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TEXTOS CLASSICOS ORIGEM DO DIREITO COMERCIAL (Capitulo 1.° do Corso di Diritto Commerciale ~ Introduzione e Teoria dell'Impresa, 3. ed., Milo, Giuffr’, 1962, de Tullio Ascarelli) FABIO KONDER COMPARATO* 1. Quando observamos a hist6ria do Direito, ndo tardamos em perceber a freqiiéncia com que no direito privado, a um sistema tradicional se contrapem institutos que concorrem com os do reito tradicional até virem a constituir, eventualmente, um dircito chamado, em sua organicidade, especial, em confronto ‘com 0 direito comum. Quando se fala, ‘em relagao a esse direito, de “eqiiidade”, a expressio ndo significa “justica do caso ‘eonereto”, ou “tegra de um direito social em conttaposicdo ao estatal”, mas imersiio, de infcio limitada e, depois, historicamente sempre mais ampla, de novos valores e novos princfpios, invo- cados originalmente supplendi vel corrigendi gratia 0 direito tradicional e, em seguida, de modo sempre mais largo, Com isto, no desenvolvimento histérico, regras de infcio ditas excepcionais, em se seguida sistematizadas como direito es- pecial, nao chegam a constituir 0 direito geral © comum, perante o qual as ‘contrastantes regras do velho direito tra- dicional terminam por assumir, &s vezes, quase 0 carter de resquicios hist6ricos. Mas exee clireita geral @ ecmnm passa a formar um sistema doravante inspirado por aqueles que, no inicio da evolugao, cram simples temperamentos equitativos. © Autor da tradugio ¢ notas, Jus civile © jus honorarium no diteito romano espelham, justamente, essa contraposigio; comnion law © equity voltam a mostrar a formagdo de institutos gue se colocam paralelamente ao direito comum, revelando-nos destarte a impor- tincia de um fendmeno proprio dos dois sistemas que cnformam todos os direitos da Cristandade. Essa dicotomia pode parecer il6gica a ‘um observador preocupado com sime~ trias sistemdticas. Ele poderd se pergun- tar se a distingdo entre hereditas ¢ bonorum possessio, ou a possibilidade de se conceder in equity a execugio especi- fica, que nio cabfvel na common lav, ‘go constituem complicagoes initeis. Mas ‘aos observadores mais atentos niio esca~ paré o fato de que a dicotomia exerce a importante funco de conciliar a rigidea (que & certeza) do Direito, com a sua também perene exigéncia de elasticida- de, de adaptagdo. A distingdo entre um sistema tradicional ¢ institutos que com ele concorrem permite, justamente, con- ciliar a adogao de novos prineipios com tum caminho lento ¢ experimental, dando ensejo a que eles sejam ensaiados, intro- duzindo-0s primeiramente em alguns setores € depois em outros, admitindo, abstratamente, sua ampla aplicabilidade © forea de expansio, mas na yerdade aplicando-os de inicio onde é mais senti- da a sua necessidade. E, pois, 0 tempo 88. REVISTA DE DIREIO MERCANTIL — 103 que iré permitir a lenta expansio dos principios que podemos, historicamente, dizer especiais (exatamente porque sua aplicagao € limitada a um ambito deter- minado, embora sendo, em principio, ppossfvel no ambito geral), principios es- ses que, depois, se estabilizam ¢ esten- dem set alcance, acabando final por se fundirem no sistema geral fendmeno processual precede fre- quentemente o substancial: 0 direito nasce historicamente da agio. O sistema eqtitativo encontra, por isso, a sua ori- ‘gem num fendmeno provessual e se poe, antes de tudo, como sistema de agdes judiciais e em fungao, eventualmente, de ‘urna peculiar jurisdigao; 0 jus honorarium tem sua fonté no edito do pretor romano; equity anglo-saxdnica nos podetes do Chanceler, coordenando-se com uma diferenga de jurisdigées. Podemos, pois, no terreno histérico, encontrar, iterativamente, um direito especial, na peculiaridade do desenvol- vimento histdrico (e a diferenga 56 pode ser apreendida historicamente) de prin- cipios que se atirmam, tao-s6, em ambito limitado, mas que sio suscetiveis de aplicagoes gerais; ensaiam-se, assim, critérios e valoragbes num Ambito limi tado, mas que, em via de prinefpio, tém umaleance geral e historicamente poder acabar por assumir esse alcance geral, celebrando-se, destarte, exatamente na superacio de'sua especialidade, 0 seu ‘maior triunfo. 2. A fungao do direito comercial diz respeito a essa ordem de fendmenos. ‘Normas particulares & matéria comer- cial sempre existiram ¢ 0s eruditos assi- nalam-nas desde o Cédigo de Hamurabi. ‘Mas um sistema de direito comercial, ou seja, uma série de normas coordenadas a partir de prinefpios comuns, 86 comeca a aparecer com a civilizagao comunal ita- Tiana, to excepcionalmente rica de ins- piragdes e impulso de toda ordem. direito romano nao havia conheci do um sistema de direito comercial ¢ para tanto talvez, houvesse concorrido, nfo 86 aelasticidade do direito pretoriano (com a conseqilente dicotomia do siste~ ma & qual fizemos alusio no parégrafo anterior), como também a elaboragio dos institutes ditos juris gentium, en- quanto meios aptos a fazer valer as exigéncias internacionais, as quais cortesponden, como yeremos, 0 ditcito comercial em suas origens. E na civilizagao das comunas que o direito comercial comega a afirmar-se, ‘em contraposicgo & civilizagio feudal, mas também distinguindo-se do direito romano comum que, quase simultanea~ ‘mente, se constitui e se impde. O direito ‘comercial aparece, por isso, como um fendmeno hist6rico, cuja origem ¢ ligada 2 afirmagao de uma civilizagao burguesa urbana, na qual se desenvolve um novo ‘espitito empreendedor e uma nova orga- nizagdo dos negécios. Essa nova ci zagio surge, justamente, nas comunas italianas Remantanda 9 essa época encontrae ‘mos, sobretudo nas comunas da Itdlia central ¢ setentrional, um primeiro siste- ‘ma de direito comercial, ligado 2quela ‘magnifica floreseéncia que caracterizou as cidades da peninsola ¢ que eclodiu, simultaneamente, no campo do pensa- mento e na operosidade do trifico; na afirmagio de uma nova classe social € nos progressos da matemitica (Leonar- do di Pisa, cognominado il Fibonacci, em seu Liber Abbaci, de 1202, ilustrou (08 ntimeros ditos ardbicos; foi do Oriente que nos veio 0 niimero zero (...) € para znos darmos conta da simplificagZo, basta tentar fazer 0 céleulo de multiplicagao abandonando a numeracdo atual ¢ ado- tando @ romana), progressos ‘esses conexos com 0 desenvolvimento das tro- cas. Foi a época do triunfo da lingua italiana ¢ do desenvolvimento das inicia- tivas dos peritos mercadores, que recor- riam a um diteito mais gil e expedito TEXTOS CLASSICO 89 que 0 romano-candnico comum, a um direito “vulgar”, poder-se-ia dizer, para- fraseando 0 fen6meno lingiiistico. En- im, foi a época do que se pode chamar, em verdade, uma primeira Renascenca A civilizazao comunal fundava-se no trabalho livre (convindo no esquecer como ela se contrapunha, destarte, 3 economia servil romana) € a sua florescéncia era acompanhada também por uma cransformagdo na organizacdo da propriedade agearia, A cidade era um centro de consumo ¢ de trocas, além de centro de produgao industrial. Quanto as cidades maritimas, elas tinham no mar uma via de comunicagio para horizon- tes mais largos e um incentivo aos ne~ _g6cios especulativos por meio de trocas a longe distancia, que engendravam a0 mesmo tempo riscas, riquezas e experi- eneias. ‘Com a segunda metade do século XIL, artesios © mercadores viram-se associa- dos em corporagdes de artes € oficios, ‘compreendendo 03 mestres de cada arte e, 20 lado deles, mas em posiggo subor- dinada, seus companheiros de trabalho e ‘08 aprendizes (exclufdos os assalariados). Se bem que as associagdes de profis- sionais (obrigadas a pagar prestagdes a0 soberano e dotadas de monopélio) tenham cexistido também nos séculos anteriores, 0 répido florescimento das corporagdes, aps a primeira metade do século XII, como associagdes livres — com escopos religio- 508 € de socorto miituo, para a defesa dos interesses comuns dos associados e para a defesa do comeércio urbano — parece cons- iuir um fato novo, conexo com a cons- ituigo da comuna e a forte imigraczo do ‘campo para as cidades. As corporagies, ‘em seu ordenamento intemo, imitavam 0 da comuna, com os seus eGnsules ¢ a sua Jurisdigdo ‘corporativa, A historia das ‘corporagBes acabard por entrelagar-se, amiéde, com a hist6ria constitucional das ccidades, de tal maneita que, nas comunas ‘organizadas democraticamente, a inse ‘¢80 na corporacdo tomar-se-4 um pressu- posto para a participagio na vida pablica, © Estado identificar-se~4, por vezes, com a estrutura corporativa dos oficios e os contrastes entre estes tomnar-se-40 con irastes politicos da cidade. Dente as corporagdes sobressai a dos mereadores, sobretudo de tecidos, tio distintos dos artesos. Nas cidades onde foi mais intensa e especializada a ativi- dade mercantil, surgem corporagées de diversos ramos de mercadores. Assiin por exemplo em Florenga, onde as cinco artes maiores eram a de Calimala (assim denominada em razdo do trecho da tua fem que os membros da corporagio ti- nham seus estabelecimentos, exercendo © comércio dos tecidos estrangeiros), a da i (dos tecidos de 1a), e de Por’S. Maria (também essa, originalmente, do comércio de tecidos e depois, no século XIV, da seda), a do cdmbio, a dos fisicos (médicos) e boticérios (para o comércio das drogas), vindo em seguida, as artes menotes (como a dos peleiros). ‘As corporagdes meteantis redinem, a0 lado dos pequenos comerciantes com mentalidade artesanal, os grandes mer- cadores que aos primeiros podem, se- gundo alguns, contrapor-se. De resto, 86 raramente o8 pequenos e grandes comer- ciantes, comerciantes no varejo € no atacado, formaram corporagdes distin- tas, Os’ grandes comerciantes, a partir dos séculos XIII e XIV so empresérios com uma esfera de ago internacional, homens de negécio empenhados em ‘iiltiplas especulagses, verdadeiros pro- tagonistas de uma intensa atividade eco- ndmica de Ambito internacional, com uma organizagéo ordenada e racional, iuitas yezes desenvolvendo larga ativi dade bancéria com particulares e prin- cipes, ou servindo de instrumento para 2 intensa atividade financeira da Tgreja que, assim como notou argutamente Sapori, batizava 0 nascente capitalismo, ‘© mercador tomna-se freqlentemente industrial, e Luzzatto enxerga justamen- te no lanificio (soberano, entre as ativi- 90 REVISTA DE DIREITO. MERCANTHL ~ 103, dades industriais, em toda a Idade Média e caracterizado pelo grande niimero de processos técnicos de elaboragZo e pela sua variedade) uma industria que sai da categoria de artesanato e assume antes © caréter de fabrica descentralizada. De fato, 0 comerciante e industrial de teci- «dos de la faz trabalhar por contra prépria virios mestres-artesios ou trabalhadores a domictlio; ou entio exerce, diretamen- te, a fabricagio para a qual no seriam suficientes as forgas de um simples ‘mestre-artesio, E quando, escreve Luzzatto, o comerciante, a0 invés de ser ‘o modesto negociante de li, é um grande mercador, que maneja capitais seus, de amigos e de depositantes, encontramo- ‘nos diante de um homem de negécios de tipo moderno, diante do empresario ca- pitalista. Ena pessoa destes que Luzzatto reivindica a qualidade de. verdadeiros representantes da modemidade da vida italiana, nos séculos XIII e XIV, como autores da expansio da indtstria da la. Siio justamente os séculos XIII ¢ XIV ‘8 séculos de ouro da economia corporativa italiana ~ eriadora de pro- _gress0 ciosa de liberacdo ~ economia que, a partir do fim do. século XIV, comegard a dar sinais de decadéncia, a0 diminuir @ importéncia comparativa das ‘cidades italianas na vida econémica in- ‘emacional, embora persistindo e mesmo refulgindo o seu esplendor. A_organizagio corporativa dos co- merciantes correspondia a administragao da justiga por parte dos e6nsules da arte ou da magistratura estabelecida pelas varias artes mercantis (como a mercanzia flotentina, estabelecida pelas cinco artes maiores). Fundando-se na autonomia corporativa, a competéncia da respectiva ‘magistratura era limitada, antes de tudo, Or um eritenio subjetive, ou seja, pela pertinéncia das partes 2 corporagio, por intermédio da inscrigdo na matricula propria. Mas essa competéncia vai se estendendo, também, a0s litfgios entre todos 0s que exerciam atividades mer- cantis, ainda que no matriculados e, em seguida, as hipdteses em que 0 comerci- ante era réu, ou autor, muito embora, nesta Gltima hipstese, admitindo-se que © nfo-comerciante pudesse declinar do foro especial € recomrer aos tribunais ordindrios. Objetivamente, a competén- cia da magistratura comercial era limita- dda aos negécios mercantis € aos negé- ios conexos, isto é as compras para evender © as sucessivas revendas, aus negdcios de banco € cimbio, € aos que Ihe fossem conexos. 3. Amida disciplina interna das corporagées artesanais € orientada, fre- ‘qlentemente com intento monopolistico, rno sentido de evitar a concorréncia, pelos termos da superprodugzo (de onde a proibigo aos no matriculados de exer- cicio da atividade regulamentada), coor- denando-se com a diseiplina das relagbes entre mestres e aprendizes, das jornades de trabalho e, bem assim, para protegio a0 consumidor, de técnicas destinadas a garantir a qualidade do produto. Mas independentemente dlisco, desenvalve-se também uma ordenagdo normativa que tem por objeto a disciplina dos neg6cios ‘mercantis, isto é em substéncia, negs- cios de intermediagao nas trocas, ‘Tal disciplina tem origem essencial- ‘menie consuetudindria, em especial nos costumes dos negociantes, ©, portanto, somente a estes aplicdvel. Os costumes, desde logo Consuetudines de Genova, em 1056; Constitutum usus de Pisa, em 1161; Liber consuetudinum de Milao, em 1216, reduzidos a escrito, foram 20 depois retomados e desenvolvidos nos estatutos corporativos (como os da parte da la de Florenga, em 1301; 0 Breve Mercatorum de Pisa, em 1316; os es- tatutos dos mercadores de Parma, de 1215; de Piacenza, de 1263; de Bréscia, de 1313; de Roma, de 1318; de Verona, de Milio, de 1341'¢ assim por diante), 08 poucos integrados e reno- vados. ‘No campo maritimo, € de se ‘TEXTOS CLAssicos recordar, entre outros, 0 Capitulare nauticum de Veneza, de'1255; as Tavole Amailfitane, segundo muitos autores do século XI, para a parte latina, ¢ do século XIV para a parte redigida em lingua vulgar; as ordenagdes de Trani, do século XLV; 0 Breve curiae maris de Pisa, de 1305. Esssas normas so interpretadas e, por- tanto, desenvolvidas na jurisdi¢ao mercan Ail, ow seja, pelos proprivs comesciantes. ‘0 sistema normativo recebia impulso do direito maritimo, no qual se elabora- ‘yam institutos de valor universal, assim ‘como era nas cidades maritimas que se ‘afirmava por primeiro o renascimento ‘comunal O hoje olvidado contrato de dinheiro 2 isco, ou edmmbio maritimo,! pelo qual ‘© que emprestava dinheiro ao capitio do navio para emprego na expedig&o corria © isco desta, mas, em contrapartida, ppara 0 caso de éxito da viagem, estipu- lava juros altfssimos, constituia um ins- ‘trumento precioso, que se prestava ao desenvolvimento de uma civilizagio ca~ pitalista e livre. © mar tem sido sempre na Historia, como lembra Jacques Pirenne, um viveiro de liberdades e ini- ciativas individuais. E do cAmbio mariti- ‘mo, como demonstrou Enrico Bensa, que surgiu 0 contrato de seguro, cujo desenvolvimento tende talvez a ser, sem- pre mais, uma caracteristica da nossa estrutura econémica. A soma mutuada constituia a indenizagdo page antecipa- damente pelo segurador, soma essa que, deixando de se verificar o sinistro, era. restituida com altos juros, representati- vos do prémio, E da comenda ~ origina- riamente, como bem observa Ast contrato de miituo — desenvolvida pri- meiro no direito maritimo, que deriva a sociedade em conta de patticipagio ¢ também, segundo uma tese difundida, a sociedade em comandita, a qual, 20 in- © Ch. ants, 633 1 665 do Codigo Comercial brasileiro. oL vés, 6 reconduzida por outros a uma derivagio da sociedade em nome cole- tivo. direito comercial afirma-se, assim, como um direito auténomo de classe, profissional, fruto da pritica consuetudi ndria dos comerciantes, com uma juris- digo especial fundada na autonomia corporativa; direito, portanto, somente aplicdvel aos comerciantes. Suas regras sto, pols, aplicdveis segundo um eiténio subjetivo e seguem, em sua aplicabilida~ de, a competéncia da magistratura mer- cantil, Desde o infeio — dado que, até o fim do século XIfl, 0 comércio era predorni- nantemente ligado as caravanas — as feiras (dentre as quais, nos séculos XI ¢ XII, sobressaem as da Champagne), e a ulterior difusdio em todos os paises dos ‘agentes das companhias mercantis (so- bretado as italianas), pela formagio dos grandes centros urbanos, deram ao direi- {0 profissional dos comerciantes um carter internacionalmente uniforme, Jus gentium, escrevia na metade do séeulo XVI 0 mais antigo dos tratadistas italianos, Benvenuto Stracca, de Ancona, referindo-se a0 diteito comercial. E a0 caréter internacional do direito comercial refetia-se no século XVIII Lord Mans- field, 0 pai do direito comercial ingles. A claboragao doutrinal, se bem que ‘com inevitével atraso em relagao 2 for- ‘magio prética, j4 vinha sendo feita com 08 glosadores italianos (especialmente Bartolo ¢ Baldo), que também nesse ‘campo mostram a sua forga criadora. Ela serd depois sistematizada no Tractatus de mercatura de Stracea, de 1533, obra que permaneceré como a exposigao fundamental sobre a matéria. ‘Ao lado da elaboraciin doutrinal. de~ ‘vem set lembrados os manuais priticos gue recothiam as informagdes susceti- veis de servir aos comerciantes, como, por exemplo, no inicio do século XIV, a Pratica della mercatura de Francesco Balducci Pegoiott, 92, cariter internacional do direito co- mercial, assim formado, revela-se na sua expansfo, ainda mais acentuada que a do direito comum, Este, ndo obstante a in- fluéneia exercida, nio logra ser recebido na Inglaterra, A sua expansdo geral en- contra assim uma barreira nesse pais, em que, logo apés a conquista normanda, a unificagao juridica nacional, diante dos diversos costumes locais ¢ feudais, faz~ se antes que na Europa continental. Pela obra dos juizes dos reis, que vinham 20s poucos acentuando ¢ ‘estendendo sua Ccompeténcia, constitui-se um direito na- ional comum (common lav) de indole casuista, por meio da claboragio das formulas processuais. Esse direito nacional comum, jé na segunda metade de século XV, aparece ‘como sisiema completo, doravante con- traposto ao da Europa continental; € a primeira consciéncia dessa contraposictio surge, segundo a opinido mais dif entre os autores, no De laudibus legis Angliae dc Fortescol, de 1460. Mas essa contraposigo € superada no ‘campo do dirsito comercial e maritimo, cstatutéria © consuetudinariamente elabo- rado na Europa continental, gragas sobre- tudo a elaboragdo das comunas italianas, Ele constitui, em larga medida, o direito comercial e martimo acolhido na Ingla- terra e que somente no século XVIII acaba por fundir-se ¢ enquadrar-se na common lav, como uma de suas partes. ‘Como primeira sistematizagao do direito comercial inglés é de recordar-se a obra de Malynes, de 1622, que pode mesmo avizinhar-se, em sua elaboragdo juridica, de Stracca, embora desta se diferencie pelas simples consideragGes econdmicas, $4 estreitamente ligadas aos problemas do ‘comércio inglés do inicio do século XVIL. ‘O mesmo desenvolvimento consuetu- dindtio e casufsta do direito comercial estatutério no suscitava, internamente, a divergéncia que se nota, a0 contrario, no Ambito do direito comum, entre a orientagio sistemética dos direitos da REVISTA DB DIREITO MERCANTIL ~ 103 Europa continental, fundados no diteito romano, € a orientagao casufsta do dirci- to ingles, £, pois, justamente no direito comer- cial que enconiramos um sistema, funda- mentalmente romanistico, que, recebido nna Inglaterra, acaba conservando sua autonomia em conexio com a especiali- dade de sua jurisdigio e a especialidade do seu ordenamento processual. Direito esse que, sumente ei meados do século XVIII viré enquadrar-se no corpo da ‘common law, operando assim uma subs- tancial unificaggo do direito inglés. © primeiro perfodo da hist6ria do direito comercial inglés vai até 0 século XVIL Nesse periodo, a competéncia nas causas comerciais passa para o tribunal do Almirantado — que, na sa composi- co e no seu ordenamento processval, se harmoniza com a autonomia do direito comercial e a sua indole romanistica — para os tribunais de direito comum, 03 quais, ja no inicio do século XVII, pre~ valecem, por sua vez, sobre o tribunal do Almirantado. No entanto, as normas de ‘ireito comercial continnam a ser cons deradas, até a segunda metade do século XVIIL, '& Inz dos usos e costumes de ‘lasse, devendo portanto ser reconhecida sua vigencia caso por caso, como questio de fato submetida & competéncia dos jurados. Costuma-se indicar, como término do primeiro periodo do’ diteito comercial inglés, 0 ano de 1606, quando Edward Coke assumiu o cargo de Chief Justice. Durante esse primeiro periodo, 0 ireito comercial. inglés se apresenta, antes de mais nada — em contraste com ‘que ocorria no continente ~ como fruto de uma auténoma claboragao_ pelos mercadores. Eta aplicado pelos tribunais de feiras (pie powder courts), ou por trfbunais especias insituldos nos ohze centros (staple towns), a0s quais haviam sido conferidos os privilégios de_um “mercado” (sobretudo com o fito de tute- lar os mercadores estrangeiros, dentre os quais sobressaiam os italianos, entio TEXTOS CLAssicos 93 expoentes de uma economia mais rica e evoluida) e nos quais era larga a influén- cia do diteito estatutério italiano e de ‘tadigao romanista. O direito comercial inglés ostentava pois, nesse_primeiro Periodo, caracteristicas sensivelmente ‘comuns em relagio ao direito comercial continental, caractetisticas essas que ermaneceram em vigor ainda nos pe- rfodos subseqtientes. Pelo fato de ser v futo de um forma- $0 auténoma (no Ambito de uma clas. Se), 0 direito comercial podia, na verda- de, desenvolver-se_internacionalmente, em obediéncia as suas proprias exigén- ccias. Ele formava, destarte, um corpo de ormas de caréter intemacional, as quais, da sua origem nas cidades italianas — centro, na baixa Idade Média, da maior florescéncia econémica ~ trouxe uma marca romanistica cuja influéncia se estenden além do ambito daquela geral, do direito romano comum, A “italianidade” do direito comercial, nesse primeiro perfodo, era 0 reflexo da importincia prevalecente das cidades italianas na vida dos triftcos. Ao lado da Itdlia, ‘encontramos os outros. centros propulsores da mercancia da época, como 4s cidades flamengas (cuja historia é anéloga & das comunas italianas) e catalis, em uma atmosfera que, para parafrasear tum dito eélebre, no’ conhecia Alpes nem Pirineus. E a Catalunha que devemos, assim, a elaboragao do Consulado do Mar (séculos XIL-XV), consolidacao do direito mariti- mo mediterrineo com influéncia nos mares ‘nGrdicos, recolhido nos assim chamados rolos (sto 6, coletinea de sentengas) de Oléron (para o direito maritimo das costas alinticas) © nos usos de Wisby (para 0 ‘mar Biltico) — Oléron e Wisby sto nomes ‘e tocalidades ~ e mais ginda no Guidon de la Mer, fonte das ordenagSes da mati- nha de Lats XIV. 4, A regulacéo assim elaborada dizia respeito, antes de tudo, como notado, aos problemas que, num sentido amplo, po- dem ser qualificados como problemas do mercado, isto é, das trocas Podemos, assim, identificar um pri- ‘meiro periodo, na histéria do direito comercial, O sew termo inicial poderia ser colocado no inicio do século XII e 0 final na segunda metade do século XVI. Durante esse perfodo, desenvolveram-se 0s institutos que, ainda hoje, se conside- Fam como préprios do direito comercial € que dizem respeito ao mercado e 3s ttocas, ora ligados, ora contrapostos 20 desenvolvimento geral do direito roma- ‘no-canénico comum. A atividade mercantil requer um rede de auxiliares, especialmente (c lembre-se ue niio havia telecomunicagbes...) quan- do se desenvolve entre pragas distantes: caixeiros no estabelecimento principal (e eis a doutrina dos preponentes e repostos); auxiliares longinquos (e eis a Gouirina dos agentes e comisséiios). A sua organizacio exigia a idia de estabe- lecimento comercial, de fundo de comér- cio e, portanto, de sinais distintivos ~ 0 titulo do estabelecimentu e a insignia — 40 passo que a marca do produto se harmonizava com a preocupagio corpo- tativa, visando a garantir a conformidade do produto com os critérios fixados pela conporagao, O desenvolvimento mercantil refoge aos esquemas tradicionais, solenes e ti- 0s de elementos por assim dizer hidicos, que encontramos numa agricultura tradi- cional e patriarcal, Exige nao s6 liberda- de de escolha entre contratar ¢ niio con- (ratar, ou entre concluir um ou outeo contrato, como também liberdade de iniciativa para modelar 0 contrato, Sur- 8, assim, no préprio direito romano- ‘comunm (Pais as exigéneiar da nova vida Citadina se fazem sentir em todo o direi- to, ainda que com intensidade diversa) 0 desenvolvimento da doutrina dos contra- tos. Procurando-se atenuar os requisitos, formais, pée-se em relevo o requisito objetivo da causa para a validade do 94 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ~ 103, contrato (¢ 0s comentaristas falario da validade do pacto, nu sem diivida de forma, mas nfo de causa). O reexame da confessio ¢ da querela non numeratae pecuniae levava a uma claboragio que, {frequentemente, contrapunha, a0 direito ‘estatutério e ads costumes (nos quais, justamente, mais vivas se faziam sentit as exigéncias comerciais), 0 direito co- ‘mum. Desenvolvemse, de um lado, a teorla do documenty © da prova docu- mental, em confronto com 0s contratos: ditos doravante consensuais; de outro a teoria dos documentos apelidados “con- fessados” e “garantidos” ‘Ao desenvolvimento da vida mercan- til tora sempre mais freqtlentes os con- tratos obrigatérios sobre mercadorias & distineia, indicadas genericamente e no especificadas. So aquisicées destinadas a futuras revendas, com a natural forma- ‘glo de um mercado especulativo, susci {ando exigencias mais vivas de imediata protecio diante do inadimplemento. Do cimbio maritimo surge, como lembrado, 0 seguro (cujos primeiros documentos daram, na Ilia, co século XIV). Suas regras (obviamente no cam- po maritimo) comecaram a ser elabora- das, destacando-se do cambio marftimo, ‘onde 0 conceito de riseo se apresentou pela primeira vez, ‘Aos pagamentos entre pragas distan~ tes e, portanto, com cAmbio de moeda, conresponde um novo instituto, que de resto apresenta um esquema préximo daquele ainda hoje usado para essa fina lidade. ‘Os primeiros documentos remontam a0 século XII ¢ sua plena afirmagio se encontra no século XIII. TTicio, recebendo em determinado lu- gar © ex causa cambii uma soma de iheiro de Caio em determinada moeda, confessa-se perante um tabeligo (e assim podiam-se utilizar as regras da confessio), devedor de Caio, prometendo por isso pagar, diretamente ou por intermédio de um terveiro, em outro lugar determinado (@af por que Goldschmidt vislumbrava nesses documentos notas promissGrias domiciliadas) uma soma em mocda di- versa (equivalente 4 primeira soma se- ‘undo a taxa do fixado e que comporta~ va, a favor de uma ou outra parte, o 1uero da operagio) a Caio (que, por exemplo, previa deslocar-se pessoalmente), ou ento a Mévio, indicado por Caio ¢ seu ‘eorrespondente ou credor, ou ainda a Caio ou a alguém por ele. Assim, na arte notarial de Rolandino dei Passeggeri, pode-se ler como os estudantes proven ‘ais? que seguiam os célebres cursos académicos de Bolonha, provessem as préprias necessidades financeiras estipu- Tando Ihes fossem entzegues somas de dinheiro em Bolonha, ¢ obrigando-se a restituiro equivalente in mundinis Provini proximis. Simultaneamente, Ticio entre- gava a Caio uma carta, na qual dava 20 proprio correspondente, Semprinio, esi dente no local convencionado do paga- mento, as necessérias instrug6es para cfetuar af 0 pagamento. ‘A justificago da obrigactio de Ticio (sacador) perante Caio residia no dinhel- 10 recebido deste. Fala-se, a esse respei- to, de relagao de valor recebido, a0 passo que se denomina provisao a relagio entre ‘Ticio e Semprdnio (sacado), que por sua vez se obrigard pelo aceite da ordem recebida. ‘© documento do débito. cambisrio no se distinguia dos outros numerosos documentos confessados, seniio pelo fato de referir-se a um débito ex eausa cambii, assim como 08 outros se teferiam a débitos oriundos de mituo, ov de venda, e assim por diante, A causa cambii, porém, 6 expressa pelo segundo docu- mento, que serve ao credor para legitimar | Ascarelli confunde aqui, provavelmente, a Provensa, regito meridional da Franca, com ‘dade da Champagne, onde se ravalmente famosa feita, na Id de Métia, Com efeito, a expresso latina citada a seguir refere-s¢& fira de Provins, TEXTS CLASSICOs 95 se a cobrar, ou a fazer cobrar, o pagamen- to do correspondente do devedor. Da fusio, no séeulo XIV, dos dois documentos ‘ora_mencionados, abando- rnando-se a redacdo notarial do primeiro, ‘ou, segundo outros, suprimindo-se 0 se- gundo documento, que é a carta de assinacao e caindo 0 primeiro em desuso, nasce letra de cdmbio como instrumento dde pagamento intemacional. Ela passou a ser redigida doravantc em lingua vulgar, ‘apresentando quatro figurantes: o que dava 4 quantia inicial, 0 que a recebia e ende- regava a ordem de pagamento em outra localidade e em moeds diversa, 0 corres- pondente deste Gitimo a quem’se dava o encargo de pagar, o credor corresponden- te daquele que havia dado a soma inicial € 20 qual devia efetuar-se o pagamento. Tratava-se, pois, primeiramente, de tum instrument de pagamentos intema- cionais (€ nao se pode esquecer a pluralidade de soberanos ¢ de moedas, antes da formagio dos atuais Estados nacionais), pagamentos esses que, em. Spoca mais prdxima da nossa, ou seja, no século XTX, se realizavam ainda mediante a aquisi¢ao ou venda de cam- biais oriundas do movimento de expor- tacdo ¢ adquiridas para pagar as impor- tagbes ou remessas, Hoje, tais pagamen- 10s se fazem por meio de um mecanismo andlogo ao da cambial origindria (@ as vvezes com a redagio de dois documentos destinados, respectivamente, a quem dé ‘a soma jnicial © a0 sacado): vale dizer, por meio da dagio de uma soma de inheiro contra a promessa, por parte do bbangueiro que recebe 0 dinheiro, de fazer pagar, por intermédio de um seu correspondente em outro lugar e em moeda diverse, uma soma de moeda equivalente & primeira, segundo uma taxa de cdmbio convencionada, 20 cor- respondente de quem entregou a soma inicial, Essa cambial, instrument de paga- _mentos internacionais (¢ 0 nome cambial se refere justamente ao cAmbio de moe- das) é matriz da cambial hodiemna, na qual as quatro pessoas origindrias se reduzem a trés (porque o endosso torna inttil uma delas) ¢ que, de instramento de pagamen- tos internacionais, passa a ser instrumento de mobilizagao do crédito. Desde a origem, o credor procura forrar-se, mediante cléusules de rendin- cia pelo devedor, & prova da efetiva entrega da pecwnia, pois a doutrina intermedia considerava. subordinado 0 direito do credor a essa entrega, no mituo € no dote, duvidando das decla- ragoes dos devedores de haverem rece- bido as somas de dinheiro. De fato, tais declaragdes podiam ser feitas leviana- mente propter affectionem quam habent ad pecuniam et wxores. Alids, 6 freqilen- te hoje verem-se mutuérios firmar cam- biais que incluem, na soma sacada, juros nem sempre médicos. A proibicéo da usura, fruto de uma oriemtagio geral voltada A disciplina da atividade econémica segundo pressupos- {os moralistas, exclufa a possibilidade de se estiputarem juros (..) oficialmente, nas operagdes financeiras, Daf por que a ‘cambial deveria yincular-se ao cimbie de moedas (pois o Iucro no cdimbi distinguia-se do juro), devendo portanto cearacterizar-se pela existéncia do requi- sito da permutatio pecuniae (isto é, di- versidade de moedas) e da distantia loci, sem a qual estarse-ia diante de um ‘cambium siccum, que ainda no tempo de Pio Vera severamente punido. © Papa de 1566 2 1572. Numa lei de D. Afonso 1V, que’ reinoa em Portugal de 1325 a 1357, lei essa depois inclufda nas Ordenagies Afonsinas (Livro 4. tit. 15), de 1448, declarou-se: "E achamos que lici- ‘a gaanga de dinheiro, ou quantidade he em todo caso de camo (ste) d'num Regn, ct Lugar pera outro; e declaramos seer cit, € verdadeiro 0 caimbo (sic), quando se logo ‘64 maior quantidade em hum Lugar, por lhe darem em outro Lugar, e pagarem mais Pequena: ¢ esto he assy promisso,¢ outor ‘ado per Direito pelas grandes despesas, 96 Do mutuum date nihil inde speran- ese da observagao dbvia de que o dinheiro de per indo frutifica, a doutrina candnica havia extraido a proibigio da uusura, Tal proibigio pode justificar-se nos empréstimos ‘destinados a superar transit6rias necessidades do devedor para seu consumo, se bem que, mesmo entio, era freqientemente violada na prética.’ Seja como for, quanto menos desenvol- vida uma economia, tanto mais elevados io, em geral, 0s juros efetivamente co- los. Esse quadro toma-se, porém, diverso ‘numa economia fundada no crédito, em ue 0 dinheito é mutuado sobretudo com escopo prodative, de sorte que 05 juros pagos pelo devedor encontram sua’ con- trapartida nos fratos que este retira dos bens adquiridos com o dinheiro mutuado; ‘ou nos lucros cessantés do credor, pela falta de emprego direto do seu dinheiro. A pritica, na verdade, se bem que ccontrariando 4 proibigio candnica, admi- te 0s juros, chamando-os pudicamente, or vezes, gratificagées espontineas ou dons; ou ainda aumenta a sua taxa (como Jembra Matteo Villani para 0 debito paiblico de Florenga), gragas ao reconhe- Cimento, pelo devedor, de haver recebiido que 08 mercadores estantes (isto é, domiciliados no local), que 0 maior preco recebem, fez em manterem sous caimos tas Cidade, ¢ Vilas, onde continua. tmente eso, ¢ polo trabalho, de que som televacos os que do seus dino er hua parte, pelos receberem em outa (© Bacexpresso da Vulgots, tadugio tina da Biblia, de autoria dS. Jeronimo, para om ‘ersiilo do Bvangetho de 8. Lact, 6-35. © ssa infevidade da probigio cada da vir, promalgaa pelos soberans xs- tos da dade Mei, parece ter ke verca- continu relteragso co. mesmo, mand ment, nas ordene regia. No “Livro das Leis e Posturs compllgioelaborada no reinado de D. Duane (1433-1438), conse tame ota les conta a sur, ediadas panic de 1211. REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ~ 103 soma superior (sobre a qual eram calcu- Tados os juros) & real; ou recorrendo a outros arificios, como o da pluralidade de atos que, redigidos por tabelies vversos, realizavam, em sua combinacao, um mituo garantide, vencendo juros, com pacto comissério, Eta 0 chamado contrato “trino”. Em primeiro instrumen- {o, 0 mutuétio se confessava devedor de ‘uma soma que inclufa 0s juros. Por mei de um segundo instrumento, o mutusrio ‘vendia um bem a vista 2o mutuante, pela soma do mituo que entao figurava como prego. Com um terceiro instrumento, Tecomprava 0 prazo e por igual quantia ‘0 mesmo bem. De modo andlogo pro dlia-se com a assim chamada “mohatra”, isto & uma venda a prazo seguida de imediata revenda & vista e por prego ‘menor, por parte do primeiro adquirente ‘ap primeiro vendedor. Este acabava se tormando, pois, credor a prazo de uma soma superior 2 que fora dada; vale dizer, a soma mutuada mais os juros.® A admissibilidade desse contrato, na casuistica dos jesuitas, provocaré, no século XVI, o8 atagues de Pascal na oitava de suas lettres provinciales. ‘A doutrina, por sua vez, procura ela- borar a interdigo canbnica, aceita pelos civilistas, estabelecendo distingdes a par- tir da consideragao do dano sofrido pelo credor. Santo Tomds jé admite, como ressarcimento do dano ‘da mora, os juros moratérios, dos quais se vao elaborando ‘8 requisitos (depois sistematizados por Paulo de Castro). Eles serio admitidos quando 0 credor é comereiante, indepen- dentemente da prova do dano softido © © contrato de retiovenda serviu, desde sempre, para mascarar a empréstimo usu to. Na'mesma lei de D, Afonso IV, citada ‘om nota anterior, adeniia eu a retrovenda de bens de raiz “quando a dita raiz fosse ‘Yendida por prego razoado, a saber, que {fosse pouco mais, ow menos do justo prego; ca se 0 prego fosse muito pequeno, a ‘pouguidade do dito pregocom a dita avenca fara 0 dito contrauto Seer usureiro”, ‘TEXTOS CLASsiCos 97 pelo credor no caso conereto, e absque ulla interpellatione,? tornando-se, pois, devidos 0s juros do perfodo de mora que sucede 0 vencimento de uum miituo, Com isto, os mituos passaram a ser contrata- dos por prazo brevissimo e a mora nao era entio, sem davida, mal vista pelo ceredor (..). Com Santo ‘Antonio,* a dou- trina candnica dé um passo adiante, con- siderando, para a licitude dos juros, néo 26 a posiglo do credor mas tamnbéiu @ do devedor. Julgava-se que, quando 0 con- rato tivesse por objetivo ensejar um Tuero ao devedor, com a utilizago do inheito, jé ndo se estaria diante de um mituo, puro © simples, € portanto os juros seriam justiticados; 0 que abriu caminho, mais tarde, & admissio da pos- sibilidade de juros no mituo, desde que Justificados por uma causa auténoma, Em fins do perfodo que estamos con- siderando, os juros, cuja licitude de prin- cefpio seria sustentada por Calvino,’ pas- sariio a ser reconhecidos pela legislagio civil em casos numerosos. Uma ordena- gio de Carlos V," de 1540, admite-os, ‘em geral, em favor dos camerciantes © *Até que (haja) uma interpelagéo”, pelo credor, evidentemente, A exigéncia geral ‘de interpelagdo do devedor, para consti ‘gio em mora, subsiste em nosso Cédigo Comercial (arts. 138 e205); nfo no Cédigo Civil, para as obrigagoes com prazo certo de vencimento (art, 960), 1389-1459, Arcebispo de Florenga. Consi- derado um dos fundadores da" moderna teologia moral e éica social erist. Autor de Summa morals, editada em 1477, e de ‘Summa confessionnem, em 1472. ® Foto Calvino, nascido em Noyon, na Picardia (Franga), em 1508, e falecido em Genebra, em 1564, foi um dos mais impor tantes reformadores do crstianismo, Sua ‘obra principal a frottaa de ba Region Chrétienne, de 1536. (0 imperador Carlos V (1500-1558), Carlos Ida Espanha, foi o timo grande soberano 4 reinar sobre a cxistandade unificada, Di- ia-te que sobre os seus dominios © sol ‘nunea se puna. Uma atividade mereantil requer o ‘concurso da atividade e dos meios finan- ceiros de varias pessoas, e eis que nesse periodo se nos apresenta, desenvolven- do-se a partir do cons6reio familiar, a sociedade em nome coletive (“compa- nia", como se dizia ¢ se continua, de certa forma, a dizer com o aditivo “e ‘companhia”), Ela reforga sua estrutura financeira, primeiro com a paticipagio Ue terceirus (estranhios ao micleo fami- liar), © depois, no século XIV, sempre ‘mais com depésitos, 0 instrumento tipico para a organizagao do comércio terrestre e da atividade’ baneétia, De ‘ini sociedade aprescntava uma estrutura Uunitéria tendo a grande “companhia” uma ‘multiplicagao de filiais em toda a Euro- pa; em seguida, na segunda metade do século XIV, com uma autonomia dos estabelecimentos Iocais que faziam da casa matriz uma espécie de holding des- ses.!! No comércio maritimo, dominava ao invés a comenda ¢, ligada a esta e a sua difusdo mesmo fora do comércio mari- timo, passou a ser disciplinada (primei ramente na lei florentina de 1408) a ‘comandita, ‘Uma atividade mercantil requer regis- ‘ros, contas e sistemas de contabilidade. As partidas dobradas, ainda hoje em uso, surgem j4 no século XIV, encontrando ‘um expositor em Luca Pacioli, insigne na hist6ria das matemiticas. Desenvolve-se © sistema dos livros de comércio e de registros contabeis ordenados, 5. B assim que se vai formando um primeiro nticleo, um primeiro sistema de direito comercial, essencialmente em fungtio do coméreio, dos transportes (s0- bretudo maritimos. pois due. j4 reearda- ‘mos, sao amitide Os institutos maritimos 0 Na verdade, essa primeira experiéneia his- térica de grupo societicio somente surgi com 0 Banco Medici, de Plorenga, aa Primeira metade do século XV, 98 REVISTA DE DIREITO. MERCANTIL ~ 103, —acomegar pelo cémbio maritimo~que, fem sua evolugdo, dio lugar a institutos gerais do direito comercial), dos neg6- ios bancdtios © cambiais. Um direito fruto dos castumes dos mercadores, que disciplina os negécios, ligado a um pro- cess0 judicial que assume formas sim- ples © expeditas (proceso sumérios ¢ sumarfssimos, como se diz) em jurisdi- ‘360s especiais, O fendmeno da jurisdigio especial liga-se, na verdade, estreitamente a0 do direito especial. E a jurisdigio especial, com 0 scu processo priprio, que permite © desenvolvimento do direito comercial e Ihe reforca a autonomia em confronto com o diteito comum. ‘Trata-se de um direito que podemos dizer de classe, tendo em vista quer a sta fonte, quer a sua aplicagdo, quer a sua jurisdigao; ¢ que encontra, alias, paralelismo na freqiléncia dos direitos de classe © jurisdigées especiais na Idade Média, ‘No entanto, a sabedoria da elaboragao do direito comercial © da obra de seus aplicadores no plano judieisrio foi a de haverem superado 0 interesse de classe. As regras elaboradas para os negécios ‘mercantis dos comerciantes se apresen- tam, em seu alcance abstrato, como de- monstraré a evolucio posterior, de aplicabilidade geral e ndo inspiradas por um interesse de classe que, como tal, exclui obviamente uma aplicagao geal ‘Sto regras independentes do involucro corporativo com 0 qual se originaram, e fendentes a favorecer um desenvol mento geral da riqueza e no grupos restritos, ‘Sob esse aspecto, o direito comercial, distinguindo-se dos varios diceitos part calares de classes ¢ territérios, aficma-se ‘cuiny especial nu sentido que lemibramos hd pouco, ou seja, como elaborador de Principios e institutos, suscetiveis de aplicagio geral. Oriundo do comporativis- ‘mo mercantil e fruto de uma elaboragao particularista no ambito de uma categoria profissional, ele encontra sua justificago no fato de se constituir em instrumento juridico para a efetiva melhoria do or- denamento das trocas, vale dizer, para 0 aumento da utilidade dos vérios bens econdmicos. 6.0 fruto da elaboragio comercialista desse perfodo que, como notado, abrin- ddo-se com o infeio do século XI, chega até a segunda metaée do séoulo XVI, encontra-se, jd se disse, na primeira sis- tematizagao te6rica do direito comercial, que foi De mercatura de Benvenuto Stracca, cidadio de Ancona, cuja primei- ra edigio é de 1553. Af encontramos a primeira e ainda fresea sistematizago do direito comercial, naqueles insttutos aos quais venho rapidamente aludindo, centrados em torno da idéia de mercado, A sistematizagéo de Stracca, como ob- setva A. Rocco, apresenta-se, de um Jado, como aderente & realidade ¢ alhei 4s consideragdes meramente te6ricas ou morais, presentes, naturalmente, nas re feréncias 2 atividade econdmica das obras teolégicas; das quais, portm, ndo se deve desprezar a importéncia para o desenvol- vimento do direito comercial, tanto nesse periodo, quanto sobretudo’ no século XVIL Com efeito, distingdes e elabora- ‘goes. dos tipos de contratos ligam-se, Treqilentemente, 20s. problemas postos pelas normas © proibigdes candnicas, sobretudo a proibigto da usura, Sob esse aspecto, 0 probabilismo jesuitico do sé- culo XVI, com suas distingdes sutis, presenta, em substincia, uma elabora- $20 jurfdica, sobretudo em relagio aos contratos de miituo, sociedade, venda € negécios de garantia. Por outro lado, 0 tratado de Stracca revela a preoeupagio de dar uma solide construgio juridica e nao simplesmente apresentar ui noticia- rio, como os manuais priticos. Ele se vineula & obra dos grandes comentaristas, nna elaboragao dos institutos mercantis, além do desenvolvimento consuetuding- rio e da prética, O seu frescor © a sua TEXTOS CLASsicos 99 aderéncia imediata a um desenvolvimento consuetudinério ¢ da prética distinguem- ‘Ap, em minha opinido (mais do que suce- deu com os comercialistas do século se- Buinte), do mos italicus jura docendi,”® entdo dominante, confirmando com isto a especialidade do direito comercial em relagdo ao direito privado comum, mesmo no focante & orientacdo doutrinal. panorama que vimos debuxando muda com a segunda metade do século XVI. Com a descoberta da Via do Cabo abriu-se 0 caminho maritimo para o Or ente ¢ a descoberta da. América deu infcio ‘8 uma nova expansio, que importava na Gestocactio dos centros comer A florescéncia econdmica do comego dos anos 500, que segundo Luzzatto parece preludiar 0s desenvolvimentos da idade contemporainea (¢ encontramos de fato, jd nos séculos XVI e XVII, estru- turas econdmicas associativas comple- xas; 08 primeiros cartéis, segundo a ter- minologia hodierna e — como naquela que poder-se-ia dizer a holding dos Medici ~ formagdes estruturais comple~ xas no campo das sociedades), suwcede tum perfodo de crise, devido a causas politicas ¢ econdmicas. Dessa crise sai- riam enfraquecidos os velhos centros da vida econémica européia, cuja importin- cia comparativa, ali, j4 diminuira ante- riormente, no obstante a persisténcia de seu espitito criativo. A Itéliacaird, em grande parte, sob a dominagio estrangeira, enquanto alhu- res se afirmam, triunfantes, os Estados Unitérios: a vida econémica se desloca para o Ocidente, para a Repiiblica Ho- landesa e os Estados unitérios da Franga € da Inglaterra, Decal economia da Aleman, que sera depois devastada pela guerra’ dos trinta anos. Na Europa oriental e em parte na Alemanha, reforca-se a servi- (© Método puramente conceiumale abstrato de explicagio do Direito, ‘ko da gleba, desaparecida ou em vias de desaparecimento no Ocidente. ‘Uma profunda divisio de crengas e concepgdes gerais se afirma na Cristan- dade, mas das guerras de religido nasce © Estado modemo. encontraré depois sua expresso de- senvolvimento no mercantilismo do sé= culo XVII. Como observa Luzzatto, assim as unidades locais, como as’ formacées corporativas, passam a subordinar-se ao Estado que, pelas necessidades. total- mente novas de suas finangas, é levado a interessar-se pelos problemas econd- ‘micos, a intervir como regulador da vida econémica da nacao, aplicando a politica que se diré mercantilista, ‘No meado do século, 0 forte aumento da importagdo de metais, em decorréncia da exploragao mineira’ do Peru e no ‘México, prova uma revolugio de pregos nna Espanha ¢ na Europa em geral, ¢ 0s problemas monetérins eomecam a pren- Cupar os primeitos economistas ‘A técnica ¢ a ciéncia so renovada: acentua-se 0 desenvolvimento de méqi fas, nao mais fundadas no aproveita- mento da energia muscular do homem ou de animais, e um movimento profun- do de pensamento comega a transformar € enriquecer as concepeoes fisicas ¢ a elaborar perfeitos instrumentos matema- ticos. No Ambito das doutrinas juridicas, ‘entra em crise 0 mas italicus jura docendi, ‘que havia sido desenvolvido pelos co- mentaristas. Uma nova concepeao, afi mada na Itélia com o humanismo de um Valla eum Poliziano, amadurecida na obra de Alciato (1492-1550), triumfa na Franga (enquanto na Iélia persiste 0 yelho método), ligada 2 afirmagio da soberania estatal. ‘O método historicista leva a conside- rar historicamente o direito romano e, a0 100 ‘mesmo tempo, a reafirmar a nacionalida~ de do direito. De elaboragdo jusnaturalista, voltada a pesquisa de um fundamento do direito, surgiriam, de outro lado, grande parte das categoria’ juridicas dos direitos romanisticos. ‘A ji agora concluida formagao de um direito nacional comum na Inglaterra ‘encerrou, para esta, a recepgio do direito REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ~ 103 romano. O direito tradicional, elaborado pelos juizes dos reis normandos poe-se, doravante, como limite ao poder do so- berano. Parece-me, destarte, que se pode datar da segunda metade do século XVI, ob- viamente com a relatividade propria de toda periodizagio, o inicio de um segundo periodo na hist6ria do direito ‘comercial.

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