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LUCIA SANTAELLA Pds-humano — por qué? cesde meados do séeulo XX. com ‘desenvolvimento acelerado das tecnologias digitais, especial e a partir da convergéncia cexplosiva do computador ¢ das sociedades ‘complexas foram crescentemen- tedesenvolvendoumahabilidade surpreendente p telecomunicagées, recuperar informagaes, torman- _— do-as instantaneamente dispo- niveis emdiferentes formas para quaisquer lugares. Pela mediagio de interfaces do ser humano com as miquinas, © mundo esti se tornando uma gigantesca rede de toca de informagdes. Se podemos estar certos de algu na coisa a respeito do futuro é que ainfluénciadateenologiadigital continua ri a crescer ¢ a modificar grandemente ‘08 modes como nos expressamos. nos comunicamos, ensinamos e aprendemos, (0 modos como percebemos, pensamos € interagimos no mundo, (© quadro que se apresenta é impressio nante. Kaku (2001, p. 18) sublinha que o conhecimento humano duplica a cada dez anos, Nas wltimas décadas, fot gerado mais conhecimento cientifico do que em toda a histéria humana. O numero de seqiténcias de DNA que podemos analisar duplica a cada dois anos. Quase diariamente, as manchetes proclamam noves avangos em computagi, telecomunicagies, bioteeno- logia € exploragio do espago. Mas esas mudangas répidas, atardoantes, ado $30 apenas quantitativas, “Blas assinalam as dores do parto d= uma nova era.” De fato, hoje so poucos aqueles que ‘ainda duvidam disso, nto. é que jé parece umeertoconsensodeque arevolugio tecnol6; ica que estamos atravessando 6 psiquies, cultural esocialmente muito mais profunda do que foi a invengiio do alfabero, do que foi também « revolucdo provocada, pela invencao de Gutenberg. Para muitos analistas do social as mutages so vastas profundas, atingindo proporgdes antro olds sas to ou mais impactantes do que foram as da revolucio neolitica. Os prognésticos atuais. ne campo emergente da computagio “pervasiva” ‘oniprosente, indicamcomalguma seguranga que nossos estilos de Vida serio Fatalmente alterados quandoos mierochipsse tornarem. Wo abundantes que stemas inteligentes serivespalhados aos milhesem todocanto de noxsoambiente, incorporados is paredes, ‘208 méveis, aos nossos aparelhos casa, nosso carro, penetrando nat strutura de nossas vidas, Osambientes iro se tornar inteligentes, transformando tudo & nossa volta, inclusive a natureza do comércio, ‘ riqueza das nagdes e © modo como nos comunicamos, trabalhamos, nos diverti- mos ¢ vivemas. Em vez de se tornarem os monstros voraizes retratados nos mes de ficgio cienttica, os computadores ficardo to pequenosconipresentes que se tornaro invisiveis,estandoem todapartecem lugar nenhum, t40 poderasos que desaparecerio dc nossas vista. Essesdispositivos invisiveis ‘vio se comunicar uns com os outros € se conectar automaticamente & Internet, que se desenvolvers até transformar-se em uma membrana composta por milhdes de redes computacionais de um planeta inteligente (Kaku, 2001, p. 29). PRESSENTIMENTOS CONSUMADOS E.curiose abservar que, em meados dos anos 1980, quando a Internet estava emer- gindo ¢ a simbiose entre os seres humanos fe as miquinas apenas se insinuava, em um tipo de fiegao que passoua ser conhecidasob rubric de ciberpunk, jovens eseritores jé pressentiam osdesenvolvimentoscomple- xidades do estado arual e futuramente pro- metido das tecnologias. Em 1986, Sterling (apud Dyens, 2001, p. 73) dizia: “Atecnologia des anos 1980 cola-se Apele, responde ao toque: 0 computador pessoal, 9 walkman. o telefone portitil, as lentes de contato, Alguns temas centrais emergem repetidamente no ciberpunk. O tema da invasio dos corpos: membros prostéticos, circuito implantado, cirurgia plastica, alteragio genética, O tema ainda mais poderoso da invasio da mente: interfaces whe /agev0 2007 eérebro-computador, inteligéncia artificial neuroquimica téenicas que radicalmente edefinem a natureza da humanidade, a natureza do eu... Sendo hibridos eles mes- ‘mos, 0s ciberpunks so fascinados pelas terzonas”. Apalavraciberpunk comegoua ser usa da,em 1983, por Gardner Dozols, editor da Isaac Asimov's S sience Fiction Magazine, partir de uma hist6ria homdnima eserita por Bruce Bethke (ver Lemos, 2004), Desde ‘endo, o termo passou adesignar um tipo de fiegio cientifica com caract que encontram sua exemplaridade na obra ‘Neuromancer (1984), de William Gibson. Nessa historia, a personagem, comosangiio Porum dano cometido,é banidada imersiio ‘em ambientes viruais © condenada a viver aprisionada nos limites de seu préprio cor po. A construgo de seres etéreos, de puro software por meio da inteligéncia artificial, sugerida ness novela. atingiu um climax de popularidade depois do sucesso recente alcangado pela série de filmes Matrix seus games correspondentes, Nesse:génern cle: literatura que une-a ficgio cientifica com outros cédigos ge- néricos populares, 0 estilo ¢ us figuras do ‘movimento punkse amalgamam comoutras subculturas urbanas contestadtoras. Segundo Keliner (2001, p. 383), 6 punk denota “a rispidez c a atitude dura da vida urbana em aspectos comoo sexo.asdrogas,a violencia earebeldia contrao autoritarismono modo de viver, nacultura pope na moda”. Os dois termos juntos, ciber e punk, “referem- ‘40 casamento da subcultura high-tech com as culturas marginalizadas das ruas, ou & tecnoconscigneia ¢ A cultura que fundem tecnologia de ponta com a alteragio dos sentidos, da mente e da vic subeulturas boémias” Omovimentociberpunkabragaiastecno- presente nas logias, mas de maneira rebelde, & margem da lei, contra 0 Estado centralizador © us grandesestruturas econdmico-financeiras sendo favordivel, portanto, "a ulm uso sub- ‘cultural mais descentralizado da cigncia © da tecnologia a servigo dos individuos”. Desse modo, enxerga “a tecnologia como ‘algo onipresente, mas que apresenta novas possibilidades para o prazere a liberdade do individuo, bem come para sua destrui- so © escravizagao” (Kellner, 2001, pp. 383, 402). Ao fime a0 cabo, para Kellner (2001, p. 402), a ficgio ciberpunk seaba propondo “L..:] profundas questées filoséticas sobre 4 natureza da realidade, da subjetividade do ser humano no mundo da tecnologia: © que € autenticamente humano quando se tornam indefinidas as fronteiras entre humanidade ¢ tecnologia? © que é iden- tidade humana, se ela for programdvel? (© que sobra das nogdes de autenticidade © identidade numa implosio programada entre tecnologiae serhumane?O que é ‘rea- lidade*, se ela é eapaz de tanta simulagio? De que modo a realidad esta hoje sendo corroida, e quais sdo as conseqiéncias disso? Certamente, Gibson nso responde 4 essus pergumtas, mas pelo menos suas ‘obras #5 formulam e nos obrigam a pensar sobre elas” Poi justamente no terreno sedimentado por esse tipo de ficgdo e pelas inquietagdes cindagagdes nelapresentesqueaexpressio ‘pcis-humano” gradativamente tomou cor- po. Conforme ja indiquei em outra ocasido (Santaella, 2003, p. 191), expressdes simi- lores. taiscomoautmata bioinformatica” “biomaquinal”, “pés-biolégico”, foram aparecendo cada ver maisassiduamenteem Publicagdes de arte ¢ cultura cibeméticas aé que, em meados dos anos 1990, todas elas consolidaram-se no ealdo da cibercul- tra emergente. O sema comum que as une cencontra-se no hibridismo do humane com ‘algo maquinico-informatico, que estende ‘© humano para além de si. Assim, a con digo p5s-humana diz respeito A natureza lade, genética, vida inorganica, ciborgues, inteligéncia distribute porando biologia, engenhariae sistemas de informagao, Porisso mesmo, ossignificados da virtual ‘mais evidentes, que so costumeiramente associados & expresso “pés-humano”, lunem-se &s inquietagdes acerca do destino bidnico do corpo humane 197, p 126137. nho/aqete 2007 129 130 CORPOS POS-HUMANOS ‘Segundo Dyens (2001, pp. 2-3), nos- 808 corpos so agora feitos de maquina imagens ¢ informagées. Os corpos vives estilo borrados, moldados e transformados Pela teenologia e a cultura esté tomando contadabiosfera. Do mesmo mode, Hayles (1996, p. 12) considera que 0 pés-humano representita construgdodo corpo como parte de um circuito integrado de informagio e ‘matéria que inclui componentes humanose niio-humanos, tanto chips de silic -cidos organicos, hits de informagaio e bits quanto de carne € osso. ‘Um tl recorte semantica, pressagiando © futuro de uma outra espécie de corpo, nas interfaces do humano ¢ do maquinico, € aquele que, sem diivida, tem dominado no entendimento do pés-humand. Esse predominio tem sido grandemente devido & apropriagaio politica que as feministas fize= ram daexpresso.O interesse das feminists nas tecnologias politicas do corpo resulta do Papel que o corpo, como figura socialmente cconstruida, desemperiha nos modas pelos rientada (Hal- berstam & Livingston, 1995), Reivindicara quaisaculturaé provessad: existéncia de eorpos ps-humanos significa deslocar. tirar do Tuga, us velhas identida- des e orientagbes hierirquicas, patriarcais, centradas em valores masculinos, Nesse comtexto ficou mundialmente famose © “Manifesto Ciborgue: Ciéncia, Tecnologine F doSéeuloX. inismo-socialistaao Final “de Donna Haraway (1985), ‘no qual é proposta uma leitura progressiste ¢ feminists do mito do eiborgue. Com seu ‘questionamento das dicowomias ocidemais entre mente/corpo, organismo/méquina, natureza/cultura, antinomias estas que também davam suporte ao patriarcada, a idéia do ciborgue penetrou intensamente na ‘cultura, colocandoem questo ndo apenas a relagao do humano com a tecnologia, mas 4 propria ontologia do sujeito humano (ver Wirtel & Schade, 2000) Emboratenhanotabilizadootermocibor- _2uc”,nllo foi Haraway quemoinventou. Nas- ido da juneao de eyb(erneric+org(anism), eib(emético)+org(anismo), foram Clynes e Nathan Kline, em 1960, que eriaram a pala- vra, inspiradosnoexperimentocom orstode Rockland, cujabombainjetavacmseucorpo doses controladas de substandias quimicas. Como conceito de ciborgue, essa dupla bus- cavadescreverohomemampliacs”, melhor adaptado paraas viagens espaciais por meio de um coragio controlado por injegdes de _anfetamina c pulmées substituldos por uma ~“célula energética inversa’,alimentada por cenergia nuclear, Desde entio, a idia de um ser humano ampliado pelas tecnologis co- -megou 2 se generalizar e, quando Haraway fez uso do termo, 0 imagingrio cultural acerca desse ser hibride jé estava suficien- temente fertilizado pelo cinema e pela TV (ver Santaella, 2003, pp. 187-9). Sao varios os termos aparentados a “ciborgue” e nas vizinhangas da idéia do pés-humano que foram sendo introduzidos com a finalidade de caraeterizar a mutagio dos corpos come frute das simbioses do ser humano com as préteses tecnolégicas. Para cessu caracterizacdo, desde 1998, nos meus ‘rabalhos,econforme expliciteiem "Cor po Biocibernético Revisitado” (Santaella, 2004, pp. 53-64), tenho utilizado preferen- cialmente oadjetivo“biocibemético” pelas razBes que volto a enunciar abaixo, ‘© sentido que dou a essa palayra “bio- cibemnético” € similar ao de “ciborgue” Entretanto, prefiroo termw“biocibernético”, de um lado, porque “bio” apresenta signifi- cados mais abrangentes do que “org”. e,de outro lado, porque “biocibernética” expoe a hibridizagio do biolégico do cibemét 0 de maneira mais explicita, além de que ilo esté culturalmente tio sobrecarregado quanto “ciborgue” comasconotagéestriun- falistas ou sombrias do imagindio filmic etelevisivo. ‘Vem sendo utilizados alguns outros adjetivos para © corpo tecnologivade que ‘ocupam regides seménticas priximas as de biocibernstico ¢ de ciborgue, tais como “corpo protético”. “pd c biolégi no”. Embora a palavra “prétese” seja bem funcional para caracterizar as extensies tecnolégicas do corpo, a meu ver o signi- jhe ago 2007 ficado dessa palavra ficon muito colado aspecto visivel das extensies, idéia que busco evitar, visto que, cada vez mais, as extensdes estdo aderindo a fisicalidade de nossos corpos € habitando seus interiores, cando uma tendéneia para se tornarem invisiveis e mesmo imperceptiveis. _Asexpressdes“pés-ongfinico"e“pés-bio- gico” também so repetidas com frequén- cla, Sob otitulode O Homem Pos-orgdnico. Corpo, Subjetividadee Teenologias Digitais, Paula Sibilia (2002) consideraque,emboraa jjunedo entre ser humano e tecnologia tenha sempre existido, ela est se aprofundando © se tornando mais crucial problemstica. Pecas-chave natecnociénciacontempordnea ‘slo a teleinforméticae abiologia molecular. Nessecontexto, segundo aautora,surgeuma possibilidade inusitada: “Ocorpolhumano,emsuaantigaconfigura- lo biol6gica, estaria se tomando obsolete, Intimidados pelas presséesdeum meioam- biente amalgamado com o attificio, os eor- pos contemporaneos no conseguem fugit das tiranias (e das delicias) do upgrade. Ui novo imperative € internalizado, num jogo espiralado que mistura prazeres, saberes e poderes: 0 desejo de atingir a compatibi dade total como tecnocosmos digitalizado. Para fetivartal sonhoénecessirio recorrer salizagao tecnolégica permanente: im= pOem-se, assim, os rituais de auto-upgrade cotidiano (Sibilia, 2002, p. 13). Para Sibilia, esses fendmenos enqua- Gram-se na tradieao Fiusticado pensamento cocidental sobre a tecnociéncia, o qual en- erga nesta a possibilidade de transcender ss condigo humana. “Assim, valendo-se da nnova alquimia tecnocientifica, 6 ‘homem 1p6s-biolégico" teria condigdesde superaras Jimitagdes impostas pela sua organicidade, unto em nivel espacial quanto temporal” (Sibilia, 2002, p. 14) Dando a “p6s-biolégico” um sentido distinto dese que 6 professado por Sibi- Ha, Roy Ascott nflo entende no plano ideoldgico de “certos sonhos fiusticos © ‘endsticos que aspiram a transcendéncia” spelam para uma certa sacralizagiio TALUS, Sao Pale, n74,p, 126197, hagas 2007 131 WWW USP RR EU IT pvye/2Y/r Rela, por das wnociéncias conlemporinea, em sua fstio com o carpe humano, visandoa liber= tao das restrigées espaciais ¢ temporais ligadas&materialidade orga Ascott (2003),0p6s-biolgicondoserefere ‘4 sonhos, mas a processos reais, que nem sempre podem ser explicatlos como trutos de uma vontade humana demitirg eque sinalizam a emergéneia de uma era timida (moist) que esta nascendo da jungao do ser humane molhade (wer com o silicio seco (ay © que se instalars especialmente a partir do desenvolvimento das nanotec- nologi as quais, bem abaixo da pele, passario silenci ‘amente a interagir com as moléculas do corpo humano, significado com que emprego. adjeti- vo“biociberético” é similar ao significado de “pds-biolégico” para Ascott, Entretanto, {quando me refiro as wansformacBes corpo" rais, continuo preferindo iocibernético™ porque, mais do que seus possiveis subs- tinatos, esse adjetivo deixa explicita, como Jj foi mencionado acima, a hibridizagao indiscernivel ontro 0 organico-bioldgico eo maguinics-cibemética.entie 4 umidade do carbonoe a secura do silicio. Pormais que as tecnologias se desenvolvamese soiistiquem, niioas vejocomoalgoradicalmenteestranho 0 orginico ¢ biolGgico. Sao distintas, mas ‘no estranhas, Tanto no so estranhas que hoje se misturando com 0 orgainico de maneira cada vex mais inextricével, Quanto ao termo “pés-humano” conotagSes certamente imp! ‘rapolam delonge,ameracaracterizagiio dos corpos. Nao abstante incluam as mutagbes queas tecnologiasestio provocandono real do corpa, hi dimensées antropolégicas & filoséficas implicadas nessa expressio que 4 dotam de uma complexidade que envol- ve, mas vai além da teenologia ¢ mesmo da biologia. A CONDICAO POS-HUMANA Embora o titulo do livro, Post-human Bodies (Hathersiam & Livingston, 1995), parega restringir © “pés-humano” aos cor pos, 9 conjunto de artigos de que o livro se compie lemcomo alvodiscutiras profindas ‘mudangas tecnoldgicas, representacionais, sexuaise te6ricas nas quais 0s corpos estao implicados, Para as organizadoras, “Corpos pos-humanos silo causas ¢ efei- tos de relagSes pés-modernas de poder & do prazer, virtualidade e realidade, sexo © suas conseqiigncias. O corpo pés-humano € uma tecnologia, uma tela, uma imagem projetada; é um corpo sob o signo da Aids, "um corpo contaminado, um corpo morto, ‘um corpo-tecno; ele &, como veremos, um ‘corpo gay. © corpo humane em si no faz ‘nais parte ‘da familia do homem’, mas de ‘um 260 de pés-humanidades" (Halberstam ‘S Livingston, 1995, p. 3) As autoras argumentam que a histéri concebida como histéria social e cronolé- ica, esté morrendo junto com © homem bbranco da metafisica ocidental. Por isso mesmo, 0s corpos pés-humanos nko pe tencem & hist6ria linear. Sao do passado ‘© do futuro vividos como crise. Fssa crise use regen 2007 I Lis Ag Be presente “niio destiza suavemente ao longo deumall Jhatemporul unidimensional, mas inrompe e coalesce no localmente em unt reino de significado que s6 € parcialmente temporalizavel” (Halberstam & Livingston, 1995, p.4). Dentro desse idedirio,os artigos dolivrorepresentam tentativasde darconta dopresente e processaridentidadles que“dei- xam tragos nos corpos pa no vortice do que chamamos pos-moder- nismo, p6s-humanismo, pés-colonialismo, capitalismo pés-industrial”. Entim, essa proliferagso de “pés-ismos” marca, ainda segundo as autoras, simultaneamente, “a sedissolverem falhanecessériae lastimavel de se imaginar que vem a segui © 6 reconhecimento daquilo que, no dizer de Derrida (1978, p. 293), sempre aparece como “o ainda nilo nomedvelquese proclamaesé pode faré-to, como é necessério, em qualquer momento ‘em que um nascimento esti para se dar, apenas sob a espécie da nfo-espécie, na auséncia de forma, muda, infans, na forma aterradora da monstruosidade’ Na sua obra A Condiedo Pés-humans, ovartista inglés Robert Pepperell (1995) afirmaque aexpressio" pés-humano” pode ser empregada em diversos sentidos. Os. {és sentides em que ele « emprega podem. delinear seu significado geral, a saber: em primeizo lugar, para marearo fim doperiodo, de desenvolvimento social conhecidocomo humanism, de modo que pés-humano vem a signifiear “depois do humanismo”. Em segundo lugar, a expressiio sinaliza 0 fat de que nossa visio do que constitui © humano esta passando por profuncs transformagées. O que significa sermos humanos hojendoé maispensadodamesma ‘maneiraem que era pensadoanteriorment Em terceiro lugar, “pos-humano” refere-se a uma convergéncia geral dos organismos com as tecnologias até o ponto de tor- narem-se indistinguiveis. Para ele, essas tecnologias pés-humanas silo: reslidade viral (RV),comunicacio global, protética enanorecnologia, edes neurais,algor genéticos, manipulagio genética © vida cial. Tudo isso junto deve representar umanovaerane desenvolvimento humano, era p6s-humana, Nessamesmaesteiradereflexio, Felinto (2006, p. 119) sublinha que 0 pés-huma- nismo pode ser entendido como “uma das mais relevantes “narrativas digitais’ com que nos defrontamos hoje ~ uma narrativa, que encontra nos temas da transcendéncia, oespiritualismo teenol6gico.dainformati- zacio do real e daexpectacio futurista uto~ pica alguns de seus elementos principais”. “Todavis, uo tomar como base uma pesquisa cuidadosa realizada na Internet, Felinto toma & precaugdo de distinguir entre um ico. De fato, quando se trata de uma questo como essa, sujeita a todos os tipos de exacerbagiio, hd que se separar o joie do trigo. Seno vejamos, UM POS-HUMANISMO ILUSIONISTA A pur de todas as instincias de positiv dadequea Internet apresenta, ela tambémse ‘constitui em terreno fértl para proliferayao de ideologias obscurase superficiais. Quat dose trata de umtemacomoo pés-humano, prenhe de instigagSes complicadas, node esteanhar que a Tatemet abrao flanco para a expanstio de interpretagdes impregnadas de misticismo, que compreendem o humano comoum estagio transitério naevolugaoda inteligéneia, Na seqiléncia dessa evolugao, ‘© pés-humano Significaria a superagiio das fragilidades © vulnerabilidades de nossa condigao humana, sobretudo do nosso des- tino para 6 enveth mento € a morte. Tal superagéo seria atingida pela substituigdo de nossa natureza bioldgica por uma outra nature artificialmente produzida que niio sofrerial as Himitagdes ¢ constrangimentos Ge nosso ser organico, hoje obsoleto. A mot ver, além de simplista, reducionista, essa compreensao ¢ ilusionista. Embora professe idéia de uma evolugio do ser humano biolégica para um ser liberto dos Timites do orginico, falta a esse tipo de compreensiio justamente uma visio mais clara do préprio evolucionismo e também, ESTA USP, S30 Poul, 974, p. 126137, ho/ageca 2007 133 134 dodesenvolvimenteantropolégicodacons- tituigao simbélica do ser humano. CertaestaSibilia 2002,p.9 1) aochamar de“impulsosneognésticos” umatal *ret6ri= ‘ca mistica ¢ espiritualista,ligada aes novos dispositives de sabere seus aparelhos teeno- \egicos seitasradicaiscomoadosextrepians (www. ", Enessa corrente que seencontram extropy.org). que professam uma filosofia ~eransumanista”, na qual o humanismo € levado uo extremo, desafiando os limites humans. Estes serdo ultrapassados com a passagem para a condigfo transumana ou ‘pés-humana. ‘Tuis delirios pscudo-intelectuais, ev dentemente, nfio podem ser tomados como, definidores da problemética do pés-huma- no. Infelizmente, na sua obra competente e bem informacda, Sibilia (2002) generaliza sua compreensto critica do pés-humano dentro de um recorte que fixa a questio nas vizinhangas desses delirios. Ao citar um artigo publicado na Scientific American,no qual éafirmado que a evoluciio teenolsgica dex veres mais veloz do que a evolugdo biolégica, a autora langa uma pergunta, segundo ela, inevitivel: “Como pretender que © velho corpo humano~ to primitive em sua organicidade ~ nil se tarne abso- eto?", A resposta imediata é que estamos “naugurando uma nova eri: ada ‘evolugdo pos-humana’ ou pés-evolugto, que supera em velocidade eeficineia oslentos ritmos. da evolugao natural” (Sibilia, 2002, p. 15). Aautora complen “Asnovas poténeias dos homens contempo- rineos parecemestar marcando umaruptura, que muitos comecam a apontar como 0 fim da humanidade (seja celebrando-0 ou condenando-o) ¢ @ inicio de uma nova era: 8 pés-humanidade, Pois somente agora a criatura humana passaria a dispor, de fato, das condigdes técnicas necessérias para se utocriticar, tornando-se um gestor de si na, ‘administragdodoseu préprio capital privado ceniaescolhadasopgdes disponh do para modelar seu corpoe suaalma, Outro corte radicalemengedadissoluciodas velhas fronteiras entre oorganismonatural—ocorpo biolégico~e os anificios que atecnociéncia evra ust lo. n74,¢. 12618 ‘coloca nas mies do novo demiurgo humano para que ele conduza a pés-evolugio, niio apenas em nivel individual como também ‘quanto & espécie, hibridizando-sc com as iversas préteses bioinformiiticas que ja cestiio A venda”™ Embora, cle fato,acondigaio pés-humana earevolugiiobiotecnolégicaqueciaimplica estejam colocando a humanidade diante de dilemaséticos inéditos, é preciso reconhecer ‘que a separacio pressuposta entre a evo- lugio biolégica e a evoluciia tecnolégica pode ser improcedente. Se partirmos do pressuposto de que ambas as evolugdes si0 inseparéveis, conforme foi brilhantemente discutido no livro de Merlin Donald, The Evolution of Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture and Cognition (1991), a atval aceleragio tecnocientitica nilo representa outra coisa seni 0 terceiro ciclo evolutive do sapiens sapiens. Diante disso, longede serdeterminada apenas pelos sonhos de onipoténcia humana, a condigio atual pode estar inserita no programa gené- tico da espécie humana, um programa que no € deter incorpora acaso, ¢ que teve inicio quando ‘© humano se constituiu como tal, um ser paradoxal, natural e artificial ao mesmo tempo, pois a fala que faz do humano oque le € desnaturaliza-o, coloca-o, de safda, pista, mas imprevisivel, pois fora da natureza, F. muito justamente essa desnatureza congénita que a evolugio tec nocientffica atual esti nos fazendo enxergar em retrospect POR UM PQS-HUMANISMO critico ‘Tomando como base 0s argumentos de Donald ¢ outros similares, conforme cexplanei em “Psicanilise © © Desatio do PSs-humano” (Santaella 2003, pp. 231-50), fa meu ver, sem negar a originalidade das mutagSes que atecnociénciaestiatualmente Sntroduzindo, ni se pode deixarde conside- var que elas estiio na linha de continuidade vshe/agatto 2007 ede aumento de complexidade daquilo que tenho chamado de crescimento dos signos na biosfera como fruto daexternalizagio da capacidade simbélica humana (Santaella, 2003. pp. 209-30; 1996, pp. 183-94), algo. que teve inicio no momento em que o ser hhumano se constituin como tal através dit posigiio bipede e da fala Trata-sede umaidsia similaraquetaque defendida por Serres (1986, upud Bruno, 1999, p. 102), quando chama o homem de animal cujo corpo abandona suas funges, Tangando-as no exterior, onde adquirem novas fungles. Assim, a boca evolu da captura do alimento para a fala, a mio deixou de ser patae se soltou para pegar as coisas, e mesmo fabric4-las, e, ent, para desenhar, escrever, etc.; a memi6ria deixou 0 cérebro para pasar ao papel € agora aos chips, Portanto, como tucidamente com- plementa Bruno (1999, p. 102),

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