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GENELHU, Ricardo. Manifesto para Abolir As Prisões
GENELHU, Ricardo. Manifesto para Abolir As Prisões
ABOLIR AS PRISÕES
Ricardo Genelhú
Sebastian Scheerer
MANIFESTO PARA
ABOLIR AS PRISÕES
Editora Revan
Copyright © 2017 by Editora Revan
Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte
desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou
via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
Editor
Renato Guimarães
Editora assistente
Mariana Vianna Abramo
Capa
Mariana Vianna Abramo
Ricardo Genelhú
Imagem da capa
Getty Images
Revisão
Janda Montenegro
Diagramação
Patricia Seabra
Impressão e acabamento
(Em papel off-set 75 g. após paginação eletrônica,
em tipos MyriadPro 11/13)
Psi7 - Printing Solutions & Internet 7 S.A.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
F874c
Fragoso, Christiano Crimes de furto e de roubo / Christiano Fragoso, Patricia
Glioche. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Revan, 2017.
276 p. : il. ; 21 cm.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7106-585-7
Sumário 13
MANIFESTO PARA
ABOLIR AS PRISÕES
As provocações
1. Vale a pena continuar utilizando uma ferramenta como a pri-
são, que há 250 anos não cumpre as promessas que faz, como
a de reabilitar os presos, a de intimidar os pretensos criminosos,
a de nos oferecer segurança, etc.? A ponto de realimentarmos
irresponsável e arrogantemente um sistema fracassado e sem
conserto? Apenas para não termos que admitir nossa parcela de
culpa e eliminar as diferenças sociais que nos destacam?
2. Há sentido em permitirmos que o nosso receio do aumento da
criminalidade acabe investindo em uma instituição que amplia
justamente essa mesma criminalidade que tememos, ao invés
de reduzi-la?
3. Quais as vantagens de se tentar melhorar a prisão, deixando-a
mais limpa, bonita e segura, se a sua clientela continuará sendo
composta pelas mesmas pessoas, escolhidas, geralmente, den-
tro de um grupo ao qual nós mesmos pertencemos?
4. Que motivos nos levam a crer que a prisão vai resolver o pro-
blema criminal se, ao compararmos países com prisões bonitas,
limpas e seguras, percebemos que a diferença na redução da cri-
minalidade somente acontece naqueles que investem na igual-
dade ou na assemelhação prévia das pessoas, seja esta financei-
ra, educacional, de oportunidades, etc.?
5. Não é mais lógico acreditar e buscar opções para a solução dos
conflitos que sejam menos seletivas que a prisão e que, elabo-
rando os danos dos que realmente estão envolvidos no drama
social, atendam às suas necessidades o máximo possível?
6. É aceitável que continuemos nos submetendo, e aos outros, à
vontade de alguns que jamais serão aprisionados, como se a
nossa ignorância servisse de proteção para os dominantes?
7. Não está abaixo da inocência ou da covardia o raciocínio de que
a prisão, parecendo ser um mal necessário, apenas serve para
reproduzir a violência mediante a imposição de violência real e
simbólica?
8. Não é hipocrisia de nossa parte requentar o pagamento dos des-
vios de todos mediante a prisão de poucos, enquanto tranqui-
lizamos nossos pensamentos horizontalmente no conforto do
nosso leito?
9. Tem compensado a nossa contribuição, ainda que indireta, para
o fim da humanidade mediante a aceitação do aumento des-
controlado da criminalidade, promovido pelo uso irresponsável,
mas convenientemente maldoso e injusto, da prisão?
As razões
10. A prisão humilha, estigmatiza e impõe uma dor cruel e um so-
frimento inútil e perigoso, todos irreversíveis e potencialmente
multiplicadores da violência recebida.
11. A prisão como castigo substituiu formalmente a prisão como ar-
mazém. Porém, isso não representou uma evolução. Em vez de
ser uma opção melhor, materialmente a prisão sanção acumulou
os seus fracassos e os da sua antecessora formal. Hoje a prisão
serve como depósito dos descartáveis e como castigo dos deso-
bedientes.
12. A prisão é mentirosa e criminosa. Mentirosa porque finge contro-
lar, evitar e prevenir crimes. Na verdade ela os produz e reproduz,
A convocação
26. Eleita um mal necessário, a prisão causa mais problemas do que
resolve. Não há alternativa para ela. Nem que a melhore ou que
reduza seus danos. A única saída possível é a abolição das pri-
sões.
27. A abolição das prisões não é utópica. Existiram e existem socie-
dades desaprisionadas. Elas eram e são mais civilizadas que nós.
A prisão é a barbárie. Distópicas são as promessas que ela não
cumpre. Reais são os rastros de sofrimento que ela tem deixado.
Todos os que ela toca, ou que dela se aproximam, são suas víti-
mas: os presos, o pessoal funcional interno (agentes prisionais,
etc.) e externo (policiais), os familiares, os demais cidadãos, etc.
28. Continuar apostando na prisão é um investimento visivelmen-
te fracassado, cujas consequências estão respingando cada vez
mais em nós e em quem amamos.
29. Sustentar a sua manutenção é compactuar com a prática de um
crime estatal. É legitimar a imposição da mesma dor e do mesmo
sofrimento que reprovamos quando produzido pelo criminoso.
1
BAKER, Catherine. Pourquoi faudrait-il punir? Lyon: Tahin party, 2004.
prisão, e também da pressão de outros internos, dos quais o con-
denado não seria capaz de sequer ter um vislumbre durante todo
o tempo de sua estada. Ele estava sozinho com a Sagrada Escritura
e com as suas tentativas de ouvir a voz de um Deus que repreende,
perdoa e corrige.
Evidentemente, o próprio conceito de colocar presos em celas in-
dividuais pequenas tinha sido tomado de empréstimo dos mostei-
ros cristãos tradicionais. A ideia deste sistema, que havia funcionado
bem para os monges por um milênio, também funcionaria com os
delinquentes. Para a surpresa dos seus inventores, porém, o sistema
produziu um número improvável de falhas no sentido de suicídios,
depressões e loucura total. O que eles tinham esquecido de observar
era o simples fato de que os monges não passavam todo o tempo em
suas celas individuais, e que a base de sua vida produtiva era em par-
te comunitária: eles oravam, adoravam, falavam, comiam e bebiam
juntamente com os outros. E foi essa parte do mosteiro que a prisão
celular não replicou. O total e não voluntário isolamento de todos
os outros seres humanos tem uma força que conduz à insanidade.
Hoje isso parece óbvio, mas para os inventores bem intencionados
da prisão esse não parecia ser o caso. Privação sensorial e isolamento
completo era a falha fundamental que estava na origem da prisão
celular, e que a impediu de funcionar da maneira que deveria. Seria
algo como o pecado original do projeto prisional, ou, colocando em
termos menos metafísicos: as prisões foram, desde as iniciais, nada
além do que “erros gigantes petrificados”, como afirmou Eberhard
Schmidt.
Enquanto as prisões permaneceram o que eram – uma multidão
de “celas-gaiolas” em grandes edifícios –, nenhuma das muitas modi-
ficações na Filosofia e na prática correcional conseguiram superar as
influências negativas desta moldura.
A ideia religiosa original da Filadélfia – de um sistema separado
para produzir pecadores fiéis e arrependidos mediante o isolamento
completo –, foi logo rivalizada pelo sistema silencioso de Auburn –
que deixaria prisioneiros trabalhar, porém sem diálogo, em conjunto
por dia, e só os separava à noite –, e reformada apenas ao longo da
linha do sistema progressivo irlandês e de suas diversas variações.
24 Manifesto para Abolir as Prisões
Uma vez que nenhum destes modelos atendeu às expectativas de
seus inventores, o processo de reforma do sistema prisional conti-
nuou até o dia de hoje. Mesmo a mais recente tentativa de moderni-
zação, que é a ideologia do tratamento, já se esgotou.
Treinar as pessoas para uma vida livre, retirando-os da sua liber-
dade, não é uma ideia muito coerente. Como observadores experien-
tes têm apontado uma vez ou outra, não há simplesmente nenhuma
prova de que o tratamento construtivo seja possível sob condições
de privação de liberdade2 (Busch, 1986). No entanto, tem-se tentado
vez após vez. As prisões foram vistas como “tratamento”, centros ou
locais para infratores. Essa “terapia” de longo prazo, porém, não ob-
teve sucesso.
Por outro lado, a história das punições já viu crueldades muito pio-
res do que a prisão. Por uma questão de fato, nenhum dos sistemas
de sanções anteriores já tinha sido tão elogiado por parte dos teóri-
cos e praticantes como o foi a invenção da prisão moderna, também
conhecida como penitenciária. Com o tempo, porém, a promessa da
prisão teve que dar lugar a uma profunda desilusão geral. Acredita-
va-se ser algo como uma panaceia para a delinquência na medida
em que era ao mesmo tempo humana ao condenado e eficaz em
proteger a sociedade. Acontece que as descrições contemporâneas
da realidade do encarceramento em massa tornam difícil acreditar
que as dificuldades pelas quais o sistema prisional sofre poderiam
ser resolvidas pela reforma. Não há nenhuma maneira de preencher
a lacuna entre o ideal de reabilitação e a realidade abusiva e degra-
dante da vida na maioria dos sistemas prisionais do mundo. Não há
modo de melhorar as condições das prisões sem primeiro resolver
o complexo prisional-industrial, as relações de poder e as restrições
fiscais que regem a política da prisão. Sem mencionar a opinião de
um público vingativo e sua exploração e influência por interesses mi-
diáticos.
Em vez de investir na continuação de um movimento de reforma
que há um século tenta aperfeiçoar as condições prisionais polega-
da por polegada, devemos, sim, mirar e seguir em frente. Enquanto
2
BUSCH, 1986.
Introdução 25
aqueles que apostam em reformas fragmentadas estão sendo frus-
trados pela teimosia do sistema, o tempo tem passado e tem produ-
zido prisões obsoletas, sem que eles percebam. Na era digital o con-
trole não depende mais de tijolos e cercas. O tempo está escorrendo
e as prisões estão apenas esperando para serem destruídas, a fim de
serem substituídas por algo melhor. Se a crueldade e a falta de efici-
ência foram o grito de guerra desses reformadores do século XVIII,
que defendiam a substituição de castigos corporais, em parte pelo
modelo penitenciário, chegou o momento da prisão confrontar os
mesmos argumentos: o excesso de desumanidade, ineficácia, custo,
tendência, injustiça e tortura.
É hora de pensar nas prisões sob um ângulo principiológico, mais
realista e com menos desculpas. É hora, em suma, de pensar em algo
melhor que as prisões para que possamos, de uma vez por todas, der-
rubar as suas paredes e fechar esse capítulo na história dos castigos.
Assim como nossa geração é grata aos antepassados por terem nos
deixado um mundo livre de instituições como a combustão de bru-
xas e o chicoteio de escravos, as gerações futuras vão sentir orgulho
de viver em uma sociedade que tenha ultrapassado as dores da pri-
são mediante a substituição desta por uma maneira muito melhor
de reagir ao crime e aos criminosos. A prisão, assim como os castigos
corporais em épocas anteriores, ainda está sendo considerada pelo
homem como indispensável para a manutenção da ordem pública.
Porém, isso é uma ilusão! Nós podemos conviver sem a prisão! Tomar
esta decisão vai ser difícil no início, mas gratificante no final! E será
apreciada como uma grande melhoria da qualidade de vida em favor
do bem de todos!
É hora de encerrar o capítulo das prisões na história da punição.
Para explicar esta posição e para discutir a maneira como realizá-la,
nós escrevemos este texto. Nosso argumento vai contra o aprisiona-
mento como punição para o crime. Ele é direcionado contra os edifí-
cios nos quais a pena de prisão está sendo executada. Com um termo
alemão um pouco antiquado para privações de liberdade punitivas
ordenadas pelo Tribunal, poderíamos dizer: defendemos a abolição
3
Espécie de prisão onde se cumpre a pena privativa de liberdade (exceto
a prisão preventiva, a custódia policial etc.).
4
Termo oficial jurídico-administrativo para prisões.
Introdução 27
longo fixado no chão ao lado do andaime [...] e depois foi cortada
a sua cabeça e colocada em cima do poste5. (Evans, 1997)
5
EVANS, Richard. Rituals of retribution: capital punishment in Germany,
1600-1987. Harmondsworth: Penguin, 1997, p. 194.
28 Manifesto para Abolir as Prisões
da modernidade, a penitenciária foi concebida como um guarda,
não um assassino. Esta prisão moderna sustentou que aqueles con-
finados dentro de suas paredes eram suscetíveis de melhoria e, em
princípio, mereciam uma segunda chance. Não somente uma chance
para saírem pelas portas da prisão, uma vez que eles tinham cum-
prido sua pena, mas para serem capazes e estarem dispostos e lhes
ser permitido reinserir-se na vida cotidiana dos cidadãos comuns.
Livres para começar, como se diz, uma nova vida. Há pouca dúvida
de que a prisão é prejudicial aos seus ocupantes, sobretudo porque
ela é simplesmente um castigo. Porém, isso seria distorcer a verdade,
se negássemos que em alguns casos a prisão também proporcionou
segurança e estrutura para que alguns de seus prisioneiros recon-
quistassem algum controle sobre suas vidas. No entanto, é preciso
reconhecer que a verdade não está em dizer que esta cura é boa para
todos em todas as circunstâncias. O contrário é que é verdadeiro. Para
a maioria das pessoas a prisão é dor, tortura e um monte de dano que
nem sempre é fácil compensar, seja por esforços intra ou extramurais.
A prisão foi concebida como um instrumento multifuncional da
ordem social. Não foi feita apenas para manter o culpado vivo em
vez de eliminá-lo. Também foi feita para manter a sociedade segura
durante o tempo de punição do condenado. Isso teve um efeito cal-
mante sobre as vítimas e sobre o público em geral. Desde que eles
soubessem que o infrator se encontrava preso, podiam, aliviados, res-
pirar fundo e nutrir a esperança de que, uma vez que a pena do preso
fosse cumprida, ele não seria mais um risco para os demais cidadãos.
Essas foram as duas funções mais importantes dessa nova invenção,
e elas ainda são os pilares mais fortes da existência das prisões hoje.
Às duas funções principais da reclusão – ou seja, a reabilitação e a
incapacitação – podemos acrescentar duas outras menos visíveis: a)
que ela fornece uma garantia visível para o público geral, e cumpri-
dores da lei; b) que as infrações mais graves não serão toleradas e que
o próprio risco de uma pena de prisão pode ter um efeito dissuasor
sobre alguns, que de outra forma poderiam sentir-se tentados a co-
meter um crime.
Como Vivien Stern explica:
Introdução 29
Nem tudo pode estar bem dentro dos altos muros da prisão, mas
para aqueles que estão fora, os muros altos, as torres de vigia e
talvez também as histórias de acontecimentos terríveis de dentro
são símbolos do poder punitivo do Estado. É uma garantia para o
público, que estará protegido contra as pessoas que o atacam e
ameaçam a paz pública. [...] O cidadão cumpridor da lei não deve
se preocupar se as prisões são injustas e violentas por dentro e se
elas tornam as pessoas que vão para lá melhores ou piores. Uma
coisa é certa. Prisões protegem a sociedade, segurando pessoas
que, caso contrário, estariam fora roubando, assaltando, aterrori-
zando, contrabandeando, causando danos e espalhando o medo.
Então, as prisões – com suas paredes cinzentas, torres de vigia,
arame farpado e blocos de ninhada, com pequenas janelas grade-
adas –, simbolizam a manutenção da lei. Elas mantêm trancadas
pessoas que fariam mal às outras. Mais do que isso, elas também
previnem o crime de outra maneira [...]. A prisão é como um lugar
sombrio e a perda de liberdade é uma punição muito dura. As
pessoas não querem perder a sua liberdade e o pensamento de
ser enviado para a prisão, para o potencial infrator da lei, evita que
ele cometa um crime. A existência da pena de prisão impede as
pessoas de cometerem crimes. [...] Também [,...] as prisões podem
ser bons lugares, servindo a um propósito útil. Elas podem ser lu-
gares de reforma onde os criminosos entram como pessoas ruins
e saem um pouco melhores. Sendo enviados para a prisão irá ela
ensinar-lhes uma lição [... ou...] dar-lhes uma chance que nunca
tiveram antes de poderem aprender uma profissão, desistirem de
utilizar drogas ilegais ou serem educados [...]6. (Stern, 2006)
O que nos faz entender por que as prisões não estão sendo es-
candalizadas da mesma forma como algumas outras formas de puni-
ção. As prisões são uma parte aceita da realidade social, pelo menos
como um mal necessário. E, para muitos, mais do que isso. As prisões
têm vários efeitos colaterais que falam em seu favor. A construção de
prisões pode, por exemplo, ajudar as zonas desfavorecidas, com o in-
vestimento e o emprego, para não mencionar os acionistas gigantes
6
STERN, Vivien. Creating criminals: prisons and people in a Market Society.
London: Zed Books, 2006, capítulo 2.
30 Manifesto para Abolir as Prisões
do complexo industrial-prisional, composto, por exemplo, pela Cor-
rections Corporation of America.
Tudo isso considerado como um crescimento da prisão desde
seu humilde começo até sua atual posição dominante, e como um
apoio principal indispensável da justiça criminal em todo o mundo
tem todos os ingredientes para uma história maravilhosa de sucesso.
A prisão, então, tenta conciliar uma série de objetivos conflituosos, e
consegue realizá-los por meio do compromisso. Ela tenta expressar
uma forte condenação do comportamento do incriminado, e impe-
dir o ofensor de cometer mais crimes por incapacitação e motivação,
mas também tenta tranquilizar o público em geral no sentido de que
alguns comportamentos simplesmente não serão tolerados pelo Es-
tado, e que o crime não paga, embora a obediência às autoridades,
sim.
Para encurtar uma longa história: embora reconheçamos os méri-
tos e as funções da prisão, chegamos à conclusão de que, quaisquer
que sejam estes méritos e funções, é hora de seguir em frente. Quan-
do o castigo corporal revelou-se muito cruel e muito ineficaz ele teve
que ceder o lugar a uma resposta padrão para o crime: o ideal de
incapacidade e reabilitação mediante o aprisionamento. Séculos de-
pois a prisão não só tem sido profundamente desmascarada, mas a
sua legitimação tem estado sob pressão como nunca antes. Hoje, as
perguntas outrora dirigidas à instituição da punição corporal, cada
vez mais se voltam contra a sua sucessora. A prisão é ineficaz e de-
sumana, portanto, tem que ser abolida, em favor de punições mais
eficazes e mais humanas. Ou, melhor ainda: em favor de algo melhor
que a punição.
A prisão é obsoleta!
Em um momento em que cresce cada vez mais a liberdade pes-
soal – e especialmente a liberdade de movimento que se manifesta
no enorme aumento das atividades de viagens internacionais por jo-
vens de todo o mundo –, a privação de liberdade é um corte muito
mais profundo para os direitos humanos do cidadão do que costu-
mava ser antigamente. Um cidadão comum do mundo desenvolvido
tem um carro – ou talvez dois –, uma bicicleta, um bilhete anual para
Introdução 31
o transporte público e se orgulha de sair em férias para onde quer
que ele goste. Comparado com o horizonte cada vez maior de um
cidadão normal hoje em dia o próprio fato de ser excluído de tudo
isso deve ser nauseante.
A prisão se esgotou como um lugar ideal e como uma resposta
padrão para o crime. Em épocas anteriores, do século XIX até o início
do século XX, os autores saudaram a prisão porque ela não era só
retributiva, mas também era uma forma de reabilitação que servia a
um propósito útil além da mera afirmação do poder do soberano. O
desempenho atual da prisão nunca parece ser capaz de atender às
expectativas. Metaestudos que analisaram os efeitos positivos do tra-
tamento promoveram a decepcionante impressão de que “nada” do
que foi tentado em termos de terapia intramural parece ter produzi-
do resultados convincentes. O próprio pensamento de ver a prisão
como uma espécie de hospital para o tratamento da delinquência se
tornou cada vez mais desacreditado. Este declínio do ideal de reabi-
litação7 (Allen, 1981) contribuiu para a falência geral dos respectivos
esforços e deixou as prisões com o problema do tempo vazio. Quan-
to menos dinheiro e energia foram investidos em programas de tra-
tamento mais o aprisionamento se tornou uma questão de simples
armazenamento, deixando os prisioneiros sujeitos a seus próprios
dispositivos, a seus demônios internos e à sua esperança em serem
protegidos por gangues intramurais. As condições das prisões man-
têm uma síndrome de negligência geral, abuso e sofrimento que já
caracterizavam a instituição na época de John Howard.
Um resultado positivo em meio a uma fé drasticamente diminuí-
da nos benefícios da prisão foi a mudança da ênfase, da prisão para
as sanções financeiras. Na Alemanha, por exemplo, o século XX co-
meçou com uma proporção de 3 para 1 em favor do aprisionamento,
contra sanções financeiras, e terminou com uma proporção de 4 a 1
em favor de sanções financeiras, em relação a penas de prisão. No
curso de um século a pena de prisão deixou de ser uma resposta pa-
drão para ser uma resposta relativamente rara e excepcional para o
7
ALLEN, Francis A. The decline of the rehabilitative ideal: penal policy and
social purpose. New Haven: Yale University Press, 1981.
32 Manifesto para Abolir as Prisões
crime. De todos os condenados menos de 20% receberam uma pena
de prisão no final do século XX. A grande maioria das penas de prisão
foi suspensa e acompanhada por ordens de liberdade condicional.
Cerca de 5% de todos os acusados estão sendo condenados à prisão
imediata. Poderia este percentual, teoricamente, ser reduzido ainda
mais, talvez a 4, 3, 2 ou mesmo 1 ou zero por cento? Para este fim ju-
ízes teriam apenas que se abster cada vez mais de condenar a penas
de prisão. E se condenassem à prisão, teriam que conceder liberdade
condicional a cada vez mais condenados. Ao mesmo tempo, os servi-
ços de liberdade condicional podem e devem ser substancialmente
melhorados para que haja menos revogação das penas suspensas.
Cinquenta anos atrás já havia pessoas que sonhavam com uma redu-
ção radical da prisão, incluindo a sua abolição até o ano 2.0008 (Schu-
mann). O fato de esta data já haver sido ultrapassada não justifica
que a prisão tenha que existir de agora por toda a eternidade. Ainda
é possível e ainda é necessário superar esse sistema obsoleto de in-
fligir dor.
Em um breve, porém importante texto intitulado Post-scriptum
sobre as Sociedades de Controle, de 1990, o filósofo francês e teórico
social Gilles Deleuze argumentou que mesmo em nossa era digital o
tempo já se esgotou para a prisão como um notável instante de am-
biente fechado destinado à obsolescência. Para ele, isto não é nem
bom nem ruim, é apenas um desenvolvimento que tem que ser ob-
servado, analisado e tratado para que se possa tentar estimular seu
lado bom e tentar evitar tornar realidade seu lado arriscado:
8
SCHUMANN, Karl F. Eine Gesellschaft ohne Gefängnisse. In Karl F. Schu-
mann, Heinz Steinert, Michael Voß, Hg. Vom Ende des Strafvollzugs. Bie-
lefeld: AJZ, pp. 16-34.
Introdução 33
dentemente da duração dos períodos de validade. É apenas uma
questão de administrar os seus últimos ritos e de manter as pes-
soas empregadas até a instalação das novas forças que baterão à
porta. Estas são as sociedades de controle que estão no processo
de substituição de sociedades disciplinares. “Controle” é o nome
que Burroughs propõe como termo para o novo monstro, um que
Foucault reconhece como nosso futuro imediato. Paul Virilio tam-
bém está continuamente analisando as formas ultrarrápidas de
controle de livre flutuação, que substituiu as antigas disciplinas
que operam no espaço de tempo de um sistema fechado. Não há
necessidade de invocar as produções farmacêuticas extraordiná-
rias, a engenharia molecular, as manipulações genéticas, apesar
dessas serem propostas e programadas para se introduzirem no
novo processo. Não há necessidade de perguntar qual é o regime
mais duro, pois é dentro de cada um deles que forças libertadoras
e escravizadoras se confrontam. Por exemplo, as crises do hospital
como meio de confinamento, clínicas de bairro, asilos e creches
poderiam a princípio expressar uma nova liberdade, mas elas po-
deriam participar também de mecanismos de controle que são
iguais às mais duras das prisões. Não há necessidade de temer ou
esperar, mas apenas de procurar novas armas. [...] Pode ser que
métodos mais antigos, emprestados das antigas sociedades de
soberania, voltem à tona, mas com as modificações necessárias. O
que conta é que estamos no início de algo. No sistema prisional há
a tentativa de encontrar penas de “substituição”, pelo menos para
crimes menores como o uso de coleiras eletrônicas que forçam a
pessoa condenada a ficar em casa durante algumas horas. Para o
sistema educacional há a procura de formas contínuas de contro-
le e o efeito sobre a escola de treinamento perpétuo, o abandono
correspondente de toda a pesquisa universitária e a introdução
da “corporação” em todos os níveis de escolaridade. Para o siste-
ma hospitalar a nova medicina “sem médico ou paciente”, que es-
colhe pessoas potencialmente doentes e indivíduos em risco, que
em nada atesta a individualização – como se diz –, mas, substitui
o corpo individual ou numérico pela cifra de um material “divi-
sível” a ser controlada. No sistema corporativo: novas formas de
lidar com dinheiro, lucros e os seres humanos que já não passam
pela forma antiga da fábrica. Estes são exemplos pequenos, mas
que permitirão a melhor compreensão do que se entende sobre
9
DELEUZE, Gilles. Postscript on the societies of control. Cambridge: MIT.
Press Cambridge. October. 59: Winter 1992, pp. 3-7.
10
Amaldiçoado esse hábito do homem que permite ao outro mantê-lo preso.
11
ONFRAY, Michel et alii. Abolir la prison: ses mécanismes et ses logiques.
Disponível em: <https://blogs.mediapart.fr/edition/les-invites-de-me-
diapart/article/040614/abolir-la-prison-ses-mecanismes-et-ses-logi-
ques>. Acesso em: 30 ago. 2016.
Introdução 35
rias sem importância, não há absolutamente nada a fazer além de
demoli-las.
12
BAKER, Catherine. Pourquoi faudrait-il punir? Lyon: Tahin party, 2004.
36 Manifesto para Abolir as Prisões
os desafios da vida pessoal e profissional do dia a dia. Porém, tudo
isso está sendo dificultado ao invés de ser facilitado por qualquer pu-
nição envolvendo privação de liberdade. E essa já era uma verdade
simples enunciada por John Howard no século XVIII. E a ideia de que
a delinquência é basicamente um tipo de psicopatologia que pode
ser curada por tratamento ou assistência psicológica intramural foi
uma generalização que não combinava com a realidade. Como John
P. Conrad disse: “Nós nunca deveríamos ter prometido hospital”.
Incapacidade. Em alguns casos, prender as pessoas faz diferença
na comunidade respectiva porque durante o seu aprisionamento,
membros de gangues, por exemplo, não podem continuar as suas
atividades. Ainda que o mesmo valha para alguns agressores sexu-
ais graves, incluindo os terríveis (mas pouco frequentes) serial killers,
efeitos de incapacidade são mais limitados do que a maioria das pes-
soas pensam. Isto já é verdade para a maior parte das ofensas sexuais
com sua baixa taxa de reincidência. A maioria dos crimes violentos se
encaixa na mesma categoria: novos crimes estão sendo cometidos
por pessoas sem nenhum registro anterior, ou seja, o risco de rein-
cidência tende a ser baixo. O que significa que estamos com muito
medo dos já condenados e não nos preocupando o suficiente com
aqueles ainda desconhecidos. Em muitos casos a delinquência é par-
te de um mercado ilegal. Este mercado segue as leis da demanda e
do fornecimento e não pode ser influenciado pela prisão de atores
específicos. As personagens, em outras palavras, são intercambiáveis.
Mesmo a prisão de uma organização completa de traficantes de dro-
gas não significa que haverá menos tráfico, mesmo no médio prazo.
Pessoas excluídas estão sendo substituídas por novos recrutas e isso
dá continuidade a competições sobre as aquisições das gangues ou
à criação de organizações de tráfico inteiramente novas. Avaliações
recentes mostram que nem a louvada estratégia de quebrar os car-
téis do crime organizado, mediante a eliminação dos grandes chefes
(kingpins), costuma dar certo. Muito pelo contrário. Essas mesmas
Introdução 37
análises mostraram que as coisas pioraram depois que os grandes
chefes foram presos ou mortos13 (Cockburn).
Impedimento. O conhecimento de que algumas ações podem
acarretar uma pena de prisão pode ser um impedimento em alguns
casos. Ondas de prisões por corrupção podem fazer membros das
classes sociais atingidas serem mais prudentes, privando-se de ativi-
dades ilegais, como lavagem de dinheiro, suborno e similares. Isso é
verdadeiro para atores racionais com uma avaliação sóbria das vanta-
gens e desvantagens de determinadas escolhas econômicas e legais.
Mesmo para eles, porém, não é muito claro em que medida o efeito
dissuasor pode ser rastreado até a existência específica da prisão e
não, por exemplo, até o risco de simplesmente ser pego. Em outras
palavras, talvez, em um mundo sem prisão, o mero risco de ser des-
coberto, escandalizado, gravemente multado e envergonhado, pode
ter o mesmo efeito, ou um efeito dissuasor ainda maior. Criminolo-
gistas concordam que não é tanto a gravidade antecipada, mas sim
a probabilidade prevista de punição que gera um – embora limitado
–, efeito dissuasor.
Prevenção Geral Positiva. As prisões são necessárias para tranqui-
lizar a população em geral sobre a validade da norma depois de ela
ter sido violada pelo delinquente? Criminologistas parecem aceitar
este pensamento até certo grau. Se as violações da norma continu-
assem sem resposta negativa, a norma em si poderia sofrer erosão.
Porém, não há necessidade de inferir a necessidade de uma resposta
negativa que tenha que assumir a forma de prisão. A prisão é apenas
um tipo de punição, e todos os tipos de punição, independentemen-
te da sua aparência, são apenas uma forma de reações negativas. Po-
deria haver também reações sem punição a crimes que iriam lidar
com a delinquência de uma forma completamente diferente e ainda
exercer a influência desejada, mostrando ao público em geral que
13
COCKBURN, Andrew. The kingpin strategy: assassination as policy in Wa-
shington and how it failed, 1990-2015. Disponível em: <http://www.
tomdispatch.com/post/175988/tomgram%3A_andrew_cockburn,_
how_assassination_sold_drugs_and_promoted_terrorism/>. Acesso
em: 30 ago. 2016.
38 Manifesto para Abolir as Prisões
violações de tal norma não serão toleradas. Em outras palavras, pos-
tular a necessidade de uma punição específica, alegando que há uma
necessidade de algum tipo de sanção negativa, não faz sentido.
Expiação. Mas, e as atrocidades excepcionalmente brutais? Elas
não necessitam de uma expiação grave por parte do delinquente? A
prisão perpétua não é uma forma de lidar com eles, a fim de que não
se volte atrás em relação à pena de morte?14 (Arendt,1977)?
Ao todo, o desequilíbrio entre os custos e os benefícios da prisão
fala uma linguagem clara. A inoportunidade da prisão é um fato bem
conhecido entre os criminologistas. O público em geral está sendo
protegido deste conhecimento. Porém, esse véu da ignorância que
paira sobre os fatos estatísticos do aprisionamento é um dispositivo
de proteção poderoso que mantém a prisão afastada da posição de
ser questionada e desafiada e, assim, mantém a estabilidade de um
sistema que, se evidenciasse a sua disfunção, já estaria desacreditado
e destruído há muito tempo.
Resumindo os Direitos Humanos. As prisões haviam sido inventa-
das, entre outras coisas, para proteger os direitos dos condenados,
mantendo-os vivos e respeitando-os como seres humanos, embora
eles estivessem cumprindo uma sentença criminal. No nosso tempo
o conceito de Direitos Humanos tem sido consideravelmente amplia-
do, se comparado com a situação do final do século XVIII. Se a prisão
não existisse, e, se nas sociedades de hoje tivéssemos que inventar
uma resposta padrão para o crime, será que acabaríamos inventando
as prisões? Nós duvidamos. E existem muitas razões para que duvi-
demos de que a prisão seria inventada hoje em dia, na pós-moder-
nidade. De toda sorte, se a prisão não existisse atualmente nós não
a inventaríamos por duas razões. Prisões têm princípios de confina-
mento que se chocam com os Direitos Humanos. Esta colisão assume
duas formas, ambas escandalosas, embora de uma maneira muito
diferente. Por um lado, os princípios simplesmente organizam a vida
cotidiana na instituição de uma forma que alguns Direitos Humanos
essenciais sejam negados. Por outro lado, há uma diferença de po-
14
ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil.
Harmondsworth: Penguin, 1977.
Introdução 39
der estrutural e um clima de “impunidade” em relação aos abusos de
poder por parte dos guardas que tornam a prisão propícia a abusos.
Idealmente, a prisão priva o condenado de sua liberdade de mo-
vimento, mas nada mais. Ela deixa a pessoa intacta e resguarda-lhe
todo o resto dos direitos humanos, civis e sociais garantidos nas Cons-
tituições nacionais e nas Convenções internacionais, com exceção, é
claro, de ela ser confinada a uma área restrita da prisão, pois essa é a
própria ideia de pena prisional: selecionar a liberdade de movimento
como a única da qual o culpado tem que prescindir, e nada mais. A
rigor, a ideia de aprisionamento não existe para levar o delinquente
ao desespero, privação e destruição, mas para ensinar-lhe uma lição
ao restringir a liberdade de movimento. Infelizmente, porém, essa li-
mitação não é totalmente refletida na própria organização da prisão.
Muito pelo contrário, a prisão ainda exibe características pré-consti-
tucionais que tornam difícil acreditar que poderá evoluir para uma
sanção constitucional de acordo com os valores mais importantes de
uma sociedade livre e democrática sob a lei.
Basta isso para apontarmos para três contradições inerentes à pri-
são.
Trabalho forçado. A maioria dos sistemas prisionais requer que os
prisioneiros trabalhem. Este é um peso extra que é uma parte evitá-
vel da prisão e, portanto, deve ser considerado um castigo adicional.
Sua existência volta aos tempos pré-constitucionais em que os prisio-
neiros eram vistos como “escravos do Estado” que foram privados do
estado de cidadãos normais. Mais tarde esse recurso foi legitimado
como parte do castigo. Hoje ele é mais frequentemente visto como
parte do caminho do prisioneiro para a reintegração. O trabalho pri-
sional supõe preparar os prisioneiros: a) para o mercado de trabalho
exterior (apenas no caso de encontrarem trabalho); b) para ajudá-los
a estruturar sua vida diária (como se fossem trabalhadores indus-
triais); e c) para ajudá-los a compensar as vítimas do crime pela sua
perda (o que é quase impossível, haja vista os salários extremamente
baixos pagos pelo trabalho prisional). Se todas estas justificativas são
debatíveis e fracas a razão primordial para a persistência do trabalho
forçado na prisão parece ser a manutenção da ordem dentro da ins-
tituição. As autoridades penitenciárias acreditam firmemente que o
40 Manifesto para Abolir as Prisões
sistema seria incontrolável sem este instrumento. Mesmo o trabalho
sem sentido é visto como melhor do que nenhum trabalho.
A pobreza imposta. No início do sistema prisional a maioria dos
presos era pobre de qualquer maneira. As casas de correção originais,
que antecederam as penitenciárias, armazenavam prostitutas, deve-
dores, mendigos, pobres, doentes, órfãos e delinquentes parecidos.
Era evidente que não estavam sendo pagos pelo seu trabalho, e eles
só recebiam o que era considerado necessário para sustentá-los. Esta
é outra herança dos tempos pré-constitucionais. Hoje, na Alemanha,
o “salário” de um prisioneiro que trabalha foi congelado em 9% do
salário mínimo, o que o mantém muito abaixo deste. Inútil será di-
zer que a pobreza na velhice dos presos está sendo pré-programada
pela discriminação adicional de estarem eles isentos de contribuir
com o Seguro Social. Meses e anos de trabalho na prisão não estão
sendo contados como seguro quando se trata de pedidos de pensão.
Como em alguns outros países, a Alemanha havia prometido fazer
algo sobre tudo isso na década de 1960, quando a reforma da prisão
era mais prioritária na agenda do que é hoje. Mas, desde então, esta
promessa legal foi anulada e nunca conseguiu voltar para a pauta de
qualquer associação política importante, para não mencionarmos as
plataformas eleitorais ou iniciativas legislativas.
Privação sexual. A prisão é uma instituição de sexo único. Esta não
é uma condição necessária para a privação da liberdade, como prova-
do pelo sistema do Gulag russo ou, para citar outro exemplo, a da Pal-
masola Villa, que é uma prisão da Bolívia. Na Europa e em muitos ou-
tros países, no entanto, a ideia de famílias inteiras vivendo junto com
o preso parece estranha e injusta para com os membros inocentes da
família. Por outro lado, o método mais comum de confinamento do
mesmo sexo, ao estilo europeu e norte-americano, impõe um padrão
de vida celibatário sobre os prisioneiros. Isso significa que mulheres e
homens prisioneiros dependem tanto da masturbação, quanto de in-
divíduos de seu próprio sexo para as suas respectivas atividades. Isso,
por sua vez, leva-os à voluntária e involuntária homossexualidade na
prisão. Prisões do mesmo sexo equivalem a uma quantidade consi-
derável de sofrimento mediante estupro e abuso. Estudos realizados
nos EUA (Estados Unidos da América), sugerem que, anualmente, de
Introdução 41
4 a 5 presos, em cada 100, são violados ou abusados por colegas de
prisão, para não mencionarmos os guardas (NYRB). Apesar de algu-
mas tentativas para contrariar essa tragédia mediante a concessão
de “férias da prisão” (licenças temporárias), ou de visitas duradouras
de cônjuges ou familiares, este efeito colateral da prisão persiste em
todo o mundo. E ele permanece não só como uma fonte evidente de
transmissão de doenças infecciosas como a SIDA15 (Síndrome da Imu-
nodeficiência Adquirida), mas, também como uma violação grave e
permanente dos direitos humanos elementares.
Copunição de terceiros. Não há punição dos agressores, a título de
danos colaterais, que não afete também as suas famílias, amigos, co-
legas, etc. Isso é especialmente verdadeiro sobre o aprisionamento.
Não só impede um sexo normal, mas também uma vida social regular
com a família e amigos. Todas essas relações estão sendo radicalmen-
te reduzidas a cartas raras, altamente fiscalizadas e supervisionadas,
conversas telefônicas e visitas. Em um tempo em que a mobilidade
é cada vez maior os presos não estão apenas sofrendo uma privação
familiar ao serem mantidos em gaiolas que nem mesmo um zooló-
gico moderno impõe a seus animais. Eles também estão sendo man-
tidos longe da internet, em um mundo onde a vida social é cada vez
menos imaginável sem os recursos dos meios de comunicação social
remota. O fosso crescente entre o mundo exterior e o atraso artificial
da prisão faz com que ela seja mais dolorosa e prejudicial do que
ela teria que ser. Além disso, um dos assuntos mais tristes do mundo
das prisões é o fenômeno bastante negligenciado que pode ser cha-
mado de copunição das crianças. Não há dúvida de que a detenção
dos pais tem resultados negativos para os menores de idade. Prisões
“familiares” são um esforço compreensível, mas infrutífero. A espe-
rança de melhorias aqui é tão ilusória como teria sido pedir melhorias
graduais na escravidão em vez de perceber suas falhas básicas e agir
em conformidade com elas. Podem todos os males da prisão serem
abolidos sem abolir a instituição como tal? Alguns podem pensar
que bastaria abolir os velhos edifícios, as gaiolas e as torturas que
caracterizavam as prisões não tão modernas (e algumas das muito
15
A doença é mais conhecida como AIDS.
42 Manifesto para Abolir as Prisões
modernas), e espalhar o tipo de prisões que poderia ser chamado
de prisões modelo – com apartamentos, em vez de celas, e pessoal
de serviço, em vez de guardas brutais. Instalações correcionais tipo
hotel, porém, são uma coisa estranha de se imaginar como uma res-
posta padrão para crimes graves. Uma forma menos utópica de lidar
com o problema prisional parece ser abolir a prisão como punição
por completo e ir além desse estágio de evolução na justiça criminal.
Tormento Prisional. “Quantas condenações já vi que eram mais
criminosas que o crime!” Em Baker 11, Montaigne diz:
16
Tradução livre: Razão de ser.
Introdução 43
até que ponto tais condições irregulares podem ser vistas como um
argumento contra as prisões como tal.
Qualquer crítica das irregularidades normalmente tem como ob-
jetivo melhorar um determinado sistema, e não aboli-lo. Desse ponto
de vista cada cobertura da mídia sobre um escândalo na prisão pode
ser lido como um apelo implícito em favor de algo mais limpo, um
sistema melhor, mais proficiente, em vez de um argumento contra a
prisão como tal. Consequentemente, pode-se alegar que os escân-
dalos na prisão não são muito propensos a dar apoio contínuo aos
argumentos abolicionistas e deveriam, portanto, ficar fora do jogo.
Casos isolados de abuso não provam que há algo de errado com a
prisão, só provam que todo mundo que está na prisão é humano e
sujeito à falibilidade humana.
Por outro lado, no entanto, há também a possibilidade de que
“escândalos prisionais” não sejam apenas incidentes isolados, tendo
raízes sistêmicas. Se, por exemplo, uma determinada condição C é
conhecida por aumentar o risco de escândalos de tipo S acontece-
rem, e se prisões tipicamente mostram a condição C, em seguida a
aparência de S em sistemas de prisão dificilmente poderia ser atri-
buída a condições isoladas e atípicas ou características de persona-
lidade de um guarda ou de um condenado. Em outras palavras, se o
aparecimento de deficiências escandalosas pode ser rastreado para
justamente se encontrar a essência estrutural das prisões como tal,
então seria justificável olhar para as ligações estruturais entre a pri-
são e seus escândalos. Se pudesse ser determinado que as caracterís-
ticas do sistema são propícias a abusos escandalosos de poder, por
exemplo, então não deveríamos fechar os olhos para a possibilidade
de que a prisão, como tal, facilita frequentes e intensas violações dos
direitos humanos, transformando-a em um inferno para muitos de
seus habitantes.
As condições das prisões são notoriamente ruins em países po-
bres simplesmente por causa da falta de fundos para manter uma
instituição profissional ordenada. Prisões romenas são apenas um
17
HOLY, Cartner. Prison conditions in Romania. New York: Human Rights
Watch, 1992.
Introdução 45
instalações sanitárias, à iluminação natural e à ventilação, além da
má qualidade alimentar, dizem os ativistas.
18
STERN, Vivien. Creating criminals: prisons and people in a Market Society.
London: Zed Books, 2006 , p. 1.
Introdução 47
E o que é pior: a falta de recursos não é a única – e sequer a prin-
cipal –, causa para a natureza escandalosa da prisão. Como os escân-
dalos da prisão em países ricos e a pesquisa empírica por estudiosos
renomados, como Philip Zimbardo, mostraram o fator mais relevante
para que a violência ocorra se encontra nas disparidades sistêmicas
de poder.
Na área da pesquisa empírica, o famoso Experimento da Prisão de
Stanford, por Philip Zimbardo et alii (1973), demonstrou o poder de
variáveis situacionais. Em um ambiente fechado com dois grupos –
um dos quais é poderoso e o outro, sem poder –, aqueles com poder
são altamente propensos a recorrer à violência física e à brutalida-
de, mesmo quando os membros individuais desse grupo são pacífi-
cos e pessoas “normais”. Em caso de conflito os poderosos tendem a
recorrer à violência e ao comportamento abusivo para obter o que
querem. Eles agem assim desde que eles acreditem estar fazendo a
coisa certa, e enquanto eles estejam convencidos de que não serão
repreendidos por seu comportamento.
Em uma prisão normal os guardas são os que realmente sabem o
que está acontecendo, e são eles que tentam determinar quem me-
rece o quê. Com pouca supervisão administrativa, guardas tendem
a tornar-se bastante autônomos quanto à vigilância “do chefe”. Isso
lhes possibilita exercer mais controle do que serem controlados. Tal
“excedente de controle” que não é controlado por superiores trans-
forma cada funcionário em um pequeno rei. Essa situação é propícia
para os abusos de poder. E, consequentemente, a Teoria de Controle
de Balanço, de Charles Tittle, de 1995, prevê o surgimento de com-
portamento exploratório e humilhante pelos guardas prisionais em
todos os casos em que eles possam atuar de forma descontrolada e
sem medo de serem repreendidos.
Abolição Prisional. As prisões não são uma maneira adequada de
lidar com o crime. Elas estão desatualizadas e são desnecessariamen-
te cruéis. Então, elas são ilegítimas. E deveriam ser ilegais. Então, elas
têm que ser abolidas. À distância. Completamente. De uma vez por
todas.
Introdução 49
Finalmente, abolir as prisões não significa abolir a necessidade de
trancar as pessoas que são uma ameaça iminente à vida e à integri-
dade física de outros seres humanos. Mesmo se nós acreditássemos
ser possível, tal como Friedrich Nietzsche, que as sociedades futuras
podem ser capazes de um dia se dar o luxo de deixar os seus agres-
sores “impunes”, a abolição da pena não livraria automaticamente
essas sociedades da necessidade de prender, digamos, assassinos
em série, por razões meramente preventivas. Mesmo uma sociedade
que renuncia à punição retributiva não será necessariamente capaz
de renunciar ao confinamento involuntário por razões preventivas.
Algumas coisas só têm que ser impedidas de acontecer, seja a propa-
gação de uma doença infecciosa, seja a caçada de um assassino serial
a suas próximas vítimas.
Isso não quer dizer que qualquer dessas privações necessárias e
involuntárias de liberdade têm de ser implementadas nas prisões ou
em instalações parecidas. Em nenhuma punição pretendida as con-
dições de vida das pessoas afetadas pela separação espacial do resto
da sociedade devem ser modeladas conforme a penitenciária, mas
sim de acordo com uma casa de classe média, ou pelo menos um
apartamento, tanto no que diz respeito ao tamanho, quanto ao con-
forto. Quem pensa que isso é um exagero deve parar um minuto e
considerar o seguinte: essas pessoas estão sendo forçadas a sacrificar
partes essenciais de sua (qualidade de) vida a favor da vida e da li-
berdade dos outros, sem necessariamente serem “culpadas” ou “más”.
Sem envolver censura e vingança, aqueles que privam estas pessoas
de sua liberdade têm boas razões para fazer tudo o que podem para
tentar compensar os seus sofrimentos da melhor maneira, mediante,
por exemplo, um nível artificialmente elevado de conforto de vida.
Como não podemos deixá-los livres, devemos, pelo menos, tornar
as suas estadas positivas, agradáveis, criativas e emocionantes. Em
suma: como boas e adaptadas segundo as suas necessidades e de-
sejos possíveis.
Em segundo lugar, o que a abolição das prisões não significa é
a manutenção de todos os prisioneiros na prisão, tampouco nada
significa a mudança só do nome da instituição e de seus detentos
para “hospitais/pacientes”, “centro de tratamento/clientes” ou “casas
O caso contra Polanski não foi trazido para satisfazer seu desejo
(da vítima) por justiça ou a sua necessidade de conforto. Foi tra-
zido pelo Estado da Califórnia em nome do povo da Califórnia.
[...] Os crimes não são cometidos apenas contra indivíduos, mas
contra a comunidade [...] as pessoas acusadas de crimes graves
devem ser presas e julgadas e, se condenadas, devem enfrentar
sua sentença19.
19
DIAMOND, Jared. The world until yesterday. London: Penguin, 2012, p.
110.
Introdução 53
Klaus Günther20 retoma o significado do núcleo da punição como
sendo uma declaração pública de que um determinado evento foi
uma injustiça perpetrada por indivíduos, e que essa injustiça não
é e não será tolerada pela comunidade. Esta declaração, de acordo
com Klaus Günther, tem três destinatários: a) a vítima (que tem a ga-
rantia de que a comunidade não considera o seu mal sofrido como
simplesmente má sorte ou destino, mas como o resultado de ações
injustificadas e não toleradas de um terceiro); b) o infrator (que é in-
formado de que é responsável pelo que aconteceu e de que o seu
comportamento é visto como fortemente condenável); e c) o público
em geral (que recebe a mensagem de que as consequências nega-
tivas serão definidas não como acidentais, mas como uma injustiça
que não pode ser tolerada, e que essa injustiça não é nem deve ser
atribuída à vítima nem ao público).
No curso da história, a punição tem desempenhado um papel
central desde o surgimento de protoestados, e a função da repro-
vação simbólica tem sido associada a certas formas de tratamento
difícil. Durante muito tempo, as execuções públicas eram os símbo-
los mais convencionais de reprovação simbólica. Mais tarde, a prisão
assumiu este papel. Não há nenhuma lei natural que pode impedir as
mudanças que virão. Outras formas de tratamento duro se tornarão
expressões convencionais de reprovação simbólica no futuro. Daí a
relatividade do crime visto que não são poucos os atos que foram
considerados dignos da pena de morte alguns séculos atrás, mas que
hoje são legalmente reconhecidos como completamente legítimos.
Ela só move a punição de um comportamento para os outros, os
recém criminalizados (por exemplo, de ser gay à discriminação an-
tigay). Porém, as punições alteram suas aparências e os seus elemen-
tos essenciais. O que não muda é a função da punição como uma
reprovação simbólica dos respectivos atos puníveis.
Punição sem prisão: os poucos perigosos. Como poderíamos des-
cobrir, sob essas premissas, se as nossas sociedades contemporâneas
poderiam realmente existir sem prisões? Para concretizar esta ques-
20
GÜNTHER, Klaus. 2002, p. 218. [O nome do livro é desconhecido pelos
autores]
54 Manifesto para Abolir as Prisões
tão temos uma proposta: existe uma canção de marinheiros cujas
primeiras palavras são: “What shall we do with the drunken sailor...?”21.
Nós modificamos esta canção colocando questões mais concretas
sobre a prisão. Agora a ideia: se formos capazes de responder satisfa-
toriamente a todas essas perguntas, então podemos continuar con-
fiando no caminho da abolição da prisão.
The drunken sailor [versão modificada]
21
Tradução livre: O que devemos fazer com o marinheiro bêbado?
Introdução 55
membros do público. Muitos dos quais acreditavam que ele merecia
a pena de morte pelos atos hediondos que havia cometido. O caso
demonstra que, atualmente, as expressões convencionais de profun-
da indignação moral são o pedido de pena de morte e o de confi-
namento da vida na prisão. Isso não significa que as coisas não po-
deriam, e não deveriam, mudar para punições menos radicais. Aqui,
como no caso de serial killers, a necessidade de desaprovação pública
poderia ser expressa pela supervisão intensiva dentro da comunida-
de. Opções extramurais iriam fornecer ao condenado uma chance
razoável de sobrevivência, duvidosa na prisão, mesmo que mediante
o fornecimento às vítimas de uma tecnologia de vigilância ao vivo e
a certeza de um vigilantismo policial constante sobre o delinquente.
Teria, ainda, que oferecer à comunidade a possibilidade de encontrar
a paz de espírito, sabendo que o condenado está sob controle e inse-
rido em uma atividade produtiva para o grupo.
Um esquema semelhante seria aplicável ao estuprador vaguea-
dor. Mas será que também atenderia à necessidade de simbolismo
expressivo no caso do general genocida? Não há dúvida de que
existe um desejo forte e legítimo por justiça por parte das vítimas
de crimes em grande escala cometidos pelos poderosos. Em alguns
casos, os familiares das vítimas lutam por anos ou décadas a fio para
encontrar os culpados e levá-los à justiça. No caso do cantor popu-
lar chileno, Victor Jara – torturado e, em seguida, alvejado na cabeça
em setembro de 1973, em um vestiário no Estádio de Santiago, Chi-
le, onde milhares de subversivos, ativistas e comunistas foram pre-
sos e detidos pelas forças do general Augusto Pinochet, que tinham
acabado de derrubar o governo eleito de Salvador Allende (o corpo
mutilado de Victor Jara foi encontrado mais tarde, despejado fora do
estádio com 44 ferimentos de bala) –, sua viúva, Joan Turner Jara, e
suas duas filhas lutaram por justiça pelo seu assassinato por mais de
40 anos. De acordo com Dixon Osburn, diretor executivo da sede na
Califórnia do Centro de Justiça e Prestação de Contas, que havia sido
fundamental para mover a ação judicial contra o suposto assassino,
o dia da abertura do julgamento no Tribunal da Flórida, em 2016, foi
não só um “momento emocionante e quase irresistível” para a família,
mas também “um momento poderoso para todos aqueles que pro-
22
LUSCOMBE, Richard. Trial of former Chile military officer for murder of
Victor Jara opens in Florida. The Guardian, 13 jun. 2016. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2016/jun/13/victor-jara-trial-
-former-chile-military-officer-florida>. Acesso em: 16 fev. 2017.
23
ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil.
Harmondsworth: Penguin, 1977, p. 279.
Introdução 57
remos acreditar no que vemos ou lemos, a monstruosidade do seu
ato, por si só, pode ser encarada como “a razão, e a única razão” dele
“dever ser pendurado”.
Após a Segunda Guerra Mundial, quando a ocupação alemã de
países vizinhos havia terminado, o dia do julgamento tinha chega-
do para os colaboradores. A Noruega enforcou 25 dos contribuintes
mais proeminentes e condenou à prisão, por maus tratos e/ou mor-
tes de prisioneiros, 47 guardas prisionais. Um jovem licenciado, com
o nome de Nils Christie, que mais tarde se tornaria um criminologista
mundialmente famoso, e que havia entrevistado muitos dos guardas
noruegueses do campo, não estava convencido de que o castigo era
necessário ou até mesmo útil. Em vez de pendurar ou prendê-los –
e, assim, reforçar os estereótipos que haviam sido fundamentais em
seus crimes –, argumentou que teria sido muito mais produtivo do
que um julgamento longo e justo, estabelecer os fatos e as respon-
sabilidades, e, assim, chegar a um veredito de culpado, e depois dei-
xar que esses indivíduos envergonhados seguissem seus caminhos.
Pode-se imaginar uma repreensão moral mais devastadora, mais so-
berana do que este ato de deixá-los sair da sala do tribunal em uma
sociedade que sabe, e despreza, o que fizeram?
Há vantagens no jeito de Nils Christie em comparação com a nossa
forma tradicional de reagir. O problema com sentenças eliminatórias
é que elas nos obrigam a descer uma ladeira escorregadia. Por que
se deve esperar que qualquer membro da raça humana queira com-
partilhar a terra com qualquer daqueles seres cuja crueldade congela
o sangue em suas veias? A ideia de que algumas pessoas não mere-
cem viver não é um pensamento novo nem raro na história humana.
Quem ordena ou organiza um genocídio é apenas um exemplo. Mas,
pode-se esperar que alguém queira compartilhar a terra com assassi-
nos sádicos em massa, homicidas em série, estupradores de crianças,
torturadores e terroristas? E o que dizer de políticos corruptos que
empobrecem ou colocam em perigo populações inteiras, enquanto
acumulam milhões e bilhões de dólares em suas contas bancárias em
paraísos fiscais? Na China, muitas das mais de 40 ofensas criminais
que carregam a pena de morte não são violentas, mas sim de natu-
reza econômica.
Introdução 61
sociedades não apenas sobrevivam, mas melhorem as condições de
vida para todos e cada um de seus membros, então uma das nossas
preocupações centrais deve ser nos livrarmos da punição sem renun-
ciar às suas funções positivas e necessárias. Colocando de forma mais
clara: após uma infração grave ter prejudicado as vítimas, afetado o
agressor e perturbado a paz pública como podemos conseguir cum-
prir as funções de punição? Ou seja, como enviar uma mensagem
que capacita as vítimas, ensina o agressor e restaura o espírito de co-
munidade sem recorrer à punição? Podemos ativar os elementos de
cura do castigo sem recorrer à punição?
Acabar com o castigo corporal e questionar a necessidade e a le-
gitimidade da prisão são atitudes arriscadas de se tomar. Elas tocam
os arquétipos da punição e, invariavelmente, colocam em questão
a solidez dos conceitos subjacentes. Será que um sistema de justiça
criminal sem a prisão pode continuar a ser um sistema de justiça cri-
minal real? O que sobra das sanções pode ser chamado de punição?
Se nós podemos viver sem prisões, não podemos simplesmente re-
nunciar à punição em geral? É a punição realmente uma necessidade
social e ética?
Uma vez nesse estágio, as nossas noções convencionais de “crime
e castigo” podem começar a desmoronar, levando-nos a questionar
os próprios conceitos de crime, culpa e, para não esquecer, de livre
arbítrio e de responsabilidade individual.
Como Willem de Haan sugeriu em 2010, essas questões devem ser
levadas a sério por todos que se preocupam com a qualidade de vida
nas sociedades contemporâneas, incluindo criminologistas acadêmi-
cos. Em suas palavras:
24
Tradução livre: Deixai fazer.
Introdução 63
ele pode ser capaz de reconhecer, e das tarefas que ele pode ser ca-
paz de assumir no processo de cura. O culpado é também visto como
uma pessoa com virtudes e defeitos, com culpa e responsabilidade,
mas também com a necessidade de cura.
Se isso soa como romantismo social, então, que seja. Por uma
questão de fato, o romantismo social sempre desempenhou um pa-
pel importante nas tentativas da humanidade de progredir no cami-
nho da civilização (podemos lembrar do papel de Harriet Beecher
Stowe na novela sentimental sobre A Cabana do Pai Tomás, na luta
contra a escravidão). Porém, isso não significa que a justiça restau-
rativa seja apenas uma ideia sem valor prático. Em alguns cantos do
mundo, que podem parecer remotos a partir de uma perspectiva
eurocentrista, a justiça restaurativa é uma prática consolidada, com
resultados impressionantes. Na Inglaterra, um teste empírico de pro-
cedimentos restauradores, em comparação com os processos penais
clássicos, tem produzido resultados surpreendentes em favor da
nova abordagem.
Do ponto de vista da justiça restaurativa, casos criminais podem
ser vistos como conflitos que foram roubados por profissionais, da-
queles imediatamente preocupados, conforme ensinou Nils Christie.
Quando as vítimas, infratores e membros da comunidade se reúnem
sob a orientação de um facilitador experiente, e não de um juiz, para
decidir como lidar com uma “situação problemática”, como afirmou
Louk Hulsman, os resultados podem ser a cura para as vítimas e os
criminosos, restaurando-se aquelas não só em termos materiais, mas
até mesmo “transformacionais”, no sentido de criar uma situação me-
lhor do que aquela a partir da qual o crime se originou, no dizer de
Ruth Morris.
No mundo de hoje a justiça restaurativa não está sendo imple-
mentada como um substituto atacadista para as prisões. Na maioria
das configurações ela é oferecida como um dispositivo de cura. Ao
lado, ou mesmo depois de um julgamento criminal e uma sentença
prisional. Para um exemplo de justiça reparadora pós-sentença ver o
documentário Beyond punishment25, por Hubertus Siegert, de 2015,
25
Tradução livre: Além da punição.
64 Manifesto para Abolir as Prisões
que lembra do papel adicional ao invés do papel da substituição da
penitenciária na era da pena capital. Mas, assim como a prisão era
cada vez mais fundamental na abolição da pena capital em grandes
partes do mundo, a justiça restaurativa tem todo o potencial de fazer
o mesmo com a prisão. Se e como isso poderia funcionar para o bem
das sociedades que adotam a justiça restaurativa depende da força
campal de interesses sociais e influências. Segundo Nils Christie, ne-
nhuma reforma está livre do risco de ser sequestrada, transformada
ou traída. Mas, enxergar uma porta na parede da prisão e não passar
por ela por medo da liberdade: quem iria conscientemente advogar
isso?
A maioria das sociedades históricas humanas não conhecia as
prisões, nem conhecia a punição como uma reação normal ao crime
pelo Estado e suas autoridades legais. E, ainda elas conseguiram ser
bem sucedidas na tarefa de reafirmar a validade da norma violada
pelo perpetrante. O que hoje é chamado de crime era visto como
uma ruptura da ordem natural e/ou como um mal feito a outra pes-
soa, porém não como um crimen laesae maiestatis, uma insubordi-
nação à vontade do governante. É por isso que o modo dominante
de “justiça criminal”, em épocas anteriores, era aquele que se podia
exercer sem punição. A Justiça foi processual e restauradora em vez
de punitivo-retributiva. Reagir a crimes era uma arte que exigia ha-
bilidades comunicativas e um profundo conhecimento de ambos os
respectivos costumes, bem como dos indivíduos interessados e das
famílias. A resolução de conflitos exigia paciência e a mobilização
contínua de boa vontade por parte de todos aqueles que de alguma
forma houvessem sido afetados pelo evento. No final, se tudo ter-
minasse bem, a paz e a segurança eram restauradas, os limites de
comportamento aceitável eram reafirmados ou ligeiramente rede-
senhados, e todas as funções expressivas normalmente atribuídas à
punição eram cumpridas. Porém, sem se recorrer à punição. É hora de
lembrar desse fato quase esquecido para progredirmos em direção a
uma forma de sociedade que esteja ao menos livre de tanto capital e
punição prisional, e, esperamos, finalmente livre também da punição
como tal.
Introdução 65
1 O PRESENTE DO
SISTEMA PRISIONAL
26
Disponível em: <http://noticias.r7.com/cidades/sistema-de-internacao-
-de-jovens-em-alagoas-e-pior-que-rdd-diz-juiza-10052014>. Acesso
em: 19 jul. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 69
Mais próximo ainda é o manicômio judiciário, lugar onde são
cumpridas as medidas de segurança, cuja natureza em nada difere
de uma pena criminal a não ser por esse pormenor: a capacidade que
elas têm de ser quase sempre indefinidas. Por elas, o atípico mental é
praticamente condenado a uma dessocialização que o acompanhará
até o final da sua vida. O que contraria diretamente o artigo 5°, inciso
XLVII, alíneas b e d, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, que proíbe que as sanções criminais, ainda que camuflada-
mente, tenham caráter perpétuo e de banimento.
Tão próximo quanto, principalmente no que a prisão revela de
pior, são as instituições que recebem os drogados que são interna-
dos compulsoriamente. Além de todos os efeitos prisionais devasta-
dores, elas privam o cliente de uma autonomia que não prejudicava
terceiros. O uso de drogas faz parte da independência pessoal e não
pode ser objeto de intervenção, sobretudo contra a vontade do usu-
ário. A eventual alegação de que a sua condição compromete a sua
capacidade de perceber e de decidir adequadamente o que é melhor
para si próprio esbarra no limite instransponível da ausência do seu
consentimento e da liberdade de entregar ao próprio corpo o des-
tino que lhe seja mais prazeroso. E, na linguagem foucaultiana, não
seria o corpo uma utopia? De sorte que, qualquer atitude de terceiro
pretensamente substitutiva da vontade do internado involuntário,
ainda que travestida de preocupação, não passa de uma invasão.
Existem outras instituições de sequestro total que, dependendo
da maneira como são administradas, rivalizam com a prisão quanto
ao grau de desumanidade com que tratam seus internos.
Duas delas são o asilo – local costumeiro de espera pela morte –,
e o orfanato – onde os deslocados são submetidos a todos os ele-
mentos que caracterizam um aprisionamento –, embora geralmente
de maneira menos invasiva e agressiva. Obviamente que a aproxi-
mação ou o distanciamento da prisão com o asilo, por exemplo, não
depende apenas de elementos objetivos. A percepção do próprio
internado, ainda que diversa da realidade, é importante para definir
ao menos subjetivamente o grau de semelhança ou diferença. E ela
pode vir exteriorizada por frases de decepção e protesto, cumulados
com permuta: “eu preferiria estar em uma prisão por ter praticado
70 Manifesto para Abolir as Prisões
um crime a ser deixado nesse asilo por meus parentes que somente
querem se livrar de mim”.
Outro instituto total de sequestro é a escola, principalmente por-
que ela impõe um conhecimento que pressupõe uma pasteurização,
na medida em que a vontade e as características do receptor (o alu-
no) são desprezadas. Mas, não apenas por isso. A escola se aproxi-
ma da prisão porque ela também pode estigmatizar profunda e ir-
reversivelmente. O que ela representa ou deixa de representar e o
que nela acontece ou deixa de acontecer é capaz de acompanhar um
aluno até o final de sua vida. Quem estuda em um colégio público de
péssima qualidade localizado na periferia tem grandes chances de
sequencialmente ficar impedido de modificar seu estatuto social e
econômico, autorrealizando a profecia.
27
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/
01/150127_bairro_humilde_pobreza_lf_cc>. Acesso em: 13 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 71
Nesse aspecto a segregação territorial, como a que experimentam
moradores da periferia, assume uma terrível característica de prisão
a céu aberto. Nela vigora um paredão de ordem que impossibilita a
mobilidade de dentro para fora, mas não de fora para dentro. Servin-
do como uma espécie de habitat para o turismo circense antropo-
lógico, nela atuam uma vigilância desconfiada, uma estigmatização
definitiva e a imposição de uma dor e de um sofrimento relevados
e substituídos por uma maquiada felicidade ufanista por morar em
uma comunidade de iguais.
Há ainda situações que se assemelham em parte às prisões, com
exceção da autonomia da vontade, pouco existente nestas e às vezes
presente naquelas. São hipóteses de restrição da liberdade pseudo-
emancipáveis.
É o caso dos pacientes dispostos em quarentena, cuja liberdade é
restringida com o fim de prevenir que um patógeno se espalhe. Ou
mesmo de pacientes de hospitais, impedidos de decidir o seu desti-
no ambulante. Enquanto não obtiverem alta médica, deverão ficar
internados.
Deve ser lembrado também o caso dos passageiros de transpor-
tes coletivos públicos, como ônibus, trens, barcos, etc. A liberdade
deles está restringida entre um ponto e outro, haja vista que as regras
de segurança do trânsito e da locomoção não permitem que os veí-
culos parem fora das estações. Todavia, eles têm autonomia para não
embarcarem, ou para desembarcarem na estação que lhes for mais
conveniente.
Não só a restrição da liberdade é algo cotidiano. O condiciona-
mento da liberdade também é diário. Como no caso em que as pes-
soas precisam deslocar-se até determinado semáforo para atraves-
sar a rua. A distância que vai do local onde elas se encontram até
o semáforo representa uma condição: a de aceitar a regra de que a
liberdade será deixada de lado para que a segurança de todos os en-
volvidos seja privilegiada. Sem isso seria difícil manter o princípio da
confiança.
O mesmo acontece com pessoas que aguardam que a senha que
retiraram em um departamento público seja chamada. Enquanto
28
Disponível em: <http://www.parana-online.com.br/editoria/policia/ne
ws/645380/?noticia=RAPAZ+CONFESSA+CRIME+PARA+LIVRAR+PAI+D
A+CADEIA>. Acesso em: 13 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 73
Ou do fugitivo que aceita retornar ao confinamento para poder
alimentar-se:
29
Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/
maringa/preso-que-fugiu-passa-fome-fora-da-cadeia-e-resolve-se-en-
tregar-aask7goo4cnjm6c7mpc1qckzy>. Acesso em: 10 jun. 2016.
74 Manifesto para Abolir as Prisões
de uma instituição tão horripilante, mentirosa e criminosa quanto a
prisão.
Ela é horrível porque mesmo quando tenta ser esteticamente bela
ela é a essência da maldade estéril, da crueldade injustificada e da se-
gregação perigosa. Mentirosa porque há mais ou menos 250 anos ela
repete a mesma promessa não cumprida: a de que ela acabará com a
criminalidade e nos protegerá a tempo. Ocorre que quando ela atua
ela aumenta os crimes em vez de diminuí-los, além de chegar tarde
demais, não conseguindo devolver o bem jurídico ao seu estado an-
terior de não ameaçado ou de não lesionado. E ela é criminosa por-
que para supostamente acabar com os crimes ela comete outros até
piores. Em uma aritmética simples podemos afirmar que atualmente
no Brasil por volta de 1.278 pessoas estão presas por terem praticado
o crime de sequestro30, 31. Agora vamos considerar o seguinte: a) que
em torno de 41%32 dos encarcerados estão presos provisoriamente,
o que representa quase metade da população enjaulada do país; b)
que perto de 37%33 deles serão absolvidos; e c) que nossa população
carcerária em 2014 era de 607.73134 enclausurados. Feitas as devidas
contas encontramos os seguintes resultados assustadores: a) em tor-
no de 250.000 pessoas estão presas provisoriamente, ou seja, sem
uma condenação definitiva transitada em julgado, conforme deter-
mina o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa
30
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, passim. Acesso em: 15 abr. 2016.
31
Embora um pouco diferentes, entendemos por bem somar a quantida-
de de pessoas presas pelo crime de sequestro e cárcere privado (artigo
148, do CP), com a de encarceradas pelo de extorsão mediante seques-
tro (artigo 159, do CP).
32
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em: 15 abr. 2016.
33
Ver <http://www.conjur.com.br/2014-nov-27/37-submetidos-prisao-
-provisoria-nao-sao-condenados-prisao>. Acesso em: 15 abr. 2016.
34
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf >. Acesso em: 15 abr. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 75
do Brasil de 198835; b) dessas, 92.000 serão tardiamente absolvidas,
tendo passado parte das suas vidas indevidamente na cadeia. Isso
significa que em 2014 o Estado aprisionador sequestrava por vol-
ta de 92.000 pessoas. O que equivalia a quase 0,05% da população
brasileira que era, naquele ano, de 202.768.56236 pessoas. Contando
no mínimo com a cumplicidade neutra de várias agências, o Estado
aprisionador sequestra 72 vezes mais corpos que a quantidade medi-
da desse crime quando praticado por pessoas físicas. É esse número,
comparado com os 1.278 presos por sequestro, que nos autoriza a
afirmar que os presídios brasileiros são criminosos. Eles incorrem no
crime genérico de sequestro em uma proporção 7.200% maior que a
de crimes que a prisão finge querer estancar.
Mas, toda prisão é ideologicamente má? Não, embora sua even-
tual eficiência ou bondade não seja suficiente para justificar a manu-
tenção da sua existência. Primeiro porque nenhuma prisão deixa de
ser seletiva só porque ela é limpa, tem boa alimentação, permite a
educação e o trabalho e trata dignamente seus internos. Para tanto,
basta questionar quem gostaria de nela habitar só para poder usu-
fruir essas qualidades. A obviedade retórica dessa pergunta, confir-
mada pela inegável ausência de voluntários no ambiente prisional,
dispensa a resposta. Em segundo lugar, sobretudo porque, como en-
sina a lição agambeniana, não se pode tomar a regra pela exceção. É
a exceção que explica a regra e ela própria. E não o contrário. No caso
brasileiro, a regra de que os presídios são fétidos, insalubres, penosos,
periculosos, desumanos, sádicos e impõem a dor e o sofrimento só
existe porque existem as exceções dos países nórdicos, por exemplo,
onde as prisões são o contrário disso. São essas exceções que provam
o equívoco das prisões brasileiras. Mas, são essas mesmas exceções
35
Em 17 de fevereiro de 2016, a maioria do Plenário do Supremo Tribu-
nal Federal entendeu que a pena pode ser cumprida após decisão de
segunda instância, modificando, assim, anterior entendimento sobre o
artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988.
36
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2014/08/popula-
cao-brasileira-ultrapassa-202-milhoes-de-pessoas>. Acesso em: 15 abr.
2016.
76 Manifesto para Abolir as Prisões
que também não deixam que consideremos que a regra de que as
prisões tropicais são inabitáveis seja considerada uma exceção. De
qualquer modo, nossa realidade prisional doméstica não equivale
ou sequer se assemelha à realidade cativante dessas prisões aliení-
genas. Querer justificar a manutenção das prisões nacionais usando
como paradigma as prisões da Suécia, da Holanda, da Noruega, etc.,
é uma ilusão e uma desonestidade perigosa na medida em que nos-
sas prisões, se algo não for feito, nunca serão como as desses países,
e justamente porque não há interesse em que elas sejam, pois é a sua
manutenção no estágio sucateado em que se encontram que retro e
autoalimenta o sistema e justifica a sua privatização. Em nosso mo-
delo doméstico as melhores condições das prisões público-privadas
apenas romantiza e atrai novos investimentos em uma indústria cujo
lucro exige um aumento na quantidade de presos. Mas, enquanto
essa máquina de gastar gente, que é a prisão publicizada, for lucra-
tiva, rendendo votos, dinheiro e audiência, ela não será modificada.
Para sê-lo é preciso que a sua privatização mostre-se pervertidamen-
te mais atraente. O que não é difícil de acontecer.
37
Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/noti-
cias/junho/mapa-do-encarceramento-aponta-maioria-da-populacao-
-carceraria-e-negra-1>. Acesso em: 10 jun. 2016.
78 Manifesto para Abolir as Prisões
Se o comércio ilícito de drogas for o enredo do drama prisional e a
pessoa for encaixada como traficante, ela terá muito mais chances de
ser aprisionada como inimiga da sociedade. Todavia, se o ator prin-
cipal desse comércio de mercadoria ilícita for uma pessoa blindada,
sua prisão será muito menos provável.
38
Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/g1-
-ve-diferencas-entre-apanhados-com-drogas.html>. Acesso em: 10 jun.
2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 79
67,7% DOS PRESOS POR TRÁFICO DE MACONHA TINHAM
MENOS DE 100 GRAMAS DA DROGA
[...] De acordo com levantamento do Instituto Sou da Paz com
dados do Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria
da Polícia Judiciária e do Núcleo de Estudos da Violência da Uni-
versidade de São Paulo (USP), mais de 67,7% dos encarcerados
por tráfico de maconha nas prisões do país foram flagrados com
posse de menos de 100 gramas da droga, sendo 14% deles com
quantidade inferior a 10 gramas – algo em torno de dez cigar-
ros. Aliado aos dados dos encarcerados também por tráfico de
cocaína – 77,6% com menos de 100 gramas –, 62,17% dos trafi-
cantes presos no país exerciam atividade remunerada na ocasião
do flagrante, 94,3% não pertenciam a organizações criminosas e
97% nem sequer portavam algum tipo de arma. Ou seja, eram ou
microtraficantes ou usuários39.
E:
39
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/2014-09-23/677-dos-
-presos-por-trafico-de-maconha-tinham-menos-de-100-gramas-da-
-droga.html>. Acesso em: 10 jun. 2016.
40
Disponível em: <http://www.conversaafiada.com.br/
brasil/2014/11/14/a-pf-e-o-helicoca-estranho-muito-estranho>. Aces-
so em: 10 jun. 2016.
80 Manifesto para Abolir as Prisões
aprisionável. Exemplo disso são as incontáveis prisões de pessoas
que não cometeram o crime pelo qual estão pagando. Além disso,
em razão de vários fatores existem condutas que são mais rotuláveis
como criminosas quando praticadas por certos inimigos, que outras.
Portanto, o fato de se etiquetar alguém como criminoso não resulta
necessariamente em seu aprisionamento. Não existe essa conexão
supostamente lógica do criminoso, do crime, da acusação, da culpa-
bilidade, da condenação e da pena, com a prisão. Como essa estra-
tégia permite a sua atuação arbitrária, ao poder confinante passa a
importar apenas que determinada pessoa, interessante e útil, possa
ser etiquetada como inimigo aprisionável, sem que ele tenha que for-
necer muitas explicações.
Tecnicamente, hoje em dia se acredita mais em um determinismo
que conduziria as pessoas a inescapavelmente praticar determina-
das condutas, que nelas como o resultado de uma escolha refletida
daquelas.
41
Disponível em: <http://tvtaquari.com.br/homem-e-preso-pela-pm-e-
-diz-que-traficava-drogas-por-falta-de-emprego/>. Acesso em: 13 jun.
2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 81
estratégicos. Assim, ele impede – ou, no mínimo, dificulta – que os
inimigos aprisionáveis escapem.
Para se construir o inimigo, praticamente:
a. são votadas leis que criam tipos penais que facilitem o aprisiona-
mento das classes dominadas, e não o das classes dominantes.
enquanto que:
42
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2016/03/demora-
-do-congresso-impede-governo-de-colocar-em-pratica-pacote-anti-
corrupcao>. Acesso em: 11 jun. 2016.
82 Manifesto para Abolir as Prisões
A Câmara prepara um projeto de lei para acelerar a identificação e
a punição de pessoas que criam páginas ofensivas e difamatórias
contra parlamentares na internet. O texto também vai responsa-
bilizar criminalmente os provedores, portais e redes sociais que
hospedam esses sites. A proposta, que tem o apoio do presidente
da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), está em fase final de elabora-
ção e deve ser apresentada em setembro pelo procurador parla-
mentar, deputado Cláudio Cajado (DEM-BA)43;
b. são realizadas averiguações e abordagens (“batidas policiais”),
em locais social e economicamente desfavorecidos, sobretudo
visando aos estereótipos de sempre.
43
Disponível em: <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/camara-
-quer-punir-quem-fala-mal-de-politico-na-internet/>. Acesso em: 13
jun. 2016.
44
Disponível em: <http://abordagempolicial.com/2013/01/pm-determi-
na-que-policiais-abordem-individuos-de-cor-parda-e-negra/>. Acesso
em: 11 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 83
Gráfico I.3: Processos criminais recebidos por assunto e por região45:
Região do Brasil
Tipo de crime Centro-
Nordeste Norte Sudeste Sul Total
Oeste
Crimes contra a
67.214 51.555 33.770 78.793 63.017 294.349
vida
Lesão corporal 81.593 14.293 19.476 40.750 32.634 188.746
Crimes contra o
222.974 76.202 87.248 210.397 159.092 755.913
patrimônio
Crimes de
tráfico ilícito e
77.943 39.199 35.675 93.961 82.623 329.401
uso indevido de
drogas
Crimes de
lavagem ou
ocultação de 110 880 47 143 127 1.307
bens, direitos ou
valores
Crimes de
949 247 528 922 1.643 4.289
tortura
45
Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal_2015/images/ANUA-
RIO_UM_RETRATO_9_de_setembro_de_2014.pdf>, p. 51. Acesso em:
11 jun. 2016.
84 Manifesto para Abolir as Prisões
Figura 42. Escolaridade da população prisional46.
Analfabeto 6%
Alfabetizado sem cursos regulares 9%
Ensino fundamental incompleto 53%
Ensino fundamental completo 12%
Ensino médio incompleto 11%
Ensino médio completo 7%
Ensino superior incompleto 1%
Ensino superior completo 1%
46
Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal_2015/images/ANUA-
RIO_UM_RETRATO_9_de_setembro_de_2014.pdf>, p. 58. Acesso em:
11 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 85
Lava Jato. Em Curitiba, sede das investigações, manifestantes co-
locaram nas ruas 10 mil máscaras em homenagem a Moro47.
47
Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/
importante-que-as-autoridades-eleitas-e-os-partidos-oucam-a-voz-
-das-ruas-diz-sergio-moro/>. Acesso em: 11 jun. 2016.
86 Manifesto para Abolir as Prisões
vítima de um sequestro, quando a sua vida a mercê da vontade
de “monstros” que se destoam completamente de um perfil do
que pode-se chamar de ser humano. Com todas as desigualdades
existentes no Brasil e no mundo nada justifica comportamentos
atrozes praticados por aqueles que se dizem sujeitos de direitos
humanos. Portanto, parabéns Rachel pelo dom da palavra e pela
sensibilidade! [sic]48
48
Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/02/ta-
-com-pena-adote-um-bandido.html>. Acesso em: 11 jun. 2016.
49
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=5kY1R9Tl21Y>.
Acesso em: 11 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 87
Após deixar que o caos se implantasse e depois de colher a ade-
são simpática das pessoas à sua cruzada contra o mal, bastava eleger
os inimigos e a maneira de utilizá-los de acordo com os seus inte-
resses (pessoais, empresariais, políticos, midiáticos, etc.). Quase que
unanimemente a maneira escolhida e aplaudida tem sido o aprisio-
namento.
Quem se debruçar sobre os inimigos escolhidos perceberá que
eles sempre pertencem a grupos cujas características são muito
genéricas (traficantes, afrodescendentes, ladrões). A razão é que a
amplitude dessa estereotipagem é o que facilita o enquadramento
daquele que personificará o inimigo previamente formatado. Não é
preciso destacar que com esses limites tão extensos o inimigo pode
ser qualquer um que se assemelhe ao manequim e pertença ao ma-
crossistema vulnerável.
São esses grandes grupos genéricos, contidos dentro do macros-
sistema dominado, que os agentes do poder prisional usam como
parâmetro para poderem atuar. É com base neles que o policial “esco-
lhe” o inimigo da vez, quando realiza uma abordagem.
50
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
cias/2013/01/23/ordem-da-pm-determina-revista-em-pessoas-da-cor-
-parda-e-negra-em-bairro-nobre-de-campinas-sp.htm>. Acesso em: 14
jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 89
lidade nessa questão”, diz Rafael Custódio, coordenador do pro-
grama de Justiça da Conectas. Os dados mostram que o número
total de presos provisórios aumentou 107% entre 2005 e 2013. [...]
Contribui para o cenário a falta de investimento dos governos em
alternativas penais – medidas aplicadas a presos já condenados
que permitem o cumprimento da pena fora da prisão. Segundo
dados de 2011 do Ministério da Justiça, só 5% (R$ 4,8 milhões)
dos recursos do Funpen (Fundo Penitenciário Nacional) foram
destinados ao apoio a penas e medidas alternativas. “Ao disponi-
bilizar mais recursos para a construção de presídios e muito me-
nos para as medidas alternativas, o governo estimula a lógica do
aprisionamento nos estados em detrimento de perspectivas que
rompam com a cultura do cárcere. É um recado muito claro de
que não há verdadeiro interesse em construir alternativas”, defen-
de Vivian Calderoni51.
51
Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/noticia/25378-mapa-das-
-prisoes>. Acesso em: 14 jun. 2016.
90 Manifesto para Abolir as Prisões
codes, que são os códigos ideológicos de um agente penitenciário,
um policial, um promotor ou um magistrado responsável pelo caso,
tendentes a dirigi-los a favor (agente punitivista) ou contra o confina-
mento (agente abolicionista).
Para além do acerto técnico que algumas das opções acima pos-
sam conter (o presidiário realmente é culpado), sua variedade, in-
coerência e contradição não deixam de provocar um desconforto
no cidadão leigo. Para ele é difícil compreender que o respeito ao
Estado democrático e social de direito – mesmo quando liberta um
culpado, em razão de uma prescrição etc. –, é mais importante para a
segurança jurídica de todos, que uma condenação apressada de um
inocente. Esta instabiliza todo o sistema que, a partir desse preceden-
te, pode agir ainda mais arbitrariamente do que já age, sobretudo
contra ele mesmo, na medida em que se torna mais fácil a eleição
aleatória e desmotivada de novos inimigos.
Esta percepção sobre a prisão evidencia que para o cidadão co-
mum a configuração completa do inimigo convinhável se inicia
com a escolha da conduta a ser hostilizada e com a fabricação do
seu molde (lei penal). Embora ela se encerre precocemente já com a
acusação de alguém. Seja ela formal (polícia) ou informal (ministério
público ou judiciário).
Isso ocorre porque a pessoa do povo prefere não se expor ao pe-
rigo. Por consequência, ela raciocina de modo a prevenir a defesa
dos bens que ela acredita lhe serem mais importantes. Com efeito,
ela tende a antecipar o seu juízo condenatório para antes da prisão.
Nesta hipótese, o seu plano defensivo segue a lógica tardeana em
que as pessoas que se sentem delirantemente perseguidas inventam
inimigos que justifiquem a sua angústia – momento a partir do qual
começam a acreditar que se elas se percebem ameaçadas é porque
existe um inimigo à espreita. Daí, para a conversão da crença em re-
alidade, é um pulo.
Com efeito, a prisão conveniente do inimigo passa a ser apenas a
confirmação de um julgamento que a pessoa já encerrou há muito
tempo, e que quase sempre é irreversível. E exatamente porque ele
faz com que a presunção se inverta, passando da inocência para a
52
Disponível em: <http://g1.globo.com/goias/noticia/2016/06/agente-
-penitenciario-e-preso-suspeito-de-vender-drogas-na-cadeia-em-go.
html>. Acesso em: 10 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 93
prisão atrai o apoio popular. No outro grupo, e independente do que
fizeram ou deixaram de fazer, entram os inconvenientes, os indigna-
dos e os resistentes. Sua prisão é improvável, para não dizermos im-
possível, mesmo que haja certo clamor popular. Aqueles precisam de
pouco esforço para serem aprisionados; estes não o são, ainda que se
esforcem bastante para serem.
Graficamente, a submissão ou não à prisão pode ser assim repre-
sentada:
Aprisionáveis Intocáveis
E:
A PRISÃO DE CUNHA
Lavagem de dinheiro, definiu o STF, é crime permanente. Eis uma ra-
zão para encarcerá-lo.
[...] No caso Cunha, a consumação delinquencial se alonga, com
ocultação permanente de capitais em contas correntes. Tudo não
declarado no Brasil, com evasão de divisas e dinheiro em odor
de corrupção. Trocado em miúdos, pode-se dar voz de prisão em
flagrante a Cunha. Como reforço, convém lembrar o caso Delcídio
do Amaral, preso preventivamente, tendo o ministro relator Teori
Zavascki sustentado tratar-se o crime de formação de organiza-
ção criminosa, de natureza permanente, e que poderia, até, ense-
jar prisão em flagrante54.
Já do segundo:
53
Disponível em: <http://www.conexaorondonia.com/materia/menino-
-pobre-acha-carteira-com-r$-1.600-00-e-faz-questao-de-devolver-pa-
ra-o-dono.html>. Acesso em: 14 jun. 2016.
54
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/revista/881/a-prisao-
-de-cunha>. Acesso em: 14 jun. 2016.
96 Manifesto para Abolir as Prisões
ambiente. Daí ele veio e me deu um murro. Quando eu estava no
chão o assessor dele me puxou e deslocou meu dedinho”, conta.
‘‘‘O senhor está preso’, ele dizia. ‘Eu sou o poder judiciário; vocês,
seus favelados, um lixo a mais um a menos’. A gente se sente ame-
açado pelo poder judiciário’’, relata a moradora55.
Seu raio de ação foi tão ampliado que a prisão está sendo convo-
cada até para validar uma excepcional melhora do enjaulado, con-
vertendo-o de inimigo útil em amigo mais útil ainda.
55
Disponível em: <http://www.ocafezinho.com/2016/05/22/ele-nao-po-
de-me-prender-eu-sou-desembargador-um-retrato-da-justica-brasilei-
ra/>. Acesso em: 14 jun. 2016.
56
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-dez-05/juiz-nao-man-
dar-prender-garantir-integridade-fisica-reu>. Acesso em: 14 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 97
TRICÔ FEITO POR PRESOS DE JUIZ DE FORA CHEGA À SÃO
PAULO FASHION WEEK
Peças em tricô e crochê fazem parte do desfile da coleção de in-
verno 2015. Produção feita pelos presos já é exportada para 11
países.
Oito detentos da Penitenciária Professor Ariosvaldo Campos Pi-
res, em Juiz de Fora, produziram 20 peças em tricô e crochê para
a coleção de inverno 2015 da grife Iódice, que será apresentada
nesta quarta-feira [...], durante a São Paulo Fashion Week – prin-
cipal evento de moda do país, que segue até sexta-feira [...], na
capital paulista. Os presos integram o projeto Flor de Lotus, que
atualmente trabalha com a reinserção social de 18 homens. “[...]
Eu não esperava que estes homens pudessem fazer tricô e crochê.
O comportamento deles mudou e hoje é exemplar. Agora, acredi-
to que o ser humano pode superar todas as coisas. O que precisa
é oportunidade”, disse a diretora57.
57
Disponível em: <http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noti-
cia/2014/11/trico-feito-por-presos-de-juiz-de-fora-chega-sao-paulo-
-fashion-week.html>. Acesso em: 14 jun. 2016.
98 Manifesto para Abolir as Prisões
a refração do poder prisional, exercida respectivamente pelo inimigo
ou pelo amigo, são bem mais estáveis e dificilmente são modificá-
veis. Geralmente quem é invulnerável à prisão, vitalícia e hereditaria-
mente continuará sendo. E quem não é, além de já não o ser em vida,
acabará inevitavelmente transmitindo essa certeza do confinamento
aos seus descendentes e a quem lhe seja próximo.
Para os primeiros, a liberdade não é o único prêmio.
E:
58
Disponível em: <http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noti-
cia/2015/02/perrella-aquele-do-escandalo-do-helicoptero-com-cocai-
na-pode-ocupar-cargo-na-mesa-do-senado.html>. Acesso em: 10 jun.
2016.
59
Disponível em: <http://www.brasil247.com/pt/247/esporte/233594/
Filho-de-Perrella-vai-assumir-Secretaria-do-Futebol.htm>. Acesso em:
10 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 99
Para os segundos, a prisão não é o único castigo.
E:
60
Disponível em: <http://www.correiodoestado.com.br/cidades/familia-
-presa-com-mais-de-meia-tonelada-de-maconha-na-br-163/273974/>.
Acesso em: 10 jun. 2016.
61
Disponível em: <http://www.parana-online.com.br/editoria/cidades/ne
ws/61746/?noticia=FAMILIARES+DE+PRESOS+SOFREM+COM+PRECO
NCEITO>. Acesso em: 10 jun. 2016.
100 Manifesto para Abolir as Prisões
Para os primeiros é como se vigesse um modelo implícito de cor-
porativismo perante o qual algumas pessoas entabularam um acor-
do tácito cuja cláusula principal estaria vazada nos seguintes termos:
somos todos iguais, embora nós sejamos mais iguais na insubmissão
à prisão que os outros.
62
Disponível em: <http://brasileiros.com.br/2016/06/o-acordao-de-sena-
dores-para-barrar-a-prisao-de-renan-e-juca/>. Acesso em: 10 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 101
Quando muito, de vez em quando admite-se que essa regra seja
reinterpretada, capitulando-a diante da necessidade de se proteger
a coesão do próprio grupo dominante-influente contra eventuais re-
beldias, traições ou insatisfações do mais novo inimigo convertido.
Isso leva a crer que a condição influente da pessoa não é suficiente
para mantê-la distante da prisão. É preciso que as demais pessoas
tão ou mais influentes não vejam vantagem em seu encarceramento.
Esta ressalva é importante porque um policial pode ser tão ou
mais influente que um político figurão de Brasília. A diferença maior
entre ambos nem é tanto a influência sobre a questão prisional, por-
que aquele interfere no nível atacadista, enquanto este, no varejista,
trabalhando ambos hierarquicamente em uma relação de continen-
te e conteúdo. Aquele define os limites da configuração conveniente
dos inimigos e este atua livremente dentro deles. A grande diferença
está na capacidade de resistência e de indignação oferecida em uma
eventual disputa, vencida eloquentemente sempre pelo mais tenaz,
e que feliz ou infelizmente nunca deixou de coincidir com o fabrican-
te interesseiro, revelado na oração tolstoiana encartada em A escravi-
dão do nosso tempo: “as leis não foram feitas para atender à vontade
da maioria, mas sim à vontade daqueles que detêm o poder.”
Desgraçadamente a prisão assume, em tempos de paz, uma fun-
ção de convencimento, usufruída por pessoas que sabem que quem
usa ou ameaça usar a prisão tem grandes chances de atrair para si
a verdade, e, por consequência, captar a simpatia e a concordância
adesiva do povo. A partir daí, fica fácil manter-se na condição de de-
cidir ou influir sobre a conveniência do aprisionamento daquele que
for eleito como inimigo. Se queremos parecer mais próximos da ra-
zão em uma disputa basta que disparemos uma acusação e convide-
mos a prisão para estar ao nosso lado. Nos dias de hoje basta apontar
o dedo indicador: se o acusado for encarcerado, gritarão que a justi-
ça foi feita; se permanecer solto ou for inocentado, acreditarão mais
ainda na sua culpa, adicionada, agora, por uma pitada de conivência.
Tamanha é a força da sua companhia que a carta, Eu acuso...!, escri-
ta por Émile Zola, foi mais persuasiva que a condenação do capitão
injustiçado, derivada de um procedimento só formalmente subme-
tido ao contraditório. No caso, a pretensão de absolvição do capitão
63
Disponível em: <http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/03/po-
licial-de-folga-prende-suspeito-de-assalto-no-centro-de-joao-pessoa.
html>. Acesso em: 27 jun. 2016.
64
Disponível em: <http://www.rondoniagora.com/geral/noticia/2013/07/
policia-comete-equivoco-e-prende-guga-errado-filho-de-herminio-
-nunca-foi-servidor-da-camara-confira-documentos.html>. Acesso em:
27 jun. 2016.
104 Manifesto para Abolir as Prisões
sários para combater a praga que se alastra incessantemente (novos
inimigos não param de brotar de todos os lugares).
Como o problema prisional nunca tem solução, aumentando a
cada dia graças ao próprio trabalho dos seus operadores, com o tem-
po eles transformam essa sua inquietude em obsessão. Sem conse-
guir suportá-la mais, eles amplificam os eventuais momentos de abs-
tinência em perseguições mais violentas e insaciáveis. Dessa forma
eles concentram nos inimigos que encontram toda a angústia que
eles acumularam desde a última prisão.
E para os policiais a questão é muito mais estressante e agoni-
zante. É que a partir de um determinado momento eles começam a
perceber que as suas forças não conseguem vencer a criminalidade.
Entendendo, com razão, estarem sozinhos e próximos demais dos
conflitos com os supostos inimigos, começam eles a não suportar
sequer a possibilidade de ver frustrada a atividade que finge tran-
quilizá-los e distraí-los, a ponto de permitir-lhes continuar acreditan-
do que eles pertencem ao microssistema dos dominantes. Mas, para
que essa acreditação seja forte o suficiente e renove as forças que
eles dedicam à sua empreitada, eles precisam parar de racionalizar as
questões envolvidas e começar a naturalizá-las.
Então, em cada canto escuro, beco sem saída, viela estreita e la-
deira íngreme eles começam a espremer as situações até encontra-
rem um novo inimigo aprisionável que deixa de ser encarado como
65
Disponível em: <http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/03/po-
licial-de-folga-prende-suspeito-de-assalto-no-centro-de-joao-pessoa.
html>. Acesso em: 27 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 105
pessoa e passa a ser analisado como solução para a manutenção e
reforço do seu status quo – aquele anterior a toda a desgraça trazida
pelos aprisionamentos que eles próprios conduziram. Como esses
aprisionamentos têm apenas um efeito farmacêutico (remediador),
entre a dúvida de não serem os culpados pelo mal que os aflige e a
esperança de conseguirem reverter a sua condição, eles precisam rei-
naugurar suas caçadas e ressuscitar as prisões que eles mesmos ele-
geram como redentoras da sociedade. Atormentados pelo evidente
insucesso das suas investidas prisionais, haja vista que os crimes só
aumentam, eles precisam assumir uma posição cada vez mais con-
servadora, a única capaz de requentar o saudoso destaque que ou-
trora tiveram, sobretudo diante da massa perseguida, que não tem
força para trocar de posição com eles. Depois de vários desses ciclos,
eles decididamente enxergam a prisão não como um fim, mas como
um meio de defender seus interesses. A partir daí eles são definitiva-
mente absorvidos pelo poder prisional e passam a ser mais uma das
suas vítimas. Para eles o poder prisional ganhou uma nova utilidade.
Para o poder prisional eles passaram a ser operadores úteis porque
foram adestrados com sucesso. Só quando for tarde demais é que
perceberão o quanto são descartáveis.
66
Disponível em: <http://www.goiasreal.com.br/noticia/3614/desvalori-
zacao-da-pm-um-policial-e-assassinado-a-cada-32-horas>. Acesso em:
27 jun. 2016.
106 Manifesto para Abolir as Prisões
1.3 A QUEM E PARA QUE ELE SERVE?
A prisão castigo (privação da liberdade como um fim em si mes-
mo), não foi eleita uma espécie de substitutivo dos sofrimentos cor-
porais da prisão armazém (privação de liberdade visando a evitar a
fuga do futuro executado), porque ela apenas os maquiou em outro
modelo igualmente torturante. Nele a dor foi parcelada em longas
prestações. Um tipo de pantógrafo que repete no cárcere os proble-
mas sociais.
Ao cozinhar em banho-maria os sacrifícios que impõe a prisão de-
monstra que o seu giro formal não se deu em razão de uma preocu-
pação com o condenado. E o calamitoso estado prisional nacional é
a maior prova disso.
Em hipótese alguma a prisão funciona para os fins previstos no
artigo 59 do Código Penal, que prevê que a pena deve servir como
retribuição e como prevenção dos crimes. A não ser que se entenda a
retribuição como vingança e a prevenção como técnica para se evitar
a modificação do estado desigual da sociedade. Ela não presta para
proteger a sociedade e as pessoas contra os crimes e os criminosos.
Se servisse, milhares de pessoas não seriam vítimas diárias de crimes
praticados, e o problema estaria resolvido. Ou pelo menos estaciona-
do. A prisão se presta a outras finalidades, igualmente menos nobres.
Basicamente, a prisão serve como braço sequestrador-controlador
dos dominantes (os capitalistas, os empresários morais, a autoridade
que pretende exercer seu capricho eventual, etc.), contra os domina-
dos (pessoas descapitalizadas, consumidores inativos, empregados,
subalternos, dissidentes, inaptos, sem papel, invisíveis sociais, etc.).
Ela também serve para impor a vontade de alguns – que em determi-
nado momento ou quase sempre sejam invulneráveis –, sobre outros
– que momentaneamente ou quase sempre estejam vulneráveis. É
dizer, ela existe para manter as estruturas coletivas (macroestruturas)
ou individuais (microestruturas) de poder, garantindo que o desejo
de alguém ou alguns se sobreponha ao de outra ou outras pessoas.
Diretamente, o aprisionamento pode ser a finalidade em si mes-
mo. Como quando alguém deseja que outro seja encarcerado ape-
nas para satisfazer uma vontade sádica sua ou de terceiro.
67
Disponível em: <http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/policial-
-prende-homem-que-esbarrou-nele-e-nao-pediu-desculpas.html>.
Acesso em: 8 jun. 2016.
108 Manifesto para Abolir as Prisões
(PDP) é uma iniciativa que visa à valorização dos integrantes das
forças de segurança estaduais. Ele será destinado a profissionais
que atuam em dezenove Áreas Integradas de Segurança Pública
(Aisps) que bateram a meta semestral de redução dos Crimes Vio-
lentos Letais Intencionais (CVLIS) em 6% e de duas que bateram a
submeta de diminuição entre 3 e 5,9%. [...]
Desde logo já é possível notar que a prisão não possui uma lógi-
ca, muito menos uma vinculação estável com o crime, o criminoso,
a acusação, a culpabilidade, a condenação e a pena. E, como ela se
presta para garantir a aquisição ou a manutenção de espaços, vonta-
des e privilégios, ela acaba repetindo, no âmbito prisional, as desvan-
tagens observadas por certos grupos sociais. Dessa maneira a prisão
funciona para garantir que em determinados conflitos, criminais ou
não, entre um membro da Classe A e outro da E, aquele consiga so-
brepor a sua vontade à deste, sob pena dele ser encarcerado caso se
recuse a atendê-la.
68
Disponível em: <http://www.diarionewsbahia.com.br/noticias.php?cod
noticia=8283>. Acesso em: 8 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 109
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) analisa a conduta do juiz
João Carlos de Souza Correa, no episódio em que o magistrado
deu voz de prisão a uma agente de trânsito, após ser multado em
uma blitz da Lei Seca no Rio de Janeiro [...]. No episódio, ocorrido
em fevereiro de 2011, o magistrado estava sem Carteira Nacional
de Habilitação e placas do veículo. A Corregedoria Nacional de
Justiça, vinculada ao CNJ, decidiu revisar o Processo Administra-
tivo Disciplinar (PAD) contra o juiz, após o Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro (TJ-RJ) entender que João Carlos de Souza Correa
não cometeu nenhuma irregularidade e julgar improcedente o
pedido. A comissão responsável da corregedoria vai reavaliar a
decisão69.
69
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/11/
cnj-analisa-conduta-de-juiz-que-deu-voz-de-prisao-agente-em-blitz-
-no-rio.html>. Acesso em: 15 jun. 2016.
110 Manifesto para Abolir as Prisões
“TODOS SÃO IGUAIS E NINGUÉM ESTÁ IMUNE, DIZEM
ASSOCIAÇÕES DE JUÍZES
[...] Em nota, a entidade [AJUFE] repeliu ataques contra a opera-
ção e disse que “ninguém está imune” à investigação penal e ao
processo criminal, se, eventualmente tiver cometido alguma in-
fração penal ou integrar organização criminosa”. [...] O texto [da
AMB] diz também que a entidade “defende a investigação e a
punição dos atos de corrupção, atendendo ao princípio de que
todos são iguais perante à lei e têm o direito à ampla defesa e ao
contraditório70.”
Entretanto:
70
Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/no-
ticia/2016/03/associacao-de-juizes-federais-nega-abuso-em-decisoes-
-da-lava-jato.html>. Acesso em: 9 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 111
trativo, dez dos 18 desembargadores federais votantes decidiram
pela pena máxima, que é a aposentadoria com vencimentos pro-
porcionais71.
71
Disponível em: <http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2015/12/
juiz-macario-judice-e-condenado-aposentadoria-compulsoria-no-es.
html>. Acesso em: 15 jun. 2016.
112 Manifesto para Abolir as Prisões
Formal e temporalmente, podemos dividir a prisão em duas ca-
tegorias. A de ser um depósito que, evitando a fuga, armazenava os
condenados até que eles pudessem servir de diversão nas arenas ou
serem executados. No primeiro caso o aprisionado teria uma morte
indireta. Além de não morrer pelas mãos de um representante do
poder, poderia sobreviver aos combates durante algum tempo. No
segundo, ele seria diretamente morto por um operador do poder.
Em ambos os casos, embora não possamos afirmar que houvesse
certa preocupação com a integridade do custodiado, também não é
possível acreditar no contrário, seja porque havia interesse em man-
ter os gladiadores relativamente incólumes, visto que muitos não
passavam de o investimento de alguém, seja porque o período entre
a sua estocagem e a sua execução era curto, reduzindo o tempo ne-
cessário para a dilapidação do seu corpo.
A outra categoria de prisão, que substituiu a anterior apenas for-
malmente, revela-se como um castigo em si mesmo. Nela a punição é
a própria privação da liberdade, juntamente com a imposição de um
sofrimento e de uma vingança perigosa e estéril.
Funcionalmente, porém, não podemos dizer que a prisão de hoje
é um avanço do modelo prisional que a antecedeu. Também não po-
demos afirmar que as técnicas prisionais originais foram abandona-
das e abolidas. O mais prudente é acreditar que a tecnologia prisional
atual nada mais tem feito que acumular historicamente todos os fra-
cassos da sua antecessora. Juntamente com seus próprios defeitos,
frustrações e conveniências.
Por meio de uma atualização ratificante e aprofundante ela tam-
bém inventou sadicamente novos experimentos que foram se sedi-
mentando com o tempo. Desde que assumiu seu posto ela vem aper-
feiçoando a sua própria falência mediante a revisitação de todas as
suas estratégias prisionais ultrapassadas e falidas. Reusando-as diária
e teimosamente em um nível compulsório de sofrimento que inve-
jaria o mais tirano dos suseranos. Isso significa que as prisões atuais
continuam servindo como armazéns.
72
Disponível em: <http://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2014/04/
presidio-de-pedrinhas-registra-sexta-morte-de-detento-em-2014.
html>. Acesso em: 8 jun. 2016.
114 Manifesto para Abolir as Prisões
APESAR DE LEIS, EX-PRESOS ENFRENTAM RESISTÊNCIA NO
MERCADO DE TRABALHO
“Liberdade virou tormenta”, diz jovem que ficou sem emprego
após ser solto. Estados passam a determinar cotas de ex-detentos
em empresas.
[...] a legislação trabalhista não fala, especificamente, se a empresa
pode ou não pedir atestado de antecedentes criminais na contra-
tação. De acordo com o juiz do trabalho Marcelo Segal, o assunto
é polêmico, mas a solicitação pode ser considerada discrimina-
tória e inconstitucional. Ele diz que, em alguns casos, porém, a
exigência pode ser válida por conta da função a ser exercida pelo
trabalhador73.
Igualmente:
73
Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noti-
cia/2010/12/apesar-de-leis-ex-presos-enfrentam-resistencia-no-merca-
do-de-trabalho.html>. Acesso em: 8 jun. 2016.
74
Disponível em: <http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/01/ex-
-detentos-do-rio-de-janeiro-relatam-dificuldades-de-arrumar-empre-
go>. Acesso em: 8 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 115
Se antes do surgimento da prisão como sanção em si mesma (cas-
tigo), os efeitos da pena criminal eram absolutos e se prolongavam
no tempo (morte do condenado na arena ou no patíbulo), hoje em
dia eles não deixaram de ser irreversíveis, durando até depois da
morte do aprisionado, de sorte que o aprisionamento atrai uma série
de prejuízos e consequências negativas que irão acompanhá-lo pelo
resto da sua vida, mesmo que a prisão tenha sido provisória e ainda
que o preso seja posteriormente julgado inocente.
75
Disponível em: <http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-02-
14/inocente-preso-por-engano-ha-um-ano-deixa-a-cadeia.html>.
Acesso em: 15 jun. 2016.
116 Manifesto para Abolir as Prisões
SOBRE A SITUAÇÃO DA MATERNIDADE
PRESAS GRÁVIDAS: Entre fevereiro e março de 2008, 1,24% das
mulheres presas encontravam-se grávidas.
LACTANTES: No mesmo lapso temporal, existiam 0,91% de mu-
lheres encarceradas em período de amamentação.
COM FILHOS: Constatou-se que 1,04% das presas possuem filhos
em sua companhia. O tempo de permanência com a mãe no am-
biente prisional varia entre 4 meses e 7 anos de idade76.
76
Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_ci-
vel/cadeias/doutrina/Mulheres%20Encarceradas.pdf>. Acesso em: 8
jun. 2016.
77
Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/10/mas-
sacre-que-matou-111-presos-no-carandiru-completa-20-anos.html>.
Acesso em: 8 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 117
O BRASIL ATRÁS DAS GRADES
O sistema está tão sobrecarregado que doentes em estado grave
ou mesmo em estado terminal permanecem juntos aos demais pre-
sos nas delegacias. Dois meses antes da inspeção da Human Rights
Watch no Depatri, um preso morreu de meningite. Um de seus ex-
-colegas de cela descreveu o que aconteceu: Ele tinha vinte e cinco
anos, era negro. Ele estava doente por um mês e ficava deitado no
chão, suando como um louco. Eles levaram ele para pegar ar fresco
umas vinte vezes. Uma vez eles levaram ele para o posto de saúde.
Ele sempre pedia para ver um médico. Finalmente, eles levaram ele
quando estava claro que ele estava quase morto, e os carcereiros fa-
laram depois que ele tinha morrido. Na mesma delegacia, cerca de
um mês depois, um preso epilético faleceu. “Ele teve um ataque epi-
lético e começou a bater a cabeça nas barras da cela. Ele foi levado
para o hospital e depois voltou. Ele morreu na sala de visita”. Embora
estatística abrangente em nível nacional não tenha sido compila-
da, acredita-se que Aids e tuberculose – geralmente juntas – são as
principais causas das mortes nos presídios do Brasil. Muitos presos
morrem dessas doenças após terem recebido tratamento médico
insuficiente ou nenhum. Presos nos distritos policiais de São Paulo
não recebem medicamentos para Aids, embora recebam tratamen-
to externo para tuberculose. Na maioria dos presídios estaduais, os
presos doentes não são transferidos para um hospital ou enfermaria
antes de chegarem a um estado avançado ou terminal da doença.
(Segundo as normas internacionais, presos portadores do vírus HIV
que ainda não demonstram os sintomas da Aids não são segrega-
dos de outros presos.). Apesar da previsão do indulto humanitário
concedido, teoricamente, aos presos doentes em estado terminal,
obstáculos processuais e outros retardamentos implicam que, na
prática, poucos presos são beneficiados a tempo. Pelo menos cin-
quenta e oito presos da Casa de Detenção morreram durante o ano
da nossa visita ao estabelecimento, a maior parte por Aids e tuber-
culose. Um desses presos faleceu de Aids apenas alguns dias antes
da nossa chegada; uma anotação no livro de registros da enfermaria
descrevia as circunstâncias de sua morte78.
78
Disponível em: <https://www.hrw.org/legacy/portuguese/reports/pre-
sos/medica2.htm>. Acesso em: 8 jun. 2016.
118 Manifesto para Abolir as Prisões
Dramaticamente:
79
Disponível em: <http://acritica.uol.com.br/manaus/Inocente-violenta-
do-cadeia-contrai-Aids_0_434356611.html>. Acesso em: 15 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 119
E a situação dos homicídios por omissão estatal no sistema prisio-
nal é tão grave que o Supremo Tribunal Federal, em março de 2016,
julgando o Recurso Extraordinário 841526, unanimemente decidiu
que: “a morte de detento em estabelecimento penitenciário gera res-
ponsabilidade civil do Estado quando houver inobservância do seu
dever específico de proteção80.”
De todo modo, se equivoca quem afirma que o método de pu-
nição evoluiu com o surgimento da prisão sanção. Se antes existia a
pena da proporcionalidade – como o olho por olho, dente por dente,
mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por feri-
da, golpe por golpe81 –, da Lei de Talião, hoje observamos uma tenta-
tiva perigosa, infeliz, violenta e inútil de proporcionalidade mediante
a função de retribuição equivalente da pena.
Com a prisão atual, o pagamento do bem ofendido – que no pas-
sado era feito mediante a lesão de um bem idêntico –, migra para a
perda da liberdade, de sorte que esse custo não deixa de ser uma
retribuição equivalente na medida em que em nossa sociedade ca-
pitalista todo crime é um crime contra o Estado e contra a sociedade
e tem como contrapartida proporcional o tempo que seria dedicado
à produção de bens pela vítima, agora substituída pelo condena-
do. Dessa forma, além do trabalho do encarcerado ser apresentado
como se fosse um favor ao mesmo, o que ele faz com o tempo que
lhe é sequestrado serve como substituição da força de trabalho per-
dida com a morte da vítima.
De lambuja o Estado ainda tenta deixar de gastar. Desde 2015 está
tramitando no Senado o Projeto de Lei n° 580, de autoria do Senador
Waldemir Moka, cujo conteúdo é:
80
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=313198>. Acesso em: 8 jun. 2016.
81
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém, Gênesis 2. São Paulo: Paulinas,
1980, Êxodo 21: 23 a 25, p. 137.
120 Manifesto para Abolir as Prisões
EMENTA:
EXPLICAÇÃO DA EMENTA:
82
Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/mate-
rias/-/materia/123021>. Acesso em: 8 jun. 2016.
83
Disponível em: <http://www.ocafezinho.com/2015/08/23/1o-de-julho-
-sobre-sonhos-embalados-a-vacuo/>. Acesso em: 8 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 121
Ou mesmo diretamente, mas ainda de maneira desonesta:
Bem como:
84
Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noti-
cias/68491/presidios+privados+nao+sao+melhores+do+que+os+publ
icos+dizem+especialistas.shtml>. Acesso em: 9 jun. 2016.
85
Disponível em: <http://www.jb.com.br/rio/noticias/2015/08/14/primei-
ro-presidio-privado-do-estado-do-rio-sera-inaugurado-em-resende/>.
Acesso em: 9 jun. 2016.
122 Manifesto para Abolir as Prisões
QUANTO MAIS PRESOS, MAIOR O LUCRO
[...] Um preso “custa” aproximadamente R$ 1.300,00 por mês, po-
dendo variar até R$ 1.700,00, conforme o estado, numa peniten-
ciária pública. Na PPP [Parceria Público-Privada] de Neves, o con-
sórcio de empresas recebe do governo estadual R$ 2.700,00 reais
por preso por mês e tem a concessão do presídio por 27 anos,
prorrogáveis por 3586.
86
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 15 jun. 2016.
87
Disponível em: <http://noticias.r7.com/minas-gerais/minas-bancara-
-prejuizo-se-lotacao-de-presidio-privado-diminuir-08062014>. Acesso
em: 9 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 123
-o a uma mera ferramenta, a um mero objeto quando comparado
com as demais pessoas, consideradas sujeitos de direitos. Durante a
sua estada ele não passa de uma fôrma, porque é manipulado como
exemplo para os demais. E fôrmas não são pessoas, são moldes. E
modelos nunca terão o conteúdo daquilo que eles modelam.
Atualmente o que tem motivado o aprisionamento dos inimigos
são os lucros que a sua entrada, a sua manutenção, a sua saída e o seu
retorno à prisão geram à indústria do encarceramento. É como se a
prisão funcionasse como uma espécie de alfândega que cobra pelo
fluxo de pessoas e pela sua estocagem, em seus armazéns. Quanto
mais pessoas ocuparem menos espaço, maior o lucro.
88
Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noti-
cias/68491/presidios+privados+nao+sao+melhores+do+que+os+publ
icos+dizem+especialistas.shtml>. Acesso em: 9 jun. 2016.
124 Manifesto para Abolir as Prisões
CPI DO SISTEMA CARCERÁRIO DEVE SUGERIR AUMENTO DA
PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS, MEDIDA CRITICADA POR
ESPECIALISTAS
[...] Ao longo de pouco mais de 180 dias, parlamentares – em sua
maioria ligados à Bancada da Bala – viajaram pelo Brasil, visitando
as piores prisões, e realizaram audiências públicas em Brasília, a
fim de ouvir diversos setores da sociedade acerca do tema. Uma
das soluções – senão a maior – a ser apontada pelo relatório final
da CPI poderá ser a redenção ou a pá de cal nas penitenciárias
brasileiras: a sugestão de aumentar a privatização das prisões.
“Vai aparecer esse tema. Na minha opinião, terceirizar é um avan-
ço para governos estaduais que não estão conseguindo gerir as
suas cadeias. Vimos em alguns Estados, que possuem sistemas
terceirizados, quadros bastante satisfatórios.” [...] Fraga apoia a
sua opinião na necessidade de alternativas para o quadro atual.
De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Peni-
tenciárias (Infopen), divulgado no dia 23 de junho deste ano pelo
Ministério da Justiça, o Brasil conta com uma população carcerá-
ria de 607.731 pessoas, sendo superado apenas por Estados Uni-
dos (2.228.424 pessoas), China (1.657.812) e Rússia (673.818). “Te-
mos que diminuir a reincidência e aumentar o acesso ao trabalho.
Em todas as cadeias que visitamos, os presos nos pediam para
trabalhar e estudar, era unânime”, afirmou Fraga, que lamentou si-
tuações como a que testemunhou no Complexo Penitenciário de
Pedrinhas, em São Luís (MA), na qual celas para dez presos abri-
gavam até 40, em condições que o deputado descreveu como
“sub-humanas”. “Vimos avanços em presídios com percentual de
terceirizados”, emendou89.
89
Disponível em: <http://www.brasilpost.com.br/2015/08/04/privatiza-
cao-prisoes-brasil_n_7912660.html>. Acesso em: 9 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 125
tação fabrica (reprodução da clientela, desvio secundário, regressão,
atipicidades mentais, etc.).
90
Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/presidios-do-
-rio-nunca-estiveram-tao-superlotados-sao-48-mil-presos-para-27-mil-
-vagas-19254729.html>. Acesso em: 8 jun. 2016.
126 Manifesto para Abolir as Prisões
Mas, se a prisão não está funcionando, por que ela exerce esse
fetiche nas pessoas a ponto de continuar existindo sem que a maioria
delas reclame sua extinção?
91
Disponível em: <http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&
cod=87533>. Acesso em: 28 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 129
de atuação do órgão, cada vez mais submetido e incorporado à
estrutura do governo.” O documento é também uma autocrítica
da Pastoral, explicou o advogado. Segundo ele, houve erro políti-
co em apoiar decisões do Comitê que terminaram por afastar re-
presentantes dos movimentos sociais. “Decidimos não mais ficar
emprestando legitimidade a um Comitê descaracterizado, sem
compromisso com o combate à tortura e sem interesse de impor
freios à barbárie desencadeada todos os dias pelas forças repres-
sivas do Estado.” A Pastoral protesta também contra o que chama
de política de encarceramento no País. [...] [sic]92.
92
Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/blogs/blog-da-ga-
roa/pastoral-carceraria-rompe-com-comite-de-combate-a-tortura/>.
Acesso em: 7 jul. 2016.
130 Manifesto para Abolir as Prisões
A PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS
Comparativamente ao modelo estatal, as vantagens da PPP são
muitas. Há benefícios econômicos e gerenciais facilmente de-
monstráveis.
[...] Os resultados desta experiência foram muito satisfatórios.
Sobretudo quando o parâmetro comparativo são os obsoletos e
mal geridos presídios estatais. [...] o novíssimo modelo da Parceria
Público-Privada (PPP), introduzido no país em 2005, pode signifi-
car um instrumento relevante a este fim. [...] Comparativamente
ao modelo estatal, as vantagens da PPP são muitas. Há benefícios
econômicos e gerenciais facilmente demonstráveis. Em primeiro
lugar, a execução destes serviços pela iniciativa privada é mais efi-
ciente e econômica que a prestação direta estatal. Em segundo
lugar [...] haverá um incremento no papel de controle e de regu-
lador. [...] Em terceiro lugar, a PPP permite também a melhoria do
controle social sobre os custos dedicados ao custeio do sistema93.
93
Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/a-
-privatizacao-dos-presidios-dym687qm71s0ismfdeqs4mzwu>. Acesso
em: 15 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 131
“ESTAMOS SENDO TRATADOS COMO FERAS SELVAGENS”,
DIZ PRESO DE PEDRINHAS (MA)
“A gente sabe que está aqui porque estamos pagando pelos
nossos erros, mas também somos seres humanos e estamos
sendo tratados como feras selvagens”, afirma um dos detentos
do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís (MA). Em
vídeos divulgados nesta terça-feira [...] pela entidade de direitos
humanos Conectas, presos afirmam que são vítimas de torturas
praticadas por agentes penitenciários e policiais militares e recla-
mam da falta de assistência jurídica e das precárias condições de
higiene da penitenciária. [...] “A comida já chega aqui azeda. Não
consigo suportar nem o cheiro dessa comida. Está todo mundo
aqui morrendo de fome e desnutrido”, afirma outro preso. [...] Eles
reclamam também da falta de material de higiene, mostram blo-
queios que fazem para evitar os ratos e baratas nas celas e a falta
de tratamento médico básico. Outro detento reclama de “segui-
das torturas” cometidas por carcereiros e policiais militares: “eles
jogam bomba aqui dentro da cela. Não tem oxigênio para sair
para lugar nenhum. Aí a gente fica aqui, pedindo socorro. Quanto
mais a gente grita, mais eles jogam”. Para a advogada e diretora
da Justiça Global, Sandra Carvalho, os presos sofrem tortura físi-
ca e também psicológica. “As violações de direitos humanos são
recorrentes não apenas em Pedrinhas, mas em todo o sistema pe-
nitenciário do país”, diz94.
94
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
cias/2016/03/01/detentos-denunciam-tortura-e-falta-de-higiene-em-
-presidio-de-pedrinhas.htm>. Acesso em: 15 jun. 2016.
132 Manifesto para Abolir as Prisões
também é uma boa coisa. Sofra.” Para os presos, até o menor dos so-
frimentos estigmatiza e nunca cicatriza. Ele produz uma dor que de-
satina, só por doer. E ela é insuportável, inexplicável e injustificável.
Dela não pode surgir nada de bom ou proveitoso.
95
Série de fotografias retiradas no momento da chegada, permitindo sa-
ber com exatidão quem é o vencedor de uma disputa.
96
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, pp. 13, 15. Acesso em 16 jun. 2016.
97
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em 16 jun. 2016.
98
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em 16 jun. 2016.
99
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 15. Acesso em 16 jun. 2016.
100
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 15. Acesso em 16 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 135
de reincidência que varia de 24,4%101 a 80%102. O que pouco importa,
haja vista ambas serem altíssimas e inadmissíveis.
Por agora alguns poderiam tentar atribuir todos esses índices a
uma suposta vocação criminosa do povo brasileiro e a uma impro-
vada má vontade em (re)socializar-se, enquanto encarcerado. Porém
nada disso consegue se sustentar diante do simples fato de que, se-
quencial e consequentemente: a) países com maior igualdade social
e econômica experimentam menos criminalizações, pois têm menos
matéria prima desviante que pode ser mais facilmente etiquetada;
b) há menos interesse pelo aprisionamento por parte dos seus ato-
res, que enxergam nele um entrave ao bem estar de todos; c) menos
criminalizações representam menos aprisionamentos; e d) menos
encarceramento equivale a um menor índice de adestramento pri-
sional, bem como a um baixíssimo nível de destreinamento social,
permitindo que os eventuais confinados voltem mais preparados
para o convívio comum.
De toda sorte, não é que nos países nórdicos e escandinavos, que
experimentam um baixíssimo índice de aprisionamento, não se pra-
tiquem homicídios, estupros, roubos, etc. Não é que os seus homici-
das, estupradores, ladrões, etc, não sejam encarcerados. É que a pri-
são, ao ser evitada ao máximo, não consegue produzir e reproduzir
a criminalidade, estacionando-a em um curto tempo e reduzindo-
-a a médio e longo prazo. A rigor, quanto menos eles prendem, nas
hipóteses em que isso é possível (conflitos insignificantes [furtos de
pequena monta], sem danos a terceiros [usuários de drogas], etc.),
menos eles terão que prender no futuro. Já nós, quanto mais pren-
demos, nas hipóteses em que isso é desnecessário, mais teremos que
prender no futuro.
101
Disponível em: <http://cnj.jus.br/noticias/cnj/79883-um-em-cada-qua-
tro-condenados-reincide-no-crime-aponta-pesquisa>. Acesso em 16
jun. 2016.
102
Informando, mas contestando os percentuais, o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA). Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/
conteudo/destaques/arquivo/2015/07/572bba385357003379ffeb4c9a
a1f0d9.pdf>, p. 11. Acesso em 16 jun. 2016.
136 Manifesto para Abolir as Prisões
Para se ter uma ideia as condutas consumadas ou tentadas, pre-
vistas no Código Penal, e que foram praticadas sem qualquer ameaça
ou lesão a terceiros, representam 40.256 crimes, cujos autores estão
presos103. Apesar de nenhum desses tipos penais prever qualquer
violência em sua prática, o Estado (ridiculamente) se nega a abrir
mão da prisão dos seus autores, porque isso equivaleria a uma re-
núncia de 25,32% de poder prisional, considerando que o total de
crimes, com autores presos, previstos no Código Penal, consumados
ou tentados, é de 158.986104. Em outras palavras: nem mesmo o fato
de que essa renúncia prisional representaria uma redução de mais
de 1/20 (um vinte avos) da massa carcerária (607.731105) é capaz de
sensibilizá-lo.
Igualmente não é difícil imaginar o que aconteceria se a verdade
sobre o tráfico de drogas fosse revelada a todos: a verdade de que
nesse crime não existe um bem jurídico a proteger. O que equivale
a dizer que nele não existe uma vítima identificável e, portanto, de-
fensável. Isso, sem noticiarmos que o tráfico não passa de um mero
comércio, sem empreendimento de qualquer violência direta. A par-
tir dessa perspectiva, hipoteticamente aconteceria a incrível perda
de mais 10,91% de poder confinante (menos 66.313 crimes tentados
ou consumados dentro de um total de 607.731 [o crime de tráfico
está previsto na legislação extravagante, fora, portanto, do Código
Penal]). Este percentual, juntamente com os anteriores 6,62% – per-
centual derivado das 40.256 pessoas presas por crimes não violentos,
no universo total de enjaulados –, somaria 17,53% de renúncia prisio-
nal. Ou seja: o Estado perderia quase 1/5 (um quinto) do seu poder
de prender.
103
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 65. Acesso em 16 jun. 2016.
104
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 65. Acesso em: 16 jun. 2016.
105
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 65. Acesso em: 16 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 137
Mas, o que esperar de um país onde quase 100% dos crimes pre-
vistos no Código Penal preveem a pena de prisão (reclusão ou de-
tenção), como sanção106? País em que apenas 3% das pessoas con-
denadas à privação da liberdade estão em regime aberto e só 15%
em semiaberto107? Onde o próprio Ministério da Justiça, mediante o
seu (DEPEN) Departamento Penitenciário, enaltece a construção de
vagas, embora pareça redimir-se em parte, mais à frente, ao defender
alternativas (ou melhor, opções) penais108?
O resultado dessas equações é que a prisão reproduz os seus pró-
prios clientes, fabricando novos culpados aprisionáveis. Além de não
(re)socializá-los ela desencadeia um efeito colateral repetidor (re-
encadeador): a) ao destreiná-los para os atos mais simples da vida
cotidiana extramuros; b) ao estigmatizá-los, obrigando-os a viver
de crimes, reincidindo; c) ao aumentar a quantidade de criminosos
mais facilmente etiquetáveis (homicidas, latrocidas, traficantes, etc.);
d) ao inseri-los em uma carreira criminal (ladrões insignificantes que
aprendem a ser latrocidas); e e) ao convencer as pessoas de que a
profecia se autorrealizou, pois, os inimigos que foram cautelarmente
presos por parecerem perigosos, provaram que realmente o eram ao
cometerem crimes depois de libertados.
A velocidade pirotécnica e oscilante com que a nossa máquina
de moer e gastar gente tem histericamente crescido já nos permite
acreditar que nós perdemos o controle, principalmente porque já há
bastante tempo nós passamos de uma fase em que a autoridade ti-
nha o poder de prender, para uma fase em que autoridade é quem
tem o poder de libertar. Por isso, nosso encarceramento massivo se-
106
À exceção dos artigos 121, § 5°, 129, § 5°, 140, § 1°, 143, 155, § 2 °, 168-
A, § 3°, e mais alguns poucos. Disponível em: <http://www.justica.gov.
br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/
relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2016.
107
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 20. Acesso em 16 jun. 2016.
108
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 6. Acesso em: 16 jun. 2016.
138 Manifesto para Abolir as Prisões
gue a todo vapor, em uma progressão geométrica impura – e que é a
segunda que mais varia no mundo109 –, descontrolada e irreversivel-
mente autoalimentante.
109
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 14. Acesso em 16 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 139
ativamente da administração das coisas públicas, e não o do jurista,
que deve tentar decidir justamente os conflitos. Contraditoriamente,
o mesmo poder prisional que não consegue proteger os bens jurí-
dicos flerta com um programa atuarial ao administrar riscos globais,
em um plano genérico de economia social.
Sabendo de antemão que um maior lucro atrai um maior risco, o
Estado prisional assume um modelo empresarial pretendendo maxi-
mizar suas vantagens sem, contudo, arriscar-se demais. Para alcançar
um considerável lucro econômico, político, social, pessoal, etc., ele
se previne, antecipando-se aos riscos. Com essa agenda ele obtém
autorização popular para deslocar precocemente todos aqueles que
não lhe interessam ou o incomodam, simplesmente prendendo-os
provisoriamente. Assim ele consegue, sem ter que justificar-se: a)
controlar a demanda e a oferta de mão de obra substituível; b) captar
votos favoráveis à sua oratória demagógica, que promete criar cri-
mes e ampliar e endurecer as penas; c) tranquilizar por algum tempo
a população; d) satisfazer desejos pessoais ou de terceiros, que enxer-
gam na prisão a única maneira de alcançar esse objetivo.
Em toda medida, embora a condenação sem culpa esteja sendo
substituída pela prisão sem condenação, essa antecipação do confi-
namento não representa uma renúncia do Estado encarcerador ao
seu poder de reprimir. Como há uma manutenção do custo (a prisão
é praticamente a mesma para presos provisórios e definitivos110), não
há porquê renunciar a mais essa vantagem do poder.
Porém, como o poder prisional consegue considerar o crime antes
mesmo que ele aconteça, prendendo os que o desobedecem e os
que não lhe servem? A resposta a essa pergunta é tão simples quan-
to constrangedora: ele não consegue, embora, quando lhe é conve-
niente, ele afirme conseguir.
Apesar do que dispõe o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, ele baseia suas prisões acau-
telatórias – e se enchendo ainda mais de razão, os seus confinamen-
110
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em: 16 jun. 2016.
140 Manifesto para Abolir as Prisões
tos a partir de condenações confirmativas em segundo grau –, no
inimigo estereotípico que o aprisionável representa. Se esse inimigo
for conveniente, resignado e irresistível, há uma grande chance de
ele ser aprisionado. E precocemente.
Empresarialmente isso empresta um tom de competência e efici-
ência ao Estado cativante. Por atuar antes mesmo da oferta de perigo
pelo inimigo, sob todos os ângulos as pessoas começam a enxergá-
-lo como uma ferramenta suficientemente apta a sequer permiti-las
sentir medo. Para que esperar que o perigo, a ameaça e a lesão se ma-
nifestem, se já sabemos de onde eles vêm? Fora dessa infeliz ilusão,
a prisão não é o instrumento que corta o mal pela raiz: ela o arranca,
para enxertá-lo em um plano no qual a sua frutificação lhe será mais
interessante. E esse novo canteiro tem sido diariamente adubado.
A precipitação do poder prisional ao impor a privação da liberda-
de no começo, e não depois de percorrido todo um procedimento
sério e refletido, tem atraído o aplauso da população que anseia por
projetar no aprisionado, o quanto antes, as suas próprias tendências
antissociais.
De mão de uma fôrma que indica quem deve ser encarcerado (es-
tereótipo do inimigo conveniente), partem os agentes prisionais à
caça de quem nela se encaixe mais facilmente, independentemente
do que o inimigo fez ou deixou de fazer, porque o importante é ven-
cer essa cruzada contra o mal. E de sobra bater a meta, que é elevada
todas as vezes que ela é alcançada.
111
Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfei-
tas/policiais-receberao-gratificacao-para-nao-matar/>. Acesso em: 16
jun. 2016.
112
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, passim. Acesso em: 16 jun. 2016.
142 Manifesto para Abolir as Prisões
1.4.5 Ele retribui os crimes praticados?
Ninguém consegue negar que a pena privativa de liberdade como
retribuição prevista pela dogmática oficial está falida. Aliás, a efetivi-
dade ou até mesmo a existência dessa funcionalidade nunca foi com-
provada. Nenhum bem jurídico ameaçado ou lesionado retornou ao
seu estado anterior de tranquilidade ou integridade depois que o
condenado foi preso. Por exemplo: a correção plástica da cicatriz na
face da ex-esposa, e modelo, derivada de lesão cortante, foi possibi-
litada por uma intervenção médica, e não pela prisão do condenado,
ainda que o cirurgião e o aprisionado sejam a mesma pessoa.
Não há qualquer identidade ou mesmo semelhança entre a liber-
dade restringida e o bem jurídico ofendido. Quem pratica um crime
de homicídio não perde a vida, mas sim a liberdade.
Essa diversidade na resposta dada pelo poder punitivo, que equi-
valeria ao bem ofendido, não existe. Para quase todos os crimes pre-
vistos a retribuição é a mesma: o encarceramento. A prisão condensa
uma solução pasteurizada para problemas altamente complexos e
extremamente diferentes, desde o latrocínio até o furto, passando
por crimes que sequer ultrapassam a esfera da autonomia privada
ao não lesionarem terceiros (uso de drogas, etc.). No mínimo deve-
ríamos desconfiar da prisão quando ela se oferece como resposta
homogênea para questões que exigem estratégias tão diversas. Afi-
nal, é sempre estranho quando se pretende fazer com que situações
completamente diferentes pareçam iguais.
“15 detentos fogem da Casa de Custódia, entre eles um integrante
do PCC. [...] No pavilhão H, onde aconteceu a fuga, havia homicidas,
ladrões e traficantes113.”
É como se a prisão fosse um departamento de consertos que usas-
se a retribuição como ferramenta única, tanto para amassar, quanto
para desamassar. O que não seria inadequado, não fosse pelo objeto
113
Disponível em: <http://www.portalodia.com/noticias/policia/21-de-
tentos-fogem-da-casa-de-custodia-221281.html>. Acesso em: 17 jun.
2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 143
que receberá o impacto: um vidro ou um metal. Alguém que furtou
um objeto de valor mínimo e um assassino serial.
Igualmente:
114
Disponível em: <http://justificando.com/2015/10/21/homem-e-con-
denado-a-mais-de-um-ano-de-prisao-por-furto-de-dois-pacotes-de-
-bolacha/>. Acesso em: 17 jun. 2016.
115
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/11/politi-
ca/1418323270_910597.html>. Acesso em: 17 jun. 2016.
144 Manifesto para Abolir as Prisões
Como não é civilizadamente possível o retorno à lei talional, se
não abolirmos a prisão estaremos compensando um mal com outro
mal diferente, meramente repetindo uma expiação ou compensação
que, tendo origem religiosa, é antidemocrática e nada científica.
Esses são os problemas do ponto de vista dogmático. Com base
no discurso criminológico, o que se observa é que a retribuição pre-
tendida pelo aprisionamento é uma retribuição equivalente. Antes
de continuarmos é preciso requentar que por trás do discurso ofi-
cial que, apesar de fracassado, ainda tenta justificar a necessidade
da continuação da aplicação de penas privativas de liberdade, há
um discurso vitorioso, lucrativo e interessante apenas para alguns,
de sorte que a prisão não permanece de pé por causa dos seus ali-
cerces e da sua alvenaria, tampouco porque ela retribui o crime. Ela
permanece de pé por causa de uma ideologia que é escondida de
todas as pessoas. E um dos cimentos dessa ideologia é a equivalên-
cia da retribuição, que consiste em demonstrar que nas sociedades
que pautam seu cotidiano na relação entre o capital e o trabalho as-
salariado há uma correspondência artificial entre a pena de prisão,
de um lado, e a economia, a política e o sistema de justiça penal, de
outro, e exatamente porque em ambos o tempo é o paquímetro que
mede, por dentro e por fora, o que se considera como valorável ou
desvalorável, útil ou inútil. Seja na precificação da mercadoria, seja
na quantificação do salário, seja na medição do tamanho da pena
privativa de liberdade, o tempo exerce uma influência determinan-
te116. Com efeito, retribuir o crime com a pena privativa de liberdade
equivale ao resultado de uma sequência lógica em que as leis são
confeccionadas para proteger os interesses dos exploradores-cole-
tores, enquanto a prisão é utilizada como braço armado visando à
ampliação ou à manutenção das desigualdades presentes nas estru-
turas produtivas das economias preocupadas com o lucro, e não com
os trabalhadores e consumidores.
116
SANTOS, Juarez Cirino dos. Os discursos sobre crime e criminalidade. Dis-
ponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/os_dis-
cursos_sobre_crime_e_criminalidade.pdf >. Acesso em: 17 abr. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 145
Desse modo, a prisão seria: a) ou a intensificação das condições
indignas impostas aos vulneráveis dentro da economia capitalista; b)
ou a continuação da política neoliberal mediante outros meios, que
podem ser mais gravosos ou não. É que nem sempre é possível defi-
nir qual dos dois ambientes indignifica mais o cidadão: se a prisão ou
a fábrica. E, por que não incluir a sociedade?
De qualquer maneira, aquele que não serve ao sistema capitalista
de produção, por não aceitar receber salários baixíssimos em um re-
gime de pseudoescravidão, servirá ao sistema capitalista de explora-
ção industrial carcerária, como número a ser contabilizado na coluna
referente aos dividendos dos empresários. O que importa é que ele
dê lucro, de uma forma (consumidor ativo) ou de outra (consumidor
inativo/aprisionado), ainda que para isso ele tenha que transitar na
via de mão dupla que vai da fábrica para o cárcere, e retorna.
É por isso que não podemos reservar o título de prisão para aque-
la instituição que habitualmente reconhecemos como arquitetada
para claustrofobizar e definhar as pessoas. Existem fábricas e ou-
tras estruturas de produção capitalista igualmente aprisionantes117.
Na lógica neoliberal a prisão como sanção penal e a fábrica como
sanção laboral exercem a mesma utilidade: controlar os horários e
as condições dos internos/trabalhadores, robotizar seus afazeres e,
escalonando a produção, homogeneizar seu ritmo de vida gastando
o menos possível. O que não se faz em uma é equivalentemente re-
tribuído na outra.
Fora aqueles que acreditam na prisão como em uma religião, cer-
tos de estarem fazendo o que é correto, ou o que é possível, há outro
aspecto que a retribuição pela privação da liberdade esconde: a de
que ela viabiliza o exercício da vingança. Quem a manipula almeja:
a) desforrar insatisfações pessoais (policiais descontentes com seus
salários, etc.); b) devolver encarceramentos pretendidos ou sucedi-
dos (troca de denúncias entre políticos corruptos, etc.); ou mesmo c)
atender à angústia de parte da população, ansiosa por sacrificar mais
um caprino ao deus da tranquilidade ilusória e provisória. Perverten-
117
Ver <http://escravonempensar.org.br/sobre-o-projeto/o-trabalho-es-
cravo-no-brasil/>. Acesso em: 19 abr. 2016.
146 Manifesto para Abolir as Prisões
do a oração shakespeariana, para esses tudo está bem, não quando
acaba bem, mas quando acaba em prisão.
Caracteristicamente a retribuição da pena privativa de liberdade
se assemelha à ausência de qualquer lógica devolutiva presente na
cativação exercida contra os animais. Algumas das nossas prisões, ou
alguns dos nossos aprisionamentos, são zoológicas porque também
privam da liberdade pessoas cuja quase metade delas sequer foi con-
denada ou é culpada. Como já noticiado, 41% dos presos é provisó-
rio. O encarceramento de quase todos os presos acontece pelo que
eles representam: a capacidade que certos animais têm de serem
exóticos e, ficando expostos, servirem de espetáculo para divertir sa-
dicamente os visitantes. Evento muito semelhante ao das excursões
quase circenses realizadas pelas pessoas que visitam os presídios a tí-
tulo de conhecimento da sua sistemática. Analogamente aos animais
ferozes, o seu confinamento representa a retribuição pela capacida-
de que eles têm de nos assustar, quando soltos. De qualquer modo,
a possibilidade de entrevê-los através das grades, sem risco, faz com
que nos sintamos mais potentes. Outro aspecto semelhante é que
a nossa prisão zoológica também sustenta a necessidade do confi-
namento das pessoas em razão de elas não possuírem condições de
conviver mais em liberdade. Como os animais, desacostumados a
alimentarem-se sozinhos por terem perdido a capacidade de caçar,
apesar desse despreparo haver sido proporcionado pela própria in-
terferência humana no seu ambiente natural. Também quanto a esta
circunstância, qualquer identificação com a desassistência estatal,
omissa quanto ao fornecimento de políticas públicas compensató-
rias, não é mera coincidência.
118
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yXJLZ_
iSsf4&index=3&list=PLx87l5Z_DcZQe95eqamfJ1POuPI_5KRC8>. Aces-
so em: 18 jun. 2016.
148 Manifesto para Abolir as Prisões
Despersonificado e exposto a uma nudez que o desantropomor-
fiza, passa ele a ser adjetivado com expressões pejorativas do tipo
“esse criminoso é uma fera”, “ele agiu como uma besta sanguinária”,
“esse bandido é um monstro”, “o assassino é um animal”, etc.
E:
119
Disponível em: <http://www.ocafezinho.com/2014/03/02/midia-cons-
trangida-com-a-besta-fera-que-criou/>. Acesso em: 18 jun. 2016.
120
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/porca-
-preta-e-a-besta-fera-ou-uma-das-faces-do-mal-absoluto/>. Acesso
em: 18 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 149
DETENTOS CONQUISTAM PRIMEIRO LUGAR EM
VESTIBULARES NO PARÁ
Pará teve cerca de 400 internos prestando o Enem no ano de 2015.
Oito foram aprovados em vestibulares, três deles no 1º lugar de
seus cursos.
Três internos do sistema penal do Pará foram aprovados na pri-
meira posição dos cursos para os quais prestaram vestibular.
Segundo a Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará
(Susipe), cerca de 400 detentos do estado prestaram o exame em
2015 e oito foram aprovados para instituições de ensino supe-
rior121.
121
Disponível em: <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2016/01/deten-
tos-conquistam-primeiro-lugar-em-vestibulares-no-para.html>. Acesso
em: 18 jun. 2016.
150 Manifesto para Abolir as Prisões
Trabalhadores Sem Teto (MTST). O deputado o acusa de “incita-
ção ao crime” e “formação de milícia privada”. Nas redes sociais,
Boulos explicou e pediu apoio. No pedido de prisão o deputado
“Referiu-se a uma declaração que dei de que o país pegaria fogo
com greves e ocupações se fossem adiante com os ataques”. De-
pois, o PSDB também entrou com um pedido de prisão contra
Boulos por incitação ao crime, “por ter feito uma fala quarta no
palácio do Planalto (lançamento do Minha Casa 3) dizendo que
haverá resistência”122.
122
Disponível em: <http://jornalggn.com.br/noticia/psdb-e-dem-pedem-
-prisao-de-guilherme-boulos>. Acesso em: 28 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 151
penal). É dizer, a liberdade de uma pessoa valeria menos que um do-
cumento. A prisão seria o ápice da veneração a um dever, ainda que
cego, fora de propósito, sem sentido e injusto.
Entretanto, ridiculamente:
123
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mai-18/abordagem-
-policial-motivo-derruba-crime-desobediencia-decide-tj-rs>. Acesso
em: 18 jun. 2016.
152 Manifesto para Abolir as Prisões
Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) os crimes de resistência e de
desobediência à ordem policial. Pelo texto, o crime de resistência
à ação policial é definido como “opor-se à execução de ato legal,
mediante violência ou ameaça a policial, ainda que em auxílio a
funcionário competente para executá-lo”. A pena estabelecida é
de reclusão de dois a quatro anos e multa. Já o crime de deso-
bediência à ordem legal de um policial será punido, segundo a
proposta, com reclusão de um a três anos e multa. [...] o deputado
entende que esses crimes, quando praticados contra policiais em
serviço, são mais graves, pois são situações que apresentam risco
maior tanto para o ofensor quanto para o agente público, e por
isso não podem ser considerados crimes de menor relevância. Em
sua avaliação, “a dosimetria das penas hoje contidas no Código
Penal contribui para o descrédito dos profissionais de segurança
pública124.
124
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/
SEGURANCA/482494-RESISTENCIA-E-DESOBEDIENCIA-A-POLICIAIS-
-PODERAO-TER-PUNICOES-MAIS-SEVERAS.html>. Acesso em: 18 jun.
2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 153
de se aperfeiçoou e está ainda mais perigosa e menos intimidada; 5)
o pânico moral é instalado; 6) para evitar atropelos, transfere-se a res-
ponsabilidade da ineficiência daquela lei para o público, alegando-
-se que ele lhe outorgou pouco poder; 7) diante disso exige-se mais
capacidade de reação; 8) autorizada essa capacidade, o poder puni-
tivo aproveita para criar novos crimes, aumentar as penas existentes,
exigir mais energia repressiva, etc.; por fim, 9) novas desobediências
acontecem, fechando-se o círculo. Mas, não a ambição do poder pri-
sional.
Considerando que o sistema sempre será violado, essa tendên-
cia incessante de ele emascular-se acaba infinitamente atraindo uma
suposta necessidade cada vez maior de ele ser intensificado. O que
faz com que se aumente o vigilantismo sobre os vulneráveis, inven-
tando-se novos perseguíveis, ampliando-se o rol dos estereotipáveis,
hiperinflacionando-se o sistema carcerário, reduzindo-se direitos e
acreditando-se ainda mais cegamente na capacidade da prisão de
resolver problemas que ela mesma cria.
Já deve ter ficado evidente que a prisão não existe para defender
os bens jurídicos das pessoas. A sanção mais séria do país serve para
permitir que o sistema funcione adequada e utilmente, embora para
proteger quem o domina.
Em Ressurreição, Liev Tolstoi articula uma oração parecida na boca
da personagem de Nekhliudov: “O Tribunal é apenas um instrumento
administrativo para manutenção do estado de coisas vigentes, van-
tajoso para nossa classe”.
125
Disponível em: <http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.
br/2014/11/20/para-muita-gente-basta-saber-que-a-outra-pessoa-e-
-negra/>. Acesso em: 14 jun. 2016.
156 Manifesto para Abolir as Prisões
sentem dissuadidas pelo possível aprisionamento, embora não di-
retamente. Como elas consideram que a perda dos poucos direitos
possuídos ou conquistados não vale a pena, é essa sensação que as
desestimula de praticar certas condutas. É a vontade de manter os
vínculos afetivos, profissionais, ambientais, etc., que as faz refletir, e
não uma suposta coação advinda da prisão em si mesma. O cálculo
que elas fazem não tenta encontrar a incógnita contida na pergunta
“o que acontecerá comigo se eu for preso?”, mas sim, aquela presente
na questão “o que será da minha família; como eu passarei em outro
concurso...?” Sua atitude diante do cárcere é a de um temor reveren-
cial ambivalente misturado com uma crença desconfiada. Ao mesmo
tempo que ele não as assusta, elas temem a perda das suas garantias,
e idolatram a capacidade que ele tem de tranquilizar as suas vidas.
Porém, porque elas podem ser adesivadas ou não, é essa imprevisi-
bilidade que as angustia e determina a evitação de algumas atitudes
que facilitariam a aproximação do poder prisional. Elas confiam des-
confiando.
Apesar de não haver provas do efeito desestimulante da prisão,
a suposta incontinência psicológica do aprisionado, estampada em
uma folclórica teimosia a favor de uma carreira criminal, não será
desprezada como desculpa para facilitar e justificar falsamente a sua
prisão.
126
Disponível em: <http://www.tvcaramuru.com.br/2014/04/01/policiais-
-civis-itumbiara-prendem-2-arma-cumpre-mandado-prisao-condena-
do-estupro/>. Acesso em 18 jun. 2016.
158 Manifesto para Abolir as Prisões
da, um verdadeiro põe bandido na rua. [omitimos o nome do(a)
comentarista] [sic]127.
Porém, por mais que tente, a prisão não consegue esconder a ob-
viedade da ineficiência dessa atitude. Plasmada no fato de que ou-
tros foram presos antes de um determinado aprisionado, justamente
para nele também incutir essa reverência psicológica à legislação.
Parece desnecessário perguntar por que isso não funcionou com ele,
e com muitos outros.
127
Disponível em: <http://noticias.r7.com/reporter-record/mural/voce-
acha-que-a-lei-deveria-punir-com-rigor-aqueles-que-praticam-crimes-
-violentos-antes-de-completar-os-18-anos-ou-a-punicao-deve-mes-
mo-so-ser-rigorosa-apos-o-que-se-convencionou-chamar-de-maiori-
dad/>. Acesso em: 18 jun. 2016.
128
Disponível em: <http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2015/
09/grupo-de-jovens-depreda-delegacia-em-ms-para-libertar-amigo-
-preso.html>. Acesso em: 18 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 159
Não bastasse a neutralidade motivacional exercida pela legisla-
ção, que é a inexistência de demonstração da capacidade de con-
vencer psicologicamente as pessoas a respeitá-la, ela provoca efeitos
colaterais adversos, todos considerados sempre bem-vindos pelo
poder prisional. A mesma lei que o policial usa para enquadrar o
afrodescendente, jovem e pobre como traficante, apesar de ele ser
muitas vezes apenas um usuário, ele utiliza para desendraquadrar o
eurodescendente, jovem e rico como traficante, apesar dele muitas
vezes sê-lo.
Em Ressurreição, Liev Tolstoi destila:
129
Disponível em: <http://www.oantagonista.com/posts/a-malandragem-
-e-dostoievski>. Acesso em: 20 jun. 2016.
160 Manifesto para Abolir as Prisões
1.4.6.3 Ele previne especial e positivamente?
A questão da (re)socialização é tão complexa que os seus proble-
mas já começam com a sua própria nomenclatura. Nenhuma das pa-
lavras, seja socialização, ressocialização, reabilitação ou reintegração,
consegue atrair o consenso das pessoas, embora a maioria opte pelo
uso do vocábulo ressocialização. Esta opção tem uma consagração
temporal e geral porque historicamente ela tem permitido transferir
para o aprisionado e para a sociedade a ideia de que aquele está pre-
so em razão de ele não haver se socializado adequadamente. E por
sua culpa, é claro!
A questão da nomenclatura pode parecer ter uma pequena im-
portância, mas ela é decisiva na discussão da questão prisional. Ela
acaba influenciando não só subliminarmente as decisões estratégi-
cas e as atitudes reais dos operadores do sistema. Freudianamente,
quem cede nas palavras acaba cedendo nas coisas. Então, qualquer
nome que se dê ao que mentirosamente se tenta realizar com o apri-
sionamento servirá apenas para disfarçar a dor, o sofrimento e a uti-
lidade contrassocial da prisão. Todavia, mais importante ainda que
definir adequadamente as palavras, é descobrir o conteúdo que elas
escondem.
De seu lado, a aceitação do vocábulo socialização é inadequado
porque permite a infiltração de teorias que inventam um ser que,
embora vivendo em sociedade durante toda a sua vida, seria associal.
Seria mais ou menos como chamar de lunático um terráqueo.
Por outro ângulo, a aceitação do vocábulo ressocialização apre-
senta inconvenientes semelhantes porque ele admite a entrada de
afirmações que visam a demonstrar que o aprisionado não foi ade-
quadamente socializado. Ocorre que desde cedo a nossa socializa-
ção fica a cargo da própria sociedade, incluídas todas as pessoas com
quem temos contato – o que descarrega qualquer culpa nossa. Seria
como despejar uma criança em uma escola para que ela fosse esco-
larizada e depois culpá-la por ela não haver sido. De nada adiantará
transferir o inimigo conveniente para um espaço (prisão), que não
repete sequer em pequeníssima medida o modelo social usual a que
estamos acostumados – aquele em que convivemos com parentes,
130
Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/gerson-
-carneiro-meritocracia-os-de-cima-sobem-e-os-de-baixo-descem.
html>. Acesso em: 28 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 163
prisional. Daí para a antecipação dos juízos de criminalidade me-
diante a valorização precipitada de experimentos com cromosso-
mos supostamente reveladores de uma carga criminosa transmiti-
da, é um pulo.
Por fim, o uso da palavra reintegração igualmente não satis-
faz. Ela não consegue se separar da sua própria contradição que
a constrange: como pode não ser absurdo um aprisionamento
que vise à reintegração de uma pessoa que sempre fez parte, que
sempre integrou uma sociedade? Na verdade, a desintegração
começa a partir do seu confinamento, mediante um método de
exclusão por inclusão na instituição total, que dá seguimento ao
projeto estatal-prisional desenhado para a sua vida. Não bastasse,
ela é ilusionista ao fingir tentar reintegrar o egresso à mesma so-
ciedade que o despejou.
Além de não (re)socializar os seus internos, a prisão reproduz a sua
clientela, renovando o seu almoxarifado de inimigos convenientes.
Outro aspecto inconveniente de qualquer dessas nomenclaturas
diz respeito à realização de atividades remuneradas, pelo preso. Ain-
da que incentivado pela remição e defendido como um melhorador
do encarcerado, o trabalho nas prisões brasileiras acaba repetindo
as mesmas técnicas de condicionamento e exploração útil e conve-
niente dos corpos dos inimigos. O que se pretende com ele é não só
lucrar financeiramente, mas devolver seres laboralmente desprepa-
rados para a sociedade a fim de que nela não permaneçam por muito
tempo e acabem retornando para a prisão.
Dentro de toda essa aliteração (ressocialização, reeducação, rein-
tegração, reabilitação, etc.), o único prefixo “re” que a prisão admite
é aquele que encabeça o vocábulo reprodução, consistente na sua
capacidade de ampliar seus admiradores e clientes. Nessa espécie de
iatrogenia autoalimentante a prisão finge tentar resolver o problema.
Na realidade, acaba piorando-o.
Porém, mais importante do que definir o vocábulo correto é en-
tender que todos são imprestáveis. Todos tentam defender uma es-
tratégia punitiva que não tem salvação: a da prisão.
131
Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/06/ne-
gros-e-hispanicos-tem-maior-propensao-para-o-crime.html>. Acesso
em: 19 jun. 2016.
166 Manifesto para Abolir as Prisões
e 26 vezes o que até agora se descobriu na operação Zelotes (até
agora avaliado em R$ 19 bilhões)132.
132
Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Sonega-
cao-dos-ricos-rouba-200-bi-em-cinco-meses/4/33545>. Acesso em: 19
jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 167
são priorizados nas abordagens. “Com certeza, existe realmente
essa discriminação no ato da abordagem. Numa simples aborda-
gem você vai discriminar, não sei o porquê, mas a preferência da
abordagem é, com certeza, a pessoa de cor, o negro”, afirmou um
tenente entrevistado na pesquisa. [...] Comentários: [omitimos o
nome do(a) comentarista] [...] os negros cometem mais crimes
que os brancos. Você não tem como negar. O índice de crimina-
lidade e muito maior entre a população negra. Basta você com-
parar a criminalidade num bairro habitado majoritariamente por
negros e outro habitado por brancos. Você não pode colocar tudo
na conta do preconceito. Sinto muito, mas são os fatos, você não
poderá acusá-los de preconceito. Em qualquer lugar do mundo
onde haja população negra, os bairros por eles habitados são os
mais violentos do país. Você pode pesquisar na França, EUA, Brasil
a África do Sul. A recém “libertada” África do Sul e simplesmente o
país mais violento do mundo [sic]133.
133
Disponível em: <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/as-crian-
cas-negras-tem-o-azar-dos-mal-entendidos-sempre-acontecerem-
-com-elas/>. Acesso em: 19 jun. 2016.
168 Manifesto para Abolir as Prisões
Supremo Tribunal Federal, aos 14 anos. Num país acostumado à
impunidade, ao “isso não vai dar em nada”, ele se tornou uma jus-
ta referência. Segue trecho da reportagem de Hugo Marques e
Laura Diniz. Lula estava certo: um ex-garoto pobre viria a simbo-
lizar a esperança, e falta muito para que cheguemos lá, do fim da
impunidade no Brasil. A mãe de Joaquim Barbosa, leitor amigo,
a exemplo da sua e da minha, também “nasceu analfabeta”. Aca-
bou dando à luz um futuro ministro do Supremo, obcecado pela
leitura e pelo estudo, não um Messias de araque… O menino Jo-
aquim Barbosa nunca se acomodou àquilo que o destino parecia
lhe reservar. Filho de um pedreiro, cresceu ouvindo dos adultos
que nas festas de aniversário de famílias mais abastadas deveria
ficar sempre no fundo do salão. Só comia doces se alguém lhe
oferecesse. Na última quarta-feira, o ministro Joaquim Barbosa,
58 anos, apresentou seu voto sobre um dos mais marcantes capí-
tulos do julgamento do mensalão – o “last act (bribery)”, “último
ato (suborno)”, como ele anotou em inglês no envelope pardo
que guardava o texto de sua decisão. Além do português, Barbo-
sa domina quatro idiomas – inglês, alemão, italiano e francês134.
134
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/a-mae-
-de-joaquim-barbosa-tambem-nasceu-analfabeta-e-nao-deu-a-luz-
-um-messias-de-araque/>. Acesso em: 19 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 169
Tal como entendeu Nekhliúdov em Ressurreição, de Liev Tolstoi:
[...] Nada fazemos para destruir as condições que produzem es-
tes seres e fomentamos até a existência de estabelecimentos
tais como fábricas, oficinas, tabernas e prostíbulos, onde se de-
senvolvem. Não só não destruímos esses lugares como até os
consideramos imprescindíveis, os apoiamos, regularizando a
sua marcha. E é desta maneira que educamos milhões de seres.
E quando aprisionamos um, julgamos que fazemos bem à socie-
dade, acreditamos que já nada mais se exige de nós depois de os
termos transferido da província de Moscou para a de Irkitsk.” [...]
“Se empregássemos pelo menos a centésima parte dos esforços
para ajudar as criaturas abandonadas que apenas consideramos
como corpos e mãos indispensáveis para as nossas comodidades
e para a nossa tranquilidade! Bastava que alguém tivesse tido
pena e ajudado esse rapaz quando o pai o mandou para a cidade,
movido pela necessidade, ou então quando, depois de doze ho-
ras de trabalho na fábrica, ia distrair-se na taberna em companhia
de operários mais velhos do que ele. Se então alguém lhe tivesse
dito: ‘Não vás, Vânia, não deves fazer isso’, teria atendido essas pa-
lavras, não se teria pervertido e nunca teria chegado a roubar”, di-
zia Nekliúdov para si mesmo, olhando para aquele rosto doentio
e assustado. Não encontrou porém, uma só pessoa que demons-
trasse dó dele, enquanto viveu na cidade como um animalzinho,
na época da sua aprendizagem, durante a qual, como o cabelo
cortado à escovinha para não criar piolhos, fazia os recados para o
mestre. Pelo contrário, tanto este como os seus companheiros de
trabalho afirmavam que não fazia mal enganar os outros, beber,
vagabundar, lutar e entregar-se aos vícios. [...]
135
Disponível em: <http://carceraria.org.br/metade-dos-presos-de-sp-e-
-reincidente-indica-estudo-feito-por-jose-de-jesus-filho.html>. Acesso
em: 27 abr. 2016.
172 Manifesto para Abolir as Prisões
1.4.6.3.2 Quanto pior, melhor. A teoria da regressão e a less
eligibility136
A prisão é um estabelecimento que aplica uma técnica de robo-
tização, destreinamento e infantilização. Ela serve perigosamente
como cortina de fumaça atrás da qual o poder punitivo esconde um
espetáculo macabro, encenado por pessoas escolhidas para alimen-
tarem a desculpa de que o Estado é necessário para que possamos
ter segurança e tranquilidade. Ela é mais uma ilha da esteira produti-
va fordista apta a concluir intramuros a invisibilidade e a neutralida-
de social não só do preso, mas de quem lhe é próximo. A sua família e
as gerações futuras serão os avalistas dessa sua dívida prisional.
136
Teoria que sustenta que a condição experimentada pelo encarcerado
tem que ser pior que a do mais miserável dos homens livres.
1 O Presente do Sistema prisiona 173
ele sumiu. “Tem discriminação, por isso não contei pra quase nin-
guém. Não quero que minha filha sofra”, lamenta137.
137
Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2010/12/
inocentes-condenados-filhos-de-detentos.html>. Acesso em: 19 jun.
2016.
138
Disponível em: <http://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2014/07/
esposa-de-traficante-e-presa-apos-assumir-boca-de-fumo-diz-policia.
html>. Acesso em: 19 jun. 2016.
174 Manifesto para Abolir as Prisões
insuportável da fábrica. Servem ainda para ensiná-los a extravasar a
sua revolta contra as pessoas do lado de fora, disparada a partir da
sua libertação.
139
Disponível em: <http://ariquemesonline.com.br/noticia.asp?cod=263
098&codDep=31>. Acesso em: 28 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 175
instante, além de ela poder ser presa novamente, ela convence as
pessoas de que o poder prisional age corretamente quando efetua
prisões sem acusação, sem culpabilidade, sem condenação e até sem
crime. Nesse ritmo, as mentiras que o poder prisional conta vão se
convertendo em verdades, e justamente porque a possibilidade da
comprovação dos seus defeitos é transferida para outro espaço e ou-
tro tempo.
Não é sensato esperar que uma pessoa que não obteve atenção
social, quando lançada em um ambiente dissociativo, dele saia (re)
socializado. Seria como obrigar uma criança que não foi alfabetiza-
da a trabalhar em uma indústria e, depois de anos, esperar que ela
vá embora discutindo matemática, física, biologia, química e línguas.
Apesar de ser um contrassenso, esse é o plano: regredir todos os seus
clientes para que, uma vez do lado de fora, possam aterrorizar as
pessoas, induzindo-as a votar em políticos que pautem suas agen-
das a favor do populismo penal falsamente tranquilizante. Mas, se
o motivo do encarceramento é irrelevante, pois todos são lançados
na mesma sela, e se os presos experimentam as mesmas influências
promovidas pelo isolamento social, por que, em tese, uns reagem de
uma maneira, reincidindo, e outros de outra, (re)socializando-se?
Não se deve analisar a reincidência ou não, a (re)socialização ou
não, apenas a partir de uma atitude do egresso. Inúmeros fatores
atuam no aprisionamento ou não de uma pessoa: a) o quanto ela
representa o inimigo conveniente; b) a quantidade de influência que
ela pode transmitir (político figurão ou favelado desempregado); c) a
quantidade de resignação ou inconformismo que ela produz (men-
digo drogado ou jovem branco playboy); d) quanta coordenação o
agente responsável pela prisão é capaz de emitir (policial justiceiro,
por exemplo); e) quanta subordinação o agente responsável pela pri-
são é capaz de suportar (policial indiferente, por exemplo); e f) a hos-
pitalidade ou a hostilidade dos ambientes que o inimigo frequenta
(Congresso Nacional ou periferia).
Não bastasse, a piora do condenado (regressão), exerce um efeito
hipnotizante sobre as pessoas do lado de fora. Quanto mais vezes o
criminoso é preso, mais os espectadores acreditam na sua periculo-
140
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/
cultura/o-horror-maria-do-rosario-menores-estupram-cortam-furam-
-e-jogam-de-penhasco-quatro-adolescentes/>. Acesso em: 20 jun.
2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 177
sociais sejam melhoradas.” Descontextualizada pelos gestores do sis-
tema penal, ela tem gerado um impacto negativo gradiente na con-
dição dos membros de uma sociedade envolvida em uma fracassada
guerra às drogas, com um reflexo ainda mais agravador na situação
dos encarcerados. Piorando a situação da pessoa livre mais desassis-
tida, piorará a de todos os presos. E não é difícil prever que a less
eligibility sempre piorará. De consequência, piorando a dos presos,
por um efeito comparativo, voltará a piorar a da pessoa livre mais
desassistida, pois esta, provavelmente, será um egresso do sistema
penitenciário, ou um familiar seu. Com isso, o ciclo dessa disputa não
tem fim.
141
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. In: Cole-
ção pensamento criminológico, n. 3., 2ª. ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC,
2004, p. 207: “Os criminólogos da escola reformista moderna mantive-
ram a velha noção de que o nível de vida dentro da prisão deve ser mais
baixo do que o nível mínimo fora da prisão.”
178 Manifesto para Abolir as Prisões
medes circular eles são deslocados de uma posição para outra sem,
contudo, perderem a sua desgraçada condição.
A piora das condições sociais exige a piora das condições prisio-
nais que, por sua vez, exige a piora daquelas. Como essa é uma dis-
puta sem linha de chegada, cada renovação da liderança, seja pela
prisão, seja pela sociedade, requenta os terríveis interesses do Estado
punitivo que se felicita em atiçar a revolta popular.
A partir desse pêndulo, aproveitando-se da visão aristotélica
de que fazer o pior pode ser a melhor decisão a ser tomada e in-
satisfeito com a less eligibility que a prisão já oferecia, o legislador
brasileiro resolveu inaugurar o RDD. Ou seja, o fato de que as con-
dições experimentadas pelos presidiários devem ser piores que a
situação imposta à classe livre mais desfavorecida (less eligibility)
não tem impedido que aqueles sejam ainda mais prejudicados do
que já são, ao contrário, tanto que o RDD – e seu sucessor o (RDM)
Regime Disciplinar Máximo –, foi estabelecido com esse tom: de-
monstrar que a piora da situação dos presos não tem um limite,
sendo sempre possível piorar um pouco mais – ou bastante –, a
situação do enjaulado.
142
Disponível em: <http://fernandofrancischini.com.br/projeto-deve-
-criar-regime-mais-rigoroso-para-presos-perigosos/>. Acesso em: 11
jul. 2016.
180 Manifesto para Abolir as Prisões
COMIDA DA CADEIA É MELHOR QUE COMIDA DA ESCOLA,
AFIRMA HOAX
[...] Bem ao estilo boataria com a clássica “passe adiante”, assom-
broso mesmo é a imagem [comparando a alimentação servida no
presídio com a fornecida na escola] ter alcançado até o momen-
to 1.498.594 compartilhamentos. Ah, e não nos esqueçamos das
mais de 60 mil curtidas e centenas de comentários. Tudo baseado
na desinformação. [...] Claro, não estamos discutindo aqui a preca-
riedade das escolas públicas do país, que bem sabemos também
é grande. Mas, daí a afirmar que a comida servida na cadeia é me-
lhor que nas escolas tem muita diferença143.
143
Disponível em: <http://www.boatos.org/crimes/comida-da-cadeia-e-
-melhor-que-comida-da-escola-afirma-hoax.html>. Acesso em: 17 jul.
2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 181
por presos pertencentes às facções criminosas. Tornou-se prática
corriqueira das administrações prisionais identificar os líderes –
também chamados de “pilotos” e, mais recentemente, denomina-
dos “disciplina” – e providenciar sua remoção para regimes mais
rigorosos de cumprimento da pena, como o RDD144.
Bem como:
144
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
145
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-abr-11/fernandinho-
-beira-mar-ficar-regime-disciplinar-diferenciado>. Acesso em: 11 jul.
2016.
146
Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI29894,61
044-Marcola+permanecera+no+RDD+por+mais+oito+meses>. Acesso
em 18 jul. 2016.
182 Manifesto para Abolir as Prisões
Bem como:
147
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
148
Disponível em: <http://www.fabiocampana.com.br/2011/02/projeto-
-quer-endurecer-prisao-de-chefes-do-crime-organizado/>. Acesso em:
11 jul. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 183
No mesmo sentido:
149
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf >. Acesso em: 18 jul. 2016.
150
Disponível em: <http://jota.uol.com.br/as-origens-do-regime-discipli-
nar-diferenciado>. Acesso em: 18 jul. 2016.
184 Manifesto para Abolir as Prisões
primento de parte da pena sob o RDD assume ares de premiação
em alguns aspectos. Nem é preciso registrar que essa afirmação não
passa de um sofisma porque ela se escora em uma análise pautada
pelo second best151 e despreza os motivos que levam alguns presidi-
ários a apelidarem essa dieta penitenciária diferenciada de “parque
dos monstros”152. Então, não que o RDD seja melhor que a cortiçaria
representada pelas celas compartilhadas por dezenas de presos, ele
apenas parece ser menos ruim em alguns itens – o que em hipótese
alguma é suficiente para justificar a sua existência.
A título de ilustração:
151
Tradução livre: Menos ruim.
152
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
153
Disponível em: <http://jota.uol.com.br/as-origens-do-regime-discipli-
nar-diferenciado>. Acesso em: 18 jul. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 185
construído para receber dois presos, mas atualmente tem 12 de-
tentos que aguardam ali antes de serem levados para presídios.
O cubículo escuro tem lixo e esgoto por todos os lados. “Todos
ficam sentados, não tem ninguém dormindo”, diz um dos presos.
Como não há água no local, uma mangueira foi improvisada pela
porta da cela para que os presos não passem tanto calor do ve-
rão. Além da superlotação e da falta de água, a fossa do banheiro
da cela entupiu e por isso os presos não podem usar o banheiro.
Eles utilizam sacolas plásticas que depois são jogadas para fora
da cela. “Ninguém recolhe esse lixo, fica tudo aqui na frente (da
cela)”, diz um preso. “Não tem banheiro, não tem água...”, enumera
outro. “Manda a gente para qualquer lugar, mas tira a gente da-
qui”, pede um detento154.
154
Disponível em: <http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2015/06/
com-maior-superlotacao-prisional-do-pais-pe-vive-emergencia-ha-5-
-meses.html>. Acesso em: 11 jul. 2016.
155
Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/traficantes-
-vao-cumprir-regime-disciplinar-diferenciado-17899534.html>. Acesso
em: 17 jul. 2016.
186 Manifesto para Abolir as Prisões
No final das contas, na lição barthesiana de que “quem resiste to-
talmente cede totalmente”156 pode ser acrescentado que quem resis-
te totalmente também pode obrigar ou provocar outros a cederem
totalmente.
O RDD foi criado com o objetivo de limitar o arbítrio dos agentes
penitenciários157, embora o procedimento desburocratizado que já
chegou a justificá-lo seja a maior prova da falsidade dessa intenção:
Então, não é por outro motivo que a submissão a ele tem tido um
efeito verdadeiro contrário: a) ou ela facilita o trabalho do Estado pri-
sional, como a obtenção mais rápida e mais substancial de informa-
ções junto a alcaguetes (delatores e colaboradores premiáveis): “[...]
suportar as agruras de um regime tão duro de cumprimento da pena
de prisão [...] é para poucos [...]159”; b) ou ela corrompe ainda mais a
sua atual condição já pervertida (possibilidade de oferecimento pelo
preso [suborno], ou de exigência pelo agente penitenciário [extor-
são], de vantagens com muito mais facilidade, haja vista o maior de-
sespero daquele e a maior percepção deste quanto a essa desespe-
rança, dentro de um regime de exceção [RDD]).
156
BARTHES, Roland. Mitologias. 4. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 225.
157
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
158
Disponível em: <http://jota.uol.com.br/as-origens-do-regime-discipli-
nar-diferenciado>. Acesso em: 18 jul. 2016.
159
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 187
[...] Na inauguração do CRP de Presidente Bernardes [Centro de
Readaptação Penitenciária de Presidente Bernardes, que se des-
tinaria exclusivamente para aplicação do RDD], em 2002, bem no
dia de aniversário da minha filha Juliana, 02 de abril, lembro que
falei na solenidade mais ou menos o seguinte: “estamos entre-
gando ao povo paulista um estabelecimento penal de segurança
máxima. Nele colocamos tudo para preservar a ordem e a discipli-
na e para impedir fugas: desde detectores de metal, aparelhos de
raio X, pisos de aço com 10 mm de espessura, aparelho bloquea-
dor de celular, cabos de aço para impedir acesso de helicópteros,
até locais para visita que impedem contato físico entre visitantes
e presos. Advogados só poderão falar com seus clientes por meio
de interfones instalados nos parlatórios guarnecidos com vidro
reforçado. Porém, isto tudo não servirá para nada se não for, como
diz o coordenador Perci, o ‘zóio do guarda’. Serão vocês, funcioná-
rios, e não os equipamentos, que farão desta penitenciária mode-
lo para o Brasil [sic]160.
Ou seja:
Como tudo que envolve a prisão, o RDD também não deixa de ser
um discurso conveniente, seja porque ele pode ser prático e simbóli-
160
Disponível em: <http://jota.uol.com.br/as-origens-do-regime-discipli-
nar-diferenciado>. Acesso em: 18 jul. 2016.
161
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
188 Manifesto para Abolir as Prisões
co ao mesmo tempo, seja porque ele pode favorecer alguns e preju-
dicar outros, simultaneamente.
162
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 189
estabelecem uma diferenciação entre lideranças “comuns”, exis-
tentes em todo agrupamento humano, e aquelas perniciosas ou
negativas, as quais seriam os alvos das transferências. Para eles,
as lideranças negativas seriam as que se mostrassem de forma
muito evidente, clara, inequívoca; aqueles que fizessem questão
de serem percebidos enquanto tal, afrontando, assim, o poder
público diretamente, apresentando-se como instância decisória
fundamental dentro da prisão. Na verdade, o que está implícito
nesta estratégia dos diretores é um acordo tácito entre adminis-
tração e lideranças da massa carcerária, a partir do qual se defi-
nem os limites do exercício do poder informal pela facção, mas
sem que esse exercício do poder provoque a desmoralização da
autoridade formal. Trata-se de um arranjo para permitir que as li-
deranças exerçam seu poder, mas de maneira menos visível, para
transmitir a aparência – em especial, para quem vem de fora – de
que esse poder é exercido pela administração. Além dessa lide-
rança menos ostensiva, há uma tentativa, por parte dos membros
da organização, de dar outra conotação ao papel do líder. Em to-
das as entrevistas realizadas, pairava um mal-estar no momento
em que era perguntado sobre o “líder”. Os entrevistados (“irmãos”
ou “companheiros” do PCC) apressavam-se em dizer que, atual-
mente, não existiam mais líderes nas unidades prisionais, mas sim
“pessoas com mente”, isto é, dotadas de capacidade de resolução
dos conflitos. Esse era o seu papel, ou seja, manter a ordem e a paz
na prisão. A repressão às lideranças provocou um deslocamento
da sua denominação de “piloto” para “pessoa com mente”. A re-
cusa em assumir o papel de “líder” também pode ser claramente
observada no já citado depoimento de Marcola à CPI do Tráfico
de Armas. Em vários trechos, ele nega veementemente esse papel
e diz que, quando Geleião e Cesinha foram expulsos da organiza-
ção, a população carcerária atribuiu a ele essa posição. No entan-
to, ele afirma que teria distribuído a liderança porque não tinha
nenhum interesse em exercê-la, mas a imprensa, o Ministério Pú-
blico e as polícias insistiram em identificá-lo enquanto tal, a fim
de transformá-lo em bode expiatório. [...] pouco importa a vera-
cidade das declarações de Marcola, bem como dos outros presos
entrevistados. O importante é identificar essa mudança no discur-
so do PCC, na insistência em negar a condição de liderança para
se esquivar das transferências de unidades e para regimes mais
severos. [... É] possível perceber outro mecanismo para driblar tais
163
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 de jul. 2016.
164
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
165
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>.
1 O Presente do Sistema prisiona 191
ocupadas166, quase todas por penitenciados desprovidos de uma ex-
pressão que possa ensaiar qualquer contestação ao poder prisional.
Sobre eles esse regime de exceção (RDD) ganha potência máxima,
alcançando mais rápida e mais profundamente aquilo que se pode
chamar de máxima dessocialização.
166
Disponível em: <http://www.sap.sp.gov.br/>. Acesso em: 19 jul. 2016.
167
Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/revis-
ta_fbsp_05_artigo_3_0.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2016.
192 Manifesto para Abolir as Prisões
conhecido por denunciar a corrupção das elites russas, consi-
derado até há pouco tempo o “inimigo político número um” do
Presidente russo, Vladimir Putin, foi perseguido judicialmente,
com o seu irmão Oleg, no âmbito de um caso de desvio de di-
nheiro de uma filial da empresa francesa Yves Rocher e encon-
trava-se em prisão domiciliária. A justiça russa antecipou para
hoje a leitura da sentença – inicialmente agendada para meados
de janeiro de 2015 – para impedir os seus apoiantes de protes-
tarem contra o seu julgamento num caso de desvio de dinhei-
ro que consideram político. Oleg foi também condenado a três
anos e meio mas de prisão efetiva168.
168
Disponível em: <http://www.dn.pt/globo/interior/inimigo-politico-
-numero-um-de-putin-condenado-a-tres-anos-e-meio-de-prisao-com-
-pena-suspensa-4317569.html>. Acesso em: 20 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 193
Provavelmente seu crime é defender o boicote à farsa eleitoral e
o direito do povo de se rebelar169.
169
Disponível em: <http://anovademocracia.com.br/no-151/5936-igor-
-mendes-e-o-preso-politico-mais-importante-do-brasil>. Acesso em:
20 jun. 2016.
194 Manifesto para Abolir as Prisões
por quatro pessoas em plena cela, esfaqueado várias vezes e teve
o corpo cortado em 59 pedaços para impedir que fosse encon-
trado pelos carcereiros. Mas não parou por aí: uma vez morta, a
vítima teve seu fígado arrancado, salgado, grelhado e comido
pelos assassinos, que ainda o distribuíram aos colegas de espa-
ço. [...] Comentários: [omitimos o nome do(a) comentador(a)] por
mim, que se comam todos e chupem bem os ossos ate o ultimo
que ficar de pé, quem realmente merece ser bem tratado eh o
povo que sua a camisa pra ter as coisas.... [omitimos o nome do(a)
comentador(a) Solução para acabar com a superlotação carcerá-
ria –--> canibalismo [sic]170.
170
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2015-10-20/
morto-a-facadas-preso-e-cortado-em-59-pedacos-e-tem-figado-comi-
do-em-pedrinhas.html>. Acesso em: 20 jun. 2016.
171
Disponível em: <http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/10/fac-
cao-da-ordem-para-matar-policiais-e-ate-criancas-de-dentro-do-presi-
dio.html>. Acesso em: 20 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 195
Porém, se considerarmos as funções escondidas da pena perce-
beremos ser inegável que essas suspensões da neutralização aconte-
cem porque elas são interessantes ao sistema. Elas permitem a ferti-
lização do pânico social que conduz as pessoas a contraditoriamente
depositarem ainda mais esperança na prisão, certamente porque
acreditam que ela ainda não está aparelhada o suficiente para dar
conta do poder da criminalidade. Nesse sentido os presos continuam
sendo um mero instrumento para que o poder punitivo promova um
dardanismo social.
172
A título de exemplo, ver <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitoshu-
manos/noticia/2015-10/embargodetentos-tem-chaves-e-controlam-
-prisoes-de-pernambuco-denuncia>. Acesso em: 10 abr. 2016.
173
ABRAHÃO, Regina Maura Cabral de Melo. Diagnóstico da tuberculose na
população carcerária dos distritos policiais da zona oeste da cidade de São
Paulo. 2003. Tese de Doutorado em Saúde Pública. Faculdade de Saúde
Pública da USP, São Paulo, 2003. “O fato de haver 3 detentos com cepas
multirresistentes às drogas antituberculose é uma ameaça à saúde pú-
blica.”
196 Manifesto para Abolir as Prisões
ainda mais invisível socialmente, e, consequentemente, mais útil ao
capital – estigmatização esta que é irreversível, mas não é exclusivi-
dade dos confinados. Ela compromete todos que tocam o sistema
prisional: pessoal funcional (agentes penitenciários, etc.), policiais,
promotores de justiça, magistrados e, até mesmo, alguns advogados.
174
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/16
0322_policiais_suicidios_fe_if>. Acesso em: 21 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 197
Apesar desse seu efeito devastador, o Estado consegue, mediante
a prisão, promover uma campanha de ilusionismo e hipnotismo da
população. Ele não tenta convencê-la de que o problema está sen-
do resolvido, pois isso esvaziaria lentamente a função prisional. Ele
apenas noticia que a questão criminal pode ser resolvida, desde que
ele tenha o armamento adequado. Em um ritmo assustador, ao mes-
mo tempo em que ele solta presidiários que irão fertilizar a paranoia
coletiva ele faz as pessoas acreditarem que a questão criminal pode
ser satisfatoriamente controlada mediante a técnica, sobretudo, da
neutralização prisional (esquecimento e inocuização do preso). Po-
rém, para que tudo isso aconteça é preciso que haja uma preparação.
E como funcionaria essa estratégia?
Antes de liberar os cativos a prisão os submete a um excessivo
destreinamento, a ponto de deixá-los ainda mais incompatíveis com
as regras comuns e ainda mais aptos a interpretarem o papel de ini-
migos perigosamente incorrigíveis. As condições propositadamente
indignificantes das nossas prisões são o ambiente ideal para o desen-
volvimento dessa cultura onde se reproduz a matéria prima que será
maquiada pelo Estado para parecer ainda mais aterrorizante.
Como o Estado punitivo deseja permanecer no poder, ele fre-
quentemente amplifica a histeria febril para assustar as pessoas e
apresentar a prisão como o único fetiche que conseguirá atender aos
nossos desejos monótonos de expiação. Como a paranoia é renova-
da sempre que estamos tranquilos, diariamente exigimos um novo
culpado que nos redimirá das nossas próprias angústias, falhas e cul-
pas, ainda que provisoriamente.
Essa sedução excitante que a prisão encena decorre do fato de
que ela foi formatada para nos embriagar com falsas promessas de
possível e iminente solução do problema criminal, e, consequente,
sensação de segurança social e pessoal. Por isso ela não permite que
percebamos que o problema está sendo apenas encoberto, enquan-
to sua gestação progride e se amplia. No mais, mesmo na performan-
ce atual da prisão (castigo), o Estado não deixou de promover o seu
espetáculo condenatório, só que agora ele é simbolizado por julga-
mentos públicos e execuções privadas, mediante o cumprimento de
penas às escondidas, e quase sempre praticadas por policiais.
198 Manifesto para Abolir as Prisões
Repetindo uma pergunta que incomoda: mas, se a prisão tem de-
feitos tão evidentes, por que ela continua funcionando da mesma
maneira há mais ou menos 250 anos, ou até mesmo existindo? A res-
posta é constrangedora: porque o seu maior defeito é contraditoria-
mente a sua maior força. Quanto mais a prisão segregar os inimigos,
ainda que não conseguindo consertá-los, mais tranquilos ficaremos.
Quanto menos ela remendá-los, obrigando-os a nela permanecer ou
para ela voltar, mais viveremos em paz, e justamente porque a maio-
ria das pessoas não está sinceramente interessada na (re)socialização
dos encarcerados. Ela deseja apenas que eles sejam neutralizados, ou
mortos, ou que pelo menos acumulem poeira durante o seu estágio
prisional. No mínimo, que nunca mais sejam soltos. Se a prisão aten-
der a esse desejo – e, se além dele, ela capturar os inimigos conve-
nientes que ainda estão livres –, já nos daremos por satisfeitos. O res-
to é problema e culpa do próprio aprisionado, que fez por merecer.
A prisão é apresentada como uma instituição que se esforçará
para remodelar as pessoas que infringiram as leis e que por isso ain-
da não estão prontas para conviver socialmente. Porém, no fundo
ela não pretende conter os inimigos convenientes, resignados e ir-
resistíveis, para devolvê-los melhores à sociedade. Como essa é uma
verdade desconfortável e que nunca é assumida, algumas pessoas
teimam em acreditar que ela é um ortopedista social. Nem é preciso
anotar que as vantagens desse entendimento para a manutenção da
prisão são óbvias.
Nesse compasso o poder prisional vai tentando, e conseguindo,
enganar a todos simplesmente fingindo atender vários anseios ao
mesmo tempo, embora incompatíveis entre si: a) ele mantém intac-
tas as pessoas amigas e as resistentes; b) ele satisfaz os que desejam
que o inimigo seja aniquilado (mortes em presídios); c) ele agrada
os que apenas querem se ver livres do perigo (prisão dos inimigos
convenientes); d) ele aparenta preocupar-se com a melhora dos en-
carcerados, e enaltece e generaliza seu eventual sucesso (presos ga-
nhadores de prêmios ou aprovados em vestibulares, etc.); e, por fim,
e) ele mantém o emprego dos que vivem do poder prisional (poli-
ciais, agentes penitenciários, magistrados, advogados, promotores
de justiça, etc.).
175
Em 17 de fevereiro de 2016, a maioria do Plenário do Supremo Tribu-
nal Federal entendeu que a pena pode ser cumprida após decisão de
segunda instância, modificando, assim, entendimento anterior sobre o
artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988.
200 Manifesto para Abolir as Prisões
da intranquilidade foi concretamente resolvido esfria e inutiliza qual-
quer argumento que tente apontar a existência de um defeito formal
na sua solução. Embora a prisão tenha problemas e se equivoque ela
se esforça para resolver algumas das minhas inquietudes mais preo-
cupantes. Provavelmente nenhum de nós se incomodará se desco-
brir que o médico que debelou nossa doença quase fatal fez uso de
medicamentos destinados a outro paciente.
A partir do funcionamento real da prisão também é possível per-
ceber que da mesma maneira que não podemos afirmar que a so-
ciedade ativa a prisão sempre que um crime é praticado, visando a
reequilibrar-se, não é possível acreditar que a tranquilidade e a segu-
rança sociais são restauradas a partir de cada novo aprisionamento.
Pelo contrário: a única certeza que podemos ter é que a prisão fun-
ciona mentindo, iludindo e praticando crimes.
Sobre outro aspecto, é difícil dizer se a prisão castigo começou a
funcionar visando à humanização das condenações ou se ela teve
desde o início um aspecto econômico, voltado para a acumulação
disponível de braços a favor do suserano. Homens mortos não lutam
e não remam. Todavia, de um tempo para cá a prisão, ou os aprisio-
namentos, tem prestado apenas para servir aos interesses de alguns
indivíduos. Só depois que são atendidos é que eles procuram uma
justificativa que demonstre que a prisão contemplou algum interes-
se coletivo.
176
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-
-estado/2016/04/02/ex-ministro-argentino-citado-na-operacao-lava-
-jato-e-preso-por-corrupcao.htm>. Acesso em: 21 jun. 2016.
177
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-
-estado/2016/04/02/ex-ministro-argentino-citado-na-operacao-lava-
-jato-e-preso-por-corrupcao.htm>. Acesso em: 21 jun. 2016.
202 Manifesto para Abolir as Prisões
Embora a prisão só funcione quando alguém a provoque (desaca-
to contra policial, etc.), ou exija que ela atue (sentença condenatória
reclusiva), ela nem sempre está vinculada à prática de um crime ou à
existência de um criminoso, de uma acusação, de uma culpabilidade,
de uma condenação ou de uma pena privativa de liberdade determi-
nada. A existência de um crime, de um criminoso, de uma acusação,
de uma culpabilização, de uma condenação e, ou, de uma ordem pri-
vativa liberdade são apenas desculpas, e as menos importantes para
que o poder prisional exerça toda a sua violência.
Não é preciso dedicar muita atenção à prisão para perceber que
ela funciona com bastante liberdade, fazendo o que quer, quando
quer e como quer: a) ou porque ela tem uma procuração estatal; b)
ou porque ela tem o aval da sociedade para agir como achar mais
conveniente, desde que ela elimine pelo menos visualmente o pro-
blema, retirando do ambiente social aqueles que o sujam.
Valendo-se de um jogo fraudado, a prisão opera sempre seletiva-
mente. Às vezes tratando situações desiguais como se iguais fossem,
e situações idênticas como diferentes. Randomicamente ela pinça
dentro do universo de inimizades aquele inimigo mais convenien-
te. Aleatoriamente ela permite que um ou outro dos seus clientes se
desgarre e propague alto e bom som que a privação da sua liber-
dade foi a sua salvação. Discricionariamente, funcionando de acordo
com a conveniência e a oportunidade de quem a dirige, ela decide
sacrificar alguns dos seus ex-invulneráveis, fazendo calar as vozes da-
queles que a acusavam de parcial e de somente se voltar contra os
impotentes. Mal sabem eles que essa atitude aleatória, travestida de
justiça, compara elementos materialmente diferentes, mas apresen-
tados como formalmente equivalentes: em um lado da balança ela
dispõe uma quantidade (o peso de mais de 700.000 presidiários); no
outro prato da balança ela deposita uma qualidade (a importância
da prisão de um político desprotegido). A distância entre um e outro,
apesar de gritante, é desconfiada por poucos, possivelmente em ra-
zão do efeito calmante que essa comparação exerce.
Talvez sejam esses presentes homeopáticos os responsáveis por
fazer com que as pessoas esperançosamente acreditem que a prisão
tem algum efeito mágico capaz de resolver os problemas sociais,
1 O Presente do Sistema prisiona 203
sobretudo o da criminalidade. Talvez por isso elas fiquem perpetu-
amente aguardando esses efeitos milagrosos acontecerem. Embora
nada aconteça, talvez essa seja a razão de poucos questionarem a
sua ineficiência e inutilidade, e de um número menor ainda conse-
guir ter a lucidez da personagem tolstoiana de Ressurreição:
178
Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,maioria-
-no-supremo-absolve-collor-de-desvio-de-dinheiro,1158148>. Acesso
em: 05 out. 2015.
208 Manifesto para Abolir as Prisões
ir a Brasília prestar depoimento três vezes. E eu não me recusaria
a prestar depoimento aqui, era só ter me convidado”, afirmou ele,
no pronunciamento que fez na sede do PT, após o término do
depoimento que prestou à Polícia Federal (PF) no Aeroporto de
Guarulhos, em São Paulo179.
179
Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-que-
-justifica-a-conducao-coercitiva-de-Lula-/4/35629>. Acesso em: 29 jun.
2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 209
tido um pouco da sua forma original, modificando-a de acordo com
inúmeras circunstâncias e variáveis (inúmeras diferenças entre quem
pode prender, incontáveis diferenças entre quem pode ser preso e
infinitas diferenças nas características temporais e ambientais envol-
vendo o encarceramento, etc.)180.
O formato original do poder punitivo já é horrível e assustador.
Mas, se multiplicarmos a possibilidade dessas microvariações que
acontecem toda vez que ele atua, pela quantidade de pessoas e von-
tades que interferem na aplicação do poder prisional, teremos uma
infinidade de combinações e arranjos pavorosos, todos aptos a trans-
formarem a prisão em um poder que se desgarrou do poder punitivo,
e os aprisionamentos em um poder mais emancipado ainda.
De qualquer maneira, nessa sequência fractal de degradações e
distorções a arbitrariedade e a seletividade do poder punitivo, que já
eram altas, passam a elevadíssimas quando analisamos as prisões, e
a ser insuportável e impraticável quando avaliamos os aprisionamen-
tos – e, como veremos, a ser o ápice da crueldade, do terror e da im-
posição da dor e do sofrimento quando apreciamos algumas ativida-
des policiais. Em termos práticos, o poder punitivo é discricionário. A
prisão, que se desapegou dele, é mais discricionária ainda. E os agen-
tes funcionais (agentes penitenciários, policiais, delegados, promo-
tores de justiça, juízes), individualmente elevaram essa conveniência
e essa oportunidade randômicas ao extremo. Eles se desamarraram
quase que completamente do criminoso, do crime, da acusação, da
culpabilidade, da condenação, da pena e até das próprias regras pri-
sionais. Atualmente o poder de cada agente prisional é tão arbitrário
que ele chega a ser mais aleatório que a prisão que, por sua vez, tem
sido mais discricionária que o próprio poder punitivo, embora dele
sejam parte integrante. É como se se tratasse de um superpoder dis-
cricionário e quase incontrolável. O ápice da seletividade alcançável
pelo poder punitivo.
Com efeito, dentro do microssistema do direito penal dos amigos
a prisão não atua e funciona exclusivamente para proteger os seus
180
Sobre todo o parágrafo, ver: <http://www.scielo.br/pdf/rbef/v30n2/
a05v30n2.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2016.
210 Manifesto para Abolir as Prisões
membros individualmente. Às vezes o interesse coletivo é mais im-
portante. Nesse megagrupo, no sentido de poder, e não de tamanho,
os encarceramentos também podem acontecer contraminoritaria-
mente. Como quando o interesse do grupo dominante se sobrepõe à
vontade daquele que agora perdeu a sua capacidade de influência a
sua prisão passa a ser mais útil à equipe do que a sua liberdade.
181
Disponível em: <http://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/237628/
Globo-crava-estaca-no-peito-de -Cunha-e -pede -para-Temer-
-n%C3%A3o-defend%C3%AA-lo.htm>. Acesso em: 12 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 211
liberdade sem a obrigação de se apresentar periodicamente às
autoridades policiais. Foi já ao final da tarde que o principal ele-
mento do grupo, ouvido durante todo o dia pelo magistrado, saiu
do tribunal em direcção ao Estabelecimento Prisional de Custóias.
Existem suspeitas de que estes dois homens pertençam a um gru-
po mais alargado de assaltantes, responsável por inúmeros casos
de assaltos a bombas de gasolina, ourivesarias e roubo de carros
pelo método de carjacking. As investigações continuam com o
intuito de encontrar os restantes suspeitos. Recorde-se que os in-
vestigadores da Polícia Judiciária do Porto e de Braga detiveram,
anteontem de manhã, na zona da Maia, estes dois intervenientes
dos assaltos [...] [sic]182.
182
Disponível em: <http://www.cmjornal.xl.pt/nacional/portugal/detalhe/
um-preso-e-outro-solto.html>. Acesso em: 22 jun. 2016.
212 Manifesto para Abolir as Prisões
os seus agentes funcionais –, ganha independência do criminoso, do
crime, da acusação, da culpabilidade, da condenação e da pena, mais
ela assume uma função própria genérica, que é a de servir para qual-
quer coisa e, ao mesmo tempo, para nada de útil à população. De-
sapegada dos fatos e das regras jurídicas, ela pode atuar até contra
ambos. Por mais folclóricos que esses tempos sombrios pudessem
parecer, eles já nos alcançaram.
183
Disponível em: <http://justificando.com/2016/06/09/de-oficio-magis-
trado-decreta-a-prisao-em-habeas-corpus/>. Acesso em: 24 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 213
a classe alta da média e da baixa, e iludindo a média, que acredita
pertencer à alta, ao fazê-la crer que está distante daqueles que ela
pensa que fazem parte da média e da baixa. Só essa sua função jus-
tifica ainda a sua existência. Esse é o único motivo pelo qual o poder
prisional foi criado. Essa é a única utilidade que ele tem para quem
o inventou e o mantém. Os demais membros, os das classes média e
baixa, são apenas matéria prima, respectivamente pouco ou muito
utilizável. Ela é uma arma poderosíssima e os invulneráveis apren-
deram a controlá–la desde a revolução francesa, último momento
em que ela trocou de lado de maneira macabra. Por isso chega a ser
inacreditável pensar que a prisão, enquanto continuar existindo, dei-
xará de dirigir–se exclusivamente contra os vulneráveis, blindando
os dominantes. O fato de ela ter se autonomizado não é suficiente
para permitir que ela se revolte contra quem a alimenta. A sua inde-
pendência vai apenas até o limite em que ela ouse tentar desatender
quem a controla e explora. Não é preciso mais para que as pessoas
que usufruem os seus serviços jamais cogitem aboli–la.
Como os indivíduos que compõem o microssistema atuam no re-
gime atacadista, eles se preocupam em controlar apenas a demanda
por ordem que irá viger dentro do macrossistema integrado pelos
inimigos irresistíveis (classe baixa) e pelos prováveis (classe média).
Eles se limitam a definir o modelo do estereótipo (traficante afrodes-
cendente, jovem e pobre, homicidas exagerados, estupradores des-
controlados, etc.), e o padrão da sua conduta (porte e comércio de
poucos gramas, etc.). Depois que o fazem, eles entregam o controle
prisional varejista nas mãos da polícia. São os policiais que exercem
o poder encarcerador de maneira pulverizada dentro do macrossis-
tema ao qual eles próprios pertencem. Desde que não sejam ultra-
passados os limites pré-estabelecidos, o que eles fazem ou deixam
de fazer, e como atuam, é indiferente aos componentes do micro-
grupo dominante. Se eles aprisionam um usuário como traficante ou
se liberam um megatraficante, pouco importa. A menos que este ou
aquele tenham o poder de influir na demanda por ordem vigente, ou
tenham sido dispostos fora dela previamente.
Então, além de inúmeros outros, um dos grandes motivos para
o descontrole atual do poder prisional é que a classe dominante re-
ABUSOS DE AUTORIDADE
Os cidadãos, quase sempre os pobres, diariamente são vítimas de
abusos de autoridades. Nossos direitos são desrespeitados quan-
do: – somos presos ilegalmente, sem termos cometido qualquer
crime; – somos revistados sem motivo e com violência; – nossos
barracos são invadidos por policiais, em busca de marginais que
nem conhecemos; – confissões nos são exigidas à força, com tor-
turas ou somos obrigados a testemunhar o que não vimos nem
184
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/violencia/abuso.
htm>. Acesso em: 18 jun. 2016.
216 Manifesto para Abolir as Prisões
COM LEI DE DROGAS, PRESOS POR TRÁFICO PASSAM DE 31
MIL PARA 138 MIL NO PAÍS
Tráfico é crime que mais encarcera; aumento foi de 339% desde
lei de 2006. Para especialistas, aplicação é falha e teve efeito per-
verso sobre usuários.
[...] M. foi presa em 2012 com 1 grama de maconha. Foi conde-
nada por tráfico a uma pena de 6 anos e nove meses de prisão e
pagamento de 680 dias-multa. A decisão foi mantida em segunda
instância. Em março, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou
seu habeas corpus. Ela só foi solta em abril, após mais de três anos
de cárcere, por decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo
Tribunal Federal (STF). [...] milhares de processos semelhantes
[...] têm chegado aos tribunais desde a entrada em vigor da Lei
de Drogas, em 2006. A aplicação falha da lei é apontada como a
causa da superlotação dos presídios na última década. Presos por
tráfico de drogas já superam os de todos outros crimes no país,
segundo dados do Ministério da Justiça. [...]
Crescimento vertiginoso
Em 2006, quando a Lei 11.343 começou a valer, eram 31.520 pre-
sos por tráfico nos presídios brasileiros. Em junho de 2013, esse
número passou para 138.366, um aumento de 339%. Nesse mes-
mo período, só um outro crime aumentou mais dentro das ca-
deias: tráfico internacional de entorpecentes (446,3%). [...]
Usuário x traficante
Pela lei, para definir se o preso é um usuário de drogas ou um
traficante, o juiz levará em conta a quantidade apreendida, o
local, condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias
sociais e pessoais, além da existência ou não de antecedentes.
Essa mesma interpretação é feita pelo policial, quando prende, e
pelo promotor, quando denuncia. O porte para consumo próprio
é crime, mas as penas são advertência, prestação de serviços à
comunidade ou medida educativa. O sujeito é detido, assina um
termo circunstanciado, e é liberado para responder em liberdade.
A pena para o tráfico vai de 5 a 15 anos. Na lei anterior, ia de 3 a 15
anos. O sujeito é preso em flagrante, que pode ser convertido em
uma prisão preventiva (sem prazo). E o juiz não podia conceder
liberdade provisória até 2012, quando o STF derrubou essa regra.
185
Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/com-lei-
-de-drogas-presos-por-trafico-passam-de-31-mil-para-138-mil-no-pais.
html>. Acesso em: 22 jun. 2016.
186
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercus-
sao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso
=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506>. Acesso em: 22 jun.
2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 219
“DECISÕES SOBRE DROGAS ESTÃO NAS MÃOS DA POLÍCIA,
NÃO DOS JUÍZES”, DIZ EX-SECRETÁRIO NACIONAL DE
JUSTIÇA
[...] Como a lei atual hoje não define critérios para distinguir trafi-
cantes de usuários, na prática, diz Abramovay, são os policiais que
decidem. “Como as nossas estruturas de desigualdade são muito
fortes, o critério acaba sendo este: se a pessoa é pega na favela,
ela é traficante, se é pega fora, é usuário. O juiz só vai analisar o
caso com cuidado lá na frente, e acaba chancelando a decisão da
polícia”, afirmou em entrevista à BBC Brasil187.
187
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noti-
cias/2015/06/150623_abramovay_entrevista_pai_ms>. Acesso em: 29
jun. 2016.
220 Manifesto para Abolir as Prisões
de anonimato. Os agentes também estão proibidos de frequen-
tar bares e boates no entorno do alojamento e foram alertados
até sobre o contato com mulheres na favela. –Disseram inclusive
para não abordarmos mulheres na favela e nem ficarmos olhando
muito – disse outro policial. Ontem, o EXTRA revelou que os agen-
tes não podem circular armados pela favela e foram impedidos
até de instalar internet nos apartamentos onde estão alojados.
Como a milícia explora o sinal a cabo na região e, de acordo com
os agentes, as operadoras de internet fixa são impedidas de atuar
na área pelos paramilitares, cada policial tem usar a própria inter-
net móvel [sic]188.
188
Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/agentes-da-
-forca-nacional-nao-podem-andar-sozinhos-nem-consumir-bebidas-
-alcoolicas-em-favela-dominada-pela-milicia-19720058.html>. Acesso
em: 16 jul. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 221
ria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de
drogas;
II – semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desa-
cordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que
se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a pro-
priedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou con-
sente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regula-
mentar, para o tráfico ilícito de drogas. [...]
Art. 34. Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender,
distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer,
ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou
qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou
transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200
(mil e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa. [...]
Art. 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou
associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos
nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e pagamento de 300
(trezentos) a 700 (setecentos) dias-multa. [...]
Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37
desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto,
anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas
em restritivas de direitos.
Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-
-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois ter-
ços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico. [...]
Art. 52. Findos os prazos a que se refere o art. 51 desta Lei, a au-
toridade de polícia judiciária, remetendo os autos do inquérito
ao juízo:
I – relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as
razões que a levaram à classificação do delito, indicando a quanti-
dade e natureza da substância ou do produto apreendido, o local
222 Manifesto para Abolir as Prisões
e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as cir-
cunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes
do agente; [...].
189
Disponível em: <http://www.douradosnews.com.br/dourados/vinte-
-dias-apos-ser-solto-homem-volta-a-cometer-mesmo-crime>. Acesso
em: 22 jun. 2016.
224 Manifesto para Abolir as Prisões
O vigilante e o gerente de uma agência bancária em Londrina
(PR) foram parar na delegacia, na terça-feira (2), após um policial
civil ser barrado na porta do banco. Ele queria pagar uma conta e
teria pedido que a entrada pelo detector de metais fosse liberada.
O agente apresentou a carteira de policial, mas o vigilante quis
checar a credencial antes de liberar a entrada. De acordo com
Geraldo Fausto dos Santos, diretor do Sindicato dos Bancários,
o policial chamou outros três colegas e exigiu que a porta fosse
liberada. Assim que entrou na agência, prendeu e tomou a arma
do vigilante, que foi algemado e levado de camburão à delegacia.
“Tudo o que ele [vigilante] fez foi ir verificar o documento com o
gerente. O policial seria liberado para entrar, mas teve uma reação
desproporcional. Inclusive colocou em risco os clientes da agên-
cia”, afirmou Santos. “Ele [vigilante] foi agredido em uma ação de
total despreparo. É um trabalhador”. Na delegacia, o vigilante foi
autuado por desobediência e o gerente por resistência. “Somos
solidários ao vigilante e ao gerente. As gravações internas do sis-
tema de câmeras devem mostrar inclusive o policial rendendo o
vigilante com uma arma na cabeça e colocando todos os clientes
em risco. Causou pânico total”, disse o diretor do sindicato190.
190
Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL746983-
5598,00-POLICIAL+PRENDE+VIGIA+AO+SER+BARRADO+EM+BANCO+
NO+PARANA.html>. Acesso em: 24 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 225
mento das passagens de ônibus. Ele levava consigo duas garrafas
de produtos de limpeza – água sanitária e desinfetante Pinho Sol –
consideradas “artefato explosivo ou incendiário” pela polícia e pelo
juiz responsável pelo caso. Vieira afirma que não participava do
protesto e não tinha relação com os manifestantes. De acordo com
a sentença, ele deve cumprir ainda mais quatro anos no presídio
de Bangu 5, no Rio de Janeiro, onde divide cela com outros 70 de-
tentos. Por dia, tem direito a duas horas de sol no pátio da prisão191.
191
Disponível em: <http://www.geledes.org.br/quem-e-rafael-braga-viei-
ra-o-unico-preso-por-crime-relacionado-protestos-brasil-ele-portava-
-pinho-sol/>. Acesso em: 24 jun. 2016.
192
Disponível em: <http://www.sul21.com.br/jornal/brasil-na-maioria-
-dos-casos-fica-se-preso-alem-tempo-diz-presidente-conselho-peni-
tenciario-rio/>. Acesso em: 24 jun. 2016.
226 Manifesto para Abolir as Prisões
Toda essa autonomia do poder prisional equivale a afirmar que a
prisão nem sempre é uma consequência natural, podendo ser uma
mera interpretação artificial ou invenção: a) seja do fato encarado
como crime; b) seja do que dispõe a lei penal; c) seja do que repre-
senta o criminoso; d) seja do que tenta provar a acusação; e) seja do
que está disposto na condenação.
E, mesmo quando ela aparenta ser natural, ela é injusta em razão
da seletividade que promove. E ela é sempre seletiva, pois trata dife-
rentemente situações iguais, e serve, por detrás das cortinas, como
uma ferramenta de exclusão e controle social apenas dos vulnerá-
veis, dos dissidentes e dos inservíveis.
Requentando o que já foi dito, pode-se fiscalizar o que a prisão
devora. Porém, o quanto ela devora não está sendo objeto de con-
trole. A quantidade de gente que ela vem gastando e desgastando
só tem crescido. Portanto, outro inconveniente da emancipação do
poder prisional tem sido o encarceramento em massa. Não se sabe
qual o limite dessa autonomia de poder, embora saibamos que essa
independência é a causa principal desse descontrole.
193
Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/com-lei-
-de-drogas-presos-por-trafico-passam-de-31-mil-para-138-mil-no-pais.
html>. Acesso em: 29 jun. 2016.
194
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, pp. 37 e 38. Acesso em: 24 jun. 2016.
228 Manifesto para Abolir as Prisões
soas que estão sendo submetidas a um procedimento de destreina-
mento, conveniente apenas para alguns.
Municiados com um poder discricionário (conveniência e oportu-
nidade = adequação ao interesse público), autoexecutório (dispensa
pedidos de permissão), e coercitivo (impõe a sua vontade, sob pena
de prisão), os policiais, que são os agentes diretamente responsáveis
pela implementação das prisões, encontram-se legitimados para
atuar dentro dos limites legais. Ocorre que a legalidade tem sido pal-
co para as maiores injustiças.
195
Disponível em: <www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150820_
telhada_ping_jc_lk>. Acesso em: 8 jul. 2016.
230 Manifesto para Abolir as Prisões
e ameaçado para que revelasse informações sobre o tráfico local.
Se não o fizesse, relatou o jovem, os policiais o incriminariam co-
locando nele uma arma e drogas. “Dez minutos depois dele ter
saído de casa, uma vizinha chegou dizendo que estavam batendo
em Rafael e que ele não tinha nada nas mãos”, relata à mãe, Adria-
na de Oliveira Braga, catadora de latinhas. A senhora, de 46 anos
e mãe de sete filhos, correu para encontrar seu filho, mas ele não
estava mais na rua. “Encontrei ele algemado na sede da UPP. Ele
não tinha envolvimento com o tráfico, mas eles [os policiais] não
gostam dele, disseram que era bandido”, diz Adriana. Apesar da
suspeita levantada pela defesa de o flagrante ter sido forjado pe-
los agentes, um juiz decretou sua prisão cautelar e afirmou na sua
decisão que “o indiciado tem a personalidade voltada para a prá-
tica delitiva”. Rafael foi acusado de tráfico de drogas, associação
com o tráfico e colaboração com o tráfico, crimes punidos com até
quatro anos de prisão. “Se discute se o flagrante foi forjado ou não
quando, na verdade, nunca vamos ter certeza sobre isso porque
é a palavra de um contra outro. Mas podemos questionar a forma
como os flagrantes são constituídos no Brasil, onde o depoimen-
to da policia é o único que vale para identificar um criminoso he-
diondo”, explica o delegado Orlando Zaccone [...]. “No Brasil basta
um garoto negro e pobre com uma pequena quantidade drogas
que já é considerado traficante, enquanto você, jornalista bran-
ca, seria identificada como usuária”, ilustra Zaccone. [...“] Rafael é
tido como um suspeito potencial para cometer crimes e tem algo
que agrava isso: a Justiça prestigia sempre a versão da polícia. Isso
não é justo, deve ter mais testemunha do que o policial, para que
não prevaleça sempre sua versão”, lamenta o desembargador Siro
Darlan. O problema não é exclusivamente brasileiro, avalia o pro-
fessor de direito penal da FGV, André Mendes, “mas aqui fica mais
acentuado porque o trabalho da polícia fica muitas vezes macula-
do por práticas ilegais, como os flagrantes forjados”. Durante sua
estadia atrás das grades Rafael chegou a ser punido com dez dias
na solitária após seu advogado ter postado no Facebook, em uma
das suas saídas em regime semi-aberto, uma foto dele frente a
um muro da prisão com a seguinte mensagem: ‘Você só olha da
esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima para baixo”.
O castigo não foi pichar a parede, coisa que ele não fez segundo
seu advogado, mas “veicular de má fé por meio escrito ou oral crí-
tica infundada a Administração Prisional”. [...] o delegado Zaccone
196
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/14/politi-
ca/1452803872_078619.html>. Acesso em: 24 jun. 2016.
197
Ver artigo 301 do Código de Processo Penal (CPP): “Art. 301. Qualquer
do povo poderá (??) e as autoridades policiais e seus agentes deverão
prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.” Todavia,
há inúmeras exceções.
232 Manifesto para Abolir as Prisões
Ele age por subordinação quando ele providencia o aprisiona-
mento levando em consideração diretrizes de outra pessoa, seja ela
uma autoridade superior, hierárquica ou não (que determina uma
diligência, etc.), ou um cidadão (que solicita a prisão de um agressor,
etc.). Nesse caso ele trabalha, em tese, imparcialmente. Eventual par-
cialidade e discricionariedade ficariam a cargo do seu superior (que
deseja usá-lo, mediante ordens manifestamente não ilegais, como
instrumento para negócios ilícitos, vinganças, etc.), ou do denuncian-
te (que forjou ou perverteu os fatos sobre uma agressão, etc.).
198
Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/05/
pms-entram-em-predio-publico-invadido-por-estudantes-em-sp.
html>. Acesso em: 24 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 233
Ele atua por coordenação quando ele realiza o encarceramento
considerando diretrizes próprias – como quando ele se sente desaca-
tado –, mesmo que o aprisionado tenha apenas manifestado seu di-
reito constitucional de contestar uma ordem manifestamente ilegal
determinada pelo agente policial.
199
Disponível em: <http://cgn.uol.com.br/noticia/146531/pm-se-posicio-
na-sobre-prisao-de-palhaco>. Acesso em: 24 jun. 2016.
234 Manifesto para Abolir as Prisões
“POBRE É PRESO COMO TRAFICANTE. PLAYBOY FAZ ACERTO
COM DELEGADO”
Para ex-investigador, possível descriminalização do uso de dro-
gas pelo STF não muda o essencial: polícia continuará a distinguir
usuários e traficantes pela classe social.
[...] Ponte Jornalismo: Então, na prática não vai mudar nada?
Roger Franchini: O nosso grande problema hoje é a questão de
quem é usuário e quem é traficante. É uma decisão muito delica-
da que é tomada pelo policial militar. Quando um PM chega com
alguém na delegacia com um montinho de maconha na mão, o
flagrante está praticamente pronto. É muito raro que um delega-
do contrarie a ocorrência de um PM, porque isso cria um atrito
muito grande entre as duas instituições. Muito embora caiba ao
delegado definir o crime de acordo com a norma, essa decisão é
sem dúvida influenciada pelo PM.
Ponte Jornalismo: E a tendência do PM é a de criminalizar essas
situações?
Roger Franchini: Ele parte principalmente da ideia de que tem
que limpar a rua. E o simples fato de você levar alguém pra de-
legacia pra assinar um termo circunstanciado de porte de droga
não atinge o que ele quer. O cara vai sair com ele de lá e é bem
capaz de voltar para o mesmo lugar para fumar a mesma maco-
nha. Então pra ele é muito melhor que ele faça um flagrante de
tráfico. E as maiores vítimas são aquelas pessoas que incomodam
a PM. Normalmente alguém que já foi preso por tráfico ou por
um roubo e que está na rua fumando um baseadinho. E aí pra
transformar esse baseado num crime de tráfico não é difícil. En-
tão é muito delicado essa relação entre traficante e usuário. E eu
acho que a tendência do STF é determinar quantidade de droga
tolerada, mas imagino que caberá à Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária) definir esses critérios sobre que determinada
quantidade não faz mal. Usuário bem nascido tem uma família
pra fazer o acerto com o delegado200.
200
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/201cpobre
-e-preso-como-traficante-playboy-faz-acerto-com-delegado.201d-
3462.html>. Acesso em> 24 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 235
A conduta do aprisionado é apenas uma desculpa para justificar
com mais facilidade a prisão dele como o inimigo conveniente que
ele representa e para dar à autonomia arbitrária da polícia um ar de
justiça e de correição. Se a retribuição da pena não passa de uma
vingança inútil – porque o bem ameaçado ou ofendido não retornará
ao seu estado anterior à ameaça ou à lesão –, e se a prisão não tem
qualquer poder de prevenir a prática dos crimes, por que e para que
se prende? Legalmente, a prisão deveria ser apenas o local de cum-
primento prático de uma pena seriamente privativa da liberdade,
certa e determinada. Dessa forma, e ainda consideradas as regras do
jogo legislativo, quem cometeu um crime e foi condenado à pena de
detenção ou reclusão, por exemplo, deveria ficar preso. E quem não
o cometeu, ou não foi condenado, deveria ficar solto. Porém, o siste-
ma prisional, sobretudo o policial, só obedece a uma lógica sofista
ou, no mínimo, baseada em um paralogismo. Embora a quantidade
de sentenças condenatórias injustas e prematuras seja vergonhosa,
todo aprisionamento deveria respeitar no mínimo os limites que elas
definem, pois somente elas são antecedidas por um devido proces-
so legal que, em tese, disponibilizou ao acusado todos os recursos
necessários à sua defesa. Todavia esse é um mundo paralelo e imagi-
nário, e totalmente distante da independência que o poder policial
infelizmente imprime sobre os inimigos convenientes.
Ao personificarem a justiça diante da classe aprisionável, os poli-
ciais usurpam a função judiciária: a) proferindo suas próprias senten-
ças condenatórias; ou, no mínimo, b) desprezando o seu comando
sentencial ao ampliarem ou perverterem os seus termos (prendendo
pessoas absolvidas, condenando-as para além do tempo decidido ou
em um modelo prisional diverso).
Essa arbitrariedade que a independência policial possibilita é ape-
nas externa. Ela autoriza também uma arbitrariedade interna ainda
mais submissa ao capricho do policial: a seletividade. Ela pode se
apresentar, por exemplo, quando: a) duas pessoas se associam para o
tráfico, sendo o piloto preso e o empresário, dono da aeronave, não;
ou b) cinco pessoas, em coautoria, envolvem-se em corrupção, sendo
quatro aprisionadas e uma não, em razão de colaboração premiada.
E:
201
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>, p. 13. Acesso em: 24 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 237
to em nove unidades da federação, a partir de uma amostra dos
processos criminais encerrados em 2011. Somados os casos de
absolvição, penas alternativas, prescrição e arquivamento, 37,1%
dos réus que estiveram detidos provisoriamente antes de serem
julgados acabaram não sendo condenados à prisão. Se o resulta-
do for extrapolado para todo o país, é possível que cerca de 90 mil
pessoas atualmente sob detenção provisória no superlotado sis-
tema carcerário brasileiro não venham a ser condenadas à prisão,
quando forem julgadas pela Justiça. Ou seja, estão submetidas
a um regime mais duro de pena do que aquele a que serão con-
denadas pela Justiça. [...] – Há um abuso da conversão da prisão
em flagrante para prisão provisória, em casos que são de pouca
gravidade, como pequenos furtos, o que gera sobrecarga do sis-
tema carcerário. Não faria diferença se essas pessoas estivessem
soltas. A lei diz que a prisão preventiva é exceção, mas tem sido
a regra – disse o pesquisador do Ipea e autor do estudo, Almir de
Oliveira Júnior. Na mesma linha, a diretora de Políticas Penitenci-
árias do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Valdirene
Daufemback, considera exagerado o número de prisões provisó-
rias no país. Ela considera frágeis algumas das justificativas usa-
das por juízes para decretar ou manter prisões provisórias, como
a alegada necessidade de manutenção da ordem pública ou a
necessidade de localizar o réu durante o processo202.
202
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/estudo-revela-
-que-37-dos-detidos-provisorios-nao-foram-condenados-prisao-
-em-2011-14678265>. Acesso em: 24 jun. 2016.
238 Manifesto para Abolir as Prisões
soltura imediata assinadas pelo Judiciário. [...] A Consultor Jurídi-
co acompanhou um processo de soltura autorizado pelo presi-
dente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso. [...] o
réu [...] obteve liminar da mais alta corte do país no dia 22 de feve-
reiro. Quatro dias depois, numa sexta-feira (26/3), o alvará chegou
ao Centro de Detenção Provisório de Pinheiros IV, em São Paulo
[...]. [...] a entrega da ordem aconteceu por volta das 15h, mas [...
o] cliente permaneceu preso no final de semana. [...] Na segunda-
-feira (1/3), pela manhã [... a] ConJur entrou em contato com a Se-
cretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo,
que confirmou que o preso foi solto às 11h daquela segunda. [...
deve-se atentar à seguinte situação]: “O Estado tem que aparelhar
a polícia e os agentes de segurança para preservar a segurança de
todos, como tem que aparelhar os meios para que o alvará seja
cumprido. O plantão no fórum é uma alternativa”203.
c. o cumprimento prático de uma pena privativa de liberdade, ain-
da que posterior a uma condenação transitada em julgado204,
não é garantia de que o aprisionamento era justo e devido (re-
visão criminal com posterior absolvição, equívocos inerentes ao
comando sentencial condenatório ou seletividade indissociável
do sistema).
203
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-mar-21/demora-cum-
primento-alvaras-soltura-comum-preocupa-defesa>. Acesso em: 24
jun. 2016.
204
Em 17 de fevereiro de 2016, a maioria do Plenário do Supremo Tribunal
Federal, julgando o Habeas Corpus 126292, entendeu que a pena pode
ser cumprida após decisão de segunda instância, modificando, assim,
anterior entendimento sobre o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.stf.
jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310153>. Aces-
so em: 01 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 239
priamente dito. É um usuário que precisa se drogar”. O criminalista
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira partilha dessa visão. Ele afirma
que “dificilmente” um grande traficante é preso no Brasil. Os deti-
dos por drogas são sempre usuários ou pequenos comerciantes,
os chamados “aviõezinhos”, diz. [...] Morais da Rosa analisa que a
classificação de usuários como traficantes decorre de um viés pu-
nitivo da polícia, que se mostra inconformada com a leve punição
ao porte e ao consumo estabelecida pela nova Lei de Drogas. Na
norma anterior, a Lei 6.368/1976, essas condutas eram apenadas
com detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de 20 a
50 dias-multa. Porém, a partir de 2006, passaram a ser punidas
com advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de servi-
ços à comunidade, e inserção em curso educativo. Para garantir
o cumprimento dessas medidas, o juiz pode dar uma bronca no
usuário ou aplicar multa. “Enquadrar usuários como traficantes é
um efeito rebote da nova lei. O artigo 16 da lei anterior previa
uma pena razoável para porte e consumo. Já a nova lei gera uma
sensação de que o usuário não é punido. E os PMs, via de regra,
são movidos pela ideia de que há um diabo que é o traficante, e
que é preciso puni-lo. Por isso, há a classificação forçada de uma
série de pequenos usuários como vendedores de drogas”, explica
o juiz205.
205
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/grande-par-
te-usuarios-condenados-trafico-reincidem>. Acesso em: 24 jun. 2016.
240 Manifesto para Abolir as Prisões
dos prejuízos que o seu agir autônomo provoca, inclusive contra ele
próprio, é uma defesa do policial como ser humano, embora não dele
como profissional. Dentre as grandes vítimas que o poder prisional
fabrica, o policial está entre as maiores.
Evidentemente esta não é uma situação natural e homogênea,
mas sim heterogênea e construída. Por levar em consideração vonta-
des diferentes e aleatórias dos dominantes, incluída a sua, o policial
precisa agir randomicamente. E ele as considera porque não quer
medir forças com aqueles que poderão convertê-lo em inimigo. Ao
agir aleatoriamente ele acaba entrando em contradição com suas
decisões anteriores, pois ele não segue uma pauta coerente. É por
essa razão que ele libera um traficante branco, ao considerá-lo usuá-
rio, e detém um usuário negro, por considerá-lo traficante. Mas, nada
disso será contestado enquanto ele não transbordar para dentro do
microssistema dos dominantes essa sua independência incoerente,
pois a polícia é o braço armado que protege os amigos da prisão. De
sorte que ele é independente, mas desde que essa autonomia não
invada, contrarie ou ofenda a independência de quem tem o poder
de decidir sobre a própria emancipação e sobre os próprios emanci-
páveis. Até lá ele poderá agir livremente: os inatingíveis precisam que
alguém faça o trabalho sujo por eles.
Se multiplicarmos a variedade de caprichos que o policial é obri-
gado a atender (derivados e superiores, hierárquicos ou não, e de ter-
ceiros), pela sua própria vontade (visando a elogios, promoções, etc.),
pela sua insatisfação (salarial, etc.), pelos demais problemas (esgota-
mento, estresse, desídia, etc.), e pela quantidade de policiais atuan-
do nas ruas, facilmente perceberemos que o resultado numérico dos
arranjos e das combinações diferentes que uma situação ocorrente
– entre dois cidadãos ou não, criminosa ou não –, pode produzir é
incalculável. Incalculável sim, mas não ilimitável e previamente de-
finível. Como já dissemos, a sua autonomia vai somente até o limite
entre o macrossistema e o microgrupo.
206
Disponível em: <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/as-crian-
cas-negras-tem-o-azar-dos-mal-entendidos-sempre-acontecerem-
-com-elas/>. Acesso em: 24 jun. 2016.
242 Manifesto para Abolir as Prisões
Infelizmente, para piorar a situação, a quantidade de inimigos
convenientes disponíveis no mercado do macrossistema, cuja prisão
é previsível e provável, é vastíssima. Isso porque a classe baixa, à qual
pertence a maior parcela deles, participa de 33,7%207 da população
nacional. Considerando que nossa demografia em junho de 2016
equivalia a 206.071.500208 pessoas, podemos dizer que aquela clas-
se, a facilmente aprisionável, é integrada por 69.446.095 (sessenta e
nove milhões, quatrocentas e quarenta e seis mil e noventa e cinco)
pessoas. Agora, se considerarmos que o país possuía em 2014 uma
população prisional de 607.731209, chegamos à conclusão de que a
massa de manobra com que a polícia pode trabalhar com autonomia
representa 68.838.364 (sessenta e oito milhões, oitocentos e trinta
e oito mil, trezentos e sessenta e quatro) pessoas. E cada vez mais
sem ser incomodada, ainda que as desculpas para esse relaxamento
sejam contraditórias:
207
Disponível em: <http://www.sae.gov.br/wp-content/uploads/classe-
MediaBrasil1.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2016.
208
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/>.
Acesso em: 24 jun. 2016.
209
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf >, p. 11. Acesso em: 24 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 243
so de disciplina contra más condutas. O rigor, ao longo dos anos,
continua o mesmo. Talvez a Polícia Militar seja o órgão mais rigo-
roso do sistema público”, disse à reportagem210.
210
Disponível em: <http://www.redetv.uol.com.br/jornalismo/cidades/cai-
-em-147-o-numero-de-pms-expulsos-e-demitidos-em-sp>. Acesso em:
24 jun. 2016.
211
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/
150813_violencia_policial_chacina_lk>. Acesso em: 8 jul. 2016.
244 Manifesto para Abolir as Prisões
Parceiro dele morreu em uma casa após fugir; morte será apurada
pelo MP.
Cinco policiais militares do 16º e do 23º batalhões da Polícia Mi-
litar de São Paulo foram presos nesta sexta-feira [...], por suspeita
de executar um suspeito de roubo ocorrido por volta de 14h de
segunda-feira [...], na região do Butantã, na Zona Oeste de São
Paulo. O juiz Fernando Oliveira Camargo, da 5ª Vara do Júri, de-
cretou a prisão temporária deles nesta quinta-feira [...], pelo prazo
de 30 dias. Em nota, a corporação informou que a corregedoria
acompanha o caso [...]. [...] O promotor informou ainda que acre-
dita que casos como esse não representam a corporação da Polí-
cia Militar. “Isso não é policial militar, é bandido. A PM não merece
ter esse tipo de gente em seus quadros. Se aceitarmos que ban-
dido tem que morrer, nós temos que aceitar que ele vai ter uma
pena, mas para isso tem de haver um processo e o direito à de-
fesa. O que aconteceu aqui foi uma execução sumária, a falta do
estado. Os policiais agiram como promotores, juízes, advogados
e carrascos212.”
212
Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/09/pms-
-sao-presos-apos-video-mostrar-execucao-em-sp-diz-promotor.html>.
Acesso em: 29 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 245
ciais contaram à Human Rights Watch que se sentiram pressiona-
dos por seus superiores a usarem a força letal de forma ilegal. O
Código Disciplinar da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro
oferece poucas opções a esses policiais além de cederem à pres-
são, caso essa seja feita como uma ordem: não existe um dispo-
sitivo que garanta proteção a um policial militar que se recuse a
acatar ordens ilegais. O que mais desencoraja denúncias ou obje-
ções ao comportamento criminoso de colegas policiais é o medo
que os potenciais delatores têm de serem mortos por aqueles
que estão envolvidos em ações ilegais. Vários policiais militares
disseram à Human Rights Watch que não denunciariam colegas
por medo de serem mortos ou terem suas famílias atacadas213.
213
Disponível em: <https://www.hrw.org/pt-br/report/2016/07/07/2915
89>. Acesso em: 8 jul. 2016.
246 Manifesto para Abolir as Prisões
foram eleitos nas Assembleias estaduais e na Câmara Federal –
contra 44 no pleito anterior. Muitos deles exploraram o combate
à criminalidade em suas campanhas eleitorais. “Os políticos que
se declaram contra as práticas (de violência por policiais) acabam
fragilizados em termos eleitorais”, afirmou Dias214.
214
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/15
0813_violencia_policial_chacina_lk>. Acesso em: 8 jul. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 247
zações215. Todavia, com base na taxa de atrito, que tem a ver com a
cifra oculta, é possível afirmarmos que esse índice é altíssimo. Taxa de
atrito é o indicador que exibe a diferença entre os crimes praticados
e suas respectivas condenações216. No Brasil, essa taxa gira em torno
de 81%217, o que significa que apenas 19% dos crimes de sangue re-
cebem a pena privativa de liberdade.
E se esse já é um índice altíssimo para desvios que deixam ves-
tígios visíveis a olho nu, fica fácil deduzir que o percentual da cifra
oculta e da taxa de atrito em crimes de escritório é ainda maior. Ape-
sar de não estarmos defendendo uma redução da taxa de atrito me-
diante um aumento do aprisionamento, deve ter ficado claro que a
prisão não é a consequência inevitável da prática de um crime, o que
significa dizer que nem toda pessoa que comete um crime vai presa,
e nem toda pessoa que não comete um crime fique livre.
Embora a seletividade do poder prisional seja um defeito, não
desejamos que ele funcione plenamente após consertá-lo. Primeiro
porque o seu funcionamento eficiente ampliaria absurdamente nos-
so encarceramento que já é massivo, alcançando toda uma massa
vulnerável que compõe a classe baixa (68.838.364 pessoas). E, em
boa medida, também a classe média. Isso confirmaria ainda mais a
prisão como regra. Pelo menos por enquanto esse panaprisionamen-
to não parece ser o desejo de quem domina o poder prisional. Isso
ainda não é interessante para os amigos da prisão.
Desejamos menos ainda que ele prenda apenas uns poucos esco-
lhidos. Isso transformaria a prisão em exceção. Regra ou exceção, no
215
Disponível em: <http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-con-
tent/uploads/2011/06/Controle-da-criminalidade_mitos-e-fatos.pdf>.
Acesso em: 24 jun. 2016.
216
Disponível em: <http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-con-
tent/uploads/2011/06/Controle-da-criminalidade_mitos-e-fatos.pdf>.
Acesso em: 24 jun. 2016.
217
Média entre 92%, do Rio de Janeiro, e 70%, que é a maior média de São
Paulo. Disponível em: <http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-
-content/uploads/2011/06/Controle-da-criminalidade_mitos-e-fatos.
pdf>. Acesso em: 24 jun. 2016.
248 Manifesto para Abolir as Prisões
caso da prisão pouco importa, e justamente porque, se ela prende
muitos, ela está selecionando. E se ela prende poucos, também está
selecionando. Seleção nada mais é do que fazer opções dentro de
um universo, sejam elas pequenas (exceção) ou grandes (regra). O
que importa é que algumas pessoas, em igual situação, não foram
aprisionadas. E nunca serão.
Contraditoriamente, embora a seletividade seja um defeito, esse
defeito é justamente a sua maior força. Bem, a lógica do seu funcio-
namento hipnotizante é a seguinte: o ideal seria prender todos os
inimigos. Mas, isso não é adequado. Principalmente porque é preciso
deixar um pouco de gordura como reserva para abastecer o funcio-
namento duradouro do poder prisional. Então, que prendam o má-
ximo que puderem mesmo que essa busca pela segurança custe a
nossa liberdade, como escreveu Liev Tolstoi em A insubmissão:
218
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/02/
ator-preso-por-engano-e-solto-no-rj-depois-de-passar-16-dias-na-ca-
deia.html>. Acesso em: 29 jun. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 253
a pedido dos PMs. Na hora da ocorrência, José trajava chinelos,
cueca samba-canção e camiseta branca. Fumava o último cigarro
em frente ao prédio em que vive, antes de dormir. Para o reco-
nhecimento, ele vestiu camiseta, boné, bermuda e tênis. Havia
dois suspeitos: José, negro, e um jovem branco. Enquanto José
teve que passar a noite dentro da cela, o suspeito branco ficou
do lado de fora e foi liberado no dia seguinte. Existem dez erros
nesse processo, incluindo o reconhecimento, negado depois pela
vítima, que foi um dos principais argumentos para manter José
detido. Engolido pelas falhas e pelo racismo arraigado no sistema
de segurança pública e de Justiça, José foi levado para a Funda-
ção Casa, onde permaneceu por 22 dias. Os piores de sua vida e
de sua família. [...] Durante o tempo em que José permaneceu na
Fundação Casa, Valquíria deixou o emprego em um banco para
se dedicar à defesa do irmão. Ela juntou as provas mostrando que
José estava em casa naquela noite. Também precisou cuidar da
saúde da mãe, que de tão preocupada não dormia e comia pou-
co. [José é solto] Mas a volta para a casa não significou ainda o
retorno à vida normal. José, que prefere História à Matemática,
perdeu a matrícula no primeiro ano do Ensino Médio da escola
Caetano de Campos. Como permaneceu internado, sua matrícula
foi transferida para Fundação Casa e não se sabe quanto tempo
levará para regularizar essa situação. O menino também perdeu o
emprego de garçom e lida diariamente com explicações sobre a
sua inocência, apesar de não querer mais falar do assunto219.
219
Disponível em: <http://www.geledes.org.br/jose-o-adolescente-negro-
-injustamente-preso-pela-policia-militar-de-sao-paulo-e-ficou-22-dias-
-na-fundacao-casa/>. Acesso em: 25 jun. 2016.
220
MENESES, Tobias Barreto de. Fundamentos do direito de punir. In: Re-
vista dos Tribunais. São Paulo, mai. 1996, ano 85, v. 727, pp. 649-650: “O
conceito de pena não é um conceito jurídico, mas um conceito político.
Este ponto é capital [...]”.
254 Manifesto para Abolir as Prisões
indignação e de inconformação suficiente para impedir que elas se-
jam rotuladas como inimigas e principalmente como inimigas conve-
nientes. O poder configurador político-econômico da prisão significa
que ela age de acordo com a discricionariedade. Fazendo e desfa-
zendo, prendendo e soltando aqueles que sejam mais adequados e
úteis. Se a prisão de uma pessoa não for interessante, ou se ela exigir
custos muito altos, sobretudo políticos, renuncia-se à privação da sua
liberdade, que fica adiada para depois ou para nunca mais.
Usando como analogia uma gangorra submetida a um efeito gra-
vitacional, podemos dizer que: a) quanto mais próxima da parte in-
ferior se encontra a seta do ponteiro medidor, maior é a quantidade
de pessoas encarceradas; e b) quanto mais próxima da parte superior
se encontra a seta do ponteiro medidor, mais concentrada é a sele-
tividade.
Vamos partir de um marco em que o ponteiro coincida exatamen-
te com a seletividade zero (formato de V), como na figura abaixo.
Vulneráveis Invulneráveis
1 1
Gravidade
200 200
200.000 200.000
2.000.000 2.000.000
20.000.000 20.000.000
200.000.000 200.000.000
V I V I
Insignificante
V I
221
Disponível em: <http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/244227/MPF-
-ou-todos-devem-ser-responsabilizados-ou-ningu%C3%A9m-o-deve.
htm>. Acesso em: 16 jul. 2016.
1 O Presente do Sistema prisiona 257
Mesmo que a notícia acima pareça ser uma saída para o problema
da injustiça do sistema punitivo, já deve ter ficado claro que a única
solução para a seletividade prisional é a extinção do cárcere. Sobre-
tudo porque parece improvável que os agentes penais irão interpre-
tar exclusivamente a comparação exposta: o não aprisionamento de
um homicida exige a libertação de todos. Nossa história infelizmente
teima em favorecer a interpretação inclusiva: o não encarceramen-
to de alguns homicidas não interfere no aprisionamento de vários
outros, o que evidencia que nossa justiça atua no varejo, e não no
atacado. Ela não tem uma visão completa do estrago que a prisão de
mais de setecentas mil pessoas tem provocado em nossa sociedade.
O policial quando persegue e prende, o promotor quando denuncia
e o juiz quando condena não têm um olhar político-criminal nacional
sobre a questão prisional. Eles não medem os efeitos terciários da
sentença. Ou seja, os efeitos que estão além dos artigos 91 e 92 do
Código Penal (indenizar o dano causado, perder o cargo público, per-
der a habilitação para a direção de veículo, etc.), como a seletividade,
a regressão, o desvio secundário, a carreira criminal, a autorrealiza-
ção da profecia, a consideração da realidade das consequências em
razão da percepção concreta de uma situação falsa e abstrata, etc.
Eles analisam a questão criminal sempre individualmente, e nunca
coletivamente, mesmo quando analisam crimes de massa. Com isso
eles contribuem para o inchaço irresponsável do sistema e para a re-
produção descontrolada da própria criminalidade.
Diminuir ou rebaixar e aumentar ou elevar a seletividade são ter-
mos relativos. Ambos interferem na seleção realizada. Quanto mais
eu diminuo a seletividade, mais eu seleciono; e quanto mais eu au-
mento a seletividade, menos eu seleciono. Porém, em ambos há se-
leção. Não existe solução menos ruim. Por isso, para eliminarmos a
seletividade, que é o acessório inseparável do aprisionamento, é pre-
ciso eliminar o principal, que são as prisões.
Com isso acabaríamos de uma só vez com a seletividade das pri-
sões, com o seu efeito iatrogênico, com o seu efeito regressivo e com
os desvios secundários, impedindo a produção e a reprodução da
sua clientela – que é a grande causa do crescimento assustador do
nosso aprisionamento.
222
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
2 O Futuro do Sistema Prisional 261
trabalhando, esse é nosso entendimento. Agora, tem presos que
realmente não querem estudar, não querem trabalhar, e se for o
caso, posteriormente, a gente possa tirá-los (sic), colocar outros
que queiram trabalhar e estudar porque a intenção nossa é ter
essas 3336 vagas aqui preenchidas com pessoas que trabalhem
e estudem”223.
223
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
224
Disponível em: <http://noticias.r7.com/eleicoes-2014/programa-de-
-governo-de-aecio-tera-proposta-de-privatizacao-de-presidios-fede-
rais-06082014>. Acesso em: 25 jun. 2016.
225
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
262 Manifesto para Abolir as Prisões
O modelo mineiro de PPP já inspirou projetos semelhantes no Rio
Grande do Sul, em Pernambuco e no Distrito Federal. As licitações
já aconteceram ou estão abertas e, em breve, as penitenciárias
começarão a ser construídas. O governo do Estado de São Paulo e
a Secretaria de Administração Penitenciária também pretendem
lançar em breve um edital para a construção de um grande com-
plexo no Estado, com capacidade para 10.500 presos. O gover-
nador Geraldo Alckmin já fez consultas públicas e empresas já se
mostraram interessadas no projeto226.
A fera que te faz gelar o sangue de horror não permite que nin-
guém passe por aqui impunemente, e quem insiste em opor-lhe
resistência encontra a morte. É uma criatura tão má, e tão contun-
dente, que jamais consegue saciar o enorme apetite [...] sente até
mais fome, depois que come227 (Aliguieri, 2002.)
226
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
227
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. In: Coleção obras-primas. 1ª ed. São
Paulo: Nova Cultural, 2002, p. 11.
2 O Futuro do Sistema Prisional 263
o produto humano, o preso, será interessante ter cada vez mais
presos. Ou seja, segue-se a mesma lógica do encarceramento em
massa. A mesma lógica que gerou o caos, que justificou a privati-
zação dos presídios”, arremata Patrick228.
228
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-
-mais-presos-maior-o-lucro-3403.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
264 Manifesto para Abolir as Prisões
rá por trás dos muros não nos importa, desde que possamos dormir
tranquilos. Pelo menos até que amanheça e tenhamos que eleger
um novo inimigo conveniente.
229
Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2016/
06/menino-de-11-anos-e-detido-suspeito-de-participar-de-furto-
-em-herculandia.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
266 Manifesto para Abolir as Prisões
o manicômio, o asilo, quando esses não conseguem cumprir a sua
função adequadamente.
Em vez de produzir soluções adequadas para questões tão dife-
rentes e que exigem respostas igualmente diferentes e adequadas, a
prisão está servindo apenas para padronizar o tratamento entregue
a cada um desses supostos problemas. Segundo o senso comum, se
a prisão é capaz de bem ou mal resolver uma questão tão séria como
a da violência, obviamente ela será competente para cuidar de ques-
tões menores e mais simples. Por essa razão é que a apresentação
de certos resultados é tão perigosa. Como quando o poder prisional
divulga seus eventuais sucessos, transformando a exceção em regra
e dando a entender que ele sabe o que está fazendo e que, como
em uma perversão da oração shakespeariana, tudo está bem quando
pelo menos parte acaba bem, principalmente quando em compara-
ção com outras instituições totais, como a escola:
E:
230
Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/sao-jose-do-rio-preto-
-aracatuba/noticia/2016/05/ex-interno-da-fundacao-casa-ganha-pre-
mio-em-feira-de-ciencias.html>. Acesso em: 25 jun. 2016.
231
Disponível em: <http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.
php?storyid=79824&tit=Projeto-realizado-por-presos-de-Maringa-ga-
nha-premio-nacional>. Acesso em: 25 jun. 2016.
268 Manifesto para Abolir as Prisões
sobre o sistema carcerário brasileiro, cerca de 76% dos presos estão
ociosos nas cadeias do país. O Ceará é o Estado onde os presos têm
o maior percentual de ociosidade, com apenas 2,74% desses exer-
cendo alguma atividade. Na outra ponta está Santa Catarina, onde
58,14% dos presos trabalha. [...] em todo o país, apenas 17,3% de
presos estudam na prisão – participam de atividades educacionais
de alfabetização, ensino fundamental, ensino médio e supletivo. [...]
“A grande questão que os dados demonstram é que efetivamente
no Brasil não temos uma política pública de reinserção. Todas as
ações são muito improvisadas” [...]. “O que se vê no país são iniciati-
vas isoladas em alguns Estados. Há apenas ações desorganizadas,
sem articulação” [..]. [...] Outro grande problema apontado [...] é a
forma como os recursos são empregados. “O governo federal in-
veste em projetos de educação e trabalho em prisões nos Estados,
mas isso não tem acompanhamento, não se sabe se foi efetivamen-
te implementado, nem o impacto daquilo. Temos que saber para
onde foi esse recurso. Os Estados entregam somente um relatório,
que não tem a descrição de como os recursos foram investidos” [...].
[... Foram encontrados] números discrepantes na distribuição de re-
cursos do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) aos Estados. Ser-
gipe, por exemplo, recebeu R$33,4 milhões, entre 1995 e 2007, para
uma população carcerária de 2.228 presos, enquanto, no mesmo
período, o Rio Grande do Sul recebeu R$50,2 milhões, para 23.814
condenados. “Quais são os critérios para o recebimento de recur-
sos? Isso não é claro. Será que não foi um critério político?” [...]. “Sem
um projeto político para o setor, é possível que se assuma a ideia de
estarmos, literalmente, jogando dinheiro fora” [...]232.
No mesmo sentido:
232
Disponível em: <http://oab-ma.jusbrasil.com.br/noticias/1892670/cer-
ca-de-76-dos-condenados-no-brasil-estao-ociosos-na-prisao-aponta-
-estudo>. Acesso em: 25 jul. 2016.
2 O Futuro do Sistema Prisional 269
[...] Amplamente usada durante o regime militar, a tortura ainda
é prática comum no Brasil. Antes direcionada à atividade política,
ela segue em uso contra a população, em geral os mais pobres e
vulneráveis. Nos últimos três anos cresceu 129% o número de de-
núncias de tortura cometidas por agentes públicos no país. Entre
2011 e 2013, foram relatados 816 casos por meio do Disque 100,
da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, envolvendo 1.162
agentes do Estado. Só no ano passado, foram 361 registros. [...]
233
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/denuncias-de-tortura-
-no-brasil-cresceram-129-nos-ultimos-3-anos-12050252>. Acesso em:
25 jul. 2016.
2 O Futuro do Sistema Prisional 271
O caráter fundamental desta política [de atendimento socioe-
ducativo do Estado de São Paulo] tem sido, nos últimos quatro
anos, a busca de uma mudança de paradigma no atendimento
socioeducativo, a qual demanda, tanto aos gestores como às suas
equipes, assumir o desafio de transformar uma “cultura institucio-
nal” histórica e socialmente marcada como espaço meramente
sancionatório, em um espaço efetivamente educativo234.
234
Disponível em: <file:///C:/Users/Ricardo/Downloads/efcp-revistas-casa-
-CASA_em_Revista_AnoII_Especial.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2016.
272 Manifesto para Abolir as Prisões
peguei a chave, o alicate e uma faca para descascar o fio. Quando
voltei, o assistente social estava discutindo com um menino de-
ficiente e eu resolvi intervir. Nisso, ele começou a dizer que eu
não era nada, que eu não trabalhava no abrigo e que estava ali
há pouco tempo para dizer o que ele deveria fazer. No calor da
discussão, ele me ofendeu e como eu estava muito nervoso parti
para cima dele gritando: vou te matar, vou te matar”, relembra o
ex-interno, que foi condenado por tentativa de homicídio. Assim
como Marlon, diversos adolescentes são internados em institui-
ções socioeducativas por motivos banais, segundo a presidente
do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda), Maria Izabel da Silva. “Precisamos fazer um diálogo
com o sistema de justiça para compreender que lógica é essa que
está levando os juízes a determinarem sentença para atos infra-
cionais tão pequenos como esse. No Piauí, um garoto foi interna-
do por ter dado um empurrão na madrasta. E aí? Como é que fica
a prestação de serviço e comunidade? Como é que fica a questão
de reparar o dano?”, critica a presidente do Conanda235.
235
Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-
-Humanos/-A-internacao-do-menor-infrator-deve-ocorrer-em-ultimo-
-caso-/5/30194>. Acesso em: 29 jun. 2016.
2 O Futuro do Sistema Prisional 273
não precisamos de um poder prisional melhor e diferente, mas de
uma opção melhor que a prisão, e bem distante de qualquer sanção
que tenha algo a ver com ela.
De acordo com o princípio da proporcionalidade, penas e medi-
das alternativas apenas aparentam interferir menos sobre as pessoas.
Na carne e na alma dos seus destinatários elas também estigmatizam
e reproduzem justamente o efeito criminoso que elas fingem com-
bater. Isso inevitavelmente acontece porque os que concordam com
a sua aplicação (artigos 72 e 76, da LJECCrim), ou os que nelas são
condenados (artigos 44, e seguintes do Código Penal), igualmente
são tocados pelo poder punitivo. Nenhum deles deixa de experimen-
tar uma carta estigmática também irreversível, vitalícia e hereditária.
Isso quando a própria pena alternativa em si mesma não produz efei-
tos mais prejudiciais que a pena de prisão, como já alertou a teoria
tiedemanniana.
As penas e medidas alternativas são tão intoleráveis quanto a pri-
são porque mantêm acesa uma suposta necessidade de reprimir
em vez de prevenir os conflitos. O fato de o Brasil possuir mais
pessoas cumprindo penas e medidas alternativas (600.000), que
presas (500.000)236, não deve servir de motivo para uma comemo-
ração precipitada. Principalmente porque não há qualquer dado
que comprove que a instalação desse tipo de justiça restaurativa
– da maneira com que está sendo conduzida –, em substituição à
prisão, tem beneficiado a sociedade, apesar de um diagnóstico
esperançoso inserido em um relatório precoce confeccionado
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), por enco-
menda do Ministério da Justiça.
Considerada como um todo, a pesquisa permite uma compre-
ensão essencial, que não pode deixar de ser mencionada nesta
apresentação. A constatação de um certo descrédito quanto à
aplicação das penas e medidas alternativas, a ausência dos juízes,
promotores, defensores e até mesmo das partes nos atos proces-
suais, o caráter burocrático das audiências de conciliação, todos
236
Os dados são de 2010. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-
-abr-24/brasil-aposta-penas-alternativas-desafogar-prisoes-reduzir-in-
cidencia>. Acesso em: 25 jun. 2016.
274 Manifesto para Abolir as Prisões
esses elementos evidenciam que o sistema de justiça não incor-
porou o sentido restaurativo às práticas alternativas à prisão. As
alternativas penais são tratadas, assim, como mera possibilidade,
e não como recursos que fazem parte de uma maneira de lidar
com os conflitos sociais. A formação e a prática dos operadores
do sistema de justiça valorizam o litígio e não a solução restau-
rativa dos conflitos que chegam ao Judiciário. Não há encoraja-
mento das partes, envolvimento dos operadores ou priorização
institucional, justamente porque a Justiça segue majoritária e
intencionalmente sendo retributiva. Seguindo desse modo, qual-
quer alternativa penal continuará sendo meramente burocrática
e significará, sempre, aumento de controle, afastando-se de sua
vocação como opção à privação da liberdade e do compromis-
so com a restauração das relações sociais. Daí a necessidade de
profunda transformação no sistema de justiça criminal do país,
que deve assumir a falência do modelo de encarceramento em
massa, passando a reconhecer o cárcere como última opção e pri-
vilegiando a aplicação efetiva de alternativas penais237.
237
Disponível em: <http://apublica.org/wp-content/uploads/2015/02/
pesquisa-ipea-provisorios.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2016.
2 O Futuro do Sistema Prisional 275
o fim de demonstrar que quanto mais se tenta remendar o poder
punitivo, mais ele encontra um meio de ampliar o seu poder. Tal qual
o organismo que, recebendo uma prótese estrutural e consequentes
pontos internos, absorve estes e fica mais forte com o uso daquela.
Em vez de destituir o poder prisional as sanções alternativas apenas
têm desviado os olhares do altar, que é o lugar de onde ele exige os
sacrifícios diários. Como elas são uma iguaria aperitiva que potencia-
liza o apetite de uma plateia composta por sádicos, precisamos de
outros meios de elaboração dos conflitos e dos danos deles deriva-
dos.
238
PAVARINI, Massimo. Punir mais só piora crime e agrava a insegurança.
Folha de São Paulo, São Paulo, segunda-feira, 31 ago. 2009. Entrevista
concedida a Mario Cesar Carvalho. Disponível em: <http://www1.folha.
uol.com.br/fsp/cotidian/ff3108200916.htm>. Acesso em: 03 maio 2016.
239
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em: 25 jun. 2016.
240
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-
-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf>. Acesso em: 25 jun. 2016.
2 O Futuro do Sistema Prisional 277
Grosso do Sul era de 14.634 internos, sendo que as vagas são para
7.106, ou seja, o dobro241.
241
Disponível em: <http://www.oestadoonline.com.br/2016/01/novos-
-presidios-amenizam-o-deficit-mas-superlotacao-ainda-sera-proble-
ma/>. Acesso em: 25 jun. 2016.
278 Manifesto para Abolir as Prisões
O efeito devastador que eles produzem ao fabricar estereótipos e ao
remarcar estigmas é impressionante, embora no mau sentido.
242
Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FMidia%
2FAntes-de-zerar-morte-por-trafico-Uruguai-proibiu-programas-
-policiais%0A%2F12%2F33987>. Acesso em: 26 jun. 2016.
243
Disponível em: <http://apublica.org/2014/05/quanto-mais-presos-mai
or-o-lucro/>. Acesso em: 26 jun. 2016.
280 Manifesto para Abolir as Prisões
Em dezembro de 2015, o (CNPCT) Comitê Nacional de Prevenção
e Combate à Tortura, recomendou o que segue, sobre a privatização
do sistema carcerário brasileiro:
[...] Considerando que as Regras Mínimas para Tratamento de
Prisioneiros da Organização das Nações Unidas, em seu item 46,
estabelece que os trabalhadores do sistema penitenciário devem
ter “condição de servidor público” e, portanto, com segurança e
estabilidade no emprego; Considerando a Resolução n.º 08, de 09
de dezembro de 2002, do Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária;
Considerando o exposto no parágrafo 30 do Capítulo 18 do Re-
latório Final da Comissão Nacional da Verdade, que recomenda o
afastamento de medidas, como a privatização de presídios, que
acarretem ruptura com o princípio de que o poder punitivo é ex-
clusivo do Estado e deve ser exercido nos marcos do Estado De-
mocrático de Direito;
Considerando que a privatização do sistema penitenciário, tal
qual vem sendo praticada, fragiliza os mecanismos de denúncia
e apuração de casos de tortura, especialmente ao delegar para
entes privados a assistência jurídica, médica, psicológica e social
aos presos;
Considerando que a privatização do sistema penitenciário, tal
qual vem sendo praticada possibilita a alta rotatividade de pes-
soal, precárias condições de trabalho, remuneração e treinamen-
to, com repercussões negativas para a prevenção e o combate à
tortura;
Recomenda:
Art. Iº Aos Governos Estaduais e Federal a não privatização dos
serviços relacionados à custódia de pessoas presas, especialmen-
te no que tange às atividades de administração prisional, discipli-
na, segurança, transporte, assistência jurídica, médica, psicológi-
ca e social.
Parágrafo Único. Considera-se privatização, para os fins da pre-
sente Recomendação, a delegação dos serviços descritos no ca-
put para entes privados, que tenham ou não fins lucrativos.
244
Disponível em: <http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2015/12/
Recomenda%C3%A7%C3%A3o-do-CNPCT-sobre-privatiza%C3%A7%
C3%A3o-do-sistema-carcer%C3%A1rio_Aprovada-2.pdf>. Acesso em:
26 jun. 2016.
282 Manifesto para Abolir as Prisões
um cardápio pautado por um falso respeito ao ser humano, camufla-
do sob um padrão de produtividade. Nesse ritmo o pessoal funcional
teria que produzir com o menor custo possível, e pouco importando
os meios utilizados, corpos ordenados e sujeitos incondicionalmente
às determinações. Pelo menos enquanto estiverem aprisionados. E
é justamente o silêncio prisional, ou seja, a sensação social de que
as prisões não existem ao delas não se ouvir falar, que promove o
nosso esquecimento sobre o que nelas acontece. Essa quietude tam-
bém nos permite esquecer que a nossa culpa por projetar no outro
as nossas tendências antissociais ainda não foi custeada, sendo-nos
permitido eleger outros caprinos expiadores.
Como notícias ruins chegam primeiro, se não ouvimos reclama-
ções das prisões privatizadas é porque tudo está bem. E se tudo corre
bem é porque nós fizemos o que era o correto ao elegê-la como a
nova ortopedista moral, social, educacional, religiosa e penal. Conti-
nuemos então a deixar que ela monopolize privativamente essa mo-
derna e eficiente andragogia.
O grande perigo é que sob a lupa empresarial a afirmação de que
prender resolve ganha uma nova dimensão: quanto mais pessoas
forem presas, maior será o lucro. É preciso, portanto, incentivar ou
relaxar quanto ao aumento da criminalidade.
Apesar de todos esses argumentos muitos acreditam que esse
consenso neoliberal punitivo ortodoxo, representado pela privatiza-
ção, é a melhor saída. Segundo a sua lógica torta, além da maior efi-
ciência na (re)socialização a privatização das prisões economiza o di-
nheiro público – incorretamente gasto com uma gentalha que, além
de não merecer qualquer investimento, providenciado pelo bolso do
contribuinte de bem, deveria trabalhar para custear sua estada, sua
alimentação, sua indumentária, etc.
245
Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/mate-
rias/-/materia/123021>. Acesso em: 26 jun. 2016.
246
Disponível em: <http://rodrigoconstantino.blogspot.de/2012/11/priva-
tizacao-na-cadeia.html>. Acesso em: 26 jun. 2016.
284 Manifesto para Abolir as Prisões
QUANTO MAIS PRESOS, MAIOR O LUCRO
Na primeira penitenciária privada desde a licitação, o Estado ga-
rante 90% de lotação mínima e seleciona os presos para facilitar
o sucesso do projeto.
[...] interessa ao consórcio que, além de haver cada dia mais pre-
sos, os que já estão lá sejam mantidos por mais tempo. Uma das
cláusulas do contrato da PPP de Neves estabelece como uma das
“obrigações do poder público” a garantia “de demanda mínima de
90% da capacidade do complexo penal, durante o contrato”. Ou
seja, durante os 27 anos do contrato pelo menos 90% das 3336
vagas devem estar sempre ocupadas. A lógica é a seguinte: se
o país mudar muito em três décadas, parar de encarcerar e tiver
cada dia menos presos, pessoas terão de ser presas para cumprir
a cota estabelecida entre o Estado e seu parceiro privado. “Dentro
de uma lógica da cidadania, você devia pensar sempre na possibi-
lidade de se ter menos presos e o que acontece ali é exatamente o
contrário”, afirma Robson Sávio. Para ele, “na verdade não se está
preocupado com o que vai acontecer depois, se está preocupado
com a manutenção do sistema funcionando, e para ele funcionar
tem que ter 90% de lotação, porque se não ele não dá lucro247.”
247
Disponível em: <http://apublica.org/2014/05/quanto-mais-presos-
-maior-o-lucro/>. Acesso em: 26 jun. 2016.
2 O Futuro do Sistema Prisional 285
cortem gastos de maneira camuflada e captem cada vez mais clien-
tes sob a alegação de que a privatização funciona, ampliando seus lu-
cros; d) maquiem os resultados da reincidência, mantendo as pesso-
as encarceradas o máximo que puderem e investindo em pesquisas
acadêmicas e empíricas predispostas a confirmá-los; e que e) utilizem
meios atípicos e exagerados, aptos a anestesiar e intimidar os presos,
para passar a mensagem de que o seu modelo, porque desprovido
de reclamações, é aceito pelo encarcerado como mais saudável a ele.
Esses são os elementos dessa atividade heterodoxa que o Estado está
transferindo para o setor privado.
Diante da prisão, não podemos acreditar que o que não tem re-
médio, remediado está.
Todavia, só é possível aboli-la se trabalharmos com categorias
externas ao poder prisional, senão continuaremos tentando nos eri-
gir da lama, e o nosso cavalo, puxando-nos pelos próprios cabelos.
Também não adianta ficarmos aceitando burlas de etiqueta porque
elas não passam de sinonímia. Remendos como penas e medidas al-
ternativas, técnica do numerus clausus, remições baseadas em leitura
248
Disponível em: <http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2014/01/
juiz-absolve-acusado-de-entrar-com-droga-em-presidio-cultura-atra-
sada.html>. Acesso em: 30 jun. 2016.
290 Manifesto para Abolir as Prisões
e trabalho, (re)socialização mediante evangelização, embelezamento
estrutural e limpeza asséptica da estrutura prisional, etc., não passam
de paliativos que apenas escondem a crueldade genérica das prisões
e o sofrimento sem exceção dos prisioneiros. Elas fingem mudar al-
gumas coisas para que na essência a maioria das outras permaneça
igual.
A mudança real da situação prisional em direção à sua abolição,
à sua extinção, pode se dar de duas maneiras: uma, que seria menos
radical e mais lenta; e outra, mais radical e mais rápida, ou quase isso.
Antes de continuarmos é preciso que nos desapeguemos de cer-
tos preconceitos. Como aquele que dificulta a abolição da prisão
porque nos faz acreditar que o inimigo, antes mesmo de ser conde-
nado, não merece uma segunda chance porque a vítima não a teve
– argumento este, por si só, inadmissível, visto que a supressão de
uma second chance ao acusado, além de perigosa, porque pode irre-
versivelmente alcançar inocentes, converte o poder punitivo em um
criminoso absoluto e pragmático (aplicação da pena de morte, por
exemplo, que produzirá mais um assassino que é, no caso, o Estado).
Ontologicamente não existe diferença entre o homicídio praticado
pelo particular e o cometido pelo poder público.
Depositar qualquer esperança na prisão também não é a solução
porque não resolve o problema criminal. Não evita a prática de no-
vos crimes por ele ou por terceiros. Não recupera o bem jurídico le-
sionado. Enfim, transforma o Estado em um criminoso que ameaça,
sequestra, tortura, lesiona e mata ou deixa morrer, aumentando o rol
de crimes praticados em vez de diminuí-lo.
No primeiro modelo, que chamaremos de abolição homeopáti-
ca, ela seria conduzida mediante um esquema paralelo e parcelado.
No segundo, que chamaremos de abolição cirúrgica, ela aconteceria
direta e imediatamente, dependendo da adoção, ou não, da homeo-
pática como fase anterior.
Em qualquer dos modelos a primeira providência a ser tomada
seria o enxugamento da legislação penal. Atualmente o Brasil possui
1.688 tipos penais, sendo impossível à população conhecer todos.
Para muitos chega a ser impossível não cometer um crime quase que
E:
249
Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/mulher-de-
-amarildo-tera-1-contato-com-pms-quero-enterro-digno,5331bb315a-
7b4410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html>. Acesso em: 26 jun. 2016.
250
Disponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noti-
cia/2013-11-02/protesto-na-rocinha-pede-que-policiais-entreguem-
-corpo-de-amarildo>. Acesso em: 26 jun. 2016.
2 O Futuro do Sistema Prisional 295
Mesmo porque o aprisionamento não permite a digestão da situ-
ação conflitante e não conforta a dor que o próprio sistema prisional
tem ajudado a fermentar.
Bem como:
251
Disponível em: <http://180graus.com/noticias/mae-de-isabella-justica-
-foi-feita-mas-a-minha-filha-nao-vai-voltar-310385.html>. Acesso em:
26 jun. 2016.
252
Disponível em: <http://hojeemdia.com.br/horizontes/estou-aliviada-
-mas-a-condena%C3%A7%C3%A3o-n%C3%A3o-trar%C3%A1-minha-
-filha-de-volta-diz-m%C3%A3e-de-eliza-samudio-1.68964>. Acesso
em: 26 jun. 2016.
296 Manifesto para Abolir as Prisões
Exatamente isso. Aqueles criminosos devem ser soltos. Mesmo as
pessoas que cometeram uma ou várias das quase 10 condutas que
ainda continuarão sendo tipificadas penalmente deverão ser liber-
tadas, e seus atos julgados e eventualmente sancionados por outros
meios, que não os prisionais.
Todavia, requente-se, caso elas sejam criminosas contumazes e o
poder prisional tenha exercido sobre elas um adestramento irreversí-
vel e incontrolável, favorável à prática incontrolável de atos violentos,
deverão elas ser conduzidas a estabelecimentos que não copiem a
estrutura e a ideologia prisional. Aqui a prudência exige que cada
caso limítrofe seja avaliado seriamente.
Certamente o dinheiro que o Estado gasta com a manutenção das
prisões é mais do que suficiente para a montagem, a equipagem e a
manutenção de juntas de avaliação dessas situações. A desculpa de
que não temos uma cultura de primeiro mundo que suporte uma de-
cisão tão radical ou que não estamos preparados para a implantação
e a gestão dessas juntas restaurativas ou terapêuticas é uma fachada
por trás da qual se escondem pretensões que se valem da mesma
comparação para estarem sendo implantadas. É dizer: se somos um
país culturalmente subdesenvolvido, por que estamos importando e
pretendemos continuar absorvendo soluções de um país desenvol-
vido como os EUA? Nossa afirmada subcultura é um inconveniente
para que legalizemos as drogas, mas não é um problema quando
adotamos o modelo carcerário privatizado norte-americano e todos
os malefícios que ele acarreta? Ela impede que legalizemos o aborta-
mento, mas não impede que desejemos reduzir a maioridade penal e
armar civilmente a população, como os estadunidenses? Ninguém se
incomoda com a disparidade cultural quando importa um aparelho
celular de última geração, por exemplo. Temos dinheiro para manter
uma despesa bilionária com a guerra às drogas e com a manutenção
do sistema punitivo e dos prejuízos que ele acarreta, mas não temos
o suficiente para estruturar órgãos paritários de elaboração de con-
flitos? São essas e outras incoerências, interpretadas sempre simpati-
camente, que têm configurado o nosso atraso social.
Por outro lado, o conflito deve ser elaborado de uma maneira que
compreenda os motivos do agente e que conforte a dor da vítima
sem esquecer todos aqueles que estão próximos a ambos. A ideia
não é reprimir os conflitos, porque esses nunca deixarão de aconte-
cer. O objetivo é preveni-los ao máximo. E a prisão já demonstrou não
ter essa capacidade. Países que estão fechando suas prisões não es-
tão isentos de que homicídios, estupros, latrocínios, etc., sejam prati-
253
Disponível em: <http://super.abril.com.br/ciencia/a-origem-da-crimi-
nalidade>. Acesso em: 28 jun. 2016.
254
Disponível em: <http://economia.uol.com.br/noticias/infomo-
ney/2016/06/09/camara-estuda-efeitos-da-legalizacao-da-maconha-
-r-57-bilhoes-para-a-economia.htm>. Acesso em: 28 jun. 2016.
298 Manifesto para Abolir as Prisões
cados. A resposta que eles oferecem é que diminui a sua incidência. E
a resposta mais utilizada a cada dia que passa tem sido o menor uso
possível da prisão, até a sua eliminação por completo.
Não bastasse, todos os registros pertinentes ao seu trânsito pelo
sistema prisional e penal devem ser apagados. Em uma tentativa de
redução ao máximo da estigmatização que a prisão produziu.
Já para os criminosos insolúveis, aqueles que não podem ser auxi-
liados por nenhuma das nossas tecnologias atuais, os quase 10 tipos
penais restantes continuariam vigendo, requentando apenas que o
seu afastamento seria uma precaução, e não uma punição. O que
equivale a dizer que eles não seriam arremessados em uma prisão,
tampouco punidos. Eles seriam auxiliados.
255
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PTZGkX7zXvI>.
Acesso em: 22 jul. 2016.
2 O Futuro do Sistema Prisional 299
medida a vontade do internado256. A ideia é estabelecer um local de
assistência e acompanhamento que permita o maior contato social
possível, embora com segurança para todos, incluído o assistido. Seu
lay-out, sua dinâmica, seus colaboradores, etc., resultariam de estu-
dos e debates realizados por uma equipe de especialistas de várias
áreas (engenheiros, antropólogos, historiadores, médicos, psiquia-
tras, juristas, sanitaristas, sociólogos, geógrafos, pessoas do povo,
egressos do sistema prisional e manicomial, etc.). Todavia, para que
esta opção fosse viável legalmente seria preciso uma alteração legis-
lativo-penal e uma regulamentação do procedimento de avaliação,
detecção e decretação da periculosidade insolúvel do agente.
Por agora muitos devem estar pensando que essa proposta de
abolição do sistema prisional, assim que noticiada, incentivará as
pessoas a matarem, estuprarem e praticarem toda sorte de condutas,
pois logo deixarão de ser criminosas. E continuará estimulando-as
porque a ausência de qualquer consequência é sempre sedutora, de-
sabrochando nas pessoas os seus instintos mais perversos e egoístas.
O contra-argumento a essa suposição, mais assustada e folclóri-
ca que real, é mais simples do que parece. E ele vem através de um
questionamento. Considerando que, em média, apenas 18 crimes de
sangue, a cada 100 praticados, deságuam em um aprisionamento257,
já não estaríamos vivendo esse cenário que as pessoas tanto temem?
Em nossa realidade, 82 pessoas, de cada cem que cometem crimes
de sangue, não estariam autorizadas a matar, por exemplo? Sem ne-
nhuma consequência?
De todo modo, é preciso admitir que o esquema paralelo da abo-
lição homeopática deve vir acompanhado de uma implementação
séria de políticas públicas: a) de assemelhação de rendas e de opor-
tunidades; b) de privilégio ao ensino, sobretudo o da educação bási-
ca; c) de empregabilidade; d) de respeito ao outro e à sua autonomia;
256
Disponível em: <http://justificando.com/2016/07/06/o-manicomio-se-
-reinventa-no-credeq/>. Acesso em: 11 jul. 2016.
257
Disponível em: <http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-con-
tent/uploads/2011/06/Controle-da-criminalidade_mitos-e-fatos.pdf>.
Acesso em: 26 jun. 2016.
300 Manifesto para Abolir as Prisões
e) de desvalorização do consumo desenfreado; f) de proibição de
programas midiáticos policialescos, cumulada com regulamentação
da mídia; g) de reconhecimento de todas as profissões e dedicações
como igualmente importantes; h) de liberdade de cátedra; i) de refor-
ço da democracia, mas não como o governo da maioria, senão como
o governo desta que também respeita as minorias, etc.
Existe ainda outra possibilidade de eliminarmos o sistema prisio-
nal, que pode ocorrer mediante uma abolição cirúrgica.
Como ela é uma cirurgia de extirpação, ela é mais ampla, radical
e invasiva que a anterior. Por ela todos os 1.688 tipos penais seriam
descriminalizados, ab-rogando-se todo o poder punitivo – incluídas
as penas e as medidas alternativas, e as medidas de segurança –, e
não apenas o poder prisional. A rigor, nada impede que o sistema ci-
rúrgico de abolição seja precedido pelo sistema homeopático, como
se fosse sua fase purgatorial. Depois que os tipos penais fossem ex-
portados para os ramos adequados do direito (civil, trabalhista, admi-
nistrativo, tributário, ambiental, etc.), todos os encarcerados definiti-
vos e provisórios seriam libertados e seus procedimentos, enviados,
junto com aqueles em andamento, para as referidas ciências que
tivessem absorvido os seus conflitos. Nelas os juízes responsáveis
pela adequação da nova sistemática converteriam as sanções penais,
respectivamente, em sanção civil, trabalhista, administrativa, etc.
Mesmo as pessoas problemáticas mais perigosas e teimosas, aquelas
que insistem em não parar de praticar atos violentos, continuariam
convivendo em sociedade. Apesar de responderem civil, trabalhista,
administrativa, etc., por cada novo conflito provocado. Nesse mo-
delo não haveria o menor resquício de um suposto direito penal de
autor, ainda que camuflado sobre a ideia de precaução, prevista na
abolição homeopática. De maneira que nem mesmo o homicídio de
uma centena de pessoas nos autorizaria a prever que ela mataria a
centésima primeira, se estivesse solta – justificando, portanto, a sua
exclusão social. Além de responder pelos conflitos em que se envol-
veu, ela não pode ser excluída do convívio com as pessoas com base
em uma suposição ou em um padrão de comportamento que não
se sabe se realmente existe, ou se já esgotou o seu ciclo. Em igual
medida, o argumento de que a sua extração da sociedade depois de
258
MANCHETTE, Jean-Patrick. The prone gunman. San Francisco: City Lights
Publishers, 2002, passim.
302 Manifesto para Abolir as Prisões
é um argumento contraditório na medida em que a prisão é incom-
patível com a civilização. A prisão é a barbárie. Aqui a lógica reso-
lutiva não deve seguir a premissa de que nossa incivilidade exige a
manutenção da prisão a fim de que essa condição não piore. Ao con-
trário. Como a prisão representa essencialmente a barbárie é preciso
eliminá-la para que passemos a viver civilizadamente.
Por outro lado o ser humano não é essencialmente mal. Ele é ape-
nas um produto do meio prisional que o circunda ou que nele in-
terfere diretamente. Eliminando-se a causa, extingue-se esse efeito.
Essa condição maligna que teimamos em considerar ser proveniente
de uma vontade ou pré-disposição humana.
Como no ensinamento hulsmaniano, se eu tenho em meu jar-
dim uma planta que é daninha por natureza e se essa planta tende
a, competindo com as demais, interferir no crescimento dessas (ale-
lopatia), preferirei eliminá-la, abrindo um espaço para que aquelas
possam florescer.
A mudança pode parecer assustadora, mas a nossa realidade atual
consegue ser mais. Nenhum método que substitua a prisão por algo
melhor que ela será pior que ela. E quase nada consegue ser pior que
a prisão ou tão ruim quanto ela. É preciso trocar o dano certo pela
chance de um dano menor. É preciso mudar o olhar, da repressão
dos conflitos para a prevenção dos mesmos. É imprescindível preferir
a esperança de que é possível um mundo melhor, aos prejuízos que
a prisão tem evidentemente provocado. É preciso entender que esse
manifesto não é simplesmente uma defesa dos criminosos. Ele é a
tentativa de demonstração de que para darmos dois passos para a
frente às vezes é preciso, aparentemente, darmos um passo para trás.
Duas pessoas desconhecidas dispõem de apenas uma coxinha de
padaria. Suficiente para satisfazer apenas uma delas, elas decidem
dividi-la. Para tanto, elegem como metodologia de escolha um sor-
teio prévio que definirá que uma ficará responsável por cortá-la e a
outra por escolher qual parte fica com qual delas.
Existem inúmeros meios de se fazer justiça. Talvez, o disposto aci-
ma não seja um deles. Mas, certamente, a prisão é o menos apropria-
do de todos.
259
Disponível em: <http://www.welt.de/reise/deutschland/arti-
cle119168507/Diebstaehle-an-deutschen-Flughaefen-nehmen-stark-
-zu.html>. Acesso em: 11 jul. 2016.
304 Manifesto para Abolir as Prisões
obtidas com esse ato de inspeção deveriam articular-se a outras,
reunidas durante o trabalho de investigação, para serem utilizadas
com o objetivo de justificar e de executar uma inspeção nas casas
dos operários. Com base nas provas reunidas, seria feita denúncia
contra os suspeitos, os operários inculpados seriam acusados dian-
te do tribunal, sentenciados e punidos por seus roubos. Depois
que o diretor do departamento apresentou sua sugestão ao líder
empresarial, reclinou-se na poltrona para gozar do elogio que ele
certamente receberia. Para sua surpresa, que se transformou em
susto, ele descobriu que o chefe não ficara nada satisfeito com seu
plano. Ao invés disso, este o olhou e lhe perguntou se havia enlou-
quecido. A julgar pelo plano, ele, como diretor do departamento,
não fazia a menor ideia da companhia na qual trabalhava, nem dos
valores e ideias que a regiam. Para elucidar o que pensava, o líder
empresarial explicou as consequências daquele plano para a em-
presa. O que o diretor do departamento sugeria, observou o líder
empresarial, exigiria que ele estivesse de acordo em contratar in-
vestigadores secretos para, em seguida, pagar o diretor e os outros
do departamento de segurança a fim de que eles utilizassem as
evidências reunidas pelos investigadores para ajudar a polícia a in-
culpar os suspeitos. Ao fim de todo o processo, a companhia perde-
ria os operários, ou porque estes estariam encarcerados ou porque
teriam de ser demitidos. Mas nesses operários, salientou o líder em-
presarial, a firma havia investido muito dinheiro para treinamento.
Se a firma tivesse agora poucos operários treinados, precisaria in-
vestir mais dinheiro em anúncios em busca de novos funcionários,
e os que fossem contratados teriam de ser novamente treinados.
Esses novos funcionários, sem dúvida, roubariam tanto da compa-
nhia quanto aqueles que a haviam deixado. Toda investida agrava-
ria a atmosfera da empresa e é provável que isso incidisse sobre a
produtividade. Ademais, a posição do sindicato se endureceria, e
isso tornaria as negociações salariais ainda mais difíceis do que já
eram. Em suma, a “solução” do diretor do departamento resultaria
na perda de ainda mais dinheiro da empresa. Seja qual fosse a per-
da devido ao roubo das ferramentas, o valor seria provavelmente
duplicado ou triplicado. Depois de dizer tudo isso, o líder empresa-
rial se dirigiu ao diretor do departamento e falou que sabia como
economizar um monte de dinheiro: poderia demiti-lo, porque ele
não lhe era útil. Mas antes de fazê-lo, estaria disposto a dar ao dire-
tor do departamento uma semana para refletir sobre o caso e en-
260
SHEARING, Clifford. Gewalt und die Neue Kunst des Regierens und
Herrschens: Privatisierung und ihre Implikationen. In: TROTHA, Trutz
von (Hrsg.). Soziologie der Gewalt: Kölner Zeitschrift für Soziologie und
Sozialpsychologie. Köln: Westdeutscherd Verlag, 1997, pp. 263 – 278, es-
pecialmente pp. 264 e 265.
306 Manifesto para Abolir as Prisões
ANEXOS
MANIFESTO ABOLICIONISTA
ITALIANO
N ão à prisão.
1. É intolerável que o Sistema Judiciário penal funcione pratica-
mente somente como uma espécie de “distribuidor de sofrimen-
to”. Infligir dor, inclusive ao responsável de um massacre, é inútil
porque não contribui em absoluto para o melhoramento da so-
ciedade. Inclui-se mais dor ao sangue das vítimas, o de um assas-
sino serial. Até que ponto é justo? Então, responder o mal com
o mal nos parece hoje em dia uma pergunta insensata dado o
fato de que a justiça castigadora (restabelecer a justiça por meio
da dificuldade provocada por uma sentença carcerária), faz-nos
voltar à ideia de um “castigo válido”, é dizer, pagar pelo mal co-
metido com o mal, um princípio que não se pode aceitar dentro
de um Estado secular.
2. Apesar da cultura sanguinária que conhecemos desde há mil
anos, por medo de serem vítimas nós mesmos, de maneira co-
letiva, invocamos a dor como castigo para todas as pessoas que
consideramos perigosas, porque cometeram uma infração. O
acreditar que o mal somente pode ser combatido com o mal cul-
minou no fato de que este ponto de visada já não se põe sob
dúvida, como se fora uma conclusão indiscutível; quando na re-
alidade deveríamos perguntar de maneira aberta o que poderí-
amos fazer para reduzir a delinquência, já que é a raiz de todo
sofrimento, dor e desgraça.
3. Em nossa sociedade moderna, a reação ao crime é politicamente
legítima somente se é útil, se pode neutralizar a delinquência, li-
mitar a repetição, e se a resposta pode realmente contribuir para
evitar ofensas no futuro.
4. Com a chegada da era moderna, a sociedade ocidental se deu
conta de que privar alguém de sua liberdade (é dizer, o encarce-
ramento), teria a vantagem, por sua vez, de diminuir o sofrimen-
to da resposta penal, dissuadir os criminosos potenciais de rom-
per a lei e, através da educação, dissuadir os detidos de voltar a
violar a lei. O cárcere foi aclamado como uma invenção genial do
progresso naquele momento, um castigo de certa forma demo-
crático, já que tocava o que era para todos um precioso presente:
a liberdade pessoal. Uma sentença penitenciária se podia medir
com uma precisão desde um segundo até a eternidade, um cas-
tigo que também teria vantagens econômicas, já que o propósi-
to era reintegrar o detido cedo ou tarde de novo na sociedade.
5. Os objetivos da prevenção nunca foram questionados. Inclu-
sive, ao final do século, eram e seguem sendo válidos e vale a
pena continuá-los com tenacidade. Sem embargo, o que causou
problemas irresolúveis é a execução punitiva da sentença, prin-
cipalmente dentro do cárcere mesmo. Falemos francamente: o
fracasso do sistema carcerário é um fato reconhecido de maneira
unânime e universal há muito tempo. A princípio, o encarcera-
mento havia convencido graças à sua eficácia aparentemente
dissuasiva. Com o passar do tempo, sem embargo, fez-se eviden-
te sem dúvida alguma, que, francamente, havíamos nos equivo-
cado, porque o cárcere havia claramente falhado perante todos
os presumidos objetivos preventivos.
6. Os dados desse fracasso estão expostos à vista de todas as pes-
soas dispostas a olhar a verdade sem nenhum preconceito ide-
ológico. O cárcere não somente traiu sua missão preventiva, é
dizer, não pôde promover segurança aos cidadãos contra a cri-
Anexo 313
maneira igual através de todas as classes sociais, porém os que
se castiga e que terminam na prisão, são os que estão menos
protegidos pelo sistema penal, os que são mais débeis econômi-
ca, intelectual e socialmente. Para sermos sinceros, esta prática
indiscutida de “verticalidade social”, a desigualdade da evacua-
ção penal dentro da estrutura social (que tem como objetivo um
máximo de diferenciação), é uma injustiça que está se tornando
cada vez mais intolerável.
14. Para educar os detidos para a legalidade e para o respeito às
regras vigentes, também é necessário que as regras respeitem
essas pessoas. Essa evidência pedagógica deveria bastar como
razão para que viesse abaixo todo o sistema penal. Por que nos
falta tanta perspicácia e supomos de tal maneira que se pode
obrigar um delinquente a obedecer às regras da sociedade in-
fligindo e dando como modelo o sofrimento? E, sem embargo,
assim é: todos os aspectos do sistema penal e do castigo estão
perfeitamente planejados de antemão, definidos, aplicados e
justificados para causar e demonstrar dor. Novamente: uma sen-
tença carcerária significa infligir sofrimento intencionalmente.
Não é um erro ou um efeito secundário, que nem sempre se pode
evitar, do que poderia ser, se não uma ação positiva. Apresentar
a defesa pessoal legal legítima a fim de justificar o sistema de
condenações custodiais é um grande engano. Para evocar a au-
todefesa, é necessário que a ameaça para mim ou outras pessoas
ocorra ali mesmo. No momento em que o Estado castiga o cri-
minoso, sem embargo, a ameaça já não existe há muito tempo.
Então, o castigo não se aplica com o propósito de combater um
perigo que está surgindo (para isso, chegaria demasiado tarde),
senão sobretudo para infligir dor a outros. Por que perdura este
sadismo? Este fato vem do prejuízo tenaz exprimido em um jogo
de palavras italiano segundo qual “sempre e em todas as par-
tes uma ofensa deve acarretar uma condenação, um castigo”, já
que a dor constitui uma espécie de “medicina que limpa e salva”,
não tanto e não somente para o delinquente, senão também, ou
sobretudo, para todos nós. Essa é a cultura sanguinária da qual
temos que nos libertar.
Anexo 315
fissionalismo das pessoas escolhidas para supervisar, dialogar e
ajudar; b) O tempo passado nestas instituições carcerárias deve,
sem embargo, limitar-se a um mínimo e cessar quando o preso
demonstra um verdadeiro interesse em programas de reintegra-
ção social que se desenvolveriam fora do lugar de detenção.
18. Para superar a cultura da pena e prisão e levar as pessoas que
transgrediram a lei de volta à legalidade e à observação das re-
gras, é imperativo também que as regras respeitem essas mes-
mas pessoas. Não se pode exigir nada desses indivíduos, por
muito justificado que seja, de maneira desrespeitosa.
19. Sempre que seja possível, o “Instituto da Meditação” deve ser um
elemento permanente do sistema de justiça penal, permitindo-
-lhe uma participação ativa nas distintas fases do seguimento
judicial e da reintegração.
20. A resposta à criminalidade através de medidas de reintegração
que se desenvolvem em liberdade deve implicar todas as pes-
soas socialmente comprometidas do país e não pode deixar-se
somente aos expertos.
Livio Ferrari
Massimo Pavarini
Março de 1984
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