurança Pública
(Aisps) que bateram a meta semestral de redução dos Crimes Vio-
lentos Letais Intencionais (CVLIS) em 6% e de duas que bateram a
submeta de diminuição entre 3 e 5,9%. [...]

Prisão de quase 20 mil suspeitos

O planejamento estratégico da Secretaria da Segurança Pública


(SPS) do Governo do Estado resultou no aumento da produti-
vidade policial estadual em 2015. Na comparação com 2014, o
número de prisões em flagrante subiu 6,1%, totalizando 19.739
criminosos capturados. Foram cumpridos ainda 3.557 mandados
de prisão, 52,9% a mais do que em 2014, além de 4.998 armas
tiradas das ruas, dado 8,1% maior na comparação com o mesmo
período68.

Desde logo já é possível notar que a prisão não possui uma lógi-
ca, muito menos uma vinculação estável com o crime, o criminoso,
a acusação, a culpabilidade, a condenação e a pena. E, como ela se
presta para garantir a aquisição ou a manutenção de espaços, vonta-
des e privilégios, ela acaba repetindo, no âmbito prisional, as desvan-
tagens observadas por certos grupos sociais. Dessa maneira a prisão
funciona para garantir que em determinados conflitos, criminais ou
não, entre um membro da Classe A e outro da E, aquele consiga so-
brepor a sua vontade à deste, sob pena dele ser encarcerado caso se
recuse a atendê-la.

CNJ ANALISA CONDUTA DE JUIZ QUE DEU VOZ DE PRISÃO A


AGENTE EM BLITZ NO RIO
Magistrado João Carlos de Souza estava sem CNH e placas do carro.
Corregedoria do CNJ quer avaliar se ele cometeu abuso de poder.

68
Disponível em: <http://www.diarionewsbahia.com.br/noticias.php?cod
noticia=8283>. Acesso em: 8 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  109
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) analisa a conduta do juiz
João Carlos de Souza Correa, no episódio em que o magistrado
deu voz de prisão a uma agente de trânsito, após ser multado em
uma blitz da Lei Seca no Rio de Janeiro [...]. No episódio, ocorrido
em fevereiro de 2011, o magistrado estava sem Carteira Nacional
de Habilitação e placas do veículo. A Corregedoria Nacional de
Justiça, vinculada ao CNJ, decidiu revisar o Processo Administra-
tivo Disciplinar (PAD) contra o juiz, após o Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro (TJ-RJ) entender que João Carlos de Souza Correa
não cometeu nenhuma irregularidade e julgar improcedente o
pedido. A comissão responsável da corregedoria vai reavaliar a
decisão69.

Mas, para que o encarceramento aconteça é preciso que alguém


prenda, solicite ou determine a prisão, e que alguém seja preso. Ob-
viamente nem todas as pessoas têm o poder de aprisionar e nem
todas estão submetidas à prisão.
A prisão foi eleita para assegurar a divisão das classes em nós e
eles, ricos e pobres, amigos e inimigos, aprisionáveis e não aprisio-
náveis. Como ela só continuará existindo enquanto atender a esse
objetivo, não passa de ilusória a suposição kantiana do encarcera-
mento final. E esta é uma hipótese impensável porque, no instante
em que a prisão começar a respingar na classe dominante, rapida-
mente ela será convidada a se restringir à sua real função: fingir tratar
igualmente as pessoas para que no fundo todos continuem diferen-
tes, ocupando os espaços que vitalícia e hereditariamente lhes foram
socialmente destinados.
Mesmo sendo pinçada de vez em quando pelo poder prisional,
o que só acontece quando lhe é interessante, a classe blindada ja-
mais defenderá a sua abolição. Acreditar que uma arma tão poderosa
quanto a prisão será objeto de renúncia por quem nela interfere é
uma ilusão. O mais sensato é acreditar que ela manipulará as peças,
fraudando o jogo aprisionador.

69
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/11/
cnj-analisa-conduta-de-juiz-que-deu-voz-de-prisao-agente-em-blitz-
-no-rio.html>. Acesso em: 15 jun. 2016.
110  Manifesto para Abolir as Prisões
“TODOS SÃO IGUAIS E NINGUÉM ESTÁ IMUNE, DIZEM
ASSOCIAÇÕES DE JUÍZES
[...] Em nota, a entidade [AJUFE] repeliu ataques contra a opera-
ção e disse que “ninguém está imune” à investigação penal e ao
processo criminal, se, eventualmente tiver cometido alguma in-
fração penal ou integrar organização criminosa”. [...] O texto [da
AMB] diz também que a entidade “defende a investigação e a
punição dos atos de corrupção, atendendo ao princípio de que
todos são iguais perante à lei e têm o direito à ampla defesa e ao
contraditório70.”

Entretanto:

JUIZ MACÁRIO JÚDICE É CONDENADO À APOSENTADORIA


COMPULSÓRIA NO ES
Defesa vai recorrer da pena administrativa. Em outro processo,
penal, o magistrado foi absolvido.
O juiz federal Macário Júdice foi condenado à aposentadoria
compulsória pelo plenário do Tribunal Regional Federal da 2ª
Região [...]. O placar da votação, no entanto, é contestado pela
defesa do magistrado e pode inviabilizar a aplicação da pena. Ma-
cário está afastado das funções há dez anos. Ele atuava na 3ª Vara
Federal de Vitória. Em outra ação, julgada também ontem pelo
TRF2, mas na esfera penal, ele foi absolvido. Os dois casos dizem
respeito às mesmas acusações feitas pelo Ministério Público, que
narrou um esquema de venda de sentença em que o juiz teria se
beneficiado de desvio de dinheiro público, além de usar o cargo
para conceder liminares, autorizando a importação de máquinas
caça-níqueis. Macário, no entanto, foi absolvido por 13 votos a 5
de todos os crimes imputados a ele no processo penal, como cor-
rupção, formação de quadrilha, peculato e lavagem de dinheiro.
“Não havia provas do cometimento de nenhum dos tipos penais”,
conta o advogado Fernando Fernandes. Já no processo adminis-

70
Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/no-
ticia/2016/03/associacao-de-juizes-federais-nega-abuso-em-decisoes-
-da-lava-jato.html>. Acesso em: 9 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  111
trativo, dez dos 18 desembargadores federais votantes decidiram
pela pena máxima, que é a aposentadoria com vencimentos pro-
porcionais71.

Apesar dessa sua função de proteção do nosso histórico status so-


cioeconômico divergente, fragilizando ainda mais as classes domina-
das, a prisão continua exercendo um fascínio em todos, independen-
te da posição social que ocupem. É como se ela fosse um fetiche que
canaliza o gozo vingativo das pessoas, seja originariamente, seja por
derivação. De um lado, porque nós, não podendo autoculpar e auto-
punir nossos erros, ficamos felizes com a prisão daquele que pagará
pelo pecado de todos. De outro, porque deliramos sobre um suposto
dia em que, estando no lugar dos dominantes, usaremos a prisão a
nosso favor. Por fim, porque acreditamos que ela é o remédio que
nos aliviará de toda criminalidade.

1.4 POR QUE ELE FOI INVENTADO?

1.4.1 A prisão castigo e a prisão armazém: um fracasso


acumulado, mas conveniente.
A prisão, e o seu consequente poder prisional, não foi inventada
porque havia uma necessidade prévia, ou seja, porque havia uma de-
manda favorável a privar as pessoas da sua liberdade. A suposta ne-
cessidade de aprisioná-las é que surgiu depois que ela foi criada. No
caso da prisão a oferta foi anterior à demanda. Como no folclore em
que o borracheiro dispõe sobre a pista de rolagem próxima ao seu
estabelecimento pregos que danificarão os pneus dos automóveis
dos seus futuros clientes.
De todo modo, se as pessoas consideram que uma necessida-
de é real, reais passam a ser os meios que elas usarão para tentar
justificá-la.

71
Disponível em: <http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2015/12/
juiz-macario-judice-e-condenado-aposentadoria-compulsoria-no-es.
html>. Acesso em: 15 jun. 2016.
112  Manifesto para Abolir as Prisões
Formal e temporalmente, podemos dividir a prisão em duas ca-
tegorias. A de ser um depósito que, evitando a fuga, armazenava os
condenados até que eles pudessem servir de diversão nas arenas ou
serem executados. No primeiro caso o aprisionado teria uma morte
indireta. Além de não morrer pelas mãos de um representante do
poder, poderia sobreviver aos combates durante algum tempo. No
segundo, ele seria diretamente morto por um operador do poder.
Em ambos os casos, embora não possamos afirmar que houvesse
certa preocupação com a integridade do custodiado, também não é
possível acreditar no contrário, seja porque havia interesse em man-
ter os gladiadores relativamente incólumes, visto que muitos não
passavam de o investimento de alguém, seja porque o período entre
a sua estocagem e a sua execução era curto, reduzindo o tempo ne-
cessário para a dilapidação do seu corpo.
A outra categoria de prisão, que substituiu a anterior apenas for-
malmente, revela-se como um castigo em si mesmo. Nela a punição é
a própria privação da liberdade, juntamente com a imposição de um
sofrimento e de uma vingança perigosa e estéril.
Funcionalmente, porém, não podemos dizer que a prisão de hoje
é um avanço do modelo prisional que a antecedeu. Também não po-
demos afirmar que as técnicas prisionais originais foram abandona-
das e abolidas. O mais prudente é acreditar que a tecnologia prisional
atual nada mais tem feito que acumular historicamente todos os fra-
cassos da sua antecessora. Juntamente com seus próprios defeitos,
frustrações e conveniências.
Por meio de uma atualização ratificante e aprofundante ela tam-
bém inventou sadicamente novos experimentos que foram se sedi-
mentando com o tempo. Desde que assumiu seu posto ela vem aper-
feiçoando a sua própria falência mediante a revisitação de todas as
suas estratégias prisionais ultrapassadas e falidas. Reusando-as diária
e teimosamente em um nível compulsório de sofrimento que inve-
jaria o mais tirano dos suseranos. Isso significa que as prisões atuais
continuam servindo como armazéns.

1  O Presente do Sistema prisiona  113


Que elas ainda permitem que os presos se digladiem e se matem,
enquanto muitos aplaudem, como no Circus.
A propósito, ao participarem de certo jornal eletrônico que noti-
ciou homicídios praticados por internos, alguns leitores comentaram:

PRESÍDIO DE PEDRINHAS REGISTRA SEXTA MORTE DE


DETENTO EM 2014
Em menos de 24 horas, foi a segunda morte registrada no Com-
plexo.
Com o registro, sobe para nove o número de presos mortos no
ano no MA [Maranhão].
[...] [omitido o nome do(a) comentarista]: Concordo poderia ter
sido no minimo 10, se estava la dentro gente boa que não era
e quem não quiser ir pra lá é só não roubar (traficar) e nem ma-
tar e muito menos estuprar!!! [...] [omitido o nome do(a) comen-
tarista]: 10? No mínimo 100 estaria ótimo. [...] [omitido o nome
do(a) comentarista]: Melhor presídio do país. [...] [omitido o nome
do(a) comentarista]: Ainda faltam uns 2.160 presos. Esta na hora
de apresar esse ritmo. [...] [omitido o nome do(a) comentarista]:
covardes, covardes, covardes..... nojo e repugnância é o sentimen-
to que tenho por esta corja de sanguinários covardes... a maioria
ataca os cidadãos indefesos e desarmados com violência fatal,
mas quando se deparam com um policial se borram de medo....
vermes..... que morram todos, aí sim era uma noticia boa.....lixos
[...] [omitido o nome do(a) comentarista]: Esse tipo de gente não
vai fazer falta nenhuma aqui na terra [sic] etc72.

Significa, ainda, que as prisões atuais continuam estigmatizando


os seus egressos, marcando-os definitiva e irreversivelmente com um
símbolo que os faz ser reconhecidos onde quer que estejam.

72
Disponível em: <http://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2014/04/
presidio-de-pedrinhas-registra-sexta-morte-de-detento-em-2014.
html>. Acesso em: 8 jun. 2016.
114  Manifesto para Abolir as Prisões
APESAR DE LEIS, EX-PRESOS ENFRENTAM RESISTÊNCIA NO
MERCADO DE TRABALHO
“Liberdade virou tormenta”, diz jovem que ficou sem emprego
após ser solto. Estados passam a determinar cotas de ex-detentos
em empresas.
[...] a legislação trabalhista não fala, especificamente, se a empresa
pode ou não pedir atestado de antecedentes criminais na contra-
tação. De acordo com o juiz do trabalho Marcelo Segal, o assunto
é polêmico, mas a solicitação pode ser considerada discrimina-
tória e inconstitucional. Ele diz que, em alguns casos, porém, a
exigência pode ser válida por conta da função a ser exercida pelo
trabalhador73.

Igualmente:

EX-DETENTOS DO RIO DE JANEIRO RELATAM DIFICULDADES


DE ARRUMAR EMPREGO
[...] Depois de cumprir pena de prisão, ser considerado livre pela
Justiça nem sempre significa liberdade para um ex-detento.
Marcados para sempre pela condenação, egressos do sistema
penitenciário fluminense enfrentam muitas dificuldades para en-
contrar emprego e serem reinseridos na sociedade. Todo ano, mi-
lhares de presos saem das cadeias do Rio de Janeiro. Desde 2010,
quase 50 mil presos deixaram o sistema penitenciário fluminense.
Mas apenas uma fração desse contingente é absorvida pelo mer-
cado de trabalho formal. O motivo principal, segundo presos e
ex-detentos ouvidos pela Agência Brasil, é o receio das empresas
de contratar uma pessoa que cometeu crimes (algumas vezes vio-
lentos), mesmo ela tendo, perante a Justiça, pago sua dívida com
a sociedade74.

73
Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noti-
cia/2010/12/apesar-de-leis-ex-presos-enfrentam-resistencia-no-merca-
do-de-trabalho.html>. Acesso em: 8 jun. 2016.
74
Disponível em: <http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/01/ex-
-detentos-do-rio-de-janeiro-relatam-dificuldades-de-arrumar-empre-
go>. Acesso em: 8 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  115
Se antes do surgimento da prisão como sanção em si mesma (cas-
tigo), os efeitos da pena criminal eram absolutos e se prolongavam
no tempo (morte do condenado na arena ou no patíbulo), hoje em
dia eles não deixaram de ser irreversíveis, durando até depois da
morte do aprisionado, de sorte que o aprisionamento atrai uma série
de prejuízos e consequências negativas que irão acompanhá-lo pelo
resto da sua vida, mesmo que a prisão tenha sido provisória e ainda
que o preso seja posteriormente julgado inocente.

INOCENTE PRESO POR ENGANO HÁ UM ANO DEIXA A


CADEIA
Hércules Menezes foi detido por estar na lista de amigos do re-
ceptador das rodas de um carro roubado e ter as mesmas carac-
terísticas do assaltante.
[...] Aos 23 anos, Hércules Menezes Santos não consegue pensar
em um futuro promissor para sua vida. Ele perdeu a namorada, a
reputação e já não sabe mais se tem emprego. Em 2013, foi acu-
sado, junto com Douglas Oliveira Moreira, de roubar um carro em
Nova Iguaçu. A única prova usada para incriminá-lo foi o fato de
ele ser amigo em rede social do receptador das rodas do veículo.
A foto na página da rede social de Hércules, foi vista pela teste-
munha do roubo, que apontou características físicas em comum
com o verdadeiro assaltante: ele é negro, baixo e “troncudo”. Nes-
ta semana, depois de um ano, um mês e dois dias da prisão, o Mi-
nistério Público (MP) do Rio reconheceu a falta de provas e pediu
sua liberdade provisória, aprovada pelo Tribunal de Justiça, além
da absolvição. Na Justiça, houve uma mudança de opinião, mas
na vida de Hércules os danos foram traumáticos e permanentes75.

Estigmas que refletem, inclusive, na vida dos descendentes do


aprisionado ou egresso, ou na dos que estão próximos a ele.

75
Disponível em: <http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-02-
14/inocente-preso-por-engano-ha-um-ano-deixa-a-cadeia.html>.
Acesso em: 15 jun. 2016.
116  Manifesto para Abolir as Prisões
SOBRE A SITUAÇÃO DA MATERNIDADE
PRESAS GRÁVIDAS: Entre fevereiro e março de 2008, 1,24% das
mulheres presas encontravam-se grávidas.
LACTANTES: No mesmo lapso temporal, existiam 0,91% de mu-
lheres encarceradas em período de amamentação.
COM FILHOS: Constatou-se que 1,04% das presas possuem filhos
em sua companhia. O tempo de permanência com a mãe no am-
biente prisional varia entre 4 meses e 7 anos de idade76.

Significa também que as nossas prisões, como antes, também


promovem uma execução direta dos seus encarcerados.

MASSACRE QUE MATOU 111 PRESOS NO CARANDIRU


COMPLETA 20 ANOS
Em 2 de outubro de 92, PM invadiu Casa de Detenção após rebe-
lião em SP. [...]
O caso ficou conhecido internacionalmente por causa da morte
de 111 presos após a Polícia Militar entrar no Pavilhão 9 da Casa
de Detenção, na Zona Norte de São Paulo, para pôr fim a uma
rebelião77.

Afinal, nosso principal modelo sancionador demonstra que as pri-


sões também admitem a cacotanasia dos presos, que é a perda da
vida mediante um processo aflitivo e doloroso, lento.
Segundo a Human Rights Watch:

76
Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_ci-
vel/cadeias/doutrina/Mulheres%20Encarceradas.pdf>. Acesso em: 8
jun. 2016.
77
Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/10/mas-
sacre-que-matou-111-presos-no-carandiru-completa-20-anos.html>.
Acesso em: 8 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  117
O BRASIL ATRÁS DAS GRADES
O sistema está tão sobrecarregado que doentes em estado grave
ou mesmo em estado terminal permanecem juntos aos demais pre-
sos nas delegacias. Dois meses antes da inspeção da Human Rights
Watch no Depatri, um preso morreu de meningite. Um de seus ex-
-colegas de cela descreveu o que aconteceu: Ele tinha vinte e cinco
anos, era negro. Ele estava doente por um mês e ficava deitado no
chão, suando como um louco. Eles levaram ele para pegar ar fresco
umas vinte vezes. Uma vez eles levaram ele para o posto de saúde.
Ele sempre pedia para ver um médico. Finalmente, eles levaram ele
quando estava claro que ele estava quase morto, e os carcereiros fa-
laram depois que ele tinha morrido. Na mesma delegacia, cerca de
um mês depois, um preso epilético faleceu. “Ele teve um ataque epi-
lético e começou a bater a cabeça nas barras da cela. Ele foi levado
para o hospital e depois voltou. Ele morreu na sala de visita”. Embora
estatística abrangente em nível nacional não tenha sido compila-
da, acredita-se que Aids e tuberculose – geralmente juntas – são as
principais causas das mortes nos presídios do Brasil. Muitos presos
morrem dessas doenças após terem recebido tratamento médico
insuficiente ou nenhum. Presos nos distritos policiais de São Paulo
não recebem medicamentos para Aids, embora recebam tratamen-
to externo para tuberculose. Na maioria dos presídios estaduais, os
presos doentes não são transferidos para um hospital ou enfermaria
antes de chegarem a um estado avançado ou terminal da doença.
(Segundo as normas internacionais, presos portadores do vírus HIV
que ainda não demonstram os sintomas da Aids não são segrega-
dos de outros presos.). Apesar da previsão do indulto humanitário
concedido, teoricamente, aos presos doentes em estado terminal,
obstáculos processuais e outros retardamentos implicam que, na
prática, poucos presos são beneficiados a tempo. Pelo menos cin-
quenta e oito presos da Casa de Detenção morreram durante o ano
da nossa visita ao estabelecimento, a maior parte por Aids e tuber-
culose. Um desses presos faleceu de Aids apenas alguns dias antes
da nossa chegada; uma anotação no livro de registros da enfermaria
descrevia as circunstâncias de sua morte78.

78
Disponível em: <https://www.hrw.org/legacy/portuguese/reports/pre-
sos/medica2.htm>. Acesso em: 8 jun. 2016.
118  Manifesto para Abolir as Prisões
Dramaticamente:

INOCENTE É PRESO, VIOLENTADO NA CADEIA E CONTRAI


AIDS
Heberson Oliveira, 30, foi acusado de estupro, foi preso e depois
inocentado, mas perdeu a vida. Hoje vagueia como uma sombra
sem vida.
No dia 18 de maio de 2006, ao sair de sua cela e cruzar os muros
da Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, He-
berson Oliveira, 30, achou tudo estranho. O sol estava alto, mas
não era o calor que lhe incomodava. Aquele era seu primeiro
dia de liberdade após dois anos e sete meses na prisão. Nem ele
acreditava mais que isso um dia pudesse acontecer. – Eu já tinha
perdido as esperanças de sair da cadeia vivo. A minha cela já es-
tava virando a minha casa – conta Heberson, quase cinco anos
depois, sentado na cama tubular cor de vinho de seu irmão mais
novo. Heberson Oliveira é o rosto de um silencioso drama bra-
sileiro: o das vidas roubadas pela lentidão da Justiça. Foi preso
em novembro de 2003, suspeito de ter estuprado uma menina de
nove anos de idade. Ele negou ter cometido o crime e disse que
sequer estava em Manaus na época em que tudo ocorreu. Mesmo
sem nenhuma prova material ou testemunhal que o incriminasse,
foi indiciado, denunciado e transferido para a Unidade Prisional
do Puraquequara (UPP). Só dois anos e sete meses depois de ter
sido preso é que Heberson foi julgado e, finalmente, considerado
inocente. Mas a sentença que o pôs em liberdade não foi suficien-
te para lhe fazer um homem completamente livre. Heberson foi
estuprado pelos “xerifes” da cadeia e contraiu o vírus da Aids. – Eu
fui violentado lá dentro. Na hora do desespero, não vi quantos
eram. Só queria que aquele sofrimento acabasse. Agora, essa do-
ença vai me acompanhar pelo resto da vida. Eu estou condenado
à morte. A Justiça roubou minha vida – desabafa tentando disfar-
çar o constrangimento evidente no queixo tremido79.

79
Disponível em: <http://acritica.uol.com.br/manaus/Inocente-violenta-
do-cadeia-contrai-Aids_0_434356611.html>. Acesso em: 15 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  119
E a situação dos homicídios por omissão estatal no sistema prisio-
nal é tão grave que o Supremo Tribunal Federal, em março de 2016,
julgando o Recurso Extraordinário 841526, unanimemente decidiu
que: “a morte de detento em estabelecimento penitenciário gera res-
ponsabilidade civil do Estado quando houver inobservância do seu
dever específico de proteção80.”
De todo modo, se equivoca quem afirma que o método de pu-
nição evoluiu com o surgimento da prisão sanção. Se antes existia a
pena da proporcionalidade – como o olho por olho, dente por dente,
mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por feri-
da, golpe por golpe81 –, da Lei de Talião, hoje observamos uma tenta-
tiva perigosa, infeliz, violenta e inútil de proporcionalidade mediante
a função de retribuição equivalente da pena.
Com a prisão atual, o pagamento do bem ofendido – que no pas-
sado era feito mediante a lesão de um bem idêntico –, migra para a
perda da liberdade, de sorte que esse custo não deixa de ser uma
retribuição equivalente na medida em que em nossa sociedade ca-
pitalista todo crime é um crime contra o Estado e contra a sociedade
e tem como contrapartida proporcional o tempo que seria dedicado
à produção de bens pela vítima, agora substituída pelo condena-
do. Dessa forma, além do trabalho do encarcerado ser apresentado
como se fosse um favor ao mesmo, o que ele faz com o tempo que
lhe é sequestrado serve como substituição da força de trabalho per-
dida com a morte da vítima.
De lambuja o Estado ainda tenta deixar de gastar. Desde 2015 está
tramitando no Senado o Projeto de Lei n° 580, de autoria do Senador
Waldemir Moka, cujo conteúdo é:

80
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=313198>. Acesso em: 8 jun. 2016.
81
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém, Gênesis 2. São Paulo: Paulinas,
1980, Êxodo 21: 23 a 25, p. 137.
120  Manifesto para Abolir as Prisões
EMENTA:

Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução


Penal, para estabelecer a obrigação de o preso ressarcir o Estado
das despesas com a sua manutenção.

EXPLICAÇÃO DA EMENTA:

Altera a Lei de Execução Penal para estabelecer a obrigação de


o preso ressarcir o Estado das despesas com a sua manutenção
no sistema prisional, mediante recursos próprios ou por meio de
trabalho82.

E até lucrar, ainda que indiretamente e de maneira desonesta:

1º DE JULHO: SOBRE SONHOS EMBALADOS A VÁCUO


[...] De acordo com o último censo carcerário feito pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tem 715,6 mil presos. No en-
tanto, o sistema prisional tem apenas 357,2 mil vagas. Ou seja, há
um déficit de 210,4 mil vagas. Com um sistema já superlotado, a
saída para o aumento da população carcerária seria transferir o
controle das prisões para a iniciativa privada. Não por acaso, já
existe uma “bancada da jaula” no Congresso, formada por depu-
tados que recebem doações de campanha de empresas de ges-
tão do sistema prisional privado. Um exemplo é a família Câmara,
do deputado federal Silas Câmara (PSD-AM), que, junto à esposa
Antônia Câmara (PSC-AC) e à filha Gabriela Câmara (PTC-AC), re-
cebeu R$ 750 mil da empresa de gestão de presídios privatizados
Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda. nas últimas eleições.
Para as empresas privadas de gestão prisional, obviamente, quan-
to maior o número de presos, maior será o lucro83.

82
Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/mate-
rias/-/materia/123021>. Acesso em: 8 jun. 2016.
83
Disponível em: <http://www.ocafezinho.com/2015/08/23/1o-de-julho-
-sobre-sonhos-embalados-a-vacuo/>. Acesso em: 8 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  121
Ou mesmo diretamente, mas ainda de maneira desonesta:

PRESÍDIOS PRIVADOS NÃO SÃO MELHORES DO QUE OS


PÚBLICOS, DIZEM ESPECIALISTAS
[...] O coordenador da Pastoral Carcerária ainda destaca a “quartei-
rização” dos serviços, como a alimentação. “Isso gera ainda mais
lucros [para as empresas], e a qualidade da alimentação vai cain-
do. Em Ribeirão das Neves, encontramos várias reclamações de
presos com relação à alimentação, inclusive gente que fazia greve
de fome como forma de protesto”, explica84.

Bem como:

PRIMEIRO PRESÍDIO PRIVADO DO ESTADO DO RIO SERÁ


INAUGURADO EM RESENDE
[...] A Comissão de Direitos Humanos da Alerj esteve nesse presí-
dio há dois anos e verificou problemas na unidade. “Os 642 pre-
sos ficam isolados e têm uma alimentação precária, pois muitas
quentinhas chegam estragadas. Em um período curto, consegui-
mos notar que a privatização não traz melhorias para o sistema”,
afirmou Roberto Gevaerd, integrante da comissão que participou
da visita85.

De todo modo, se a passagem da prisão como armazém para a


prisão como castigo teve alguma justificativa econômica, essa sua
suposta dieta financeira já se perdeu faz tempo. Hoje nenhum aspec-
to da prisão beneficia as pessoas economicamente.

84
Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noti-
cias/68491/presidios+privados+nao+sao+melhores+do+que+os+publ
icos+dizem+especialistas.shtml>. Acesso em: 9 jun. 2016.
85
Disponível em: <http://www.jb.com.br/rio/noticias/2015/08/14/primei-
ro-presidio-privado-do-estado-do-rio-sera-inaugurado-em-resende/>.
Acesso em: 9 jun. 2016.
122  Manifesto para Abolir as Prisões
QUANTO MAIS PRESOS, MAIOR O LUCRO
[...] Um preso “custa” aproximadamente R$ 1.300,00 por mês, po-
dendo variar até R$ 1.700,00, conforme o estado, numa peniten-
ciária pública. Na PPP [Parceria Público-Privada] de Neves, o con-
sórcio de empresas recebe do governo estadual R$ 2.700,00 reais
por preso por mês e tem a concessão do presídio por 27 anos,
prorrogáveis por 3586.

Isso, quando não as prejudica:

MINAS BANCARÁ PREJUÍZO SE LOTAÇÃO DE PRESÍDIO


PRIVADO DIMINUIR
[...] No contrato que determina suas obrigações, por exemplo, o
Estado de Minas se compromete a manter 90% da lotação da uni-
dade prisional preenchida durante 27 anos. Na prática, se menos
de 3.002 das 3.336 vagas estiverem em uso, o Estado precisa ban-
car o prejuízo87.

Essa mudança da pena estocadora para a pena sancionadora tam-


bém não teve qualquer motivação humanitária. Não foi uma preocu-
pação com a integridade física, mental e moral do condenado que
alavancou a migração de uma forma de prisão para outra. Essa é uma
verdade inegável porque todas as mazelas do modelo anterior se re-
petem no atual, e sempre em uma versão piorada.
Além de continuar sofrendo, e agora à prestação, o condenado de
hoje é muito mais instrumentalizado que o de ontem. Ele é confinado
sob a desculpa de ter que servir de exemplo para as demais pessoas,
apesar de ficar escondido, acumulando poeira. Esse seu uso mecâni-
co deprecia a sua condição como pessoa digna de direitos. Rebaixa-

86
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 15 jun. 2016.
87
Disponível em: <http://noticias.r7.com/minas-gerais/minas-bancara-
-prejuizo-se-lotacao-de-presidio-privado-diminuir-08062014>. Acesso
em: 9 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  123
-o a uma mera ferramenta, a um mero objeto quando comparado
com as demais pessoas, consideradas sujeitos de direitos. Durante a
sua estada ele não passa de uma fôrma, porque é manipulado como
exemplo para os demais. E fôrmas não são pessoas, são moldes. E
modelos nunca terão o conteúdo daquilo que eles modelam.
Atualmente o que tem motivado o aprisionamento dos inimigos
são os lucros que a sua entrada, a sua manutenção, a sua saída e o seu
retorno à prisão geram à indústria do encarceramento. É como se a
prisão funcionasse como uma espécie de alfândega que cobra pelo
fluxo de pessoas e pela sua estocagem, em seus armazéns. Quanto
mais pessoas ocuparem menos espaço, maior o lucro.

PRESÍDIOS PRIVADOS NÃO SÃO MELHORES DO QUE OS


PÚBLICOS, DIZEM ESPECIALISTAS
Há críticas em relação ao tratamento dos presos, à lógica de admi-
nistração e ao modelo legal das concessões de prisões.
[...] Lucro
Para o coordenador nacional da Pastoral Carcerária, Padre Valdir
João Silveira, como as empresas são motivadas pela busca do lu-
cro, a iniciativa privada não é o modelo ideal para administração
de presídios. Segundo ele, esta lógica incentiva mais encarcera-
mentos, uma vez que a remuneração é feita por prisioneiro. “Nos
Estados Unidos, houve crescimento de aprisionamento e da vio-
lência [nos locais onde existem presídios privados]. Não há ne-
nhum compromisso com a recuperação social da pessoa, apenas
com a punição”, pondera88.

Até que a capacidade de lotação seja alcançada e o serviço seja


superficialmente considerado como de excelência, justificando-se a
construção de novos presídios.

88
Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noti-
cias/68491/presidios+privados+nao+sao+melhores+do+que+os+publ
icos+dizem+especialistas.shtml>. Acesso em: 9 jun. 2016.
124  Manifesto para Abolir as Prisões
CPI DO SISTEMA CARCERÁRIO DEVE SUGERIR AUMENTO DA
PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS, MEDIDA CRITICADA POR
ESPECIALISTAS
[...] Ao longo de pouco mais de 180 dias, parlamentares – em sua
maioria ligados à Bancada da Bala – viajaram pelo Brasil, visitando
as piores prisões, e realizaram audiências públicas em Brasília, a
fim de ouvir diversos setores da sociedade acerca do tema. Uma
das soluções – senão a maior – a ser apontada pelo relatório final
da CPI poderá ser a redenção ou a pá de cal nas penitenciárias
brasileiras: a sugestão de aumentar a privatização das prisões.
“Vai aparecer esse tema. Na minha opinião, terceirizar é um avan-
ço para governos estaduais que não estão conseguindo gerir as
suas cadeias. Vimos em alguns Estados, que possuem sistemas
terceirizados, quadros bastante satisfatórios.” [...] Fraga apoia a
sua opinião na necessidade de alternativas para o quadro atual.
De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Peni-
tenciárias (Infopen), divulgado no dia 23 de junho deste ano pelo
Ministério da Justiça, o Brasil conta com uma população carcerá-
ria de 607.731 pessoas, sendo superado apenas por Estados Uni-
dos (2.228.424 pessoas), China (1.657.812) e Rússia (673.818). “Te-
mos que diminuir a reincidência e aumentar o acesso ao trabalho.
Em todas as cadeias que visitamos, os presos nos pediam para
trabalhar e estudar, era unânime”, afirmou Fraga, que lamentou si-
tuações como a que testemunhou no Complexo Penitenciário de
Pedrinhas, em São Luís (MA), na qual celas para dez presos abri-
gavam até 40, em condições que o deputado descreveu como
“sub-humanas”. “Vimos avanços em presídios com percentual de
terceirizados”, emendou89.

Com base nessa tendência, e considerando que a prisão não só re-


petiu cumulativamente os erros da sua antecessora – produzindo fra-
cassos próprios –, podemos dizer que atualmente o pior de todos os
seus problemas seja o da superlotação, não só pela massificação do
encarceramento, mas também pelos efeitos colaterais que a hiperlo-

89
Disponível em: <http://www.brasilpost.com.br/2015/08/04/privatiza-
cao-prisoes-brasil_n_7912660.html>. Acesso em: 9 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  125
tação fabrica (reprodução da clientela, desvio secundário, regressão,
atipicidades mentais, etc.).

PRESÍDIOS DO RIO NUNCA ESTIVERAM TÃO SUPERLOTADOS:


SÃO 48 MIL PRESOS PARA 27 MIL VAGAS
As 53 unidades do sistema carcerário do Estado do Rio nunca
estiveram tão superlotadas. Um levantamento de 26 de abril da
Secretaria estadual de Administração Penitenciária (Seap), obti-
dos com exclusividade pelo EXTRA, revela que há 48.488 internos
num sistema que só comporta 27.242 pessoas. A diferença entre o
número de internos e as vagas é a maior da história dos presídios
do estado: ultrapassou as 20 mil pessoas. Enquanto o número de
presos não para de subir, as vagas vêm caindo. Nos últimos dois
anos, de acordo com dados do Ministério da Justiça, a capacidade
das prisões fluminenses encolheu em mil vagas: de 28.230 presos
para 27.242. Ao mesmo tempo, o número de internos aumentou
em 9 mil. [...] – Nunca se prendeu tanto, e nunca a situação nos
presídios foi tão crítica – afirma. O presídio mais superlotado do
Rio é a Cadeia Pública Milton Dias Moreira, em Japeri, na Baixada
Fluminense. Lá, há quase três presos para cada vaga: são 2.583
internos onde cabem 884 pessoas. A realidade por trás dos núme-
ros é perversa. Uma vistoria feita em 17 de março por integrantes
do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura da Assembleia
Legislativa (Alerj) revela que “em todas as celas, a equipe obser-
vou até 36 presos em celas com capacidade para seis internos, o
que configura uma condição inaceitável”. A situação se repete na
ala dos idosos: “celas de quatro vagas abrigam entre sete e oito
idosos, alguns dormem no chão”90.

Um retorno ao modelo anterior é impensável. A permanência no


atual, também. Ambos já deram mostras de que são mentirosos, cri-
minosos e insatisfatórios, e não funcionam a favor da população. O
antigo já foi formalmente abolido. É preciso abolir formal e material-
mente o atual.

90
Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/presidios-do-
-rio-nunca-estiveram-tao-superlotados-sao-48-mil-presos-para-27-mil-
-vagas-19254729.html>. Acesso em: 8 jun. 2016.
126  Manifesto para Abolir as Prisões
Mas, se a prisão não está funcionando, por que ela exerce esse
fetiche nas pessoas a ponto de continuar existindo sem que a maioria
delas reclame sua extinção?

1.4.2. Para impor dor e sofrimento


Já dissemos que a prisão existe para garantir que as condições
das classes existentes em uma sociedade não mudem. Ela viabili-
za que continue mandando quem sempre mandou e que continue
obedecendo quem sempre foi subordinado. É para isso que a prisão
funciona. É por isso que ela se dedica quase que exclusivamente às
classes subalternas e esquece as superiores. A sua atuação não tem
nada a ver com a prática de um crime, a não ser por um detalhe: ele
serve como uma desculpa que facilita e finge justificar a aplicação da
prisão. No fundo, a lógica é inversa: decide-se aprisionar um modelo
estereotípico para depois se sair à cata do inimigo que preencherá
aquela intenção. Esse é o circuito que a prisão obedece, ainda que
o seu trajeto seja curtíssimo. Como quando um policial decide, de
supetão, em um momento de fúria, aprisionar alguém em uma ma-
nifestação. Em sua psique ele já havia decidido a favor do encarcera-
mento de um inimigo há muito tempo. Talvez ele apenas não hou-
vesse digerido isso ainda.
Todo aprisionamento é arbitrário. De consequência, todo sofri-
mento e dor que ele impõe, também. Ao prender, o sistema não leva
em consideração um plano global criminal. Ele não se autoanalisa
e se percebe seletivo. Embora todos nós cometamos crimes, ele di-
rige a sua artilharia apenas contra determinados grupos, descartá-
veis. Como os modelos de inimigos convenientes já são previamen-
te formatados, a imposição de dor e sofrimento mostra-se mais do
que inútil. Para além de desnecessária, ela é sádica, e justamente
porque essa imposição não consegue, ou sequer tem interesse real
em intimidar o preso ou um terceiro. Mesmo maltratando aquele e
ameaçando este, as prisões continuarão acontecendo. O objetivo do
seu manuseio, então, não é evitar a prática de crimes. E mesmo que
o fosse, esse resultado não justificaria a adoção de um método tão
cruel. O objetivo é exclusivamente esse: impor dor e sofrimento. Sem
qualquer razão aceitável.
1  O Presente do Sistema prisiona  127
Mas, além de satisfazer a um desejo doentio, ainda é possível reti-
rar outras vantagens da dor e do sofrimento impostos. Primeiro, por-
que é o aumento da desgraça prisional que vai motivar a privatização
dos presídios. É ela quem convida a atenção de certos setores estra-
tégicos (organizações defensoras de direitos humanos, etc.), que às
vezes são manipulados sem que percebam. Pretendendo melhorar
a situação, acabam por confirmá-la. Suas atitudes, geralmente palia-
tivas, em vez de resolver a questão, abolindo a causa (prisão), ten-
tam remediar os efeitos (tortura, alimentação imprópria, maus tratos,
etc.). É preciso que elas percebam que foram lançadas dentro de um
redemoinho e que precisam usar elementos externos à prisão para
poderem, se é que assim desejam, escapar dele e resolver seriamente
a questão prisional e tudo que a cerca. Enquanto elas continuarem
trabalhando com as próprias categorias que a prisão fornece, elas se-
guirão sendo sufocadas e esmagadas.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS


PROGRAMA INSPEÇÃO EM PRESÍDIO DE PERNAMBUCO
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Orga-
nização dos Estados Americanos (OEA), publicou recentemente
uma nova resolução em que determina que o Estado Brasileiro
adote medidas efetivas para garantir a proteção da vida e da in-
tegridade pessoal das pessoas detidas no Complexo Penitenciá-
rio de Curado [Estado de Pernambuco]. “Bem como de qualquer
pessoa que se encontre no referido estabelecimento, incluindo os
agentes penitenciários, funcionários e visitantes”. A resolução am-
plia as medidas provisórias já impostas pela Corte ao Brasil, ante
o agravamento das violações de direitos humanos verificadas no
Complexo, nos últimos meses. A CIDH exige do Estado brasileiro
medidas “firmes, concretas e efetivas (…), de modo que não ocor-
ra mais nenhuma morte”. A resolução da Corte é fruto da atuação
de um grupo de organizações da sociedade civil, formado pela
Pastoral Carcerária, Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões
(Sempri), Justiça Global e pela Clínica Internacional de Direitos
Humanos da Faculdade de Direito de Harvard [Estados Unidos],

128  Manifesto para Abolir as Prisões


que desde 2011 tramita o caso junto ao sistema interamericano
de direitos humanos da OEA91.

De qualquer maneira, se o Estado não consegue cumprir a sua ta-


refa com humanidade, ou pelo menos finge não conseguir, ele deve
terceirizá-la a favor de quem tem competência para tanto. Permitido
o sucateamento da estrutura prisional e o maltrato dos internos me-
diante o enferrujamento ideológico e o desprezo aos poucos inte-
ressados em mudar o estado inconstitucional atual, brota a desculpa
para a declaração da falência prisional estatal e a consequente assun-
ção da atividade privada.

PASTORAL CARCERÁRIA ROMPE COM COMITÊ DE COMBATE


À TORTURA
A Pastoral Carcerária Nacional da CNBB rompeu com o Comitê
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criado em 2013 pela
presidente Dilma Rousseff. Em carta divulgada [...], a Pastoral cri-
tica a falta de interesse do governo em viabilizar o Comitê. “Nossa
decisão é política”, disse no início da noite o advogado Paulo Ce-
sar Malvezzi Filho, assessor jurídico da Pastoral, que representou
a entidade no Comitê. O documento de rompimento diz que “o
controle presidencial previsto em lei sobre as indicações para o
Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura revelou-se
desastroso”. Criada pela Lei n.º 12.847/2013, que instalou o “Sis-
tema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criou o Comitê
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), e o Meca-
nismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)”, se-
gundo a Pastoral, a iniciativa “foi celebrada como um marco no
enfrentamento à violência do Estado, e um avanço significativo
na luta pela abolição desta prática abjeta, historicamente en-
raizada em nossa sociedade.” Porém, de acordo com a carta, “o
desmonte da pouca estrutura de trabalho, iniciado pelo governo
Dilma e concluído pelo governo Temer, com o corte do único car-
go de coordenação que dispunha o Comitê, eliminou qualquer
esperança que poderia existir de melhora gradual na qualidade

91
Disponível em: <http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&
cod=87533>. Acesso em: 28 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  129
de atuação do órgão, cada vez mais submetido e incorporado à
estrutura do governo.” O documento é também uma autocrítica
da Pastoral, explicou o advogado. Segundo ele, houve erro políti-
co em apoiar decisões do Comitê que terminaram por afastar re-
presentantes dos movimentos sociais. “Decidimos não mais ficar
emprestando legitimidade a um Comitê descaracterizado, sem
compromisso com o combate à tortura e sem interesse de impor
freios à barbárie desencadeada todos os dias pelas forças repres-
sivas do Estado.” A Pastoral protesta também contra o que chama
de política de encarceramento no País. [...] [sic]92.

Quanto maior a dor e o sofrimento impostos, mais rápida será


a transmissão do controle das prisões, apesar de não se estar pre-
ocupado com quem sofre. Aqui se poderia alegar que, ou o nível
de suplício aplicado aos encarcerados não é do conhecimento da
população em geral, ou ele não é do seu interesse. Ambos são in-
diferentes. A inflição de dor e sofrimento deve ser encarada como
um movimento neutro e inapto a justificar a privatização presidiá-
ria. Quanto a esse assunto ele é apenas cosmético e só serve como
desculpa. A passagem da administração prisional de pública para
privada tem outra razão. Afinal, para muitas pessoas quanto mais o
confinado sofrer, melhor, pois é isso que potencializa a canalização
da sua vingança e escoa as próprias tendências antissociais, inde-
pendentemente de o suplício ser público ou privado. O importante
é que ele sofra.
Pouco preocupado com os anseios populacionais, e detendo o
monopólio decisivo sobre o futuro da prisão, o Estado substitui a
percepção e o desejo das pessoas pelo seu. E sem revelar os reais
motivos, embora ele vá maquiá-los a ponto de fazer as pessoas acre-
ditarem que a opção pela privatização é a melhor, pois o sadismo não
é um sentimento saudável, ou ela é a única saída que atende aos seus
caprichos.

92
Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/blogs/blog-da-ga-
roa/pastoral-carceraria-rompe-com-comite-de-combate-a-tortura/>.
Acesso em: 7 jul. 2016.
130  Manifesto para Abolir as Prisões
A PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS
Comparativamente ao modelo estatal, as vantagens da PPP são
muitas. Há benefícios econômicos e gerenciais facilmente de-
monstráveis.
[...] Os resultados desta experiência foram muito satisfatórios.
Sobretudo quando o parâmetro comparativo são os obsoletos e
mal geridos presídios estatais. [...] o novíssimo modelo da Parceria
Público-Privada (PPP), introduzido no país em 2005, pode signifi-
car um instrumento relevante a este fim. [...] Comparativamente
ao modelo estatal, as vantagens da PPP são muitas. Há benefícios
econômicos e gerenciais facilmente demonstráveis. Em primeiro
lugar, a execução destes serviços pela iniciativa privada é mais efi-
ciente e econômica que a prestação direta estatal. Em segundo
lugar [...] haverá um incremento no papel de controle e de regu-
lador. [...] Em terceiro lugar, a PPP permite também a melhoria do
controle social sobre os custos dedicados ao custeio do sistema93.

Em pouco tempo restarão apenas alguns presídios públicos. So-


mente o suficiente para que sirvam de comparativo elogioso aos ter-
ceirizados.
De outro lado, além da privatização não resolver o problema hor-
roroso da dor e do sofrimento, pois eles não são eliminados com o
oferecimento de selas limpas, espaçosas e bonitas, o Estado acaba
fertilizando-os em seus presídios públicos, mediante a inflação car-
cerária e o desabastecimento do mínimo de condições dignas. Tudo
isso voltado para a autoalimentação da desgraça criminal, que é a
única desculpa para a manutenção do poder prisional. Com efeito, a
imposição covarde do suplício físico e mental, que transforma o Es-
tado no maior dos criminosos, tem mais essa serventia vergonhosa:
adestrar o cativo a reproduzir do lado de fora todo o espetáculo de
violência macabra que ele sofreu internamente.

93
Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/a-
-privatizacao-dos-presidios-dym687qm71s0ismfdeqs4mzwu>. Acesso
em: 15 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  131
“ESTAMOS SENDO TRATADOS COMO FERAS SELVAGENS”,
DIZ PRESO DE PEDRINHAS (MA)
“A gente sabe que está aqui porque estamos pagando pelos
nossos erros, mas também somos seres humanos e estamos
sendo tratados como feras selvagens”, afirma um dos detentos
do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís (MA). Em
vídeos divulgados nesta terça-feira [...] pela entidade de direitos
humanos Conectas, presos afirmam que são vítimas de torturas
praticadas por agentes penitenciários e policiais militares e recla-
mam da falta de assistência jurídica e das precárias condições de
higiene da penitenciária. [...] “A comida já chega aqui azeda. Não
consigo suportar nem o cheiro dessa comida. Está todo mundo
aqui morrendo de fome e desnutrido”, afirma outro preso. [...] Eles
reclamam também da falta de material de higiene, mostram blo-
queios que fazem para evitar os ratos e baratas nas celas e a falta
de tratamento médico básico. Outro detento reclama de “segui-
das torturas” cometidas por carcereiros e policiais militares: “eles
jogam bomba aqui dentro da cela. Não tem oxigênio para sair
para lugar nenhum. Aí a gente fica aqui, pedindo socorro. Quanto
mais a gente grita, mais eles jogam”. Para a advogada e diretora
da Justiça Global, Sandra Carvalho, os presos sofrem tortura físi-
ca e também psicológica. “As violações de direitos humanos são
recorrentes não apenas em Pedrinhas, mas em todo o sistema pe-
nitenciário do país”, diz94.

Em O Conde de Monte Cristo, Alexandre Dumas narra esse senti-


mento: “É, mas da prisão a gente sai – disse Caderousse, que, com o
resto de sua inteligência, aferrava-se à conversa –, e quando a gente
sai da prisão e se chama Edmond Dantès, a gente se vinga.”
Enquanto continuarmos acreditando que o sofrimento imposto
pelos presídios é o mesmo sofrimento reconstrutivo, romantizado
por Fiódor Dostoiévski em Crime e castigo, continuaremos defen-
dendo apaixonadamente a sua manutenção. Para ele “o sofrimento

94
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
cias/2016/03/01/detentos-denunciam-tortura-e-falta-de-higiene-em-
-presidio-de-pedrinhas.htm>. Acesso em: 15 jun. 2016.
132  Manifesto para Abolir as Prisões
também é uma boa coisa. Sofra.” Para os presos, até o menor dos so-
frimentos estigmatiza e nunca cicatriza. Ele produz uma dor que de-
satina, só por doer. E ela é insuportável, inexplicável e injustificável.
Dela não pode surgir nada de bom ou proveitoso.

1.4.3 Para reproduzir sua clientela

1.4.3.1 O encarceramento em massa


Por mais que se acredite cega ou inocentemente nas boas inten-
ções da prisão, é impossível escapar de um paradoxo que é natural
à sua atividade: quanto mais se prende, mais estamos tendo que
prender. O que revela que a prisão não é a solução para a questão da
criminalidade. Ao contrário: ela é a sua principal causa. Em vez de ela
prevenir os crimes, ela os produz e reproduz. Exatamente: a prisão
fabrica criminalidade.
Em Ressurreição, Liev Tolstoi narra essa tragédia:

“E nós, que fazemos? Apanhamos ao acaso um qualquer destes


delinquentes, sabendo perfeitamente que alguns milhares como
ele ficam em liberdade. Metemo-lo na prisão, deixando-o num
ócio completo ou condenamo-lo a um trabalho insalubre e ab-
surdo em companhia de muitos outros seres como ele, calejados
pela vida, para deportá-lo depois por conta do Estado para a pro-
víncia de Irkutsk, no meio de gente pervertida. [...]” Estes são os
pensamentos de Nekliudov, que, sentado junto do coronel, escu-
tava as diferentes entoações da voz do advogado de defesa, do
promotor e do presidente, e olhava para os seus gestos cheios
de aprumo. “Quantos esforços custa esta ficção”, disse, examinan-
do aquela enorme sala com os seus retratos, as suas lâmpadas, as
suas poltronas, as suas grossas paredes, as suas janelas e as togas
dos magistrados.

Graficamente, a mentira que a prisão nos conta pode ser assim


representada:

1  O Presente do Sistema prisiona  133


Taxa de aprisionamento

Taxa de exigência de aprisionamento

Por um lado, é inegável que o poder punitivo permite certo nível


de criminalidade para poder adubar a propaganda que o apresenta
como necessário e único capaz de nos salvar. Ele precisa deixar que a
doença se espalhe para vender o remédio. Por outro lado a partir de
agora também deve ficar claro que ele exerce uma força iatrogênica
irresponsável e quase incontrolável. Para esse empreendimento ele
usa a sua ferramenta mais poderosa: a prisão. Apesar de visarem a
supostamente curar a sociedade, esses efeitos colaterais provocados
pela intervenção da prisão só têm conseguido produzir ainda mais
sofrimento.
Considerando que a prisão é um prolongamento dos problemas
sociais e considerando que a massa de pessoas economicamente
marginalizadas é gigantesca, parece inevitável que as prisões brasi-
leiras tendam a continuar produzindo um encarceramento massivo.
É como se a prisão, como continuação da esteira seriada fordista,
trabalhasse na mesma escala de produção da sociedade: a matéria
prima social se transformando na manufatura prisional.
Nessa espécie de profecia que se autorrealiza saem prejudicadas
apenas as classes subalternas. Elas são obrigadas a se lançar na cri-
minalidade para poder sobreviver e para poder tentar pertencer a
algum quadro classista. Só assim elas conseguem se perceber plena-
mente como seres humanos. No momento em que caem na arapuca
prisional elas fecham o ciclo que fingia advertir que os afrodescen-
134  Manifesto para Abolir as Prisões
dentes e os desprovidos de capital cometem mais crimes – e por isso
são mais encarcerados.
Funcionando como um pantógrafo das mazelas populares, a pri-
são tem tentado higienizar os espaços públicos. Todavia, o que ela
tem conseguido com essa dedetização é apenas tornar o vírus da
afirmada imundície social ainda mais resistente e persistente.
Graças à nossa hiperinflação prisional estamos disputando com
a Rússia o terceiro lugar no photo-finish95 dos países mais encarcera-
dores do mundo, embora haja indícios de que já a tenhamos ultra-
passado96. Junto com os EUA, a China e a Rússia, somos responsáveis
por 52% do confinamento mundial97. Além disso temos a população
carcerária que mais cresce no mundo e a que aumenta mais rapida-
mente98. De 1990 até 2014, ou seja, em 24 anos, nossa população pri-
sional cresceu 575%99. E a partir de 2000, o crescimento prisional foi
dez vezes maior que o aumento da população demográfica100.
Como consequência do nosso encarceramento totalizante, e de-
pendendo da fonte que se consulte, temos experimentado uma taxa

95
Série de fotografias retiradas no momento da chegada, permitindo sa-
ber com exatidão quem é o vencedor de uma disputa.
96
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, pp. 13, 15. Acesso em 16 jun. 2016.
97
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em 16 jun. 2016.
98
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em 16 jun. 2016.
99
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 15. Acesso em 16 jun. 2016.
100
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 15. Acesso em 16 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  135
de reincidência que varia de 24,4%101 a 80%102. O que pouco importa,
haja vista ambas serem altíssimas e inadmissíveis.
Por agora alguns poderiam tentar atribuir todos esses índices a
uma suposta vocação criminosa do povo brasileiro e a uma impro-
vada má vontade em (re)socializar-se, enquanto encarcerado. Porém
nada disso consegue se sustentar diante do simples fato de que, se-
quencial e consequentemente: a) países com maior igualdade social
e econômica experimentam menos criminalizações, pois têm menos
matéria prima desviante que pode ser mais facilmente etiquetada;
b) há menos interesse pelo aprisionamento por parte dos seus ato-
res, que enxergam nele um entrave ao bem estar de todos; c) menos
criminalizações representam menos aprisionamentos; e d) menos
encarceramento equivale a um menor índice de adestramento pri-
sional, bem como a um baixíssimo nível de destreinamento social,
permitindo que os eventuais confinados voltem mais preparados
para o convívio comum.
De toda sorte, não é que nos países nórdicos e escandinavos, que
experimentam um baixíssimo índice de aprisionamento, não se pra-
tiquem homicídios, estupros, roubos, etc. Não é que os seus homici-
das, estupradores, ladrões, etc, não sejam encarcerados. É que a pri-
são, ao ser evitada ao máximo, não consegue produzir e reproduzir
a criminalidade, estacionando-a em um curto tempo e reduzindo-
-a a médio e longo prazo. A rigor, quanto menos eles prendem, nas
hipóteses em que isso é possível (conflitos insignificantes [furtos de
pequena monta], sem danos a terceiros [usuários de drogas], etc.),
menos eles terão que prender no futuro. Já nós, quanto mais pren-
demos, nas hipóteses em que isso é desnecessário, mais teremos que
prender no futuro.

101
Disponível em: <http://cnj.jus.br/noticias/cnj/79883-um-em-cada-qua-
tro-condenados-reincide-no-crime-aponta-pesquisa>. Acesso em 16
jun. 2016.
102
Informando, mas contestando os percentuais, o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA). Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/
conteudo/destaques/arquivo/2015/07/572bba385357003379ffeb4c9a
a1f0d9.pdf>, p. 11. Acesso em 16 jun. 2016.
136  Manifesto para Abolir as Prisões
Para se ter uma ideia as condutas consumadas ou tentadas, pre-
vistas no Código Penal, e que foram praticadas sem qualquer ameaça
ou lesão a terceiros, representam 40.256 crimes, cujos autores estão
presos103. Apesar de nenhum desses tipos penais prever qualquer
violência em sua prática, o Estado (ridiculamente) se nega a abrir
mão da prisão dos seus autores, porque isso equivaleria a uma re-
núncia de 25,32% de poder prisional, considerando que o total de
crimes, com autores presos, previstos no Código Penal, consumados
ou tentados, é de 158.986104. Em outras palavras: nem mesmo o fato
de que essa renúncia prisional representaria uma redução de mais
de 1/20 (um vinte avos) da massa carcerária (607.731105) é capaz de
sensibilizá-lo.
Igualmente não é difícil imaginar o que aconteceria se a verdade
sobre o tráfico de drogas fosse revelada a todos: a verdade de que
nesse crime não existe um bem jurídico a proteger. O que equivale
a dizer que nele não existe uma vítima identificável e, portanto, de-
fensável. Isso, sem noticiarmos que o tráfico não passa de um mero
comércio, sem empreendimento de qualquer violência direta. A par-
tir dessa perspectiva, hipoteticamente aconteceria a incrível perda
de mais 10,91% de poder confinante (menos 66.313 crimes tentados
ou consumados dentro de um total de 607.731 [o crime de tráfico
está previsto na legislação extravagante, fora, portanto, do Código
Penal]). Este percentual, juntamente com os anteriores 6,62% – per-
centual derivado das 40.256 pessoas presas por crimes não violentos,
no universo total de enjaulados –, somaria 17,53% de renúncia prisio-
nal. Ou seja: o Estado perderia quase 1/5 (um quinto) do seu poder
de prender.

103
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 65. Acesso em 16 jun. 2016.
104
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 65. Acesso em: 16 jun. 2016.
105
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 65. Acesso em: 16 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  137
Mas, o que esperar de um país onde quase 100% dos crimes pre-
vistos no Código Penal preveem a pena de prisão (reclusão ou de-
tenção), como sanção106? País em que apenas 3% das pessoas con-
denadas à privação da liberdade estão em regime aberto e só 15%
em semiaberto107? Onde o próprio Ministério da Justiça, mediante o
seu (DEPEN) Departamento Penitenciário, enaltece a construção de
vagas, embora pareça redimir-se em parte, mais à frente, ao defender
alternativas (ou melhor, opções) penais108?
O resultado dessas equações é que a prisão reproduz os seus pró-
prios clientes, fabricando novos culpados aprisionáveis. Além de não
(re)socializá-los ela desencadeia um efeito colateral repetidor (re-
encadeador): a) ao destreiná-los para os atos mais simples da vida
cotidiana extramuros; b) ao estigmatizá-los, obrigando-os a viver
de crimes, reincidindo; c) ao aumentar a quantidade de criminosos
mais facilmente etiquetáveis (homicidas, latrocidas, traficantes, etc.);
d) ao inseri-los em uma carreira criminal (ladrões insignificantes que
aprendem a ser latrocidas); e e) ao convencer as pessoas de que a
profecia se autorrealizou, pois, os inimigos que foram cautelarmente
presos por parecerem perigosos, provaram que realmente o eram ao
cometerem crimes depois de libertados.
A velocidade pirotécnica e oscilante com que a nossa máquina
de moer e gastar gente tem histericamente crescido já nos permite
acreditar que nós perdemos o controle, principalmente porque já há
bastante tempo nós passamos de uma fase em que a autoridade ti-
nha o poder de prender, para uma fase em que autoridade é quem
tem o poder de libertar. Por isso, nosso encarceramento massivo se-

106
À exceção dos artigos 121, § 5°, 129, § 5°, 140, § 1°, 143, 155, § 2 °, 168-
A, § 3°, e mais alguns poucos. Disponível em: <http://www.justica.gov.
br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/
relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2016.
107
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 20. Acesso em 16 jun. 2016.
108
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 6. Acesso em: 16 jun. 2016.
138  Manifesto para Abolir as Prisões
gue a todo vapor, em uma progressão geométrica impura – e que é a
segunda que mais varia no mundo109 –, descontrolada e irreversivel-
mente autoalimentante.

1.4.4 Para poder decidir sobre os dissidentes e os


inservíveis
Existe um interesse obscuro do poder prisional em se manter no
topo da arbitrariedade do poder punitivo. Nessa posição ele pode
aproveitar-se do pior dos dois. Ao mesmo tempo em que ele usufrui
todos os benefícios que este oferece, ele pode funcionar de acor-
do com a exclusiva vontade de quem o domina, desgarrando-se de
qualquer submissão técnica ou lógica eventualmente imposta pelo
direito penal como um freio ao poder de punir.
A capacidade que a prisão tem de convencer as pessoas do seu
poder de resolver ou de esfriar a criminalidade é extremamente po-
tente. De sorte que, apesar da arbitrariedade com que ela opera, tão
logo é praticado um novo crime surgem protomensagens depre-
ciantes e metamensagens euforizantes atribuindo a culpa da sua
ocorrência à pouca importância que tem sido entregue à questão
prisional. De fato tem ocorrido o contrário do que logicamente se
esperaria: a prisão tem conseguido fazer com que as pessoas confun-
dam e troquem a causa do crime, que é o aprisionamento, pelo seu
efeito, que é a criminalização de alguns.
A partir daí o poder prisional passa a solicitar mais atenção me-
diante o uso de frases enlatadas, tais como: “as leis penais são muito
brandas”, “apesar de condenado por um crime anterior, ele não foi
preso, ou ficou pouco tempo na cadeia”, “a impunidade de Beltrano
incentivou Cicrano”, e outras bobagens de igual efeito virótico.
De mão desse poder ele começa a agir mais executiva que juri-
dicamente na sua perseguição aos descartáveis e desobedientes. O
seu raciocínio passa a ser o do gestor de riscos sociais, que participa

109
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 14. Acesso em 16 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  139
ativamente da administração das coisas públicas, e não o do jurista,
que deve tentar decidir justamente os conflitos. Contraditoriamente,
o mesmo poder prisional que não consegue proteger os bens jurí-
dicos flerta com um programa atuarial ao administrar riscos globais,
em um plano genérico de economia social.
Sabendo de antemão que um maior lucro atrai um maior risco, o
Estado prisional assume um modelo empresarial pretendendo maxi-
mizar suas vantagens sem, contudo, arriscar-se demais. Para alcançar
um considerável lucro econômico, político, social, pessoal, etc., ele
se previne, antecipando-se aos riscos. Com essa agenda ele obtém
autorização popular para deslocar precocemente todos aqueles que
não lhe interessam ou o incomodam, simplesmente prendendo-os
provisoriamente. Assim ele consegue, sem ter que justificar-se: a)
controlar a demanda e a oferta de mão de obra substituível; b) captar
votos favoráveis à sua oratória demagógica, que promete criar cri-
mes e ampliar e endurecer as penas; c) tranquilizar por algum tempo
a população; d) satisfazer desejos pessoais ou de terceiros, que enxer-
gam na prisão a única maneira de alcançar esse objetivo.
Em toda medida, embora a condenação sem culpa esteja sendo
substituída pela prisão sem condenação, essa antecipação do confi-
namento não representa uma renúncia do Estado encarcerador ao
seu poder de reprimir. Como há uma manutenção do custo (a prisão
é praticamente a mesma para presos provisórios e definitivos110), não
há porquê renunciar a mais essa vantagem do poder.
Porém, como o poder prisional consegue considerar o crime antes
mesmo que ele aconteça, prendendo os que o desobedecem e os
que não lhe servem? A resposta a essa pergunta é tão simples quan-
to constrangedora: ele não consegue, embora, quando lhe é conve-
niente, ele afirme conseguir.
Apesar do que dispõe o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, ele baseia suas prisões acau-
telatórias – e se enchendo ainda mais de razão, os seus confinamen-

110
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em: 16 jun. 2016.
140  Manifesto para Abolir as Prisões
tos a partir de condenações confirmativas em segundo grau –, no
inimigo estereotípico que o aprisionável representa. Se esse inimigo
for conveniente, resignado e irresistível, há uma grande chance de
ele ser aprisionado. E precocemente.
Empresarialmente isso empresta um tom de competência e efici-
ência ao Estado cativante. Por atuar antes mesmo da oferta de perigo
pelo inimigo, sob todos os ângulos as pessoas começam a enxergá-
-lo como uma ferramenta suficientemente apta a sequer permiti-las
sentir medo. Para que esperar que o perigo, a ameaça e a lesão se ma-
nifestem, se já sabemos de onde eles vêm? Fora dessa infeliz ilusão,
a prisão não é o instrumento que corta o mal pela raiz: ela o arranca,
para enxertá-lo em um plano no qual a sua frutificação lhe será mais
interessante. E esse novo canteiro tem sido diariamente adubado.
A precipitação do poder prisional ao impor a privação da liberda-
de no começo, e não depois de percorrido todo um procedimento
sério e refletido, tem atraído o aplauso da população que anseia por
projetar no aprisionado, o quanto antes, as suas próprias tendências
antissociais.
De mão de uma fôrma que indica quem deve ser encarcerado (es-
tereótipo do inimigo conveniente), partem os agentes prisionais à
caça de quem nela se encaixe mais facilmente, independentemente
do que o inimigo fez ou deixou de fazer, porque o importante é ven-
cer essa cruzada contra o mal. E de sobra bater a meta, que é elevada
todas as vezes que ela é alcançada.

POLICIAIS RECEBERÃO GRATIFICAÇÃO PARA NÃO MATAR…


[...] policiais serão gratificados para não matar… A notícia foi pou-
co comentada, ninguém desmentiu, mas ela me intriga. Diz que
“a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro promete gra-
tificar, a partir de 2011, os policiais civis e militares pela redução
de mortes em confrontos”; que no primeiro semestre do ano de
2010 foram registradas 505 mortes; que os policiais dos batalhões
que ficarem mais bem colocados no “cumprimento das metas” [...]
de reduzir violência receberão R$ 3 mil ao fim do semestre. O se-
gundo colocado, nos mesmos critérios, terá direito a R$ 2 mil e o
terceiro colocado a R$ 1,5 mil. [...] 10.216 pessoas foram mortas

1  O Presente do Sistema prisiona  141


por policiais do Rio de Janeiro, entre janeiro de 1998 e setembro
de 2009, segundo registros oficiais. Vivemos outros tempos, não
estamos no velho oeste, mas esse “extra” para policiais não mata-
rem em confrontos me oportuniza algumas considerações. Anti-
gamente, quem matava bandidos era recompensado. Agora po-
liciais “cumprem metas” recebendo gratificação para não matar…
Com certeza, os tais bandidos viveram na época errada, foram
mortos, segundo imaginam os idealizadores da campanha, por-
que não havia nenhum tipo de “incentivo” para poupá-los… [...]
Não podemos colocar, como no velho oeste, cartazes oferecendo
prêmios para quem prender criminosos – vivos ou mortos –, nem
apontar armas para bandidos em fuga, nem dar tiros de advertên-
cia, ou atirar contra veículos que furem bloqueios policiais […]111.

Nessa nova estratégia que foi implantada o poder prisional passa


de uma análise individual, contida na prática de uma suposta infra-
ção, para uma avaliação gerencial da coletividade, que se preocupa
com um modelo a ser seguido, ou melhor, evitado. E esse manequim
tem a face e a atitude do inimigo jovem, afrodescendente, com pou-
co estudo e renda112. Ele é o dissidente e o inservível cujo sacrifício
perante o altar prisional a atual demanda por ordem exige.
Aproveitando-se do clima, primeiro aprisiona-se o suposto inimi-
go, e só depois se procuram fatos e argumentos jurídicos para de-
monstrar que o encarceramento não foi equivocado. Como os inimi-
gos podem ser muitos, pois boa parte da população nacional é jovial,
afrodescendente, analfabeta funcional e desprovida de capital, fica
fácil entender porquê estamos experimentando um aumento am-
plificado do encarceramento. Embora tudo esteja disfarçado sob o
lema ordem (obediência) e progresso (servidão às necessidades do
capital).

111
Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfei-
tas/policiais-receberao-gratificacao-para-nao-matar/>. Acesso em: 16
jun. 2016.
112
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, passim. Acesso em: 16 jun. 2016.
142  Manifesto para Abolir as Prisões
1.4.5 Ele retribui os crimes praticados?
Ninguém consegue negar que a pena privativa de liberdade como
retribuição prevista pela dogmática oficial está falida. Aliás, a efetivi-
dade ou até mesmo a existência dessa funcionalidade nunca foi com-
provada. Nenhum bem jurídico ameaçado ou lesionado retornou ao
seu estado anterior de tranquilidade ou integridade depois que o
condenado foi preso. Por exemplo: a correção plástica da cicatriz na
face da ex-esposa, e modelo, derivada de lesão cortante, foi possibi-
litada por uma intervenção médica, e não pela prisão do condenado,
ainda que o cirurgião e o aprisionado sejam a mesma pessoa.
Não há qualquer identidade ou mesmo semelhança entre a liber-
dade restringida e o bem jurídico ofendido. Quem pratica um crime
de homicídio não perde a vida, mas sim a liberdade.
Essa diversidade na resposta dada pelo poder punitivo, que equi-
valeria ao bem ofendido, não existe. Para quase todos os crimes pre-
vistos a retribuição é a mesma: o encarceramento. A prisão condensa
uma solução pasteurizada para problemas altamente complexos e
extremamente diferentes, desde o latrocínio até o furto, passando
por crimes que sequer ultrapassam a esfera da autonomia privada
ao não lesionarem terceiros (uso de drogas, etc.). No mínimo deve-
ríamos desconfiar da prisão quando ela se oferece como resposta
homogênea para questões que exigem estratégias tão diversas. Afi-
nal, é sempre estranho quando se pretende fazer com que situações
completamente diferentes pareçam iguais.
“15 detentos fogem da Casa de Custódia, entre eles um integrante
do PCC. [...] No pavilhão H, onde aconteceu a fuga, havia homicidas,
ladrões e traficantes113.”
É como se a prisão fosse um departamento de consertos que usas-
se a retribuição como ferramenta única, tanto para amassar, quanto
para desamassar. O que não seria inadequado, não fosse pelo objeto

113
Disponível em: <http://www.portalodia.com/noticias/policia/21-de-
tentos-fogem-da-casa-de-custodia-221281.html>. Acesso em: 17 jun.
2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  143
que receberá o impacto: um vidro ou um metal. Alguém que furtou
um objeto de valor mínimo e um assassino serial.

HOMEM É CONDENADO A MAIS DE UM ANO DE PRISÃO


POR FURTO DE DOIS PACOTES DE BOLACHA
O furto de dois pacotes de bolacha que totalizam menos de 5 re-
ais significarão mais de um ano de prisão para o Carivaldo Melo,
morador de Botucatu [...]. Segundo o relatório do processo, o acu-
sado, que seria usuário de drogas, confessou ter furtado os dois
pacotes de bolacha pois estava faminto e passava necessidade.
Do momento do furto até que fosse preso, Carivaldo conseguiu
consumir um pacote de bolacha114.

Igualmente:

POLÍCIA DO RIO PRENDE ASSASSINO EM SÉRIE QUE DIZ TER


MATADO 42 PESSOAS
A horripilante história de Saílson José das Graças, de 26 anos, as-
susta o Rio de Janeiro.
Tem apenas 26 anos, mas alega ter matado 42 pessoas. Segundo
a polícia, é um “assassino profissional”. Matou pela primeira vez
aos 17 anos. Suas vítimas prediletas eram mulheres (brancas) da
Baixada Fluminense: confessa ter acabado com a vida de 38 delas,
de todas as idades e condições, além de ter assassinado um bebê
e três homens. Matava por encomenda, “mas também por prazer”,
segundo reconheceu, algemado e tranquilo, em uma entrevista
assustadora na manhã desta quinta-feira à TV Globo na Divisão
de Homicídios da região no Rio de Janeiro. “Quando ficava dois
meses sem matar, começava a ficar nervoso”, disse mais tarde a
uma multidão de jornalistas atônitos115.

114
Disponível em: <http://justificando.com/2015/10/21/homem-e-con-
denado-a-mais-de-um-ano-de-prisao-por-furto-de-dois-pacotes-de-
-bolacha/>. Acesso em: 17 jun. 2016.
115
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/11/politi-
ca/1418323270_910597.html>. Acesso em: 17 jun. 2016.
144  Manifesto para Abolir as Prisões
Como não é civilizadamente possível o retorno à lei talional, se
não abolirmos a prisão estaremos compensando um mal com outro
mal diferente, meramente repetindo uma expiação ou compensação
que, tendo origem religiosa, é antidemocrática e nada científica.
Esses são os problemas do ponto de vista dogmático. Com base
no discurso criminológico, o que se observa é que a retribuição pre-
tendida pelo aprisionamento é uma retribuição equivalente. Antes
de continuarmos é preciso requentar que por trás do discurso ofi-
cial que, apesar de fracassado, ainda tenta justificar a necessidade
da continuação da aplicação de penas privativas de liberdade, há
um discurso vitorioso, lucrativo e interessante apenas para alguns,
de sorte que a prisão não permanece de pé por causa dos seus ali-
cerces e da sua alvenaria, tampouco porque ela retribui o crime. Ela
permanece de pé por causa de uma ideologia que é escondida de
todas as pessoas. E um dos cimentos dessa ideologia é a equivalên-
cia da retribuição, que consiste em demonstrar que nas sociedades
que pautam seu cotidiano na relação entre o capital e o trabalho as-
salariado há uma correspondência artificial entre a pena de prisão,
de um lado, e a economia, a política e o sistema de justiça penal, de
outro, e exatamente porque em ambos o tempo é o paquímetro que
mede, por dentro e por fora, o que se considera como valorável ou
desvalorável, útil ou inútil. Seja na precificação da mercadoria, seja
na quantificação do salário, seja na medição do tamanho da pena
privativa de liberdade, o tempo exerce uma influência determinan-
te116. Com efeito, retribuir o crime com a pena privativa de liberdade
equivale ao resultado de uma sequência lógica em que as leis são
confeccionadas para proteger os interesses dos exploradores-cole-
tores, enquanto a prisão é utilizada como braço armado visando à
ampliação ou à manutenção das desigualdades presentes nas estru-
turas produtivas das economias preocupadas com o lucro, e não com
os trabalhadores e consumidores.

116
SANTOS, Juarez Cirino dos. Os discursos sobre crime e criminalidade. Dis-
ponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/os_dis-
cursos_sobre_crime_e_criminalidade.pdf >. Acesso em: 17 abr. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  145
Desse modo, a prisão seria: a) ou a intensificação das condições
indignas impostas aos vulneráveis dentro da economia capitalista; b)
ou a continuação da política neoliberal mediante outros meios, que
podem ser mais gravosos ou não. É que nem sempre é possível defi-
nir qual dos dois ambientes indignifica mais o cidadão: se a prisão ou
a fábrica. E, por que não incluir a sociedade?
De qualquer maneira, aquele que não serve ao sistema capitalista
de produção, por não aceitar receber salários baixíssimos em um re-
gime de pseudoescravidão, servirá ao sistema capitalista de explora-
ção industrial carcerária, como número a ser contabilizado na coluna
referente aos dividendos dos empresários. O que importa é que ele
dê lucro, de uma forma (consumidor ativo) ou de outra (consumidor
inativo/aprisionado), ainda que para isso ele tenha que transitar na
via de mão dupla que vai da fábrica para o cárcere, e retorna.
É por isso que não podemos reservar o título de prisão para aque-
la instituição que habitualmente reconhecemos como arquitetada
para claustrofobizar e definhar as pessoas. Existem fábricas e ou-
tras estruturas de produção capitalista igualmente aprisionantes117.
Na lógica neoliberal a prisão como sanção penal e a fábrica como
sanção laboral exercem a mesma utilidade: controlar os horários e
as condições dos internos/trabalhadores, robotizar seus afazeres e,
escalonando a produção, homogeneizar seu ritmo de vida gastando
o menos possível. O que não se faz em uma é equivalentemente re-
tribuído na outra.
Fora aqueles que acreditam na prisão como em uma religião, cer-
tos de estarem fazendo o que é correto, ou o que é possível, há outro
aspecto que a retribuição pela privação da liberdade esconde: a de
que ela viabiliza o exercício da vingança. Quem a manipula almeja:
a) desforrar insatisfações pessoais (policiais descontentes com seus
salários, etc.); b) devolver encarceramentos pretendidos ou sucedi-
dos (troca de denúncias entre políticos corruptos, etc.); ou mesmo c)
atender à angústia de parte da população, ansiosa por sacrificar mais
um caprino ao deus da tranquilidade ilusória e provisória. Perverten-

117
Ver <http://escravonempensar.org.br/sobre-o-projeto/o-trabalho-es-
cravo-no-brasil/>. Acesso em: 19 abr. 2016.
146  Manifesto para Abolir as Prisões
do a oração shakespeariana, para esses tudo está bem, não quando
acaba bem, mas quando acaba em prisão.
Caracteristicamente a retribuição da pena privativa de liberdade
se assemelha à ausência de qualquer lógica devolutiva presente na
cativação exercida contra os animais. Algumas das nossas prisões, ou
alguns dos nossos aprisionamentos, são zoológicas porque também
privam da liberdade pessoas cuja quase metade delas sequer foi con-
denada ou é culpada. Como já noticiado, 41% dos presos é provisó-
rio. O encarceramento de quase todos os presos acontece pelo que
eles representam: a capacidade que certos animais têm de serem
exóticos e, ficando expostos, servirem de espetáculo para divertir sa-
dicamente os visitantes. Evento muito semelhante ao das excursões
quase circenses realizadas pelas pessoas que visitam os presídios a tí-
tulo de conhecimento da sua sistemática. Analogamente aos animais
ferozes, o seu confinamento representa a retribuição pela capacida-
de que eles têm de nos assustar, quando soltos. De qualquer modo,
a possibilidade de entrevê-los através das grades, sem risco, faz com
que nos sintamos mais potentes. Outro aspecto semelhante é que
a nossa prisão zoológica também sustenta a necessidade do confi-
namento das pessoas em razão de elas não possuírem condições de
conviver mais em liberdade. Como os animais, desacostumados a
alimentarem-se sozinhos por terem perdido a capacidade de caçar,
apesar desse despreparo haver sido proporcionado pela própria in-
terferência humana no seu ambiente natural. Também quanto a esta
circunstância, qualquer identificação com a desassistência estatal,
omissa quanto ao fornecimento de políticas públicas compensató-
rias, não é mera coincidência.

1.4.6 Ele previne os crimes praticados?


A ideia de prevenção também pode ser bifurcada em discurso ofi-
cial e discurso criminológico.
Oficialmente, embora prevista no artigo 59 do Código Penal
como elemento de consideração inafastável quando da decretação
do aprisionamento, recebeu a ideia da prisão como prevenção inú-
meras críticas. A mais contundente advém da afirmação de que ela

1  O Presente do Sistema prisiona  147


instrumentaliza o aprisionado, ela o utiliza para servir de modelo às
demais pessoas. É como se o seu aprisionamento o transformasse
em uma espécie de exemplo a não se seguir. Mas, se várias pesso-
as cometem o mesmo tipo de crime, por que somente algumas são
presas para servirem de parâmetro às outras? Antes de continuar é
preciso deixar claro que não estamos defendendo a prisão de todas,
visto que o aumento ou a diminuição da seletividade não interfere
na própria seletividade do sistema. Se ele seleciona uma pessoa para
ser presa, ele está selecionando (hiperconcentração); se ele seleciona
que o destino de dez milhões de pessoas é o presídio, ele também
está selecionando (encarceramento em massa). Aqui o raciocínio
tem duas incoerências: a) a de tentar demonstrar que algumas pes-
soas (as encarceradas) valem menos do que outras, pois são conside-
radas instrumento (réus = res = coisa), enquanto as outras (livres) são
consideradas seres humanos; b) algumas ferramentas (presos) são
mais instrumentalizáveis que outras (criminosos que estão soltos,
por exemplo).
Desde logo é preciso advertir que a consideração do preso como
instrumento varia de acordo com a conveniência de quem opera o
sistema. Quando interessa ao poder prisional ele é uma ferramen-
ta de exemplo aos demais ou é apenas um número dentro de um
edifício (objetificação). Nesses termos ele é desprovido de direitos. A
substituição do nome pela numeração desidentifica o preso e serve
para degradá-lo.

Algumas coisas surpreendentes aconteceram. Ao se apresenta-


rem ao padre, metade dos prisioneiros usaram os números, não
os nomes. [...] [Os prisioneiros, escrevendo uma carta para suas
respectivas mães] Sinceramente seu... seu amado filho... colo-
quem o nome que sua mãe lhe deu [disse outro prisioneiro]. [Em
vez do seu nome, o prisioneiro pôs o seu número]118.

118
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yXJLZ_
iSsf4&index=3&list=PLx87l5Z_DcZQe95eqamfJ1POuPI_5KRC8>. Aces-
so em: 18 jun. 2016.
148  Manifesto para Abolir as Prisões
Despersonificado e exposto a uma nudez que o desantropomor-
fiza, passa ele a ser adjetivado com expressões pejorativas do tipo
“esse criminoso é uma fera”, “ele agiu como uma besta sanguinária”,
“esse bandido é um monstro”, “o assassino é um animal”, etc.

MÍDIA CONSTRANGIDA COM A BESTA-FERA QUE CRIOU


A mídia está constrangida com o monstro que criou.
Eliane Cantanhede, em sua coluna de hoje, dá o tom de como
será a campanha daqui para a frente. Qualquer sugestão de que
haverá revisão criminal das condenações da Ação Penal 470 será
tratada como “pizza” e haverá tentativa de insuflar a sociedade
contra o STF119.

E:

PORCA PRETA É A BESTA-FERA. OU: UMA DAS FACES DO


MAL ABSOLUTO
VEJA.com publicou na noite desta quarta-feira o vídeo que traz o
momento exato em que criminosos invadem e incendeiam, em
São Luís, o ônibus em que estava a menina Ana Clara, que mor-
reu. Dá para ver a garota, perplexa, com o corpo em chamas. São
imagens terríveis120.

Quando a conveniência é outra ele é considerado um ser humano


(subjetivação). Como quando ele continua tendo deveres, ou é apre-
sentado como um representante do autorreferente sucesso da (re)
socialização.

119
Disponível em: <http://www.ocafezinho.com/2014/03/02/midia-cons-
trangida-com-a-besta-fera-que-criou/>. Acesso em: 18 jun. 2016.
120
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/porca-
-preta-e-a-besta-fera-ou-uma-das-faces-do-mal-absoluto/>. Acesso
em: 18 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  149
DETENTOS CONQUISTAM PRIMEIRO LUGAR EM
VESTIBULARES NO PARÁ
Pará teve cerca de 400 internos prestando o Enem no ano de 2015.
Oito foram aprovados em vestibulares, três deles no 1º lugar de
seus cursos.
Três internos do sistema penal do Pará foram aprovados na pri-
meira posição dos cursos para os quais prestaram vestibular.
Segundo a Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará
(Susipe), cerca de 400 detentos do estado prestaram o exame em
2015 e oito foram aprovados para instituições de ensino supe-
rior121.

Em hipótese alguma pode o ser humano ser convertido em um


manequim, principalmente se for para supostamente servir de (re)
equilíbrio para o sistema (o poder). Todavia, a partir desse ponto cer-
ta quantidade de pena é administrada contra certo crime, justamen-
te visando-se ao reforço da norma, à intimidação da prática de novos
crimes, à não reincidência do criminoso e à sua neutralização. Como
veremos, todos esses objetivos fracassaram, demonstrando que a
pena não previne.
Aliás, que ela serve apenas para prevenir que as classes subalter-
nas sequer cogitem deslocar-se em direção às classes superiores, as-
sumindo o seu lugar. Com efeito, a prisão evita a mobilidade social,
prevenindo a mudança do poder de uma mão para outra. Às vezes
ela é imposta como obstáculo. Outras vezes ela serve para limpar o
caminho.

PSDB E DEM PEDEM PRISÃO DE GUILHERME BOULOS


O deputado federal José Carlos Aleluia (DEM) entrou com uma
representação na Procuradoria da República pedindo a prisão
de Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos

121
Disponível em: <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2016/01/deten-
tos-conquistam-primeiro-lugar-em-vestibulares-no-para.html>. Acesso
em: 18 jun. 2016.
150  Manifesto para Abolir as Prisões
Trabalhadores Sem Teto (MTST). O deputado o acusa de “incita-
ção ao crime” e “formação de milícia privada”. Nas redes sociais,
Boulos explicou e pediu apoio. No pedido de prisão o deputado
“Referiu-se a uma declaração que dei de que o país pegaria fogo
com greves e ocupações se fossem adiante com os ataques”. De-
pois, o PSDB também entrou com um pedido de prisão contra
Boulos por incitação ao crime, “por ter feito uma fala quarta no
palácio do Planalto (lançamento do Minha Casa 3) dizendo que
haverá resistência”122.

1.4.6.1 Ele previne genérica e positivamente?


A prevenção geral positiva serve para demonstrar que quem ousa
desafiar a legislação penal, e de consequência o poder prisional que
lhe é indissociável, experimentará a sua rebeldia e a sua força. Mesmo
que isso não previna a ideologia da prisão contra novos desaforos,
ela atua simplesmente para mostrar quem é que manda.
Apesar disso, a jakobsiana função de prevenção geral positiva da
pena pretende demonstrar que ela e a lei penal trabalham dentro de
um sistema autopoiético. Assim que uma lei penal entra em vigor,
automaticamente ela promete proteger os bens jurídicos ali descri-
tos. Para tanto, ela dispõe de um catálogo prévio de sanções (pena
privativa de liberdade, etc.), que teriam, em tese, a capacidade de
intimidar quem pretende desafiar as proibições e as determinações
penais. Não é preciso muito esforço para perceber a ineficiência des-
sa ameaça. Mas, o maior perigo dessa teoria não está neste quesito.
Está na tentativa de dispor o ser humano em segundo plano. Atrás
da norma, que é um elemento abstrato. Ou seja: proteger a norma
seria mais importante do que tentar proteger os bens jurídicos das
pessoas (vida, integridade física, etc.). Não bastasse a ineficiência do
poder prisional em assegurar tais bens, pois ele geralmente atua de-
pois que eles já foram ofendidos, a prisão de uma pessoa subordina-
-se à defesa de uma mera letra estampada sobre um papel (legislação

122
Disponível em: <http://jornalggn.com.br/noticia/psdb-e-dem-pedem-
-prisao-de-guilherme-boulos>. Acesso em: 28 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  151
penal). É dizer, a liberdade de uma pessoa valeria menos que um do-
cumento. A prisão seria o ápice da veneração a um dever, ainda que
cego, fora de propósito, sem sentido e injusto.

NÃO É CRIME DESOBEDECER POLICIAL EM ABORDAGEM


SEM MOTIVO
O parágrafo segundo do artigo 240 do Código de Processo Pe-
nal diz que a autoridade policial só pode fazer busca e apreensão
pessoal se existir fundada suspeita de cometimento de crime ou
de ocultação de objetos. A observação fiel deste dispositivo le-
vou o 2º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul a absolver um usuário de drogas denunciado por se negar à
revista pessoal durante abordagem policial feita em Bagé. [...] “O
réu estava tão-somente andando pela via pública, em situação
que não indicava qualquer atitude suspeita (como mesmo disse o
policial), e pelo simples fato de ser pessoa com antecedentes, ou
‘conhecida’ da polícia, tornou-se alvo certeiro de revista aleatória
e desnecessária. O motivo explanado não autoriza o uso abusi-
vo do poder de busca pessoal, não podendo o réu ficar sujeito a
abordagens fortuitas pelo simples fato de estar caminhando na
rua”, escreveu no acórdão o relator dos Embargos Infringentes,
desembargador Diógenes Hassan Ribeiro. Se a revista não foi fun-
dada, destacou o relator, a recusa em submeter-se a ela foi lícita.
Isso porque, no fim das contas, nada foi encontrado com o réu
que indicasse que a resistência tivesse o fim de ocultar objeto de
crime123.

Entretanto, ridiculamente:

RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA A POLICIAIS PODERÃO TER


PUNIÇÕES MAIS SEVERAS
Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 8125/14,
do deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG), que especifica no

123
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mai-18/abordagem-
-policial-motivo-derruba-crime-desobediencia-decide-tj-rs>. Acesso
em: 18 jun. 2016.
152  Manifesto para Abolir as Prisões
Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) os crimes de resistência e de
desobediência à ordem policial. Pelo texto, o crime de resistência
à ação policial é definido como “opor-se à execução de ato legal,
mediante violência ou ameaça a policial, ainda que em auxílio a
funcionário competente para executá-lo”. A pena estabelecida é
de reclusão de dois a quatro anos e multa. Já o crime de deso-
bediência à ordem legal de um policial será punido, segundo a
proposta, com reclusão de um a três anos e multa. [...] o deputado
entende que esses crimes, quando praticados contra policiais em
serviço, são mais graves, pois são situações que apresentam risco
maior tanto para o ofensor quanto para o agente público, e por
isso não podem ser considerados crimes de menor relevância. Em
sua avaliação, “a dosimetria das penas hoje contidas no Código
Penal contribui para o descrédito dos profissionais de segurança
pública124.

Felizmente quem tem um sonho tem também a obrigação de de-


sobedecer a uma prisão injusta.
Desconcertadamente, o sistema demonstra não prevenir no mo-
mento em que uma lei que promete que não pode ser infringida, a
não ser sob seriíssimas consequências (prisão), é desobedecida sem
que haja o aprisionamento praguejado. Pior é o fato de a prisão se
valer desse mesmo defeito para angariar mais poder – e consegui-lo.
Usando sua própria ineficiência ela inacreditavelmente obtém apoio
popular para aumentar penas, criar novos crimes, exigir que juízes se-
jam mais duros contra os criminosos, etc. Basta-lhe propagar que ela
está sendo desrespeitada porque é frágil e angelical, quando deveria
ser forte e assustadora.
O funcionamento dessa sua lógica do quanto pior melhor é o se-
guinte: 1) publica-se uma lei penal prometendo prender os desobe-
dientes; 2) a desobediência acontece; 3) alguns desobedientes não
são presos; 4) o poder prisional discursa afirmando que a criminalida-

124
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/
SEGURANCA/482494-RESISTENCIA-E-DESOBEDIENCIA-A-POLICIAIS-
-PODERAO-TER-PUNICOES-MAIS-SEVERAS.html>. Acesso em: 18 jun.
2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  153
de se aperfeiçoou e está ainda mais perigosa e menos intimidada; 5)
o pânico moral é instalado; 6) para evitar atropelos, transfere-se a res-
ponsabilidade da ineficiência daquela lei para o público, alegando-
-se que ele lhe outorgou pouco poder; 7) diante disso exige-se mais
capacidade de reação; 8) autorizada essa capacidade, o poder puni-
tivo aproveita para criar novos crimes, aumentar as penas existentes,
exigir mais energia repressiva, etc.; por fim, 9) novas desobediências
acontecem, fechando-se o círculo. Mas, não a ambição do poder pri-
sional.
Considerando que o sistema sempre será violado, essa tendên-
cia incessante de ele emascular-se acaba infinitamente atraindo uma
suposta necessidade cada vez maior de ele ser intensificado. O que
faz com que se aumente o vigilantismo sobre os vulneráveis, inven-
tando-se novos perseguíveis, ampliando-se o rol dos estereotipáveis,
hiperinflacionando-se o sistema carcerário, reduzindo-se direitos e
acreditando-se ainda mais cegamente na capacidade da prisão de
resolver problemas que ela mesma cria.
Já deve ter ficado evidente que a prisão não existe para defender
os bens jurídicos das pessoas. A sanção mais séria do país serve para
permitir que o sistema funcione adequada e utilmente, embora para
proteger quem o domina.
Em Ressurreição, Liev Tolstoi articula uma oração parecida na boca
da personagem de Nekhliudov: “O Tribunal é apenas um instrumento
administrativo para manutenção do estado de coisas vigentes, van-
tajoso para nossa classe”.

1.4.6.2 Ele previne genérica e negativamente?


Pouco importa se acreditamos ou não em um nível de coação ofe-
recido pela possibilidade do aprisionamento. Temer a prisão ou não
é irrelevante. Existem pessoas que declaradamente temem a prisão
e cometem crimes. Existem pessoas que assumidamente não se sen-
tem coagidas por elas, e, mesmo assim, refreiam ao máximo os seus
impulsos criminais. Não é a intimidação ou a não intimidação supos-
tamente derivada da prisão que define se uma pessoa será declarada
a inimiga conveniente do momento. Na verdade, para o poder prisio-

154  Manifesto para Abolir as Prisões


nal pouco importa se o aprisionado temia a lei ou não. Segundo a sua
real lógica, a conveniência e a oportunidade (discricionariedade) da
prisão de uma pessoa, e não de outra, está vinculada à necessidade
que a sua sistemática orgânica possui de aprisionar inimigos conve-
nientes, resignados e irresistíveis. Pois é isso que retroalimenta o seu
funcionamento, justificando para as pessoas a manutenção da sua
existência. Se a cada dia novos inimigos são encarcerados é porque
eles continuam perambulando entre nós, e nos expondo a perigo.
Para o poder prisional, e há muito tempo para nós também, já não
tem importado mais se eles se sentiam coagidos ou não pela sanção
penal.
Com efeito, o mais provável é que haja graus de pertencimen-
to. E reconhecimento, ainda que superficial, desse pertencimento.
Uma classe, e as demais, tem certeza de que pertence ao grupo dos
aprisionáveis. Outra classe, e as demais, tem certeza de que nunca
pertencerá. E uma terceira receia pertencer. Enquanto as duas pri-
meiras têm a crença da verdade (certeza) sobre a sua prisão ou não,
a terceira não a tem porque ela sempre está em dúvida sobre se será
confinada. Todavia, esse seu receio não pode, considerada a sua in-
demonstrabilidade psicológica, bem como a sua mediana passivida-
de ao etiquetamento, ser encarado como uma intimidação exercida
pela prisão. Sobretudo porque nessa classe existem pessoas que co-
metem crimes, sendo rotuladas ou não como criminosas, e pessoas
que não os cometem, não vindo ou vindo a ser adesivadas como cri-
minosas.
Essa sensação ou essa percepção da sua própria condição diante
do poder prisional – o que é bastante diferente de uma suposta in-
timidação –, varia de acordo com o ambiente e o grau de amizade e
de resignação ou indignação que uma pessoa pode oferecer contra
o seu aprisionamento. Pessoas pouco resistentes, que encaixam per-
feitamente no estereótipo do inimigo, e que frequentam ambientes
hostis, sentem-se menos intimidadas pelo aprisionamento visto que
este, além de previsível, é quase inevitável. Para elas, o que não tem
remédio, aprisionado está. Elas não têm nada a perder. Sua atitude é
de humildade. Estar na fábrica, nas ruas ou na prisão não faz diferen-
ça. Sua atitude perante o poder prisional é de tranquilidade.

1  O Presente do Sistema prisiona  155


Pessoas muito resistentes, que sequer se aproximam do perfil do
estereótipo do inimigo, e que convivem em ambientes hospitaleiros
aos agentes aprisionantes, não se sentem coagidas pela cativação na
medida que, além de imprevisível, a prisão é sempre evitável. Elas
têm tudo a perder, embora saibam que não perderão. Sua atitude
diante do poder prisional é de arrogância. Elas não são etiquetáveis
porque são elas que rotulam.

PARA MUITA GENTE, BASTA SABER QUE A OUTRA PESSOA É


NEGRA
[...] há amigos que nunca foram parados em uma blitz policial e
continuam a estranhar os depoimentos dos que foram. Normal-
mente, são brancos, caucasianos, bem vestidos, jeito de bom
moço ou moça, com todos os dentes ou próteses bem feitas, di-
rigindo veículos que estão nos comerciais bonitos de TV. [...] Um
deles, por exemplo, me explicou que pilota uma moto há tempos
sem habilitação. “A polícia não para de jeito nenhum.” Enquadra-
-se perfeitamente na categoria acima descrita. Recentemente,
um róseo conhecido foi parado em uma batida. Ficou transtorna-
do. “Como se atrevem? Acham que sou um qualquer?” Por outro
lado, há aqueles que cansaram de cair na malha fina da polícia.
Quase sempre, negros ou pardos. De tanto ser parado, um colega
negro já encara como hábito. Perguntei se isso não o revoltava.
Explicou, com um certo cansaço, que, desde moleque, era sempre
a mesma coisa. Então, se acostumou. Já chegou a cair em duas ba-
tidas na mesma noite. Procuravam um meliante. [...] Coisa que os
jovens negros e pobres da periferia das grandes cidades paulistas
já sabem há muito tempo. [...] Afinal, para muita gente, saber que
alguém é negro já é o bastante125.

De certo modo, apenas as pessoas meio resistentes, que suscitam


dúvida sobre o cabimento do seu manequim no modelo de inimigo,
e que transitam entre lugares inóspitos e aconchegantes, é que se

125
Disponível em: <http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.
br/2014/11/20/para-muita-gente-basta-saber-que-a-outra-pessoa-e-
-negra/>. Acesso em: 14 jun. 2016.
156  Manifesto para Abolir as Prisões
sentem dissuadidas pelo possível aprisionamento, embora não di-
retamente. Como elas consideram que a perda dos poucos direitos
possuídos ou conquistados não vale a pena, é essa sensação que as
desestimula de praticar certas condutas. É a vontade de manter os
vínculos afetivos, profissionais, ambientais, etc., que as faz refletir, e
não uma suposta coação advinda da prisão em si mesma. O cálculo
que elas fazem não tenta encontrar a incógnita contida na pergunta
“o que acontecerá comigo se eu for preso?”, mas sim, aquela presente
na questão “o que será da minha família; como eu passarei em outro
concurso...?” Sua atitude diante do cárcere é a de um temor reveren-
cial ambivalente misturado com uma crença desconfiada. Ao mesmo
tempo que ele não as assusta, elas temem a perda das suas garantias,
e idolatram a capacidade que ele tem de tranquilizar as suas vidas.
Porém, porque elas podem ser adesivadas ou não, é essa imprevisi-
bilidade que as angustia e determina a evitação de algumas atitudes
que facilitariam a aproximação do poder prisional. Elas confiam des-
confiando.
Apesar de não haver provas do efeito desestimulante da prisão,
a suposta incontinência psicológica do aprisionado, estampada em
uma folclórica teimosia a favor de uma carreira criminal, não será
desprezada como desculpa para facilitar e justificar falsamente a sua
prisão.

POLICIAIS CIVIS, DE ITUMBIARA, PRENDEM 2 COM ARMA E


CUMPREM MANDADO DE PRISÃO DE UM CONDENADO POR
ESTUPRO
Investigando crimes praticados em Itumbiara, com uso de arma
de fogo, Policiais Civis do 2º Distrito Policial daquele município
prenderam duas pessoas em flagrante na última sexta-feira, dia
28, por porte de arma. [...] O preso Thiago Emanuel Fonseca já
possui passagem por diversos crimes, como roubo, porte de arma
de calibre restrito, posse de arma de calibre permitido, tráfico,
associação ao tráfico e formação de quadrilha. [...] Comentários:
[omitido o nome do(a) comentarista] Se tem varias passagens é
porque não tem conserto, manda esses dois lixos pra vala que a

1  O Presente do Sistema prisiona  157


comunidade agradece. Lixos, vermes e vagabundos. Uma pena
que já já estão pelas ruas, se eu topa com eles, meto bala [sic]126.

Como o fato de fingir conseguir medir o desprezo do criminoso


pelos avisos que a legislação penal emitiu é capaz de prender as pes-
soas, mas não de evitar a prática de novos crimes, o poder prisional
precisa reinventar constantemente essa sua mentira. Contraditoria-
mente, para evitar que a ineficiência do sistema seja reconhecida
ele inverte esse mesmo defeito e o usa como argumento favorável à
sua manutenção no poder: ele atribui a falência da função prisional
à suavidade e à pequenez da sua atuação. Com isso, ele consegue
ampliar e endurecer cada vez mais o seu poder contra certos chama-
rizes, e sem oferecer qualquer benefício em troca.

VOCÊ ACHA QUE A LEI DEVERIA PUNIR COM RIGOR


AQUELES QUE PRATICAM CRIMES VIOLENTOS ANTES DE
COMPLETAR OS 18 ANOS?
Ou a punição deve mesmo só ser rigorosa após o que se conven-
cionou chamar de maioridade?
Comentários: [omitimos o nome do(a) comentarista]. [...] Com
certeza SIM. A impunidade que impera neste país é uma VER-
GONHA! E os menores infratores, devem pagar pelos crimes que
comentem, seja qual for. PENA MÁXIMA !!! Nossas LEIS são obso-
letas e inaceitáveis!!! Até quando??? Precisamos de LEIS rígidas,
severas URGENTEMENTE. [omitimos o nome do(a) comentarista].
ATENÇÃO,com certeza ja passo da hora, o que esses homens que
fazem as nossas leis estao esperando, acorda tem que punir pesa-
do logo é pra ontem , ontem acorda BRASIL. pelo amor , ninguem
mereçe tao grande lerdeza de voces. [omitimos o nome do(a) co-
mentarista]. [...] A lei penal deve ser bastante rigorosa, tanto para
os menores quanto para os maiores. Infelizmente isso não é o que
acontece no nosso país, temos um código penal que é uma pia-

126
Disponível em: <http://www.tvcaramuru.com.br/2014/04/01/policiais-
-civis-itumbiara-prendem-2-arma-cumpre-mandado-prisao-condena-
do-estupro/>. Acesso em 18 jun. 2016.
158  Manifesto para Abolir as Prisões
da, um verdadeiro põe bandido na rua. [omitimos o nome do(a)
comentarista] [sic]127.

Porém, por mais que tente, a prisão não consegue esconder a ob-
viedade da ineficiência dessa atitude. Plasmada no fato de que ou-
tros foram presos antes de um determinado aprisionado, justamente
para nele também incutir essa reverência psicológica à legislação.
Parece desnecessário perguntar por que isso não funcionou com ele,
e com muitos outros.

GRUPO DE JOVENS DEPREDA DELEGACIA EM MS PARA


LIBERTAR AMIGO PRESO
Segundo a polícia, 15 pessoas participaram e 5 foram presas em
flagrante.
Um dos jovens urinou na calçada e outro deixou várias marcas
de pneu.
Um grupo de 15 jovens entrou e depredou a delegacia de Polícia
Civil em Nova Alvorada do Sul, a 107 quilômetros de Campo Gran-
de. Segundo a polícia, eles queriam libertar o dono da festa onde
estavam por vender bebida alcoólica para adolescentes no últi-
mo domingo (20). [...] Cinco pessoas foram presas em flagrante. A
polícia já pediu a prisão de outras três. Todas vão responder pelos
crimes de dano qualificado, desacato, ameaça e tentativa de dar
liberdade a uma pessoa presa. O organizador da festa pagou fian-
ça e foi solto. [...] “Eles tomam essa atitude em razão de não ha-
ver respeito com a polícia. Os senhores pais dão muita liberdade,
muita condição financeira e na verdade não controlam”, afirmou
o delegado Christian Duarte Mollinedo128.

127
Disponível em: <http://noticias.r7.com/reporter-record/mural/voce-
acha-que-a-lei-deveria-punir-com-rigor-aqueles-que-praticam-crimes-
-violentos-antes-de-completar-os-18-anos-ou-a-punicao-deve-mes-
mo-so-ser-rigorosa-apos-o-que-se-convencionou-chamar-de-maiori-
dad/>. Acesso em: 18 jun. 2016.
128
Disponível em: <http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2015/
09/grupo-de-jovens-depreda-delegacia-em-ms-para-libertar-amigo-
-preso.html>. Acesso em: 18 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  159
Não bastasse a neutralidade motivacional exercida pela legisla-
ção, que é a inexistência de demonstração da capacidade de con-
vencer psicologicamente as pessoas a respeitá-la, ela provoca efeitos
colaterais adversos, todos considerados sempre bem-vindos pelo
poder prisional. A mesma lei que o policial usa para enquadrar o
afrodescendente, jovem e pobre como traficante, apesar de ele ser
muitas vezes apenas um usuário, ele utiliza para desendraquadrar o
eurodescendente, jovem e rico como traficante, apesar dele muitas
vezes sê-lo.
Em Ressurreição, Liev Tolstoi destila:

Uma criatura tão perigosa como a condenada de ontem – pensou


Nekliudov, atento a tudo quanto se passava diante de si. – Eles
são perigosos e nós não o seremos também? Pelo que me respei-
ta, sou libertino, femeeiro e mentiroso. E todos somos. Admitindo
que o rapaz que está sentado no banco dos réus seja um ser peri-
goso para a sociedade, agora que ele prevaricou, como devíamos
nós proceder para com ele? É evidente que não se trata de um
malfeitor, mas sim de um homem vulgar que se tornou naquilo
que é agora, somente quando se viu nas circunstâncias que a tal
o impeliram. Por isso parece evidente que, para evitar a existência
de tais rapazes, é preciso procurar destruir as circunstâncias em
que eles se formam.

Neste ponto, a perversão do que Fiódor Dostoiévski escreveu em


Os irmãos Karamazov não pareceria estar completamente certa: “Se a
lei não se aplica, então tudo é possível”129.
Na verdade, o raciocínio aqui seria inverso: de acordo com a lógi-
ca prisional, tudo é possível, inclusive a aplicação ou não da lei para
casos idênticos. Diante dessa ambiguidade legal, travestindo uma
permissibilidade por exclusão, em que tudo é permitido se não está
proibido, os policiais expandiram o seu poder. Eles passaram de só
estarem autorizados a fazer o que a lei determina e permite, a fazer
até mesmo o contrário do que ela proíbe.

129
Disponível em: <http://www.oantagonista.com/posts/a-malandragem-
-e-dostoievski>. Acesso em: 20 jun. 2016.
160  Manifesto para Abolir as Prisões
1.4.6.3 Ele previne especial e positivamente?
A questão da (re)socialização é tão complexa que os seus proble-
mas já começam com a sua própria nomenclatura. Nenhuma das pa-
lavras, seja socialização, ressocialização, reabilitação ou reintegração,
consegue atrair o consenso das pessoas, embora a maioria opte pelo
uso do vocábulo ressocialização. Esta opção tem uma consagração
temporal e geral porque historicamente ela tem permitido transferir
para o aprisionado e para a sociedade a ideia de que aquele está pre-
so em razão de ele não haver se socializado adequadamente. E por
sua culpa, é claro!
A questão da nomenclatura pode parecer ter uma pequena im-
portância, mas ela é decisiva na discussão da questão prisional. Ela
acaba influenciando não só subliminarmente as decisões estratégi-
cas e as atitudes reais dos operadores do sistema. Freudianamente,
quem cede nas palavras acaba cedendo nas coisas. Então, qualquer
nome que se dê ao que mentirosamente se tenta realizar com o apri-
sionamento servirá apenas para disfarçar a dor, o sofrimento e a uti-
lidade contrassocial da prisão. Todavia, mais importante ainda que
definir adequadamente as palavras, é descobrir o conteúdo que elas
escondem.
De seu lado, a aceitação do vocábulo socialização é inadequado
porque permite a infiltração de teorias que inventam um ser que,
embora vivendo em sociedade durante toda a sua vida, seria associal.
Seria mais ou menos como chamar de lunático um terráqueo.
Por outro ângulo, a aceitação do vocábulo ressocialização apre-
senta inconvenientes semelhantes porque ele admite a entrada de
afirmações que visam a demonstrar que o aprisionado não foi ade-
quadamente socializado. Ocorre que desde cedo a nossa socializa-
ção fica a cargo da própria sociedade, incluídas todas as pessoas com
quem temos contato – o que descarrega qualquer culpa nossa. Seria
como despejar uma criança em uma escola para que ela fosse esco-
larizada e depois culpá-la por ela não haver sido. De nada adiantará
transferir o inimigo conveniente para um espaço (prisão), que não
repete sequer em pequeníssima medida o modelo social usual a que
estamos acostumados – aquele em que convivemos com parentes,

1  O Presente do Sistema prisiona  161


amigos, inimigos, pessoas desconhecidas, transeuntes na rua, moto-
ristas, professores, colegas de sala, padeiros, cabeleireiros, vendedo-
res de loja, agricultores, etc. A prisão não pode ser considerada se-
quer uma microssociedade porque dentro dos muros prisionais não
há a maioria desses atores. Seria como tentar ensinar alguém a nadar
arremessando-o todos os dias em uma piscina sem água. E o que é
pior: devolvendo-o depois para a mesma sociedade que falhou com
ele em vários pontos. Sociedade esta que, inclusive, enquanto ele es-
tava segregado, desenvolveu técnicas sociais sobre as quais ele não
foi informado ou para as quais ele não está treinado. Se ele não foi
adaptado enquanto estava solto, é imaginável a dificuldade que ele
terá para compensar mais esta falta de recursos tecnológicos.
A palavra reabilitação também não é vantajosa porque ela carre-
ga uma carga preconceituosa, desagradável e vexatória que a vincula
a algum defeito. Socialmente ela dá a entender que o aprisionado é
inferior ou que ele não está capacitado para algo. É dizer que o en-
carcerado não tem alguma habilitação, alguma habilidade, quando
a sociedade e o Estado é que deveriam ter sido os responsáveis pela
sua capacitação e habilitação, natural ou artificial (próteses).
Não se pode cobrar de uma criança que ela seja responsável pelo
desenvolvimento das suas inteligências. Essa capacitação também
não pode ser cobrada de seus pais, se eles não foram igualmente
habilitados pela sociedade e pelo Estado. Nesse redemoinho social
depreciativo, a sociedade e o Estado, desamparando certas classes
sociais, perpetuam no tempo estas deficiências, que são passadas de
geração a geração. A longo prazo, este despreparo acaba ganhando
autonomia, assumindo o status de demérito e apagando a responsa-
bilidade da sociedade e do Estado pelo destino desses infelizes.

MERITOCRACIA, OS DE CIMA SOBEM, OS DE BAIXO DESCEM


Tenho uma amiga que é arquiteta em uma empresa de constru-
ção civil. Recentemente ela me contou que a empresa abriu uma
vaga para empregar um jovem. Participaram do processo de se-
leção três jovens. Dos quais apenas um compareceu pontual-
mente no horário marcado para entrevista. Os demais chegaram
atrasados. Curiosamente o que compareceu pontualmente é o

162  Manifesto para Abolir as Prisões


que mora mais distante, e o mais pobre deles. A empresa optou
por contratar o jovem que não se atrasou, dentre outros moti-
vos, considerou sua história pessoal. Pobre, mora na periferia,
primeiro emprego, prometeu ajudar a mãe com o salário. Mas
aconteceu uma dificuldade. O jovem deixou apenas um núme-
ro de celular para contato, e a empresa, por uma semana, ten-
tou contatá-lo. Sem sucesso, até deixou recado na caixa postal,
mas não houve retorno. Ligou em estabelecimentos comerciais
próximos ao endereço residencial dele e por fim teve a ideia de
ligar na escola aonde ele estuda, explicou toda a situação, po-
rém… Pasmem! A escola informou que não passa recado. Isso
me deixou profundamente contrariado. A escola, que deveria
ser a primeira a se empenhar para contribuir para a mudança, no
sentido de oferecer oportunidade, para aquele jovem e mudar
sua vida, se mostrou inerte. Indiferente, apática. Foi então que
solicitei o número do celular deixado pelo jovem e, no final de
semana, fiz algumas ligações. Após algumas tentativas ele aten-
deu. Expliquei o que estava acontecendo, disse-lhe para com-
parecer na segunda-feira no local aonde havia feito a entrevista,
portando seus documentos pessoais, pois havia sido seleciona-
do. Ele, após um momento de euforia, me disse: – Meu celular é
ruim, não toca, só acende a luz e às vezes eu não vejo. Enfim, o
moço já está trabalhando. Relatei esse fato para demonstrar até
onde chegam os estorvos que um jovem pobre enfrenta. Tem
negado até um simples e importante recado. Por alguém que,
em princípio, tem o dever de conduzi-lo130.

Além disso, o uso desse vocábulo (reabilitação), pode atrair uma


etiologia patológica na medida em que ele transmite a ideia de que
as pessoas criminosas são doentes, portanto, consideráveis uma
praga contagiante. O grande problema é que esse rótulo de morbi-
dade vade mecum induz a um determinismo biológico que camufla
outro social, econômico e ambiental. De sorte que, quem nasceu
para ser criminoso inevitavelmente o será perpetuamente, e, quem
for seu descendente, criminoso será por herança genética, social e

130
Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/gerson-
-carneiro-meritocracia-os-de-cima-sobem-e-os-de-baixo-descem.
html>. Acesso em: 28 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  163
prisional. Daí para a antecipação dos juízos de criminalidade me-
diante a valorização precipitada de experimentos com cromosso-
mos supostamente reveladores de uma carga criminosa transmiti-
da, é um pulo.
Por fim, o uso da palavra reintegração igualmente não satis-
faz. Ela não consegue se separar da sua própria contradição que
a constrange: como pode não ser absurdo um aprisionamento
que vise à reintegração de uma pessoa que sempre fez parte, que
sempre integrou uma sociedade? Na verdade, a desintegração
começa a partir do seu confinamento, mediante um método de
exclusão por inclusão na instituição total, que dá seguimento ao
projeto estatal-prisional desenhado para a sua vida. Não bastasse,
ela é ilusionista ao fingir tentar reintegrar o egresso à mesma so-
ciedade que o despejou.
Além de não (re)socializar os seus internos, a prisão reproduz a sua
clientela, renovando o seu almoxarifado de inimigos convenientes.
Outro aspecto inconveniente de qualquer dessas nomenclaturas
diz respeito à realização de atividades remuneradas, pelo preso. Ain-
da que incentivado pela remição e defendido como um melhorador
do encarcerado, o trabalho nas prisões brasileiras acaba repetindo
as mesmas técnicas de condicionamento e exploração útil e conve-
niente dos corpos dos inimigos. O que se pretende com ele é não só
lucrar financeiramente, mas devolver seres laboralmente desprepa-
rados para a sociedade a fim de que nela não permaneçam por muito
tempo e acabem retornando para a prisão.
Dentro de toda essa aliteração (ressocialização, reeducação, rein-
tegração, reabilitação, etc.), o único prefixo “re” que a prisão admite
é aquele que encabeça o vocábulo reprodução, consistente na sua
capacidade de ampliar seus admiradores e clientes. Nessa espécie de
iatrogenia autoalimentante a prisão finge tentar resolver o problema.
Na realidade, acaba piorando-o.
Porém, mais importante do que definir o vocábulo correto é en-
tender que todos são imprestáveis. Todos tentam defender uma es-
tratégia punitiva que não tem salvação: a da prisão.

164  Manifesto para Abolir as Prisões


1.4.6.3.1 A não (re)socialização como culpa do Estado
Com o desmonte dos Estados de bem estar social e com o
crescimento do Estado prisional houve um desabastecimento
dos programas sociais que socorriam as classes mais desfavo-
recidas. Passou a faltar-lhes condições básicas nas áreas da edu-
cação, saúde, segurança, transporte, salário, emprego, etc. Essa
desatenção do Estado foi imposta a mais de uma geração, tendo
as seguintes acumulado à própria desgraça os infortúnios rece-
bidos dos seus ascendentes.
A vitaliciedade se aliava à hereditariedade, sem haver qualquer
mobilidade social entre as classes. Até hoje quem nasce desprovido
de rentabilidade, morrerá sem ela; e quem nasce provido de capital,
falecerá possuindo-o, e em quantidade suficiente para tranquilizar
financeiramente os seus consanguíneos. A perpetuidade e a trans-
missibilidade da condição social acabam prolongando e dilatando
também o olhar do poder prisional sobre determinado inimigo que
ele entende pertencer ao grupo estereotípico que ele já aprisionou.
Isso significa que o poder aprisionador sempre retira das mesmas
classes sociais a sua clientela.
Desde essa perspectiva são os vulneráveis estético (feios, esqui-
sitos, etc.), econômico (desprovidos de capital), e político (sem influ-
ência), os mais perseguidos, os mais denunciados, os mais acusados,
os mais culpabilizados, os mais condenados e os mais presos. Pelo
menos para o poder prisional isso tem a vantagem de atribuir à sua
seletividade um ar de habitualidade e homogeneidade. O reflexo
disso, inclusive na classe mais perseguida e enjaulada, é a considera-
ção de que se assim sempre ocorreu é porque há certa normalidade,
certa naturalidade nessa atitude. E o que é natural geralmente não
pode ser modificado ou contestado. Diante de tantas evidências só
nos caberia, então, a resignação. Ou melhor, a solicitação de socorro
à prisão.

1  O Presente do Sistema prisiona  165


NEGROS E HISPÂNICOS TÊM MAIOR PROPENSÃO PARA O
CRIME
Juíza nomeada pelo ex-presidente Ronald Reagan e que é favorá-
vel a pena de morte diz que negros e hispânicos têm maior pro-
pensão para o crime.
[...] Durante uma conferência na Faculdade de Direito da Universi-
dade da Pensilvânia, Edith Jones, uma juíza do Texas, apresentou
uma teoria: os “afro-americanos e hispânicos têm maior propen-
são para o crime”. [...] Denegrindo o sistema judicial do México,
que acabou com a pena capital em 2005, a juíza afirmou que
“qualquer mexicano preferiria estar no corredor da morte, aguar-
dando a execução nos EUA, do que numa prisão mexicana131.

O equívoco desse entendimento é desconcertante quando anali-


samos o volume de crimes conduzidos por pessoas favorecidas, e a
quantidade de autores.

SONEGAÇÃO DOS RICOS ROUBA 200 BI EM CINCO MESES


Valor supera todos os escândalos de corrupção mais conhecidos
e ultrapassa até o que seria necessário para o ajuste fiscal em dis-
cussão no Congresso.
[...] Valor supera todos os escândalos de corrupção mais conheci-
dos e ultrapassa até o que seria necessário para o ajuste fiscal em
discussão no Congresso (R$ 80 bi). “Como se não bastasse, vemos
uma elite muito bem acomodada e grandes corporações abo-
nando a continuidade desse sistema anacrônico, enquanto surru-
piam o erário público por meio da sonegação fiscal. E assim, em
apenas 5 meses, o painel digital Sonegômetro já registra um rom-
bo de 200 bilhões.” [...] Para ficar bem claro, é importante ressaltar
que dos 500 bilhões sonegados em 2014, mais de R$ 400 bilhões
passaram por operações sofisticadas de lavagem de dinheiro. Isso
representa 3546 vezes o valor declarado do Mensalão (R$ 141 mi-
lhões); 240 vezes o custo da operação Lava-Jato (R$ 2,1 bilhões)

131
Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/06/ne-
gros-e-hispanicos-tem-maior-propensao-para-o-crime.html>. Acesso
em: 19 jun. 2016.
166  Manifesto para Abolir as Prisões
e 26 vezes o que até agora se descobriu na operação Zelotes (até
agora avaliado em R$ 19 bilhões)132.

Como a interpretação dos fatos aparenta ser perigosamente bas-


tante convincente, depois de algum tempo essa naturalização, que
não passa de um processo de maquiagem da artificialidade, conver-
te-se em algo mais perigoso que uma mera expectativa. Ela se torna
uma verdade: a de que os crimes e as pessoas desprovidas de ca-
pital são indissociáveis, haja vista o intenso e extenso contato entre
ambos. Acreditar que esses grupos são mais presos porque eles real-
mente são os inimigos passa a ser uma conexão inevitável.

AS CRIANÇAS NEGRAS TÊM O AZAR DOS MAL-ENTENDIDOS


SEMPRE ACONTECEREM COM ELAS
Jonathan Duran, pai do menino discriminado em uma loja na lu-
xuosa rua Oscar Freire, em São Paulo, foi certeiro ao lembrar no
que o preconceito pode resultar. No último sábado (28/03) ele viu
o filho negro de 8 anos ser praticamente expulso por uma ven-
dedora de frente da loja Animale, sob a justificativa de que não
poderia vender coisas ali. “Provavelmente vão dizer que foi um
‘mal-entendido’ (mesmo quando as crianças negras têm o azar
dos mal-entendidos sempre acontecerem com elas). No entan-
to, minha preocupação é quando o ‘mal-entendido’ não é mais
com uma vendedora de uma loja, mas com um policial armado”,
desabafou em sua página no Facebook. O temor de Duran ao fa-
lar da polícia não é exagero de pai comovido por ver o filho dis-
criminado. Das vítimas de homicídio no Brasil com idades entre
15 e 29 anos, 77% são negras. Quantas delas foram mortas por
causa de avaliações precipitadas de policiais ou outros agentes
de segurança, que associam a pele escura e outras características
físicas à criminalidade? Poucas é que não foram. A pesquisa “Fil-
tragem racial: a cor da seleção do suspeito”, do professor e oficial
da Polícia Militar de Pernambuco Geová da S. Barros, constatou
que 65,03% dos profissionais percebem que os pretos e pardos

132
Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Sonega-
cao-dos-ricos-rouba-200-bi-em-cinco-meses/4/33545>. Acesso em: 19
jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  167
são priorizados nas abordagens. “Com certeza, existe realmente
essa discriminação no ato da abordagem. Numa simples aborda-
gem você vai discriminar, não sei o porquê, mas a preferência da
abordagem é, com certeza, a pessoa de cor, o negro”, afirmou um
tenente entrevistado na pesquisa. [...] Comentários: [omitimos o
nome do(a) comentarista] [...] os negros cometem mais crimes
que os brancos. Você não tem como negar. O índice de crimina-
lidade e muito maior entre a população negra. Basta você com-
parar a criminalidade num bairro habitado majoritariamente por
negros e outro habitado por brancos. Você não pode colocar tudo
na conta do preconceito. Sinto muito, mas são os fatos, você não
poderá acusá-los de preconceito. Em qualquer lugar do mundo
onde haja população negra, os bairros por eles habitados são os
mais violentos do país. Você pode pesquisar na França, EUA, Brasil
a África do Sul. A recém “libertada” África do Sul e simplesmente o
país mais violento do mundo [sic]133.

Repetirão alguns que os afrodescendentes são criminosos desde


a escravatura até hoje, não podendo ser culpa apenas da falta de re-
cursos, mas de um traço da sua personalidade. E mesmo que a culpa-
da fosse a sua condição financeira, a habitualidade criminal está tão
entrelaçada em seu caráter, que ela já se cromossificou, passando a
ser genética e inevitável. Ocorre que estas são afirmações desatentas
e precoces que tentam justificar o senso comum que acredita que
o crime tem autoria detectável previamente. E para a raríssima hi-
pótese dessa técnica não convencer, o poder prisional lança mão de
exemplos isolados de afrodescendentes de sucesso. Tudo para vali-
dar a tese de que aqueles são criminosos porque querem.

A MÃE DE JOAQUIM BARBOSA TAMBÉM NASCEU


ANALFABETA! E NÃO DEU À LUZ UM MESSIAS DE ARAQUE!
A VEJA desta semana traz na capa a imagem de um menino ne-
gro, de olhar severo e altivo. É Joaquim Barbosa, hoje ministro do

133
Disponível em: <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/as-crian-
cas-negras-tem-o-azar-dos-mal-entendidos-sempre-acontecerem-
-com-elas/>. Acesso em: 19 jun. 2016.
168  Manifesto para Abolir as Prisões
Supremo Tribunal Federal, aos 14 anos. Num país acostumado à
impunidade, ao “isso não vai dar em nada”, ele se tornou uma jus-
ta referência. Segue trecho da reportagem de Hugo Marques e
Laura Diniz. Lula estava certo: um ex-garoto pobre viria a simbo-
lizar a esperança, e falta muito para que cheguemos lá, do fim da
impunidade no Brasil. A mãe de Joaquim Barbosa, leitor amigo,
a exemplo da sua e da minha, também “nasceu analfabeta”. Aca-
bou dando à luz um futuro ministro do Supremo, obcecado pela
leitura e pelo estudo, não um Messias de araque… O menino Jo-
aquim Barbosa nunca se acomodou àquilo que o destino parecia
lhe reservar. Filho de um pedreiro, cresceu ouvindo dos adultos
que nas festas de aniversário de famílias mais abastadas deveria
ficar sempre no fundo do salão. Só comia doces se alguém lhe
oferecesse. Na última quarta-feira, o ministro Joaquim Barbosa,
58 anos, apresentou seu voto sobre um dos mais marcantes capí-
tulos do julgamento do mensalão – o “last act (bribery)”, “último
ato (suborno)”, como ele anotou em inglês no envelope pardo
que guardava o texto de sua decisão. Além do português, Barbo-
sa domina quatro idiomas – inglês, alemão, italiano e francês134.

É nesse ambiente trágico pré-montado que se desenvolvem as


crianças que logo serão arrebanhadas pelo poder prisional. E que
nelas instalará um rastreador, para depois montar as armadilhas e
ficar de tocaia. Apanhadas nas arapucas prisionais, elas são submeti-
das a uma intensificação do destreinamento que as acompanhou a
vida toda. E novamente pelo Estado, que deveria abastecê-las com
oportunidades assemelhadas às dos favorecidos, neutralizando ou
pelo menos amenizando a dramaticidade do seu destino. Esquecidas
pelas políticas públicas, continuarão esquecidas dentro da prisão. Já
deve ter restado evidente que o Estado não está interessado em (re)
socializar os enjaulados. Se estivesse, agiria preventivamente, e não
repressivamente.

134
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/a-mae-
-de-joaquim-barbosa-tambem-nasceu-analfabeta-e-nao-deu-a-luz-
-um-messias-de-araque/>. Acesso em: 19 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  169
Tal como entendeu Nekhliúdov em Ressurreição, de Liev Tolstoi:
[...] Nada fazemos para destruir as condições que produzem es-
tes seres e fomentamos até a existência de estabelecimentos
tais como fábricas, oficinas, tabernas e prostíbulos, onde se de-
senvolvem. Não só não destruímos esses lugares como até os
consideramos imprescindíveis, os apoiamos, regularizando a
sua marcha. E é desta maneira que educamos milhões de seres.
E quando aprisionamos um, julgamos que fazemos bem à socie-
dade, acreditamos que já nada mais se exige de nós depois de os
termos transferido da província de Moscou para a de Irkitsk.” [...]
“Se empregássemos pelo menos a centésima parte dos esforços
para ajudar as criaturas abandonadas que apenas consideramos
como corpos e mãos indispensáveis para as nossas comodidades
e para a nossa tranquilidade! Bastava que alguém tivesse tido
pena e ajudado esse rapaz quando o pai o mandou para a cidade,
movido pela necessidade, ou então quando, depois de doze ho-
ras de trabalho na fábrica, ia distrair-se na taberna em companhia
de operários mais velhos do que ele. Se então alguém lhe tivesse
dito: ‘Não vás, Vânia, não deves fazer isso’, teria atendido essas pa-
lavras, não se teria pervertido e nunca teria chegado a roubar”, di-
zia Nekliúdov para si mesmo, olhando para aquele rosto doentio
e assustado. Não encontrou porém, uma só pessoa que demons-
trasse dó dele, enquanto viveu na cidade como um animalzinho,
na época da sua aprendizagem, durante a qual, como o cabelo
cortado à escovinha para não criar piolhos, fazia os recados para o
mestre. Pelo contrário, tanto este como os seus companheiros de
trabalho afirmavam que não fazia mal enganar os outros, beber,
vagabundar, lutar e entregar-se aos vícios. [...]

Para ele é interessante desabastecer o ensino, a alimentação, o


trabalho, etc, de algumas pessoas descartáveis porque é somente na
condição de desprovidas do mínimo necessário à sobrevivência que
elas interpretarão a personagem do inimigo conveniente, confor-
mado e nada resistente. Somadas aos criminosos com atipia mental
(alguns assassinos em série, etc.), elas compõem a massa cujo encar-
ceramento servirá para sustentar a retórica indigesta do seu discurso
configurador mais poderoso: a que afirma que a prisão é a única saí-
da para a tranquilidade e a continuidade da sociedade.

170  Manifesto para Abolir as Prisões


Isso não representa uma falha na socialização dos futuros inimi-
gos convenientes porque não podemos confirmar que essas pessoas
vulneráveis não tinham contato com outras, ainda que também fragi-
lizadas. Porém, é sim uma abstinência estatal grave o suficiente para
comprometer todo o seu futuro como pessoa excluível da prisão.
Ainda que junto com a família – que nem sempre tem condições
de emergir da lama, puxando-se pelos próprios cabelos –, o Estado
e a sociedade são responsáveis por assegurar à criança, ao adoles-
cente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comuni-
tária, além de dever colocá-las a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Embora
estas sejam obrigações expressamente previstas no caput do artigo
227 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, qua-
se nenhuma delas é respeitada quando o destinatário é uma criança,
um adolescente ou um jovem morador da periferia. Talvez fosse mais
prudente tentar indicar quais desses direitos são atendidos. Ainda
assim, a disponibilidade de um ou outro a favor dos necessitados
certamente terá sido reduzidíssima e infrequente. A convivência co-
munitária, que deve ser garantida pelo Estado e pela sociedade, não
será um direito pleno enquanto faltar todos os demais. Além disso, a
autorreferência ufanista dos moradores da periferia, denominando
sua localidade como comunidade, não é suficiente para o atendi-
mento do dever constitucional. De consequência, as condutas crimi-
nosas dos seus habitantes devem ser reconstruídas até o início, onde
se originou toda a sua desgraça. Percurso e momento estes em que o
Estado os abandonou à própria sorte.
A partir daí, em vez de potencializarmos a falta de atenção esta-
tal mediante o aprisionamento, é preciso compensar todas as defici-
ências que o preso foi obrigado a suportar. É preciso elaborar o seu
dano, juntamente com o da sua vítima, e não acentuá-los. Mas, infe-
lizmente, é o que tem acontecido. Além de o Estado e a sociedade
deixarem uma grande parcela da sociedade à míngua de políticas
públicas, cujo fornecimento evitaria a maior parte dos nossos pro-
blemas criminais, eles têm a desfaçatez de usar essas pessoas que

1  O Presente do Sistema prisiona  171


eles mesmos debilitaram como desculpa para facilitar o seu trabalho
de atender à demanda por ordem do momento. Depois de negarem
quase tudo aos vulneráveis, eles os despejam em uma prisão e co-
bram deles uma autonomia que reverta toda a sua condição defici-
tária.
Mais do que coculpáveis – junto com uma família que é tão vítima
quanto o encarcerado –, o Estado e a sociedade são os grandes res-
ponsáveis pela falta de oportunidades subtraídas daquele que será
arremessado em um lugar claustrofóbico com a finalidade de que se
(re)socialize. Como é possível consertá-lo ou permitir que o preso se
autorreforme se as condições prisionais repetem a falência e a ausên-
cia estatal que o acompanharam a vida toda? A resposta a essa per-
gunta está no limite máximo tanto da vergonha quanto do absurdo.

METADE DOS PRESOS DE SÃO PAULO É REINCIDENTE [...]


Na avaliação de Mauro Rogério Bittencourt, coordenador de
Reintegração Social e Cidadania da Secretaria de Administração
Penitenciária (SP), “quando se fala em um índice de 50% de rein-
cidência, isso não é culpa exclusiva do sistema prisional, que não
está conseguindo reintegrar estas pessoas. A culpa é desde a in-
fância, quando essa pessoa não teve uma série de serviços, até o
momento em que ela foi presa. E a sociedade tem que começar a
perceber que esta pessoa está presa e vai voltar, não vai ficar mais
de 30 anos presa. E quando ela volta, ela volta porque cumpriu
a pena, porque ela tem uma decisão judicial que fala que ela já
pode viver em sociedade. Se a sociedade não perceber que ela
tem que abrir as portas para essas pessoas e não der oportunida-
des para elas poderem se reintegrar, elas vão voltar [ao crime]. E
quem paga isso? É a própria sociedade, que paga não só o custo
financeiro, quanto o custo social, porque para cada um dos 50%
que voltaram para a prisão, foi cometido um delito [sic]135.

135
Disponível em: <http://carceraria.org.br/metade-dos-presos-de-sp-e-
-reincidente-indica-estudo-feito-por-jose-de-jesus-filho.html>. Acesso
em: 27 abr. 2016.
172  Manifesto para Abolir as Prisões
1.4.6.3.2 Quanto pior, melhor. A teoria da regressão e a less
eligibility136
A prisão é um estabelecimento que aplica uma técnica de robo-
tização, destreinamento e infantilização. Ela serve perigosamente
como cortina de fumaça atrás da qual o poder punitivo esconde um
espetáculo macabro, encenado por pessoas escolhidas para alimen-
tarem a desculpa de que o Estado é necessário para que possamos
ter segurança e tranquilidade. Ela é mais uma ilha da esteira produti-
va fordista apta a concluir intramuros a invisibilidade e a neutralida-
de social não só do preso, mas de quem lhe é próximo. A sua família e
as gerações futuras serão os avalistas dessa sua dívida prisional.

INOCENTES CONDENADOS: FILHOS DE DETENTOS SOFREM


COM O PRECONCEITO
O dia nem amanheceu e o alvoroço no portão da penitenciária já
é grande. Carregadas com sacolas cheias de comida, centenas de
mulheres – esposas ou parentes dos presos – dão os últimos reto-
ques no visual antes de passar pela revista. Dezenas de crianças
brincam na calçada, ao lado das barracas que serviram de abrigo
na noite anterior. É dia de visita no Centro de Detenção Provisória
de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. A excitação daquele mo-
mento esconde a dura realidade das mulheres e filhos dos mais
de 1,8 mil detentos do local. Vítimas de um crime que não come-
teram, as crianças mal sabem por que os pais estão naquele lugar,
mas conhecem bem o estigma que carregam. Quando o domin-
go acaba, a maioria acha melhor mentir para os amigos da escola
sobre a situação do pai. Ninguém gosta de ser apontado como
“filho de bandido”. Juliana, de 8 anos, diz para os colegas e profes-
soras que o pai está viajando. “Tenho vergonha de dizer que ele
está preso e não quero que tirem sarro de mim”, conta baixinho,
deitada no colo da mãe. O pai dela aguarda julgamento há 5 me-
ses por assalto. Ivone, a mãe da garota, conta que o marido era
muito presente na comunidade e que todos estranharam quando

136
Teoria que sustenta que a condição experimentada pelo encarcerado
tem que ser pior que a do mais miserável dos homens livres.
1  O Presente do Sistema prisiona  173
ele sumiu. “Tem discriminação, por isso não contei pra quase nin-
guém. Não quero que minha filha sofra”, lamenta137.

Nem que seja parcelando o seu pagamento a perder de vista:

ESPOSA DE TRAFICANTE É PRESA APÓS ASSUMIR “BOCA DE


FUMO”, DIZ POLÍCIA
Renata Alves Xavier, 24 anos, foi presa em flagrante em Porto Na-
cional.
Ela é suspeita de comandar o tráfico após a prisão do marido.
A esposa de um traficante foi presa suspeita de comandar uma
“boca de fumo”, em Porto Nacional, a 66 km de Palmas. A prisão
de Renata Alves Xavier, 24 anos, aconteceu na tarde desta quarta-
-feira [...]. Ela é esposa de Beyle Pereira de Carvalho. Segundo a
Polícia Civil, após a prisão dele Renata assumiu o ponto de venda
de drogas138.

O nível precário e inadequado da estrutura prisional, o lay-out


voltado para a claustrofobia do preso, o enjoo advindo da excessi-
va monotonia, o estresse provocado pela obediência indefectível e o
perigo incansável conduzem o encarcerado a um ritmo que varia da
apatia à fúria. Tudo é calculado para regredir o confinado, deixando-
-o ainda mais suscetível à vontade do capital ou aos holofotes do po-
der prisional.
As condições desumanas de sobrevivência intramuros, piores que
a da classe mais desprivilegiada, seja ela trabalhadora ou não, servem
para adestrar os corpos, ao supostamente promover um efeito deses-
timulante da criminalidade e estimulante da aceitação do ambiente

137
Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2010/12/
inocentes-condenados-filhos-de-detentos.html>. Acesso em: 19 jun.
2016.
138
Disponível em: <http://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2014/07/
esposa-de-traficante-e-presa-apos-assumir-boca-de-fumo-diz-policia.
html>. Acesso em: 19 jun. 2016.
174  Manifesto para Abolir as Prisões
insuportável da fábrica. Servem ainda para ensiná-los a extravasar a
sua revolta contra as pessoas do lado de fora, disparada a partir da
sua libertação.

EM RONDÔNIA: MATADOR DE AGENTE PENITENCIÁRIO É


SENTENCIADO À MORTE
Ex-apenado que diz ter sido agredido por agente penitenciário,
quando estava preso, se vinga de tapas matando o suposto autor
das agressões – o agente penitenciário Jobson Souza Silva, de 31
anos de idade. Preso, o acusado agora corre risco de ser assassi-
nado dentro do presídio. “Ameaças foram feitas por agentes peni-
tenciários na noite de anteontem”, diz PM139.

Na prática a less eligibility tem sido levada tão ao extremo que é


inevitável que ela produza um desvio secundário. Ninguém sairá da
prisão e agradecerá o tratamento violento e cruel que recebeu. O
único desejo que habita a mente do prisioneiro maltratado é o de
desforrar os excessos da prisão, cometendo crimes (desvio secundá-
rio). Ao fazê-lo contra as outras pessoas ele acaba encontrando uma
razão que explique, de frente para trás, a dor sofrida na cadeia – e,
muitas vezes, o seu próprio aprisionamento. Essa é a única manei-
ra de compensar-se, ainda que tardiamente. E poderia ser diferente?
Obviamente que não. Este é um círculo vicioso que parece nunca ter
fim. E, embora comece na fábrica, passe pela prisão, e volte para a fá-
brica, o sofrimento que ele provoca só tende a aumentar e a alcançar
mais e mais pessoas.
Apenas Edmond Dantés vive feliz para sempre depois de se vin-
gar de Fernand Mondego, que ajudou a acusá-lo injustamente. Fora
da novela de Alexandre Dumas, o desfecho não é tão romântico. Se
uma pessoa é presa em razão de uma acusação injusta, e mesmo que
ela sofra toda sorte de abusos na prisão, no momento em que ela se
vinga ela autorrealiza a profecia que previa que ela era mesmo uma
pessoa criminosa perigosa, disposta a praticar qualquer crime. Neste

139
Disponível em: <http://ariquemesonline.com.br/noticia.asp?cod=263
098&codDep=31>. Acesso em: 28 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  175
instante, além de ela poder ser presa novamente, ela convence as
pessoas de que o poder prisional age corretamente quando efetua
prisões sem acusação, sem culpabilidade, sem condenação e até sem
crime. Nesse ritmo, as mentiras que o poder prisional conta vão se
convertendo em verdades, e justamente porque a possibilidade da
comprovação dos seus defeitos é transferida para outro espaço e ou-
tro tempo.
Não é sensato esperar que uma pessoa que não obteve atenção
social, quando lançada em um ambiente dissociativo, dele saia (re)
socializado. Seria como obrigar uma criança que não foi alfabetiza-
da a trabalhar em uma indústria e, depois de anos, esperar que ela
vá embora discutindo matemática, física, biologia, química e línguas.
Apesar de ser um contrassenso, esse é o plano: regredir todos os seus
clientes para que, uma vez do lado de fora, possam aterrorizar as
pessoas, induzindo-as a votar em políticos que pautem suas agen-
das a favor do populismo penal falsamente tranquilizante. Mas, se
o motivo do encarceramento é irrelevante, pois todos são lançados
na mesma sela, e se os presos experimentam as mesmas influências
promovidas pelo isolamento social, por que, em tese, uns reagem de
uma maneira, reincidindo, e outros de outra, (re)socializando-se?
Não se deve analisar a reincidência ou não, a (re)socialização ou
não, apenas a partir de uma atitude do egresso. Inúmeros fatores
atuam no aprisionamento ou não de uma pessoa: a) o quanto ela
representa o inimigo conveniente; b) a quantidade de influência que
ela pode transmitir (político figurão ou favelado desempregado); c) a
quantidade de resignação ou inconformismo que ela produz (men-
digo drogado ou jovem branco playboy); d) quanta coordenação o
agente responsável pela prisão é capaz de emitir (policial justiceiro,
por exemplo); e) quanta subordinação o agente responsável pela pri-
são é capaz de suportar (policial indiferente, por exemplo); e f) a hos-
pitalidade ou a hostilidade dos ambientes que o inimigo frequenta
(Congresso Nacional ou periferia).
Não bastasse, a piora do condenado (regressão), exerce um efeito
hipnotizante sobre as pessoas do lado de fora. Quanto mais vezes o
criminoso é preso, mais os espectadores acreditam na sua periculo-

176  Manifesto para Abolir as Prisões


sidade. E mais eles vão desprezando o efeito configurador e iatrogê-
nico da carceragem.

O HORROR, MARIA DO ROSÁRIO! MENORES ESTUPRAM,


CORTAM, FURAM E JOGAM DE PENHASCO QUATRO
ADOLESCENTES
[...] Cinco homens participaram. Quatro deles, todos menores de
idade, já foram apreendidos. Segundo o delegado, eles são co-
nhecidos na cidade e – oh, surpresa! – já possuem diversas pas-
sagens pela polícia. [...] Comentários: [omitimos o nome do(a) co-
mentarista] Isso e no mínimo bárbaro, doentil, estamos voltando
amizade medieval pois nem os homens das cavernas faziam isso,
inescrupuloso e acontece livremente dentro de uma sociedade
“civilizada” e o pior totalmente evitável, porque de quantas pas-
sagens são necessárias para que alguém seja preso neste pais ? A
justiça é falha e quem paga por isso são os cidadãos. Prisão perpé-
tua e pena de morte violam os direitos humanos ? Na minha opi-
nião não, não para quem comete esse tipo de atrocidade [sic]140.

De nada adiante desejar ser uma pessoa melhor se o poder prisio-


nal e a sociedade, que são implacáveis, conspiram em sentido con-
trário. O que importa é que as condições sub-humanas da carcera-
gem não terão qualquer efeito preventivo, servindo apenas: a) para
demonstrar a uma população sádica que ele está sofrendo mais do
que sofreu a vítima (less eligibility); b) para reaproveitar a matéria pri-
ma (criminoso reincidente em razão da regressão), que será reciclada
para a manutenção do poder da prisão; e c) para adestrá-lo a suportar
as condições desumanas impostas às pessoas que o mercado de tra-
balho considera descartáveis.
Em A insubmissão, Liev Tolstoi escreveu que “quando a guerra
constitui uma constante ameaça, não vale a pena que as condições

140
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/
cultura/o-horror-maria-do-rosario-menores-estupram-cortam-furam-
-e-jogam-de-penhasco-quatro-adolescentes/>. Acesso em: 20 jun.
2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  177
sociais sejam melhoradas.” Descontextualizada pelos gestores do sis-
tema penal, ela tem gerado um impacto negativo gradiente na con-
dição dos membros de uma sociedade envolvida em uma fracassada
guerra às drogas, com um reflexo ainda mais agravador na situação
dos encarcerados. Piorando a situação da pessoa livre mais desassis-
tida, piorará a de todos os presos. E não é difícil prever que a less
eligibility sempre piorará. De consequência, piorando a dos presos,
por um efeito comparativo, voltará a piorar a da pessoa livre mais
desassistida, pois esta, provavelmente, será um egresso do sistema
penitenciário, ou um familiar seu. Com isso, o ciclo dessa disputa não
tem fim.

1.4.6.3.3 O (RDD) Regime Disciplinar Diferenciado


Perto da metade do século XX teorizou-se o retrato cotidiano que
os pobres da Inglaterra do século XIX experimentavam. Argumentou-
-se que o padrão de vida das classes mais pobres da sociedade era
uma barreira eficaz contra qualquer reforma penitenciária que pre-
tendesse, melhorando a situação da prisão, permitir aos presos usu-
fruir uma condição de sobrevivência superior a daquelas141. A vida na
prisão nunca poderia ser melhor que a pior condição experimentada
pelas pessoas livres.
O que era para ser um limite, já horrível e inadequado desde o iní-
cio, converteu-se em uma tragédia oportunista. Capitulando diante
do Estado e visando a reconhecer a que ofereceria as piores condi-
ções, a concorrência entre a sociedade e a prisão serviu para criar um
efeito de rotação descendente cuja dominação é alternada ora por
uma, ora pela outra. Através desse remoinho a situação horripilante
oferecida ao preso e ao pseudocidadão nunca chega ao fim, mudan-
do apenas de carrasco. Como que envolvidos em uma rosca de Arqui-

141
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. In: Cole-
ção pensamento criminológico, n. 3., 2ª. ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC,
2004, p. 207: “Os criminólogos da escola reformista moderna mantive-
ram a velha noção de que o nível de vida dentro da prisão deve ser mais
baixo do que o nível mínimo fora da prisão.”
178  Manifesto para Abolir as Prisões
medes circular eles são deslocados de uma posição para outra sem,
contudo, perderem a sua desgraçada condição.
A piora das condições sociais exige a piora das condições prisio-
nais que, por sua vez, exige a piora daquelas. Como essa é uma dis-
puta sem linha de chegada, cada renovação da liderança, seja pela
prisão, seja pela sociedade, requenta os terríveis interesses do Estado
punitivo que se felicita em atiçar a revolta popular.
A partir desse pêndulo, aproveitando-se da visão aristotélica
de que fazer o pior pode ser a melhor decisão a ser tomada e in-
satisfeito com a less eligibility que a prisão já oferecia, o legislador
brasileiro resolveu inaugurar o RDD. Ou seja, o fato de que as con-
dições experimentadas pelos presidiários devem ser piores que a
situação imposta à classe livre mais desfavorecida (less eligibility)
não tem impedido que aqueles sejam ainda mais prejudicados do
que já são, ao contrário, tanto que o RDD – e seu sucessor o (RDM)
Regime Disciplinar Máximo –, foi estabelecido com esse tom: de-
monstrar que a piora da situação dos presos não tem um limite,
sendo sempre possível piorar um pouco mais – ou bastante –, a
situação do enjaulado.

PROJETO DEVE CRIAR REGIME MAIS RIGOROSO PARA


PRESOS PERIGOSOS
Este projeto do deputado Francischini vai alterar a Lei de Execu-
ção Penal para criar o Regime Disciplinar Máximo (RDM), ao preso
provisório ou condenado envolvido em organizações criminosas,
quadrilha ou bando ou no comandando de rebeliões e crimes
dentro ou fora do presídio. Atualmente no Brasil há o Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD), forma de sanção disciplinar que
consiste no recolhimento do preso em cela individual, pelo prazo
máximo de 360 dias. Nesse período, o detento tem direito a visi-
tas semanais de duas pessoas, com duração de duas horas e igual
período diário de banho de sol. O RDD é um recurso de disciplina
carcerária especial, caracterizado por maior grau de isolamento
do preso e de restrições ao contato com o mundo exterior, uti-
lizado para manter a ordem e a disciplina internas. Este projeto
de lei quer criar um regime mais severo que o atual RDD. Esta-

1  O Presente do Sistema prisiona  179


rá sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório
ou o condenado sobre o qual recaiam indícios de envolvimento
ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas,
quadrilha, bando ou no comando de rebeliões e crimes dentro
ou fora do presídio. A reiteração das condutas após o regime dis-
ciplinar diferenciado, sujeita o preso provisório ou o condenado
ao regime disciplinar máximo com as seguintes características: I
– recolhimento em cela individual por prazo estipulado pelo juiz;
II – proibição de visita íntima; III – contato com a família e advoga-
dos somente em cabine blindada e gravação de áudio e vídeo das
conversas, autorizada judicialmente; IV – banho de sol diário indi-
vidual pelo período de duas horas; O regime disciplinar máximo
será deferido em até 48 horas, ouvido o Ministério Público e no-
tificada a Ordem dos Advogados do Brasil. Segundo o deputado,
o atual regime não é suficiente para impedir a ação de detentos
que continuam comandando o crime organizado de dentro da
prisão com o apoio das relações que mantêm com o público ex-
terno. Portanto, o deputado defende a criação de um regime de
isolamento mais absoluto para cortar as relações dos presos com
outros criminosos. A ideia é que presos envolvidos com organi-
zações criminosas, quadrilha, bando ou no comando de rebeli-
ões e crimes dentro ou fora do presídio, passem pelo RDD, e caso
persistam nas condutas criminosas, poderão ser encaminhados
ao RDM, onde ficarão em cela individual, por prazo definido pelo
Juiz, não terão direito à visita íntima; as conversas com a família
e advogados serão gravadas em áudio e vídeo e a correspondên-
cia controlada, com autorização judicial. O banho de sol não será
mais coletivo e sim individual142.

Essa é uma retórica que tem convencido porque qualquer supos-


to privilégio apresentado ao público – como a qualidade da alimen-
tação oferecida ao preso em comparação com a merenda escolar –, é
motivo de insatisfação.

142
Disponível em: <http://fernandofrancischini.com.br/projeto-deve-
-criar-regime-mais-rigoroso-para-presos-perigosos/>. Acesso em: 11
jul. 2016.
180  Manifesto para Abolir as Prisões
COMIDA DA CADEIA É MELHOR QUE COMIDA DA ESCOLA,
AFIRMA HOAX
[...] Bem ao estilo boataria com a clássica “passe adiante”, assom-
broso mesmo é a imagem [comparando a alimentação servida no
presídio com a fornecida na escola] ter alcançado até o momen-
to 1.498.594 compartilhamentos. Ah, e não nos esqueçamos das
mais de 60 mil curtidas e centenas de comentários. Tudo baseado
na desinformação. [...] Claro, não estamos discutindo aqui a preca-
riedade das escolas públicas do país, que bem sabemos também
é grande. Mas, daí a afirmar que a comida servida na cadeia é me-
lhor que nas escolas tem muita diferença143.

Como a análise da prisão está amarrada à da sociedade, esse tipo


de descontentamento com o tempo se converte em indignação por-
que as pessoas do lado de fora se dispõem em um plano ilusório de
respeito à lei: como o filho de alguém, pessoa de bem e cumpridora
das leis, tem uma refeição pior que a de um criminoso? Neste ponto
o problema não estaria na resposta, mas nas premissas que fingem
sustentar a própria pergunta: criminoso e prisão não são conceitos
que se encaixam naturalmente, mas sim, artificialmente, de sorte que
o acusador pode ser mais criminalizável que o acusado. Além disso,
melhor que a disputa pela qualidade superior da alimentação é a luta
para que todos sejam alimentados adequadamente.
Nem é preciso destacar o efeito contagiante e expansivo que si-
tuações como essas fabricam. Por exemplo, o usufruto de qualquer
direito, como o de manter contato com pessoas externas, dá a en-
tender que a prisão pertence ao ramo hoteleiro ou que o presidiário
ainda domina a criminalidade. O que é uma desculpa suficiente para
envolvê-lo em uma trama que irá remetê-lo para o isolamento celular
(RDD).
Desde que foi criado, o RDD tem como alvo principal as lideranças
da massa carcerária que, desde o final dos anos 1990, é composta

143
Disponível em: <http://www.boatos.org/crimes/comida-da-cadeia-e-
-melhor-que-comida-da-escola-afirma-hoax.html>. Acesso em: 17 jul.
2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  181
por presos pertencentes às facções criminosas. Tornou-se prática
corriqueira das administrações prisionais identificar os líderes –
também chamados de “pilotos” e, mais recentemente, denomina-
dos “disciplina” – e providenciar sua remoção para regimes mais
rigorosos de cumprimento da pena, como o RDD144.

Bem como:

BEIRA MAR CONTINUA EM REGIME DISCIPLINAR


DIFERENCIADO
[...] Além disso, ele [Desembargador convocado para o Superior
Tribunal de Justiça] entendeu que o argumento utilizado para a
imposição do referido regime disciplinar teve por base informa-
ções de que, mesmo preso, o traficante planejava a execução de
agentes penitenciários federais e arquitetava a própria fuga145.

E com um detalhe preocupante em razão da definitividade que


ele encerra: o de que a remessa do encarcerado para o RDD sempre
pretende ser uma via de mão única. O objetivo não é só enviá-lo para
lá. É lá mantê-lo quase que para sempre.

[...] Como a prorrogação da internação cautelar de “Marcola” ven-


ceu ontem [...], o Ministério Público Estadual pediu sua manuten-
ção no RDD pelo período de um sexto de sua pena, o que totali-
zaria cerca de 3 anos e meio, alegando que ele lidera uma facção
criminosa que age em São Paulo e que teria se envolvido em uma
tentativa de resgate de presos na Penitenciária de Presidente Ber-
nardes, no interior paulista, em janeiro deste ano146.

144
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
145
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-abr-11/fernandinho-
-beira-mar-ficar-regime-disciplinar-diferenciado>. Acesso em: 11 jul.
2016.
146
Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI29894,61
044-Marcola+permanecera+no+RDD+por+mais+oito+meses>. Acesso
em 18 jul. 2016.
182  Manifesto para Abolir as Prisões
Bem como:

[...] Considerado pelas autoridades o número 1 na hierarquia do


PCC, Marcola permaneceu sob este regime, entre idas e vindas,
cerca de seis anos. [...] E, como afirma Marcola, quem vai para
o RDD retorna para lá várias vezes, indicando a ineficácia do
mesmo para desestimular as práticas que, oficialmente, ele visa
reprimir147.

Enquanto que legislativamente:

LEI NO 10.792, DE 1º DE DEZEMBRO DE 2003.


[...] Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui
falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina
internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo
da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as se-
guintes características:
I – duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de
repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o
limite de um sexto da pena aplicada;

Embora suas regras sejam implacáveis, o grande problema é que


o RDD também já deu amostras de que não consegue cumprir a prin-
cipal função a que se predispõe: neutralizar o preso que ele diz isolar.

[...] está comprovado que o RDD é insuficiente para controlar a


ação dos criminosos. Há duas semanas, reportagem da revista
Veja denunciou que Beira-Mar consegue vender drogas, ordenar
homicídios e faturar R$ 1,5 milhão por mês, mesmo submetido
ao RDD na penitenciária federal de Catanduvas (PR), considerada
uma das mais seguras do país148.

147
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
148
Disponível em: <http://www.fabiocampana.com.br/2011/02/projeto-
-quer-endurecer-prisao-de-chefes-do-crime-organizado/>. Acesso em:
11 jul. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  183
No mesmo sentido:

[...] O ex-secretário, responsável pela administração dos presídios,


Dr. Nagashi Furukawa (2008), é incisivo em afirmar que os presos
temem o RDD. Novamente recorre-se a um trecho do depoimen-
to de Marcola para discutir esse temor: [...] intimidação nunca
funcionou em São Paulo. Se funcionasse [...] o exemplo maior de
intimidação é esse aqui. O cara vem pra cá e fica 1 ano sem ter re-
lações sexuais com sua esposa, fica 1 ano sem ver uma televisão,
no mínimo. Fiquei 2 anos da última vez. A gente fica [...] quer dizer,
não só eu, como todos. A maioria que passa aqui volta, não fica
com medo de voltar para cá, nem para a Federal, nem para lugar
nenhum. Esse tipo de forma para resolver o problema é mentira,
paliativa. Não vai resolver149.

Por isso ele é inútil. Porém, só por isso, porque simbolicamente o


seu poder é devastador.

O “Estadão” disse em seu editorial: “A decisão causou perplexidade,


pois, se é discutível, no mérito, poderá ser desastrosa, em suas con-
sequências sociais’…. “Desde o advento de organizações criminosas
violentas, como a Máfia, o isolamento rigoroso como dispositivo
de segurança é aceito em quase todo o mundo. Ele é baseado num
princípio jurídico que, sem ferir garantias fundamentais e apelar
para medidas de exceção, põe o interesse público acima de outros
princípios, como o da individualização da pena. Infelizmente, ao se
prender a um formalismo estéril no exame do RDD, a 1ª Câmara Cri-
minal do TJ deixou de lado o saudável princípio que, em matéria de
segurança, prioriza o interesse público e protege a parte mais inte-
ressada – a sociedade150.

Para além desse fetiche pelo simbolismo e por mais contraditó-


rio que possa parecer ou ser, sinceramente, na prática a situação das
celas coletivas nos presídios brasileiros é tão calamitosa que o cum-

149
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf >. Acesso em: 18 jul. 2016.
150
Disponível em: <http://jota.uol.com.br/as-origens-do-regime-discipli-
nar-diferenciado>. Acesso em: 18 jul. 2016.
184  Manifesto para Abolir as Prisões
primento de parte da pena sob o RDD assume ares de premiação
em alguns aspectos. Nem é preciso registrar que essa afirmação não
passa de um sofisma porque ela se escora em uma análise pautada
pelo second best151 e despreza os motivos que levam alguns presidi-
ários a apelidarem essa dieta penitenciária diferenciada de “parque
dos monstros”152. Então, não que o RDD seja melhor que a cortiçaria
representada pelas celas compartilhadas por dezenas de presos, ele
apenas parece ser menos ruim em alguns itens – o que em hipótese
alguma é suficiente para justificar a sua existência.

[...] Da minha parte, tenho firme convicção de que o RDD não


fere a Constituição. Mesmo buscando no mais íntimo da minha
alma, apelando para minha formação humanística e “romântica”,
não consigo sequer de leve vislumbrar crueldade ou degradação
nessa modalidade de cumprimento da pena. Pena cruel e degra-
dante, vedada pela Carta Magna, é outra coisa. É aquela cumprida
em celas escuras, sem ventilação e sem higiene. Este tipo de cela,
sem higiene, molhada, sem ventilação, não existe mais em São
Paulo153.

A título de ilustração:

EM CELA SUPERLOTADA DE PALHOÇA, SC, PRESOS FICAM


SEM ÁGUA NEM BANHEIRO
Local que deveria ter 2 presos hoje abriga 12, mostrou o Jornal do
Almoço. Interdição foi pedida em 2010.
Uma cela da delegacia de Palhoça, na Grande Florianópolis, abri-
ga cinco vezes mais presos do que é capaz de comportar. Sem
condições de higiene, sem água e nem banheiro, o local foi in-
terditado em 2010, mas a medida nunca foi cumprida, como
mostrou o Jornal do Almoço desta quarta-feira [...]. O local foi

151
Tradução livre: Menos ruim.
152
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
153
Disponível em: <http://jota.uol.com.br/as-origens-do-regime-discipli-
nar-diferenciado>. Acesso em: 18 jul. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  185
construído para receber dois presos, mas atualmente tem 12 de-
tentos que aguardam ali antes de serem levados para presídios.
O cubículo escuro tem lixo e esgoto por todos os lados. “Todos
ficam sentados, não tem ninguém dormindo”, diz um dos presos.
Como não há água no local, uma mangueira foi improvisada pela
porta da cela para que os presos não passem tanto calor do ve-
rão. Além da superlotação e da falta de água, a fossa do banheiro
da cela entupiu e por isso os presos não podem usar o banheiro.
Eles utilizam sacolas plásticas que depois são jogadas para fora
da cela. “Ninguém recolhe esse lixo, fica tudo aqui na frente (da
cela)”, diz um preso. “Não tem banheiro, não tem água...”, enumera
outro. “Manda a gente para qualquer lugar, mas tira a gente da-
qui”, pede um detento154.

Mesmo quando ele tem a aparência de ser melhor, seja legislati-


vamente:

Art. 52. [...] II – recolhimento em cela individual; III – visitas sema-


nais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de
duas horas; IV – o preso terá direito à saída da cela por 2 horas
diárias para banho de sol.

Seja cotidianamente ou conforme o senso comum:

TRAFICANTES VÃO CUMPRIR REGIME DISCIPLINAR


DIFERENCIADO
[...] No RDD, o preso é mantido em cela individual a maior par-
te do dia, com restrição de visitação e acesso a outros detentos.
Também não é permitido contato com o mundo exterior, através
de jornais, televisão e outros meios de informação. O preso pode
ficar sob este regime de disciplina carcerária por 360 dias155.

154
Disponível em: <http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2015/06/
com-maior-superlotacao-prisional-do-pais-pe-vive-emergencia-ha-5-
-meses.html>. Acesso em: 11 jul. 2016.
155
Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/traficantes-
-vao-cumprir-regime-disciplinar-diferenciado-17899534.html>. Acesso
em: 17 jul. 2016.
186  Manifesto para Abolir as Prisões
No final das contas, na lição barthesiana de que “quem resiste to-
talmente cede totalmente”156 pode ser acrescentado que quem resis-
te totalmente também pode obrigar ou provocar outros a cederem
totalmente.
O RDD foi criado com o objetivo de limitar o arbítrio dos agentes
penitenciários157, embora o procedimento desburocratizado que já
chegou a justificá-lo seja a maior prova da falsidade dessa intenção:

[...] A internação em RDD enquanto disciplinada pela resolução da


secretaria, era extremamente rápida. Diante de provas ou indícios
veementes de envolvimento de algum preso em atos que tives-
sem subvertido ou pudessem subverter a ordem nas penitenciá-
rias de forma grave, o diretor fazia a comunicação ao coordenador
e este pedia a internação ao secretário-adjunto. Tudo on-line, sem
nenhuma burocracia. O secretário-adjunto examinava o pedido e
o decidia imediatamente. A transferência do preso para o RDD se
dava quase sempre no mesmo dia, ou no máximo no dia seguinte
à formulação do pedido158.

Então, não é por outro motivo que a submissão a ele tem tido um
efeito verdadeiro contrário: a) ou ela facilita o trabalho do Estado pri-
sional, como a obtenção mais rápida e mais substancial de informa-
ções junto a alcaguetes (delatores e colaboradores premiáveis): “[...]
suportar as agruras de um regime tão duro de cumprimento da pena
de prisão [...] é para poucos [...]159”; b) ou ela corrompe ainda mais a
sua atual condição já pervertida (possibilidade de oferecimento pelo
preso [suborno], ou de exigência pelo agente penitenciário [extor-
são], de vantagens com muito mais facilidade, haja vista o maior de-
sespero daquele e a maior percepção deste quanto a essa desespe-
rança, dentro de um regime de exceção [RDD]).

156
BARTHES, Roland. Mitologias. 4. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 225.
157
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
158
Disponível em: <http://jota.uol.com.br/as-origens-do-regime-discipli-
nar-diferenciado>. Acesso em: 18 jul. 2016.
159
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  187
[...] Na inauguração do CRP de Presidente Bernardes [Centro de
Readaptação Penitenciária de Presidente Bernardes, que se des-
tinaria exclusivamente para aplicação do RDD], em 2002, bem no
dia de aniversário da minha filha Juliana, 02 de abril, lembro que
falei na solenidade mais ou menos o seguinte: “estamos entre-
gando ao povo paulista um estabelecimento penal de segurança
máxima. Nele colocamos tudo para preservar a ordem e a discipli-
na e para impedir fugas: desde detectores de metal, aparelhos de
raio X, pisos de aço com 10 mm de espessura, aparelho bloquea-
dor de celular, cabos de aço para impedir acesso de helicópteros,
até locais para visita que impedem contato físico entre visitantes
e presos. Advogados só poderão falar com seus clientes por meio
de interfones instalados nos parlatórios guarnecidos com vidro
reforçado. Porém, isto tudo não servirá para nada se não for, como
diz o coordenador Perci, o ‘zóio do guarda’. Serão vocês, funcioná-
rios, e não os equipamentos, que farão desta penitenciária mode-
lo para o Brasil [sic]160.

Ou seja:

[...] o que refuta as ideias difundidas, principalmente pelas auto-


ridades, de que o RDD é eficaz no combate às facções a partir do
isolamento dos líderes. Em primeiro lugar, sabe-se que esse iso-
lamento não é absoluto; por direito constitucional, os presos po-
dem ter contato com advogados e familiares, ainda que sem con-
tato físico direto. E, conforme amplamente noticiado há alguns
anos, os advogados se constituíam em importantes peças no es-
quema da organização criminosa, servindo como pombo-correio
na comunicação entre seus membros. Isso para não mencionar a
corrupção sistêmica no sistema prisional, que faculta aos presos
canais de comunicação diversos, como os telefones celulares161.

Como tudo que envolve a prisão, o RDD também não deixa de ser
um discurso conveniente, seja porque ele pode ser prático e simbóli-

160
Disponível em: <http://jota.uol.com.br/as-origens-do-regime-discipli-
nar-diferenciado>. Acesso em: 18 jul. 2016.
161
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
188  Manifesto para Abolir as Prisões
co ao mesmo tempo, seja porque ele pode favorecer alguns e preju-
dicar outros, simultaneamente.

Este emaranhado confuso, que mistura poder formal do Estado


e poder informal da organização criminosa, práticas arbitrárias,
corrupção sistêmica, alimentadas pela invisibilidade das relações
sociais que são tecidas no interior dos espaços prisionais e pela
ausência de interesse das instituições que deveriam fiscalizar es-
ses espaços (como o Judiciário e o Ministério Público), tem dois
pilares de sustentação: de um lado, a manutenção da aparência
de ordem e do efetivo controle da população carcerária pelo go-
verno, sendo que, para isso, são adotadas medidas que impedem
a visibilidade pública do poder da facção e também as rupturas,
que geram as crises que colocam em xeque sua imagem peran-
te a sociedade; e, de outro, o interesse da organização criminosa
em manter o controle efetivo sobre a população carcerária, bem
como das atividades ilícitas praticadas na prisão162.

Exemplo dessa confusão conveniente se revela no fato de que se


para os chefes das organizações criminosas o RDD é um mecanismo
de proteção da sua condição de líder camuflado, para o líder fictício
ele é uma estratégia que certamente será usada contra ele de manei-
ra bastante prejudicial.

[...] É grande a preocupação do Estado com as lideranças, que são


os alvos dos regimes mais rigorosos. A questão é que, ao iden-
tificar e remover a liderança de determinada unidade prisional,
outro preso assume o mesmo papel, e assim sucessivamente,
constituindo uma dinâmica de ascensão cada vez mais rápida na
hierarquia da facção, por conta da necessidade de designar um
“responsável” em cada unidade controlada pela organização e re-
por essa liderança tão logo seja percebida pela administração e
transferida. Assim, devido a esse mecanismo rápido de reposição
– o que é comum a qualquer grupo social –, seria absolutamente
impossível a pretensão de eliminar essa figura do contexto prisio-
nal. Para lidar com essa questão, diretores de unidades prisionais

162
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  189
estabelecem uma diferenciação entre lideranças “comuns”, exis-
tentes em todo agrupamento humano, e aquelas perniciosas ou
negativas, as quais seriam os alvos das transferências. Para eles,
as lideranças negativas seriam as que se mostrassem de forma
muito evidente, clara, inequívoca; aqueles que fizessem questão
de serem percebidos enquanto tal, afrontando, assim, o poder
público diretamente, apresentando-se como instância decisória
fundamental dentro da prisão. Na verdade, o que está implícito
nesta estratégia dos diretores é um acordo tácito entre adminis-
tração e lideranças da massa carcerária, a partir do qual se defi-
nem os limites do exercício do poder informal pela facção, mas
sem que esse exercício do poder provoque a desmoralização da
autoridade formal. Trata-se de um arranjo para permitir que as li-
deranças exerçam seu poder, mas de maneira menos visível, para
transmitir a aparência – em especial, para quem vem de fora – de
que esse poder é exercido pela administração. Além dessa lide-
rança menos ostensiva, há uma tentativa, por parte dos membros
da organização, de dar outra conotação ao papel do líder. Em to-
das as entrevistas realizadas, pairava um mal-estar no momento
em que era perguntado sobre o “líder”. Os entrevistados (“irmãos”
ou “companheiros” do PCC) apressavam-se em dizer que, atual-
mente, não existiam mais líderes nas unidades prisionais, mas sim
“pessoas com mente”, isto é, dotadas de capacidade de resolução
dos conflitos. Esse era o seu papel, ou seja, manter a ordem e a paz
na prisão. A repressão às lideranças provocou um deslocamento
da sua denominação de “piloto” para “pessoa com mente”. A re-
cusa em assumir o papel de “líder” também pode ser claramente
observada no já citado depoimento de Marcola à CPI do Tráfico
de Armas. Em vários trechos, ele nega veementemente esse papel
e diz que, quando Geleião e Cesinha foram expulsos da organiza-
ção, a população carcerária atribuiu a ele essa posição. No entan-
to, ele afirma que teria distribuído a liderança porque não tinha
nenhum interesse em exercê-la, mas a imprensa, o Ministério Pú-
blico e as polícias insistiram em identificá-lo enquanto tal, a fim
de transformá-lo em bode expiatório. [...] pouco importa a vera-
cidade das declarações de Marcola, bem como dos outros presos
entrevistados. O importante é identificar essa mudança no discur-
so do PCC, na insistência em negar a condição de liderança para
se esquivar das transferências de unidades e para regimes mais
severos. [... É] possível perceber outro mecanismo para driblar tais

190  Manifesto para Abolir as Prisões


inconvenientes: o uso de “laranjas”, que, na aparência, exercem o
papel de líderes, mas, na verdade, escondem atrás de si os reais
ocupantes desta posição. Assim, esse “líder” carrega todo o peso
do exercício deste papel – inclusive a possibilidade de ser alvo
de transferências – para preservar a liderança efetiva e permitir
que ela se mantenha nas referidas unidades. Este mecanismo foi
necessário para reduzir a intensa rotatividade de indivíduos ocu-
pando essa posição, o que gerava instabilidades na organização
na medida em que presos ainda não preparados para tal função
tinham que assumi-la para não deixar o lugar vazio, enquanto
seu detentor legítimo era removido para outra unidade prisional.
Este expediente, no entanto, só é possível em decorrência dos tá-
citos acordos, expostos anteriormente, das lideranças com a ad-
ministração prisional, por meio dos quais se pactuam os limites
do exercício do poder e sua visibilidade. Isso porque, ainda que
escondido atrás de “laranjas” para se preservar, o líder é, em regra,
conhecido dos diretores das unidades. Esses pactos, no entanto,
garantem a estabilidade deste precário sistema social e a manu-
tenção da ordem, ao mesmo tempo em que permitem ao PCC
amplo controle da população carcerária, ainda que sob os véus
do controle formal do Estado sob a dinâmica prisional163.

Embora ele tenha sido convertido em moeda de troca pela paz


prisional164 quando envolve os criminosos com capacidade de deci-
são, os reflexos do RDD nos encarcerados sem influência, que repre-
sentam a grande massa da população penitenciária são muito mais
desastrosos.
O Brasil possui 346 vagas destinadas a este Regime.165 No Estado
de São Paulo há 160 vagas (120 para presos masculinos e 40 para
presidiárias femininas). Em 11 de julho de 2016, dessas, 87 estavam

163
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 de jul. 2016.
164
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
165
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>.
1  O Presente do Sistema prisiona  191
ocupadas166, quase todas por penitenciados desprovidos de uma ex-
pressão que possa ensaiar qualquer contestação ao poder prisional.
Sobre eles esse regime de exceção (RDD) ganha potência máxima,
alcançando mais rápida e mais profundamente aquilo que se pode
chamar de máxima dessocialização.

[...] Marcola permaneceu sob este regime, entre idas e vindas,


cerca de seis anos. É sintomática a resposta do referido preso ao
questionamento do deputado Arnaldo Faria de Sá, a respeito do
tempo em que ele havia permanecido, até aquele momento, no
RDD: “Cinco anos e meio (risos). Mas eu estou bem, não estou?
Estou vivo ainda”. Essa resposta expressa a capacidade de supera-
ção e de suportar os rigores do regime, que reforça sua posição na
estrutura da organização. [...] É evidente que ninguém deseja ser
removido para algo semelhante a um caixão [...]167.

1.4.6.4 Ele previne especial e negativamente?


Há algum tempo se tem afirmado que a única função que a pena
privativa de liberdade exerce é a neutralização dos seus clientes.
Afirma-se ainda que nesse aspecto ela tem obtido inegável suces-
so. Antes de continuarmos, alguns esclarecimentos são necessários.
Neutralizar pode significar que a prisão conseguiu remover um ini-
migo que oferecia uma oposição indesejável, ou um perigo descon-
fortante.

“INIMIGO POLÍTICO NÚMERO UM DE PUTIN CONDENADO A


TRÊS ANOS E MEIO DE PRISÃO COM PENA SUSPENSA”
Alexei Navalny, “blogger” conhecido por denunciar corrupção
das elites russas, foi condenado no âmbito de desvio de dinhei-
ro de uma empresa. O opositor russo Alexei Navalny foi conde-
nado hoje a três anos e meio de prisão com pena suspensa pela
prática de crimes econômicos. Navalny, carismático “blogger”

166
Disponível em: <http://www.sap.sp.gov.br/>. Acesso em: 19 jul. 2016.
167
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
192  Manifesto para Abolir as Prisões
conhecido por denunciar a corrupção das elites russas, consi-
derado até há pouco tempo o “inimigo político número um” do
Presidente russo, Vladimir Putin, foi perseguido judicialmente,
com o seu irmão Oleg, no âmbito de um caso de desvio de di-
nheiro de uma filial da empresa francesa Yves Rocher e encon-
trava-se em prisão domiciliária. A justiça russa antecipou para
hoje a leitura da sentença – inicialmente agendada para meados
de janeiro de 2015 – para impedir os seus apoiantes de protes-
tarem contra o seu julgamento num caso de desvio de dinhei-
ro que consideram político. Oleg foi também condenado a três
anos e meio mas de prisão efetiva168.

Tropicalizando esta estratégia, teríamos:

IGOR MENDES É O PRESO POLÍTICO MAIS IMPORTANTE DO


BRASIL
[...] No Rio de Janeiro, onde a perseguição contra os movimen-
tos populares independentes e combativos foi mais intensa, 23
ativistas estão até hoje respondendo ao processo por formação
de quadrilha. Principal alvo do processo, a Frente Independente
Popular (FIP-RJ) é tida como uma “quadrilha armada”. Acusação
falsa e incabível que tenta deslegitimar o que ela é de fato, uma
frente de várias organizações que se uniram em torno do classis-
mo e do rechaço à farsa eleitoral. As plenárias da FIP sempre são
abertas e em locais públicos, onde todos os presentes possuem
o direito de voz e voto. A perseguição contra a FIP e as organi-
zações que a compõem nos revelam fatos importantes: 1) que a
perseguição política tem objetivos claros de coibir o direito de
manifestação e o direito de organização; 2) que as perseguições
políticas daqui para frente também possuem alvos bem estabele-
cidos: movimentos e organizações que estão fora dos moldes do
governo e rompem com toda aquela velha forma de fazer movi-
mento popular através de negociatas e traições da luta do povo.

168
Disponível em: <http://www.dn.pt/globo/interior/inimigo-politico-
-numero-um-de-putin-condenado-a-tres-anos-e-meio-de-prisao-com-
-pena-suspensa-4317569.html>. Acesso em: 20 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  193
Provavelmente seu crime é defender o boicote à farsa eleitoral e
o direito do povo de se rebelar169.

Neutralizar também pode significar uma higienização indireta.


Por essa técnica alguns inimigos seriam extraídos do ambiente so-
cial, deixando-o mais limpo. Porém, esse processo de dedetização
social que arranca mendigos e drogados das ruas, afrodescenden-
tes das suas próprias casas, etc, pode ser ainda mais ousado e am-
bicioso. Neste caso, alguns, entre os próprios neutralizados, podem
ser usados como ferramenta de faxina. Enquanto o forem, sua ins-
trumentalização será multiplicada. No caso, antes de estarem neu-
tralizados, eles neutralizam – o que é bem diferente. A indiferença
do poder prisional diante de uma disputa homicida entre gangues
rivais, dentro de um presídio, é um exemplo trágico dessa neutraliza-
ção amplificada. Essa é mais uma das consequências desgraçadas do
funcionamento da prisão: servir de palco para a intereliminação dos
neutralizados, em que um instrumento (um preso) destrói uma coisa
(outro preso), enquanto boa parte da população aplaude.

MORTO A FACADAS, PRESO É CORTADO EM 59 PEDAÇOS E


TEM FÍGADO COMIDO EM PEDRINHAS
No ano de 2013, a barbárie tomou conta do Complexo de Pedri-
nhas, principal rede de presídios do Estado do Maranhão. Quase
que semanalmente, notícias sobre guerras entre facções rivais e
dissidentes dentro de suas celas traziam em letras garrafais nas
manchetes que vítimas haviam sido torturadas e decapitadas. No
espaço de 12 meses, 65 presos foram mortos no local. Mas, quase
dois anos depois, o testemunho de uma pessoa que presenciou
uma dessas execuções, ocorrida no Presídio São Luís 2, tem dei-
xado promotores e investigadores chocados com a barbaridade
dos assassinos, apesar de conhecerem bem o violento histórico
do complexo. De acordo com o depoimento da testemunha, o
preso Edson Carlos Mesquita da Silva, de 34 anos, foi torturado

169
Disponível em: <http://anovademocracia.com.br/no-151/5936-igor-
-mendes-e-o-preso-politico-mais-importante-do-brasil>. Acesso em:
20 jun. 2016.
194  Manifesto para Abolir as Prisões
por quatro pessoas em plena cela, esfaqueado várias vezes e teve
o corpo cortado em 59 pedaços para impedir que fosse encon-
trado pelos carcereiros. Mas não parou por aí: uma vez morta, a
vítima teve seu fígado arrancado, salgado, grelhado e comido
pelos assassinos, que ainda o distribuíram aos colegas de espa-
ço. [...] Comentários: [omitimos o nome do(a) comentador(a)] por
mim, que se comam todos e chupem bem os ossos ate o ultimo
que ficar de pé, quem realmente merece ser bem tratado eh o
povo que sua a camisa pra ter as coisas.... [omitimos o nome do(a)
comentador(a) Solução para acabar com a superlotação carcerá-
ria –--> canibalismo [sic]170.

Todavia, pelo menos no sentido manifestado pela prevenção es-


pecial negativa, não é possível concordarmos que haja neutralização
quando o preso intervém extramuros, seja mediante execuções re-
motas, dirigindo atividades ilícitas, etc.

FACÇÃO DÁ ORDEM PARA MATAR POLICIAIS E ATÉ


CRIANÇAS DE DENTRO DO PRESÍDIO
Escutas inéditas mostram a crueldade da quadrilha que contro-
la os presídios de São Paulo. As conversas são assustadoras. Or-
dens para cometer atentados, para matar policiais e até crianças.
É assim que age a quadrilha que comanda crimes de dentro das
cadeias de São Paulo. Domingo [...] o Fantástico mostrou a estru-
tura desse grupo. Novos detalhes da investigação do Ministério
Público revelam a extrema violência desses bandidos. A ordem
para os bandidos que estão fora das cadeias é: “Aquele que vier
a mexer com a nossa família terá sua família exterminada. Vida se
paga com vida e sangue se paga com sangue”171.

170
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2015-10-20/
morto-a-facadas-preso-e-cortado-em-59-pedacos-e-tem-figado-comi-
do-em-pedrinhas.html>. Acesso em: 20 jun. 2016.
171
Disponível em: <http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/10/fac-
cao-da-ordem-para-matar-policiais-e-ate-criancas-de-dentro-do-presi-
dio.html>. Acesso em: 20 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  195
Porém, se considerarmos as funções escondidas da pena perce-
beremos ser inegável que essas suspensões da neutralização aconte-
cem porque elas são interessantes ao sistema. Elas permitem a ferti-
lização do pânico social que conduz as pessoas a contraditoriamente
depositarem ainda mais esperança na prisão, certamente porque
acreditam que ela ainda não está aparelhada o suficiente para dar
conta do poder da criminalidade. Nesse sentido os presos continuam
sendo um mero instrumento para que o poder punitivo promova um
dardanismo social.

1.5 COMO ELE FUNCIONA?


Ideologicamente houve uma persistência na prisão castigo dos
piores defeitos da prisão como depósito, que a antecedeu, às vezes
por mutação, às vezes por intensificação dos seus fracassos. De fato
ambas se assemelham em vários objetivos, mas, sobretudo no obje-
tivo de tornar invisível a sua clientela. A prisão armazém, mediante
uma morte direta; a prisão castigo, mediante uma cacotanasia, que é
uma morte lenta e dolorosa, provocada pelas condições insalubres,
penosas e perigosas das prisões172. Condições insalubres estas que,
inclusive, podem determinar a extinção da raça humana, caso as ce-
pas de tuberculose praticamente incurável, que habitam alguns pre-
sos, espalhem-se173 (Abrahão, 2003).
Ou mesmo mediante uma morte civil ou social que é, respectiva-
mente, a perda dos direitos acessíveis aos demais cidadãos. Ou ainda,
por meio de um nível de estigmatização que rebaixe o egresso a um
patamar inferior à mais ínfima dignificação humana, o que o torna

172
A título de exemplo, ver <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitoshu-
manos/noticia/2015-10/embargodetentos-tem-chaves-e-controlam-
-prisoes-de-pernambuco-denuncia>. Acesso em: 10 abr. 2016.
173
ABRAHÃO, Regina Maura Cabral de Melo. Diagnóstico da tuberculose na
população carcerária dos distritos policiais da zona oeste da cidade de São
Paulo. 2003. Tese de Doutorado em Saúde Pública. Faculdade de Saúde
Pública da USP, São Paulo, 2003. “O fato de haver 3 detentos com cepas
multirresistentes às drogas antituberculose é uma ameaça à saúde pú-
blica.”
196  Manifesto para Abolir as Prisões
ainda mais invisível socialmente, e, consequentemente, mais útil ao
capital – estigmatização esta que é irreversível, mas não é exclusivi-
dade dos confinados. Ela compromete todos que tocam o sistema
prisional: pessoal funcional (agentes penitenciários, etc.), policiais,
promotores de justiça, magistrados e, até mesmo, alguns advogados.

POR QUE OS POLICIAIS SE MATAM: PESQUISA TRAZ


NÚMEROS E RELATOS DE SUICÍDIOS DE PMS
[...] de 224 policiais militares entrevistados, 10% disseram ter ten-
tado suicídio e 22% afirmaram ter pensado em suicídio em algum
momento. Em contrapartida, 68% disseram nunca ter tentado
nem pensado em se matar. [Há ...] números e relatos dramáticos
do suicídio de policiais, investigando seus possíveis fatores – di-
retamente associados a problemas como falta de reconhecimen-
to profissional, maus-tratos e quadros depressivos. Outra queixa
frequente é a transferência, para a família, de relações violentas
comuns no quartel. De acordo com dados citados na pesquisa,
cuja fonte é a própria Polícia Militar, de 1995 a 2009 foram noti-
ficados 58 casos de suicídio de policiais militares no Rio, mais 36
tentativas de suicídio. Dos 58 óbitos por suicídio de PMs da ativa,
três aconteceram em serviço e 55 nos dias de folga. Foram em
média três suicídios a cada ano. O número de mortes por suicídio
na folga foi 18 vezes maior do que em serviço174.

Na viragem da prisão depósito para a prisão pena a consequên-


cia do encarceramento passou de uma estigmatização com posterior
neutralização (morte física, à vista) para uma neutralização seguida
de uma estigmatização (morte civil e social quase que imediata; e
morte biológica, à prestação). Desde sua invenção como sanção
autônoma há mais ou menos 250 anos, até hoje, a prisão ampliou
a estigmatização que ela produz, prolongando no tempo os efeitos
destruidores, destreinadores e dessocializadores de quem nela já
pernoitou.

174
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/16
0322_policiais_suicidios_fe_if>. Acesso em: 21 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  197
Apesar desse seu efeito devastador, o Estado consegue, mediante
a prisão, promover uma campanha de ilusionismo e hipnotismo da
população. Ele não tenta convencê-la de que o problema está sen-
do resolvido, pois isso esvaziaria lentamente a função prisional. Ele
apenas noticia que a questão criminal pode ser resolvida, desde que
ele tenha o armamento adequado. Em um ritmo assustador, ao mes-
mo tempo em que ele solta presidiários que irão fertilizar a paranoia
coletiva ele faz as pessoas acreditarem que a questão criminal pode
ser satisfatoriamente controlada mediante a técnica, sobretudo, da
neutralização prisional (esquecimento e inocuização do preso). Po-
rém, para que tudo isso aconteça é preciso que haja uma preparação.
E como funcionaria essa estratégia?
Antes de liberar os cativos a prisão os submete a um excessivo
destreinamento, a ponto de deixá-los ainda mais incompatíveis com
as regras comuns e ainda mais aptos a interpretarem o papel de ini-
migos perigosamente incorrigíveis. As condições propositadamente
indignificantes das nossas prisões são o ambiente ideal para o desen-
volvimento dessa cultura onde se reproduz a matéria prima que será
maquiada pelo Estado para parecer ainda mais aterrorizante.
Como o Estado punitivo deseja permanecer no poder, ele fre-
quentemente amplifica a histeria febril para assustar as pessoas e
apresentar a prisão como o único fetiche que conseguirá atender aos
nossos desejos monótonos de expiação. Como a paranoia é renova-
da sempre que estamos tranquilos, diariamente exigimos um novo
culpado que nos redimirá das nossas próprias angústias, falhas e cul-
pas, ainda que provisoriamente.
Essa sedução excitante que a prisão encena decorre do fato de
que ela foi formatada para nos embriagar com falsas promessas de
possível e iminente solução do problema criminal, e, consequente,
sensação de segurança social e pessoal. Por isso ela não permite que
percebamos que o problema está sendo apenas encoberto, enquan-
to sua gestação progride e se amplia. No mais, mesmo na performan-
ce atual da prisão (castigo), o Estado não deixou de promover o seu
espetáculo condenatório, só que agora ele é simbolizado por julga-
mentos públicos e execuções privadas, mediante o cumprimento de
penas às escondidas, e quase sempre praticadas por policiais.
198  Manifesto para Abolir as Prisões
Repetindo uma pergunta que incomoda: mas, se a prisão tem de-
feitos tão evidentes, por que ela continua funcionando da mesma
maneira há mais ou menos 250 anos, ou até mesmo existindo? A res-
posta é constrangedora: porque o seu maior defeito é contraditoria-
mente a sua maior força. Quanto mais a prisão segregar os inimigos,
ainda que não conseguindo consertá-los, mais tranquilos ficaremos.
Quanto menos ela remendá-los, obrigando-os a nela permanecer ou
para ela voltar, mais viveremos em paz, e justamente porque a maio-
ria das pessoas não está sinceramente interessada na (re)socialização
dos encarcerados. Ela deseja apenas que eles sejam neutralizados, ou
mortos, ou que pelo menos acumulem poeira durante o seu estágio
prisional. No mínimo, que nunca mais sejam soltos. Se a prisão aten-
der a esse desejo – e, se além dele, ela capturar os inimigos conve-
nientes que ainda estão livres –, já nos daremos por satisfeitos. O res-
to é problema e culpa do próprio aprisionado, que fez por merecer.
A prisão é apresentada como uma instituição que se esforçará
para remodelar as pessoas que infringiram as leis e que por isso ain-
da não estão prontas para conviver socialmente. Porém, no fundo
ela não pretende conter os inimigos convenientes, resignados e ir-
resistíveis, para devolvê-los melhores à sociedade. Como essa é uma
verdade desconfortável e que nunca é assumida, algumas pessoas
teimam em acreditar que ela é um ortopedista social. Nem é preciso
anotar que as vantagens desse entendimento para a manutenção da
prisão são óbvias.
Nesse compasso o poder prisional vai tentando, e conseguindo,
enganar a todos simplesmente fingindo atender vários anseios ao
mesmo tempo, embora incompatíveis entre si: a) ele mantém intac-
tas as pessoas amigas e as resistentes; b) ele satisfaz os que desejam
que o inimigo seja aniquilado (mortes em presídios); c) ele agrada
os que apenas querem se ver livres do perigo (prisão dos inimigos
convenientes); d) ele aparenta preocupar-se com a melhora dos en-
carcerados, e enaltece e generaliza seu eventual sucesso (presos ga-
nhadores de prêmios ou aprovados em vestibulares, etc.); e, por fim,
e) ele mantém o emprego dos que vivem do poder prisional (poli-
ciais, agentes penitenciários, magistrados, advogados, promotores
de justiça, etc.).

1  O Presente do Sistema prisiona  199


Na verdade, o seu único desejo é capitular diante das pessoas que
o dominam e, assim, permitir que o Estado ou os seus representan-
tes, mediante o arbitrário, continuem no poder, decidindo as nossas
vidas de acordo com o interesse de uns poucos.
Ao mesmo tempo em que a prisão terceiriza a culpa pela conti-
nuidade dos defeitos do condenado, atribuindo o seu insucesso em
ser uma pessoa melhor à sua personalidade voltada para o crime, ela
adia a solução da questão criminal para um momento e um lugar dis-
tantes e improváveis. Essa técnica prisional contraditoriamente nos
permite uma sobrevida ilusoriamente segura, estranhamente rascu-
nhada sobre uma intranquilidade que ela mesma ajuda a fabricar.
Também pouco nos importa que ela funcione seletivamente ao
separar os amigos, dos inimigos convenientes, conformados e não
resistentes, desde que o inimigo não seja um de nós ou alguém que
não desejamos ver enjaulado, e desde que nos sintamos seguros e
superiores por compor a classe dos amigos da prisão. A partir desse
ponto, qualquer atitude que ela tome, por mais absurdamente injus-
ta que seja, será aplaudida por nós, ou pelo menos aceita. Esse po-
sicionamento admirado que assumimos diante da prisão não passa
de uma expansão da provisória e ilusória sensação que ela transmite
ao retirar do convívio social as pessoas que nos incomodam (inimi-
gos desconfortantes ou perigosos). De acordo com esse raciocínio,
se nós nos sentimos seguros quando a prisão nos protege, privando-
-nos da convivência com aquele que nós consideramos perigosos à
nossa existência pessoal, patrimonial, sexual, etc., por que nós nos
sentiríamos inseguros quando a privação de liberdade daquela pes-
soa que nos incomoda não está precedida de uma lesão, uma acu-
sação, uma culpa ou mesmo uma condenação a uma pena privativa
de liberdade175? Se o que nos intranquilizava desapareceu, não nos
importa como isso aconteceu! Aqui a suposição de que o problema

175
Em 17 de fevereiro de 2016, a maioria do Plenário do Supremo Tribu-
nal Federal entendeu que a pena pode ser cumprida após decisão de
segunda instância, modificando, assim, entendimento anterior sobre o
artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988.
200  Manifesto para Abolir as Prisões
da intranquilidade foi concretamente resolvido esfria e inutiliza qual-
quer argumento que tente apontar a existência de um defeito formal
na sua solução. Embora a prisão tenha problemas e se equivoque ela
se esforça para resolver algumas das minhas inquietudes mais preo-
cupantes. Provavelmente nenhum de nós se incomodará se desco-
brir que o médico que debelou nossa doença quase fatal fez uso de
medicamentos destinados a outro paciente.
A partir do funcionamento real da prisão também é possível per-
ceber que da mesma maneira que não podemos afirmar que a so-
ciedade ativa a prisão sempre que um crime é praticado, visando a
reequilibrar-se, não é possível acreditar que a tranquilidade e a segu-
rança sociais são restauradas a partir de cada novo aprisionamento.
Pelo contrário: a única certeza que podemos ter é que a prisão fun-
ciona mentindo, iludindo e praticando crimes.
Sobre outro aspecto, é difícil dizer se a prisão castigo começou a
funcionar visando à humanização das condenações ou se ela teve
desde o início um aspecto econômico, voltado para a acumulação
disponível de braços a favor do suserano. Homens mortos não lutam
e não remam. Todavia, de um tempo para cá a prisão, ou os aprisio-
namentos, tem prestado apenas para servir aos interesses de alguns
indivíduos. Só depois que são atendidos é que eles procuram uma
justificativa que demonstre que a prisão contemplou algum interes-
se coletivo.

EX-MINISTRO ARGENTINO CITADO NA OPERAÇÃO LAVA


JATO É PRESO POR CORRUPÇÃO
[...] O kirchnerista Ricardo Jaime [...] foi preso sob acusação de
corrupção neste sábado, em Córdoba, na Argentina. O juiz Julián
Ercolini determinou a reclusão do funcionário, que passou pe-
los governos de Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner
(2007-2015), e de seu assessor Manuel Vázquez por superfatura-
mento na compra de trens usados da Espanha e de Portugal, em
um negócio de 100 milhões de euros (R$404 milhões). Ambos fo-
ram citados pela investigação Lava Jato em fevereiro como possí-
veis beneficiários de propina em outro caso ligado ao transporte
ferroviário. [...] Integrantes do governo argentino que pressionam

1  O Presente do Sistema prisiona  201


pela investigação de denúncias de corrupção durante o kirchne-
rismo celebraram a detenção de Jaime. “Começa a ser feita Justi-
ça. Durante anos fui acusada de denunciar sem provas, mas elas
sempre existiram”, disse a deputada Elisa Carrió, uma das mento-
ras da coalizão de centro-direita Cambiemos, que levou Mauricio
Macri ao poder176.

Aliás, procuram uma justificativa que demonstre que a prisão con-


templou algum interesse coletivo ou já a encontram pronta:

Comentários: [omitimos o nome do(a) comentarista] Ninguém


suporta mais tanta corrupção em nosso País. A maior parte
da população brasileira, independente de partidos políticos,
aguarda punições severas e exemplares para começar a banir
esse “câncer” chamado corrupção. Os interesses do Brasil, do
seu povo e da Nação Brasileira, colocados em último plano, em
detrimento dos interesses pessoais, dos partidos políticos e de
“doadores” de campanha. Toda essa corrupção, trocas e jogo de
interesses é uma vergonha e uma afronta às pessoas e empre-
sas honestas e éticas desse País !!! Essa classe política brasilei-
ra e alguns empresários corruptos querem “fatiar” o país, como
se o Brasil fosse deles. Bando de Canalhas!!! Punição severa e
exemplar para corruptos e corruptores e devolução do dinheiro
público desviado, com juros e correção monetária. Se investigar
com seriedade os grandes “doadores” de campanha, já darão um
grande passo para descobrir que o “mar de lama” é muito maior
que a Lava Jato !!! [sic]177

Toda prisão é um exercício de poder na medida em que ela fun-


ciona sustentada por uma regra básica da capacidade: há os que po-
dem prender e há os que podem ser presos. Ambos não se misturam
e dificilmente um assume o lugar do outro.

176
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-
-estado/2016/04/02/ex-ministro-argentino-citado-na-operacao-lava-
-jato-e-preso-por-corrupcao.htm>. Acesso em: 21 jun. 2016.
177
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-
-estado/2016/04/02/ex-ministro-argentino-citado-na-operacao-lava-
-jato-e-preso-por-corrupcao.htm>. Acesso em: 21 jun. 2016.
202  Manifesto para Abolir as Prisões
Embora a prisão só funcione quando alguém a provoque (desaca-
to contra policial, etc.), ou exija que ela atue (sentença condenatória
reclusiva), ela nem sempre está vinculada à prática de um crime ou à
existência de um criminoso, de uma acusação, de uma culpabilidade,
de uma condenação ou de uma pena privativa de liberdade determi-
nada. A existência de um crime, de um criminoso, de uma acusação,
de uma culpabilização, de uma condenação e, ou, de uma ordem pri-
vativa liberdade são apenas desculpas, e as menos importantes para
que o poder prisional exerça toda a sua violência.
Não é preciso dedicar muita atenção à prisão para perceber que
ela funciona com bastante liberdade, fazendo o que quer, quando
quer e como quer: a) ou porque ela tem uma procuração estatal; b)
ou porque ela tem o aval da sociedade para agir como achar mais
conveniente, desde que ela elimine pelo menos visualmente o pro-
blema, retirando do ambiente social aqueles que o sujam.
Valendo-se de um jogo fraudado, a prisão opera sempre seletiva-
mente. Às vezes tratando situações desiguais como se iguais fossem,
e situações idênticas como diferentes. Randomicamente ela pinça
dentro do universo de inimizades aquele inimigo mais convenien-
te. Aleatoriamente ela permite que um ou outro dos seus clientes se
desgarre e propague alto e bom som que a privação da sua liber-
dade foi a sua salvação. Discricionariamente, funcionando de acordo
com a conveniência e a oportunidade de quem a dirige, ela decide
sacrificar alguns dos seus ex-invulneráveis, fazendo calar as vozes da-
queles que a acusavam de parcial e de somente se voltar contra os
impotentes. Mal sabem eles que essa atitude aleatória, travestida de
justiça, compara elementos materialmente diferentes, mas apresen-
tados como formalmente equivalentes: em um lado da balança ela
dispõe uma quantidade (o peso de mais de 700.000 presidiários); no
outro prato da balança ela deposita uma qualidade (a importância
da prisão de um político desprotegido). A distância entre um e outro,
apesar de gritante, é desconfiada por poucos, possivelmente em ra-
zão do efeito calmante que essa comparação exerce.
Talvez sejam esses presentes homeopáticos os responsáveis por
fazer com que as pessoas esperançosamente acreditem que a prisão
tem algum efeito mágico capaz de resolver os problemas sociais,
1  O Presente do Sistema prisiona  203
sobretudo o da criminalidade. Talvez por isso elas fiquem perpetu-
amente aguardando esses efeitos milagrosos acontecerem. Embora
nada aconteça, talvez essa seja a razão de poucos questionarem a
sua ineficiência e inutilidade, e de um número menor ainda conse-
guir ter a lucidez da personagem tolstoiana de Ressurreição:

“Enquanto ele errava pela cidade, doente e cansado por causa de


um trabalho insalubre, da bebida e da libertinagem, e cometeu a
vileza de roubar umas esteiras imprestáveis, nós, que nadamos na
abundância, nós, homens ricos e instruídos, não nos preocupa-
mos em destruir as causas que o conduziram a esse delito, e pre-
tendemos remediar as coisas infligindo-lhe um castigo. É terrível.
Não se chega a saber se há aqui mais crueldade, se insensatez.
Mas parece que há as duas coisas, elevadas ao mais alto grau”. En-
quanto pensava desta maneira, Nekliudov não prestava atenção
ao que se passava diante dele. Ficou horrorizado com as conclu-
sões a que acabava de chegar, admirou-se de não ter já conside-
rado isso antes e de que os outros também não pensassem no
mesmo.

No jogo discursivo as pessoas são colocadas à margem da discus-


são prisional, meramente recebendo as informações que os domi-
nantes entendem convenientes. A maioria das pessoas nunca visitou
qualquer estabelecimento prisional, preferindo acreditar no que lhe
é repassado por terceiros, mesmo que esteja sentindo na carne viva
que a questão da criminalidade está longe de ser resolvida. Ou mes-
mo que seja bombardeada diariamente por programas midiáticos
que intencionalmente exageram uma versão da questão criminal (a
quantidade de crimes, por exemplo), e suavizam outra (a superlota-
ção e a violência prisional).
No cálculo das dificuldades as pessoas são auxiliadas a conside-
rar o que lhes seja mais confortável e tranquilizante. Ou melhor, me-
nos desconfortável e menos inquietante. Para economizar energia e
aborrecimento elas analisam a questão prisional com o menor esfor-
ço possível, ainda que isso represente fingir que um problema que
existe, não existe, e que a prisão, que promete resolver o problema
criminal, estranhamente não está cumprindo o seu papel. Sobre isso

204  Manifesto para Abolir as Prisões


parece não restar qualquer dúvida: a quantidade de prisões e de apri-
sionamentos só aumenta.
Diante desse dilema entendem as pessoas por bem optar, não
pela lógica do sensível, mas pela resposta que preencha seus anseios.
Como na anedota médica em que certo paciente, dotado de uma
saúde indefectível, mas acreditando-se doente, visita dois médicos:
de um recebeu o diagnóstico de saudável; de outro, o de portador da
doença desconfiada. Sobre o primeiro, emitiu um parecer acusando-
-o de ser incompetente; sobre o segundo, o elogio mais invejável.
De sorte que, aconteça o que acontecer, se queremos acreditar
que a prisão está resolvendo o problema da criminalidade, porque o
temor da hipótese contrária para nós é impensável e desconfortável,
nós acreditaremos! Como no teorema thomasiano, se consideramos
a situação prisional como satisfatória, reais serão as consequências
dessa satisfação. Se nós preferimos confiar que a prisão de um crimi-
noso elimina realmente o perigo, torna-se a prisão a única capaz de
tranquilizar-nos – e, com isso, ela nos tranquiliza. Em termos práticos,
acreditaremos cada vez mais que a prisão funciona – ou, pelo menos,
que um dia a prisão nos salvará. Enquanto isso, basta que os indese-
jáveis fiquem estocados longe dos nossos olhos.
Essa lógica da esperança, que em grande medida é transmitida
pela religião, advém do fato de que sentimos necessidade de que
exista algo implacável que nos proteja contra o mal. Algo que evite
que corramos perigo e que soframos. E a prisão tem assumido essa
função. Sem essa anestesia acreditaríamos que o receio pudesse ser
maior que a ameaça, paralisando-se a vida social. E é neste cenário
de insegurança subjetiva – às vezes convertida em objetiva –, que
a prisão tem se expandido, levando consigo o seu funcionamento
trágico, apesar dos efeitos colaterais que ela produz serem maiores
que o nosso medo.

1.5.1 O poder prisional se autonomizou e os seus


servidores se emanciparam
Como o Estado é um ente abstrato os seus supostos interesses
mudam de acordo com a infinita variedade de vontades e caprichos

1  O Presente do Sistema prisiona  205


de quem o representa. Seja um policial, um agente penitenciário, um
diretor de presídio, um delegado, um promotor de justiça, um ma-
gistrado, um político importante, um empresário influente agindo
por representação, etc. É por isso que o poder prisional está e estará
sempre sujeito à arbitrariedade, e, portanto, à seletividade, ao trata-
mento desigual e à injustiça para não desagradar tantas preferências
diferentes, e, ao mesmo tempo, não decepcionar a maioria das pes-
soas a ponto de perder a simpatia delas, ele precisa agir com discri-
cionariedade (conveniência e oportunidade). Quando é conveniente
e oportuno ele atua de uma maneira; quando não é conveniente e
oportuno, ele age de outra. De toda sorte, ele só atua de acordo com
o que é mais adequado e útil para ele, e não para a população.
O pior é que a maioria das pessoas acredita fielmente que a prisão
está ali para atender sempre aos seus anseios, ou para fazer o que
é melhor para a maioria. Mal sabem elas que o seu interesse ou a
sua vontade é o que menos importa quando do decreto prisional.
Então, o encarceramento de alguém, após um clamor populacional
nesse sentido, não passa de uma coincidência. E muito infeliz, pois
reabastece a crença de que o povo é ouvido em questões prisionais,
sujeitando-o facilmente.
Considerando que a imprevisibilidade da atuação prisional cor-
re o risco de sempre escancarar a sua instabilidade e parcialidade,
o poder de prender precisa eleger alguns inimigos unânimes, que
durem ao menos alguma época e dentro de algum espaço nem que
seja para equilibrar artificialmente a maneira como ele opera. Embo-
ra haja certa permanência histórica residual, travestida e pontual de
muitos deles, alguns desses inimigos já foram as bruxas, os hereges,
os políticos, os produtores de álcool, etc. E agora são os afrodescen-
dentes, alguns traficantes de drogas, os ladrões, alguns políticos cor-
ruptos, etc.
Desde já é preciso requentar que a arbitrariedade, é dizer, a se-
letividade e a maneira desigual e injusta com que o poder prisional
trata seus destinatários, é um produto da maneira discricionária com
que ele funciona. De sorte que, em um plano global prisional, fora
um ou outro escorregão, existem dois sistemas. Um é composto por
pessoas influentes, indignadas, resistentes e invulneráveis que pro-
206  Manifesto para Abolir as Prisões
vavelmente jamais serão encarceradas. E essa previsibilidade é quase
absoluta, porque bastante controlável e evitável. Para elas funciona
o direito prisional do amigo. O outro é abastecido por pessoas domi-
nadas, resignadas, irresistíveis e vulneráveis (pessoas sem papel, in-
visíveis sociais, traficantes de droga, afrodescendentes, desprovidos
de renda, etc.), que podem ser encarceradas a qualquer momento e
independente de um motivo. Podem, embora nem sempre sejam, e
justamente porque dentro desse macrogrupo atuam micropoderes
que se encontram potencialmente abaixo da capacidade dos aprisio-
náveis de se esquivar, e cujos caprichos e capacidades, no momento
da decisão sobre a prisão ou não, são os elementos mais considera-
dos. Basta imaginar uma disputa, não necessariamente física, entre
um policial militar e uma mulher branca, favelada e desconhecida, e
uma disputa entre um policial militar e um homem afrodescendente
e favelado, e que depois seja identificado como amigo de um colega
de farda seu, ou que forneça informações valiosas ao cumprimento
de determinada tarefa. Para a maioria delas, porém, funciona o poder
prisional do inimigo.
Isso equivale a dizer que o sistema prisional é previsível, con-
trolável e evitável em determinadas circunstâncias, quando elas
envolvem certas pessoas, e imprevisível, incontrolável e inevitável
em outras, dependendo dos envolvidos. Como as cartas do sistema
prisional estão precocemente marcadas e os papéis a serem inter-
pretados pelas pessoas já foram previamente distribuídos, não fica
muito difícil saber qual o destino de quem. Se a pessoa pertencer ao
microssistema dominante é previsível que ela não seja presa porque
o sistema prisional foi planejado e edificado para protegê-la. Aqui a
previsibilidade ganha ares de quase impossibilidade.

MAIORIA NO SUPREMO ABSOLVE COLLOR DE DESVIO DE


DINHEIRO
Ação penal contra ex-presidente foi julgada no Supremo quase
duas décadas depois de seu impeachment.
[...] O ex-presidente da República Fernando Collor de Mello viu
nesta quinta-feira, 24 [de abril de 2014], ser encerrado no Supre-
mo Tribunal Federal o último capítulo do escândalo de corrupção

1  O Presente do Sistema prisiona  207


que culminou no seu impeachment, em 1992. De lá para cá, o hoje
senador pelo PTB de Alagoas enfrentou 14 inquéritos, 8 petições
criminais e 4 ações penais. Collor foi absolvido em todos os casos,
incluído o processo decidido ontem pelo STF. Por falta de provas,
Collor foi absolvido da acusação de envolvimento num esquema
de desvio de verba pública por meio de contratos de publicidade.
Conforme a denúncia, o dinheiro beneficiava empresários que,
em troca, pagavam despesas pessoais do presidente, como a pen-
são alimentícia a um filho que Collor tivera fora do casamento178.

Em qualquer medida parece evidente que não estamos nos refe-


rindo àquela hipótese em que se encarcera alguém para protegê-lo
de algum perigo.

O QUE JUSTIFICA A “CONDUÇÃO COERCITIVA” DE LULA?


Medida autorizada por Moro foi duramente criticada: para mi-
nistro do STF, foi um “ato de força” e para deputado do PT, um
“sequestro”.
A condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
para depor [...] na 24 [...] fase da Operação Lava Jato foi duramente
criticada não só por militantes do PT e do campo popular, mas
também por juristas e operadores do direito de diferentes ten-
dências. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco
Aurélio Mello, chegou a classificá-la como “ato de força”. Ex-presi-
dente da OAB-Rio, o deputado Wadih Damous (PT-RJ) preferiu o
termo “sequestro”. A medida foi autorizada pelo juiz Sérgio Moro,
responsável pela Operação Lava Jato, sob a justificativa de que
serviria para proteger o próprio Lula, já que, em depoimentos an-
teriores, ocorreram tumultos provocados por militantes, como o
de 17/2, no Fórum Criminal de Barra Funda, em São Paulo. O mais
curioso é o fato de que o Ministério Público sequer solicitou auto-
rização para tal. Foi uma iniciativa espontânea do juiz mais midiá-
tico da história da República. Lula, porém, discordou das supostas
preocupações de Moro e reagiu indignado. “Eu não me recusei a

178
Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,maioria-
-no-supremo-absolve-collor-de-desvio-de-dinheiro,1158148>. Acesso
em: 05 out. 2015.
208  Manifesto para Abolir as Prisões
ir a Brasília prestar depoimento três vezes. E eu não me recusaria
a prestar depoimento aqui, era só ter me convidado”, afirmou ele,
no pronunciamento que fez na sede do PT, após o término do
depoimento que prestou à Polícia Federal (PF) no Aeroporto de
Guarulhos, em São Paulo179.

Se a pessoa pertencer ao macrossistema que engloba os confor-


mados, os vulneráveis, os dominados, ou seja, os inimigos conve-
nientes, é possível saber se ela será encarcerada ou não. E é bastante
provável que ela venha a ser. Aqui probabilidade e previsibilidade
caminham juntas.
De todo modo, ainda que o exercício do poder prisional seja frag-
mentário, pois cada aplicador (policial, agente penitenciário, diretor
de presídio, delegado, promotor de justiça, magistrado), atua de
acordo com suas próprias características (uns têm a mão mais leve,
outros, têm a mão mais pesada, por exemplo), o resultado final é
sempre pasteurizado e se resume ao provável aprisionamento de al-
guém, o que evidencia que, apesar de fragmentário, ele não é subsi-
diário. Se algum dia a prisão foi a ultima ratio, hoje ela é a prima ratio.
E, muitas vezes, além de ser a primeira a atuar, ela é a única que atua.
Quem se debruçar sobre o poder prisional atual irá perceber que,
embora faça parte do sistema penal e ainda lhe preste importantes
serviços, ele está se rebelando. Está se autonomizando. Ele está se
tornando uma espécie de poder prisional fractal autoafim.
Além de diabolizado – o que não é um defeito para boa parte da
população –, e de aproveitar-se da forma e dos poderes disponibiliza-
dos pelo poder punitivo, que é a sua matriz, o poder prisional traba-
lha infinitamente, embora dentro de uma área inicial finita, que não
é pequena. Apesar de aparentemente ser idêntico ao poder punitivo,
sobretudo porque dele faz parte, toda vez que o poder prisional atua
repetindo aquele, ele o faz de maneira não uniforme. É dizer, toda vez
que o poder prisional tem copiado o poder punitivo ele tem perver-

179
Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-que-
-justifica-a-conducao-coercitiva-de-Lula-/4/35629>. Acesso em: 29 jun.
2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  209
tido um pouco da sua forma original, modificando-a de acordo com
inúmeras circunstâncias e variáveis (inúmeras diferenças entre quem
pode prender, incontáveis diferenças entre quem pode ser preso e
infinitas diferenças nas características temporais e ambientais envol-
vendo o encarceramento, etc.)180.
O formato original do poder punitivo já é horrível e assustador.
Mas, se multiplicarmos a possibilidade dessas microvariações que
acontecem toda vez que ele atua, pela quantidade de pessoas e von-
tades que interferem na aplicação do poder prisional, teremos uma
infinidade de combinações e arranjos pavorosos, todos aptos a trans-
formarem a prisão em um poder que se desgarrou do poder punitivo,
e os aprisionamentos em um poder mais emancipado ainda.
De qualquer maneira, nessa sequência fractal de degradações e
distorções a arbitrariedade e a seletividade do poder punitivo, que já
eram altas, passam a elevadíssimas quando analisamos as prisões, e
a ser insuportável e impraticável quando avaliamos os aprisionamen-
tos – e, como veremos, a ser o ápice da crueldade, do terror e da im-
posição da dor e do sofrimento quando apreciamos algumas ativida-
des policiais. Em termos práticos, o poder punitivo é discricionário. A
prisão, que se desapegou dele, é mais discricionária ainda. E os agen-
tes funcionais (agentes penitenciários, policiais, delegados, promo-
tores de justiça, juízes), individualmente elevaram essa conveniência
e essa oportunidade randômicas ao extremo. Eles se desamarraram
quase que completamente do criminoso, do crime, da acusação, da
culpabilidade, da condenação, da pena e até das próprias regras pri-
sionais. Atualmente o poder de cada agente prisional é tão arbitrário
que ele chega a ser mais aleatório que a prisão que, por sua vez, tem
sido mais discricionária que o próprio poder punitivo, embora dele
sejam parte integrante. É como se se tratasse de um superpoder dis-
cricionário e quase incontrolável. O ápice da seletividade alcançável
pelo poder punitivo.
Com efeito, dentro do microssistema do direito penal dos amigos
a prisão não atua e funciona exclusivamente para proteger os seus

180
Sobre todo o parágrafo, ver: <http://www.scielo.br/pdf/rbef/v30n2/
a05v30n2.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2016.
210  Manifesto para Abolir as Prisões
membros individualmente. Às vezes o interesse coletivo é mais im-
portante. Nesse megagrupo, no sentido de poder, e não de tamanho,
os encarceramentos também podem acontecer contraminoritaria-
mente. Como quando o interesse do grupo dominante se sobrepõe à
vontade daquele que agora perdeu a sua capacidade de influência a
sua prisão passa a ser mais útil à equipe do que a sua liberdade.

GLOBO CRAVA ESTACA NO PEITO DE CUNHA E PEDE PARA


TEMER NÃO DEFENDÊ-LO
Neste sábado, o jornal O Globo, de João Roberto Marinho, descar-
tou de vez o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que foi peça
vital no golpe parlamentar apoiado pelo grupo de comunicação;
“Mesmo suspenso do mandato, e, por tabela, da presidência da
Câmara, Cunha continua a manobrar para que o Conselho de Éti-
ca não aprove a proposta de sua cassação. Por ter mentido na CPI
da Petrobras, ao garantir que não tinha contas ocultas no exterior
– foi desmascarado com provas documentais”, diz editorial; Globo
fez ainda um aviso: “Que o governo Temer não se envolva em ten-
tativas de defender o indefensável181.”

Obviamente, esses eventos são raríssimos. Normalmente, apenas


dentro do macrossistema do poder prisional dos inimigos é que tudo
é possível, seja a prisão, seja a liberdade, apesar de a prisão ser previ-
sível, possível e provável.

UM PRESO E OUTRO SOLTO


Um dos elementos, com cerca de 25 anos, do gang suspeito de
estar relacionado com a morte de um gasolineiro em Valença, em
19 de Agosto, e de ser responsável por vários assaltos à mão ar-
mada na Região Norte, após ontem ter sido ouvido no Tribunal
de Santo Tirso, ficou em prisão preventiva. O outro suspeito, de
35 anos, depois do interrogatório do juiz de instrução, saiu em

181
Disponível em: <http://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/237628/
Globo-crava-estaca-no-peito-de -Cunha-e -pede -para-Temer-
-n%C3%A3o-defend%C3%AA-lo.htm>. Acesso em: 12 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  211
liberdade sem a obrigação de se apresentar periodicamente às
autoridades policiais. Foi já ao final da tarde que o principal ele-
mento do grupo, ouvido durante todo o dia pelo magistrado, saiu
do tribunal em direcção ao Estabelecimento Prisional de Custóias.
Existem suspeitas de que estes dois homens pertençam a um gru-
po mais alargado de assaltantes, responsável por inúmeros casos
de assaltos a bombas de gasolina, ourivesarias e roubo de carros
pelo método de carjacking. As investigações continuam com o
intuito de encontrar os restantes suspeitos. Recorde-se que os in-
vestigadores da Polícia Judiciária do Porto e de Braga detiveram,
anteontem de manhã, na zona da Maia, estes dois intervenientes
dos assaltos [...] [sic]182.

As opções que podem acontecer dentro do macrossistema da ini-


mizade são: a) haver um crime, um criminoso, uma condenação pri-
vativa da liberdade, e ele ser confinado (é o que formalmente ocorre);
b) existir um crime, um criminoso, uma condenação privativa, mas
ninguém vir a ser preso (taxa de atrito); c) haver um crime, mas não
haver um criminoso ou não existir uma condenação privativa, e, mes-
mo assim, alguém ser preso (prisão de um inocente); d) existir um cri-
me, mas não um criminoso ou uma condenação privativa, não vindo
ninguém a ser encarcerado (crime insolúvel); e) haver um crimino-
so, uma condenação privativa, mas não haver um crime, e, mesmo
assim, alguém ficar preso (erro judicial); f) existir um criminoso, um
crime, mas não existir uma condenação privativa, e alguém ser preso
(prisão preventiva ou provisória); g) haver um crime e um criminoso,
mas ninguém saber de ambos, não havendo aprisionamento (cifra
oculta); h) não haver um criminoso, não haver um crime, mas existir
uma acusação, e alguém ficar encarcerado (prisão cautelar); i) não ha-
ver um criminoso, um crime ou uma acusação, mas existir uma pena
de prisão (prisão para averiguação); etc.
Quem deitar os olhos sobre o poder prisional de agora perceberá
que não há mais uma lógica que amarre a prisão aos elementos da
teoria do crime. E, quanto mais a prisão – e, com muito mais razão,

182
Disponível em: <http://www.cmjornal.xl.pt/nacional/portugal/detalhe/
um-preso-e-outro-solto.html>. Acesso em: 22 jun. 2016.
212  Manifesto para Abolir as Prisões
os seus agentes funcionais –, ganha independência do criminoso, do
crime, da acusação, da culpabilidade, da condenação e da pena, mais
ela assume uma função própria genérica, que é a de servir para qual-
quer coisa e, ao mesmo tempo, para nada de útil à população. De-
sapegada dos fatos e das regras jurídicas, ela pode atuar até contra
ambos. Por mais folclóricos que esses tempos sombrios pudessem
parecer, eles já nos alcançaram.

DE OFÍCIO, MAGISTRADO DECRETA A PRISÃO EM HABEAS


CORPUS
Imagine um paciente de Habeas Corpus pedir a liberdade ou a re-
dução da fiança e, como resultado, obter uma liminar que decrete
a prisão, sem fiança, de ofício. Foi o que ocorreu nesta segunda,
05, no plantão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pe-
las mãos do Desembargador José Damião Pinheiro Machado Co-
gan. [...] o desembargador não só negou os dois pedidos, como
também, de ofício – isto é, por conta própria, sem ser provoca-
do pelo pedido da Defensoria – revogou a decisão de primeira
instância e decretou a prisão preventiva, sem possibilidade de
fiança. “Era incabível, nos termos do art. 313, incisos I e II, do CPP, o
arbitramento de fiança, pelo que fica ora revogado o despacho judi-
cial e decretada a prisão preventiva para fins de garantia da ordem
pública, eis que se trata de audacioso praticante de furtos e roubos”
– afirmou. [...] Nas redes sociais, criminalistas se chocaram com a
decisão. “Vivemos tempos sombrios. É triste”, afirmou o criminalista
Rafael Serra Oliveira183.

Nessa sua nova versão o poder prisional pode dizer ou prometer


um resultado e oferecer outro totalmente contrário. Pode não entre-
gar resultado algum. Servir para funções que não são adequadas à
sua estrutura. Ser contraditório. Conveniente. Arbitrário. Ele pode,
inclusive, iludir, mentir e cometer crimes. A única coisa que não se
admite é que ele deixe de garantir que a divisão de classes fique es-
tacionada no estágio desigual em que ela se encontra. Separando

183
Disponível em: <http://justificando.com/2016/06/09/de-oficio-magis-
trado-decreta-a-prisao-em-habeas-corpus/>. Acesso em: 24 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  213
a classe alta da média e da baixa, e iludindo a média, que acredita
pertencer à alta, ao fazê-la crer que está distante daqueles que ela
pensa que fazem parte da média e da baixa. Só essa sua função jus-
tifica ainda a sua existência. Esse é o único motivo pelo qual o poder
prisional foi criado. Essa é a única utilidade que ele tem para quem
o inventou e o mantém. Os demais membros, os das classes média e
baixa, são apenas matéria prima, respectivamente pouco ou muito
utilizável. Ela é uma arma poderosíssima e os invulneráveis apren-
deram a controlá–la desde a revolução francesa, último momento
em que ela trocou de lado de maneira macabra. Por isso chega a ser
inacreditável pensar que a prisão, enquanto continuar existindo, dei-
xará de dirigir–se exclusivamente contra os vulneráveis, blindando
os dominantes. O fato de ela ter se autonomizado não é suficiente
para permitir que ela se revolte contra quem a alimenta. A sua inde-
pendência vai apenas até o limite em que ela ouse tentar desatender
quem a controla e explora. Não é preciso mais para que as pessoas
que usufruem os seus serviços jamais cogitem aboli–la.
Como os indivíduos que compõem o microssistema atuam no re-
gime atacadista, eles se preocupam em controlar apenas a demanda
por ordem que irá viger dentro do macrossistema integrado pelos
inimigos irresistíveis (classe baixa) e pelos prováveis (classe média).
Eles se limitam a definir o modelo do estereótipo (traficante afrodes-
cendente, jovem e pobre, homicidas exagerados, estupradores des-
controlados, etc.), e o padrão da sua conduta (porte e comércio de
poucos gramas, etc.). Depois que o fazem, eles entregam o controle
prisional varejista nas mãos da polícia. São os policiais que exercem
o poder encarcerador de maneira pulverizada dentro do macrossis-
tema ao qual eles próprios pertencem. Desde que não sejam ultra-
passados os limites pré-estabelecidos, o que eles fazem ou deixam
de fazer, e como atuam, é indiferente aos componentes do micro-
grupo dominante. Se eles aprisionam um usuário como traficante ou
se liberam um megatraficante, pouco importa. A menos que este ou
aquele tenham o poder de influir na demanda por ordem vigente, ou
tenham sido dispostos fora dela previamente.
Então, além de inúmeros outros, um dos grandes motivos para
o descontrole atual do poder prisional é que a classe dominante re-

214  Manifesto para Abolir as Prisões


nunciou aos micropoderes dentro do macrossistema dos inimigos
definitivos e potenciais, deixando a decisão da sua conveniência nas
mãos de agentes que atuam com discricionariedade, autoexecuto-
riedade e coerção. Não que a tomada do controle desses micropo-
deres, pelos dominantes, resolvesse nosso problema prisional. Trata-
-se de uma questão negativa, e não positiva. Ao controlar apenas a
qualidade dos inimigos que ele fideliza o microssistema permitiu que
a prisão não controlasse a sua quantidade. Aliás, que o poder prisio-
nal perdesse o controle sobre o quantitativo dos inimigos que ele
gasta ou devora. Como essa é uma questão que ainda não os afeta,
oferecendo-lhes, inclusive, bastante benefício, a única atenção que
eles dedicam a ela tem sido encenada mediante uma contemplação
admirada e que pode ser interpretada mediante uma frase que con-
densa alívio e desinteresse: felizmente a prisão é um sucesso!
Um sucesso, sim. Não porque ela tem enjaulado os inimigos con-
venientes e criminosos, mas sim porque o seu projeto de inversão
deu certo. Segundo a sua planilha: é um inimigo criminoso todo
aquele que foi ou está aprisionado. Perceber que esse giro não é um
mero jogo de palavras é essencial para entender a função que a pri-
são tem exercido na atualidade. A prisão não recebe aquele que é
criminoso. É um inimigo criminoso todo aquele que ela aprisiona. E
de modo irreversível.
A arbitrariedade do poder prisional atingiu um nível tão elevado
de desprendimento dos fatos e das regras jurídicas que ele inclusi-
ve tem sido aplicado até onde não existe uma situação criminosa ou
mesmo onde não há uma previsão na lei definindo aquela conduta
como criminosa.

ABUSOS DE AUTORIDADE
Os cidadãos, quase sempre os pobres, diariamente são vítimas de
abusos de autoridades. Nossos direitos são desrespeitados quan-
do: – somos presos ilegalmente, sem termos cometido qualquer
crime; – somos revistados sem motivo e com violência; – nossos
barracos são invadidos por policiais, em busca de marginais que
nem conhecemos; – confissões nos são exigidas à força, com tor-
turas ou somos obrigados a testemunhar o que não vimos nem

1  O Presente do Sistema prisiona  215


ouvimos; – policiais nos prendem em batidas, simplesmente por-
que não estamos com a Carteira de Trabalho. Não adianta falar
que temos outro documento que nos identifica, que somos tra-
balhadores ou que estamos desempregados184.

A rigor, o poder prisional não está se emancipando do poder


punitivo porque, além de fazer parte do seu conteúdo, ele precisa
preservar e usufruir as vantagens que aquele oferece. O seu objetivo
é maior. O que ele pretende, e está conseguindo, é divorciar-se de
toda e qualquer regra mínima ou principiológica que ainda freie o
poder de aprisionar. Quer alcançar a mais pura liberdade de exercício
e satisfação, mediante a mais discricionária privação de liberdade das
pessoas. Quanto mais se aprisiona sem motivo, mais livre a prisão se
torna. Fora a criminalidade complexa e a criminalidade aperfeiçoada,
que compõem a criminalidade tecnicamente inacessível. Fora a cri-
minalidade de colarinho branco, azul e dourado. E fora a que envolve
os amigos inacessíveis, é interessante notar que nem a criminalidade
de massa está protegida contra essa independência do poder prisio-
nal. A não ser em sua versão de criminalidade massificada (grandes
crimes ambientais, etc.), como criminalidade generalizada palpá-
vel (crimes envolvendo drogas, etc.), ela talvez seja seu maior alvo
e sua maior vítima. Considerando que um encarceramento massivo
como o nosso pressupõe necessariamente uma criminalização tam-
bém amplificada, pauta-se o poder de prender apenas por elemen-
tos indefinidos amplos o bastante para não limitar a autonomia que
ele já conquistou e ainda permitir-lhe expandi-la. Os limites desses
elementos são protocolados pela demanda por ordem do momen-
to, que é internamente elástica o suficiente para não correr o risco
de não caber em qualquer um que faça parte do macrossistema dos
resignados, irresistíveis e convenientes. Quem está dentro desse ma-
crogrupo experimenta uma espécie de determinismo policial-prisio-
nal quase inescapável, desviável apenas nas hipóteses muito raras de
conveniência dos dominantes, ou, mais raras ainda, de conspiração
de fatores implacáveis, seja a favor do inimigo, seja contra ele.

184
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/violencia/abuso.
htm>. Acesso em: 18 jun. 2016.
216  Manifesto para Abolir as Prisões
COM LEI DE DROGAS, PRESOS POR TRÁFICO PASSAM DE 31
MIL PARA 138 MIL NO PAÍS
Tráfico é crime que mais encarcera; aumento foi de 339% desde
lei de 2006. Para especialistas, aplicação é falha e teve efeito per-
verso sobre usuários.
[...] M. foi presa em 2012 com 1 grama de maconha. Foi conde-
nada por tráfico a uma pena de 6 anos e nove meses de prisão e
pagamento de 680 dias-multa. A decisão foi mantida em segunda
instância. Em março, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou
seu habeas corpus. Ela só foi solta em abril, após mais de três anos
de cárcere, por decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo
Tribunal Federal (STF). [...] milhares de processos semelhantes
[...] têm chegado aos tribunais desde a entrada em vigor da Lei
de Drogas, em 2006. A aplicação falha da lei é apontada como a
causa da superlotação dos presídios na última década. Presos por
tráfico de drogas já superam os de todos outros crimes no país,
segundo dados do Ministério da Justiça. [...]
Crescimento vertiginoso
Em 2006, quando a Lei 11.343 começou a valer, eram 31.520 pre-
sos por tráfico nos presídios brasileiros. Em junho de 2013, esse
número passou para 138.366, um aumento de 339%. Nesse mes-
mo período, só um outro crime aumentou mais dentro das ca-
deias: tráfico internacional de entorpecentes (446,3%). [...]
Usuário x traficante
Pela lei, para definir se o preso é um usuário de drogas ou um
traficante, o juiz levará em conta a quantidade apreendida, o
local, condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias
sociais e pessoais, além da existência ou não de antecedentes.
Essa mesma interpretação é feita pelo policial, quando prende, e
pelo promotor, quando denuncia. O porte para consumo próprio
é crime, mas as penas são advertência, prestação de serviços à
comunidade ou medida educativa. O sujeito é detido, assina um
termo circunstanciado, e é liberado para responder em liberdade.
A pena para o tráfico vai de 5 a 15 anos. Na lei anterior, ia de 3 a 15
anos. O sujeito é preso em flagrante, que pode ser convertido em
uma prisão preventiva (sem prazo). E o juiz não podia conceder
liberdade provisória até 2012, quando o STF derrubou essa regra.

1  O Presente do Sistema prisiona  217


A mudança na lei em 2006 tinha o objetivo de abrandar o trata-
mento penal dado ao usuário, mas, na prática, acabou havendo
um efeito inverso, e perverso, segundo especialistas. Processos
recebidos às centenas pelas Defensorias Públicas [...] mostram
casos em que apreensões de pouca quantidade de drogas resul-
taram em penas de mais de 5 anos. Em muitos casos, o preso ale-
gou ser usuário, mas foi enquadrado como traficante sem provas.
Aquele que vende para sustentar o vício, por sua vez, se vê diante
de uma pena mínima de 5 anos que, se é diminuída, chega no
patamar de 1 ano e 8 meses em regime de reclusão. “O resulta-
do prático é que pessoas pobres são presas como traficantes e
os ricos acabam sendo classificados como usuários. Um sistema
assim não é bom para ninguém”, afirmou [...] o ex-secretário na-
cional de Justiça Pedro Abramovay, que foi demitido do governo
Dilma Rousseff após defender publicamente a extinção de penas
para pequenos traficantes. Para ele, “as prisões por drogas hoje
são uma fonte perversa de criminalização da pobreza”. “A políti-
ca criminal brasileira nos últimos anos reforçou a lógica do ‘pega
ladrão’. A grande maioria dos presos está lá porque foi preso em
flagrante, sem investigação prévia”, complementa. [...] Em Forta-
leza, a população carcerária do presídio feminino dobrou devido
ao aumento vertiginoso de presas por tráfico, em proporção que
chega ao triplo da dos homens. Atualmente, são 719 presas para
374 vagas no Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa. “Era um
presídio modelo, dava para trabalhar a ressocialização. Por conta
dessa questão do tráfico, está superlotado”, relata a promotora de
Justiça Camila Gomes Barbosa, titular da 3ª Promotoria de Exe-
cuções Penais e presidente do Conselho Penitenciário do Ceará.
A promotora destaca que falta estrutura para investigação. “No
interior [do Ceará], é difícil de pegar o traficante porque eles se
espalham. A gente pega aquela pessoa com pouca droga, porque
eles são organizados, não guardam tudo em um lugar só”, afirma.
[...] “Isso não pode ser uma discussão maniqueísta”, disse o secre-
tário de Segurança Pública, Alexandre de Moraes. “Tente arrumar
uma testemunha contra um traficante. Primeiro para ver se ela
vem. Depois para ver quanto tempo ela dura. O traficante mata,
coloca terror onde mora, mexe com a mulher dos outros e mata
o marido. A polícia é 100%? A culpa é da polícia que prende? 91%
dos presos foram condenados. Então, estão errados o promotor
que denunciou, o juiz que condenou e os três desembargado-

218  Manifesto para Abolir as Prisões


res que mantiveram a condenação? Podem estar todos errados?
Pode. Agora, isso é muito mais profundo. Temos que fortalecer a
autonomia de cada instituição. O usuário que coloca uma faca no
seu pescoço para conseguir dinheiro para comprar droga mere-
ce ser preso? Não subestimemos a violência do tráfico”, disse. [...]
“Não que ela [audiência de custódia] vá resolver, porque nós te-
mos uma cultura da prisão enfatizada, de enxergar a prisão como
única resposta à delinquência, porém, a tendência a longo prazo
será mostrar que a liberdade deverá ser preservada, que gran-
de parte desses presos não deveria entrar no sistema prisional”,
completa. “Já está impactando, porque nós percebemos que pra-
ticamente metade das prisões em flagrante não são convertidas
em prisão preventiva. Mas a cultura jurídica é centenária. A gente
precisa é convencer a sociedade. Estamos tentando185.

Apesar de o julgamento do Recurso Extraordinário 635659 – com


repercussão geral reconhecida sobre a tipicidade do porte de droga
para consumo pessoal –, ainda não haver sido concluído186, na práti-
ca a autonomia do poder prisional, sobretudo quando manuseado
pela polícia, continuará a mesma.
As classes que fornecem os inimigos inconvenientes mal conhe-
cem e não têm acesso ao judiciário para se defender. E quando têm
é a polícia que decide o seu destino. O juiz, nas poucas vezes em que
é convocado, atua para meramente homologar a versão do policial
responsável pela diligência. E essa homologação quase nunca pas-
sa de um aval da condenação que o policial já rascunhou ou forjou
(provas plantas). Na prática, a autonomia do policial é superior à do
magistrado, à do promotor de justiça e à do delegado.

185
Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/com-lei-
-de-drogas-presos-por-trafico-passam-de-31-mil-para-138-mil-no-pais.
html>. Acesso em: 22 jun. 2016.
186
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercus-
sao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso
=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506>. Acesso em: 22 jun.
2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  219
“DECISÕES SOBRE DROGAS ESTÃO NAS MÃOS DA POLÍCIA,
NÃO DOS JUÍZES”, DIZ EX-SECRETÁRIO NACIONAL DE
JUSTIÇA
[...] Como a lei atual hoje não define critérios para distinguir trafi-
cantes de usuários, na prática, diz Abramovay, são os policiais que
decidem. “Como as nossas estruturas de desigualdade são muito
fortes, o critério acaba sendo este: se a pessoa é pega na favela,
ela é traficante, se é pega fora, é usuário. O juiz só vai analisar o
caso com cuidado lá na frente, e acaba chancelando a decisão da
polícia”, afirmou em entrevista à BBC Brasil187.

Superior até que a de outros agentes:

AGENTES DA FORÇA NACIONAL NÃO PODEM ANDAR


SOZINHOS NEM CONSUMIR BEBIDAS ALCOÓLICAS EM
FAVELA DOMINADA PELA MILÍCIA
Agentes da Força Nacional não podem circular sozinhos nem à
noite dentro da Gardênia Azul, favela da Zona Oeste do Rio onde
está localizado o conjunto Vila Carioca, do “Minha casa, minha
vida”, que serve de alojamento para a corporação. Segundo al-
guns deles denunciaram ao EXTRA, as instruções foram repassa-
das à tropa numa reunião com oficiais dentro de uma instalação
olímpica próxima ao alojamento. Os 3.500 PMs, policiais civis e
bombeiros de vários estados do Brasil também foram instruídos a
não entrar em bares e boates da favela e só fazer exercícios físicos,
como corridas e caminhadas, no entorno do alojamento. – Antes
de chegar ao Rio, não fomos informados que ficaríamos alojados
numa área dominada pela milícia. Só fomos saber quando che-
gamos aqui, no meio de junho. Uma semana depois, os oficiais
organizaram essa reunião para dizer o que podíamos ou não fa-
zer aqui dentro. Essa reunião foi importante porque tem gente
aqui do interior, que não faz ideia de como são lugares como esse
– afirmou um policial militar de Santa Catarina, sob a condição

187
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noti-
cias/2015/06/150623_abramovay_entrevista_pai_ms>. Acesso em: 29
jun. 2016.
220  Manifesto para Abolir as Prisões
de anonimato. Os agentes também estão proibidos de frequen-
tar bares e boates no entorno do alojamento e foram alertados
até sobre o contato com mulheres na favela. –Disseram inclusive
para não abordarmos mulheres na favela e nem ficarmos olhando
muito – disse outro policial. Ontem, o EXTRA revelou que os agen-
tes não podem circular armados pela favela e foram impedidos
até de instalar internet nos apartamentos onde estão alojados.
Como a milícia explora o sinal a cabo na região e, de acordo com
os agentes, as operadoras de internet fixa são impedidas de atuar
na área pelos paramilitares, cada policial tem usar a própria inter-
net móvel [sic]188.

Exemplo comum dessa prioridade – revelando que a vontade po-


licial, além de independente da vontade do promotor de justiça e
do magistrado, é, na prática, mais valorada que a deles –, ocorre na
Lei de Drogas (Lei n° 11.343, de 23.8.2006), grande responsável pelo
inchaço do nosso encarceramento:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar,


adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, trans-
portar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a
consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem au-
torização ou em desacordo com determinação legal ou regula-
mentar:
Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de
500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, ex-
põe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz
consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar, maté-

188
Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/agentes-da-
-forca-nacional-nao-podem-andar-sozinhos-nem-consumir-bebidas-
-alcoolicas-em-favela-dominada-pela-milicia-19720058.html>. Acesso
em: 16 jul. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  221
ria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de
drogas;
II – semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desa-
cordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que
se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a pro-
priedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou con-
sente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regula-
mentar, para o tráfico ilícito de drogas. [...]
Art. 34. Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender,
distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer,
ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou
qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou
transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200
(mil e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa. [...]
Art. 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou
associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos
nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e pagamento de 300
(trezentos) a 700 (setecentos) dias-multa. [...]
Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37
desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto,
anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas
em restritivas de direitos.
Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-
-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois ter-
ços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico. [...]
Art. 52. Findos os prazos a que se refere o art. 51 desta Lei, a au-
toridade de polícia judiciária, remetendo os autos do inquérito
ao juízo:
I – relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as
razões que a levaram à classificação do delito, indicando a quanti-
dade e natureza da substância ou do produto apreendido, o local
222  Manifesto para Abolir as Prisões
e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as cir-
cunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes
do agente; [...].

Apesar de geograficamente vir antes, o artigo 28 da legislação an-


tidrogas não deixa dúvida de que quem imporá os limites à decisão
do magistrado é a autoridade policial, ao narrar os fatos de acordo
com a sua interpretação:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou


trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas: [...]
§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal,
o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreen-
dida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos an-
tecedentes do agente.

Como a característica da autonomia é a capacidade de decidir


conforme o que for mais conveniente e oportuno, o seu cardápio de
possibilidades é variado. Com efeito, nada impede que o poder pri-
sional desencarcere aquele cuja liberdade lhe é interessante e útil. E
que ele o encarcere novamente, libertando-o depois, para de novo
prendê-lo. Em vez dessa instabilidade provocar uma sensação de in-
segurança na população, levando-a a duvidar da seriedade e da ca-
pacidade do poder prisional quanto às suas decisões, ela ricocheteia
um efeito inverso: todos passam a acreditar que a frequência com
que o inimigo entra e sai da prisão é culpa da sua própria persona-
lidade voltada para o mal. E incorrigível, a ponto de ele ter que re-
tornar para o cárcere toda vez que a prisão lhe dá uma nova chance,
acreditando nele ao libertá-lo.

1  O Presente do Sistema prisiona  223


VINTE DIAS APÓS SER SOLTO, HOMEM VOLTA A COMETER
MESMO CRIME
[...] Após rondas na região, a polícia encontrou Wander Evandro
Gonçalves, de 37 anos, morador na Vila Maxwell, com uma sacola
contendo um notebook, um aparelho de telefone celular e R$45
em dinheiro. [...] Após verificação, foi constatado que Wander
possuía várias passagens pela polícia por furto, e que havia sido
solto há apenas 20 dias. Comentários: [omitimos o nome do(a)
comentarista] Vi como é... solta e eles fazem de novo... Mata para
ver se fazem de novo... Ai esta a solução.... esse não tem conser-
to.... [omitimos o nome do(a) comentarista] nunca hovi fala que
ladrao tem conserto, se vai para a cadeia sai mais ladrao ainda?
poisse quando chegasse na cadeia, deveria ter que trabalha para
comer? a nossa constituiçao esta muito defazada se todos que
fossem para a cadeia e trabalhasse para comer nao teria tanto cri-
me, em nosso pais? [sic]189

Os arranjos e as combinações que a independência do poder pri-


sional produz podem ser apenas exemplificados. Em certa medida, a
submissão à prisão pode:
a. não depender da existência de qualquer regra criminal prece-
dente (policial que se incomoda com supostos olhares diretos de
alguém sujeito a uma abordagem, prendendo-o; ou que enjaula
servidores de instituição bancária que respeitam o detector de
metais);

POLICIAL PRENDE VIGIA AO SER BARRADO EM BANCO NO


PARANÁ
Vigilante quis checar credencial do policial antes de liberar a en-
trada.
Para Secretaria, ele expôs policial a situação constrangedora.

189
Disponível em: <http://www.douradosnews.com.br/dourados/vinte-
-dias-apos-ser-solto-homem-volta-a-cometer-mesmo-crime>. Acesso
em: 22 jun. 2016.
224  Manifesto para Abolir as Prisões
O vigilante e o gerente de uma agência bancária em Londrina
(PR) foram parar na delegacia, na terça-feira (2), após um policial
civil ser barrado na porta do banco. Ele queria pagar uma conta e
teria pedido que a entrada pelo detector de metais fosse liberada.
O agente apresentou a carteira de policial, mas o vigilante quis
checar a credencial antes de liberar a entrada. De acordo com
Geraldo Fausto dos Santos, diretor do Sindicato dos Bancários,
o policial chamou outros três colegas e exigiu que a porta fosse
liberada. Assim que entrou na agência, prendeu e tomou a arma
do vigilante, que foi algemado e levado de camburão à delegacia.
“Tudo o que ele [vigilante] fez foi ir verificar o documento com o
gerente. O policial seria liberado para entrar, mas teve uma reação
desproporcional. Inclusive colocou em risco os clientes da agên-
cia”, afirmou Santos. “Ele [vigilante] foi agredido em uma ação de
total despreparo. É um trabalhador”. Na delegacia, o vigilante foi
autuado por desobediência e o gerente por resistência. “Somos
solidários ao vigilante e ao gerente. As gravações internas do sis-
tema de câmeras devem mostrar inclusive o policial rendendo o
vigilante com uma arma na cabeça e colocando todos os clientes
em risco. Causou pânico total”, disse o diretor do sindicato190.

b. não depender de qualquer ato desviante que infrinja uma regra


previamente estabelecida [condenação à prisão de (suposto)
manifestante por carregar (suposta) carga explosiva];

QUEM É RAFAEL BRAGA VIEIRA, O ÚNICO PRESO POR CRIME


RELACIONADO A PROTESTOS NO BRASIL. ELE PORTAVA
PINHO SOL
Rafael Braga Vieira, de 25 anos, completa nesta sexta-feira um ano
de prisão. Até hoje, ele é a única pessoa julgada e condenada por
crime relacionado a protestos no Brasil. Vieira é negro, morava na
rua e usava crack. Sua detenção ocorreu após a manifestação do
dia 20 de junho de 2013, quando milhares de pessoas tomaram
o centro do Rio de Janeiro no embalo dos protestos contra o au-

190
Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL746983-
5598,00-POLICIAL+PRENDE+VIGIA+AO+SER+BARRADO+EM+BANCO+
NO+PARANA.html>. Acesso em: 24 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  225
mento das passagens de ônibus. Ele levava consigo duas garrafas
de produtos de limpeza – água sanitária e desinfetante Pinho Sol –
consideradas “artefato explosivo ou incendiário” pela polícia e pelo
juiz responsável pelo caso. Vieira afirma que não participava do
protesto e não tinha relação com os manifestantes. De acordo com
a sentença, ele deve cumprir ainda mais quatro anos no presídio
de Bangu 5, no Rio de Janeiro, onde divide cela com outros 70 de-
tentos. Por dia, tem direito a duas horas de sol no pátio da prisão191.

c. ser maior ou mesmo gritantemente diferente dos critérios penais


condenatórios previstos na decisão, ou mesmo nos fatos [penas
de 5 anos cumpridas em 10 anos (cadeia vencida); condenações
a regime semiaberto cumpridas em regime fechado; penas de
detenção cumpridas em instituições para reclusos; presos provi-
sórios mantidos em estabelecimentos definitivos; habeas corpus
convertido em prisão].

“NO BRASIL, NA MAIORIA DOS CASOS FICA-SE PRESO


ALÉM DO TEMPO”, DIZ PRESIDENTE DO CONSELHO
PENITENCIÁRIO DO RIO
[...] Os últimos mutirões carcerários do CNJ, em estados do Nor-
deste, identificaram uma média de 16% de presos que já deve-
riam estar fora da prisão.
[...] Na maior parte dos casos, as pessoas ficam presas além do
tempo que deveriam, seja porque já tinham direito a uma pro-
gressão de regime ou ao livramento condicional. Essa realidade
tem a ver com a mentalidade, ainda predominante, de que a pri-
são é a solução para todos os problemas de segurança pública.
Mas a lógica do encarceramento, que fez dobrar a população car-
cerária entre 2002 e 2012, já mostrou que não está dando certo192.

191
Disponível em: <http://www.geledes.org.br/quem-e-rafael-braga-viei-
ra-o-unico-preso-por-crime-relacionado-protestos-brasil-ele-portava-
-pinho-sol/>. Acesso em: 24 jun. 2016.
192
Disponível em: <http://www.sul21.com.br/jornal/brasil-na-maioria-
-dos-casos-fica-se-preso-alem-tempo-diz-presidente-conselho-peni-
tenciario-rio/>. Acesso em: 24 jun. 2016.
226  Manifesto para Abolir as Prisões
Toda essa autonomia do poder prisional equivale a afirmar que a
prisão nem sempre é uma consequência natural, podendo ser uma
mera interpretação artificial ou invenção: a) seja do fato encarado
como crime; b) seja do que dispõe a lei penal; c) seja do que repre-
senta o criminoso; d) seja do que tenta provar a acusação; e) seja do
que está disposto na condenação.
E, mesmo quando ela aparenta ser natural, ela é injusta em razão
da seletividade que promove. E ela é sempre seletiva, pois trata dife-
rentemente situações iguais, e serve, por detrás das cortinas, como
uma ferramenta de exclusão e controle social apenas dos vulnerá-
veis, dos dissidentes e dos inservíveis.
Requentando o que já foi dito, pode-se fiscalizar o que a prisão
devora. Porém, o quanto ela devora não está sendo objeto de con-
trole. A quantidade de gente que ela vem gastando e desgastando
só tem crescido. Portanto, outro inconveniente da emancipação do
poder prisional tem sido o encarceramento em massa. Não se sabe
qual o limite dessa autonomia de poder, embora saibamos que essa
independência é a causa principal desse descontrole.

Em 2006, quando a Lei 11.343 começou a valer, eram 31.520 pre-


sos por tráfico nos presídios brasileiros. Em junho de 2013, esse
número passou para 138.366, um aumento de 339%. [...] Em mui-
tos casos, o preso alegou ser usuário, mas foi enquadrado como
traficante sem provas. Aquele que vende para sustentar o vício,
por sua vez, se vê diante de uma pena mínima de 5 anos que, se
é diminuída, chega no patamar de 1 ano e 8 meses em regime
de reclusão. [...] “Segurança pública não se faz só com polícia. No
caso do tráfico, há a necessidade de uma definição da Justiça. Em
várias condutas são feitos termos circunstanciados, mas há casos
em que ainda há dúvidas. [...]” [...] O conselho [CNPCP] concluiu
que a Lei de Drogas não cumpriu seu papel, lotando os presídios
brasileiros em razão dos critérios subjetivos de distinção entre o
usuário e os pequenos traficantes [...]. “Não que ela [audiência de
custódia] vá resolver, porque nós temos uma cultura da prisão
enfatizada, de enxergar a prisão como única resposta à delinqu-
ência, porém, a tendência a longo prazo será mostrar que a liber-

1  O Presente do Sistema prisiona  227


dade deverá ser preservada, que grande parte desses presos não
deveria entrar no sistema prisional” [...]193.

No ritmo que estamos, provavelmente já somos o terceiro país


que mais encarcera no mundo, e aquele cuja população prisional
cresce mais rapidamente. Entretanto, o sistema não para de admitir
mais clientes, embora tenhamos uma defasagem de vagas absurda-
mente alta:

A taxa de ocupação prisional brasileira é de 161%. No Brasil, em


um espaço concebido para custodiar apenas dez indivíduos, há,
em média, 16 pessoas encarceradas. [...] Em aproximadamente
um quarto das unidades (24%), há mais de dois presos para cada
vaga. Em 63 unidades, a situação de superlotação é ainda mais
acentuada: há quatro pessoas ou mais por vaga194.

Nosso sistema prisional se mantém sobre uma contradição esqui-


sitamente aceita: um poder autônomo gerenciando uma estrutura
sem autonomia, sem capacidade de funcionamento.

1.5.2 A polícia se tornou independente e soberana


Não há um plano global, sequer atuarial, calculando os limites
do encarceramento em massa, nem mesmo as suas consequências
ou os resultados irreversíveis da sua experiência destruidora. Não há
uma política de prevenção sobre a nossa hiperdetenção, tampouco
uma política de pensamento em torno da nossa vigilância excessiva
e arbitrária sobre as pessoas e sobre o que elas fazem ou deixam de
fazer. Não há nada, apenas um ou outro número que tenta alertar
para a nossa situação prisional trágica. Porém, são informações que
são encaradas como dados, não como valores que se referem a pes-

193
Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/com-lei-
-de-drogas-presos-por-trafico-passam-de-31-mil-para-138-mil-no-pais.
html>. Acesso em: 29 jun. 2016.
194
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, pp. 37 e 38. Acesso em: 24 jun. 2016.
228  Manifesto para Abolir as Prisões
soas que estão sendo submetidas a um procedimento de destreina-
mento, conveniente apenas para alguns.
Municiados com um poder discricionário (conveniência e oportu-
nidade = adequação ao interesse público), autoexecutório (dispensa
pedidos de permissão), e coercitivo (impõe a sua vontade, sob pena
de prisão), os policiais, que são os agentes diretamente responsáveis
pela implementação das prisões, encontram-se legitimados para
atuar dentro dos limites legais. Ocorre que a legalidade tem sido pal-
co para as maiores injustiças.

DEPUTADO CEL. TELHADA DIZ QUE “INFELIZMENTE” MATAR


“FAZ PARTE DA AÇÃO POLICIAL”
Na recepção do gabinete do deputado estadual Paulo Telhada,
um potinho de balas de goma saúda o visitante, embaladas em
papel branco com seu nome e a expressão “bancada da bala” –
como é conhecida a frente política conservadora integrada por
Telhada, coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo.
[...] Segundo deputado eleito com mais votos em São Paulo no
ano passado, pelo PSDB, Coronel Telhada diz que as “balinhas
docinhas” são para ironizar o nome dado de forma “pejorativa” à
bancada da bala, que defende projetos para reduzir a maioridade
penal e flexibilizar o porte de armas. O grupo reúne “um pessoal
que quer trabalhar forte, quer combater o crime, quer trabalhar
dentro da lei”, define. Telhada já afirmou à imprensa ter matado
mais que 30 pessoas em seus anos na ativa. À BBC Brasil, diz que
na verdade “nunca contou” o total, mas que foi “uma pancada”,
sempre “dentro da lei”. O coronel se exalta com críticas ao número
de mortes causadas por policiais, afirmando que matar “faz parte
da ação policial” e não pode ser evitado em um país em “guerra”
como o Brasil. [...] Ele defende o projeto aprovado ontem pela Câ-
mara dos Deputados para reduzir a maioridade penal, mas queria
que a redução fosse dos 18 para os 14 anos. Para ele, o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) é um “Frankenstein” que criou
“um monstro mirim”, como se refere ao infrator menor de idade.
Os problemas sociais por trás do envolvimento de adolescentes
com o crime são de responsabilidade do Estado, afirma – ele,

1  O Presente do Sistema prisiona  229


como policial, trabalha “com o efeito”. “Eu ganho para resolver
aquele problema”, diz195.

Dentro dela, ou mesmo fora, a atividade policial tem agregado


novas modalidades ao seu poder: a da insubmissão a fiscalizações
e a da irrecorribilidade das suas decisões. Com esse novo padrão, o
poder prisional tem assumido um status de soberano.
Isso significa que no dia a dia das pessoas que compõem o ma-
crossistema inimigo a situação tende a piorar. A rigor, a justiça que
decide se elas serão consideradas inimigas convenientes ou não é
aquela exercida pelo tribunal policial. É ele quem tem autonomia,
soberania e força discursiva. E nos julgamentos informais que esse
tribunal normalmente conduz, é a polícia quem concentra todas as
funções: acusando, condenando e executando. Tudo dentro de um
procedimento sumaríssimo e irrecorrível.

NO CASO RAFAEL BRAGA, DEPOIMENTO DA POLÍCIA BASTA


Único condenado nos protestos de 2013 por portar frasco de Pi-
nho Sol é preso agora por tráfico.
Rafael Braga Vieira, o único condenado por participar dos protes-
tos que tomaram o Brasil em 2013, está de novo atrás das grades.
Na manhã da quarta-feira, ele saiu da casa da sua mãe, no morro
da Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, para comprar pão com três
reais no bolso da bermuda e uma tornozeleira eletrônica à vista.
No caminho foi abordado por policiais da Unidade da Polícia Paci-
ficadora (UPP) que afirmam ter encontrado com Rafael uma saco-
la de mercado com 0,6 gramas maconha, nove gramas de cocaína
e um morteiro, um tipo de foguete usado entre os narcotrafican-
tes para alertar da presença de policiais. As apreensões constam
no laudo policial, embora as assessorias da UPP e da Polícia Civil
excluam a cocaína da lista. Rafael, de 27 anos, negou ao seu ad-
vogado do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, que cuida
do seu caso desde 2013, e ao juiz portar todos os itens. Rafael afir-
mou que os agentes o conduziram a um beco onde foi agredido

195
Disponível em: <www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150820_
telhada_ping_jc_lk>. Acesso em: 8 jul. 2016.
230  Manifesto para Abolir as Prisões
e ameaçado para que revelasse informações sobre o tráfico local.
Se não o fizesse, relatou o jovem, os policiais o incriminariam co-
locando nele uma arma e drogas. “Dez minutos depois dele ter
saído de casa, uma vizinha chegou dizendo que estavam batendo
em Rafael e que ele não tinha nada nas mãos”, relata à mãe, Adria-
na de Oliveira Braga, catadora de latinhas. A senhora, de 46 anos
e mãe de sete filhos, correu para encontrar seu filho, mas ele não
estava mais na rua. “Encontrei ele algemado na sede da UPP. Ele
não tinha envolvimento com o tráfico, mas eles [os policiais] não
gostam dele, disseram que era bandido”, diz Adriana. Apesar da
suspeita levantada pela defesa de o flagrante ter sido forjado pe-
los agentes, um juiz decretou sua prisão cautelar e afirmou na sua
decisão que “o indiciado tem a personalidade voltada para a prá-
tica delitiva”. Rafael foi acusado de tráfico de drogas, associação
com o tráfico e colaboração com o tráfico, crimes punidos com até
quatro anos de prisão. “Se discute se o flagrante foi forjado ou não
quando, na verdade, nunca vamos ter certeza sobre isso porque
é a palavra de um contra outro. Mas podemos questionar a forma
como os flagrantes são constituídos no Brasil, onde o depoimen-
to da policia é o único que vale para identificar um criminoso he-
diondo”, explica o delegado Orlando Zaccone [...]. “No Brasil basta
um garoto negro e pobre com uma pequena quantidade drogas
que já é considerado traficante, enquanto você, jornalista bran-
ca, seria identificada como usuária”, ilustra Zaccone. [...“] Rafael é
tido como um suspeito potencial para cometer crimes e tem algo
que agrava isso: a Justiça prestigia sempre a versão da polícia. Isso
não é justo, deve ter mais testemunha do que o policial, para que
não prevaleça sempre sua versão”, lamenta o desembargador Siro
Darlan. O problema não é exclusivamente brasileiro, avalia o pro-
fessor de direito penal da FGV, André Mendes, “mas aqui fica mais
acentuado porque o trabalho da polícia fica muitas vezes macula-
do por práticas ilegais, como os flagrantes forjados”. Durante sua
estadia atrás das grades Rafael chegou a ser punido com dez dias
na solitária após seu advogado ter postado no Facebook, em uma
das suas saídas em regime semi-aberto, uma foto dele frente a
um muro da prisão com a seguinte mensagem: ‘Você só olha da
esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima para baixo”.
O castigo não foi pichar a parede, coisa que ele não fez segundo
seu advogado, mas “veicular de má fé por meio escrito ou oral crí-
tica infundada a Administração Prisional”. [...] o delegado Zaccone

1  O Presente do Sistema prisiona  231


argumenta que “um dos nossos problemas é que a qualidade da
polícia do Brasil se mede pelo número de prisões”. “É uma política
de números que incentiva possíveis flagrantes forjados. Mas não
é bem assim que mede-se a qualidade da prestação de um servi-
ço como esse em outros países. Se a polícia está prendendo mui-
to não é bom sinal, porque isso significa que não esta fazendo o
trabalho mais importante que é a prevenção”, explica o delegado
que questiona: “Quantos Rafael Braga você acha que temos hoje
no nosso sistema de Justiça criminal?”196

De uma época em que as pessoas eram, em tese, presas pelo que


faziam, para uma época em que as pessoas podiam ser presas pelo
que eram, e depois para uma em que elas foram encarceradas pelo
que representavam, passamos para uma época em que as pessoas
são presas independentemente de qualquer razão ou lastro que jus-
tifique minimamente a privação da sua liberdade. A não ser por um
motivo que é comum a todos os confinamentos: as vantagens que
ele oferece para quem o manipula cada vez mais autonomamente
(arbitrariamente), sejam pessoais, coletivas, verdadeiras, falsas, justi-
ficáveis, não justificáveis, etc. Há vantagens para todos os gostos. E
esses desejos têm variado e se multiplicado assustadoramente.
Essa soberania do poder policial, derivada da sua independência
cada vez mais acentuada, varia de acordo com elementos subjetivos
e objetivos. Mas, ela sempre tem em comum o fato de que ela é im-
posta por um terceiro. Ele geralmente é um agente público197 que
age por motivação própria ou de outrem e nem sempre com respal-
do no ato, na lei, na acusação, na culpabilidade, na condenação e na
pena.
O agente policial emancipado pode atuar por subordinação ou
por coordenação.

196
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/14/politi-
ca/1452803872_078619.html>. Acesso em: 24 jun. 2016.
197
Ver artigo 301 do Código de Processo Penal (CPP): “Art. 301. Qualquer
do povo poderá (??) e as autoridades policiais e seus agentes deverão
prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.” Todavia,
há inúmeras exceções.
232  Manifesto para Abolir as Prisões
Ele age por subordinação quando ele providencia o aprisiona-
mento levando em consideração diretrizes de outra pessoa, seja ela
uma autoridade superior, hierárquica ou não (que determina uma
diligência, etc.), ou um cidadão (que solicita a prisão de um agressor,
etc.). Nesse caso ele trabalha, em tese, imparcialmente. Eventual par-
cialidade e discricionariedade ficariam a cargo do seu superior (que
deseja usá-lo, mediante ordens manifestamente não ilegais, como
instrumento para negócios ilícitos, vinganças, etc.), ou do denuncian-
te (que forjou ou perverteu os fatos sobre uma agressão, etc.).

PMS ENTRAM EM PRÉDIO PÚBLICO INVADIDO POR


ESTUDANTES EM SP
Tribunal de Justiça de SP considerou a entradas de policiais ilegal
e cobrou explicações do secretário de segurança pública.
O Tribunal de Justiça de São Paulo considerou ilegal a entrada de
policiais militares, nesta segunda-feira [...], num prédio público
invadido por estudantes. O tribunal cobrou explicações do se-
cretário de segurança pública. [...] A força tática da Polícia Militar
chegou ao prédio no fim da manhã, apoiada por essa liminar, mas
sem mandado judicial. O secretário de segurança pública de São
Paulo, Alexandre de Moraes, acompanhou a ação. Por volta do
meio-dia, a assessoria de imprensa do Centro Paula Souza infor-
mou que os policiais foram lá para garantir o trabalho dos fun-
cionários. “O bloqueio é apenas para facilitar o nosso trabalho, o
trabalho para negociar e facilitar a entrada dos funcionários, para
que os funcionários cheguem até o local e consigam entrar”, diz
o tenente coronel Francisco Cangerana, policial militar. Mas essa
explicação não convenceu o juiz da central de mandados. O juiz
Luiz Manuel Pires mandou suspender a reintegração de posse e
deu um prazo de 72 horas para que o secretário de Segurança
Pública, Alexandre de Morais, explique por que entrou na escola
sem mandado judicial198.

198
Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/05/
pms-entram-em-predio-publico-invadido-por-estudantes-em-sp.
html>. Acesso em: 24 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  233
Ele atua por coordenação quando ele realiza o encarceramento
considerando diretrizes próprias – como quando ele se sente desaca-
tado –, mesmo que o aprisionado tenha apenas manifestado seu di-
reito constitucional de contestar uma ordem manifestamente ilegal
determinada pelo agente policial.

PM SE POSICIONA SOBRE PRISÃO DE PALHAÇO


O artista de rua teria dito algumas palavras durante a sua apre-
sentação que teriam ofendido os policiais [...].
A Polícia Militar se posicionou no final da tarde desta sexta-feira
(14) sobre o caso, que aconteceu à tarde, envolvendo a prisão de
um artista de rua no calçadão central de Cascavel. O palhaço te-
ria dito algumas palavras durante a sua apresentação que teriam
ofendido os policiais. A equipe do Choque realizava patrulha-
mento rotineiro nas proximidades e realizou a prisão do palha-
ço. A PM, através do Tenente Roberto Tavares, se pronunciou no
final da tarde dizendo que a ação dos policiais foi correta, pois
todos aqueles que se sentirem ofendido têm o direito de repre-
sentar. [...] Em busca aos registros envolvendo o nome do palhaço
“Tico Bonito”, que na verdade é Leonides Carlos Taborda Quadra,
os policiais encontraram vários envolvimentos com tumultos. [...]
O caso tomou grande repercussão, pois várias pessoas assistiam
a apresentação do artista quando houve a confusão e prisão do
rapaz. No momento da ação da PM a população gritou frases de
“opressão”. [...] Segundo o que foi relatado pela equipe no Boletim
de Ocorrências, a piada feita pelo palhaço foi ofensiva ao trabalho
dos policiais, por isso ocorreu a prisão. “[Ele disse] algo parecido
como ‘Ali vêm os palhaços do Governo que só servem para cuidar
das pessoas que têm dinheiro’”199.

Ou, o que normalmente acontece:

199
Disponível em: <http://cgn.uol.com.br/noticia/146531/pm-se-posicio-
na-sobre-prisao-de-palhaco>. Acesso em: 24 jun. 2016.
234  Manifesto para Abolir as Prisões
“POBRE É PRESO COMO TRAFICANTE. PLAYBOY FAZ ACERTO
COM DELEGADO”
Para ex-investigador, possível descriminalização do uso de dro-
gas pelo STF não muda o essencial: polícia continuará a distinguir
usuários e traficantes pela classe social.
[...] Ponte Jornalismo: Então, na prática não vai mudar nada?
Roger Franchini: O nosso grande problema hoje é a questão de
quem é usuário e quem é traficante. É uma decisão muito delica-
da que é tomada pelo policial militar. Quando um PM chega com
alguém na delegacia com um montinho de maconha na mão, o
flagrante está praticamente pronto. É muito raro que um delega-
do contrarie a ocorrência de um PM, porque isso cria um atrito
muito grande entre as duas instituições. Muito embora caiba ao
delegado definir o crime de acordo com a norma, essa decisão é
sem dúvida influenciada pelo PM.
Ponte Jornalismo: E a tendência do PM é a de criminalizar essas
situações?
Roger Franchini: Ele parte principalmente da ideia de que tem
que limpar a rua. E o simples fato de você levar alguém pra de-
legacia pra assinar um termo circunstanciado de porte de droga
não atinge o que ele quer. O cara vai sair com ele de lá e é bem
capaz de voltar para o mesmo lugar para fumar a mesma maco-
nha. Então pra ele é muito melhor que ele faça um flagrante de
tráfico. E as maiores vítimas são aquelas pessoas que incomodam
a PM. Normalmente alguém que já foi preso por tráfico ou por
um roubo e que está na rua fumando um baseadinho. E aí pra
transformar esse baseado num crime de tráfico não é difícil. En-
tão é muito delicado essa relação entre traficante e usuário. E eu
acho que a tendência do STF é determinar quantidade de droga
tolerada, mas imagino que caberá à Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária) definir esses critérios sobre que determinada
quantidade não faz mal. Usuário bem nascido tem uma família
pra fazer o acerto com o delegado200.

200
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/201cpobre
-e-preso-como-traficante-playboy-faz-acerto-com-delegado.201d-
3462.html>. Acesso em> 24 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  235
A conduta do aprisionado é apenas uma desculpa para justificar
com mais facilidade a prisão dele como o inimigo conveniente que
ele representa e para dar à autonomia arbitrária da polícia um ar de
justiça e de correição. Se a retribuição da pena não passa de uma
vingança inútil – porque o bem ameaçado ou ofendido não retornará
ao seu estado anterior à ameaça ou à lesão –, e se a prisão não tem
qualquer poder de prevenir a prática dos crimes, por que e para que
se prende? Legalmente, a prisão deveria ser apenas o local de cum-
primento prático de uma pena seriamente privativa da liberdade,
certa e determinada. Dessa forma, e ainda consideradas as regras do
jogo legislativo, quem cometeu um crime e foi condenado à pena de
detenção ou reclusão, por exemplo, deveria ficar preso. E quem não
o cometeu, ou não foi condenado, deveria ficar solto. Porém, o siste-
ma prisional, sobretudo o policial, só obedece a uma lógica sofista
ou, no mínimo, baseada em um paralogismo. Embora a quantidade
de sentenças condenatórias injustas e prematuras seja vergonhosa,
todo aprisionamento deveria respeitar no mínimo os limites que elas
definem, pois somente elas são antecedidas por um devido proces-
so legal que, em tese, disponibilizou ao acusado todos os recursos
necessários à sua defesa. Todavia esse é um mundo paralelo e imagi-
nário, e totalmente distante da independência que o poder policial
infelizmente imprime sobre os inimigos convenientes.
Ao personificarem a justiça diante da classe aprisionável, os poli-
ciais usurpam a função judiciária: a) proferindo suas próprias senten-
ças condenatórias; ou, no mínimo, b) desprezando o seu comando
sentencial ao ampliarem ou perverterem os seus termos (prendendo
pessoas absolvidas, condenando-as para além do tempo decidido ou
em um modelo prisional diverso).
Essa arbitrariedade que a independência policial possibilita é ape-
nas externa. Ela autoriza também uma arbitrariedade interna ainda
mais submissa ao capricho do policial: a seletividade. Ela pode se
apresentar, por exemplo, quando: a) duas pessoas se associam para o
tráfico, sendo o piloto preso e o empresário, dono da aeronave, não;
ou b) cinco pessoas, em coautoria, envolvem-se em corrupção, sendo
quatro aprisionadas e uma não, em razão de colaboração premiada.

236  Manifesto para Abolir as Prisões


Não bastasse, em vez de o judiciário promover o contraponto a
toda essa autonomia, filtrando-a ou represando-a, ele tem preferido
ser conivente. Parece ser mais confortável acasalar-se com esta polí-
cia soberana, ajudando-a a conceber aberrações difíceis de esconder,
tais como:
a. a condenação a uma pena privativa de liberdade nem sempre
é o antecedente teórico do cumprimento prático da prisão, po-
dendo suceder esta (aprisionamento anterior à sentença conde-
natória, como nos casos de prisões provisórias e preventivas), ou
mesmo sequer vir a existir um dia (absolvições posteriores a me-
didas prisionais acautelatórias);

O Brasil exibe, entre os países comparados, a quinta maior taxa de


presos sem condenação. Do total de pessoas privadas de liberda-
de no Brasil, aproximadamente quatro entre dez (41%), estavam
presas sem ainda terem sido julgadas. [...] Em números absolutos,
o Brasil tem a quarta maior população de presos provisórios, com
222.190 pessoas. [...] Essa tendência, além de contribuir para a su-
perlotação dos estabelecimentos prisionais e de elevar os custos
do sistema, expõe um grande número de indivíduos às consequ-
ências do aprisionamento201.

E:

ESTUDO REVELA QUE 37% DOS DETIDOS PROVISÓRIOS


NÃO FORAM CONDENADOS À PRISÃO EM 2011
Levantamento do Ipea mostra que havia 240 mil presos provisó-
rios no Brasil no ano passado.
[...] Quase quatro em cada dez réus detidos provisoriamente du-
rante o processo não são condenados a penas de prisão. É o que
revela levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Apli-
cada (Ipea) divulgado nesta quinta-feira, durante seminário do
Ministério da Justiça sobre penas alternativas. O balanço foi fei-

201
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 13. Acesso em: 24 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  237
to em nove unidades da federação, a partir de uma amostra dos
processos criminais encerrados em 2011. Somados os casos de
absolvição, penas alternativas, prescrição e arquivamento, 37,1%
dos réus que estiveram detidos provisoriamente antes de serem
julgados acabaram não sendo condenados à prisão. Se o resulta-
do for extrapolado para todo o país, é possível que cerca de 90 mil
pessoas atualmente sob detenção provisória no superlotado sis-
tema carcerário brasileiro não venham a ser condenadas à prisão,
quando forem julgadas pela Justiça. Ou seja, estão submetidas
a um regime mais duro de pena do que aquele a que serão con-
denadas pela Justiça. [...] – Há um abuso da conversão da prisão
em flagrante para prisão provisória, em casos que são de pouca
gravidade, como pequenos furtos, o que gera sobrecarga do sis-
tema carcerário. Não faria diferença se essas pessoas estivessem
soltas. A lei diz que a prisão preventiva é exceção, mas tem sido
a regra – disse o pesquisador do Ipea e autor do estudo, Almir de
Oliveira Júnior. Na mesma linha, a diretora de Políticas Penitenci-
árias do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Valdirene
Daufemback, considera exagerado o número de prisões provisó-
rias no país. Ela considera frágeis algumas das justificativas usa-
das por juízes para decretar ou manter prisões provisórias, como
a alegada necessidade de manutenção da ordem pública ou a
necessidade de localizar o réu durante o processo202.

b. a condenação a uma pena privativa de liberdade não é um an-


tecedente teórico garantidor de que os limites expostos na sen-
tença, ou no acórdão, serão respeitados quando do cumprimen-
to prático da sanção (permanência do aprisionamento para além
do prazo da condenação);

DEMORA NO CUMPRIMENTO DE ALVARÁS PREOCUPA


DEFESA
É senso comum entre advogados criminalistas que instituições
penitenciárias quase nunca obedecem de prontidão ordens de

202
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/estudo-revela-
-que-37-dos-detidos-provisorios-nao-foram-condenados-prisao-
-em-2011-14678265>. Acesso em: 24 jun. 2016.
238  Manifesto para Abolir as Prisões
soltura imediata assinadas pelo Judiciário. [...] A Consultor Jurídi-
co acompanhou um processo de soltura autorizado pelo presi-
dente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso. [...] o
réu [...] obteve liminar da mais alta corte do país no dia 22 de feve-
reiro. Quatro dias depois, numa sexta-feira (26/3), o alvará chegou
ao Centro de Detenção Provisório de Pinheiros IV, em São Paulo
[...]. [...] a entrega da ordem aconteceu por volta das 15h, mas [...
o] cliente permaneceu preso no final de semana. [...] Na segunda-
-feira (1/3), pela manhã [... a] ConJur entrou em contato com a Se-
cretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo,
que confirmou que o preso foi solto às 11h daquela segunda. [...
deve-se atentar à seguinte situação]: “O Estado tem que aparelhar
a polícia e os agentes de segurança para preservar a segurança de
todos, como tem que aparelhar os meios para que o alvará seja
cumprido. O plantão no fórum é uma alternativa”203.
c. o cumprimento prático de uma pena privativa de liberdade, ain-
da que posterior a uma condenação transitada em julgado204,
não é garantia de que o aprisionamento era justo e devido (re-
visão criminal com posterior absolvição, equívocos inerentes ao
comando sentencial condenatório ou seletividade indissociável
do sistema).

EM GRANDE PARTE USUÁRIOS, CONDENADOS POR TRÁFICO


TÊM BAIXO ÍNDICE DE REINCIDÊNCIA
[...] O ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio acredi-
ta que esse dado decorre de erros nas classificações dos crimes:
“Muitas vezes condena-se como traficante quem não é um pro-

203
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-mar-21/demora-cum-
primento-alvaras-soltura-comum-preocupa-defesa>. Acesso em: 24
jun. 2016.
204
Em 17 de fevereiro de 2016, a maioria do Plenário do Supremo Tribunal
Federal, julgando o Habeas Corpus 126292, entendeu que a pena pode
ser cumprida após decisão de segunda instância, modificando, assim,
anterior entendimento sobre o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.stf.
jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310153>. Aces-
so em: 01 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  239
priamente dito. É um usuário que precisa se drogar”. O criminalista
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira partilha dessa visão. Ele afirma
que “dificilmente” um grande traficante é preso no Brasil. Os deti-
dos por drogas são sempre usuários ou pequenos comerciantes,
os chamados “aviõezinhos”, diz. [...] Morais da Rosa analisa que a
classificação de usuários como traficantes decorre de um viés pu-
nitivo da polícia, que se mostra inconformada com a leve punição
ao porte e ao consumo estabelecida pela nova Lei de Drogas. Na
norma anterior, a Lei 6.368/1976, essas condutas eram apenadas
com detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de 20 a
50 dias-multa. Porém, a partir de 2006, passaram a ser punidas
com advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de servi-
ços à comunidade, e inserção em curso educativo. Para garantir
o cumprimento dessas medidas, o juiz pode dar uma bronca no
usuário ou aplicar multa. “Enquadrar usuários como traficantes é
um efeito rebote da nova lei. O artigo 16 da lei anterior previa
uma pena razoável para porte e consumo. Já a nova lei gera uma
sensação de que o usuário não é punido. E os PMs, via de regra,
são movidos pela ideia de que há um diabo que é o traficante, e
que é preciso puni-lo. Por isso, há a classificação forçada de uma
série de pequenos usuários como vendedores de drogas”, explica
o juiz205.

Enquanto o procedimento policial quase nunca se aproxima dos


invulneráveis, o procedimento judicial é quase que totalmente des-
conhecido dos vulneráveis, que não têm a quem recorrer. Ao mesmo
tempo em que a única autoridade que os influentes conhecem é a
autoridade judicial, que teima em afastar-lhes do poder prisional, a
única autoridade que os dominados conhecem é a policial, que in-
siste em aproximá-los da prisão. Enquanto a prisão é a ferramenta
mais utilizada pela polícia, esta é o instrumento mais utilizado pelos
amigos para se protegerem dos inimigos.
Durante o cotidiano do policial ele se depara com uma avalan-
che de possibilidades, e, muitas vezes, ele tem apenas uma fração
de segundo para resolvê-las. Ao invés de uma acusação, a revelação

205
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/grande-par-
te-usuarios-condenados-trafico-reincidem>. Acesso em: 24 jun. 2016.
240  Manifesto para Abolir as Prisões
dos prejuízos que o seu agir autônomo provoca, inclusive contra ele
próprio, é uma defesa do policial como ser humano, embora não dele
como profissional. Dentre as grandes vítimas que o poder prisional
fabrica, o policial está entre as maiores.
Evidentemente esta não é uma situação natural e homogênea,
mas sim heterogênea e construída. Por levar em consideração vonta-
des diferentes e aleatórias dos dominantes, incluída a sua, o policial
precisa agir randomicamente. E ele as considera porque não quer
medir forças com aqueles que poderão convertê-lo em inimigo. Ao
agir aleatoriamente ele acaba entrando em contradição com suas
decisões anteriores, pois ele não segue uma pauta coerente. É por
essa razão que ele libera um traficante branco, ao considerá-lo usuá-
rio, e detém um usuário negro, por considerá-lo traficante. Mas, nada
disso será contestado enquanto ele não transbordar para dentro do
microssistema dos dominantes essa sua independência incoerente,
pois a polícia é o braço armado que protege os amigos da prisão. De
sorte que ele é independente, mas desde que essa autonomia não
invada, contrarie ou ofenda a independência de quem tem o poder
de decidir sobre a própria emancipação e sobre os próprios emanci-
páveis. Até lá ele poderá agir livremente: os inatingíveis precisam que
alguém faça o trabalho sujo por eles.
Se multiplicarmos a variedade de caprichos que o policial é obri-
gado a atender (derivados e superiores, hierárquicos ou não, e de ter-
ceiros), pela sua própria vontade (visando a elogios, promoções, etc.),
pela sua insatisfação (salarial, etc.), pelos demais problemas (esgota-
mento, estresse, desídia, etc.), e pela quantidade de policiais atuan-
do nas ruas, facilmente perceberemos que o resultado numérico dos
arranjos e das combinações diferentes que uma situação ocorrente
– entre dois cidadãos ou não, criminosa ou não –, pode produzir é
incalculável. Incalculável sim, mas não ilimitável e previamente de-
finível. Como já dissemos, a sua autonomia vai somente até o limite
entre o macrossistema e o microgrupo.

Em 2013 foi revelado um documento no qual um capitão da Polí-


cia Militar de São Paulo orientou os militares de serviço no bairro
Taquaral, região nobre de Campinas, a focar as abordagens “es-

1  O Presente do Sistema prisiona  241


pecialmente a indivíduos de cor parda e negra com idade apa-
rentemente de 18 a 25 anos”. [...] Comentários: [omitimos o nome
do(a) comentarista] Não é necessário ter trabalhado na polícia
ou estudar a fundo segurança pública no Brasil, pra entender o
motivo das abordagens policiais priorizarem os negros. Os poli-
ciais não recebem essas orientações de seus superiores pq eles
querem foder com todos os negros. Existem mais negros e pardos
cometendo crimes do que brancos, a população brasileira tem
mais negros e pardos que brancos, então para poupar tempo, as
abordagens concentram-se mais nestas pessoas. O que não quer
dizer que brancos não cometam crimes e que estes não sejam
abordados, é apenas uma questão de probabilidade. Também
não quer dizer que isto não seja um pré-conceito, é que neste
caso, faz-se necessário utilizar esta estratégia para otimizar o tem-
po. É claro que um universitário negro e favelado, não tem culpa
de a maioria dos crimes serem cometidos por negros que moram
na favela, e a polícia também não, mas esta trabalha com o que
dispõe, dados estatísticos [sic]206.

Como a desgraça sempre vem acompanhada, a proximidade e


o contato direto que os policiais mantêm com as questões sociais,
conflitivas ou não, tem facilitado ao policial tornar-se cada vez mais
independente, permitindo que ela se emancipe do criminoso, do cri-
me, da acusação, da culpabilidade, da condenação e da pena. Não há
tempo viável, ou sequer condições de trabalho ou sistema operacio-
nal eficiente que permita a ele consultar a todo instante o seu supe-
rior, ou uma equipe de técnicos jurídicos que lhe informem sobre a
correção ou o equívoco das decisões que ele tem que tomar, às vezes
rapidamente. É claro que essa não é uma desculpa que o autorize a
agir emancipadamente. É apenas o diagnóstico que revela a má for-
mação desses profissionais, a má vontade do investimento estatal e
a preferência pelo punitivismo repressor. Problemas que seriam me-
lhor resolvidos dando-se prioridade à prevenção.

206
Disponível em: <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/as-crian-
cas-negras-tem-o-azar-dos-mal-entendidos-sempre-acontecerem-
-com-elas/>. Acesso em: 24 jun. 2016.
242  Manifesto para Abolir as Prisões
Infelizmente, para piorar a situação, a quantidade de inimigos
convenientes disponíveis no mercado do macrossistema, cuja prisão
é previsível e provável, é vastíssima. Isso porque a classe baixa, à qual
pertence a maior parcela deles, participa de 33,7%207 da população
nacional. Considerando que nossa demografia em junho de 2016
equivalia a 206.071.500208 pessoas, podemos dizer que aquela clas-
se, a facilmente aprisionável, é integrada por 69.446.095 (sessenta e
nove milhões, quatrocentas e quarenta e seis mil e noventa e cinco)
pessoas. Agora, se considerarmos que o país possuía em 2014 uma
população prisional de 607.731209, chegamos à conclusão de que a
massa de manobra com que a polícia pode trabalhar com autonomia
representa 68.838.364 (sessenta e oito milhões, oitocentos e trinta
e oito mil, trezentos e sessenta e quatro) pessoas. E cada vez mais
sem ser incomodada, ainda que as desculpas para esse relaxamento
sejam contraditórias:

CAI EM 14,7% O NÚMERO DE PMS EXPULSOS E DEMITIDOS


EM SP
O número de PMs (policiais militares) expulsos e demitidos em
2015 chegou a 265, número 14,7% menor comparado ao ano
anterior (311 policiais foram retirados da corporação em 2014).
[...] De acordo com os novos números cedidos pela Polícia Militar,
164 policiais militares foram expulsos da corporação ao longo de
2015. Outros 101 foram demitidos. A corporação afirmou não ter
os números de 2015 tabelados mês a mês e nem os números de
policiais exonerados a pedido e por ex-ofício. De acordo com o
Major da PM Emerson Massera [...] a ligeira queda no número de
policiais retirados da corporação significa que “a quantidade de
problemas diminuiu”: “A Polícia Militar tem um rigoroso proces-

207
Disponível em: <http://www.sae.gov.br/wp-content/uploads/classe-
MediaBrasil1.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2016.
208
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/>.
Acesso em: 24 jun. 2016.
209
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf >, p. 11. Acesso em: 24 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  243
so de disciplina contra más condutas. O rigor, ao longo dos anos,
continua o mesmo. Talvez a Polícia Militar seja o órgão mais rigo-
roso do sistema público”, disse à reportagem210.

Toda essa independência da polícia tem sido possível porque o


policial se transformou na última fortaleza inatingível. Diante de um
Estado sucateado ele se apresenta como o único capaz e disposto a
fazer qualquer coisa para nos salvar do inimigo que nos incomoda –
seja um pedinte no restaurante, seja um traficante na calçada, seja
um assassino à solta. Porque foi eleito nosso herói, ele passa a não se
incomodar com o rastro de vítimas inocentes que deixa para trás ao
cumprir o seu papel.

“Há um consenso de que o Estado não é capaz de garantir a se-


gurança, então muitas pessoas veem isso (abusos policiais) como
violência contra o ‘inimigo’. É a sensação de que alguém está fa-
zendo alguma coisa” [...]211.

Porém, quanto maior a diversão, mais cara a conta. Se a autono-


mia do policial coincide com o que o sistema deseja, ele simples-
mente não recebe qualquer reconhecimento. Ele é apenas um amigo
conveniente. Se a sua autonomia diverge do que o sistema espera
dele, ele é advertido seriamente e pode inclusive ser eleito o inimigo
que irá atrair e concentrar os erros de toda a corporação. Só assim ela
consegue manter intacta a sua integridade, a sua organicidade.

PMS SÃO PRESOS APÓS VÍDEO MOSTRAR EXECUÇÃO EM SP,


DIZ PROMOTOR
Rapaz aparece se rendendo e deitando no chão antes de ser mor-
to.

210
Disponível em: <http://www.redetv.uol.com.br/jornalismo/cidades/cai-
-em-147-o-numero-de-pms-expulsos-e-demitidos-em-sp>. Acesso em:
24 jun. 2016.
211
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/
150813_violencia_policial_chacina_lk>. Acesso em: 8 jul. 2016.
244  Manifesto para Abolir as Prisões
Parceiro dele morreu em uma casa após fugir; morte será apurada
pelo MP.
Cinco policiais militares do 16º e do 23º batalhões da Polícia Mi-
litar de São Paulo foram presos nesta sexta-feira [...], por suspeita
de executar um suspeito de roubo ocorrido por volta de 14h de
segunda-feira [...], na região do Butantã, na Zona Oeste de São
Paulo. O juiz Fernando Oliveira Camargo, da 5ª Vara do Júri, de-
cretou a prisão temporária deles nesta quinta-feira [...], pelo prazo
de 30 dias. Em nota, a corporação informou que a corregedoria
acompanha o caso [...]. [...] O promotor informou ainda que acre-
dita que casos como esse não representam a corporação da Polí-
cia Militar. “Isso não é policial militar, é bandido. A PM não merece
ter esse tipo de gente em seus quadros. Se aceitarmos que ban-
dido tem que morrer, nós temos que aceitar que ele vai ter uma
pena, mas para isso tem de haver um processo e o direito à de-
fesa. O que aconteceu aqui foi uma execução sumária, a falta do
estado. Os policiais agiram como promotores, juízes, advogados
e carrascos212.”

Por enquanto, pouco importa se será mediante uma imitação tar-


deana ou, na linguagem noelle-neumanniana, um silêncio espiral. Ou
seja, pouco importa se o policial acompanha o que outros colegas de
farda fazem: a) por receio do não pertencimento, ou seja, por desejar
pertencer a algo ou a um grupo; ou b) por medo de represálias, ao
discordar de alguns deles ou da conduta da maioria.

“O BOM POLICIAL TEM MEDO”


Os Custos da Violência Policial no Rio de Janeiro
O uso ilegal da força por policiais tem outro impacto ainda mais
direto na polícia: os colegas daqueles que cometem execuções
têm que escolher entre ficarem calados e até participarem do
acobertamento (violando assim a lei) ou denunciarem a ação e
enfrentarem represálias que podem inclusive ser fatais. Dois poli-

212
Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/09/pms-
-sao-presos-apos-video-mostrar-execucao-em-sp-diz-promotor.html>.
Acesso em: 29 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  245
ciais contaram à Human Rights Watch que se sentiram pressiona-
dos por seus superiores a usarem a força letal de forma ilegal. O
Código Disciplinar da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro
oferece poucas opções a esses policiais além de cederem à pres-
são, caso essa seja feita como uma ordem: não existe um dispo-
sitivo que garanta proteção a um policial militar que se recuse a
acatar ordens ilegais. O que mais desencoraja denúncias ou obje-
ções ao comportamento criminoso de colegas policiais é o medo
que os potenciais delatores têm de serem mortos por aqueles
que estão envolvidos em ações ilegais. Vários policiais militares
disseram à Human Rights Watch que não denunciariam colegas
por medo de serem mortos ou terem suas famílias atacadas213.

Grande parte dos policiais copia a conduta de outros com o fim


de, atuando homogeneamente, não contrariá-los e até mesmo obter
a simpatia da opinião pública (ou melhor, publicada).

HÁ UMA CULTURA DE TOLERÂNCIA EM RELAÇÃO À


VIOLÊNCIA POLICIAL?
A cultura da tolerância à violência policial que originou a frase
“bandido bom é bandido morto” – cultuada por alguns seg-
mentos da sociedade – pode estar contribuindo para a atuação
de grupos de extermínio integrados por membros de forças de
segurança. [...] “A tolerância da sociedade a uma polícia violenta
contribui para a criação de um terreno fértil para o surgimento de
grupos de extermínio (integrados por policiais)”, afirmou a pes-
quisadora Camila Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC e
associada ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de
São Paulo (NEV-USP). Segundo ela, um dos reflexos dessa posição
da sociedade é que jurados em tribunais civis tendem a absolver
muito mais policiais acusados de homicídio do que a própria Jus-
tiça Militar. Outro fator que mostra essa tendência é o fato de que
cada vez mais políticos vêm sendo eleitos com discursos basea-
dos em ações robustas da polícia para o combate à violência. Nas
eleições do ano passado, 55 policiais militares, civis ou federais

213
Disponível em: <https://www.hrw.org/pt-br/report/2016/07/07/2915
89>. Acesso em: 8 jul. 2016.
246  Manifesto para Abolir as Prisões
foram eleitos nas Assembleias estaduais e na Câmara Federal –
contra 44 no pleito anterior. Muitos deles exploraram o combate
à criminalidade em suas campanhas eleitorais. “Os políticos que
se declaram contra as práticas (de violência por policiais) acabam
fragilizados em termos eleitorais”, afirmou Dias214.

Dessa maneira eles engrossam o fluxo que canaliza a demanda


ordenatória por promoções que ofereçam os melhores inimigos.

1.5.3 A seletividade do sistema prisional


Apesar de o resultado da atuação do poder encarcerador formal
ser quase sempre um aprisionamento, a responsabilidade pela sua
manipulação está pulverizada nas mãos de cada um dos agentes do
sistema prisional. Controlá-los, exigir deles ou impor-lhes uma atua-
ção homogênea é praticamente impossível. É por isso que o primeiro
modelo de seletividade prisional é geralmente exercido de maneira
homeopática pela polícia. Ela dirige sua artilharia contra alvos que
exigem menos esforço físico, estrutural e técnico. Quando vai esco-
lher o inimigo mais conveniente o policial considera a sua própria
capacidade e vontade, a capacidade da sua corporação e a quanti-
dade de aborrecimento ou de royalties e holofotes que aquela prisão
pode produzir. Já o segundo modelo de seletividade é basicamente
exercido pelas agências espacial e temporalmente distantes do es-
colhido e da sua eventual conduta. Essas agências são a legislativa,
a judiciária e a midiática. O sistema prisional é seletivo porque trata
diferentemente situações iguais – o que ocorre quando ele aprisiona
um homicida e não prende outro.
A propósito, uma questão que é importantíssima para o destaca-
mento da seletividade prisional é a da cifra oculta. Desvio secreto ou
cifra oculta é o índice que tenta medir a quantidade de comporta-
mentos criminosos que não são detectados ou percebidos. No Brasil
é difícil calculá-lo em razão da inexistência de pesquisas sobre vitimi-

214
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/15
0813_violencia_policial_chacina_lk>. Acesso em: 8 jul. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  247
zações215. Todavia, com base na taxa de atrito, que tem a ver com a
cifra oculta, é possível afirmarmos que esse índice é altíssimo. Taxa de
atrito é o indicador que exibe a diferença entre os crimes praticados
e suas respectivas condenações216. No Brasil, essa taxa gira em torno
de 81%217, o que significa que apenas 19% dos crimes de sangue re-
cebem a pena privativa de liberdade.
E se esse já é um índice altíssimo para desvios que deixam ves-
tígios visíveis a olho nu, fica fácil deduzir que o percentual da cifra
oculta e da taxa de atrito em crimes de escritório é ainda maior. Ape-
sar de não estarmos defendendo uma redução da taxa de atrito me-
diante um aumento do aprisionamento, deve ter ficado claro que a
prisão não é a consequência inevitável da prática de um crime, o que
significa dizer que nem toda pessoa que comete um crime vai presa,
e nem toda pessoa que não comete um crime fique livre.
Embora a seletividade do poder prisional seja um defeito, não
desejamos que ele funcione plenamente após consertá-lo. Primeiro
porque o seu funcionamento eficiente ampliaria absurdamente nos-
so encarceramento que já é massivo, alcançando toda uma massa
vulnerável que compõe a classe baixa (68.838.364 pessoas). E, em
boa medida, também a classe média. Isso confirmaria ainda mais a
prisão como regra. Pelo menos por enquanto esse panaprisionamen-
to não parece ser o desejo de quem domina o poder prisional. Isso
ainda não é interessante para os amigos da prisão.
Desejamos menos ainda que ele prenda apenas uns poucos esco-
lhidos. Isso transformaria a prisão em exceção. Regra ou exceção, no

215
Disponível em: <http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-con-
tent/uploads/2011/06/Controle-da-criminalidade_mitos-e-fatos.pdf>.
Acesso em: 24 jun. 2016.
216
Disponível em: <http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-con-
tent/uploads/2011/06/Controle-da-criminalidade_mitos-e-fatos.pdf>.
Acesso em: 24 jun. 2016.
217
Média entre 92%, do Rio de Janeiro, e 70%, que é a maior média de São
Paulo. Disponível em: <http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-
-content/uploads/2011/06/Controle-da-criminalidade_mitos-e-fatos.
pdf>. Acesso em: 24 jun. 2016.
248  Manifesto para Abolir as Prisões
caso da prisão pouco importa, e justamente porque, se ela prende
muitos, ela está selecionando. E se ela prende poucos, também está
selecionando. Seleção nada mais é do que fazer opções dentro de
um universo, sejam elas pequenas (exceção) ou grandes (regra). O
que importa é que algumas pessoas, em igual situação, não foram
aprisionadas. E nunca serão.
Contraditoriamente, embora a seletividade seja um defeito, esse
defeito é justamente a sua maior força. Bem, a lógica do seu funcio-
namento hipnotizante é a seguinte: o ideal seria prender todos os
inimigos. Mas, isso não é adequado. Principalmente porque é preciso
deixar um pouco de gordura como reserva para abastecer o funcio-
namento duradouro do poder prisional. Então, que prendam o má-
ximo que puderem mesmo que essa busca pela segurança custe a
nossa liberdade, como escreveu Liev Tolstoi em A insubmissão:

[...] todos os cidadãos tomariam as armas para sustentar os dog-


mas em prejuízo deles mesmos. De fato, convertem-se em seus
próprios opressores. [...] Sem dúvida, o verdadeiro conceito da
vida social consiste no seguinte: o homem, ao dar-se conta da
crueldade da luta de uns contra os outros, e do perigo que o in-
divíduo corre, busca proteção, transferindo seus interesses priva-
dos à comunidade social. [...] a comunidade – o Estado – à qual
os indivíduos fizeram oferenda prévia de suas vantagens, está
agora exposta ao mesmo risco de destruição que o próprio indiví-
duo havia confrontado antes. Os governos pretenderam colocar
o homem ao abrigo da cruel luta pessoal dando-lhe confiança
baseada na inviolável estrutura da vida estatal. Contudo, em vez
disso, o Estado impõe aos indivíduos uma constante de riscos se-
melhantes [...]. [...] Quando se diz a um homem que, a menos que
se submeta à autoridade civil, ele corre o risco de ver-se assalta-
do por bandoleiros; que periga ser atacado por inimigos próprios
ou estranhos, dos quais se veria na necessidade de defender-se;
que poderia ser assassinado, e que, portanto, é vantajoso para ele
submeter-se a certas privações, meio pelo qual pode escapar de
todos os perigos, ele pode crer em tudo isso, especialmente no
tocante aos sacrifícios exigidos pelo Estado, que lhe promete uma
plácida existência de paz na comunidade que foi estabelecida em
seu nome. Contudo, agora, quando esses sacrifícios não só foram

1  O Presente do Sistema prisiona  249


duplicadas como também as prometidas vantagens não foram
mantidas, é perfeitamente natural que esses homens pensem
que sua subordinação à autoridade é completamente desneces-
sária. [...] Os governos alegam que os exércitos são necessários
basicamente para a defesa externa. No entanto, isto não é exato.
Eles são empregados, em primeiro lugar, para intimidar seus pró-
prios súditos; e toda pessoa que cede à conscrição militar conver-
te-se em participante voluntário de todos os atos opressores do
governo contra os cidadãos. É necessário assinalar o quanto rea-
liza o Estado, em nome da ordem e do bem-estar da comunidade
(tudo isso reforçado pela autoridade militar), para convencer-se
de que todo homem que cumpre o dever militar converte-se em
cúmplice dos atos do Estado, ainda que não possa aprová-los. [...]
a participação militar na dispersão de manifestações populares e
na repressão das greves, todas as extorsões em matéria de impos-
tos, a injustiça sobre o monopólio da propriedade agrícola, as res-
trições à liberdade de trabalho – tudo isso se realiza, se não dire-
tamente pela tropa, ao menos pela polícia respaldada pela tropa.

Risco esse que entendemos ser aceitável porque acreditamos que


a prisão nunca se voltará contra nós, pessoas de bem. Que o poder
prisional continue selecionando, gritamos animados. Ele nunca nos
escolherá, ou quem nós amamos. Nós jamais seremos criminosos
de sangue frio, indiferentes aos outros a ponto de matarmos ou de
oferecermos tóxicos (drogas) aos seus filhos, etc. Mal sabemos nós
que incontáveis pessoas estão sendo presas por condutas altamente
irrelevantes (incivilidades), como: lavar para-brisas, flanelar, mendi-
gar, prostituir-se, adormecer na praça, urinar ou beber publicamente,
andar seminu, pichar ou catar papéis. Se as condutas máximas (ho-
micídios, estupros, etc.) e mínimas (incivilidades, pequenos furtos,
uso de drogas, etc.) estão sendo objeto de confinamento, por que
as médias não seriam? Talvez, mais do que uma ilusão, uma espécie
de arrogância inocente nos faz acreditar que o poder prisional está
disposto a atender aos nossos desejos e às nossas necessidades. Bas-
ta que projetemos no outro as nossas tendências antissociais mais
inconfessáveis que o poder prisional canalizará sobre ele a sua fúria.
Confiamos na característica essencial do bode expiatório, que é a de

250  Manifesto para Abolir as Prisões


concentrar a própria culpa e a nossa, e passamos a viver assim, sem
nenhum remorso.
Como o poder prisional é sempre um poder inacabado, que ainda
não esgotou a sua função, ele precisa trabalhar alinhado a essa pers-
pectiva que coincide com a da maioria de nós. Basicamente porque,
mais útil do que eliminar as pessoas é controlá-las sem que elas per-
cebam, e fazendo-as acreditar que é para o seu próprio bem!
Além de a prisão não ser um termômetro adequado para dife-
renciar criminosos de não criminosos, pessoas de bem de pessoas
do mal, o detalhe mais perigoso que sustenta a seletividade é que a
sua arbitrariedade está agindo cada vez mais prematuramente, antes
mesmo da prática de qualquer desvio. Pessoas invulneráveis já con-
seguem adivinhar que seus filhos, por hereditariedade excludente,
não serão presos, e independentemente do que façam (homicídio,
roubo, estupro, corrupção, etc.) porque para eles, os pais, a prisão
também nunca serviu de estada. O problema é que o contrário tam-
bém pode ser antecipado: filhos de presidiários acabarão quase que
invariavelmente sendo presos. Principalmente como uma forma de
permanência: na prisão, do estatuto social experimentado; na socie-
dade, do estatuto prisional aplicado. De qualquer modo, a mobilida-
de social espontânea não é permitida, apenas acontecem remoções
forçadas: da sociedade para a prisão e vice-versa. Nesse aspecto a
seletividade ganha um tom de infeliz previsibilidade.
Além de a prisão haver assumido uma independência externa,
livrando-se de conceitos como lei penal, criminoso, crime, acusação,
culpabilidade, sentença condenatória ou absolutória, e pena, ela
também adquiriu uma independência interna, concentrada na sele-
tividade da sua operação e das suas consequências. Essa autonomia
interna acontece quando não se analisa a prisão em termos estatís-
ticos, com direto desprezo pela discricionariedade inseparável do
sistema penal encarcerador, considerada a maneira defeituosa com
que ele funciona, seja porque ela tem sido dirigida conforme a infi-
nita variedade das vontades de cada agente – o que ocasiona o seu
desgoverno e permite que ela seja canalizada através de vinganças e
controles caprichosos –, seja porque quem a controla são os interes-

1  O Presente do Sistema prisiona  251


ses capitalistas, que nem sempre se identificam ou se assemelham
aos nossos.
Como a prisão nem sempre é um local de destino dos criminosos,
tampouco dos que foram condenados, e como ela nem sempre é um
lugar que priva da liberdade mais do que a vida do lado de fora, é
preciso reconhecer que a sua natureza é mais ilógica e caótica do
que se imagina. Por isso, é um grande equívoco acreditar que a pri-
são escolhe seus clientes a dedo. Não é assim que o poder prisional
funciona. Não há alguém ou mesmo um grupo de pessoas maldosas
manipulando as instituições prisionais. O máximo que as pessoas in-
vulneráveis e dominantes conseguem fazer, e isso não é pouco: a)
é esquivar-se da prisão, não sendo presas; e b) é traçar os limites da
sua atuação, estipulando qual a demanda por ordem que deve vigo-
rar em determinado espaço e tempo e qual megagrupo de inimigos
deve ser considerado conveniente. É dentro dessa grande área que a
polícia e todo o pessoal prisional pode trabalhar. Mas, nem ela, com
toda a sua autonomia, escolhe a dedo os seus clientes. O máximo
que ela consegue é enquadrar com mais facilidade os inimigos no
manequim.

ATOR PRESO POR ENGANO É SOLTO NO RJ DEPOIS DE


PASSAR 16 DIAS NA CADEIA
Vinícius Romão foi preso por ser suspeito de assaltar uma mulher.
Condutas de policial e delegado serão investigadas pela Corre-
gedoria.
[...] No registro, a vítima contou que após o assalto o homem te-
ria pulado o muro da estação de trem para fugir e que dentro da
bolsa roubada havia a quantia de R$10, um crachá, um celular
e documentos. Ela contou que o homem estava de camiseta e
bermuda preta, era negro e tinha o cabelo estilo black power. No
registro de ocorrência, o policial militar que fez a prisão afirma
que nenhum pertence da vítima foi encontrado com o ator. “No
depoimento, o policial disse que o Vinicius tinha passado o mate-
rial para uma pessoa conhecida como ‘Braço’, só para justificar a

252  Manifesto para Abolir as Prisões


prisão dele, mas não fez nenhuma diligência para procurar essa
pessoa”, disse Jair Romão218.

Quem se debruçar sobre o almoxarifado prisional vai perceber


que ele é um local de confinamento daqueles que, a partir de uma
demanda por ordem pré-estabelecida, foram selecionados porque
carregavam símbolos que denunciavam quem são: os seus atos ou
a sua condição (vestimenta, cor da pele, trejeito, linguajar, local de
residência, estilo de música, etc.). Tudo isso os encaixou no modelo
do inimigo procurado, atraindo com mais facilidade o radar do poder
prisional, e independentemente do que elas fizeram.
Em uma abordagem policial é mais provável que sejam averigua-
dos jovens afrodescendentes entre 18 e 25 anos, da classe D ou E,
que estejam vestindo uma camisa e uma bermuda largas, um adorno
desproporcional de ouro pendurado no pescoço e um boné de aba
reta em vez de mulheres de classe A ou B, acima de 25 anos, vestidas
formalmente.

JOSÉ, O ADOLESCENTE NEGRO INJUSTAMENTE PRESO


PELA POLÍCIA MILITAR DE SÃO PAULO E FICOU 22 DIAS NA
FUNDAÇÃO CASA
[...] De boné com aba reta, skate na mão e fone de ouvido ligado
no som do rapper Sabotage, José é cumprimentado com simpa-
tia por quem o encontra. Dono de um sorriso largo, o menino ne-
gro distribui gentilezas, fruto da educação que recebeu dos pais.
“Tentei passar aos meus filhos que o importante é ter caráter e
honestidade. Uma vida digna”, afirma Valmira. [...] Na madrugada
de domingo, 16 de março, José foi levado de dentro de casa por
policiais militares que o acusaram de um crime que não cometeu.
Uma das vítimas, que sofreu um assalto a mão armada, indicou
de dentro de um veículo em movimento que José teria sido um
dos assaltantes. Disse que o reconheceu pela roupa, que trocou

218
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/02/
ator-preso-por-engano-e-solto-no-rj-depois-de-passar-16-dias-na-ca-
deia.html>. Acesso em: 29 jun. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  253
a pedido dos PMs. Na hora da ocorrência, José trajava chinelos,
cueca samba-canção e camiseta branca. Fumava o último cigarro
em frente ao prédio em que vive, antes de dormir. Para o reco-
nhecimento, ele vestiu camiseta, boné, bermuda e tênis. Havia
dois suspeitos: José, negro, e um jovem branco. Enquanto José
teve que passar a noite dentro da cela, o suspeito branco ficou
do lado de fora e foi liberado no dia seguinte. Existem dez erros
nesse processo, incluindo o reconhecimento, negado depois pela
vítima, que foi um dos principais argumentos para manter José
detido. Engolido pelas falhas e pelo racismo arraigado no sistema
de segurança pública e de Justiça, José foi levado para a Funda-
ção Casa, onde permaneceu por 22 dias. Os piores de sua vida e
de sua família. [...] Durante o tempo em que José permaneceu na
Fundação Casa, Valquíria deixou o emprego em um banco para
se dedicar à defesa do irmão. Ela juntou as provas mostrando que
José estava em casa naquela noite. Também precisou cuidar da
saúde da mãe, que de tão preocupada não dormia e comia pou-
co. [José é solto] Mas a volta para a casa não significou ainda o
retorno à vida normal. José, que prefere História à Matemática,
perdeu a matrícula no primeiro ano do Ensino Médio da escola
Caetano de Campos. Como permaneceu internado, sua matrícula
foi transferida para Fundação Casa e não se sabe quanto tempo
levará para regularizar essa situação. O menino também perdeu o
emprego de garçom e lida diariamente com explicações sobre a
sua inocência, apesar de não querer mais falar do assunto219.

A arbitrariedade e a seletividade da prisão demonstram que o seu


conceito não é jurídico, mas sim político e econômico220 (Meneses,
1996). Toda prisão é uma prisão político-econômica, e promove apri-
sionamentos político-econômicos, porém, não no sentido de aprisio-
nar agentes políticos e pessoas endinheiradas. Estas têm poder de

219
Disponível em: <http://www.geledes.org.br/jose-o-adolescente-negro-
-injustamente-preso-pela-policia-militar-de-sao-paulo-e-ficou-22-dias-
-na-fundacao-casa/>. Acesso em: 25 jun. 2016.
220
MENESES, Tobias Barreto de. Fundamentos do direito de punir. In: Re-
vista dos Tribunais. São Paulo, mai. 1996, ano 85, v. 727, pp. 649-650: “O
conceito de pena não é um conceito jurídico, mas um conceito político.
Este ponto é capital [...]”.
254  Manifesto para Abolir as Prisões
indignação e de inconformação suficiente para impedir que elas se-
jam rotuladas como inimigas e principalmente como inimigas conve-
nientes. O poder configurador político-econômico da prisão significa
que ela age de acordo com a discricionariedade. Fazendo e desfa-
zendo, prendendo e soltando aqueles que sejam mais adequados e
úteis. Se a prisão de uma pessoa não for interessante, ou se ela exigir
custos muito altos, sobretudo políticos, renuncia-se à privação da sua
liberdade, que fica adiada para depois ou para nunca mais.
Usando como analogia uma gangorra submetida a um efeito gra-
vitacional, podemos dizer que: a) quanto mais próxima da parte in-
ferior se encontra a seta do ponteiro medidor, maior é a quantidade
de pessoas encarceradas; e b) quanto mais próxima da parte superior
se encontra a seta do ponteiro medidor, mais concentrada é a sele-
tividade.
Vamos partir de um marco em que o ponteiro coincida exatamen-
te com a seletividade zero (formato de V), como na figura abaixo.

Vulneráveis Invulneráveis

1 1
Gravidade
200 200

200.000 200.000

2.000.000 2.000.000

20.000.000 20.000.000

200.000.000 200.000.000

Um rebaixamento da seletividade dos invulneráveis e uma eleva-


ção da seletividade dos vulneráveis apenas alteraria a posição das
pranchas. Seria uma inversão inútil.

1  O Presente do Sistema prisiona  255


V I V I

Um rebaixamento da seletividade dos invulneráveis juntamente


com a manutenção ou o rebaixamento ainda maior da seletividade
dos vulneráveis envergaria os braços da gangorra, rompendo-os.
Nesse estágio teríamos o aprisionamento integral da população bra-
sileira, ou seja, um encarceramento total.

V I V I

Já uma elevação da seletividade dos vulneráveis e dos invulne-


ráveis – ou só dos primeiros, mantendo-se zerada a seletividade dos
últimos –, provocaria uma superconcentração da seletividade, sobre-
carregando ainda mais o lombo dos poucos escolhidos que passa-
riam a suportar o peso dos desvios de quase todo o restante da po-
pulação. Nesse caso teríamos uma hiperconcentração seletiva.

256  Manifesto para Abolir as Prisões


V I V I

Nosso quadro atual é o seguinte:

Insignificante
V I

Mais de 600.000 presos

MPF: OU TODOS DEVEM SER RESPONSABILIZADOS, OU


NINGUÉM O DEVE
[...] desde o ano de 2000 esse crime vem sendo praticado e to-
dos seus praticantes devem ser responsabilizados ou nenhum o
deve, no caso de se entender que não tinham conhecimento de
que o tipo penal criado no ano de 2000 se amoldava àquela praxe
preexistente e que permanecera até 2015 sem qualquer questio-
namento por parte das autoridades de controle (TCU, MPF, etc).
Ainda, e mais curioso, seria o fato de que esse crime continuaria
sendo praticado, inclusive no instante em que essas letras estão
sendo jogadas no papel221.

221
Disponível em: <http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/244227/MPF-
-ou-todos-devem-ser-responsabilizados-ou-ningu%C3%A9m-o-deve.
htm>. Acesso em: 16 jul. 2016.
1  O Presente do Sistema prisiona  257
Mesmo que a notícia acima pareça ser uma saída para o problema
da injustiça do sistema punitivo, já deve ter ficado claro que a única
solução para a seletividade prisional é a extinção do cárcere. Sobre-
tudo porque parece improvável que os agentes penais irão interpre-
tar exclusivamente a comparação exposta: o não aprisionamento de
um homicida exige a libertação de todos. Nossa história infelizmente
teima em favorecer a interpretação inclusiva: o não encarceramen-
to de alguns homicidas não interfere no aprisionamento de vários
outros, o que evidencia que nossa justiça atua no varejo, e não no
atacado. Ela não tem uma visão completa do estrago que a prisão de
mais de setecentas mil pessoas tem provocado em nossa sociedade.
O policial quando persegue e prende, o promotor quando denuncia
e o juiz quando condena não têm um olhar político-criminal nacional
sobre a questão prisional. Eles não medem os efeitos terciários da
sentença. Ou seja, os efeitos que estão além dos artigos 91 e 92 do
Código Penal (indenizar o dano causado, perder o cargo público, per-
der a habilitação para a direção de veículo, etc.), como a seletividade,
a regressão, o desvio secundário, a carreira criminal, a autorrealiza-
ção da profecia, a consideração da realidade das consequências em
razão da percepção concreta de uma situação falsa e abstrata, etc.
Eles analisam a questão criminal sempre individualmente, e nunca
coletivamente, mesmo quando analisam crimes de massa. Com isso
eles contribuem para o inchaço irresponsável do sistema e para a re-
produção descontrolada da própria criminalidade.
Diminuir ou rebaixar e aumentar ou elevar a seletividade são ter-
mos relativos. Ambos interferem na seleção realizada. Quanto mais
eu diminuo a seletividade, mais eu seleciono; e quanto mais eu au-
mento a seletividade, menos eu seleciono. Porém, em ambos há se-
leção. Não existe solução menos ruim. Por isso, para eliminarmos a
seletividade, que é o acessório inseparável do aprisionamento, é pre-
ciso eliminar o principal, que são as prisões.
Com isso acabaríamos de uma só vez com a seletividade das pri-
sões, com o seu efeito iatrogênico, com o seu efeito regressivo e com
os desvios secundários, impedindo a produção e a reprodução da
sua clientela – que é a grande causa do crescimento assustador do
nosso aprisionamento.

258  Manifesto para Abolir as Prisões


2 O FUTURO DO SISTEMA
PRISIONAL

A ntes se previa que a prisão serviria para a formatação de corpos


adocicados ao mercado de trabalho – que exigia que as pessoas su-
portassem e percebessem que as condições laborais, embora indig-
nificantes, ainda eram um pouco melhores que as experimentadas
na cadeia. Nesse tom, os insatisfeitos seriam enviados ao encarcera-
mento para, mediante uma técnica comparativa, poderem retornar
mais conformados e subjugados. Atualmente parece que esse obje-
tivo prisional esfriou.
Por outro lado, parece que não se confirmou a previsão de que a
prisão serviria para o controle e a manutenção dos salários em um
patamar baixíssimo, sobretudo mediante o oferecimento e a retra-
ção da mão de obra. Ao capitalista pouco interessa um pagamento
salarial exageradamente baixo. Para ele a conveniência está em uma
maior quantidade de pessoas poder adquirir os seus produtos.
Hoje o que domina a prisão são as vantagens que ela oferece,
sejam financeiras, políticas, midiáticas, pessoais, etc. Sob esse olhar
o preso passou a ser identificado como uma mercadoria comercia-
lizável e movimentável através de um fluxo de encarceramento-ma-
nutenção e de desencarceramento-reencarceramento em que o que
importa não é apenas o valor dele como mercadoria em si (valor per
capita), importam também as taxas alfandegárias arrecadadas com
esse seu deslocamento (fluxograma prisional) e os lucros proporcio-
nados pelas commodities e pelos royalties extraídos da tecnologia
transportadora-armazenadora-despachante. Ou seja, sob uma lógi-
ca de mercado, ganha-se mantendo o indivíduo preso (fornecimento
de alimentação, vestuário, exploração da sua mão de obra, etc.), e se
ganha com a sua entrada, saída e retorno. Adotando um modelo de
full-scale-management, quanto mais clientes forem captados, mais se
lucrará. Por isso não é interessante aos investidores da indústria e da
administração prisional privada resolver integral ou grandemente o
problema criminal (re)socializando, (re)habilitando, (re)integrando,
ou seja lá que vocábulo for, os detentos. Quanto mais presos houver,
maior será o lucro, que é calculado por cabeça.

QUANTO MAIS PRESOS, MAIOR O LUCRO


[...] Nos documentos da PPP [Parceria Público-Privada] de Neves
disponíveis no site do governo de Minas Gerais, fala-se inclusive
no “retorno ao investidor”, afinal, são empresas que passaram a
cuidar do preso e empresas buscam o lucro. Mas como se dá esse
retorno? Como se dá esse lucro? Um preso “custa” aproximada-
mente R$1.300,00 por mês, podendo variar até R$1.700,00, con-
forme o estado, numa penitenciária pública. Na PPP de Neves, o
consórcio de empresas recebe do governo estadual R$2.700,00
reais por preso por mês e tem a concessão do presídio por 27
anos, prorrogáveis por 35. [...] Especialistas, porém, afirmam que
o lucro se dá sobretudo no corte de gastos nas unidades. José de
Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, explica: “en-
traram as empresas ligadas às privatizações das estradas, porque
elas são capazes de reduzir custos onde o Estado não reduzia. En-
tão ela [a empresa] ganha por aí e ganha muito mais, pois além de
reduzir custos, percebeu, no sistema prisional, uma possibilidade
de transformar o preso em fonte de lucro”. [...] No complexo de
Neves, os presos têm 3 minutos para tomar banho e os que tra-
balham, 3 minutos e meio. Detentos denunciaram que a água de
dentro das celas chega a ser cortada durante algumas horas do
dia. [...] interessa ao consórcio que, além de haver cada dia mais
presos, os que já estão lá sejam mantidos por mais tempo. [...] “na
verdade não se está preocupado com o que vai acontecer depois,

260  Manifesto para Abolir as Prisões


se está preocupado com a manutenção do sistema funcionan-
do, e para ele funcionar tem que ter 90% de lotação, porque se
não ele não dá lucro”. Apesar de ser uma situação praticamente
impensável, a eventual existência de vagas nas prisões deve ser
compensada pelo repasse de verba do governo que se respon-
sabilizou por equilibrar a baixa taxa de ocupação e o lucro das
contratadas222.

Considerando que as Parcerias Público-Privadas (PPP), estão con-


vergindo o objetivo das prisões cada vez mais em busca do lucro fi-
nanceiro com o menor custo, um ou outro encarcerado deve parecer
ter sido melhorado. E uma ou outra feiura estética deve ser maquiada
para que a estrutura pareça bonita e limpa.

Murilo Andrade de Oliveira, subsecretário de Administração Pe-


nitenciária do Estado de Minas, diz [...]: “nós estabelecemos ini-
cialmente o critério de que [pode ir para a PPP] qualquer preso,
podemos dizer assim, do regime fechado, salvo preso de facção
criminosa – que a gente não encaminha pra cá – e preso que
tem crimes contra os costumes, estupradores. No nosso enten-
dimento esse preso iria atrapalhar o projeto”. Na visão dos outros
entrevistados, a manipulação do perfil do preso pode ser uma
maneira de camuflar os resultados da privatização dos presídios.
“É muito fácil fazer desses presídios uma janela de visibilidade:
‘olha só como o presídio privado funciona’, claro que funciona, há
todo um corte e uma seleção anterior”, diz Bruno Shimizu. Robson
Sávio explica que presos considerados de “maior periculosidade”,
“pior comportamento” ou que não querem trabalhar ou estudar
são mais difíceis de ressocializar, ou seja, exigiriam investimentos
maiores nesse sentido. Na lógica do lucro, portanto, eles iriam
mesmo atrapalhar o projeto. Se há rebeliões, fugas ou qualquer
manifestação do tipo, o consórcio é multado e perde parte do re-
passe de verba. Por isso principalmente o interesse em presos de
“bom comportamento”. O subsecretário Murilo afirma ainda que
os que não quiserem trabalhar nem estudar podem ser “devolvi-
dos” às penitenciárias públicas: “o ideal seria ter 100% de presos

222
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
2  O Futuro do Sistema Prisional  261
trabalhando, esse é nosso entendimento. Agora, tem presos que
realmente não querem estudar, não querem trabalhar, e se for o
caso, posteriormente, a gente possa tirá-los (sic), colocar outros
que queiram trabalhar e estudar porque a intenção nossa é ter
essas 3336 vagas aqui preenchidas com pessoas que trabalhem
e estudem”223.

Embora sejam exceções, elas são apresentadas como um suces-


so genérico – ampliado e valorizado quando comparado a prisões
que o governo propositalmente sucateou. Esse quadro comparativo
é suficiente para convencer que o setor privado é mais capaz que o
público de alcançar os resultados esperados com o aprisionamento.

“Acontece que o que tem impulsionado isso é um argumento po-


lítico e muito bem construído. Primeiro se sucateou o sistema pe-
nitenciário durante muito tempo, como foi feito durante todo um
período de privatizações, (…) para que então se atingisse uma
argumentação que justificasse que esses serviços fossem entre-
gues à iniciativa privada”, completa. [...] O Estado, sucateado e so-
bretudo saturado, assume sua ineficiência e transfere sua função
mais básica para empresas que podem realizar o serviço de forma
mais “prática”. E essa forma se dá através da obtenção de lucro. [...]
nesse primeiro momento, vai se investir muito em marketing para
que modelos como o de Neves sejam replicados Brasil afora. Ha-
milton Mitre diz que a unidade será usada como um “cartão de vi-
sitas” e fontes afirmam que o modelo de privatização de presídios
será [foi] plataforma de campanha de Aécio Neves224, candidato à
presidência nas eleições do fim deste ano225.

A partir daí, basta engatilhar novas Parcerias Público-Privadas.

223
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
224
Disponível em: <http://noticias.r7.com/eleicoes-2014/programa-de-
-governo-de-aecio-tera-proposta-de-privatizacao-de-presidios-fede-
rais-06082014>. Acesso em: 25 jun. 2016.
225
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
262  Manifesto para Abolir as Prisões
O modelo mineiro de PPP já inspirou projetos semelhantes no Rio
Grande do Sul, em Pernambuco e no Distrito Federal. As licitações
já aconteceram ou estão abertas e, em breve, as penitenciárias
começarão a ser construídas. O governo do Estado de São Paulo e
a Secretaria de Administração Penitenciária também pretendem
lançar em breve um edital para a construção de um grande com-
plexo no Estado, com capacidade para 10.500 presos. O gover-
nador Geraldo Alckmin já fez consultas públicas e empresas já se
mostraram interessadas no projeto226.

Por causa disso é que a inflação carcerária é tão interessante. Por


isso pretende-se a redução da maioridade penal. Por essa razão se
deseja reduzir os programas sociais. Também por isso a previsão para
o futuro é pavorosa. Em A divina comédia, Dante Alighieri entrega à
boca de Virgílio a seguinte resposta às súplicas do homônimo que
lhe interpela:

A fera que te faz gelar o sangue de horror não permite que nin-
guém passe por aqui impunemente, e quem insiste em opor-lhe
resistência encontra a morte. É uma criatura tão má, e tão contun-
dente, que jamais consegue saciar o enorme apetite [...] sente até
mais fome, depois que come227 (Aliguieri, 2002.)

Quanto mais a indústria do encarceramento aprisionar, mais fome


ela sentirá!

Para Minhoto, a partir do momento em que você enraíza um inte-


resse econômico e lucrativo na gestão do sistema penitenciário,
“o Estado cai numa armadilha de muitas vezes ter que abrir mão
da melhor opção de política em troca da necessidade de garantir
um retorno ao investimento que a iniciativa privada fez na área”,
diz. E Bruno Shimizu completa “e isso pode fazer com que a gente
crie um monstro do qual a gente talvez não vá mais conseguir
se livrar”. “Para quem investe em determinado produto, no caso

226
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
227
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. In: Coleção obras-primas. 1ª ed. São
Paulo: Nova Cultural, 2002, p. 11.
2  O Futuro do Sistema Prisional  263
o produto humano, o preso, será interessante ter cada vez mais
presos. Ou seja, segue-se a mesma lógica do encarceramento em
massa. A mesma lógica que gerou o caos, que justificou a privati-
zação dos presídios”, arremata Patrick228.

2.1 UM FUTURO QUE REPETE O PASSADO E JÁ CHEGA


ENVELHECIDO
A prisão causa mais problemas do que resolve. Além de não retri-
buir e de não prevenir a criminalidade, a prisão participa diretamen-
te da sua existência e do seu aumento quando pratica: a) sequestro
(prisões provisórias e de inocentes); b) tortura (promovida pela equi-
pe interna); c) homicídio (fazer matar); d) lesões corporais e psíquicas
(ofensas); e) ameaças (palavras de ordem e procedimentos exage-
rados); f) exposição a perigo (superlotação, estrutura inadequada e
doenças), etc; participa indiretamente da existência e do aumento
da criminalidade quando deixa que pratiquem: a) homicídio (deixar
morrer); b) lesões corporais (não interferir em disputas internas); ou
ainda quando assina contratos de Parcerias Público-Privadas (PPP’s)
com empresas que no fundo visam ao lucro, etc.
Mas, o maior prejuízo que ela causa talvez seja a configuração
dos corpos que ficam à sua disposição. Ela remonta e remodela cri-
minosos ocasionais e pessoas que praticaram meras incivilidades
para que sirvam de adubo ao seu sempre inacabado objetivo de
produzir o pânico moral. Ela precisa convertê-los nos novos inimi-
gos monstruosos e perigosos para poder se apresentar como única
capaz de nos salvar e de nos permitir viver seguros e tranquilos. Pri-
são, dizei uma só palavra e seremos salvos. Essa não é apenas uma
frase que sintetiza a fé que as pessoas depositam na capacidade
que a prisão tem de resolver o problema criminal, ela é também a
representação de uma transferência de poder, entregue pela socie-
dade à prisão com limites amplos o bastante para que o problema
da criminalidade seja resolvido. Custe o que custar. O que acontece-

228
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
264  Manifesto para Abolir as Prisões
rá por trás dos muros não nos importa, desde que possamos dormir
tranquilos. Pelo menos até que amanheça e tenhamos que eleger
um novo inimigo conveniente.

2.1.1 A eleição do sistema prisional como ortopedista


moral, educacional e social
Para muitas pessoas a prisão é um mal necessário, independen-
temente do que acontece dentro dela. Elas aceitam o seu método
desde que valha a pena. Elas só querem se livrar do inimigo que as
incomoda. Outros agradecem a ilusão tranquilizante que a prisão
oferece, mas se desconfortam com os meios que ela utiliza. Tanto
para os indiferentes, quanto para os incomodados, a melhora da es-
tratégia prisional é perigosíssima, e independentemente deles a per-
ceberem ou de a desejarem. É que, quanto mais eficiente o poder
prisional demonstrar ser, mais ele irá atrair toda sorte de problemas
para si, o que ampliará ainda mais o encarceramento.
Além disso, melhoras pontuais apresentadas pelo sistema prisio-
nal têm servido apenas para legitimar: a) a lógica seletiva com que
ele funciona, dando a entender que está tudo bem prender mais
afrodescendentes do que brancos e mais pobres do que ricos, por-
que eles praticam mais crimes, desde que eles sejam bem tratados;
e b) o seu formato pedagógico infantilizador, transformando adultos
em crianças robotizadas e destreinadas. Essas poucas melhorias tam-
bém têm servido para ampliar aquelas que seriam as suas funções
mais perigosas: c) a de administrar a vida das pessoas, cujas condutas
estão cada vez mais sendo adivinhadas, a ponto de confiná-las sem
qualquer motivo ou com base em meras suspeitas; e d) a de servir
como ortopedista moral e social apto a consertar todo tipo de pro-
blema, penal ou não.
Cada vez mais a prisão tem atraído para si o poder de obrigar
as pessoas a se ajustarem às regras sociais, morais, educacionais,
familiares, religiosas, empresariais, etc. Embora o objetivo não seja
melhorá-las, a prisão usa todas essas questões para aumentar a sua
clientela e o alcance do seu poder. Com isso nada ficaria de fora do
seu raio de atuação. Desde a falta de educação, passando pelo uso de

2  O Futuro do Sistema Prisional  265


drogas e chegando ao homicídio, a prisão tem sido convocada como
a única capaz de resolver a incapacidade que algumas pessoas pare-
cem ter de viverem coletivamente e agradando ao outro. Ao fazê-lo,
ela suplementa ou substitui as entidades originais responsáveis pelo
desenvolvimento de todas aquelas habilidades. Essa insatisfação
para com as diferenças e para com as características do próximo tem
sido responsável pelo aprisionamento de adultos, mas também de
adolescentes e até de crianças. Ainda que provisoriamente.

MENINO DE 11 ANOS É DETIDO SUSPEITO DE PARTICIPAR DE


FURTO EM HERCULÂNDIA
Denúncia anônima informou a polícia sobre o crime. Garoto pres-
tou depoimento na delegacia e foi liberado.
Um menino de 11 anos foi detido pela Polícia Militar na terça-feira
[...] após uma denúncia anônima de que estaria participando de
furtos em Herculândia (SP). O menino foi encontrado após a Polí-
cia Militar ser acionada para averiguar o furto de um veículo. [...] O
Conselho Tutelar foi acionado e a criança foi conduzida à delega-
cia. O menor foi ouvido e liberado229.

Acreditar que a prisão é capaz de melhorar as pessoas equivale


a crer que uma arma tão poderosa como o poder prisional deve ser
usada tanto para situações extremamente complexas e difíceis (estu-
pros, criminalidade de massa, etc.), quanto para situações cotidianas
e simplesmente resolvíveis com o diálogo e a tecnologia adequada
(travessuras escolares, uso recreativo de drogas, etc.). O pior é que
esse uso homogêneo de uma ferramenta tão poderosa como a pri-
são, tanto para crimes, quanto para questões meramente morais,
educacionais, familiares e sociais, não está provocando o seu descré-
dito. Pelo contrário. Em vez de haver uma abolição de todas as insti-
tuições totais e um maior respeito pelas características do outro, mais
e mais pessoas confiam que a prisão é capaz de substituir a escola,

229
Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2016/
06/menino-de-11-anos-e-detido-suspeito-de-participar-de-furto-
-em-herculandia.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
266  Manifesto para Abolir as Prisões
o manicômio, o asilo, quando esses não conseguem cumprir a sua
função adequadamente.
Em vez de produzir soluções adequadas para questões tão dife-
rentes e que exigem respostas igualmente diferentes e adequadas, a
prisão está servindo apenas para padronizar o tratamento entregue
a cada um desses supostos problemas. Segundo o senso comum, se
a prisão é capaz de bem ou mal resolver uma questão tão séria como
a da violência, obviamente ela será competente para cuidar de ques-
tões menores e mais simples. Por essa razão é que a apresentação
de certos resultados é tão perigosa. Como quando o poder prisional
divulga seus eventuais sucessos, transformando a exceção em regra
e dando a entender que ele sabe o que está fazendo e que, como
em uma perversão da oração shakespeariana, tudo está bem quando
pelo menos parte acaba bem, principalmente quando em compara-
ção com outras instituições totais, como a escola:

EX-INTERNO DA FUNDAÇÃO CASA GANHA PRÊMIO EM


FEIRA DE CIÊNCIAS
Aluno de Araçatuba (SP) foi a revelação em todo o Estado de São
Paulo. Jonathan apresentou projeto de corrigir acidez do solo
com resíduos de giz.
Um ex-interno da Fundação Casa de Araçatuba (SP) mostrou
que a educação pode realmente dar um novo destino para uma
pessoa em situação de risco por causa da criminalidade. O agora
aluno Jonathan Felipe da Silva Santos, de 18 anos, foi escolhido
como a revelação da Feira de Ciências da Secretaria de Educação
de São Paulo com um projeto de corrigir a acidez do solo com
resíduos de giz escolar. A competição foi aberta a alunos dos ensi-
nos fundamental e médio de todo o Estado, participando mais de
200 escolas. O trabalho foi um dos seis finalistas da edição 2016
[...]. [...] O mais interessante é que o projeto foi praticamente todo
desenvolvido nas aulas, dentro da Fundação Casa. Jonathan afir-
ma que ficou internado na fundação por sete meses e foi liberado
há três. Foi durante este tempo que ele elaborou o projeto com
a ajuda dos orientadores. “Trabalhamos com o material que era

2  O Futuro do Sistema Prisional  267


possível, tive apoio dentro da área de pedagogia da fundação,
mas as aulas eram dentro da fundação mesmo”, diz230.

E:

PROJETO REALIZADO POR PRESOS DE MARINGÁ GANHA


PRÊMIO NACIONAL
O Projeto Visão de Liberdade, desenvolvido na Penitenciária Estadu-
al de Maringá (PEM), foi selecionado entre os 30 vencedores da 5ª
edição do Prêmio ODM Brasil. [...] O Visão de Liberdade concorreu
com outros 1.090 inscritos, sendo 804 de organizações sociais e 286
de prefeituras. Este é o terceiro prêmio recebido pelo projeto. Em
agosto de 2011, recebeu o Prêmio Cidadania: Herbert de Souza, e
em novembro do mesmo ano, o Prêmio da Fundação Banco do Brasil
de Tecnologia Social. Realizado por presos dentro da penitenciária, o
projeto tem a proposta de contribuir para a recuperação e reintegra-
ção social dos detentos por meio do trabalho em benefício de defi-
cientes visuais, com a produção de materiais didáticos específicos231.

Enquanto a prisão apresenta este sucesso como se fosse a regra


resultante da atividade que ela desenvolve, o padrão da sua atuação
real é outro totalmente diverso e muito menos glamoroso:

CERCA DE 76% DOS CONDENADOS NO BRASIL ESTÃO


OCIOSOS NA PRISÃO, APONTA ESTUDO
Ainda que seja uma exigência da lei de Execuções Penais, o traba-
lho de condenados nas prisões brasileiras está longe de ser uma re-
alidade no país. Segundo aponta tese de doutorado da Universida-
de Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que compila diversos dados

230
Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/sao-jose-do-rio-preto-
-aracatuba/noticia/2016/05/ex-interno-da-fundacao-casa-ganha-pre-
mio-em-feira-de-ciencias.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
231
Disponível em: <http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.
php?storyid=79824&tit=Projeto-realizado-por-presos-de-Maringa-ga-
nha-premio-nacional>. Acesso em: 25 jun. 2016.
268  Manifesto para Abolir as Prisões
sobre o sistema carcerário brasileiro, cerca de 76% dos presos estão
ociosos nas cadeias do país. O Ceará é o Estado onde os presos têm
o maior percentual de ociosidade, com apenas 2,74% desses exer-
cendo alguma atividade. Na outra ponta está Santa Catarina, onde
58,14% dos presos trabalha. [...] em todo o país, apenas 17,3% de
presos estudam na prisão – participam de atividades educacionais
de alfabetização, ensino fundamental, ensino médio e supletivo. [...]
“A grande questão que os dados demonstram é que efetivamente
no Brasil não temos uma política pública de reinserção. Todas as
ações são muito improvisadas” [...]. “O que se vê no país são iniciati-
vas isoladas em alguns Estados. Há apenas ações desorganizadas,
sem articulação” [..]. [...] Outro grande problema apontado [...] é a
forma como os recursos são empregados. “O governo federal in-
veste em projetos de educação e trabalho em prisões nos Estados,
mas isso não tem acompanhamento, não se sabe se foi efetivamen-
te implementado, nem o impacto daquilo. Temos que saber para
onde foi esse recurso. Os Estados entregam somente um relatório,
que não tem a descrição de como os recursos foram investidos” [...].
[... Foram encontrados] números discrepantes na distribuição de re-
cursos do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) aos Estados. Ser-
gipe, por exemplo, recebeu R$33,4 milhões, entre 1995 e 2007, para
uma população carcerária de 2.228 presos, enquanto, no mesmo
período, o Rio Grande do Sul recebeu R$50,2 milhões, para 23.814
condenados. “Quais são os critérios para o recebimento de recur-
sos? Isso não é claro. Será que não foi um critério político?” [...]. “Sem
um projeto político para o setor, é possível que se assuma a ideia de
estarmos, literalmente, jogando dinheiro fora” [...]232.

No mesmo sentido:

DENÚNCIAS DE TORTURA NO BRASIL CRESCERAM 129%


NOS ÚLTIMOS 3 ANOS
Até chegar à Justiça, crime cometido por agentes públicos vira
lesão corporal ou abuso de autoridade.

232
Disponível em: <http://oab-ma.jusbrasil.com.br/noticias/1892670/cer-
ca-de-76-dos-condenados-no-brasil-estao-ociosos-na-prisao-aponta-
-estudo>. Acesso em: 25 jul. 2016.
2  O Futuro do Sistema Prisional  269
[...] Amplamente usada durante o regime militar, a tortura ainda
é prática comum no Brasil. Antes direcionada à atividade política,
ela segue em uso contra a população, em geral os mais pobres e
vulneráveis. Nos últimos três anos cresceu 129% o número de de-
núncias de tortura cometidas por agentes públicos no país. Entre
2011 e 2013, foram relatados 816 casos por meio do Disque 100,
da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, envolvendo 1.162
agentes do Estado. Só no ano passado, foram 361 registros. [...]

Presidiários ainda sofrem com a prática

Segundo especialistas, os casos de tortura denunciados são infi-


nitamente menores do que o real. E a Polícia Militar não é a única
nem a principal instituição pública a usar a prática. Foi da Polícia
Civil que surgiu o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, que
comandou as torturas no Departamento de Ordem Política e So-
cial (Dops), em São Paulo, por exemplo. E é dentro dos presídios
que hoje são registrados o maior número de crimes deste tipo.
O problema é que o crime de tortura cometido por agentes pú-
blicos vira “lesão corporal” ou “abuso de autoridade” até chegar à
Justiça. A pesquisadora Maria Gorete Marques Jesus analisou 51
processos de tortura abertos de 2000 a 2004 e julgados até 2008.
Eram 203 réus, 181 deles agentes de Estado. Dos agentes de Es-
tado, 127 foram condenados. Enquanto a ONU vincula a tortura
como crime de Estado, no Brasil, ela é crime aplicável a pessoas
comuns (mães, pais, padrastos, etc.). Doze réus da pesquisa eram
cidadãos comuns e metade foi condenada. Entre os policiais, 70%
foram absolvidos. [...] No caso de agentes do Estado julgados, a
fala da vítima é sempre colocada em suspeição e tem pouca cre-
dibilidade. Como a tortura é um crime sem testemunhas, a vítima
é quem tem de provar. Quando é uma mãe acusada de torturar
um filho, é a fala dela que é questionada. Há ainda margem para
classificar a tortura como outros crimes no caso de agentes de
Estado. Vi um promotor tentando denunciar um policial por abu-
so de autoridade, enquanto o juiz dizia que era tortura. Este tipo
de classificação mascara o número de casos – diz Maria Gorete,
do NEV/USP. [...] Uma pesquisa feita pelo NEV mostra que a po-
pulação de fato relativiza a tortura, com certo grau de aceitação
do uso para obter confissões. Foi perguntado aos entrevistados

270  Manifesto para Abolir as Prisões


se “os tribunais podem aceitar provas obtidas através de tortura”.
Em 1999 houve clara discordância, com 71,2% das respostas. Em
2010, o percentual caiu para 52,5%. Embora a maioria diga que
a polícia deve investigar sem violência, um terço dos entrevista-
dos concordou que a polícia utilize meios ilegais, como ameaçar,
bater, dar choques ou queimar com ponta de cigarro, ameaçar
membros da família e até deixar sem água ou comida. “Quanto
mais jovem o entrevistado, maior parece ser a tendência a apoiar
o uso de práticas de tortura”, ressalta o estudo233.

O que a maioria das pessoas não consegue perceber é que não


é a condução do adolescente ou do adulto e a sua manutenção na
instituição total que permitiu o alcance desse sucesso pessoal. Foi
o fornecimento de condições para que eles se dedicassem ao estu-
do: como o tempo disponível para a leitura, o material adequado e
o acompanhamento de um técnico competente (professor) – condi-
ções que se lhes fossem oferecidas no momento oportuno revela-
riam também a sua capacidade. O Estado tem o dever de permitir o
acesso a essas oportunidades antes que o poder prisional o faça.
Todo esse ilusionismo pirotécnico tem sido possível porque quem
administra a prisão e os seus defeitos e inutilidades são as mesmas
pessoas que a divulgam como útil e adequada o suficiente para os
fins a que legalmente se dispõe, e que infelizmente coincidem com
aquelas que se beneficiam de toda a contradição que a envolve. Elas
produzem criminosos e desconformes (mal educados, hereges, imo-
rais e amorais, etc.) e edificam uma prisão para recebê-los, a título
de superconcentrar neles os seus esforços estatais e que dizem ser
voltados para a sua melhora, sem a qual a sociedade se esclerosará.
Imediatamente elas e seus associados midiáticos divulgam para o
público sádico que a prisão resolverá a questão não só da criminali-
dade, mas do ensino, da religiosidade, da moral, etc.

233
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/denuncias-de-tortura-
-no-brasil-cresceram-129-nos-ultimos-3-anos-12050252>. Acesso em:
25 jul. 2016.
2  O Futuro do Sistema Prisional  271
O caráter fundamental desta política [de atendimento socioe-
ducativo do Estado de São Paulo] tem sido, nos últimos quatro
anos, a busca de uma mudança de paradigma no atendimento
socioeducativo, a qual demanda, tanto aos gestores como às suas
equipes, assumir o desafio de transformar uma “cultura institucio-
nal” histórica e socialmente marcada como espaço meramente
sancionatório, em um espaço efetivamente educativo234.

Depois elas desabastecem a instituição total, retirando o mínimo


de condições dignas e despejando juntos os criminosos, os mal edu-
cados, os hereges, os imorais e os amorais, que voltarão ainda mais
desatualizados para a sociedade. Em contrapartida, elas noticiam
que o problema é do encarcerado, que não se dedicou o suficiente
em favor da sua religiosidade, moralidade, educação, etc. Ao mesmo
tempo, elas informam que o problema também é da fragilidade das
leis penais, da bondade do sistema prisional e do aumento da peri-
culosidade dos criminosos e daqueles que ainda não foram educa-
dos, moralizados, etc. Com isso, elas conseguem produzir leis e penas
mais duras contra o crime, piorar as condições do cárcere e lançar em
seus claustros pessoas taxadas como perigosas com muito mais faci-
lidade e muito menos exigências características. Como pessoas mal
educadas, que praticam incivilidades; histéricos e paranoicos, que se
comunicam tonitruosamente; drogados excessivamente gesticula-
dores, etc.

“A INTERNAÇÃO DO MENOR INFRATOR DEVE OCORRER EM


ÚLTIMO CASO”
Segundo a presidente do CONANDA, diversos adolescentes são
internados em instituições socioeducativas por motivos banais.
Chave de fenda, alicate e uma faca de cozinha para arrumar uma
tomada em um abrigo para menores em Guarulhos, na Grande
São Paulo. É assim que Marlon de Renato Ferreira, de 21 anos, se
lembra do incidente que lhe fez cumprir um ano de medidas so-
cioeducativas na Fundação Casa. “Fui a sala dos coordenadores,

234
Disponível em: <file:///C:/Users/Ricardo/Downloads/efcp-revistas-casa-
-CASA_em_Revista_AnoII_Especial.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2016.
272  Manifesto para Abolir as Prisões
peguei a chave, o alicate e uma faca para descascar o fio. Quando
voltei, o assistente social estava discutindo com um menino de-
ficiente e eu resolvi intervir. Nisso, ele começou a dizer que eu
não era nada, que eu não trabalhava no abrigo e que estava ali
há pouco tempo para dizer o que ele deveria fazer. No calor da
discussão, ele me ofendeu e como eu estava muito nervoso parti
para cima dele gritando: vou te matar, vou te matar”, relembra o
ex-interno, que foi condenado por tentativa de homicídio. Assim
como Marlon, diversos adolescentes são internados em institui-
ções socioeducativas por motivos banais, segundo a presidente
do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda), Maria Izabel da Silva. “Precisamos fazer um diálogo
com o sistema de justiça para compreender que lógica é essa que
está levando os juízes a determinarem sentença para atos infra-
cionais tão pequenos como esse. No Piauí, um garoto foi interna-
do por ter dado um empurrão na madrasta. E aí? Como é que fica
a prestação de serviço e comunidade? Como é que fica a questão
de reparar o dano?”, critica a presidente do Conanda235.

Dentro da mesma vala comum que é a prisão não é preciso muito


para se destacar. O nível a que ela rebaixa todos os prisioneiros é tão
profundo que qualquer situação corriqueira vai ser aproveitada por
ela como uma vitória estimulante e digna de aplauso. No fim das con-
tas esse é um espetáculo com sucesso garantido.

2.1.2 A adoção de penas e medidas alternativas (rectius:


opcionais)
Seria adequado substituir a pena de prisão por penas e medidas
alternativas (restritivas de direito)? Não. Basicamente porque, confor-
me se extrai do artigo 32, caput e inciso II, e do artigo 43, caput e inci-
sos I a VI, inseridos no Título V, Das Penas, Capítulo I, Das Espécies de
Pena, do Código Penal, penas e medidas alternativas não deixam de
ser penas. Como na lição radbruchiana, que aqui segue modificada:

235
Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-
-Humanos/-A-internacao-do-menor-infrator-deve-ocorrer-em-ultimo-
-caso-/5/30194>. Acesso em: 29 jun. 2016.
2  O Futuro do Sistema Prisional  273
não precisamos de um poder prisional melhor e diferente, mas de
uma opção melhor que a prisão, e bem distante de qualquer sanção
que tenha algo a ver com ela.
De acordo com o princípio da proporcionalidade, penas e medi-
das alternativas apenas aparentam interferir menos sobre as pessoas.
Na carne e na alma dos seus destinatários elas também estigmatizam
e reproduzem justamente o efeito criminoso que elas fingem com-
bater. Isso inevitavelmente acontece porque os que concordam com
a sua aplicação (artigos 72 e 76, da LJECCrim), ou os que nelas são
condenados (artigos 44, e seguintes do Código Penal), igualmente
são tocados pelo poder punitivo. Nenhum deles deixa de experimen-
tar uma carta estigmática também irreversível, vitalícia e hereditária.
Isso quando a própria pena alternativa em si mesma não produz efei-
tos mais prejudiciais que a pena de prisão, como já alertou a teoria
tiedemanniana.
As penas e medidas alternativas são tão intoleráveis quanto a pri-
são porque mantêm acesa uma suposta necessidade de reprimir
em vez de prevenir os conflitos. O fato de o Brasil possuir mais
pessoas cumprindo penas e medidas alternativas (600.000), que
presas (500.000)236, não deve servir de motivo para uma comemo-
ração precipitada. Principalmente porque não há qualquer dado
que comprove que a instalação desse tipo de justiça restaurativa
– da maneira com que está sendo conduzida –, em substituição à
prisão, tem beneficiado a sociedade, apesar de um diagnóstico
esperançoso inserido em um relatório precoce confeccionado
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), por enco-
menda do Ministério da Justiça.
Considerada como um todo, a pesquisa permite uma compre-
ensão essencial, que não pode deixar de ser mencionada nesta
apresentação. A constatação de um certo descrédito quanto à
aplicação das penas e medidas alternativas, a ausência dos juízes,
promotores, defensores e até mesmo das partes nos atos proces-
suais, o caráter burocrático das audiências de conciliação, todos

236
Os dados são de 2010. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-
-abr-24/brasil-aposta-penas-alternativas-desafogar-prisoes-reduzir-in-
cidencia>. Acesso em: 25 jun. 2016.
274  Manifesto para Abolir as Prisões
esses elementos evidenciam que o sistema de justiça não incor-
porou o sentido restaurativo às práticas alternativas à prisão. As
alternativas penais são tratadas, assim, como mera possibilidade,
e não como recursos que fazem parte de uma maneira de lidar
com os conflitos sociais. A formação e a prática dos operadores
do sistema de justiça valorizam o litígio e não a solução restau-
rativa dos conflitos que chegam ao Judiciário. Não há encoraja-
mento das partes, envolvimento dos operadores ou priorização
institucional, justamente porque a Justiça segue majoritária e
intencionalmente sendo retributiva. Seguindo desse modo, qual-
quer alternativa penal continuará sendo meramente burocrática
e significará, sempre, aumento de controle, afastando-se de sua
vocação como opção à privação da liberdade e do compromis-
so com a restauração das relações sociais. Daí a necessidade de
profunda transformação no sistema de justiça criminal do país,
que deve assumir a falência do modelo de encarceramento em
massa, passando a reconhecer o cárcere como última opção e pri-
vilegiando a aplicação efetiva de alternativas penais237.

É motivo de preocupação que a quantidade de sanções alternati-


vas aplicadas, em vez de reduzir o encarceramento, tem aumentado
juntamente com o número de pessoas aprisionadas. Embora pare-
çam ser menos invasivas, elas não conseguiram modificar a ansie-
dade da população e a crença que esta devota à pena, seja como
solução, precaução, controle ou vingança. A título de exemplo a acei-
tação e o cumprimento do acordo proposto para composição dos
danos (artigos 72 e 76, da LJECCrim.), dispara na população leiga a
sensação de que o acusado ficou impune. Graças à frouxidão dessa
lei, ele não apodreceu na cadeia. Houvesse recebido ao menos uma
pena privativa de liberdade mínima, a sensação seria certamente
contrária, ou menos desconfortável.
De qualquer maneira, a aplicação de sanções alternativas sem a
consequente redução do número de privações de liberdade não re-
vela uma substituição ou uma troca, mas um somatório desastroso
de penas impondo sofrimento e crueldade, e exclusivamente com

237
Disponível em: <http://apublica.org/wp-content/uploads/2015/02/
pesquisa-ipea-provisorios.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2016.
2  O Futuro do Sistema Prisional  275
o fim de demonstrar que quanto mais se tenta remendar o poder
punitivo, mais ele encontra um meio de ampliar o seu poder. Tal qual
o organismo que, recebendo uma prótese estrutural e consequentes
pontos internos, absorve estes e fica mais forte com o uso daquela.
Em vez de destituir o poder prisional as sanções alternativas apenas
têm desviado os olhares do altar, que é o lugar de onde ele exige os
sacrifícios diários. Como elas são uma iguaria aperitiva que potencia-
liza o apetite de uma plateia composta por sádicos, precisamos de
outros meios de elaboração dos conflitos e dos danos deles deriva-
dos.

2.1.3 A tentativa do numerus clausus


Alguns países têm adotado medidas que, em conjunto com ou-
tras, conseguiram reduzir drasticamente a população prisional.
Olhando consequencialmente a questão prisional eles perceberam
que a existência de prisões é a grande causa do aumento da crimi-
nalidade, e não o contrário. Os crimes não justificam as prisões. As
prisões é que explicam os crimes.
Além de inúmeras medidas paralelas, como a assemelhação de
renda e de oportunidades, investimento pesado em ensino, etc., al-
guns países têm implantado, quanto à capacidade receptiva do que
restou do seu sistema prisional, um modelo baseado no numerus
clausus (número fechado). Trabalhando com uma quantidade pre-
viamente definida de vagas o sistema prisional só pode receber um
novo cliente quando há espaço. Não existindo, só se admite uma
nova entrada se simultaneamente houver uma liberação. Para que
um preso entre, outro tem que sair. Embora essa tecnologia não seja
a única ou a maior responsável pela redução drástica da criminalida-
de e pelo fechamento de prisões nos referidos países, é inegável que
ela colabora muitíssimo para o represamento do encarceramento
massivo, e, como consequência, para o quase fim da produção e da
reprodução da clientela.
Em entrevista intitulada Punir mais só piora crime e agrava a inse-
gurança, o saudoso Massimo Pavarini resumiu essa contabilidade:

276  Manifesto para Abolir as Prisões


Entre os nórdicos, quando um juiz condena um preso, ele precisa
saber a quantidade de vagas na prisão. Se não há vaga, outro pre-
so precisa sair. O juiz indica quem sai. Porque é preciso responsa-
bilizar o Poder Judiciário e a polícia pelos presídios238.

Atualmente, temos uma taxa de ocupação de 161%239. Isso não sig-


nifica apenas que temos um déficit de vagas em torno de 231.062240
pessoas, significa que mais da metade das pessoas está confinada
além da capacidade presidiária, realizando todos os problemas que
a superlotação permite. Isso também significa que, considerada a
ansiedade empresarial da indústria da privatização pelo lucro, essa
quantidade que sobra não será imediatamente liberada. Pelo contrá-
rio, serão construídos mais e mais presídios para justificar a manuten-
ção do aprisionamento dos que já estão presos. A título de exemplo
desse boom imobiliário:

NOVOS PRESÍDIOS AMENIZAM O DÉFICIT, MAS


SUPERLOTAÇÃO AINDA SERÁ PROBLEMA
Mesmo com a construção de três novos presídios o problema da
superlotação do sistema carcerário não deve ser resolvido em
Campo Grande. [...]
Faltam ao menos 7 mil vagas nos presídios do Estado.
O déficit é ainda maior se contabilizado todo o Estado, pois con-
forme o Mapa Carcerário da Diretoria de Operações da Agepen,
em outubro do ano passado, a população carcerária de Mato

238
PAVARINI, Massimo. Punir mais só piora crime e agrava a insegurança.
Folha de São Paulo, São Paulo, segunda-feira, 31 ago. 2009. Entrevista
concedida a Mario Cesar Carvalho. Disponível em: <http://www1.folha.
uol.com.br/fsp/cotidian/ff3108200916.htm>. Acesso em: 03 maio 2016.
239
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em: 25 jun. 2016.
240
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em: 25 jun. 2016.
2  O Futuro do Sistema Prisional  277
Grosso do Sul era de 14.634 internos, sendo que as vagas são para
7.106, ou seja, o dobro241.

Como a capacidade de construção civil do setor da indústria do


encarceramento é altíssima, porque ele gera lucros garantidos, fica
fácil prever que nosso contingente prisional aumentará ainda mais
absurdamente. Porque ele seguirá a lógica do apertus clausus (nú-
mero aberto), não haverá oportunidade, tampouco vontade política
para a aplicação do numerus clausus, que também não passa de uma
medida provisória para impedir o crescimento do aprisionamento ao
mantê-lo estável. E a estabilidade ameniza, mas não é a solução para
o nosso problema presidiário porque as chances de retomada da
aceleração prisional são maiores quando se parte de uma população
prisional que está por volta dos 700.000 presos.

2.1.4 A privatização do setor prisional


Por conta da lucratividade que ela proporciona ao ramo da cons-
trução civil, ao ramo da administração presidiária e a algumas classes
(políticos, empresários, etc.), a indústria da edificação e da gestão de
presídios nos EUA só tem crescido. E tanto que a sua tecnologia al-
cançou um nível capaz de considerá-la uma espécie de commodity
eletrônica, negociável na própria NASDAQ. Ao exportar essas com-
modities eletrônicas os EUA acabam recebendo não apenas os royal-
ties provenientes do uso da tecnologia prisional que desenvolveram,
mas também conseguem impor toda uma política criminal encar-
ceradora ao Ocidente. Com a ajuda das séries policiais, do cinema,
da música, etc., eles exportam a alienação de um projeto prisional
ilógico e incoerente, mas convincente. O modelo estadunidense de
combate ao crime mediante a prisão representa a nova colonização
dos países coletáveis, como o Brasil.
Não é à toa que o Uruguai, antes de zerar as mortes por tráfico
de drogas, proibiu os programas policiais, sobretudo os televisivos.

241
Disponível em: <http://www.oestadoonline.com.br/2016/01/novos-
-presidios-amenizam-o-deficit-mas-superlotacao-ainda-sera-proble-
ma/>. Acesso em: 25 jun. 2016.
278  Manifesto para Abolir as Prisões
O efeito devastador que eles produzem ao fabricar estereótipos e ao
remarcar estigmas é impressionante, embora no mau sentido.

ANTES DE ZERAR MORTE POR TRÁFICO, URUGUAI PROIBIU


PROGRAMAS POLICIAIS
Mujica vetou a exibição de atrações similares ao “Cidade Alerta”
das 6h até 22h, justificando que tais programas promovem atitu-
des violentas.
Incrédulo, o Brasil assistiu, ao vivo, um policial disparar quatro ti-
ros contra dois jovens que já estavam rendidos após longa per-
seguição de moto. As imagens foram transmitidas, ao mesmo
tempo, pelos programas “Cidade Alerta” e “Brasil Urgente”, apre-
sentados por Marcelo Rezende e José Luis Datena, respectiva-
mente. Imediatamente, os dois apresentadores saíram em defesa
do policial. “Se ele atirou é porque o bandido estava armado. E ele
fez muito bem”, disse Rezende. “Não sei se os caras apontaram o
revólver para o policial, não vi. Provavelmente, sim”, afirmou Date-
na. A postura de Datena e Rezende dá o tom dos programas, que
são reconhecidos por fazer apologia à violência policial, lançando
mão do discurso de que “bandido bom é bandido morto”. Ambos
narram com entusiasmo as perseguições e as ações da PM pelas
periferias paulistas. Em junho de 2012, quando o Uruguai sofria
com o avanço de 70% no número de homicídios, o presidente
José Mujica anunciou um pacote de medidas para conter a cri-
minalidade no País. Estudos e pesquisas conduzidos pela equipe
do presidente concluíram que era preciso um conjunto de ações
que atacasse o tráfico de drogas. O documento “Estratégia pela
vida e convivência”, que continha 15 medidas, foi anunciado e se
tornou mundialmente conhecido porque nele o Uruguai anun-
ciava que passaria a gerir a produção e distribuição de maconha
no país. Dessa forma, o Estado assumia o posto de fornecedor da
maconha aos uruguaios, era um golpe econômico nos narcotra-
ficantes. Na outra extremidade, preocupava a ação policial. Os
superpoderes dos agentes nas ruas precisavam ser combatidos,
assim como a sensação de impunidade. Por isso, entre as medidas
tomadas pelo governo, estava a proibição da exibição de progra-
mas policiais [similares ao “Cidade Alerta” e “Brasil Urgente”] entre
6h e 22h. A alegação é que essas “atrações televisivas” promovem
atitudes ou condutas violentas e discriminatórias. Dois anos de-

2  O Futuro do Sistema Prisional  279


pois, em junho de 2014, o governo uruguaio anunciou que as
mortes ligadas ao tráfico de drogas foram zeradas no país. [...] a
PM anunciou que o policial responsável pelos disparos nos jovens
rendidos foi preso administrativamente. O secretário da Seguran-
ça Pública, Alexandre de Moraes, disse que o policial cometeu
uma “séria irregularidade”242.

Eles, os fabricantes-coletores, invadem nossa sociedade e nossas


mentes, usando-nos como vitrine demonstradora da eficiência da
sua tecnocolonização presidiária. Aproveitando-se do sucateamen-
to do parque prisional nacional público e da maior facilidade com
que as questões privadas são gerenciadas, eles nos convencem de
que as Parcerias Público-Privadas (PPP’s) – leia-se privatizações indi-
retas –, são mais eficientes e alcançam melhor os objetivos. Assim, a
eliminação do inimigo é ilusoriamente alcançada, embora mediante
a perversão dos meios disponíveis. Com esse discurso, a condução
privada das prisões estaria mais preocupada com os fins do que com
os meios. Essa é uma tática que se autoadesiva porque ela atende
perfeitamente aos anseios da maioria das pessoas, que admitem que
qualquer coisa seja feita para que a tranquilidade e a segurança se-
jam subjetiva e objetivamente instaladas. Todavia, essa é uma ilusão
perigosa na medida em que a instabilidade do pessoal funcional –
os agentes penitenciários, etc. –, pode levá-los a praticar condutas
exageradas e atípicas para a obtenção dos resultados, sem os quais a
manutenção do seu emprego estaria abalada. Esquisitamente:

Diante de uma situação de tortura ou de violação de direitos, essa


pessoa vai buscar um advogado contratado pela empresa A para
demandar contra a empresa A. Evidentemente isso tudo está ar-
quitetado de uma forma muito perversa [...]243.

242
Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FMidia%
2FAntes-de-zerar-morte-por-trafico-Uruguai-proibiu-programas-
-policiais%0A%2F12%2F33987>. Acesso em: 26 jun. 2016.
243
Disponível em: <http://apublica.org/2014/05/quanto-mais-presos-mai
or-o-lucro/>. Acesso em: 26 jun. 2016.
280  Manifesto para Abolir as Prisões
Em dezembro de 2015, o (CNPCT) Comitê Nacional de Prevenção
e Combate à Tortura, recomendou o que segue, sobre a privatização
do sistema carcerário brasileiro:
[...] Considerando que as Regras Mínimas para Tratamento de
Prisioneiros da Organização das Nações Unidas, em seu item 46,
estabelece que os trabalhadores do sistema penitenciário devem
ter “condição de servidor público” e, portanto, com segurança e
estabilidade no emprego; Considerando a Resolução n.º 08, de 09
de dezembro de 2002, do Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária;
Considerando o exposto no parágrafo 30 do Capítulo 18 do Re-
latório Final da Comissão Nacional da Verdade, que recomenda o
afastamento de medidas, como a privatização de presídios, que
acarretem ruptura com o princípio de que o poder punitivo é ex-
clusivo do Estado e deve ser exercido nos marcos do Estado De-
mocrático de Direito;
Considerando que a privatização do sistema penitenciário, tal
qual vem sendo praticada, fragiliza os mecanismos de denúncia
e apuração de casos de tortura, especialmente ao delegar para
entes privados a assistência jurídica, médica, psicológica e social
aos presos;
Considerando que a privatização do sistema penitenciário, tal
qual vem sendo praticada possibilita a alta rotatividade de pes-
soal, precárias condições de trabalho, remuneração e treinamen-
to, com repercussões negativas para a prevenção e o combate à
tortura;
Recomenda:
Art. Iº Aos Governos Estaduais e Federal a não privatização dos
serviços relacionados à custódia de pessoas presas, especialmen-
te no que tange às atividades de administração prisional, discipli-
na, segurança, transporte, assistência jurídica, médica, psicológi-
ca e social.
Parágrafo Único. Considera-se privatização, para os fins da pre-
sente Recomendação, a delegação dos serviços descritos no ca-
put para entes privados, que tenham ou não fins lucrativos.

2  O Futuro do Sistema Prisional  281


Art. 2º Ao Senado e à Câmara dos Deputados que rejeitem qual-
quer proposta legislativa tendente a permitir ou regulamentar a
terceirização da execução da pena ou a privatização do sistema
carcerário brasileiro.
Art. 3º Ao Ministério Público Federal, aos Ministérios Públicos
Estaduais e aos Ministérios Públicos de Contas que fiscalizem a
legalidade dos contratos já firmados entre o Estado e entes priva-
dos prestadores dos serviços descritos no caput do art. 1º.
Art. 4º Ao Ministério do Trabalho e Previdência Social que fiscalize
o cumprimento da legislação trabalhista, no que tange aos traba-
lhadores da iniciativa privada contratados para a prestação dos
serviços descritos no caput do art. 1º.
Art. 5º Às Defensorias Públicas que prestem a assistência jurídica
integral e gratuita aos presos necessitados, atuando contra qual-
quer forma de delegação de tal atividade.
Parágrafo Único. A assistência jurídica suplementar, se necessária,
deve ser prestada sob a coordenação, orientação e supervisão da
Defensoria Pública, de acordo com suas atribuições previstas no
art. 134 da Constituição Federal244.

A habitualidade escondida da tortura, por exemplo, pode ser um


fator de passividade dos confinados. E, de consequência, até de aten-
dimento respeitoso às regras internas. No fundo essa docilidade não
passaria de uma aceitação fictícia, pois ela seria o resultado apenas
aparente de que as melhores técnicas estão sendo empregadas pela
administração privatizada. Somente nessa hipótese a prisão privatiza-
da pareceria funcionar melhor. Outro grande problema dessa teatrali-
zação de um sofrimento que é real são os efeitos atrasados desse tra-
tamento, sobretudo quando o egresso é recolocado no convívio social.
No modelo prisional privatizado teríamos a substituição de uma
agenda protocolada pelo flagrante desrespeito ao ser humano, por

244
Disponível em: <http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2015/12/
Recomenda%C3%A7%C3%A3o-do-CNPCT-sobre-privatiza%C3%A7%
C3%A3o-do-sistema-carcer%C3%A1rio_Aprovada-2.pdf>. Acesso em:
26 jun. 2016.
282  Manifesto para Abolir as Prisões
um cardápio pautado por um falso respeito ao ser humano, camufla-
do sob um padrão de produtividade. Nesse ritmo o pessoal funcional
teria que produzir com o menor custo possível, e pouco importando
os meios utilizados, corpos ordenados e sujeitos incondicionalmente
às determinações. Pelo menos enquanto estiverem aprisionados. E
é justamente o silêncio prisional, ou seja, a sensação social de que
as prisões não existem ao delas não se ouvir falar, que promove o
nosso esquecimento sobre o que nelas acontece. Essa quietude tam-
bém nos permite esquecer que a nossa culpa por projetar no outro
as nossas tendências antissociais ainda não foi custeada, sendo-nos
permitido eleger outros caprinos expiadores.
Como notícias ruins chegam primeiro, se não ouvimos reclama-
ções das prisões privatizadas é porque tudo está bem. E se tudo corre
bem é porque nós fizemos o que era o correto ao elegê-la como a
nova ortopedista moral, social, educacional, religiosa e penal. Conti-
nuemos então a deixar que ela monopolize privativamente essa mo-
derna e eficiente andragogia.
O grande perigo é que sob a lupa empresarial a afirmação de que
prender resolve ganha uma nova dimensão: quanto mais pessoas
forem presas, maior será o lucro. É preciso, portanto, incentivar ou
relaxar quanto ao aumento da criminalidade.
Apesar de todos esses argumentos muitos acreditam que esse
consenso neoliberal punitivo ortodoxo, representado pela privatiza-
ção, é a melhor saída. Segundo a sua lógica torta, além da maior efi-
ciência na (re)socialização a privatização das prisões economiza o di-
nheiro público – incorretamente gasto com uma gentalha que, além
de não merecer qualquer investimento, providenciado pelo bolso do
contribuinte de bem, deveria trabalhar para custear sua estada, sua
alimentação, sua indumentária, etc.

PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 580, DE 2015


Autoria: Senador Waldemir Moka
Ementa: Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Exe-
cução Penal, para estabelecer a obrigação de o preso ressarcir o
Estado das despesas com a sua manutenção.

2  O Futuro do Sistema Prisional  283


Explicação da Ementa: Altera a Lei de Execução Penal para esta-
belecer a obrigação de o preso ressarcir o Estado das despesas
com a sua manutenção no sistema prisional, mediante recursos
próprios ou por meio de trabalho245.

Para os que pensam assim o mais importante nem é tanto a priva-


tização, mas a maior retirada possível do dispêndio público que favo-
rece aqueles que cometeram um crime porque quiseram, e sabendo
das possíveis consequências. Além de o Estado não gastar com os en-
carcerados, o setor privado deveria cobrar a fatura integralmente dos
seus clientes, e com uma margem de lucro que permita que o inves-
timento valha a pena, a ponto de ele ser ampliado e de toda a massa
de inimigos ser varrida do convívio social. Para outros basta que o
Estado economize, o que permitirá que os recursos poupados sejam
utilizados em setores que demandam mais atenção como a saúde, a
educação, a segurança pública, etc. Os cálculos que eles fazem são:

Por falar em custo, eis outro argumento favorável à privatização.


Apesar da melhor qualidade das instalações, estudos mostram
que os presos custam menos nas prisões privadas. Segundo o
analista policial americano Geoffrey Segal, do Reason Public Policy
Institute, as prisões privadas operam a um custo até 15% menor
que as prisões públicas. Já a estimativa do custo do preso na Fran-
ça [...] chega a ser 40% menor no setor privado246.

Infelizmente, algumas pessoas se esquecem que os presídios pri-


vatizados trabalham com a lógica empresarial do maior lucro com o
menor custo. E que a sua escala de produção não suporta uma lota-
ção inferior a 90% – percentual abaixo do qual o Estado-contratante
precisa intervir injetando dinheiro.

245
Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/mate-
rias/-/materia/123021>. Acesso em: 26 jun. 2016.
246
Disponível em: <http://rodrigoconstantino.blogspot.de/2012/11/priva-
tizacao-na-cadeia.html>. Acesso em: 26 jun. 2016.
284  Manifesto para Abolir as Prisões
QUANTO MAIS PRESOS, MAIOR O LUCRO
Na primeira penitenciária privada desde a licitação, o Estado ga-
rante 90% de lotação mínima e seleciona os presos para facilitar
o sucesso do projeto.
[...] interessa ao consórcio que, além de haver cada dia mais pre-
sos, os que já estão lá sejam mantidos por mais tempo. Uma das
cláusulas do contrato da PPP de Neves estabelece como uma das
“obrigações do poder público” a garantia “de demanda mínima de
90% da capacidade do complexo penal, durante o contrato”. Ou
seja, durante os 27 anos do contrato pelo menos 90% das 3336
vagas devem estar sempre ocupadas. A lógica é a seguinte: se
o país mudar muito em três décadas, parar de encarcerar e tiver
cada dia menos presos, pessoas terão de ser presas para cumprir
a cota estabelecida entre o Estado e seu parceiro privado. “Dentro
de uma lógica da cidadania, você devia pensar sempre na possibi-
lidade de se ter menos presos e o que acontece ali é exatamente o
contrário”, afirma Robson Sávio. Para ele, “na verdade não se está
preocupado com o que vai acontecer depois, se está preocupado
com a manutenção do sistema funcionando, e para ele funcionar
tem que ter 90% de lotação, porque se não ele não dá lucro247.”

Sem esse subsídio não haveria interesse ou vantagem nesse tipo


de investimento, haja vista que o empresariado não se move por ca-
ridade.
A economia de escala com a qual o modelo privatizado trabalha
também é inconveniente porque por ela ele sempre busca expandir
os seus lucros sem que haja um aumento proporcional dos custos.
Para tanto quem o explora usa táticas sorrateiras que: a) evitem a sa-
turação do espaço, sem deixar que o presídio privatizado ultrapasse
sua cota de lotação, tampouco fique abaixo dela, gerando prejuízos;
b) admitem apenas um padrão de clientela, recusando presos peri-
gosos – como chefes de facção e assassinos contumazes –, e que pos-
sam facilitar o tumulto – como estupradores –, com o fim de evitar
manchar a sua imagem de estabelecimento onde reina a ordem; c)

247
Disponível em: <http://apublica.org/2014/05/quanto-mais-presos-
-maior-o-lucro/>. Acesso em: 26 jun. 2016.
2  O Futuro do Sistema Prisional  285
cortem gastos de maneira camuflada e captem cada vez mais clien-
tes sob a alegação de que a privatização funciona, ampliando seus lu-
cros; d) maquiem os resultados da reincidência, mantendo as pesso-
as encarceradas o máximo que puderem e investindo em pesquisas
acadêmicas e empíricas predispostas a confirmá-los; e que e) utilizem
meios atípicos e exagerados, aptos a anestesiar e intimidar os presos,
para passar a mensagem de que o seu modelo, porque desprovido
de reclamações, é aceito pelo encarcerado como mais saudável a ele.
Esses são os elementos dessa atividade heterodoxa que o Estado está
transferindo para o setor privado.

2.2 A ABOLIÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL É UMA


NECESSIDADE INADIÁVEL

2.2.1 A abolição da prisão como única opção viável e as


estratégias para que ela aconteça
A prisão já deu sinais mais do que absolutos de que não realiza
as promessas que faz. Ela não retribui, tampouco previne, que cri-
mes ocorram. Todavia não podemos dizer que ela não funciona. Ela
é eficaz em atender: a) aos interesses estatais de renovar e fertilizar
o pânico moral, pressuposto sem o qual a prisão não consegue se
apresentar como única capaz de nos salvar; b) aos interesses seleti-
vos da sociedade, excluindo apenas uma parcela dos seus integran-
tes; e c) aos interesses financeiros dos investidores na indústria do
encarceramento. Apesar de todos esses defeitos, inconveniências e
incoerências, aptos a prejudicar a maioria da população, sua manu-
tenção ainda é encarada por muitos como menos perigosa do que
uma suposta anarquia e um provável império da vingança, em que
a besta (inimigo) devoraria o homem de bem (amigo). Acontece que
esse, que é o nosso maior receio, tem sido a sua maior arma. Em toda
medida a vingança que tanto nos assusta não é a mesma vingança
que preenche a pena privativa de liberdade, mediante a retribuição,
a prevenção e a seletividade?
Nem mesmo a evidente contradição entre o aumento da quanti-
dade de aprisionamentos e o cada vez maior aumento de criminosos

286  Manifesto para Abolir as Prisões


a prender, em vez da redução da criminalidade, tem sido suficiente
para abalar a confiança no cárcere. É dizer: quanto mais se prende,
mais temos a prender, e estamos prendendo, embora isso não pareça
nos incomodar.
A resistência à sua abolição e o fascínio pela prisão só podem ser
explicados por componentes psicológicos: as poucas vezes em que
as pessoas raciocinam sobre a prisão e o seu funcionamento elas o fa-
zem de maneira não atuarial. Ou seja, elas não analisam a prisão e seu
modus operandi de uma maneira global, considerando vantagens e
desvantagens. Elas a analisam isoladamente, e até mesmo indepen-
dentemente do seu padrão de vida. Embora exista o megagrupo
composto pelas pessoas que têm certeza de que serão presas (classe
baixa), o das que acreditam que provavelmente serão (classe média),
e o microgrupo das que têm certeza de que jamais serão (classe alta),
nenhuma delas passa o dia racionalizando se será encarcerada hoje
ou amanhã. E isso, apesar de ela haver acordado decidida a praticar
um crime ou a simplesmente passar o dia deitada, assistindo televi-
são. Essa análise fria e não estatística da prisão anestesia a maioria a
ponto de não deixá-la perceber que o poder prisional está batendo
nas portas laterais à sua, chegando cada vez mais perto. Tamanho
desinteresse pela questão prisional tem sido um dos gatilhos para
que ela funcione cada vez mais autonomamente e com ainda mais
discricionariedade. Se dela não discordamos é porque estamos sa-
tisfeitos com o seu trabalho. Esse cheque em branco assinado será a
nossa ruína.
A decisão a favor da expansão do encarceramento em massa ou
a decisão a favor da abolição do poder prisional, e de todas as insti-
tuições totais, é o que definirá se a espécie humana continuará sub-
sistindo, pelo menos como uma sociedade de pessoas semelhantes.
Uma coisa é certa: a aposta na prisão não está funcionando, pelo me-
nos não a nosso favor. Alguma coisa precisa ser feita antes que seja
tarde. E essa não é uma previsão apressada, irrefletida e escatológica.
É uma realidade que já começou a ser desenhada, e com traços cari-
caturais.
A prisão funciona mal e é má, mas é justamente por isso que ela
é interessante. O seu funcionamento ruim e injusto (arbitrariedade)
2  O Futuro do Sistema Prisional  287
é interessante porque ele pode ser utilizado a favor daqueles que
dominam e contra aqueles que são dominados (versatilidade pri-
sional). Igualmente, o fato de ela ser má, a ponto de ser criminosa,
permite-nos acreditar que ela é a única capaz de medir forças com os
marginais, atuando inclusive em um nível de criminalidade superior
ao deles, considerado o poderio estatal diante da força limitada do
indivíduo. Temendo a piora da situação criminal, as pessoas acabam
adiando o fim da prisão ao acreditarem que um crime vale a pena
quando ele é praticado a nosso favor para eliminar outro crime que
nos prejudique. Convenientemente, nos preocupa o criminoso indi-
vidual, mas não o Estado prisional criminoso. O consideramos neces-
sário, pois é ele quem canaliza a projeção no outro das nossas ten-
dências antissociais. Apenas alguns devem pagar pelos pecados de
todos. Essa é a redenção que esvazia a nossa culpa e nos desestimula
a defender o fim da prisão.
Quanto mais a prisão cava o seu buraco, mais difícil é para ela es-
capar dele. Cada vez mais pessoas estão se tornando prisioneiras de
uma instituição que foi voluntariamente arquitetada por elas mes-
mas. Essa é a perigosa e irreversível contradição que a prisão encerra.
Não fosse pelos intocáveis amigos do cárcere, chegaríamos ao ponto
em que o folclore kantiano teria que ser revisitado: a última pessoa
livre se trancaria por dentro e jogaria a chave longe da prisão.
Apesar de servir apenas como um salão especializado em enco-
brir cosmeticamente as cicatrizes provocadas pela desigualdade so-
cial, econômica e racial, a prisão é cada vez mais encarada mediante
uma interpretação second best: por pior que ela possa parecer, ela
é menos ruim e menos perigosa que a sua abolição. Todavia nada
consegue ser mais prejudicial que a atuação prisional. Os resultados
que ela oferece, além de mentirosos, revelam que não está havendo
uma redução da criminalidade, senão um aumento. Seja porque a
prisão comete crimes, seja porque ela os reproduz. Então, não é que
esse aumento se deva a uma fragilidade e a uma fraqueza da prisão
diante da criminalidade, inclusive a ponto de exigir atitudes mais du-
ras contra o crime. Pelo contrário. Ela é uma força poderosa demais
que está sendo usada indistintamente, seja para situações realmen-
te graves, seja para situações insignificantes. Além de não controlar

288  Manifesto para Abolir as Prisões


a maior parte da criminalidade, que acontece sem que ela saiba ou
interfira, ela está treinando e adestrando a pequena criminalidade, a
criminalidade individual e a ocasional. Enquanto não percebermos
que a prisão parte de uma autolegitimação indevida, ao invés de ser
seu contraponto mais poderoso, continuaremos acreditando que as
profecias estão se autorrealizando e defendendo que as situações
criminais são reais, porque reais são as suas consequências em nosso
cotidiano.
Ao final, pouco importa se estamos todos sendo iludidos pelas
acrobacias sensuais do poder prisional e se não estamos enxergan-
do uma saída desse redemoinho que tem nos devorado aos poucos.
O que não podemos é continuar amarrados a uma adoração quase
delirante da prisão. Defender que a prisão pode melhorar, além de
equivocado e infantil, é romântico o suficiente para permitir que con-
tinuemos sendo traídos. Sustentar que ela progrida em seu projeto
megalomaníaco é concordar com a inviabilidade da civilização e com
o coroamento da barbárie nada sedutora.
Como de boas intenções a hotelaria do inferno já está saturada,
é preciso uma atitude revolucionária. Por exemplo, diante do dilema
preenchido pelo tráfico de drogas o policial deve não prender o seu
autor, o ministério público deve abster-se de acusar e o juiz deve não
condená-lo, porque o envio de determinado tóxico de uma mão para
outra não ameaça ou lesiona um bem jurídico e não passa de um
mero comércio. É preciso ter coragem e subverter o sistema. Ou é
preciso escolher outra profissão.

JUIZ ABSOLVE ACUSADO DE ENTRAR COM DROGA EM


PRESÍDIO: “CULTURA ATRASADA”
Ele citou uso recreativo em outros países devido ao “baixo poder
viciante”.
MP entrou com recurso; juiz e promotor não quiseram comentar
o caso.
O Ministério Público do Distrito Federal questionou a decisão de
um juiz de Brasília que absolveu um homem que tentou entrar
com 52 porções de maconha no Complexo Penitenciário da Papu-

2  O Futuro do Sistema Prisional  289


da. Em sua decisão, o juiz Frederico Maciel disse que é incoerente
que o álcool e o tabaco sejam permitidos e vendidos, e substân-
cias como a maconha, não. Na sentença, ele afirmou que a proibi-
ção da droga é “fruto de uma cultura atrasada e de política equi-
vocada”. [...] Na sentença, Maciel diz enxergar que a conduta do
acusado se enquadra na lei de tráfico, que prevê entre 5 e 15 anos
de prisão para quem fornece drogas a outra pessoa, mas questio-
na a sua aplicação. “No meu entender, há inconstitucionalidade e
ilegalidade nos atos administrativos que tratam da matéria”, diz.
[...] Ele afirma que uma portaria do Ministério da Saúde que com-
plementa a lei “não justifica os motivos pelos quais incluem a res-
trição de uso e comércio de várias substâncias, em especial algu-
mas contidas na lista F, como o THC [princípio ativo da maconha],
o que, de plano, demonstra a ilegalidade do ato”. “Portanto, no
meu entender, a portaria [...], ao restringir a proibição do THC não
só é ilegal, por carecer de motivação expressa, como também é
inconstitucional, por violar o princípio da igualdade, da liberdade
e da dignidade humana”, diz o juiz na sentença. Ainda na decisão,
ele afirma que os estados americanos da Califórnia, Washington e
Colorado e outros países permitem o uso recreativo e medicinal
da droga. “O THC [princípio ativo da maconha] é reconhecido por
vários outros países como substância entorpecente de caráter re-
creativo e medicinal, diante de seu baixo poder nocivo e viciante.
Sem mencionar que em outros países o seu uso é reconhecido
como parte da cultura”, explicou o juiz248.

Diante da prisão, não podemos acreditar que o que não tem re-
médio, remediado está.
Todavia, só é possível aboli-la se trabalharmos com categorias
externas ao poder prisional, senão continuaremos tentando nos eri-
gir da lama, e o nosso cavalo, puxando-nos pelos próprios cabelos.
Também não adianta ficarmos aceitando burlas de etiqueta porque
elas não passam de sinonímia. Remendos como penas e medidas al-
ternativas, técnica do numerus clausus, remições baseadas em leitura

248
Disponível em: <http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2014/01/
juiz-absolve-acusado-de-entrar-com-droga-em-presidio-cultura-atra-
sada.html>. Acesso em: 30 jun. 2016.
290  Manifesto para Abolir as Prisões
e trabalho, (re)socialização mediante evangelização, embelezamento
estrutural e limpeza asséptica da estrutura prisional, etc., não passam
de paliativos que apenas escondem a crueldade genérica das prisões
e o sofrimento sem exceção dos prisioneiros. Elas fingem mudar al-
gumas coisas para que na essência a maioria das outras permaneça
igual.
A mudança real da situação prisional em direção à sua abolição,
à sua extinção, pode se dar de duas maneiras: uma, que seria menos
radical e mais lenta; e outra, mais radical e mais rápida, ou quase isso.
Antes de continuarmos é preciso que nos desapeguemos de cer-
tos preconceitos. Como aquele que dificulta a abolição da prisão
porque nos faz acreditar que o inimigo, antes mesmo de ser conde-
nado, não merece uma segunda chance porque a vítima não a teve
– argumento este, por si só, inadmissível, visto que a supressão de
uma second chance ao acusado, além de perigosa, porque pode irre-
versivelmente alcançar inocentes, converte o poder punitivo em um
criminoso absoluto e pragmático (aplicação da pena de morte, por
exemplo, que produzirá mais um assassino que é, no caso, o Estado).
Ontologicamente não existe diferença entre o homicídio praticado
pelo particular e o cometido pelo poder público.
Depositar qualquer esperança na prisão também não é a solução
porque não resolve o problema criminal. Não evita a prática de no-
vos crimes por ele ou por terceiros. Não recupera o bem jurídico le-
sionado. Enfim, transforma o Estado em um criminoso que ameaça,
sequestra, tortura, lesiona e mata ou deixa morrer, aumentando o rol
de crimes praticados em vez de diminuí-lo.
No primeiro modelo, que chamaremos de abolição homeopáti-
ca, ela seria conduzida mediante um esquema paralelo e parcelado.
No segundo, que chamaremos de abolição cirúrgica, ela aconteceria
direta e imediatamente, dependendo da adoção, ou não, da homeo-
pática como fase anterior.
Em qualquer dos modelos a primeira providência a ser tomada
seria o enxugamento da legislação penal. Atualmente o Brasil possui
1.688 tipos penais, sendo impossível à população conhecer todos.
Para muitos chega a ser impossível não cometer um crime quase que

2  O Futuro do Sistema Prisional  291


mensalmente, semanalmente ou até diariamente. Certas pessoas
fazem parte de um cotidiano do qual elas não conseguem fugir. E
os conflitos que envolvem a maioria desses tipos penais poderiam
ser resolvidos sem o uso da pena privativa de liberdade. Depois que
essa hiperinflação legislativa fosse desidratada, trabalharíamos com
no máximo tipos penais que pudessem ser contados nos dedos das
mãos, todos dolosos e consumados mediante o uso de violência: a)
homicídio; b) lesão corporal grave; c) maus tratos; d) roubo; e) latro-
cínio; f) sequestro mediante extorsão; g) estupro; h) tortura (prevista
na legislação extravagante) e mais um ou outro.
É dizer, os demais (1.688 menos esses 8 = 1.680), ainda que do-
losos, bem como os culposos e os tentados, seriam dispostos fora
do alcance do poder prisional. Como se trata de uma abolição, eles
ficariam a cargo das penas e das medidas alternativas [rectius: op-
cionais], desde que utilizáveis com toda a sua potência restaurativa
pura, e desde que servíveis como projeto pseudoamenizador do fim
das prisões. Posteriormente, em outra fase do saneamento, os mais
ou menos 1.680 tipos penais que sobrassem, após serem descrimina-
lizados, migrariam como ilícitos para outros ramos do direito, como
o direito civil, passando a ser um ilícito civil; o direito administrativo,
passando a ser um ilícito administrativo; o direito do trabalho, pas-
sando a ser um ilícito trabalhista; o direito tributário, passando a ser
um ilícito tributário, etc., embora sem a previsão de qualquer sanção
que reproduza ou se assemelhe às penas privativas de liberdade pre-
vistas no Código Penal e na legislação penal extravagante, incluindo
as restritivas de direito, mas excepcionando-se a multa, pois, embo-
ra esta seja inofensiva ao criminoso endinheirado e inútil perante o
paupérrimo, além de facilmente desvirtuável – quem lucra mais com
o crime paga a multa para o seu “laranja”, que foi descoberto –, se
aplicada considerando as características do seu destinatário pode
ser interessante. A título de antecipação, pode-se dizer que as penas
e medidas alternativas poderiam funcionar como passagem menos
traumática para o sistema cirúrgico, que será disposto abaixo.
Isso não significa que aqueles tipos penais restantes admitiriam o
aprisionamento incondicional dos agentes que os praticaram. Ainda
não sabemos o que fazer com assassinos contumazes, com estupra-

292  Manifesto para Abolir as Prisões


dores em série ou com pessoas extremamente violentas, cujo contro-
le só é possível mediante prescrição e ingestão/aplicação fiscalizada
de medicamentos. Mesmo que todos os cuidados para inseri-los na
comunidade fossem tomados, isso não aconteceria sem que continu-
asse havendo um sério e pouco controlável oferecimento de risco à
população. São casos isoladíssimos, mas eles são reais e, infelizmen-
te, ainda nos deixam impotentes. Obviamente que esses casos não
seriam analisados com base na natureza do crime, mas sim na impos-
sibilidade de (re)integração do criminoso à sociedade após uma ava-
liação exaustiva e profunda por profissionais de várias ciências (an-
tropólogos, psiquiatras, sociólogos, juristas, etc.), e até por membros
do povo. Se a conclusão for pela impossibilidade da sua convivência
em sociedade, ela deverá ser transitória e sujeita a uma reavaliação
constante, programada e também condicionada a sinais indicativos
de alguma modificação – para melhor –, do quadro anterior. Enquan-
to continuasse estável, ou piorasse, ele seria acomodado em um local
bastante diverso de uma prisão, ou seja, em uma espécie de “depar-
tamento”, onde ele pudesse usufruir um ambiente o mais próximo
possível de uma sociedade, respeitados os limites da sua segurança
e da dos outros. Aqui a aplicação desta pseudoprivação da liberdade
não poderia, em hipótese alguma, referir-se ou apresentar-se como
um castigo. A sua hospedagem se daria em razão de uma precaução
própria e de terceiros, nunca como uma punição.
A partir daqui os modelos de abolição da prisão começam a se
diferenciar em parte.
Na abolição homeopática teríamos de um lado aqueles que já
foram irreversivelmente contaminados pelo poder prisional, sendo
inoculados com uma perseguição, uma acusação, uma culpabiliza-
ção, uma condenação e uma apenação privativa de liberdade seria-
mente transitada em julgado. De outro lado teríamos aqueles que
ainda não foram absorvidos completamente pela prisão em razão
de não haverem e de tecnicamente não poderem ser submetidos ao
procedimento punitivo completo: a) não cometeram um crime; b) o
crime cometido não prevê a privação da liberdade; c) ainda não fo-
ram acusados; d) podem estar presos, mas serão absolvidos porque
são inocentes; d) podem haver sido condenados e estar cumprindo

2  O Futuro do Sistema Prisional  293


pena, mas serão libertados em razão do sucesso de uma revisão cri-
minal, etc. Tudo a depender, porém, do grau de estigmatização im-
posto até então pelo poder punitivo.
Embora a transição em julgado das sentenças penais condenató-
rias devesse ser respeitada, no momento em que os quase 1.678 ti-
pos penais (1.688 tipos penais originais menos os quase 10 restantes)
fossem retirados do rol de condutas previstas como criminosas, ela
perderia a sua força, relativizando-se. Nesse instante todos deveriam
ser imediatamente soltos ou submetidos a reações previstas nos ou-
tros ramos do direito, e os próximos conflitos não poderiam ser sub-
metidos ao poder punitivo prisional. Como é sabido, de acordo com
o artigo 5°, inciso II, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei”, e, mais especificamente, conforme
o artigo 1°, do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o
defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. O que equivale a
dizer que não é possível que pessoas continuem presas depois que
um tipo penal é derrogado. A título de comparação, é inadmissível
que pelas mesmas condutas que a sociedade deixou de considerar
criminosas algumas pessoas fiquem (continuem) presas, enquanto
outras permaneçam soltas. Revogados os quase 1.680 tipos penais,
quem cometeu a conduta e estiver preso deverá ser imediatamente
solto e quem a cometeu e estiver livre não deverá sofrer qualquer
procedimento que deságue em uma sanção penal. Deve acontecer o
mesmo com as pessoas que tiverem praticado qualquer das condu-
tas previstas nos quase 10 tipos penais restantes, seja um homicídio,
um latrocínio, um estupro, etc. Elas devem ser soltas, no sentido de
não serem punidas com o encarceramento, e o conflito que as envol-
ve deve ser elaborado de outras maneiras.

MULHER DE AMARILDO TERÁ 1º CONTATO COM PMS:


“QUERO ENTERRO DIGNO”
[...] O depoimento será o carro-chefe da promotoria na retoma-
da da audiência de instrução e julgamento dos policiais militares,
que teve início na tarde desta quarta-feira, às 14h45, na 35ª Vara
Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). “Estou

294  Manifesto para Abolir as Prisões


esperando que seja justo, que eles entendam que eles têm que
falar onde estão os ossos do meu marido para que eu possa en-
terrá-lo como digno. Eu não vou desistir, meus filhos, ninguém da
família vai desistir”, disse na chegada ao auditório, acompanha-
da por um advogado, e bastante nervosa. Na primeira sessão da
audiência, no último dia 20 de fevereiro, a mulher de Amarildo
esteve presente no local, mas numa sala reservada para as 19 tes-
temunhas de acusação arroladas pelo Ministério Público. Ela não
teve acesso ao auditório e, consequentemente, não teve contato
com os policiais acusados, entre eles, o major Edson Santos, que
seria o mentor das sessões de tortura na comunidade e era o co-
mandante da UPP da Rocinha na época. “Eu vou ficar tranquila. O
problema está com eles, não comigo”, afirmou ainda sobre o fato
de ficar olho no olho com os 25 PMs que, dependendo de cada
caso, podem pegar até 33 anos de prisão. “Quero que os policiais
que acabaram com a vida do meu marido, trabalhador, falem o
que fizeram com ele. Não vou declarar mais nada, só quero saber
disso. Meu marido sumiu na mão de policiais e não voltou nunca
mais”, reiterou, antes da dar as costas aos jornalistas249.”

E:

“A pior coisa é matarem alguém da sua família e você não ter


como enterrar o corpo. Eu gritei desde o começo e estou gritando
até agora, porque quero os restos mortais do Amarildo. Porque os
policiais estão presos, mas até agora não deram o corpo do meu
marido, pelo menos os ossos, para a gente dar um enterro digno”.
Elizabeth garantiu que vai continuar lutando até que os restos
mortais de Amarildo sejam entregues à família250.

249
Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/mulher-de-
-amarildo-tera-1-contato-com-pms-quero-enterro-digno,5331bb315a-
7b4410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html>. Acesso em: 26 jun. 2016.
250
Disponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noti-
cia/2013-11-02/protesto-na-rocinha-pede-que-policiais-entreguem-
-corpo-de-amarildo>. Acesso em: 26 jun. 2016.
2  O Futuro do Sistema Prisional  295
Mesmo porque o aprisionamento não permite a digestão da situ-
ação conflitante e não conforta a dor que o próprio sistema prisional
tem ajudado a fermentar.

MÃE DE ISABELLA: “JUSTIÇA FOI FEITA, MAS A MINHA FILHA


NÃO VAI VOLTAR”
Ela desabafou: “Não pude acordar hoje e ter o abraço dela [Isa-
bella]”, lamentou. “O vazio ficou”.
A mãe de Isabella Nardoni, a bancária Ana Carolina Oliveira, de
25 anos, falou pela primeira vez, na tarde deste sábado (27), me-
nos de 24 horas após a condenação do casal Alexandre Nardoni e
Anna Carolina Jatobá, acusados de matar a menina em março de
2008. Disse que está feliz. “A justiça está feita, mas minha filha não
vai voltar”, disse, emocionada, em frente ao prédio onde mora, na
Vila Maria, Zona Norte de São Paulo. “Não pude acordar hoje e
ter o abraço dela [Isabella]”, lamentou. “O vazio ficou e a saudade
ficará251.”

Bem como:

“ESTOU ALIVIADA, MAS A CONDENAÇÃO NÃO TRARÁ


MINHA FILHA DE VOLTA” DIZ MÃE DE ELIZA SAMUDIO
A mãe de Eliza Samudio, Sônia Moura, comemorou o resultado do
julgamento que condenou Luiz Henrique Romão, o “Macarrão”, e
Fernanda Gomes de Castro. “Estou aliviada, mas a condenação
não trará minha filha de volta” disse ela após o fim da sessão, na
madrugada deste sábado [...]252.

251
Disponível em: <http://180graus.com/noticias/mae-de-isabella-justica-
-foi-feita-mas-a-minha-filha-nao-vai-voltar-310385.html>. Acesso em:
26 jun. 2016.
252
Disponível em: <http://hojeemdia.com.br/horizontes/estou-aliviada-
-mas-a-condena%C3%A7%C3%A3o-n%C3%A3o-trar%C3%A1-minha-
-filha-de-volta-diz-m%C3%A3e-de-eliza-samudio-1.68964>. Acesso
em: 26 jun. 2016.
296  Manifesto para Abolir as Prisões
Exatamente isso. Aqueles criminosos devem ser soltos. Mesmo as
pessoas que cometeram uma ou várias das quase 10 condutas que
ainda continuarão sendo tipificadas penalmente deverão ser liber-
tadas, e seus atos julgados e eventualmente sancionados por outros
meios, que não os prisionais.
Todavia, requente-se, caso elas sejam criminosas contumazes e o
poder prisional tenha exercido sobre elas um adestramento irreversí-
vel e incontrolável, favorável à prática incontrolável de atos violentos,
deverão elas ser conduzidas a estabelecimentos que não copiem a
estrutura e a ideologia prisional. Aqui a prudência exige que cada
caso limítrofe seja avaliado seriamente.
Certamente o dinheiro que o Estado gasta com a manutenção das
prisões é mais do que suficiente para a montagem, a equipagem e a
manutenção de juntas de avaliação dessas situações. A desculpa de
que não temos uma cultura de primeiro mundo que suporte uma de-
cisão tão radical ou que não estamos preparados para a implantação
e a gestão dessas juntas restaurativas ou terapêuticas é uma fachada
por trás da qual se escondem pretensões que se valem da mesma
comparação para estarem sendo implantadas. É dizer: se somos um
país culturalmente subdesenvolvido, por que estamos importando e
pretendemos continuar absorvendo soluções de um país desenvol-
vido como os EUA? Nossa afirmada subcultura é um inconveniente
para que legalizemos as drogas, mas não é um problema quando
adotamos o modelo carcerário privatizado norte-americano e todos
os malefícios que ele acarreta? Ela impede que legalizemos o aborta-
mento, mas não impede que desejemos reduzir a maioridade penal e
armar civilmente a população, como os estadunidenses? Ninguém se
incomoda com a disparidade cultural quando importa um aparelho
celular de última geração, por exemplo. Temos dinheiro para manter
uma despesa bilionária com a guerra às drogas e com a manutenção
do sistema punitivo e dos prejuízos que ele acarreta, mas não temos
o suficiente para estruturar órgãos paritários de elaboração de con-
flitos? São essas e outras incoerências, interpretadas sempre simpati-
camente, que têm configurado o nosso atraso social.

2  O Futuro do Sistema Prisional  297


[...] Sem contar as vidas perdidas, o crime custa ao Brasil mais de 100
bilhões de reais. Para curar essa chaga, é preciso primeiro entender
como ela é fabricada. [...] de um ponto de vista puramente monetá-
rio, um cálculo feito pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) dá uma ideia do impacto financeiro do crime no Brasil. Segundo
essa estimativa, que leva em conta prejuízos materiais, tratamentos
médicos e horas de trabalho perdidas, o crime rouba cerca de 10%
do PIB nacional, o que dá mais de 100 bilhões de reais por ano. Nos
Estados Unidos, que está longe de ser um país pacífico e ordeiro, a
porção da riqueza que escoa pelo ralo do crime é bem menor: 4%253.

Principalmente porque o que for arrecadado pode auxiliar no cus-


teio das despesas com esses departamentos, consultórios, ambulató-
rios, hospitais, com essas casas, etc.

CÂMARA ESTUDA EFEITOS DA LEGALIZAÇÃO DA


MACONHA: R$ 5,7 BILHÕES PARA A ECONOMIA
Um estudo feito por consultores legislativos da Câmara dos De-
putados estimou que a legalização da maconha no Brasil movi-
mentaria R$5,7 bilhões por ano, segundo matéria do jornal O Glo-
bo. [...] Além da arrecadação proveniente do comércio da droga,
o estudo avalia que haveria uma redução de R$997,3 milhões dos
gastos anuais com o sistema prisional254.

Por outro lado, o conflito deve ser elaborado de uma maneira que
compreenda os motivos do agente e que conforte a dor da vítima
sem esquecer todos aqueles que estão próximos a ambos. A ideia
não é reprimir os conflitos, porque esses nunca deixarão de aconte-
cer. O objetivo é preveni-los ao máximo. E a prisão já demonstrou não
ter essa capacidade. Países que estão fechando suas prisões não es-
tão isentos de que homicídios, estupros, latrocínios, etc., sejam prati-

253
Disponível em: <http://super.abril.com.br/ciencia/a-origem-da-crimi-
nalidade>. Acesso em: 28 jun. 2016.
254
Disponível em: <http://economia.uol.com.br/noticias/infomo-
ney/2016/06/09/camara-estuda-efeitos-da-legalizacao-da-maconha-
-r-57-bilhoes-para-a-economia.htm>. Acesso em: 28 jun. 2016.
298  Manifesto para Abolir as Prisões
cados. A resposta que eles oferecem é que diminui a sua incidência. E
a resposta mais utilizada a cada dia que passa tem sido o menor uso
possível da prisão, até a sua eliminação por completo.
Não bastasse, todos os registros pertinentes ao seu trânsito pelo
sistema prisional e penal devem ser apagados. Em uma tentativa de
redução ao máximo da estigmatização que a prisão produziu.
Já para os criminosos insolúveis, aqueles que não podem ser auxi-
liados por nenhuma das nossas tecnologias atuais, os quase 10 tipos
penais restantes continuariam vigendo, requentando apenas que o
seu afastamento seria uma precaução, e não uma punição. O que
equivale a dizer que eles não seriam arremessados em uma prisão,
tampouco punidos. Eles seriam auxiliados.

Em 22 de julho de 2011 [...,] houve um atentado na Noruega, co-


metido por um extremista da direita, em Oslo e na ilha de Utoya,
no qual resultaram setenta e seis mortos e noventa e tantos feri-
dos. E daí perguntaram ao Primeiro-Ministro da Noruega, Minis-
tro conservador, Jens Stoltenberg, o que se deveria fazer: se se
deveria instituir a pena de morte?; se se iria propor ao Parlamento
o aumento das penas até oitenta anos?; se se iria transformar o
regime penitenciário da Noruega em um regime especial, no qual
os presos não pudessem nunca sair das suas celas? E ele respon-
deu assim: não. Nós precisamos na Noruega não é de prisão. Nós
precisamos incrementar a democracia. Porque incrementando a
democracia as pessoas aprendem a se respeitarem mutuamente.
Para aqueles que desejam a prisão de alguém esse é um recado
muito importante de um Ministro conservador, e não um Minis-
tro de esquerda. Conservador, mas absolutamente convencido da
importância da defesa dos direitos fundamentais255.

Obviamente, a ideia também não é requentar os manicômios ju-


diciários – cujo assombro já foi experimentado e documentado sufi-
cientemente –, nem mesmo substituí-los por instituições igualmen-
te horripilantes e autoritárias, por não considerarem em nenhuma

255
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PTZGkX7zXvI>.
Acesso em: 22 jul. 2016.
2  O Futuro do Sistema Prisional  299
medida a vontade do internado256. A ideia é estabelecer um local de
assistência e acompanhamento que permita o maior contato social
possível, embora com segurança para todos, incluído o assistido. Seu
lay-out, sua dinâmica, seus colaboradores, etc., resultariam de estu-
dos e debates realizados por uma equipe de especialistas de várias
áreas (engenheiros, antropólogos, historiadores, médicos, psiquia-
tras, juristas, sanitaristas, sociólogos, geógrafos, pessoas do povo,
egressos do sistema prisional e manicomial, etc.). Todavia, para que
esta opção fosse viável legalmente seria preciso uma alteração legis-
lativo-penal e uma regulamentação do procedimento de avaliação,
detecção e decretação da periculosidade insolúvel do agente.
Por agora muitos devem estar pensando que essa proposta de
abolição do sistema prisional, assim que noticiada, incentivará as
pessoas a matarem, estuprarem e praticarem toda sorte de condutas,
pois logo deixarão de ser criminosas. E continuará estimulando-as
porque a ausência de qualquer consequência é sempre sedutora, de-
sabrochando nas pessoas os seus instintos mais perversos e egoístas.
O contra-argumento a essa suposição, mais assustada e folclóri-
ca que real, é mais simples do que parece. E ele vem através de um
questionamento. Considerando que, em média, apenas 18 crimes de
sangue, a cada 100 praticados, deságuam em um aprisionamento257,
já não estaríamos vivendo esse cenário que as pessoas tanto temem?
Em nossa realidade, 82 pessoas, de cada cem que cometem crimes
de sangue, não estariam autorizadas a matar, por exemplo? Sem ne-
nhuma consequência?
De todo modo, é preciso admitir que o esquema paralelo da abo-
lição homeopática deve vir acompanhado de uma implementação
séria de políticas públicas: a) de assemelhação de rendas e de opor-
tunidades; b) de privilégio ao ensino, sobretudo o da educação bási-
ca; c) de empregabilidade; d) de respeito ao outro e à sua autonomia;

256
Disponível em: <http://justificando.com/2016/07/06/o-manicomio-se-
-reinventa-no-credeq/>. Acesso em: 11 jul. 2016.
257
Disponível em: <http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-con-
tent/uploads/2011/06/Controle-da-criminalidade_mitos-e-fatos.pdf>.
Acesso em: 26 jun. 2016.
300  Manifesto para Abolir as Prisões
e) de desvalorização do consumo desenfreado; f) de proibição de
programas midiáticos policialescos, cumulada com regulamentação
da mídia; g) de reconhecimento de todas as profissões e dedicações
como igualmente importantes; h) de liberdade de cátedra; i) de refor-
ço da democracia, mas não como o governo da maioria, senão como
o governo desta que também respeita as minorias, etc.
Existe ainda outra possibilidade de eliminarmos o sistema prisio-
nal, que pode ocorrer mediante uma abolição cirúrgica.
Como ela é uma cirurgia de extirpação, ela é mais ampla, radical
e invasiva que a anterior. Por ela todos os 1.688 tipos penais seriam
descriminalizados, ab-rogando-se todo o poder punitivo – incluídas
as penas e as medidas alternativas, e as medidas de segurança –, e
não apenas o poder prisional. A rigor, nada impede que o sistema ci-
rúrgico de abolição seja precedido pelo sistema homeopático, como
se fosse sua fase purgatorial. Depois que os tipos penais fossem ex-
portados para os ramos adequados do direito (civil, trabalhista, admi-
nistrativo, tributário, ambiental, etc.), todos os encarcerados definiti-
vos e provisórios seriam libertados e seus procedimentos, enviados,
junto com aqueles em andamento, para as referidas ciências que
tivessem absorvido os seus conflitos. Nelas os juízes responsáveis
pela adequação da nova sistemática converteriam as sanções penais,
respectivamente, em sanção civil, trabalhista, administrativa, etc.
Mesmo as pessoas problemáticas mais perigosas e teimosas, aquelas
que insistem em não parar de praticar atos violentos, continuariam
convivendo em sociedade. Apesar de responderem civil, trabalhista,
administrativa, etc., por cada novo conflito provocado. Nesse mo-
delo não haveria o menor resquício de um suposto direito penal de
autor, ainda que camuflado sobre a ideia de precaução, prevista na
abolição homeopática. De maneira que nem mesmo o homicídio de
uma centena de pessoas nos autorizaria a prever que ela mataria a
centésima primeira, se estivesse solta – justificando, portanto, a sua
exclusão social. Além de responder pelos conflitos em que se envol-
veu, ela não pode ser excluída do convívio com as pessoas com base
em uma suposição ou em um padrão de comportamento que não
se sabe se realmente existe, ou se já esgotou o seu ciclo. Em igual
medida, o argumento de que a sua extração da sociedade depois de

2  O Futuro do Sistema Prisional  301


determinada quantidade de homicídios evitaria os demais pode ser
rebatido por aquele que afirma que o homicida não matou duzentas
ou trezentas pessoas, mas sim apenas vinte ou trinta, que ele já está
há tantos dias sem matar ou que ele se aposentou. Por mais insensí-
vel que este contraponto seja, ele é real e precisa ser considerado sob
pena de privilegiarmos o risco em detrimento da lesão.
Na obra The prone gunman, escrita por Jean-Patrick Manchette,
o protagonista é um assassino profissional que decide se aposentar.
Embora ele não obtenha sucesso inicial, pouco tempo depois ele
consegue levar uma vida comum, e independente da intervenção do
poder punitivo258.
Mas, essas são questões extremamente complexas e limítrofes e
que não devem ser generalizadas. Como exceção que são devem ser
objeto de uma solução específica e artesanal, que considere os mí-
nimos detalhes e possibilidades. Porém, desde que nelas não esteja
contido o retorno à aplicação da prisão como castigo, tampouco de
qualquer resquício punitivo. E, nesse modelo de abolicionismo cirúr-
gico, sequer como precaução.
Essas propostas podem ser acusadas de utópicas? Podem, e pro-
vavelmente serão. Mas, nada é mais distópico que as promessas que
a prisão não cumpre. E nada é mais real que o rastro de sofrimento
que ela tem deixado, inclusive naqueles que estão supostamente dis-
tantes dela. Acreditando-se que o ser humano é essencialmente mal,
duvida-se que seja possível uma sociedade sem prisões. Ocorre que
já existiram e ainda existem sociedades desaprisionadas. Exemplo
disso são os primitivos atuais trobriandeses e os aborígenes brasi-
leiros, muitas vezes mais civilizados que nós. À exceção dos antropó-
fagos, que guardavam (“aprisionavam”) a sua comida até a próxima
fome ou celebração.
E nem se diga que nossas sociedades ditas civilizadas precisam da
prisão para continuar existindo porque já foram contaminadas por
conflitos que não podem mais ser controlados por outros meios. Esse

258
MANCHETTE, Jean-Patrick. The prone gunman. San Francisco: City Lights
Publishers, 2002, passim.
302  Manifesto para Abolir as Prisões
é um argumento contraditório na medida em que a prisão é incom-
patível com a civilização. A prisão é a barbárie. Aqui a lógica reso-
lutiva não deve seguir a premissa de que nossa incivilidade exige a
manutenção da prisão a fim de que essa condição não piore. Ao con-
trário. Como a prisão representa essencialmente a barbárie é preciso
eliminá-la para que passemos a viver civilizadamente.
Por outro lado o ser humano não é essencialmente mal. Ele é ape-
nas um produto do meio prisional que o circunda ou que nele in-
terfere diretamente. Eliminando-se a causa, extingue-se esse efeito.
Essa condição maligna que teimamos em considerar ser proveniente
de uma vontade ou pré-disposição humana.
Como no ensinamento hulsmaniano, se eu tenho em meu jar-
dim uma planta que é daninha por natureza e se essa planta tende
a, competindo com as demais, interferir no crescimento dessas (ale-
lopatia), preferirei eliminá-la, abrindo um espaço para que aquelas
possam florescer.
A mudança pode parecer assustadora, mas a nossa realidade atual
consegue ser mais. Nenhum método que substitua a prisão por algo
melhor que ela será pior que ela. E quase nada consegue ser pior que
a prisão ou tão ruim quanto ela. É preciso trocar o dano certo pela
chance de um dano menor. É preciso mudar o olhar, da repressão
dos conflitos para a prevenção dos mesmos. É imprescindível preferir
a esperança de que é possível um mundo melhor, aos prejuízos que
a prisão tem evidentemente provocado. É preciso entender que esse
manifesto não é simplesmente uma defesa dos criminosos. Ele é a
tentativa de demonstração de que para darmos dois passos para a
frente às vezes é preciso, aparentemente, darmos um passo para trás.
Duas pessoas desconhecidas dispõem de apenas uma coxinha de
padaria. Suficiente para satisfazer apenas uma delas, elas decidem
dividi-la. Para tanto, elegem como metodologia de escolha um sor-
teio prévio que definirá que uma ficará responsável por cortá-la e a
outra por escolher qual parte fica com qual delas.
Existem inúmeros meios de se fazer justiça. Talvez, o disposto aci-
ma não seja um deles. Mas, certamente, a prisão é o menos apropria-
do de todos.

2  O Futuro do Sistema Prisional  303


Poucos anos atrás aumentou o número de furtos de bagagens
nos aeroportos alemães. Em vez de tentar usar a prisão de alguns
dos assaltantes como solução simbólica a polícia aeroportuária de
Frankfurt preferiu sensibilizar os passageiros. Para isso ela se valeu
de um método incomum: funcionários civis controladamente furta-
vam os clientes distraídos. Embora as bagagens fossem rapidamente
devolvidas isso demonstrava, para os frequentadores daquele am-
biente, como os crimes poderiam acontecer com eles. O problema é
que, além de incomum, essa solução era perigosa porque envolvia a
possibilidade de efeitos incontroláveis como a reação desmedida da
vítima, etc.259
Embora o exemplo anterior, ao contrário da prisão, represente
uma tentativa de solução de conflitos, a providência tomada pelos
administradores de uma empresa no Canadá parece muito mais in-
teressante.

Em uma grande empresa siderúrgica no Canadá, cada vez mais


equipamentos e ferramentas portáteis eram perdidos: brocas, ser-
ras, jatos abrasivos e coisas parecidas. Roubados pelos operários. O
líder empresarial da firma estava preocupado com a extensão da
perda e com o que esta significava para os lucros da companhia.
Chamou o diretor do departamento de segurança e lhe encarre-
gou de encontrar uma solução para o problema. Como muitos
chefes da segurança, em meados dos anos oitenta, o diretor do
departamento era um ex-policial que, como segunda carreira, co-
meçara um trabalho no setor de segurança privada. De fato, ele
trocara seu local de trabalho, mas conservara o modo e a forma
de pensar sobre problemas de segurança: raciocinava e agia ainda
como um policial. E, em conformidade com isso, reagiu à exigência
de seu chefe. Na reunião seguinte, apresentou um plano ao líder
empresarial: sugeriu que a companhia contratasse investigadores
secretos para espionarem os operários e descobrirem quem rou-
bava as ferramentas. Em uma data estabelecida, os trabalhadores
deveriam ser revistados ao deixarem o serviço. Provas que seriam

259
Disponível em: <http://www.welt.de/reise/deutschland/arti-
cle119168507/Diebstaehle-an-deutschen-Flughaefen-nehmen-stark-
-zu.html>. Acesso em: 11 jul. 2016.
304  Manifesto para Abolir as Prisões
obtidas com esse ato de inspeção deveriam articular-se a outras,
reunidas durante o trabalho de investigação, para serem utilizadas
com o objetivo de justificar e de executar uma inspeção nas casas
dos operários. Com base nas provas reunidas, seria feita denúncia
contra os suspeitos, os operários inculpados seriam acusados dian-
te do tribunal, sentenciados e punidos por seus roubos. Depois
que o diretor do departamento apresentou sua sugestão ao líder
empresarial, reclinou-se na poltrona para gozar do elogio que ele
certamente receberia. Para sua surpresa, que se transformou em
susto, ele descobriu que o chefe não ficara nada satisfeito com seu
plano. Ao invés disso, este o olhou e lhe perguntou se havia enlou-
quecido. A julgar pelo plano, ele, como diretor do departamento,
não fazia a menor ideia da companhia na qual trabalhava, nem dos
valores e ideias que a regiam. Para elucidar o que pensava, o líder
empresarial explicou as consequências daquele plano para a em-
presa. O que o diretor do departamento sugeria, observou o líder
empresarial, exigiria que ele estivesse de acordo em contratar in-
vestigadores secretos para, em seguida, pagar o diretor e os outros
do departamento de segurança a fim de que eles utilizassem as
evidências reunidas pelos investigadores para ajudar a polícia a in-
culpar os suspeitos. Ao fim de todo o processo, a companhia perde-
ria os operários, ou porque estes estariam encarcerados ou porque
teriam de ser demitidos. Mas nesses operários, salientou o líder em-
presarial, a firma havia investido muito dinheiro para treinamento.
Se a firma tivesse agora poucos operários treinados, precisaria in-
vestir mais dinheiro em anúncios em busca de novos funcionários,
e os que fossem contratados teriam de ser novamente treinados.
Esses novos funcionários, sem dúvida, roubariam tanto da compa-
nhia quanto aqueles que a haviam deixado. Toda investida agrava-
ria a atmosfera da empresa e é provável que isso incidisse sobre a
produtividade. Ademais, a posição do sindicato se endureceria, e
isso tornaria as negociações salariais ainda mais difíceis do que já
eram. Em suma, a “solução” do diretor do departamento resultaria
na perda de ainda mais dinheiro da empresa. Seja qual fosse a per-
da devido ao roubo das ferramentas, o valor seria provavelmente
duplicado ou triplicado. Depois de dizer tudo isso, o líder empresa-
rial se dirigiu ao diretor do departamento e falou que sabia como
economizar um monte de dinheiro: poderia demiti-lo, porque ele
não lhe era útil. Mas antes de fazê-lo, estaria disposto a dar ao dire-
tor do departamento uma semana para refletir sobre o caso e en-

2  O Futuro do Sistema Prisional  305


tender a natureza da companhia na qual ele trabalhava. E quando
ele fizesse isso, acrescentou o líder empresarial, não seria ruim se o
diretor do departamento entendesse que o negócio da empresa
consistia em ganhar dinheiro e não em perder dinheiro. Pois bem,
tudo isso instigou o diretor do departamento e, tendo em vista o
desemprego, ele colocou sua cabeça para pensar. Ao refletir sobre
a situação, imaginou que os funcionários que roubavam ferramen-
tas da fábrica, apesar de tudo, talvez não fossem pessoas tão ruins
assim. Eram pais, esposas e maridos que tinham de consertar suas
casas, construir brinquedos, etc. Eles precisavam de ferramentas, e
a fábrica as possuía. O problema era justamente que eles não sa-
biam como podiam perguntar para a empresa para pedir as ferra-
mentas emprestadas e, por essa razão, levavam-nas simplesmente
embora. E depois que as tinham levado embora, não sabiam como
trazê-las de volta. Esse pensamento mudou fundamentalmente
sua perspectiva das condições do caso e, ao contemplar a situação
de forma diferente, surgiram-lhe novas soluções. Quando chegou o
dia da conversa com o líder empresarial, ele tinha uma nova suges-
tão. Sugeriu que a firma não se preocupasse mais com as ferramen-
tas que haviam sumido; o que havia sumido, havia sumido. Mas a
partir de agora algo deveria ser empreendido. Uma biblioteca de
ferramentas deveria ser aberta, na qual os colaboradores, ao fim
do expediente, poderiam pegar ferramentas emprestadas, levá-las
para casa e depois trazê-las de volta. Desta vez o chefe ficou mui-
to satisfeito, e seu próximo pagamento foi um pouco maior que o
último. Nosso diretor do departamento encontrou uma alternativa
para, no caminho existente, produzir segurança260.

Essa é uma solução inteligente e séria. É uma solução que resolve


o problema apontado em vez de adiá-lo ou de piorá-lo. E soluções
preventivas semelhantes são possíveis em quase todas as demais si-
tuações conflituosas.

260
SHEARING, Clifford. Gewalt und die Neue Kunst des Regierens und
Herrschens: Privatisierung und ihre Implikationen. In: TROTHA, Trutz
von (Hrsg.). Soziologie der Gewalt: Kölner Zeitschrift für Soziologie und
Sozialpsychologie. Köln: Westdeutscherd Verlag, 1997, pp. 263 – 278, es-
pecialmente pp. 264 e 265.
306  Manifesto para Abolir as Prisões
ANEXOS
MANIFESTO ABOLICIONISTA
ITALIANO

N ão à prisão.
1. É intolerável que o Sistema Judiciário penal funcione pratica-
mente somente como uma espécie de “distribuidor de sofrimen-
to”. Infligir dor, inclusive ao responsável de um massacre, é inútil
porque não contribui em absoluto para o melhoramento da so-
ciedade. Inclui-se mais dor ao sangue das vítimas, o de um assas-
sino serial. Até que ponto é justo? Então, responder o mal com
o mal nos parece hoje em dia uma pergunta insensata dado o
fato de que a justiça castigadora (restabelecer a justiça por meio
da dificuldade provocada por uma sentença carcerária), faz-nos
voltar à ideia de um “castigo válido”, é dizer, pagar pelo mal co-
metido com o mal, um princípio que não se pode aceitar dentro
de um Estado secular.
2. Apesar da cultura sanguinária que conhecemos desde há mil
anos, por medo de serem vítimas nós mesmos, de maneira co-
letiva, invocamos a dor como castigo para todas as pessoas que
consideramos perigosas, porque cometeram uma infração. O
acreditar que o mal somente pode ser combatido com o mal cul-
minou no fato de que este ponto de visada já não se põe sob
dúvida, como se fora uma conclusão indiscutível; quando na re-
alidade deveríamos perguntar de maneira aberta o que poderí-
amos fazer para reduzir a delinquência, já que é a raiz de todo
sofrimento, dor e desgraça.
3. Em nossa sociedade moderna, a reação ao crime é politicamente
legítima somente se é útil, se pode neutralizar a delinquência, li-
mitar a repetição, e se a resposta pode realmente contribuir para
evitar ofensas no futuro.
4. Com a chegada da era moderna, a sociedade ocidental se deu
conta de que privar alguém de sua liberdade (é dizer, o encarce-
ramento), teria a vantagem, por sua vez, de diminuir o sofrimen-
to da resposta penal, dissuadir os criminosos potenciais de rom-
per a lei e, através da educação, dissuadir os detidos de voltar a
violar a lei. O cárcere foi aclamado como uma invenção genial do
progresso naquele momento, um castigo de certa forma demo-
crático, já que tocava o que era para todos um precioso presente:
a liberdade pessoal. Uma sentença penitenciária se podia medir
com uma precisão desde um segundo até a eternidade, um cas-
tigo que também teria vantagens econômicas, já que o propósi-
to era reintegrar o detido cedo ou tarde de novo na sociedade.
5. Os objetivos da prevenção nunca foram questionados. Inclu-
sive, ao final do século, eram e seguem sendo válidos e vale a
pena continuá-los com tenacidade. Sem embargo, o que causou
problemas irresolúveis é a execução punitiva da sentença, prin-
cipalmente dentro do cárcere mesmo. Falemos francamente: o
fracasso do sistema carcerário é um fato reconhecido de maneira
unânime e universal há muito tempo. A princípio, o encarcera-
mento havia convencido graças à sua eficácia aparentemente
dissuasiva. Com o passar do tempo, sem embargo, fez-se eviden-
te sem dúvida alguma, que, francamente, havíamos nos equivo-
cado, porque o cárcere havia claramente falhado perante todos
os presumidos objetivos preventivos.
6. Os dados desse fracasso estão expostos à vista de todas as pes-
soas dispostas a olhar a verdade sem nenhum preconceito ide-
ológico. O cárcere não somente traiu sua missão preventiva, é
dizer, não pôde promover segurança aos cidadãos contra a cri-

310  Manifesto para Abolir as Prisões


minalidade, senão, também violou sistematicamente em sua
administração cotidiana os direitos fundamentais e a dignidade
humana dos detidos e os de suas famílias.
7. O contínuo aumento da população carcerária demonstra clara-
mente que o medo do castigo penal não é um método eficaz
para reduzir a delinquência. A ameaça da prisão nunca poderá
inibir o comportamento criminal, já que, por muitas razões, as
sentenças bárbaras do passado tampouco tiveram êxito porque
as ações humanas nem sempre estão governadas pela razão e
porque o castigo que deveria seguir o crime é somente um dos
possíveis resultados, nunca uma coisa segura.
8. Os detidos devolvidos para a legalidade são poucos onde quer
que seja, e seu êxito é melhor obtido “apesar de” seu encarcera-
mento, em vez de “graças a” ele. Em quase todas as partes o grau
de reincidência é mais de 70%. Para a maior parte dos detidos
não é a primeira vez que estão no cárcere e não será a última.
Nenhum país do mundo é uma exceção à regra. Existe muita do-
cumentação científica que apoia este ponto de vista que descre-
ve não somente o fenômeno senão que também explica porque
a prisão, ainda que seja a melhor do mundo, nunca conseguirá
educar os delinquentes de novo para a legalidade através do
sofrimento provocado pela privação de sua liberdade. Ao con-
trário, os agora 200 anos de experiência nos demonstram que o
encarceramento motiva as pessoas a cometerem mais delinqu-
ência e violência.
9. O cárcere, sob qualquer forma, é uma violação de direitos fun-
damentais e compromete de maneira muito grave a dignidade
humana dos detidos. Naturalmente, nem todas as prisões proce-
dem da mesma maneira quando se refere ao respeito aos direitos
dos presos, e devemos ser justos e reconhecer que há sistemas
carcerários bons e maus, porém, não existe nenhum exemplo de
cárcere capaz de limitar o sofrimento dos detidos unicamente
ao castigo que resulta da perda de sua liberdade pessoal. A exi-
gência pública de infligir sofrimento através do encarceramento
implica logicamente que outros direitos fundamentais também
serão violados, desde a esfera pessoal até a integridade física
Anexo  311
dentro de um ambiente de custódia; desde a satisfação de ne-
cessidades emocionais até a atenção médica; desde um trabalho
até uma educação, etc. O cárcere, e isso está cada dia mais claro,
é um castigo “pré-moderno” que causa mais dano físico que so-
frimento psicológico.
10. A reforma penal atual se pode justificar somente mediante uma
estratégia que contenha o dano infligido. Se quiséssemos, se
poderia limitar o número de sentenças carcerárias. Se quisésse-
mos, também se poderia diminuir o sofrimento nas prisões. Po-
rém, isso já poderia ter sido feito – por suposição, há que dizê-lo
–, há muito tempo, no que se refere ao castigo físico à tortura.
Sem embargo, este procedimento não converterá o fracasso dos
cárceres em êxito. Inclusive, o cárcere melhor administrado é,
por sua natureza mesmo, inaceitável. A resposta ao crime deve
respeitar a dignidade humana com o propósito de uma reinte-
gração social tal e como vem definido na maioria das Constitui-
ções democráticas modernas, incluída a italiana de 1947. Não
obstante, o cárcere, ainda quando seja reformulado, nunca será
uma resposta eficaz à delinquência porque não pode funcionar
eficazmente a favor da reinserção social dos detidos já que não
pode respeitar, sem reserva alguma, a dignidade humana de
uma pessoa condenada.
11. Durante muito tempo – e isso em círculos progressistas –, hou-
ve esperança de que um cárcere reformado podia transformar-
-se em uma oportunidade para um apoio pedagógico e ajuda
para a maioria das pessoas que haviam entrado em conflito com
a lei e que de maneira predominante formavam parte da cate-
goria de indivíduos débeis e marginalizados. Se pode entender
esta esperança – que ademais identificava a verdadeira natureza
da senteça carcerária – o fato que golpeia sobretudo as classes
sociais mais baixas. Desde sua origem, o cárcere foi, portanto,
o lugar de uma imobilização forçada, uma espécie de “encerra-
mento” dos pobres; assim como também é verdade que as pes-
soas terminam na prisão sobretudo porque são pobres. Falando
francamente: todos estaríamos de acordo em dizer que se deve
ajudar os pobres, da mesma maneira que podemos aceitar uma

312  Manifesto para Abolir as Prisões


política de inclusão para os que vivem à margem da sociedade.
Porém, isto não quer dizer que a vontade de ajudar e conseguir a
reintegração social se deve contentar com distribuir sofrimento
como a única maneira de conseguir a liberdade do prisioneiro.
Enquanto seguirmos apegados à noção de castigo, seguiremos
comprometidos com a cultura sanguinária de infligir dor e sofri-
mento intencionalmente como o único método de fazer o delin-
quente pagar por suas falhas. Eis aqui o paradoxo inextricável de
qualquer reforma penal no futuro.
12. Hoje em dia, crer e militar a favor da abolição do cárcere é tão
pouco realista como o foi um dia a abolição da tortura e a da
pena de morte. Porém, as coisas não são tão diferentes: os pou-
cos que se uniram contra as sentenças bárbaras se encontraram
com uma maioria muito cética; estes abolicionistas inclusive fo-
ram acusados de ingenuidade imperdoável. Sem embargo, a his-
tória demonstrou que estes simplórios tinham razão. Uma socie-
dade sem pena de morte é mais segura que uma com patíbulos
por todas as partes. Um sistema de justiça penal sem câmaras
de tortura dá maior alento ao descobrimento da verdade que o
costume de arrancar confissões sob tortura.
13. O fato de nos liberarmos da necessidade do cárcere, por ser inútil
e cruel, não quer dizer que tenhamos que renunciar à proteção
da sociedade contra a criminalidade. Ao contrário. Abolir as pri-
sões resultará em maior segurança contra o perigo criminal já
que elas mesmas são um fator criminogênico. Uma sociedade
sem prisões é mais segura, assim como o é uma sociedade sem
pena de morte. Sem embargo, abolir as prisões também signi-
fica algo todavia mais importante que nosso medo da falta de
segurança. Também representa desfazer-se do costume de de-
signar os pobres como os bodes expiatórios de uma sociedade
baseada sobre a desigualdade. Pergunta-se: por que 90% da po-
pulação carcerária mundial é pobre? Ao dizê-lo, não queremos
insinuar ao mesmo tempo que as pessoas cujas vidas são uma
luta constante – os pobres –, cometem crimes com mais frequ-
ência. Os estudos científicos mais avançados sugerem uma ima-
gem muito diferente: a criminalidade perigosa se encontra de

Anexo  313
maneira igual através de todas as classes sociais, porém os que
se castiga e que terminam na prisão, são os que estão menos
protegidos pelo sistema penal, os que são mais débeis econômi-
ca, intelectual e socialmente. Para sermos sinceros, esta prática
indiscutida de “verticalidade social”, a desigualdade da evacua-
ção penal dentro da estrutura social (que tem como objetivo um
máximo de diferenciação), é uma injustiça que está se tornando
cada vez mais intolerável.
14. Para educar os detidos para a legalidade e para o respeito às
regras vigentes, também é necessário que as regras respeitem
essas pessoas. Essa evidência pedagógica deveria bastar como
razão para que viesse abaixo todo o sistema penal. Por que nos
falta tanta perspicácia e supomos de tal maneira que se pode
obrigar um delinquente a obedecer às regras da sociedade in-
fligindo e dando como modelo o sofrimento? E, sem embargo,
assim é: todos os aspectos do sistema penal e do castigo estão
perfeitamente planejados de antemão, definidos, aplicados e
justificados para causar e demonstrar dor. Novamente: uma sen-
tença carcerária significa infligir sofrimento intencionalmente.
Não é um erro ou um efeito secundário, que nem sempre se pode
evitar, do que poderia ser, se não uma ação positiva. Apresentar
a defesa pessoal legal legítima a fim de justificar o sistema de
condenações custodiais é um grande engano. Para evocar a au-
todefesa, é necessário que a ameaça para mim ou outras pessoas
ocorra ali mesmo. No momento em que o Estado castiga o cri-
minoso, sem embargo, a ameaça já não existe há muito tempo.
Então, o castigo não se aplica com o propósito de combater um
perigo que está surgindo (para isso, chegaria demasiado tarde),
senão sobretudo para infligir dor a outros. Por que perdura este
sadismo? Este fato vem do prejuízo tenaz exprimido em um jogo
de palavras italiano segundo qual “sempre e em todas as par-
tes uma ofensa deve acarretar uma condenação, um castigo”, já
que a dor constitui uma espécie de “medicina que limpa e salva”,
não tanto e não somente para o delinquente, senão também, ou
sobretudo, para todos nós. Essa é a cultura sanguinária da qual
temos que nos libertar.

314  Manifesto para Abolir as Prisões


15. Para isso, é necessário reconceituar completamente a maneira
de confrontar o “problema da criminalidade”, imaginando uma
política de segurança pública e contra a delinquência que não
mencionaria sequer a palavra “castigo” porque evoca somente
dor e sofrimento. Ao contrário, se deveriam preferir termos que
usamos para os direitos e obrigações de nosso vocabulário co-
tidiano. Se poderia ensinar a responsabilidade a 90% dos atuais
presos muito menor e se lhes poderia supervisionar de maneira
diferente em instituições não-encarceradoras com um acompa-
nhamento pedagógico e outras medidas de apoio, tais como um
trabalho e mais educação, estímulos econômicos e compensa-
ção por qualquer dano causado.
16. Ainda que este procedimento resulte na demissão de muitos
empregados e demais pessoal – todos parte de uma cultura pe-
nal egocêntrica –, hoje em dia é evidente que se devem fechar
as prisões para dar passo a outra coisa que possa efetivamente
respeitar os direitos, inclusive dessas pessoas responsáveis pelos
crimes mais horrendos. Seria realista supor que nos continuaria
fazendo falta, em alguns casos, prender alguns delinquentes,
porém, parece-nos que seriam muito, muito poucos, se tivermos
em conta que a administração penal atual considera que somen-
te um por cento dos presos é perigoso.
17. A resposta à criminalidade se pode fazer somente através da
educação, a qual aspira a ensinar a liberdade consciente exercen-
do-a livremente. Ao menos esta deveria ser a regra. Novamente:
nos poucos casos em que isso foi possível imediatamente, se po-
deria excepcionalmente aplicar um encarceramento para tratar
os indivíduos mais perigosos, porém somente em caso de último
recurso e segundo procedimentos muito precisos: a) A perda da
liberdade deve ocorrer dentro de limites que protejam em todo
momento a dignidade humana e os direitos dos indivíduos em
questão. Os lugares para este encerramento não podem ser as
prisões que conhecemos atualmente. Foram concebidas para
o castigo e o sofrimento, não para reintegrar socialmente as
pessoas. Imaginamos algo muito diferente no que se refere ao
aspecto físico dos edifícios, à distribuição dos espaços e o pro-

Anexo  315
fissionalismo das pessoas escolhidas para supervisar, dialogar e
ajudar; b) O tempo passado nestas instituições carcerárias deve,
sem embargo, limitar-se a um mínimo e cessar quando o preso
demonstra um verdadeiro interesse em programas de reintegra-
ção social que se desenvolveriam fora do lugar de detenção.
18. Para superar a cultura da pena e prisão e levar as pessoas que
transgrediram a lei de volta à legalidade e à observação das re-
gras, é imperativo também que as regras respeitem essas mes-
mas pessoas. Não se pode exigir nada desses indivíduos, por
muito justificado que seja, de maneira desrespeitosa.
19. Sempre que seja possível, o “Instituto da Meditação” deve ser um
elemento permanente do sistema de justiça penal, permitindo-
-lhe uma participação ativa nas distintas fases do seguimento
judicial e da reintegração.
20. A resposta à criminalidade através de medidas de reintegração
que se desenvolvem em liberdade deve implicar todas as pes-
soas socialmente comprometidas do país e não pode deixar-se
somente aos expertos.
Livio Ferrari
Massimo Pavarini

316  Manifesto para Abolir as Prisões


MANIFESTO
ABOLICIONISTA FRANCÊS

Março de 1984

O s princípios que fundaram a prisão eram princípios filantrópicos:


o criminoso, durante seu encarceramento, iria refletir, se corrigir, se
regenerar. A história venceu esses terríveis disparates. Não se pode
construir a utopia senão sobre um absoluto rigor intelectual, caso
contrário, o encarceramento se baseará na “esperança de que tudo
melhorará depois”, ou seja, sobre nada de concebível.
A palavra “reinserção” era uma expressão bastante divertida, mas
que não diverte mais aos alunos da Escola Nacional de Administra-
ção Penitenciária; seria preciso ao menos encontrar uma outra, de
preferência igualmente cômica.
Esse não é o lugar para repetir essas evidências: o encarceramento
enlouquece, adoece, endurece e amesquinha. Jamais alguém notou
o desafio que seria dizer o contrário.
E ninguém deseja viver em um mundo em que alguns, assumindo
o risco de confinar homens, o torna ainda mais ameaçador do que
ele já é.
Na maior parte dos países, os criminólogos, sabendo que ela é
profundamente nociva, tentam cada vez mais evitar a prisão aos “pe-
quenos criminosos”; mas certamente não por bondade de espírito.
Com muito mais razão, é primordial evitar o encarceramento aos
“verdadeiros” criminosos.
É por isso que essas linhas não são uma tomada de posição in-
telectual (o que nós pensamos não tem nada de original), mas um
chamado a algumas pessoas para agir concretamente pela abolição
das prisões, criando nossos próprios meios de ação.
Nós não somos irmãs de caridade; não acreditamos, quando com-
batemos a prisão, que aliviamos as misérias do mundo nem que com-
pensamos a bestialidade da multidão com uma atitude “humana”.
Nós não somos humanistas. O Homem não existe e nós somos
todos canalhas.
A prisão é um símbolo, um sinal de reconhecimento para pessoas
instintivamente horrorizadas com aquilo a que estamos condenados.
Mas as prisões também são algo real, destrutivo para o espírito,
insuportável para a razão e que deve desaparecer, simplesmente
porque é óbvio.
O discurso a respeito de uma prisão que protegeria os bravos ci-
dadãos dos malfeitores, de todas as mentiras, é a mais fácil de des-
mascarar. Podemos começar por essa para alegrar o espírito: assim,
compreenderemos melhor o papel da justiça, da polícia e, finalmen-
te, de toda a sociedade.
A prisão tranquiliza um enorme número de pessoas por um custo
muito baixo e leva cada um a abandonar o menor bom senso. A pri-
são é indispensável à manutenção da ordem porque a ordem man-
tém a prisão. Eis por que a prisão é indispensável à manutenção da
prisão.
O reformismo não é, propriamente dito, idiota, mas impossível:
quanto menos a prisão pune, menos ela responde à sua vocação.
Acusar a prisão de ser penosa demais é o mesmo que acusar um hos-
pital de cuidar bem demais.

318  Manifesto para Abolir as Prisões


Há uma pergunta interessante que surge frequentemente ao lon-
go dos séculos: “Vocês falam em suprimir a tortura, mas pelo que
então vocês a substituiriam para arrancar as confissões úteis à socie-
dade?” Essa é uma boa pergunta. Nossas respostas nunca estarão à
altura desse tipo de pergunta. Também procuramos humildemente
uma outra formulação do problema.
Enquanto aguardamos, não vemos nenhuma vantagem em fazer
durar o estado atual das coisas, que não apenas é ruim, mas o pior
de todos.
Temos muito menos a perder em abrir as prisões que as estradas,
e tudo a ganhar em serenidade, em inteligência, em vontade de pen-
sar em conjunto sobre os meios de viver em conjunto.
E é urgente.
As curtas penas são uma exclusão temporária, incapaz em si. Mas
as longas penas são eliminatórias, desejadas como tais pela justiça e
pela sociedade: nós “cortamos o membro gangrenado”, “arrancamos
a erva daninha”, “procedemos à desratização”, tantos delicados eufe-
mismos para expressar a vontade coletiva de eliminação, de assassí-
nio.
Se escutássemos a multidão, muitos daqueles que enviamos à pri-
são seriam queimados sobre grelhas, esfolados vivos antes de serem
esquartejados. Não devemos fazer parte da barbárie. Não compactu-
amos com quem tem gosto pelo sofrimento e pela morte e faz con-
cessões em prol da solução de médio prazo, que é o encarceramento.
Porque nós amamos a vida. (Quando deixamos de amá-la, ainda a
estimamos suficientemente para deixá-la voluntariamente.)
Não permitiremos que ninguém fale em seres “recuperáveis” ou
“irrecuperáveis”; o mundo é esse depósito de imundície apenas para
os espíritos imundos.
Na melhor das hipóteses, excluímos a ideia de opinião(ões)
pública(s); na pior, afirmamos que é característico das opiniões pú-
blicas assumidas se deixar manipular por aqueles que se beneficiam
disso. Quanto a nós, não nos desesperemos ao vermos indivíduos

Manifesto Abolicionista Francês  319


aderirem às nossas posições quando formarem sua própria ideia so-
bre o assunto.
Jogando o jogo de divisão absurda entre culpados e inocentes,
a justiça, pela prática do encarceramento, nos corta em dois e nos
proíbe de procurar nossa unidade; reforçando as estruturas mentais
normativas mais rígidas, ela faz de nós agentes mecânicos. Não tole-
raremos que a sociedade, sob sua fachada judiciária, nos encurrale
assim à demência e arranje pretexto para exercer “naturalmente” sua
tutela sobre nós.
Não amamos os presidiários porque são presidiários. Os presidiá-
rios não são mais amáveis em si que as mulheres, os judeus, as crian-
ças ou os escritores. Mas amamos certos indivíduos que são também,
entre outras características, escritores, ou crianças, ou judeus, ou pre-
sidiários.
Não suportamos o encarceramento. Nem do lado de dentro, nem
do lado de fora. Nós, os “inocentes”, não temos mais o direito de en-
trar nas celas que os detentos de sair delas. O mesmo vale para a cen-
sura de nossa correspondência. Não recebemos a maioria dos jornais
escritos dentro das masmorras, pois nos são proibidos.
Não é “por respeito aos direitos humanos” que recusamos o encar-
ceramento. Também não suportamos mais que os cachorros sejam
acorrentados ou que os macacos sejam colocados em gaiolas. Isto
não é um parêntese.
Combatemos toda alternativa à prisão que seja também um en-
carceramento “no exterior”, como, por exemplo, um controle social
ainda mais apurado que o dos dias atuais.
Não pretendemos saber o que é a liberdade, mas percebemos cla-
ra e distintamente o que é a opressão e o que nos impede de sermos
nós mesmos.
Precisamos nos interessar uns pelos outros, por isso não podemos
aceitar que sejamos subjugados nem feitos reféns por qualquer pes-
soa ou grupo.

320  Manifesto para Abolir as Prisões


Nos opomos a toda institucionalização da força, venha ela dos
cabeças de todas as ordens, dos mafiosos, da família, do povo, dos
machos, do Estado etc.
Não concedemos a ninguém o direito de nos julgar nem de julgar
nossos atos.
Nós temos todos os direitos.
O Direito não existe. Ele é uma visão pessimista e falsa do que são
nossas relações. Não há nenhuma vantagem, por exemplo, em proi-
bir o estupro; mas é fortemente interessante, em vez disso, imaginar
como evitar se tornar um estuprador ou ser estuprado.
O crime em si não existe; se tomarmos ao acaso um ato aterro-
rizante e revoltante (como um empregador que rouba meu tempo,
minha vida), não diríamos que é preciso eliminar o criminoso, mas
que cada um ganharia ao inverter as coisas, ao compreender o que se
passa e resistir à força. Além disso, nada impede que pessoas que se
apreciem mutuamente reflitam juntas sobre os meios de se proteger
de toda violação à sua integridade mental ou física.
Não somos cúmplices dos tribunais que condenam em nosso
nome. Trata-se de uma usurpação que é, mais uma vez, um golpe de
Estado.
Isso não impede que possamos vir a fazer um julgamento ou sen-
tir indignação, mas a sociedade não deve assumir nossas indigna-
ções individuais.
Não somos de esquerda. Também não somos anarquistas, nem de
direita, nem paralelepípedos, nem nada desse gênero. Somos opor-
tunistas se nos parecer útil. Sabemos o que queremos.
Nós, abolicionistas, somos realistas – se entendermos por “realis-
tas” não “especialistas em engolir todas as serpentes do sórdido hoje”,
– mas “decididos a realizar nossas ideias”.
Catherine Baker

Manifesto Abolicionista Francês  321


MANIFESTO ABOLICIONISTA
FRANCÊS

O s princípios que fundaram a prisão eram princípios filantrópicos: o


criminoso, durante seu encarceramento, iria refletir, se corrigir, se rege-
nerar. A história venceu esses terríveis disparates. Não se pode cons-
truir a utopia senão sobre um absoluto rigor intelectual, caso contrá-
rio, o encarceramento se baseará na “esperança de que tudo melhorará
depois”, ou seja, sobre nada de concebível. Quando Catherine Baker
escreveu essas palavras em março de 1984, 38.600 pessoas estavam
detidas nas prisões francesas. Trinta anos mais tarde, esse número che-
gou a quase 69.000 e a duração média de seu encarceramento mais
que dobrou (de 5,5 meses em 1984 para mais de 12 meses em 2014).
Incapazes de tranquilizar uma opinião pública cada vez mais dese-
josa de segurança, as políticas efetuadas no último meio século leva-
ram cada vez mais ao encarceramento, o Estado-providência se trans-
formando pouco a pouco em Estado-penitência. Planos de construção
de vagas em prisões se sucederam freneticamente, com seus promoto-
res garantindo o fim de uma superpopulação carcerária crônica e uma
humanização das condições de detenção. De fato, a superpopulação
continuou a crescer paralelamente ao aumento do parque carcerário.
E, em vez de humanização, a fria assepsia, as cores berrantes e a vigi-
lância eletrônica substituíram a imundície e os dormitórios insalubres.
Mas uma jaula “dourada” continua sendo uma jaula. E o detento, ou o
agora “usuário” do serviço público penitenciário, continua sendo um
animal que dá voltas dentro dessa jaula. Para ocupar seu tempo, nada
ou quase nada. Às vezes, um trabalho repetitivo e mal remunerado.
A correspondência? Lida e controlada. As visitas? Filtradas, racionadas
e vigiadas. Em caso de delitos: a solitária, verdadeiro calabouço onde
o detento é reduzido ao nível de um animal. Para os indisciplinados,
vigilância particular? O isolamento, tortura branca que destrói pouco
a pouco. A lista nunca acaba. “Esse não é o lugar para repetir essas evi-
dências: o encarceramento enlouquece, adoece, endurece e amesqui-
nha”, escreveu Catherine Baker. Um paradoxo, porque “ninguém deseja
viver em um mundo em que alguns, assumindo o risco de confinar ho-
mens, o torna ainda mais ameaçador do que ele já é”.
A pena maior do prisioneiro é o escoamento inexorável de um
tempo vazio. É o sentimento do desperdício de um tempo que corrói
o corpo e o espírito. E o resto – superpopulação, isolamento, solitá-
ria – não é mais que uma sequência de variações sobre esse mes-
mo tema, tendo como resultado fazer morrer lentamente aquele ou
aquela que a sociedade jogou às traças. O prisioneiro mata o tempo,
mas é o tempo que o mata. Ele envelhece sem ter realmente vivido e,
quando sai, dizemos que está obsoleto. Estar obsoleto é também es-
tar usado, quebrado. Mais que qualquer outro homem, o prisioneiro
é a carcaça do tempo.
Quando o momento da saída chega, ele precisa então reaprender
a viver: reaprender a autonomia quando, durante meses ou anos, foi
colocado em posição de dependência para a realização do menor de
seus gestos e deslocamentos, perdendo todo o livre arbítrio e con-
trole sobre seu cotidiano. Reaprender as regras da vida do “lado de
fora”, quando durante tanto tempo ele viveu apenas sob as leis parti-
culares do universo carcerário. Reaprender a amar e a tocar, quando
durante anos ele foi privado de todo contato físico. Reaprender até
mesmo a abrir as portas, quando durante anos ele só as viu se fecha-
rem sobre ele. Reaprender, enfim, a ser alegre, quando no entanto,
talvez, ele jamais o tenha sido.
Das instâncias internacionais dos direitos do homem às associa-
ções que intervêm no meio carcerário, passando pelo Observatório
324  Manifesto para Abolir as Prisões
Internacional das Prisões, a Controladoria Geral dos Locais de Priva-
ção de Liberdade ou ainda os parlamentares que exercem seu direito
de visita, numerosas vozes se levantam, há muito tempo, para de-
nunciar a situação nas prisões francesas. Nicolas Sarkozy considerava,
em seu tempo, que elas não eram menos que uma “vergonha para a
República”. Christiane Taubira as descreveu como “cheias mas vazias
de sentido”. É possível então entender que é preciso reformá-las, que
é necessário e urgente repensar a prisão, seu papel e suas funções no
dispositivo penal – ou, ainda, sua organização. “O reformismo não é,
propriamente dito, idiota, mas impossível”, estimava Catherine Baker:
“quanto menos a prisão pune, menos ela responde à sua vocação.
Acusar a prisão de ser penosa demais é o mesmo que acusar um hos-
pital de cuidar bem demais”.
A prisão é por excelência aquilo que não é preciso tentar refor-
mar, mas sim suprimir. Primeiramente, porque a instituição carcerária
é tal que todo avanço é pago com um recuo. Os advogados alcan-
çam assim a comissão disciplinar? Segue a instauração dos regimes
“diferenciados”, permitindo isolar certos detentos sem passar pelo
procedimento disciplinar. Fazer em seguida a escolha de sua aboli-
ção porque ela carrega uma implacável lógica de exclusão, que aca-
ba marginalizando e empobrecendo aqueles que – frequentemente
em grande precariedade –, em ruptura social e familiar, são enviados
para lá. Impossível de reformar porque sua violência intrínseca gera,
no interior daqueles que encarceramos, ódio e rancor a respeito do
outro e de toda a sociedade: sentimentos que todo o corpo social
deveria evitar trazer à tona. Suprimi-la definitivamente porque o
encarceramento, todos os estudos o demonstram, fracassa inexora-
velmente em prevenir a reincidência e custa à sociedade muito mais
que o retorno que traz. Destruí-la enfim porque ela é um símbolo.
Apêndice trancafiado de nossas sociedades, ela não é nada mais que
a soma de todos os seus defeitos. O isolamento, a solidão e a sepa-
ração levadas à sua extremidade. Do lado de fora, no espaço públi-
co, o urbanismo, a arquitetura e os transportes têm cada vez mais
aspectos carcerários. Ainda do lado de fora, o trabalho e as relações
sociais cada vez mais marcadas pela mercantilização produzem con-
finamento, neurose e desespero.

Manifesto Abolicionista Francês  325


A França foi o primeiro país na Europa a abolir a tortura, apesar
dos seres cautelosos que exclamavam na época que, sem ela, a jus-
tiça francesa seria desarmada e que os bons sujeitos estariam entre-
gues aos patifes. Esteve também entre os primeiros países do mundo
a abolir a escravidão, esse crime contra a humanidade ainda per-
petrado no território nacional menos de 200 anos atrás. Em 1981, a
abolição da pena de morte parecia sociologicamente incontestável.
Embora a França tenha sido um dos primeiros países na Europa oci-
dental a proscrever essa negação absoluta do valor do ser humano,
seu resultado foi paradoxal. Longe de resolver um problema moral
e político colocado sob a bandeira dos direitos humanos, a abolição
da pena de morte não colocou fim a uma lógica de eliminação, ainda
funcionando a todo vapor em nosso país. Aqueles que são condena-
dos a longas penas de prisão são condenados a uma pena de morte
lenta, uma pena de morte social. Vinda para retificar um vasto movi-
mento de sociedade no qual o sentimentalismo disputa com a hipo-
crisia, a abolição da pena de morte constituiu assim menos o advento
simbólico da esquerda que o advento que sinalizou uma interrupção
de seu pensamento. Em todo caso, ela não pôs fim nem à morte (des-
de 1977 e a execução do último condenado à morte, mais de 3.000
pessoas se suicidaram em detenção), nem à pena nas prisões.
Afirmamos que, no século XXI, encarcerar alguém não significa pu-
ni-lo: significa agir por preguiça e por prolongamento de um sistema
arcaico, ultrapassado e inadaptado às sociedades pós-modernas. Exigi-
mos que seja jogado às masmorras da História esse maldito hábito que
permite ao homem encarcerar outro homem e mantê-lo emparedado.
Esperamos que não se passe muito tempo para que a prisão salte ao
olhos dos vivos como o sinal irrecusável do estado de brutalidade, do
retardo dos modos e das sensibilidades no qual vivia a humanidade no
século XX, e ainda no começo do século XXI. E recusamos que a Justiça
continue condenando a penas de prisão em nosso nome.
PHILIPPE BOUVET, ALAIN CANGINA AUDREY CHENU, LUCIE DAVY,
PHILIPPE EL SHENNAWY, TONY FERRI, SAMUEL GAUTIER, YANNIS LAN-
THEAUME, JACQUES LESAGE DE LA HAYE, LE TAULARD INCONNU,
THIERRY LODÉ, NOËL MAMÈRE, GABRIEL MOUESCA, YANN MOULIER-
-BOUTANG, MICHEL ONFRAY, ANTOINE PÂRIS.

326  Manifesto para Abolir as Prisões


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328  Manifesto para Abolir as Prisões


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Referências  351
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