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Prefdcio 4 primeira edicao O LEITOR DEMANDA (D)A LITERATURA Luiz Costa Lima 1, Aproximagéo da paisagem Ao contrario da linguagem poetica, a linguagem dos textos argumenta- tivos (como o ensaio, a andlise) pouco permite que o autor se diga, nao s6 in- telectual mas afetivamente. Werner Krauss aqui, entretanto, me oferece a opor- tunidade de, rapidamente, romper aquela norma: citando Krauss, aluno de Auerbach, que deste manteve a abertura de Pensamento, refago a cadeia que me trouxe onde hoje me encontro. Pois, independente das diferengas, Auer- bach € 0 guia que escolhi na selva selvaggia em que transito, Traduzo Krauss ¢ ja me dou por situado: “Como a palavra, como uma frase, como uma carta, assim também a obra literdria nao € escrita no vazio, nem dirigida 4 poste- ridades € escrita sim para um destinatério concreto”, (in Naumann, M., 1965, 58). A frase de Krauss pareceria uma afirmagao anédina, mero artefato do bom senso, caso nao fosse vista no contexto contemporaneo da andli- se da literatura. Por efeito da tradigao que se instaura com a poesia da mo- dernidade — ou seja, de Nerval ou Baudelaire para cd —, por efeito, co- mo seria mais correto dizer, das condig6es sociais em que esta tradigio é engendrada, a critica que responde a seu apelo concentrou-se cada vez mais na relac4o autor—texto ou mais puramente, no pélo da textualidade, 37 abandonando o leitor nas sombras de uma drea confinada apenas 3 hist6- tia ou a sociologia da comunicacio literdria. A medida que a poesia se afastava da experiéncia comum, reagia aos esteredtipos da experiéncia, mediante a exploracao de uma “vivéncia de choque” (Benjamin) ¢ se con- centrava em sua prépria linguagem, a critica, acompanhando este proces- so, dirigia-se & textualidade, refinava seus métodos de andlise e tendia a ver toda busca de insercao social do produto literério como um esforo rangoso, proprio de pesquisadores sem sensibilidade, sendo mesmo, a exemplo do que sucedeu entre nés, como um sintoma subversivo. A pri- mazia histérica desta orientacdo coube & estilfstica: “Com a estilf idealista comega nao sé 0 relacionamento detalhado, de fato frutifero, da filologia com a ciéncia da literatura, mas também o desenvolvimento de uma concepcao formalista da literatura, que considera a obra literdtia ica uma creatio ex nihilo. O estilista compreende a obra literéria como um or- ganismo fechado, cuja estrutura h4 de descobrit” (Barck, K., 1975, 115). Nisto, contudo, ela nao esteve sozinha. Independentes da estilistica e en- tre si auténomos, o formalismo russo (salvo as excegées de Tynianov ¢ Bakhtin), 0 new criticism, 0 estruturalismo francés (que nunca absorveu a vocagao etno-antropolégica da obra de Lévi lises imanentes do texto, assim determinando um panorama que nao po- de ser ignorado ¢, ao mesmo tempo, necessita ser redimensionado. Pois, ampliando e modificando 0 que Barck diz sobre Croce — “No confron- to (...) da literatura com a poesia, a primeira é subordinada, em um sen- tido pejorativo, 3 pura fungdo da comunicagdo, enquanto a poesia, como pura expressividade do artista genial, se basta ¢ se satisfaz consigo mesma” (Barck, K., 1975, 117) —, por todas estas correntes perpassa a divisiio en- tre uma drea menosprezada, a drea da comunicagio, e uma privilegiada, a da textualidade. Acrescente-se: estes modelos imanentistas perduraram e perduram mesmo pelo contributo de seus adversérios, que, quando mar- xistas, se restringiam a insistir no condicionamento social das obras, co- i-Strauss) aprimoraram as and- mo se 0 problema maior nao fosse demonstrat as mediacées que levam da base social para a producio ¢ a circulacéo propriamente ditas; que, quan- do “humanistas”, “espiritualistas”, defensores da “morada do set” ou do que fosse se afincavam em afirmar um dito primado do espirito que sem- pre soava como mé literatura apenas. Dafa importancia, mesmo o impac- to, que receberia a licgo inaugural de H. R. Jauss, na Universidade de 38 1 Konstanz, em 1967. Nao pretendo recordar suas teses, pois nao cogito de fazer uma histéria da estética da recepgao! e porque o préprio autor as re- tomard. Lembro apenas duas de suas “provocaées”: “O meu programa para superar a distancia entre literatura ¢ hist6- ria, entre conhecimento histérico ¢ estético, aproveita-se dos resultados fie nais de ambas as escolas (0 formalismo € o marxismo). Os seus métodos véem 0 fato literério dentro de um circulo fechado de estética da produ- sao ¢ da representagao. Prescindem de uma dimensio da literatura, fan- damental, dados 0 seu cardter estético ea sua fungao social: a dimensio da sua recepgao ¢ os efeitos que ela ocasiona’. (Jauss, H. R., 1967, 37) “Uma renovagao da historiografia da literatura deve destruir os preconccitos do objetivismo histérico e dar & estética tradicional da pro- dugao e da representagao uma base cientifica, apoiada na estética da re- cepgio e na sua efetividade”. (Idem, 40) Cada uma destas observagées, sem duivida instigantes, suscita diividas imediatas. Tratar-se-ia simplesmente de deslocar 0 centro de gravidade, retiran- ' Mesmo que nao tenhamos este propésito, ¢ importante assinalar a antecipagao e/ou a correspondéncia de algumas das teses de Jauss com pontos de vista desenvolvidos pelo cha- mado estrucuralismo de Praga. Vejam-se a respeito os dois seguintes testemunhos: “E sinto- atico (...) que esbogos mais recentes de uma estética histérica da recepcao (H. R. Jauss), de inicio pensados independentemente, encontraram aqui (isto é, no estruturalismo de Praga) posigdes em parte jd formuladas”, W. D. Stempel: “Zur literarischen Semiotik Miroslav Cer- venkas’, introdugao a tradugdo alema de M. Cervenkas: Der Bedeutungsaufbau des literaris chen Werkes (A construgao de significasao da obra literdria), W. Fink, Munchen 1978, p. IX. “Do ponto de vista da génese, nao se pode (...) falar numa filiacao direta. Mas, indo além das correspondéncias sistemticas de longo alcance, deve-se ressaltat, como um paralelo entte as dluas origens, que tanto Jauss quanto os estruturalstas de Praga desenvolveram sua compreen- sao da percepgio ¢ da evolugao literdrias em confronto direto com teses e teoremas do forma- lismo russo, de um lado, e com a teoria e critica literétias marxistas, do outro; teses e teore- mas, em parte tomadas de empréstimo, em patte criticamente modificadas e, em parte, tejeitadas. Sé que este confronto levou Mukafovski & construgio de uma estética semistica, que ainda foi aproveitada por Voditka, como base teérica de sua idéia de recepcao. Jé quan- to & historia da recepgao de Jauss, sua idéia parte, nao de uma estética semitico-estrutural, mas se liga & tradicao alema da hetmenéutica, como teoria da compreensio, J. Striedter, in. troducao a traducdo alema de Felix Vodicka: Die Serukeur der literarischen Entwicklung (A es- rrutura da evolugéo literdria), W. Fink, Miinchen 1976, p. XCI-XCIL. 39 do-o do texto ¢ passando-o para o leitor? Tratar-se-ia de oferecer & estética tra- dicional uma base mais firme, mantendo-se contudo intactos os seus Pressupos- tos? Perguntas semelhantes so respondidas, ao menos parcialmente, pelos au- tores aqui selecionados. Sobre a primeira, é convincente a resposta de H. U. Gumbrecht: ‘A estética da recepedo, como ainda se objeta, perde de vista o autor, a produgao do texto como objetos da ciéncia da literatura. Tal critica era correta en- quanto a estética da recep¢ao desejava ser apenas ‘uma histéria da literatura do leitor’ (Jauss, 1967, Weinrich, 1967)”. (Gumbrecht, H. U, 1977a; ver p. 191). E de maneira mais aguda: “... a verdadeira inovagdo da estética da recepedo con- sistin em ter ela abandonado a classificagao da quantidade das exegeses posstveis historicamente realizadas sobre um texto, em muitas interpretagoes falas’ e uma, corveta’. Seu, interesse cognitivo se desloca da tentativa de constituir uma signi- ficagiio procedente para o estorco de compreender a diferenga das diferentes exegeses de um texto” (idem, 191). Como se vé, ao passarmos em revista a tesposta a pri- meira questo, nos deslocamos para o Ambito da segunda, Pois € claro que esta Passagem quanto a meta mesma da interpretac4o supée pressupostos tedricos diversos dos vélidos para a hermenéutica tradicional. Seria esta passagem aceitd- vel do ponto de vista dos outros autores da chamada “escola de Konstanz”? Qualquer resposta permaneceria por ora precipitada, mas, em vez de adié-la, procuremos preparé-la por uma reflexo mais envolvente. Ao nos referirmos ao problema de como se haveria de entender 0 papel concedido ao leitor, observamos que af nao se encontra a posstvel novidade da estética da recepcao. Mas, como o leitor deste ensaio poderd estar se Pperguntan- do por que isso é tao relevante, empreendamos um raciocinio diferente que, ra- tificando a primeira resposta nos dé condigées de melhor formular a segunda pergunta. Considerar de inicio que o leitor é 0 centro da pesquisa recepcional im- plicaré deixar-se de lado a reorientagdo tedrica dos estudos da literatura que o movimento teria operado ou poder vir a operar. Escolhemos a forma dubitati- va porque, de um lado, a aula inaugural de Jauss dé a entender que o leitor sim € 0 que o preocupa, e, de outro, Gumbrecht afirma que esta posicao teria sido posteriormente ultrapassada. Explicitando 0 quadro da discussio: se a énfase no Icitor representa a focalizacio do pélo hoje comumente desconsiderado, por mais Provocante que isso seja, nao basta para dizer-se que a estética da Tecep¢ao vio- lenta os parametros da critica imanentista (textual). Assim afirmamos conside- rando o seguinte: em toda construcio tedrica, seja a cientifica, seja a do saber po- pular (por-ex., a de sua medicina), hd um plano dos pressupostos, orientador, 40 mesmo quando o analista nao o conhega, da indaga¢ao pratica, € um. plano me- rodolégico, que diz respeito ao arsenal de regras ¢ técnicas com que se lida com 0 objeto. Portanto, sea estética da recep¢o se diferencar apenas pelo realce do lei- tor, aquele primeiro plano permanecerd intacto. Contudo, se por acaso 0 exame a que vamos submeter os textos provar 0 contririo, quais sero as suas conse- qiéncias? Para dizé-lo com poucas palavras: neste caso, a estética da recepsao im- plicaria 0 caminho para uma “mudanga paradigmética’;? como seria desejével por um Gumbrecht. Segundo a formulagao deste, esta mudanga dependeria do abandono de fixarem-se as “interpretag6es corretas” (Gumbrecht, H-U., 1975, 389), para, em troca, reconstituirem-se as condigées sécio-histéricas que me- deiam as diversas formagées de sentido. Em suas palavras, trata-se agora de “com- preender as condigées de formagoes diferentes de sentido, realizadas sobre um dado texto, por lcitores que esto de posse de disposigées recepcionais mediadas por condigées histéricas distintas’ (Gumbrecht, H. U., 1975, 390). Ora, se esta meta ndo for valida apenas para quem a formula, como a estéti- cada recepsfo visaria dar “uma base cientifica’ “a estética da produgio e da repre- sentacio” (Jauss)? Fazemos questo de articular a passagem de Gumbrecht com 0 texto “canénico” de Jauss para que bem se veja a sua nao convergéncia e, desde lo- go, para que o leitor brasileiro perceba que nao se trata de um grupo uno. Isso pos- to, podemos submeter nossa segunda pergunta a uma formula¢4o mais precisa: ou a) a estética da recepcao se caracteriza pela énfase no pélo, hoje secundatio, do lei- tor, ou b) esta énfase ¢ apenas o sintoma de uma decisdo de maior alcance: a de se contrapor & figura do “leitor ideal”, isto é, aquele que ofereceria a leitura cor- reta de um certo texto. Se a resposta legitima for a primeira, isso significaré que a estética da recep¢ao metodologicamente se diferencia das correntes imanen- tistas. Se, ao contrério, for a segunda, a diferenga entre os campos ser4 muito maior, pois que situada no plano dos préprios pressupostos teéricos. Assim for- 2 Como prova paralela de que 0 destaque do leitor hoje em dia causa a sensagio ou a esperanga de uma mudanga de paradigma, considere-se 0 exemplo de Norman Holland, pes- quisador americano que, sem nenhum contato com a estética da recepgio, procura justficar seu interesse na produgao do receptor pelo questionamento do paradigma que tem guiado as ciéncias, ¢ por ele chamado “paradigma objetivo”, mostrando-o como produto de um momen- to histérico, © qual ha de ser ultrapassado para que as ciéncias, até agora tidas por menores, possam alcangar seu verdadeiro estatuto. Lamentavelmente, seus argumentos em favor do “pa- radigma subjetivo” nao sio convincentes. Cf. Norman N. Holland: “The New paradigm: sub- jective or transactive?”, in New literary history, v. VIL, n. 2, 1976. 4l mulada, a questo agora pretende ter uma abrangéncia a que se subordinard todo o ensaio que se escreve. A fungao deste, portanto, nio serd outra senio a de formalizar os passos para a resposta que assim pare¢a mais conseqiiente. Uma vantagem complementar daquela formulagio e da indicagao de seu pa- pel no interior deste texto consiste em mostrar ao leitor 0 que se pretende que ele aqui encontre: nem a apresentacao de uma histéria critica das etapas da es- tética da recep¢ao, nem muito menos um acompanhamento exaustivo dos en- saios apresentados. Contra a primeira possibilidade, levanta-se o fato de que eu nio seria capaz. de melhorar o que jé esté feito por um R. Warning (Warning, R, 1975, 9-41). Contra a segunda possibilidade, levanta-se uma razao funcio- nal: tal estudo detalhado teria sentido apenas em um circulo mais restrito, com pessoas de interesse jd definido, como ao longo de um curso. O que, portan- to, nos interessa é situar a estética da recep¢do do ponto de vista do panorama da critica atual, implicitamente verificando em que ela nos pode ser relevante. Por esta raz4o, acompanharemos os ensaios a partir de um prisma preciso ¢ li mitado: o da pergunta se a estética da Tecep¢o pertence ou nfo ao paradigma também valido para as outras correntes importantes da andlise da literatura. 2. 1° ctrculo: a experiéncia estética Assim posto, o primeiro problema que se apresenta € como os autores conce- bem a experiéncia estética. Creio que qualquer estudioso da literatura saberd por que esta ha de ser a questéo preliminar. Repetindo um argumento que jé escrevi virias vezes, por mais distintas que sejam as correntes de andlise, todas elas tém. partido do Suposto que a sua teorizacao constitui, contribui ou faz parte de algum corpus estéti- 0. Isso, por sua vez, Pressup6e que se tenha uma idéia precisa: a) da experiéncia es- tética, b) de que € vélido montar-se sobre esta uma teoria, a qual seré necessariamen- te entao estética. Noutras palavras, que a andlise da literatura se infere da experiéncia que se estabelece com os seus textos. Neste sentido, quaisquer que sejam as restrigdes posteriores parte final e ao segundo texto selecionados pelo préprio Jauss para esta antologia, eles tém a qualidade de nao dar por implicito o que é a base sobre a qual se tém construido as teorias neste campo: ou seja, em que consiste a experiéncia es- tética primeira, Jauss encontra em Adorno o adversirio privilegiado, pois, atacando na Asthetische Theorie 0 prazer estético como 0 adaptador da arte ao consumismo 42 burgués das emogées e, ao mesmo tempo, confessando que, no momento em que estiver retirada a ultima gota de prazer da arte, cla nao terd mais lugar, Adorno permitird a Jauss armar-se de cavaleiro em defesa da arte € mostrar a sua importancia para a préxis dos homens. Jauss tem sem dtivida razdo quan- do critica a oposi¢ao adorniana entre o culto da negatividade, representado pe- la arte, € 0 enfeitigamento geral que a Asthetische Theorie — e a Escola de Frankfurt em geral — toma como a caracteristica mais maligna da sociedade de consumo. Razo porque mostra Adorno tributério do culto idealista da ar- te, do qual, contudo, tampouco Jauss se afasta. Como justificar doutra manei- ra idéia de um “cardter permanente de arte” (p. 56), que a impediria de ser totalmente manipulivel pelas leis do mercado? Como nao recordarmos 0 pa- pel que a arte tinha para um Schiller, quando lemos que a estética adorniana da negatividade deve, ultrapassando o principio vanguardista da violagao da norma, favorecer “produgées formadoras de norma da experiéncia estética’? Ora, esta producéo pode-se fazer em qualquer sentido, como violadoras ou confirmadoras do status quo. Admitamos que a experiéncia estética, de fato, contém um espectro assim variado de possibilidades. Mas, se 0 analista nao tem uma preocupagio apenas descritiva, 0 que nao ¢ 0 caso de Jauss em seu confronto com Adorno, ele sé se contentard com aquela indicagéo tio ampla, se, de fato, achar que a estética é, de qualquer forma, redentora. E por conta da adirecionalidade de sua afirmagio e por nao verificar que as normas estéti- cas estéo evidentemente entrelacadas as normas sociais, que afirmamos Jauss pertencer ao mesmo solo idealista que critica em Adorno. Portanto, sua refu- taco, embora correta, termina por se converter em uma obra menor. E possi- vel que dentro do quadro institucional europeu — na Europa Ocidental por motivos diversos dos da outra — nao se possa pensar doutro modo, a tal pon- to a prixis efetiva est afastada da praxis intelectual. Mas, evitando julgamen- tos arriscados, 0 fato & que a critica a Adorno no oferece uma réplica de igual peso porque Jauss se mantém na arcddia paradisiaca da literatura. Noutras pa- lavras, porque nao se permite vé-la no interior da dinamica social. Neste sen- tido, o primeiro exame, conquanto parcial, jd orienta a resposta a oferecer & pergunta central deste ensaio. Ela, contudo, ¢é bem uma resposta provisoria, que sé se configurar4 em sua plenitude ao observarmos como encara a expe- riéncia estética. Jauss tem af 0 cuidado de notar que a sua reflexéo fornecerd apenas um contributo para a historia da experiéncia estética. Ele parte da afirmagao kan- 43 tiana sobre a diferenga entre o juizo determinante ¢ o de reflexao. Glosando li- vremente: enquanto o primeiro afirma seu direito por conta de sua demons- tratividade interna, o segundo é, por um lado, mais frégil, pois nao dispoe de uma rede conceitual auto-suficiente e, por outro, mais ajustado a exprimir a li- berdade individual, pois o seu reconhecimento sempre depended da aceitagao pelos outros, pela formacao de um consenso. Jauss esté certo ao dizer entéo que, assim, “a condigio estética ganha, indiretamente, significagao para a pré- xis da ago”. Mas o exame sé poderd ser tomado como completo se, outra vez, no considerarmos as mediagées, 0 jogo de presses realizados por outras ins- tincias sociais. Afinal, o consenso no se impée por si; obviamente, hd instan- cias ¢ instituigdes que o inclinam nesta ou naquela direcdo. Como, por exem-, plo, se estabelece o consenso sobre a exceléncia de um autor? Seria por que 0 horizonte de expectativas dos leitores se ajusta com o horizonte possibilitado pelo texto, numa espécie de contrato natural, ou por que instncias de poder espectfico — isto é, do poder literdrio — se nao mesmo as inclinagées politi- cas da sociedade se manifestam e/ou se orientam em favor da concesso daque- le prémio? Nao pretendo dizer que a oposicio haja de ser de tipo tao simples. Na verdade, para o éxito ou fracasso de uma obra ou de uma corrente interfe- rem intimeras mediacGes, a priori nao enumerdveis. Apenas quero dizer que Jauss pode concluir seu artigo introdutério com a passagem de Kant porque créem um cardter permanente de arte e, dai, numa forca especifica da arte, que €0 justo tributo a forte tradicao idealista alema. Nao comentando mais longamente este segundo exame parcial, venha- ‘mos as suas observagGes sobre a historia da experiéncia estética primeira. Vin- do de Aristételes e Gérgias, de Agostinho e Lutero até o romantismo, Jauss pratica o que se chamaria o esboco de uma histéria do conceito. Extrema- mente titil como ¢, ela me parece arriscada por nao levar em conta as inter- relagdes do conceito que estuda, a experiéncia estética, com outros conceitos- motores, pelas quais se reconstituisse o lugar historicamente ocupado por ele, em cada fase. Explicando melhor: a medida mesmo que 0 juizo estético nao € auto-suficiente, conforme a afirmacdo kantiana, sua histéria nao pode ser tracada do mesmo modo que um conceito historicamente tomado como su- ficiente, digamos, por exemplo, o conceito de Ser. Se a consensualidade do juizo estético € uma qualidade sua, contudo, do ponto de vista de seu traba- Iho interno, isto é, aqui do ponto de vista de constituigao de sua histéria, se- tia decisiva a observacao das instancias que pesam sobre a sua modelagem. O afirmado € valido para qualquer um dos casos referidos. Evitemos contudo o exame de cada um — desde logo, a articulaco de Gérgias com Aristételes aparece, do ponto de vista de suas respectivas doutrinas, um casamento entre seres de espécies distintas — e nos restrinjamos as observacdes do autor sobre o romantismo. Para Jauss, o principio estético romantic do autodeleite da subjetividade individual, levando & rejei¢ao do senso comum, junto com o culto do génio, teve um efeito desastroso: “data de entao a decadéncia de to- da experiéncia prazeirosa da arte” (p. 69). Da maneira como o problema é apresentado, tudo leva a crer que a catastréfica decisio foi motivada por um maligno consenso entre os que tinham vor no campo da arte. Ora, nao € pre- ciso recorrer-se a algum conhecimento mais especializado para se compreen- der o que passa no romantismo. Consolidada no poder politico-econdmico, seja mediante o aburguesamento da nobreza, seja mediante a sua derrota, afastado o perigo que representava a ala mais radical da Revolugéo Francesa, a necessidade de acumulagao de capital provocava, nos individuos, a necessi- dade de internalizar modos de conduta que destacavam, nao a communitas, de trabalho ou de vida, mas a pratica da privacidade. Por outro lado, este cul- tivo da individualidade servia ao grupo social da inteligentsia, enquanto nao diretamente envolvido na producdo capitalista, de refiigio, em certos casos de revolta, quanto a sociedade vigente. Assim, a internalizac4o de normas volta- das para o cultivo da individualidade, passava a ser tanto uma exigéncia so- cial, quanto respondia a uma vontade de diferenciagao, fosse por melancélica identificagZo com 0 passado, fosse por inconformismo ou mesmo revolta, dos grupos romanticos. O exemplo banal nos mostra a debilidade resultante de uma histéria imanentista da experiéncia estética. Nao se trataria de postular, obrigatoriamente, uma histéria social da experiéncia estética, mas, sim, tendo em conta o cardter de juizo (0 juizo de reflexio) que a anima, mostré-la em relaco com as instancias que presidiam a sua configuragio. Pesquisa recente de H. U. Gumbrecht nos mostraria as condigées sociais e a sua resposta lite- ratia que levam, é verdade que nao imediatamente, & formagao do idedrio ro- méntico. Em estudo sobre perfodo pouco estudado, o teatro francés entre 1794 ¢ 1799, ele mostra como a instabilidade social provoca um clima de me- do, que transpira nas respostas diferentes apresentadas pelos teatros populares do Boulevard du Temple e pelos teatros do centro de Paris, freqiientados pe- la alta burguesia. De acordo com a proveniéncia de seus ptiblicos, os primei- ros encenavam tipicamente melodramas ¢ os segundos, pecas descendentes do drame sérieux. Ora, se é facil compreender-se por que, nas pegas encenadas en- tre 1795 ¢ 1799, desaparecem as alusdes & revolucao, jé nao seria facil expli- car-se o éxito que acompanha, em ambos os tipos de teatro, as pegas que gi- ram em torno de uma parvenue, Mme. Angot. Como demonstra 0 autor, sucede que tais pecas permitiam respostas que, embora diferenciadas, ofere- ciam uma maneira de relacionar-se com 0 medo, produto da instabilidade so- cial. Para a alta burguesia, a arrivista era objeto de um “tiso agressivo”, pelo fracasso de suas tentativas de ascensio social. Jé 0 Ppequeno-burgués, freqiien- tador dos teatros populares, com ela se identificava, quer por sua procedén- cia, quer por sua busca de ascenséo (Gumbrecht, H. U., 1979). O exemplo Parece-nos mostrar como a dindmica social do capitalismo — vivido em seu periodo nascente ou em suas crises como sensacdo de instabilidade — nao po- deria favorecer uma experiencia estética fundada no sensus communis : Abandonemos agora estes exames parciais e consideremos a parte central do ensaio, Jauss a realiza a partir das especificagdes que desenvolvem a idéia kan- tiana do prazer desinteressado. A primeira caracterizacao destacada é a interpre- tacéo de Geiger por Giesz, pela qual se distingue entre 0 puro prazer sensorial, onde, poderfamos dizer, o que causa prazer existe t40-s6 em fungao do sujeito do prazer, ¢ o prazer estético, que supde uma distancia, uma tomada de posi- <0, mediante a qual se encontra prazer no objeto do prazer; em que o objeto nao est4 ai apenas para que alguém sinta prazer nele, mas se coloca numa dis- tncia em que nao perde sua qualidade de objeto auténomo. Jauss reconhece o mérito de Geiger em converter a f6rmula kantiana do prazer desinteressado em “desinteresse interessado”: 0 objeto nem é “comido” pelo sujeito do prazer, nem perde sua condi¢ao de outro numa relacdo comunicativa. Mas objeta que assim ainda nao se distingue a experiéncia estética da experiéncia teérica, pois que ¢s- ta também supde uma atitude de distanciamento. Ensaiando um novo passo, analisa a teoria sartriana do imaginério, com o destaque para o papel de aniqui- lagao da realidade, empreendida pela consciéncia imaginante. Observa entio Jauss que a abordagem sartriana ¢ importante por distinguir entre o trabalho da percepgao em face do da imaginacdo, mas que nao explica por que o ato ima- ginante provoca prazer estético. Incorporados estes passos, ressalta ento 0 con- tributo de Giesz, que aperfeicoa a reflexio de Geiger: “Na reagao de prazer an- te 0 objeto estético, realiza-se (...) uma reciprocidade entre sujeito e objeto, em que ganhamos interesse em nossa auséncia de interesse” (p. 76). A experiéncia estética, portanto, consiste no prazer originado da oscilagao entre o eu e 0 obje- 46 to, oscilacao pela qual o sujeito se distancia interessadamente de si, aproximan- do-se do objeto, ¢ se afasta interessadamente do objeto, aproximando-se de si. Distancia-se de si, de sua cotidianeidade, para estar no outro, mas nao habita o outro, como na experiéncia mistica, pois 0 vé a partir de si. Admitimos que o esforgo de caracterizacao da experiéncia estética como uma forma diferenciada de prazer aqui alcanga uma precisio poucas vezes en- contrada. Mas exatamente por isso é que nao nos convence a conclusao final a que chega 0 autor: que, depois de definida a experiencia estética, possamos in- ferir as trés categorias bisicas, de poiesis, aisthesis, katharsis, que deverio presidit — sou eu que interpreto — a teorizacao da arte. Para inicio de reflexdo, parta- mos de um ponto de aceitagao comum: o prazer estético implica uma ativida- de de conhecimento, embora distinta do conhecimento conceitual. O sujeito do prazer conhece-se no outro, traz a alteridade do outro para dentro de si, a0 mesmo tempo que se projeta nesta alteridade. Ora, nesta experiéncia assim complexa, o conhecimento s6 experimenta a diferenga do outro a partir do prd- prio estoque de prenogées que traz consigo. Dito doutro modo: ao passo que Jauss destaca a alteragio do conhecimento do sujeito, alteragao devida & aco do efeito estético, creio que devemos partir do momento anterior a esta alteracio, isto é, o momento representado pelo conjunto de expectativas, prenogdes € pre- vis6es do sujeito. Esté certo que se, durante a experiéncia estética, 0 sujeito ape- nas confirma seu prévio horizonte cognoscente, a experiéncia, enquanto este! ca, fracassa, pois 0 sujeito excluiré o objeto, nao seré capaz de tematizar 0 que nele € rebelde a seu prévio estoque de saber. Porém, mesmo supondo-se uma experiéncia estética realizada, a fruigéo da alteridade, a experiéncia do diverso, 0 questionamento até dos valores do sujeito (isto é, 0 leitor) s6 serao abordaveis a partir daquela gama prévia de saber. Assim como o realce apenas do estoque previo de saber do leitor nos levaria a dizer que toda experiéncia estética, por- que conceitualmente nao controlével, nao passa de uma experiéncia de reconhe- cimento, de reduplicagao, de corroboragao de valores, assim também 0 realce oposto do questionamento dos valores do leitor, que a obra provocaria, nos le- vard a exaltar a sublimidade da literatura, como via privilegiada para a apren zagem da criticidade. Ora, no parece ocasional que os analistas de Jauss, mes- mo reconhecendo seu inequivoco mérito como tedrico ¢ como intérprete, tenham, de frentes diversas, acentuado seu parti pris em favor do potencial re- novador e inovador da experiéncia estética. Assim M. Naumann observa que seu “leitor ideal (...) € aquele que ¢ sempre capaz de destruir seu horizonte de 47 expectativas para gozar da literarura mais nova’ (1975, 139). Em frente filosé- fica ¢ institucional distinta, a mesma idéia é desenvolvida por J. Stiickrach: “Oo interesse de Jauss no contetido inovador da obra literdria explica-se a partir de sua prenogao axioldgica, segundo a qual a qualidade de uma obra ¢ fungdo do seu grau de inovacio” (Stiickrath, J.. 1979, 122). Um terceiro e ultimo testemu- nho: “Os critérios, historicamente determinaveis, da acep¢do realista da arte, sa0 rejeitados em favor de um modelo da histéria do espirito, que procura justificar sua abstragao dos sujeitos histéricos por ressaltar como Alibi as qualidades ‘sub- versivas da arte” (Weimann, R., 1977, XXIV). Esta hipostasia do cardter ques- tionador da experiéncia estética parece-me oriunda da autojustificagao criada pela arte da modernidade, segundo a qual a arte assume uma funcao social exa- tamente por ser transgressora de normas. (Se € correto dizer-se que a arte con- temporanea necessita valorizar a funcao transgressora mesmo pela falta de co- munhdo com os interesses dominantes, dai a admitir-se uma fungao social, € exclusiva, vai um passo que nao poderia ser assumido sem maiores exames.) Sem recairmos na suspeita estética da “representacao” insinuada pela citagao de Weimann, como modelo contraposto, a hipostasia jaussiana tem uma gravissi- ma conseqiiéncia: por ela, o autor perde a oportunidade de repensar as relacdes entre experiéncia estética e teoria da literatura. Refazendo neste contexto um ar- gumento j4 exposto em trabalhos anteriores, ¢ 0 enriquecendo com os dados que agora Jauss me fornece, o reproponho mediante os seguintes passos: a) a ex- periéncia estética é uma forma de prazer e de conhecimento sui generis, porque conceitualmente nao controlado; b) porque conceitualmente nao controlado, este conhecimento tanto projeta suas prenogées ¢ expectativas, quanto é passi- vel de té-las questionadas; ¢) enquanto integrado na experiéncia estética, este questionamento néo se transformara em uma rede conceitual — pois esta con- verso supde um ato de distanciamento tedrico € nao estético — mas tenderd a se congelar em novas prenogées ou, se quisermos empregar terminologia co- mum nos autores aqui traduzidos, em novos esquemas de agio. Por conseguin- te, 0 conhecimento engendrado durante a experiéncia estética sempre terd um. cardter misto. Ou seja, ainda que por ela o leitor se abra a um horizonte de ex- pectativas antes imprevisivel, este nao se alga 4 condigao de uma articulaco con- ceitual, mas tenderd sim a retornar & condigao de hébito mental. Como, ade- mais, ndo podemos esperar leitores tao sensiveis ¢ t4o atentos que este treinamento, via experiéncia estética, os leve a uma constante renova¢ao, ainda que a experiéncia estética os capacite a se tornarem permedveis 4 alteridade, a 48 transformar mesmo sua visio de mundo, tal experiéncia no poderia ser con- fundida com uma espécie de revolugao permanente. Se aceitarmos estes passos, a conclusao serd de que da experiéncia estética nao se pode extrair uma teoria dos objetos causadores daquela experiéncia. Ou, dito por outra via, toda teoria estética tende a ver como meta-histérico o que se explica apenas a partir da experiéncia estética privilegiada, assim se tornando, no melhor dos casos, um aglomerado de acertos e racionalizagées. Nao se trataria dea ela contrapor uma teoria pura, no sentido de isenta de parti pris e de incli- nasbes ideolégicas. Isto seria utopia ou mistificacao. O desejavel seri um corpus tedrico que, radicalizando a sua propria reflexao, verifique o quanto possivel suas frentes cegas, o que vale dizer, que resgate o maximo de suas possibilidades de racionalizacio e, portanto, de ocultamento. Sempre falamos a partir de al- gum ponto; numa sociedade de classes, sempre falamos a partir de uma classe. Ora, porque a experiéncia estética nao é regulada por conceitos, ela se torna mais apta tanto a abrigar prenogdes, quanto a permitir a visualizacao ou realiza- cdo de experiéncias novas. Mas a passagem deste clima para uma situacio teé- rica cria um problema imediato: 0 de passarmos a trabalhar com aparéncias de conceitos, isto 6, com racionalizagdes, cuja fungao imediata serd uma fungéo ideolégica, no sentido negativo do termo, de ocultamento do lugar (da classe) de onde se fala. Assim, 0 esforgo de Jauss ¢ extremamente louvavel por nos per- mitir uma maior clareza em uma distingéo que ele, contudo, nao ousa. Seu ca- so nao é tinico. Dentro da tradigéo européia, continua a aparecer como escan- daloso postular-se uma teoria do literdrio que, considerando a importincia ptimordial e o significado 0 quanto possivel preciso da experiéncia estética, sai- ba por que, a partir daf mesmo, aquela teoria nao se pode querer estética. Do conjunto dos argumentos desenvolvidos, podemos retornar & nossa pergunta central. A partir da proposigao de Jauss — oferecer, pela estética da recepso, um estatuto de cientificidade a estética tradicional — nos pergunté vamos qual a relagdo que a estética proposta estabeleceria com a estética tradi- cional da produgio. Cotejamos a seguir a afirmacao de Jauss com passagem de Gumbrecht, aqui utilizével porque concedia & estética da recep¢ao um propé- sito contraposto ao da hermenéutica orientadora da estética da produgao tra- dicional. Daf chegamos a formulacdo da alternativa que dissemos central a es- te ensaio. Em poucas palavras, ela ainda pode ser assim formulada: a estética da recep¢io continua ou nao a privilegiar um leitor ideal? A conclusio a que chegamos é de que, pelo menos em Jauss, a resposta correta esté na primeira 49 parte da alternativa. Contudo a importancia da concluséo nao parece estar ne- la mesma, mas no motivo que leva a permanéncia do leitor ideal: assim suce- de porque Jauss continua a construir sua teorizagio sobre a base da experién- cia estética, sem assim se dar conta da entronizacio que realiza da sua propria experiéncia. Sem pretender esta conclusio, de certo modo ela é confirmada pe- lo que Stiickrath observa, a partir do exame do ensaio que o autor dedicara a “Racines und Goethes {phigenie’: “O interesse de Jauss no autor como leitor, seja como leitor real ou imagindrio, testemunha sua orientacao centrada no au- tor (autorzentrische Ausrichtung)” (Stiickrath, J., 1979, 122). Nao competiria a esta introdugao levar adiante o programa de uma teo- ria da literatura que ja nao se queita estética. Muito menos se sugere que ela ja seja constituivel. O mais sensato é esperar que o exame acurado do que hoje se faz, nos melhores centros, venha a contribuir para a criacdo de algo que pou- cos acharao necessdrio. De todo modo, cabe neste contexto afirmar que tal procura n4o significa negar a literatura, se nao por si, pelo menos enquanto parte integrante de um discurso maior, o ficcional, um cardter de especificida- de. Tracemos pois um segundo circulo sobre a estética da recep¢ao, perguntan- do-nos agora, a partir dos textos de W. Iser e K. Stierle, em que ela jé ter con- tribuido para a caracterizac4o da literatura ou da ficcionalidade. Espera-se que © leitor entenda que esta indagaco esté integrada 4 anterior. 3. Os vazios e o leitor implicito O texto de W. Iser parte da consideragao sobre o papel desempenhado pe- la contingéncia nas interagGes humanas. Na interagéo a dois, a cada parceiro é imposstvel saber como est4 sendo exatamente recebido pelo outro. Na precisa formulagao de Laing: “Tua experiéncia de mim ¢ invisfvel a mim e minha ex- periéncia de ti ¢ invisivel a ti”. Deste lastro negativo, resultard contudo uma exi- géncia de ordem positiva: o hiato em que sempre corre cada ato de interacéo, a transparéncia muitua impossivel nos obriga 4 pratica cotidiana da interpretacio. A interpretagao, portanto, cobre os vazios contidos no espago que se forma en- we a afirmacao de um e a réplica do outro, entre pergunta e resposta. Passemos 8 rela¢ao texto-leitor. Embora nesta haja a diferenga acentuada de 0 leitor no conhecer a reagao do “parceiro”, ha, no entanto, um dado co- mum: também os textos — e nao sé os ficcionais — tampouco sao figuras ple- 50 nas, mas, 20 contrério, enunciados com vazios, que exigem do leitor o seu preenchimento. Este se realiza mediante a projegio do leitor. A comunicago entre 0 texto € o leitor fracassar4 quando tais projegdes se impuserem indepen- dentes do texto, fomentadas que serdo pela prépria fantasia ou pelas expectati- vas estereotipadas do leitor. Ao invés, a comunicagao de éxito dependerd de o texto forcar o leitor 4 mudanga de suas “representagdes projetivas” habituais. A existéncia dos vazios, presente em qualquer relacao humana e em qualquer tex- to (em minimo grau, nos textos altamente formalizados), permite, contudo, uma escala diferenciadora dos textos. Como o argumento serd depois repetido, formulo o minimo indispensével para a orientacio do leitor, Quando Iser ob- serva que a interagao texto-leitor fracassa quando este aciona apenas suas proje- g6es, deixando ao largo as possibilidades diversas fornecidas pelo prdprio texto, refere-se basicamente 20 que sucede na relagio com o texto ficcional. Nao é que a regra nao se aplique aos pragmiticos, sucede, contudo, que na situagao prag- mitica as expectativas do leitor podem ser chamadas de homogéneas quanto intengao autoral. Isso podemos notar com perfeico ao sairmos de uma socie- dade com que estamos familiarizados e passarmos para outra, relativamente es- tranha. Ao recebermos, por exemplo, no Brasil, uma carta-resposta pragmatica, informando-nos que tal produto, sobre o qual havlamos indagado, se encontra a venda em tal lugar, acrescentando-se porém que sua quantidade é limitada e © pagamento logo deve ser enviado, podemos prever que a rapidez sugerida nao deve ser tomada muito ao pé da letra. O membro desta comunidade estoca a interpretacao e, em princfpio, deve-se dar bem com ela. Ao passar para uma so- ciedade diversa, contudo, digamos para a sociedade alema, tende a entrar em inesperadas confusdes. Ao contrério, quando um europeu, recém-chegado ao Brasil, mal é apresentado a alguém e ouve 0 nosso “aparece Li em casa’, tende- rd entrar em situagdes embaracosas, pela nao homogeneidade de sua expecta- tiva pragmidtica com a intengo pragmética contida em nosso esterestipo. A partir daf, poderemos acrescentar: o prdprio do texto literdrio ¢ concentrar-se nos vazios comuns a todas as relagdes humanas, explorélos, torné-los sistema- ticos. Diante do texto ficcional, o leitor ¢ forgosamente convidado a se compor- tar como um estrangeiro, que a todo instante se pergunta se a formagio de sen- tido que esté fazendo é adequada a leitura que est cumprindo. S6é mediante esta condigéo, dird Iser, a assimetria entre texto e leitor poderd dar lugar “ao campo comum de uma situagao” comunicacional. Afirmar pois que o texto ficcional se localiza por depositar seu centro de gravidade nos vazios, significa que nele a in- 51 determinagéo se apresenta em méximo grau, muitas vezes préximo da desorga- nizacéo entrépica. O que vale também dizer, por sua familiaridade com a inde- terminagao, o texto ficcional possibilita uma multiplicidade de comunicagées. Ai, no entanto, surge um problema grave: perante esta multiplicidade, como declarar que algumas das interpretag6es sdo corretas e outras meros produtos de projecdo do leitor? Acercamo-nos pois da formulagio critica que, sob a citagéo de Gumbrecht, encontrévamos na parte anterior. Vejamos primeiro, com a cau- tela necesséria, a posicao de Iser. Para compreendermos sua postura, acompa- nhemos seu raciocinio desde antes de sua discussio com as teses de Ingarden, durante esta e depois dela. Antes da discussao: Iser enfatiza a necessidade de o texto ficcional conter “complexos de controle”, que orientem o processo da comunicagio. O préprio destes complexos € tanto orientar a leitura quanto exigir do leitor sair de sua “casa” e se prestar a uma vivéncia no “estrangeiro”; testar seu horizonté de ex- pectativas; por a prova sua capacidade de preencher o indeterminado com um determinavel — isto é, uma constituicao de sentido — nao idéntico ao que se- ria determinado, de acordo com seus prévios esquemas de ago. Mas isso nao significa que 0 texto se impée ao leitor, tornando secundaria a sua atividade? Como conciliar esta concepgao da textualidade literdria com a estética da re- cepso de Jauss, sob a qual o nome de Iser é freqiientemente posto? Quanto a primeira pergunta, 0 prdprio Iser responder que tais complexos de controle nao expulsam o leitor, muito ao contritio, exigem sua entrada: “Estes meios de controle (...) ndo podem ser compreendidos como entidades positivas inde- pendentes do proceso de comunicacio” (p. 89). “O que se cala, impulsiona 0 ato de constituigdo, ao mesmo tempo que este estimulo para a produtividade écontrolado pelo que foi dito, que muda, de sua parte, quando se revela o que fora calado” (p. 90). A resposta é provisdria e sera depois desdobrada. A segun- da pergunta, ao contrario, j4 nos permite uma contestag4o definitiva. Na ver- dade, as posigdes de Jauss ¢ Iser ndo s4o, nem nunca foram, totalmente hom6- Jogas. Ao passo que Jauss est interessado na recepedo da obra, na maneira como ela é (ou deveria set) recebida, Iser concentra-se no efeito (Wirkung) que cau- sa, 0 que vale dizer, na ponte que se estabelece entre um texto possuidor de tais propriedades —o texto literdrio, com sua énfase nos vazios, dotado pois de um horizonte aberto — ¢ 0 leitor. Com o primeiro, pensa-se de imediato no re- ceptor, com o segundo, ele s6 se cogita mediatamente. Nao é pois ocasional que, de Iser, possa partir uma concepsio do literdrio €, no caminho por ele am- 52 pesado, uma Concepc3, da Tecepeag ficcional (Stierle), enquanto a teori € Jauss antes Converge ara a Clerizacy Te p; cara tés categorias basicas “xperiéncia esté, —Poresjs, Uisthesjs, Catharsjs concernem 4 atividade do leitor, €nquanto a Primeira jg de um Autor em Jingo de itor, “Dos: obra que nés me J8 € definidg em ter esignamogs Por poresis Co es . mi metem, se bem 53 da modernidade. Nesta, Ptincipalmente se Pensamos na arte e ng literatura. temporaneas, nao Se realiza o ideal ingardiano da estruturagao harménic. suas camadas, de que deveria resultar o efeito Pois, a categoria da indeterminacao entra em uma camisa-de-forca, que Iser | tard de liberar: “Com seu conceito de Concretizacao, (Ingarden) chamou a at 40 para a estrutura de TeCepGao necesséria Para a obra, embora nao tensha pe Concretizacao & apenas a atualizacio dos elementos Potenciais da obra e nao interacgo entre texto e leitor” (p. 102-103). Vejamos POis 0 passo adiante lib, tado por Iser. icativa dos textos ficcionais ¢, como esta é realizada Por meio das determinacées formuladas NO texto, esta inde- qiientemente, a leitura, como um todo, exige a permanéncia da atengao do lei- tor isto é impede que, apés o choque inicial, se formasse uma fluéncia de good continuation, fluéncia prdpria aos textos pragmiticos e da literatura de consumo. Retorna, contudo, aia velha pergunta: se, com razo, a tese de Iser procura dar conta também da literatura contemporanea, se nesta a quantidade de vazios che- ga até a bloquear a leitura do especialista — exemplo clissico: o Finnegans de Joyce — como entio estabelecer critérios contra a recep¢4o puramente subjeti- va, arbitréria? Para Iset, a resposta est4 na estrutura formada pelos vazios ¢ suas negacées. Tal dupla caracteristica da estrutura textual provoca, no leitor, a neces- sidade da continua formacio de uma “figura de relevancia”, de um tema e seu contorno de horizonte, e a nao menos continua transformag4o noutras figuras de relevancia. Como 0 ensaio oferece abundantes exemplos, nao precisamos nos deter em sua explicagao. Basta-nos apontar para uma de suas passagens conclu- sivas: “As transformagGes provocadas pela interacZo entre tema ¢ horizonte esto intimamente ligadas com a mudanga de posi¢gao do vazio dentro do campo de referencia. Quando uma posigio se torna tematica, condicionada pela posigao marginal da outra, néo pode deixar de ocorrer um efeito de feed back do tema concebido sobre 0 vazio, que retroativamente modifica a influéncia modelado- ra do ponto de vista do leitor. (...) Como esta estrutura controla a atengao exi- gida do leitor, d4 muitas vezes a impressdo de ser este, pela mudanga de seu pon- to de vista, que auto-regula as perspectivas de sua observagao. Nesta impressao, se manifesta uma outra propriedade estrutural do vazio. Por ele, o “processo her- menéutico”, que transforma 0 tema realgado no comentétio interpretative do horizonte, recebe a caracteristica de uma estrutura que se auto-regula” (p. 128). Aestrutura do texto tem, portanto, um papel de regulacao da leitura, implicita- mente oferecendo os critérios de distingao entre a pura recepgao projetiva, isto a leitura condenada, ¢ a leitura constitutiva de um sentido apropriado. Aqui se encontra o calcanhar-de-Aquiles da teorizagao de Iser e mais, conforme a al- ternativa atrds formulada, 0 ponto critico da, genericamente falando, estética da recep¢ao. Pois é claro que esta disting4o supde um “implizite Leser”, cujo traba- Iho de reconstrucao sup6e em cena um leitor ideal. Este ponto nao passou des- percebido aos analistas de Iser. Bem mostrando um inegével mérito do ambien- te universitdrio alemAo, as criticas mais agudas a este resultado da teorizacio iseriana partiram, nao de adversdrios, mas de pesquisadores integrados na mes- ma corrente, K. Stierle (no texto aqui incluido) e H. U. Gumbrecht. Sintetize- mo-las brevemente. 55 Para Stierle, “a teoria da recepcao de Iser é uma teoria das varidveis da re- cep¢ao, cujas constantes se encontram apenas no lado do préprio texto. Em Iser, as Constantes S40 sempre € apenas constantes do texto, que tém a funciio de ge- rar as varidveis da recep¢ao” (p. 164). O que vale dizer, Iser ainda nao dé conta propriamente da dinamica da situagao texto-leitor, porquanto toma o pélo tex- tual como um pélo revestido de constancia. Neste sentido, ainda se mantém preso & tradi¢ao imanentista. Desenvolvendo melhor o que dissemos a propé- sito de sua relagao com Ingarden, a diferenga bdsica entre as duas teorizagbes se funda na diversidade dos modelos de histéria da arte que tomam como hori- zonte. Reagindo favoravelmente ao impacto da literatura contemporanea, Iser € levado a corrigir as limitagoes de Ingarden, a revisar portanto a sua teoria, sem, propriamente sair de seus parametros. Esta critica, como tampouco a seguinte, nao diminui o mérito de sua reflexao. Na verdade, deixemos bem claro,.Wolf- gang Iser é, entre os tedricos alemaes vivos, 0 tedrico da literatura mais conse- qiiente ¢ o autor da obra mais estimulante. Quanto & critica detalhada de Gumbrecht, sou obrigado a um maior es- forgo de sintese. Admitindo que a estética da recep¢io dependa, para sua pes- quisa, de conceitos meta-histéricos — a exemplo da categoria de estrutura, de- senvolvida por Iser — Gumbrecht contudo se pergunta se a colocagao iseriana € capaz de compreender a diversidade de formagies de sentido emprestada a um mesmo texto: “Pode-se realmente derivar do modelo iseriano do efeito estético estruturas de texto, meta-historicamente constantes, perante as quais, como pa- no de fundo, se tornaria possivel uma andlise cientifica (porquanto intersubje- tivamente repetivel) das diferentes doagses de sentido, passadas e futuras, quan- to a certos textos?” (Gumbrecht, H. U., 1977b, 532). A pergunta tem, de imediato, um alcance prdtico: “... podemos, de fato, partir da premissa de que todos os leitores imagindveis concretizam determinados constituintes de modo idéntico, se considerarmos os atos de apreensio e as sinteses passivas como as fa- ses transcendentes da aco receptiva?” (idem, ibidem). Desta indagagao, deriva a contestagao cabal do autor: “Segue-se daf que, em termos bem gerais, pode- mos atribuir 4 necessidade de coeréncia, enquanto motor (Movens) de fases di- ferentes do ato da leitura, 0 estatuto de um constituinte transcendental. Mas es- ta necessidade de coeréncia adquire em épocas diferentes ¢, a0 que parece, também em grupos sociais diferentes, formas distintas. Justamente por isso é impossivel a especificacdo de um modelo de leitor, transcendentemente inten- cionado, a ponto de se poder derivar, de sua aplicagao aos textos, constantes me- 56 tahistéricas da doagao de sentido” (idem, 533). Deste exame, o analista ainda extrai duas conclusées que séo impor:antes nao sé do ponto de vista das teses aqui defendidas, como do ponto de vista da posstvel recepgao das teses de Iser no Brasil: 1) 0 modelo de texto do autor “reduz a pergunta pela fungao social daqueles textos cuja oferta de sentido nao se coloca em uma telago de negacao quanto ao saber internalizado do leitor & condi¢ao de uma pergunta vazia” (- idem, 534). Ou seja, actescentemos por nossa propria conta, de tal modo a li- teratura da modernidade, tendo Joyce e Beckeit por cume, é 0 padrao do obje- to literétio, para Iset, que a tinica funcio social reconhecida para o texto literdrio éa de questionar o saber prévio do leitor. Como jé diziamos na apreciagao so- bre Jauss, assim resulta porque, como o analista nao sente a necessidade de des- tacar a sua teorizacio da experiéncia estética, a conseqiiéncia forgosa é seu esfor- go reflexivo hipostasiar seu momento hist6rico, realgar os produtos que ele préprio valoriza, conceber, em suma, como universal o que haveria de ser visto como produto da residéncia na histéria. Mas seria posstvel algo diverso? Esta possibilidade nao existiria caso estivéssemos pensando numa teorizagio que vis- se a Terra a pattir de Saturno, isto é que pretendesse ver o histérico de fora do histérico. Mas, assim como € possivel a alguns contemporaneos de Iser revela- rem as razdes dos limites de sua teorizagio, também € possivel uma estratégia tedrico-analftica que nao recaia na estetizacio da literatura. Uma destas possibi- lidades poderd decorrer de nos darmos conta do seguinte quadro: a) a idéia de uma constante textualmente inscrita implica a presenga de um Leitor implicito; b) ele, por certo, nao é qualquer um, mas apenas aquele leitor capaz de resgatar o significado da obra de acordo com um horizonte de exigéncias e expectativas historicamente vinculado; c) horizonte de expectativas ¢ exigéncias semelhantes ao do préprio autor de Der implizite Leser; d) este leitor nao é absolutamente, um “tipo ideal”, mas bem localizAvel. Pertence ao agrupamento culto de uma classe, a burguesia. Pertence mesmo a um bloco: a burguesia do Ocidente de- senvolvido. Destes passos, infiro que a separacao entre experiéncia estética e teo- ria baseada naquela experiéncia é uma necessidade para a descolonizagao daque- les que nfo se queiram, culturalmente, curopeicéntricos. Sem pensar exatamente nestes termos, é o que, entretanto, se infere da segunda observacgao de Gumbrecht: 2) “... para a aplicagéo da presente teoria do efeito na filologia cléssica, na medievalistica e na pesquisa das literaturas ndo européias ¢ impor- tante conhecer os limites de sua validade” (Gumbrecht, H. U., 1977b, 533). In- corporando esta adverténcia 4 minha luta contra 0 circulo ideologicamente sa- 57 turado da estética, nao pretendo negas, fora de qualquer necessidade de corte- sia, a importincia da caracterizacio da literatura pela presenca dos vazios. Ao contritio, esta é uma contribuicao fundamental — embora a ela ja se tenha che- gado por outras vias, como a da psicandlise, a do estruturalismo lévi-straussia- no. O contributo, no entanto, seca quando interpretado 2 luz de um padrao li- terdrio, que, recebido por uma experiéncia estética — como é necewsdrio que seja — Passa, sem a devida cautela, para 0 quadro da teoria ¢ af se pretende meta- histérico. Retornando pois ao argumento com que encerramos a parte anterior, acrescentemos que esta descolagem dificilmente se cumprird no contexto euro- peu ¢, possivelmente, se adiard enquanto 0 “outro mundo” nfo se capacitar pa- ta, aprendendo com os europeus, empreender a sua critica, aqui pouco prova- vel. Neste momento, em vista da problemitica especifica da estética da Tecepcdo, antevejo uma estratégia possfvel: uma maneira talvez de escaparmos do circulo da estética consista na andlise das diversas constituigdes de sentido de uma mesma obra, realizadas tanto sincrénica quanto diacronicamente, por gru- pos ¢ classes sociais distintas. Isso poderia ser feito ou com 0 propésito de con- wibuir para uma histéria das mentalidades — sincrénica e nao sé diacronica- mente superpostas — ou com o propésito de verificar se a literatura tem uma identidade interclasses ou apenas intraclasse burguesa. No caso de ser a segun- da hipstese a confirmada, seria 0 caso de testar se ela & substituivel por outra modalidade do discurso ficcional. Com isso, voltamos ao acompanhamento dos textos, destacando a caracterizacao do ficcional por Stierle. 3a. Os vazios e o discurso ficcional Em seu ensaio, 0 autor propée-se lancar as bases de uma teoria formal da recepgao de textos ficcionais. Parece-lhe pois indispensdvel ultrapassar uma recep¢ao de base puramente material, isto é, baseada na faticidade documen- tavel da recepeao, para diferencar o perfil préprio da recepgao ficcional: “A pergunta pela especificidade da recep¢ao do texto ficcional é, antes de tudo, a pergunta pela especificidade de sua constituigao” (p. 136). Procura-se assim, implicitamente, preencher uma lacuna da reflexao iseriana. Ou seja, em lugar de se tomar © texto como uma constante, que provocaria a variabilidade de tespostas, busca-se revelar a constancia no outro polo, de modo que se tenha condig6es de descrever melhor a interacio ficcional. 58 Stierle comeca por distinguir entre recepgao pragmitica e ficcional. Co- mo cada uma delas supde um texto de mesma ordem, parte das caracterizacGes destes. O texto pragmtico se especifica por apresentar um estado de fato (Sach- fage) — numa traducio livre, uma interpretacdo que oferece um modo de orientagao quanto a uma situagao dada (ou materialidade de fatos, Sachve- rhalt), Esta interpretacao diz-se elementar porque o texto se dispde como tram- polim para o plano da ago. Para que isso se dé é, no entanto, necessério que 0 texto pragindtico esteja de tal modo “programado” que o seu usuério possa recebé-lo em consonancia com um esguema de agao prévio e partilhado pelos outros membros da comunidade. Noutras palavras, no texto pragmatico nao hd uma relagao direta entre estado de fato e materialidade dos fatos, ence a in- terpretacao que se faz de uma situacio ¢ esta situacao do real. Entre um e ou- to, permitindo a sua articulagdo, deposita-se o saber social, sob a forma de um esquema orientador da acao. Assim, por exemplo, quando entro em um 6ni- bus e vejo certa figura atrds da roleta, nao posso imaginar que se trata de um passageiro especial; o saber social previamente me diz que se trata do cobrador. Do mesmo modo, na literatura de consumo, uma loura glamurosa, acompa- nhada por um tipo meio cafajeste, orienta minha interpretacao, tornando pre- visivel seu enleio em algum negécio escusado, embora passivel de ser recupe- rada pela paixao que sente pelo heréi. Se bem interpreto, estes esteredtipos sio as figuras de relevancia do texto pragmatico. Esta descrigdo, que tornamos ex- tremamente suméria, nos permite agora verificar 0 relacionamento entre o produtor € o receptor em tais textos. O texto Pragmatico é caracterizado pelo fato de que o produtor eo receptor, previamente conhecedores do saber social armazenado como esquema de ago, prevéem os seus respectivos papéis. O produtor sabe o que dele espera o receptor ¢ este, 0 que aquele lhe deve ofere- cer. Neste sentido, Stierle escreve: “Visando ao campo da aco, os textos prag- miticos se orientam para além de si mesmos” (p. 144). Ao passarmos para o campo ficcional, os termos basicos da descrigao per- manecem, apenas se complexificando e mudando a sua meta, pois jé nao se pode afirmar que a ficcao remeta, de imediato, ao campo da ac4o. Como pro- va desta manutengao, note-se o papel do género. Ele é 0 equivalente do esque- ma de aco, ou, numa terminologia mais conhecida, a norma que orienta a lei- tura, mostrando o grau de adequagao ou rebeldia da obra que est4 sendo lida. Mas, se o género funciona como o mediador entre o estado de fato e a mate- tialidade dos fatos, so estes que se metamorfoseiam, pois a materialidade dos 59 fatos j4 nao poderia ser traduzida por “uma situagao dada”. E por isso que “a ficgdo nao se deixa cortigir por meio de um conhecimento minucioso da ma- terialidade dos fatos a que se refere. (...) Os textos ficcionais sao, no sentido proprio, textos de fic¢do apenas quando se possa contar com a possibilidade de um desvio do dado, desvio na verdade nio sujeito a corre¢io, mas apenas in- terpretavel ou criticavel” (p. 147). “A relacao do estado de fato e a materialida- de dos fatos ndo tém, como no texto pragmitico, cardter de compromisso. O estado de fato do texto, ao contrario, é atribuido ao equivalente ficcional de uma materialidade dos fatos” (p. 147). Até aqui, embora esteja clara a riqueza da indagacdo, poder-se-ia dizer que ela nao apresenta grandes novidades, em face da teorizacio de Iset. O texto ganha seu contorno maior quando arricula esta diferenciacio entre os textos ¢ a sua efetiva recepcao. O ensaio se to:naria convencional se agora combinasse a cada um das duas formas, a forma de re- cep¢io correspondente. Mas 0 autor logo adverte: “A diferenga entre os estatu- tos dos discursos ficcional ¢ pragmatico nao se mostra necessariamente na re- cepgio efetiva dos textos ficcionais” (p. 148). De fato, entre as recepgao pragmitica e a ficcional, existe a que Stierle chama de quase pragmitica: “Na recepgdo quase pragmatica, o texto ficcional é ultrapassado em direcao a uma ilusdo extratextual, despertada no leitor pelo texto. A ilusdo como resultado da recep¢ao quase pragmatica dos textos ficcionais é uma extratextualidade, com- pardvel a da recepcao pragmitica, que, ultrapassado o texto, se volta para o pré- prio campo de acéo” (p. 148). Mas a formulacdo deste elemento ainda seria previstvel se 0 autor a tomasse como uma tecepgao inevitavelmente errénea do ficcional. Ao contrério, a formagio de ilusdo, se bem que prépria ao texto qua- se pragmitico, é uma etapa necessdria, mas ndo indispensdvel — Mallarmé, por exemplo, diré 0 autor, a cofbe — para a recep¢ao ficcional. A complexida- de do ficcional, portanto, no se encontra necessariamente em ser uma leitura mais dificil, mas no fato de que ela pode receber uma variedade de leituras, des- de a ingénua, pragmaticamente orientada — a exemplo de algum pai extremo- so que desse o Effi Briest de Fontane, esta Bovary alem, a sua filha, para acau- telé-la contra futuros descaminhos... — passando pela quase pragmatica até a propriamente ficcional. Embora 0 autor no explore este filo, quase concen- trando a leitura quase pragmatica a recep¢ao da literatura de consumo, parece- me estrategicamente ttil considerar, contra a ideologia criada pela literatura contemporanea, sia fungio pedagégico-preparatoria. Pois o que nao pode ser vivenciado como iluséo (ou fantasia), o que néo permite a identificagdo, mes- 60 mo ingénua, do leitor, raramente passar4 para uma forma mais elevada de re- cepgao. Daf a raridade dos leitores dos romances de Beckett, de Un Coup de dés ou do tiltimo Joyce. Dizer a sociedade de consumo culpada por este esta- do, parece-me um esteticismo disfarcado, Embora 0 autor nao siga este cami ho, recorré-lo é mais interessante do que ouvir os apelos 2 volta da funcao co- municativa da literatura. Como Stierle apresenta neste ensaio uma linguagem extremamente livre, a ponto de parecer no o ter antes bem estruturado, no espanta que torne, adian- te, A diferenciagao dos textos, ndo mais se referindo 4 oposigao entre textos prag- miticos e ficcionais. A nova divisio é, ao mesmo tempo, mais ampla e mais ade- quada a caracterizacao doutro aspecto do ficcional. Referimo-nos aos trés modos de uso da linguagem: o uso referencial, a que corresponde o texto pragmitico, 0 uso auto-referencial e o pscudo-referencial. Estamos acostumados a ver o texto li- terério-inclufdo na segunda modalidade. E exatamente para nao se confundir com as posigées de um R. Jakobson que Stierle introduz o terceiro tipo. O pré- ptio do uso auto-referencial consiste em que nele a linguagem é controlada, de modo quase absoluto, pela rede de conceitos que elabora e/ou de que se alimen- ta. O discurso auto-referencial mais comum é 0 texto argumentativo 0 seu pon- to-limite, as chamadas linguagens “artificiais”, totalmente formalizadas. A ficcZo €0 caso do uso pseudo-referencial, pois neste “as condigdes de referéncias nao se- 140 simplesmente assumidas como dados extratextuais, mas sero produzidas pe- lo proprio texto” (p. 153). O que vale dizer, o texto no apresenta um referente externo, nao concerne A realidade como tal; esta se apresenta enquanto interna- lizada pelo texto. Se, assim, a fico passa a néo ter a direcionalidade do texto re- ferencial, nem pode assumir a universalidade presumida pelo texto auto-referen- cial, ganha, em troca, uma possibilidade de experimentagio, nao previsivel ante os dois outros usos: “... aqui se apresentam, de forma experimental, possibilida- des de uso dos conceitos e, com isso, possibilidades de organizacao dos esquemas para a organizacao da experiéncia’ (p. 154). Noutras palavras, o texto pragmati- co é voltado para uma acio prevista, o texto argumentative — pensemos no ientifico — proporciona esquemas gerais de organizagao da experiéncia, abs- traindo-se porém da situacdo especifica de seu uso. O texto pseudo-referencial, ao contrério, permite ao leitor uma manipulacao nova seja dos conceitos, seja das experiéncias, facultando-lhe assim oportunidades de experiéncias nao previstas nem pela ciéncia, nem pela pragmitica. Vejo neste ponto um salto, nao sé tedri- Co, quanto as consideragées de Iser. Ao passo que, para este, a tinica funcao so- 61 cial que os textos podem desempenhar é a fungéo de negar um saber prévio, a teflexdo de Stierle nos estimula a ver um elenco de possibilidades: 0 texto ficcio- nal, mesmo no Ambito da recepsio mais elevada, possibilita fungGes nao s6 ne- gadoras, mas também problematizadoras, de tomada de consciéncia ou de au- mento de consciéncia. (Note-se apenas a validade do comentario j4 feito a propésito de Jauss: a determinagao da funcao realizada ou a realizar nao depen- deré apenas da experiéncia estética, nem cla serd o vetor mais importante nesta determinacdo,) Infelizmente, a pressa com que este ensaio parece ter sido escrito, a despreocupacao em definir seus conceitos (contra este defeito, cf. algumas das notas de Peter Naumann), para nao falar de certa empostagio académica que nos lembra a frase de W. Mills — “To overcome the academic prose you have first to. overcome the academic pase” (Mills, W,, 1959, 240) — prejudicam de muito a comunicacao deste ensaio ¢ o reconhecimento de seu inequivoco valor. 4. Consideragdo final: 0 ato e a agao O quarto ¢ ultimo ensaio desta selegao nao foi considerado, nesta intro- dco, porque, tratando basicamente da metodologia da pesquisa da modali- dade da estética da recepgdo que pratica, nao poderia ser bem analisado, se nao em confronto com uma anilise concreta. Ao leitor interessado, resta 0 recurso de inteirar-se de dois livros recentes do autor (Gumbrecht, H. U., 1978a, 1978b). Na falta desta andlise, e como tanto K. Stierle quanto H. U. Gum- brecht se referem com freqiiéncia a teoria da agao de A. Schiitz,? pareceu-me conveniente introduzir um pequeno comentitio a respeito. Em passagem decisiva de Der sinnhafte Aufbau, Schiiwz escreve: “O que é projetado (“pré-lembrado”, “vorerinnert”) nao €0 ato (Handeln) realizado pas- so a paso, mas sim a aio (Handlung), a “meta” do ato, pela qual 0 ato deve ser realizado” (Schiitz, A., 1932, 58). A medida que © socidlogo assim estabelece uma hierarquia entre aco e ato ¢ 4 medida que os autores citados nele se apdiam para, de certo modo, romper a clausura do literdrio, trazendo-o para o mundo dda pris, vale a pena iniciar este comentério pelo destaque da observagao que R. Bubner apresenta sobre o pensamento ali enunciado: “A medida que 0 ana- 3 Como a obra de A. Schiitz ainda é pouco conhecida entre nés, recomenda-se, como leitura introdutoria, 0 ensaio que Ihe dedicou Aron Gurwitsch: “Common sense world as s0- cial reality”, in Social Research, n. 29, 1962, p. 50-72. 62 lista deve para tal (para distinguir entre 0 “ato consciente” ¢ a “conduta incons- ciente”, na vida didria) se ater a estados de consciéncia, impée-se a conclusio de ue 0 ato (Handeln) adquire consciéncia e certeza evidente de seu sentido (Sin- nhaffigkeit) apenas quando ainda no se iniciou, mas ainda se encontra no es- rdgio de projeto (Entwurf), enquanto antecipacao fantasiada do fim da agao (Handlungsabschluss), ou quando jé est no fim e se permite uma retrospectiva teflexiva sobre seu resultado. Noutras palavras, 0 ato (Handeln) seria ato, no sen- tido mais genuino, somente quando nao se age e quando, em vez disso, a cons- ciéncia tudo ilumina, antes ou depois da realizagdo. Que o ato se perca, pois, no lusco-fusco destes dois momentos, nao pode ser um resultado desejavel da ana- lise” (Bubner, R., 1976, 28-29). Tampouco parece desejével que a preocupacao com a acao verbal dos textos ficcionais nao tenha uma palavra a dizer sobre o papel que 0 inconsciente desempenha na caracteriza¢4o dos textos ficcionais co- mo estratégias de articulagao dos vazios. Estranhamente, 0 tinico Freud que a estética da recep¢ao patece haver incorporado é 0 dos comentarios marginais & pintura ¢ a literatura — cf. 1° texto de Jauss. Ora, a reconsideragao do Freud mais “sério” parece inestimdvel para uma teoria da literatura que ja no mais se delicie com a subversio do poético. Isso para nfo falar de uma teoria que, se quue- rendo do ficcional — isto é, que nao 0 tome apenas como um elemento a inte- grar na historiografia social —, jé néo se limite a0 circuito fechado de experién- cia e andlise estéticas. Bochum, fevereiro de 1979 63 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Barck, Karlheinz: 1975 “Zur Kritik des Rezeptionsproblems in biirgerlichen Literatura ffa- sungen” (“Para a critica do problema da recepgio nas concep;Ges burguesas da literatura’), in Gesellschaft — Literatur — Leser. Litera- turrezeption in theoretischer Sicht (Sociedade — Literatura — Leitura, Abordagem tebrica da recepeao da literatura), Aufbau — Verlag, Ber- lin und Weimar 1975. Bubner, Riidiger: 1976 Handlung, Sprache und Vernunft (Acdo, linguagem e razdo), “ubr- kamp Verlag, Frankfurt a. M. Gumbrecht, Hans Ulrich: 1975 “Konsequenzen der Rezeptionsasthetik oder Literaturwissenschaft ais Kommunikationssoziologie” (“Conseqiiéncias da estética da recepsio ow a ciéncia da literatura como sociologia da comunicagao”), in Poe- tica, t. 7, n. 3-4, Verlag B. R. Griiner, Amsterdam. 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