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7 PERCURSO DE LACAN Uma Introducao Jacques-Alain Miller Campo FREUDIANO NO BRASIL Jorge Zahar Editor Conferéncias Caraquenhas PERCURSO DE LACAN Sr. Diretor da Escola de Psicologia, senhoras e senhores, gostarla, em primeiro lugar, de agradecer profundamente o convite para lhes apresentar a obra de Jacques Lacan que me fez a Universidade Central da Venezuela, © que me proporciona a ocasiao de vir pela primeira vez 4 América Latina , espero, de debater, como desejava o professor Cadenas, com os professo- res e estudantes da Venezuela. Devo primeiro pedir-lhes desculpas; gosto da lingua espanhola, a leio, posso inclusive compreendé-la quando néo se fala muito répido; infeliz- mente, porém, néo tive ocasido de falé-la, e por isso lamento ter que me di- rigir a vocés em francés. Tenho que dar trés conferéncias; dedicarei a primeira a uma apresen- tagao sindptica da obra de Jacques Lacan que poderd tornar-se, assim espe- ro, para os que serdo seus leitores, uma espécie de tabua de orientagao, que se diz necessaria, j4 que se imagina que o pensamento de Lacan é dificil. r. Digo que se imagina posto que — é uma de minhas teses, talvez para- doxal — é fundamentalmente simples. Constato que as vezes se torna difi- cil, para mim, convencer acerca desse aspecto. Tentarei, de qualquer jeito, fazé-lo hoje. Vou primeiro recordar-Ihes, talvez Ihes informar, que Lacan nasceu_ ‘com 0 século, em 1901, e que, singularmente, nao teve que recusar honras, pois as honras ndo The acorreram. E notavel que na Franga, pais extrema- mente respeitoso da idade e da gloria, Lacan seja ainda um personagem controverso. Nao faz parte da Academia Francesa, como seu amigo Lévi- Strauss; nao gosta de se apresentar no rédio ou na televisdo, e seu tinico cargo universitario é — como se diz em francés — 0 de um modesto encar- regado de curso na Escola Pratica de Altos Estudos. Devo acrescentar, ademais, que, Associagao Psicanalitica Internacional, ele é anatema; foi, ungado porque, curiosamente, as praticas dess: institui¢do se parecem muito 4s de uma igreja. Apesar disso, por um con- traste interessante, nada tem de pensador maldito. Nao venho aqui chorar sua sorte. Foi, primeiro, penhor essencial das duas cis6es que a comunida- " (mund Freud. Lacan nao tragou como seu objetivo reinventar a psicanali SS 12 percurso de Lacan de psicanalitica sofreu na Franga, em 1953-¢ 1963. Fundou sua prépy instituigdo, a Escola Freudiana de Paris, em 1964, instituiggo résper creio ndo exagerar a0 dizer que é a mais importante da Franca, Als so, sev ensino, minstrado em um seminério que durante muito tempoqs semanal, conta ha quase 30 anos com um auditério sem par na Franga, um seminério um pouco particular, pois se realiza atualmente ante tne 500 ou 600 pessoas. E esse auditdrio se ampliou ainda mais depois ds a rigdo da recompilagao de seus artigos, denominada Escritos, em 1966 Ee mesmo se diz um selfmade-man, e reconhece de bom grado que a pase nalise fez sua fortuna. Assim, é 20 mesmo tempo intrativel ~ no cedeu frente a forga 3). guma que se opusesse a esse ensino —, mas, simultaneamente, Poderoso dentro da intelectualidade francesa. Manteve seu rumo com uma firmeza da qual nao temos muitos exemplos entre os intelectuais, digamos, fran. ceses. ie | Atualmente, em ambito crescente, seu nome se associa a0 de Sig. | se. Pos 0 comego de seu ensino sob o signo de um retomo a Freud, Ape. nas formulou, a propésito da psicandlise, uma pergunta fundamentalmente | critica: quais sdo suas condigées de possibilidade? E qual foi a resposta? A psicanalise s6 ¢ possivel se, e somente se, o inconsciente estd estrutu- ado como uma linguager. O que se chama o ensino de Lacan é 0 desen, | wolvimento dessa hipétese até suas uiltimas conseqiiéncias, - =) "0 inconsciente em questo, sublinhemo-lo ja que estamos em uma Escola de Psicologia, ¢ o inconsciente freudiano, o que Freud nomeou, € que nada tem a ver com o que se costumava chamar assim outrora, 0» fato de que 0 inconsciente ~ tal como o introduz Freud — seja isomorfo,, em sua estrutura, com a linguagem, pode constatar-se na obra de Freud desde os seus primeiros escritos. Tentem nao ver Freud através do que puderam ler em outros autores, leiam A ciéncia dos sonhos,! leiam a Psicopatologia da vida cotidiana, leiam sua obra sobre chiste, ¢ vocés ve- réo que a atividade de Freud é uma atividade de deciframento. Decifra © inconsciente, e os mecanismos que isola como mecanismos primarios do. inconsciente, a saber, a condensagao e 0 deslocamento, tém como proto- tipos essas figuras de retdrica que sao a metafora ea metonimia. Digo que isso se comprova no texto de Freud. Penso que, uma vez notada, essa evi- déncia é dificilmente questiondvel. E me atreveria a dizer que percebé-la 6 questo de senso comum. : ~ Ha outra evidéncia, também dificilmente discutivel. proprio da Psicandlise operar sobre o sintoma mediante a palavra, quer seja esta a Palavra da pessoa em anilise, quer seja a interpretagao do analista. Issoéo que tem que ser explicado, se é que o descobrimento de Freud é valido. Como pode a palavra atuar sobre 0 sintoma, e especialmente sobre o sinto- contac coger 13 rma nmurticot E neceaisio 2 sopor entre a plava #0 sntoma uma medida rn ums opr be o onto, Can an, oe nse Te ‘ia que fla om magia. Ou entio soa possvel sap tmbem ave © de Freud é uma verdadeira energia real. ‘2 sashes ete "Em outs palo, perguta cont om lg gal 0m tworia da psicandlis a seguinte: - tice ioatona qt ae abe objetara Lacan que Freud nunca dsse que “e inconsciente esti ottruturado como uma linguagem. Freud, é verdate, tnunca 0 disse. Mas a tare de Lacan ¢ que se pode demonsrar que o deseo: imso fiedaso oo sneene Sone pro on ‘consciente estéestruturado como uma linguagem Freud descobriu in | consoiente expés as conseqUénclas de sun descobertsna medida em ave The foram apatecendo as impliagbes dst. A tori de Freud & uma vor dadeira barafunds. Para qualifctla, bi uma polavra que aprendi ontem, aque eal como uma luv, uma palate gue &tpica do castelnano como wf ina Venezuela: ica que ha um(zeperoco"ifreudiano. Pos bem, dese zaperoco freudiano Lacan quis fazer Ut passio ordanado, caro lio. Sura tee & de que es descoberasdscordantes de Freud encontram su fun ddamento na idéia de que o inconstiente esti estraturado como uma lingua gem. Freud» preocupon muito tentindo restorer pnd cia cias du atures, Preoupous por no dete Seu pte abl, ne ‘or gues fol conneice depots de ss mors, 0 Projeto de una plo} Qui 6 an embigto sx manera também om sus tentative de Mat aoe gc teabeore « Pasanlze incarnate, Def, por, racerctaplsologin nunc fot mat do quo wa andv da extatra adel Seer que podemos chamar de uma logca do sgufcante, Da \ jmesma forma, of pretensos ensaios de psicandlise aplicada versam sempre, aa are ee cvaprin expenéniasnaitica, Totem e ou no tm a ree, J enquanto antropoiog.O intorese de Toten tabu reside no || fato de que, nessa obra, Freud se aproxima, em forma de mito, & fungio iI do pai na experiéncia analitica. De ‘modo geral, eu diria que para Lacan do Pa na expen mcacante enquanto tl Hi, sobetado, uma toi da ree oie oy an aims instance sme a exrtura que reco Brdtica anasuem Speriéncia analitea, que se supe seta estrtura do in ida na propa Pee odos of twbicos ios da pane reconhece | sozcionte a cle sompre dasa 20 ania un gat me & 3 2s 3 = 2 | sam sempre ese nino ‘alia forma pst do propre conto dein constente a8 lente. festa um ening citio, do qual uma dt vrtents pi ae ema an roe um ¢ Lac? um anata qu 8 obsgou 8 temotéaien, No Tor, toda semana, em public 2 sa pric. No conker: nto- yf 14 percurso de Lacan discurso que recorra menos a fé Cega, a0 principio de H tusiasmo. © discurso de Lacan ¢ uma argumemarse outHdade Evidentemente, sua escritura — Porque, além dos seminéri oralmente, escreve artigos — é com freqiléncia aforistica, ¢ esconde a art gulagao do raciocinio. Ocorre também que Lacan mobilizn a0 escrever tg, dos 0s recursos retéricos, homofénicos da lingua. Nustra Prop forma de seu discurso, a primazia do significante. Ina, dificil seguir o discurso de Lacan, e cteio que isso se 10S que faz Os termos em que se apéia, e seu estilo, que é um estilo de achados, um es. tilo ao mesmo tempo digressivo e repentino. Pode-se dizer que quando La, can emprega uma palavra, nunca se esta seguro se se deve entendé-la segun- do 0 uso habitual, corrente da lingua. E que ele operou uma tefundiggo na linguagem que, de fato, exige estudo. Além disso, suss referéncias tedricas sdo de grande amplidao e diversidade, tanto na literatura como na ciéneia, Gias e, se me permitem a expresso, quebrar a cabega. Isso quer dizer que € uma obra extremamente opaca Para os leitores apressados. A teoria de Lacan, ademais, apresenta um carater de sucessio, de continuidade, que toma dificil capté-la em seus pormenores. E uma obra que se desenvolve h4 30 anos, sem descontinuidade aparente. possivel distinguir extratos nesse Pensamento, mas se passa insensivelmente de um outro. Alguns pensadores proclamam sua mudanga de opiniio; Lacan transforma sua teoria sem rasgadura, como por uma deformagdo de tipo topologico. Essa é uma de suas dificuldades. : Por outro lado, ao mesmo tempo em que ha esse Copan existem entretanto esquemas, formulas, grafos* que constituem ad due o freiam. Lacan passa e volta a passar pelos mesmos pontos, dant a Ihes sucessivamente diferentes leituras. E um tipo de trabalho que oat impacto na intelectualidade francesa. Em Paris, as modas no oe a tempo, o existencialismo de Sartre esteve em moda, no maximo, ate 10 anos; Lacan jé tem 30 anos de moda e, apesar de seus esforgos, cf an lectuais franceses ndo conseguiram dizer que jé o oO TE scurs0 e assombrosa resisténcia a banalizagdo na propria estrutura desse ha uma difusdo que vai além da compreensio. conferdncias caraquenhas 16 Tratarei de darthes agora, rapidamente, alguns na obra do Lacan, em Su inerrio de 80 anon. Vou earr no qa ro uma sucessdo de letras que encontramos no fin: “aon est tos de Lacan: TTYEMUTP. Durante muito tempo me pergunalo gus aa ta dizer essa sucesfo deltas, © so soubeindagende a0 prop De scan. Ele me disse que isto é o que dizia a si mesmo na época desse es ) siesgamgute um poco tarde De fo sete, arn meso | am pouco tarde. Lacan data‘ comego de seu ensino, proptiamete, she | ius a paree do 1955, consterando 0 que precole mec ave amen | O'semaco de seu ensino, segundo ele, é seu texto Fungdo e campo da pa- i a ra e da linguagem em psicandlise. Antes, Lacan era um médico e psiquia- a que tinha escrito numerosos artigos sobre pontos muito sutis da dinica Priquidtrica, cujos trabalhos culminaram com sua tee sobre pscose pata, bia, que é de 1982, © que talver. sea a iltima grande tse da escela nica francesa, que teve uma importancla enorme no seculo XIX, mas agora se limitou um pouco. Vejo atualmente muitos estudantes de psiquiatria vindo a Vincennes, &seedo clinica que temos, e comprove que id no se fa zem teses clinicas de psiquiatria, mas sim, afnal, teses parassociologicas. / Depois de sua tese e de sua entrada em andlise, vou dizerhes rapida- ‘mente que a primeira teoria da psicandlise que Lacan desenvolve, sobretu~ do depois da guerra, depois de 1945, faz do imaginario a dimensio propri da experiéncia analitica. Os mestres que reconhece como tais nessa épo- ta sfo Clérambault, o psiquiatra que ness época hava visto, som divida, mais pacientes, porque era psiquiatra daquilo que em Paris chamam de Depésito, aonde se enviam todos o: queso recolhios pela policia — oque tinka dado e Clérambault uma grande experiénciapsiquatrica —,¢ Alexan der Kojéve, a cujo seminario sobre Hegel Lacan assistiu entao. Em 1953, por ocasio da primeira cisfo do movimento psicanalitico francés, Lacan introduz a proposigéo “o inconsciente estraturado como » uma linguagem’’ e a distingao do real, o imaginério e o simbélico, que se- (guira sendo a pedra de toque de seu ensino, o qual néo mudard através de todas as suas variagoes. [A pattir de 1953, periodizo o ensino de Lacan da sequinte forma: entre 1953 e 1963, seu ensino toma a forma de um seminario de textos freudianos. Cada ano est dedicado a um conceito, a uma ou duas obras de Freud, ¢ a validade das estruturas de linguagem é verificada em toda a ex- tensi@ do campo legado pela experiéncia de meio séoulo de psicanilise Nessa época, a categoria que é dada como a dimensio essencial da experi- éncia é.a do simbélico. A mesmo tempo, Lacan introduz o que podemos Ghamar de sua digebra, e a introduz sob a forma do que ele chama um frganon, segundo uma propedéutica que no sobe nenum andar sem an- tes haver avaliado se o precedente est bem apoiado. VRE aed \ 16 percurso de Lacan ee aa Ee hea OR a . movimento psicanalitico francés e o deslocamento do sey me "Escola Normal Superior, a convite de Louis Althusser, jg nig a retamente 08 textos de Freud. Pelo contrétio: so e° seus proyometta di, os que dao ritmo a seu ensino; o sujeito barrado; o objeto ae temo; miniisculo; e A (outro com maitiscula).* Suas tesee S80 a5 que gmt4o a centro de sua elaboragao. Scupam o epols de 1974, estamos no terceiro petfodo que der «ci oe e Lacan toma por objeto 0 creer de seu discurso e, especialmente, a triparticao do real, 9 bélico eg ‘Gindrio, Deu-nos uma espécie de metateoria, numa simplicidade, com termos, ao mesmo tempo, que muitas ticos. Lacan evoca nesses termos a sua experiéncia, e, n do, ainda vigente, o real se Converteu na categoria essencial,_ Estou encarregado de redigir e publicar seus sem revista Omnicar?. O conjunto de seus seminérios, desde gravado, esta em processo de publicagio — eum; nhecemos até agora uma pequena parte da obra tomos em preparagao. Penso que, quando esea avangada, se poderd medir como Lacan cobriu o e a psique. indtios atuais © primeiro que foj redijo. Portanto, 36 on, de Lacan; hi mais de 29 Publicagao estiver mais 8 principais campos do do espelho.”” O estadio do ‘atamente a psicandlise, e ‘tamento, e sua descrigdo depende tanto da fisiologia humana. Que € o estddio do espe- lidico que a crianga da mostras, entre os seis animal. Reconhece a sua imagem, se interessa ue, podemos admitir,'é observavel. Lacan, 20 deu a maior importancia a esse estdio, ressal- ® esse € um fato q longo de seu ensino, conce » hem a observagao. Quis explicar esse Sine isso recorreu a teoria de Bolk, segundo a qui . desde a origem, em seu nascimento, um prem Singular da crianga, e para Tactente humano 6 de fato, turo, fisiologicamente falando. Por isso, ext4 je dexamparo: experimenta uma discordincis segundo Lacan, se a crianca exulta quai pecular, ¢ porque a completeza da form: Jogrou atingir; a imagem ¢, sem divida, a Fu de um outro, pois ertd em déficit co Jo, a imagem de fato captura a crianga jevou Lacan 4 idéia de que a aliena identificar-se com a imagem de um outro, homem, @@que © desenvolvimento dc E um desenvolviment desenvolvime dé numeros indo se rec tificagdes id ¢ néo um puro e simple que a pricologia animal nos Jo de certas espécies exige La outro da mesma espécie. A respeito dis pectos da psicologia animal; vooés me desculp midamente a pois ainda estamos no comes ipio, Lacan p A partir desse pi va, me atreveria a dizer, na experiéncia c andlise para iss seu semelhante, que é sempre aquele est em seu lugar, justamente porque ¢ 0 tempo ele 6 outro, sendc primeir Essa teoria explica 1 com seu objetc do h com seu objeto é em que © nhec criar a dem: que os outros 0 vao arreb to grosseiras, desejo h Mas deixemos e rejeitou como anteri em da questéo do eu (moi! nglo-saxénica da psica a partir do estédio do espelh Harum Kris e Lowenstein, que construfam uma teoria muito diferente Quiseram reinterpretar Freud a partir da segunda tpi a freudiana e, devemos reconhecé-lo, essa concepgdo é a que tem triunfa do até hoje nos paises de influéncia inglesa e norte-americana, 48 percurso de Lacan ee topica freudiana, que distingue as instangi Vooés conheoem 2 ma teoria tardia em Freud, que a expéra pace Nossos psicanalistas de origem européia, transplantade Nossos P! diam unificar a teoria de Freug °° Unidos, consideraram que podiam unificar a Teud a par. Extadot do, dasa distngfo de ts instncas,e que podian tir dessa concer acia central da personalidade, dotada de uma fungig do eu (moi) 2 tram também que 0 eu era uma expécie de ponto de A, de sintee, SPO pscanaista, e que o psicanalista devia reforear o eu pan quimedes Pi i nivel da realidade. tratar de leva 0 pari uestzo do eu a parti do estidio do espelho leva roi veiferente, O eb, nessa concepgdo, nao é unificador, tampoug 5 anno, é uma desordem de identficagSes imagindras e, no dere” " Se concep, tas idenicags imagining ivamente. Isso permitiu que Lacan dissesse, naquela épo- aaa ie de parandia dirigida, P ca, que a cura psicanalitica era uma espécie de p: ‘alia igida. Pode-se dizer que o eu, no sentido de Lacan, ainda que esta i la Ja esteja presente em Freud, é originariamente um engano e, de fato, esta constitutivamente ‘ee isso, pensava no que diz Leo Spitzer acerca do Buscén de Que vedo. Spitzer critica o estilo de Quevedo em seus retratos dizendo que, af nal, seus personagens néo tém alma, esto compostos por tragos heters tos. Eu diria que precisamente esse estilo quevediano corresponde perfei- tamente a essa concep¢do lacaniana do eu. O eu é uma desordem, Em todo caso, é assim como aparece na experiéncia analitica; sempre falamos desse campo. Em outros campos, é possivel efetivamente dar-lhe outros valores, mas o propriamente freudiano — e é por isso que a psicandlise néo é uma Psicologia — ¢ essa concepeao nao unificada, ndo unificante do eu, Entdo, a primeira teoria de Lacan, que acabo de lhes resumir breve- mente, tem sua coeréncia. No entanto tropeca com a seguinte dificuldade: a telagio imaginaria entre o eu e o outro é fundamentalmente uma relagéo mortifera, uma relago na qual esta o eu ou o outro. Esse é um dos funda- mentos do pessimismo de Freud, que ndo pensava que os homens se of- ganizassem harmoniosamente de tmaneira espontanea. Tudo esta ai para ostrélo, ¢ nem mesmo se pode falar de pessimismo, deve-se falar de rea lismo. Essa relagéo imagindria mortifera, nessa época do pensamento de {aean, tem como Unica saida um desenlace identifieatone, quer dizer, alienante. Pois bem: nem todas as identificagoes sdo equivalentes, no pro- Pio Feud algumas identificagSes so normativas, Lacan utiliza amy term ine imagens imago, que resume toda essa dificuldade. Por um lado, ¢ reais; por out nh AAuilo que a etologia atesta que pode ter efeitos ‘ : & um conjunto de tragos organizados, inclusive tipifica & esse ponto, a ambigitidade se desvanece, pois 0 dos. Com relagdo no de Lacan comega com a disjungao entre 0 simbédlico e o imaginario. eu, o supereu dos anos 20. oy NS ————<«E tir 105, zer fo Are ra va conferéncias caraquenhas 19 Pode-se dizer, verdadeiramente, que o ensino de Lacan comega quando” distingue de forma radical o que pertence ao dominio imaginério e o que ) pertence ao dominio simbélico, ao qual ja chegaremos. Ao mesmo tempo, distingue o eu em sua dimensio imaginaria e 0 sujeito como termo simbé- lico, e esse é um dos primeiros termos que introduz em Freud, e é também um dos primeiros termos de sua dlgebra. O simbélico é em Lacan uma nogdo muito elaborada. Diria inclusi- ve que é muito heterogénea. Nesse conceito estdo presentes tanto a dialéti- ca quanto a cibernética, e essa dimensio, em alguns aspectos, ndo deixa de estar relacionada com o que P opper chama de “‘o terceiro mundo”’. Uma vez afastado 0 simbolo da imagem — quando néo se confunde ambos, como faz Jung -, o simbélico tente da palavrae a vertente da tem, podemos dizer, duas vertentes: a ver- linguagem Tomemos a primeira vertente, a vertente da palavra. Enquanto a di- mensdo imagindtia, tal como a esbogamos, ¢ fundamentalmente uma di- mensfo de querra, de rivalidade mortal, Lacan encontra na fungdo da pala- yra uma fungéo pacificadora. A palavra também opera identificagdes, mas \ elas sdo, se quiserem, identificagdes salvadoras que permitem superar a validade imagindria. Fala sobre isso com freqiiéncia, sobretudo no princi- pio de seu ensino, da palavra como fungao de mediagdo entre os sujeitos. Nessa vertente, que podemos dizer do sintoma? Podemos dizer que © sintoma se deve a um defeito de simbolizagao, que constitui um centro de opacidade n palavra, e que se desfaz na medida em que passa & palavra. que a cura analitica aparece 0 sujeito porque néo foi verbalizado, porque nao passou 4 Pode-se dizer principalmente, nessa dirego, como uma cura de simbolizagdo; é necessdrio assinalar que muita gente se deteve nessa concep¢do de Lacan. O assombroso, se me permitem a expresso, em sua teoria é que po de consciéncia, e é possivel mente, por seu ano, como se além disso, existem muitissimos andares, cada um dos quais tendo um ti- distinguir os lacanianos, na Franga especial- distinguem as safras dos vinhos. Como ha, certo numero de pessoas que deixaram Lacan em diferentes momentos — a ponto de haver, em todas as escolas psicanaliticas na Fran- a, antigos discipulos de Lacan © abandonaram pelo nivel ram, pois é preciso dizer que, ria que se sustenha. Nessa vertente, talmente intersubjetivo, no decorrer do qu: ie de sua histéria, interrompida pelo sintoma. Era o que lecer a continuidade Lacan exprimia ao dizer que 0 i histéria do sujeito. A cura opera va ao que permaneceu opaco Pi idéia de trauma tenta traduzir. —, pode-se reconhecer o momento em que J tedrico da teoria de Lacan em que permanece- na Franca, nao se propés nenhuma outra teo- entdo, a cura é um processo fundamen- ‘al o sujeito é levado a restabe- inconsciente é um capitulo censurado da porque permite dar significagao retroati- ara 0 sujeito em sua experiéncia. E o que a Quando se falava de trauma com relagao 4 20 percurso de Lacon scanatise, quando Freud imaginava que havia um trauma real na o psici eurose, que pelo fato de que tal menina tenha sido efe, de ur se corrompida por um adulto mais tarde se transform: el tgoria que Freud abandonou, o que tentava apreender era preg = idéia de uma experiéncia inassimil ivel Para 0 sujeito, que engen. men’ fntoma, e que a cura por simbolizayao devia permitirdesfazer. Eur @ uma das vertentes do simbédlico. A vertente da palavra. ‘A outra vertente concerne ao que se pode chamar de ordem simbo. tica como conjunto diacritico de elementos discretos, separados. Dian, tico quer dizer que os elementos adquirem valor uns com relago aos oy. tros, é um conceito que vem de Saussure, da lingiiistica estrutural. Esses elementos separados estdo, enquanto tais, privados de sentido e formam em sua conjugagao uma estrutura articulada, combinatéria e auténoma Por um raciocinio muito simples, compreendem que essa estrutura néo tem origem e que, se esta existe, ndo se pode estabelecer sua génese; esti sempre jé ai disposto que os elementos s6 valem uns com relagdo aos ou- tros, Entao, precisemos que a lingiiistica estrutural sé comecou no momen- to em que se deixou de formular perguntas acerca da origem. Por essara- zo, 0 sentido do ensino de Lacan se opée totalmente 4 idéia de psicogé. nese. Este é um ponto sobre o qual haveria que insistir, pois muitas vezes se considerou que o ensinamento essencial de Freud foi a teoria dos esté- dios. Lacan torna a ler a teoria dos estédios e demonstra, de forma con- vincente, que o essencial nao é a concepgao histérica do desenvolvimento psicolégico. Se querem que ilustre rapidamente esse cardter de “j ai’” da estrutura, pensem que, ao contrério do que se imagina, no ha aquisigéo progressiva da linguagem. As criangas pequenas ja utilizam formas de lin- guagem extremamente elaboradas do ponto de vista sintatico, a crianga estd, desde inicio, em um banho de linguagem. Nao devemos permitir que a idéia de aprendizado nos cegue diante do fato de que a estrutura da linguagem preexiste a entrada do sujeito nessa estrutura; seja qual for 0 aprendizado, a crianga néo modifica essa estrutura, tem que se submeter 4 ela. Nessa vertente vocés observardo que se trata de uma estrutura feita de sem-sentido. Essas duas vertentes do simbélico apresentam um problema particy: lar. A primeira vertente é sobretudo significagdo, e a segunda 6 sobretudo sem sentido, Pode-se dizer que 0 acento de Lacan passou, indubitavemen fe oe vertente 4 segunda. A primeira o aproximava se ue ta mae © — como, por exemplo, era amigo de see om ete rio, bata difundilo na Franga — muitas pessoas ae ana) an, alguém que descende de Husserl, ¢ até um het Sr # mas, evidentemente, essa ¢ uma idéia totalmente errada. 1a elaborou 7 do » Pode-se ee tos — dizer, a dimensdo comum a esses dois aspec tivamente ava em hi — — — —————— ——————— conferéncias caraquenhas 21 2 otiger iameats Distinguirei aqui trés pontos. Em primeiro lugar, retificou o parale- em his. lismo que Saussure postulava entre o significante e o significado, insistiu precisa, sobre 0 fato de que o primeiro, o significante, atua sobre o segundo, 0 ie engen, significado, ao contrério da posigao que sustenta que 0. sigificante serve zer, Essa somente para exprimir o significado. A tese de Lacan é que o significante atua sobre o significado, e inclusive, em um sentido radical, o signifi oe cante cria o significado, e ¢ a partir do sem-sentido do significante que se Dia engendra a significagio. ' : a aos ou- Em segundo lugar, introduziu 0 conceito de cadeia significante para al. Esses dar conta da sobredeterminagao na qual vé, da mesma forma que Freud, a formam condigao de toda formagao do inconsciente. Deve-se explicar adequada- mente um conceito que Freud introduziu, o do automatismo de repetigao, t6noma. esse conceito téo enigmatico, de instinto de morte, que é um paradoxo em fura ndo ‘seus proprios termos; um paradoxo in adjecto. Como poderia existir um ese; estd i instinto que, longe de ser vital, seria um instinto de morte? Lacan assinala ) a08 ou- que 0 automatismo de repetigao, no sentido de Freud, veicula uma marca momen- indelével, e que 0 inconsciente esta constituido Por essa marca, da qual o r essa ra- sujeito ndo consegue desembaragar-se. Actedita-se que o inconsciente tem psicogé- a ver com a meméria. Sem duvida, tem a ver com uma meméria que ndo Ec'vones tem nada de psicologica. A meméria, tal como pode ser testada em psicolo- dos esté- Gia, ndo é uma meméria indelével; pelo contratio: é, dado 0 caso, uma me- ee méria que thes permite, na experiéncia, cotrigit o comportamento de vo- eae és, adaptdlo. Pois bem, o que comprova Freud é que ha algo no sujeito hu- mano que é fundamentalmente inadaptavel. Voltarei a esse ponto, mas precisamente por esse aspecto que a psicandlise tem algo a ver com a liber- dade, pois quando se im’ gina que o ser humano é completamente adapta- vel s6 se tem uma idéia: controlar totalitariamente o seu ambiente, poder | crianga moldélo. Mas nao acredito ~ jd acreditei - que doutrina alguma que pro- permitir meta um homem novo seja autenticamente uma doutrina de libertag3o. utura da Certamente, desde Freud ndo podemos mais confiar nos que pensam na 1al for © adaptagao controlada do ser humano, e, sobre isso, me atreveria a dizer bmeter @ que aponta na dire¢do do essencial autoritarismo que perpassa — talvez \feita de seja um paradoxo para muitos de vocés — todo empitismo. Isso permite : compreender ao mesmo tempo o valor revolucionatio e subversivo da psi- | particu- canilise, mas também que Freud nao pensa que a esperanga esteja obriga- sbretudo toriamente do lado da verdade. Essa é uma pequena digressdo. avelmen- Em terceiro lugar, faz funcionar o simbélico, a estrutura integra, inda dos como um termo. Mostra como a relagdo entre a estrutura simbélica e o u-Ponty, sujeito se distingue da relagao imagindria do eu e 0 outro. Por isso, intro- nda hoje duziu essa escritura do Outro com maitiscula (A), que se distingue do ou- reidegge- tro com miniiscula (que ¢ reciproco, simétrico, do eu imaginario). E cer- ,. Lacan tamente dificil expor rapidamente esse conceito de Outro; no entanto, ¢ actos do isso que tento fazer. E dificil expoo rapidamente, Pois ndo é dito em um a a 22 percurso de Lacan s6 sentido. Em primeiro lugar, pode-se dizer que o Outro 6 o grande Outro (A) da linguagem, que estd sempre ja ai. E ° Outro do discurso universa) de tudo o que foi dito, na medida em que ¢ pensével. Diria também gu! 6 0 Outro da biblioteca de Borges, da biblioteca total. E também o Outro da verdade, esse Outro que é um terceiro em relagao a todo didlogo, Bor. que no didlogo de um com outro sempre esti o que funciona como rete réncia, tanto do acordo quanto do desacordo, o Outro do pacto quanto» Outro da controvérsia. Todo o mundo sabe que se deve estar de acordo, pata poder 1 valizar uma controvérsia, e isso é 0 que faz com que os disie gos sejam t4o dificeis. Deve-se estar de acordo em alguns pontos funds, mentais para poder-se escutar mutuamente. A esse respeito, esse Outro da boa fé suposta esta presente a partir do momento em que se escuta a). guém, suposto também a partir do momento em que se fala a alguém, & © Outro da palavra que é 0 alocutario’ fundamental, a direcao do discurso mais além daquele a quem se dirige. A quem falo agora? Falo aos que es. to aqui, e falo também A coeréncia que tento manter. Também a dificul dade de falar aqui se deve precisamente a que, nao conhecendo 0 contexto, néo sei como entendem o que digo. A teoria da comunicagao esquece algo: no lugar do cédigo, no local onde esté 0 cédigo, é que se elabora funda. mentalmente a mensagem. Isso levou Lacan a adotar a formula paradoxal — mas refletindo um pouco vocés captardo sua verdade — de que, na comu- nicagdo humana, o emissor recebe sua mensagem do receptor de forma in- vertida. © Outro de Lacan é também o Outro cujo inconsciente é o discur- $0; 0 Outro que no seio de mim mesmo me agita, e por isso é também o Outro do desejo, do desejo como inconsciente, esse desejo opaco para o sujeito, acerca do qual pede, em certos casos, que lhe informem, recorren- do a cura psicanalitica. Mas ninguém, salvo ele mesmo, pode informar-lhe acerca de seu desejo através do circuito dessa comunicagdo que, vooés podem ver, nao é a comunicagio linear que se representa na teoria da co- municagao. Diria que fiz aqui apenas uma pequena sinopse desse Outro, que in- tervém na teoria de Lacan em niveis muito diversos, mas todos esses ni- veis se distinguem pelo fato de que concernem a uma dimensio de exteri Fidade com relagao ao sujeito. O que Lacan chama de Outro é uma mensao de exterioridade que tem uma fungdo determinante para o sujeito. ‘Nesse sentido é, podemos dizer, o nome genérico daquilo que Freud cha mou, retomando uma expressdo de Fechner, a ‘“Outra cena”, essa outra cena onde se situa toda a maquinaria do inconsciente. Ler Lacan, como J Podem perceber, supée que, quando se vé essa palavra, “Outro”, Se wake idéia da diversidade de significagées ligadas a esse significante, que aq) ude tentar fazer vocés entreverem. : aria: Essa construgao implica que o inconsciente ndo resiste, contré a Mente ao que foi ressaltado em primeiro plano na teoria freudiana, 56 — conferéncias caraquenhas 23 do a interpretagdo dos anglo-saxénicos. O inconsciente ndo resiste, 0 in- consciente repete, o inconsciente gira como uma mensagem em um compu- tador, ndo deixa de girar e diz, ademais, sempre a mesma coisa. Se ha re- sisténcias, elas estdo situadas no nivel da relagao imaginaria entre 0 eu € 0 outro. O imagindrio existe, e as formagdes imaginarias fascinaram os psica- nalistas. Lacan explica que essas formagées imagindrias se manifestam so- bretudo por sua inércia, na medida em que esfumam as relagdes do sujeito com o grande Outro, que é 0 unico determinante fundamental para 0 su- jeito. A partir desse momento, a operagao analitica se desenvolve essencial- mente no simbélico. Qual é a fungdo do psicanalista? Para que deve téo preparado sua formagdo? Sua fungdo ¢ desaparecer enquanto eu (moi), ndo permitir que a relagao imagindria domine a situagao. Nesse sentido, sua propria posigao no dispositivo analitico manifesta essa subtragdo a relagdo imagindria. Pe- lo contrario: na experiéncia analitica, deve estar no lugar do grande Outro e, se interpreta, deve interpretar dessa posigao excéntrica; apenas desse lu- gar tem possibilidade de desfazer o sintoma. Devo imediatamente acrescen- tar que essa é uma primeira teoria de Lacan sobre a posicgo analitica, ha trés ou quatro sucessivas que tratam, cada vez mais, de delimité-a de for- ma mais precisa. Mas essa é valiosa, estd na base de numerosos esquemas de Lacan que consistem em opor 0 eixo da relago imagindria ao eixo da telagdo simbélica. Desenharei simplesmente uma cruz; por um lado, tém © eixo da relagdo imaginaria entre os termos reciprocos ‘‘eu’”: a @ a’ (outro Som miniscula), e no outro eixo, cruzado, esto o sujeito e o grande Outro. Como podem ver, eu ndo Ihes mentia quando dizia que os esquemas de Lacan eram simples. a’ outro A Outro (eu (moi) a) da nao cheguei @ meta Percebo que ain de ultrapassar preparado, e jd estou a ponto de da conferéncia que tinha tempo estipulado; no entan- 24 percurso de Lacan to, é necessirio que faga diante de vocés a pergunta: Lacan ¢ estruturalis. ta? : 5 : rimeiro sentido, Lacan é estruturalista, ¢ sua nog; ia “The vem de Roman Jakobson, por intermédio ac Cite’ hn Strauss, ¢ também dietamente de seu trabalho com Jakobson que, eng” mente, pode ser situado entre seus mestres e seus amigos, Em um segundo sentido, Lacan ¢ estruturalista, mas um estrtur, lista radical, pois se ocupa da conjungéo entre a estratura¢ o sistg a quanto a propria questao ndo existe para os estruturalistas, fica reduzi, é um zero, Lacan, 20 contro, tentou elaborar qual é estatuto do sje to compativel com a idéia de estrutura, Em um terceiro sentido, Lacan ndo é de modo algum estruturalista pois a estrutura dos estruturalistas é uma estrutura coetente e comple, (por principio, a estrutura diacritica é completa), enquanto a estrutura ja caniana é fundamentalmente antinémica e incompleta. Diria que o prime ro dos trés aspectos é bem conhecido, e que os outros dois sZ0 muito me. nos conhecidos. >> _0 sujeito de Lacan nao é um dado inicial; 0 tinico dado inicial 6 9 grande Outro. Dai a pergunta: como pode se constituir 0 sujeito no lugar do Outro que o preexiste? E uma pergunta que recebeu, no ensino de La can, respostas cada vez mais precisas, na medida em que a sua concepeio da estrutura se tomou légica, se aproximou da légica no sentido formal do termo. A estrutura de Lacan ndo é uma poténcia invisivel que atua im. perceptivelmente. Sabem como falava Adam Smith, nos primérdios do ca. pitalismo, da mo invisivel que pée as atividades humanas em seu lugar ¢ as faz. compativeis ¢ harmoniosas. Nao é a nés, evidentemente, que podem vir contar isso... Mas a estrutura de Lacan ndo é, de modo algum, uma mo cculta. A estrutura de Lacan é uma estrutura que captura um ser vivo articular, o ser vivo que fala. No fundo, isso cria uma diferenga com todas as formas de psicologia, tanto humana como animal. O aspecto fundamen- tal, valorizado pela experiéncia analitica, é que o homem é um ser vivo, mas um ser vivo que fala, o que tem inclusive conseqiiéncias no seu corpo; 6 que a estrutura escraviza o sujeito, fragmenta-o em efeitos de significan- te. Que podem compreender da histeria se no admitem a fragmentagio significante do préprio corpo? Nao se deve ver a linguagem simplesmente como um meio de expresséo. Em primeiro lugar, é algo material, que a ge instrumentos, como por exemplo este microfone — certamente muito Pesado ~, que exige fitas magnéticas, que é material, mas, indo além, mc- biliza os afetos mais profundos do corpo. O significante, a estrutura si nificante, tem um efeito de desvitalizagao sobre o corpo, mortifca. 180 explica que a pulsio de Freud esteja fora do dominio de toda psicologi,* Pulsdo freudiana nao é, de modo algum, um impulso do instingo. Se nfe me créem, leiam 0 texto sobre As pulsdes e suas vicissitudes,® que eo eee conferéncias caraquenhas 25 {/ |/na Metapsicologia de Freud; verdo que o que se chama pulsdo obedece a || uma gramética, y E a partir dessa captura do ser vivo pela estrutura que se explica tam- bém essa perda constitutiva do objeto, da qual Freud se aproximou em sua teoria dos estadios. O fundamental da teoria dos estadios ¢ que cada um deles estd organizado a partir de um objeto perdido. Tanto o seio, que é abordado a partir do desmame, como as fezes, que s4o abordadas a partir da relagao anal, da captura dessa dimensdo pela educagdo — sem a qual a crianga nunca se separaria delas, s anseia brincar com elas, como todo o mundo sabe. Também a castragao e o estddio genital, que estd longe de ser uma plenitude em Freud, sdo abordados a partir do falo como perdido, como faltante. Isso constitui o nucleo da teoria do Edipo — que o falo, ai, também estd fundamentalmente perdido. Nao se trata, obviamente, do ‘orgao real; a questéo é saber que se trata do falo em sua dimensdo simbé- lica e imagindria. Digamos, de maneira geral — pois de qualquer modo ja devo parar —, que as necessidades do homem estdo nele completamente transformadas pelo fato de que fala, pelo fato de que dirige demandas ao Outro — e se pode colocar nesse outro um O maitisculo —, esse Outro que Lacan chama ) de Outro onipotente da demanda. Em geral, no homem, o significante substitui a necessidade, pois a demanda ao Outro tende, por seu proprio movimento, a se converter em demanda pura da resposta do Outro — ai se coloca 0 amor. O amor esta além do que seria a satisfagao da necessida- de. Vocés podem perfeitamente satisfazer a necessidade de comer, podem satisfazer a fome; podem satisfazer tanto essa necessidade, que podem che- gar a fabricar anorexigenos. A demanda de ser alimentado nao se situa no mesmo nivel da pura e simples necessidade de comer. O mais importante que se tem para dar é 0 que ndo se tem como uma propriedade, como um bem, e esta é, decerto, a definigdo lacaniana do amor: dar o que nao se tem. Essa resposta do Outro, a pura resposta do Outro, é mais importante que a satisfagdo da necessidade, e é af precisamente onde Lacan encontra © principio da identificagao simbélica: a partir do significante da resposta do grande Outro se da a primeira identificagao do sujeito. Acrescente-se a isso que ¢ 0 intervalo entre a necessidade e 0 amor que explica aquilo que Freud descobriu no sonho com o nome de “Wunsch” — anseio —, que é 0 desejo. Terminarei dizendo que o desejo freudiano nao é uma fungao vital. O desejo no sentido de Freud, o desejo inconsciente, é um desejo sempre particular de cada um de nés, excéntrico, que ndo caminha no sentido da sobrevivéncia e da adaptacao. E um desejo que, pelo contrério, faz dano. | ‘Ao mesmo tempo, revelado na livre associagao, é um desejo indestrutivel ~ Freud o chama assim, “indestrutivel’’ —, ndo é um desejo que se possa esquecer E este desejo é essencialmente insatisfeito. Nao é uma fungao te 26 percurso de Lacan que se possa satisfazer. Nao ha satisfagao para o desejo, e Por isso Lacan denominou um de seus semindrios Mais, ainda. O desejo esta a tal ponto capturado no deslizamento da cadeia significante que Lacan o identifica | com esse deslizamento, e fala da metonimia do desejo. Esse lema de Lacan tornou-se popular, pelo menos na Franga: 0 analista é quem ndo responde | a demanda, e tenta assim situar-se e interpretar ao nivel do desejo. O dese. » | jo ndo é educdvel, nao é suscetivel a uma pedagogia, e nem a uma sexolo- i gia, que se situa em outro nivel, um nivel puramente instrumental. O de- sejo sO é suscetivel a uma ética, ética que Lacan formulou, nos anos 50, da | seguinte forma: nao ceder quanto ao seu desejo. Isso ndo quer dizer que o desejo possa ser liberado. Claro, nao faltaram interpretagdes de Lacan nes- | se sentido, pois — de alguma forma — a maior parte dos discursos produzi dos nos ultimos 10 anos na Franga, nesse campo, é constituida por varian- tes de Lacan. Nao é possivel liberar o desejo porque o desejo freudiano nao esta destinado 4 plenitude. O desejo esta coordenado a uma fungao de | falta, de caréncia, e — longe de ser infinitamente plastico — suas formas séo limitadas em numero. Lacan lamentava que a experiéncia analitica ndo tivesse criado uma nova forma de perversao. Mas nao se criam assim com tanta facilidade as formas de perversdo... Existe um determinado numero delas. Até aqui chega a metade da minha primeira conferéncia; penso que retomarei essas quest6es, na segunda, a partir da definigdo lacaniana da lin- guagem, que tem certas conseqiiéncias tanto para a teoria da literatura quanto para a teoria da comunicagdo. Na terceira, falarei da psicanilise e a teoria da ciéncia. Obrigado.

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