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_identidade EET LAT TROT narrativa Para Ricoeur, a narragao de si representa a via privilegiada para o exame reflexivo da vida es avi. RICOEUR NAO E UM FScIUTOR com talen- to literirio, nem prosa exuberante, Muito pelo contririo, seu texto tem a forma, jus- tamente, de uni comentirio de texto — um tipo de procducao literiria que talvez, esteja inserido na tradigio da hermengutica relt- ios € filoséfica, Seu estilo € 0 de um paciente ¢ drido trabalho de aniilise, com- preensao interpretacd autores, ¢ & s6 dessa maneira que Ricoeur, avancando como se empreendesse uma costura tortuosa, formula seu pensamento proprio ¢ original, @ Essa peculiar edeliea po. oy 10 de id€ias + Anogio que abordames neste argo, idenidade ara, eondensa cn leitores. Ela chegou até mesmo a fevantar — sigrande pute dos temas que ocuparam Paul Ricoeur durante 2 obra de Ricoeur nto fosse mais do que todaastavida ecm const, portant, um uma apropriagao elegante do pensamen- —Jement privegiado da forma dial6gica de produ nem sempre foi bem recebida por seus ssuspeitas em alguns intelectuais, como se to alheio, Na verdade, © filésofo francés de iiroduefo a0 sex 3 uineso conceit = soube de forma brilhante colocar-se na Tamas como ode E confluéncia de tradigdes que se ignoravam — l/ hermentues de i Reet ie sso, enporaiade, 2 mutwamente, realizando, por meio do Seu narmtidae, cmtas 2 sexto, uma colaboragdo entre elas de outra mbm te Hoe | texto, una colaboracto entre elas de outa Ee 2 forma impossivel. aniulados ees © conceito de Wentidade narrativa des ponta como uma formulagao tardia da filosofia ricoeuriana; em contrapautida, sua gracual gestago € reconhecivel por quase (oda a sua obra. Nessa medida, condensi em si antigas conviegdes. © referencias mais recentes do seu pensa~ mento, constituinds, para o leitor que procura captar a coeréncia da obra, Fecunda fonte de reflexao, ‘Uma das vertentes da nogao de iden- tidade nazrativa abrign © que Ricoeur considera “uma cara e antiga conviega © diz respeito a0 reconhecimento da possibilidade que uma pessoa tem de aleangar uma compreensio de si mais auiéntica e verdadeirs, uma identidae de que nao se reduz a idéia de ego ‘como aurodesconhecimento imaginario € ilusto narcisistica, Essa conviecto 86 enconta uma determi completa quando, na conclusio de sua Gltima obra de f6lego, Ricoeur vincula 4 possivel realizagio desse self mais verdadeito & necessidade da passagem pela mediagio da fungo narrativa, a, narragio de si representa para o pen- sador francés a via privilegiada para 0 ‘exame seflexivo da vida e, nessa medi- da, seu exercicio abre caminho para uma identidade que € superagto da ilusto e do auto-engano. No entanto, Ricoeur s6 aleanca uma demonstragio mais sélida dos seus pro positos depois de intmeros desvios por boa parte da cultura ocidental, no lastro de uma ampla e sélida enudiglo, Aliss, escolha conseiente, em matéria de pen: samento, dessa viz longa da mediagio pelas obras da cultura € para ele uma ‘questo de método. Tentaremos, dentro de nossa limitagio de espago, percorrer alguns desses desvios, ‘Todo 0 eslorgo de Ricoeur como pensa- dor é mobilizado pela tarefa de constraie ‘uma filosofia reflexiva e contemporiinea e nessa medida, ele é levado com freqdén- cia 2 repisar criticamente os passos que levaram Descates 3 formulacio do cogito ergo sum, do penso, logo existo, A preo- cupacio de Ricoeur nio ¢ tanto contesar (valor de certeza absoluta do "eu penso” OTD REMBRANDT, iméteoo sua avd, 1848. ‘do que ccatesiano, mas, muito mais, a de avaliar fo aleance e a significagio desse eu que se descobre no ato de pensar Como se sabe, a busca de um fundamento wkimo para ‘as ciéncias leva Descartes a aplica- Gio do método da davida hiperbélica, a0 cabo da qual ele € obrigaco a seconhecer ‘que 0 eu que poe tudo em divide, para duvidar precisa [No Ambito da temstica da identidade narativa, © que interessa a Ricoeur € questionar quem € esse eu que pensa © 0 que significa conhecé-lo, Somos fagui remescos ao mais antigo principio do ensinamento socritico: conhecer & si ‘mesmo. A questio para Ricoeur 6, justa- ‘mente, saber como nesse contexto deve- ‘mos entender nogo de conlecimento e, ‘em especial, se esse *si-mesmno" pode ser redo 2 intuigio imediata do eu carte- Siano presente no “eu penso". Responder 2 pergunta do que significa conhecer no caso do *simesmo" significa adentae rno campo mais imporante da filosofia ‘moderna inaugurada por Heidegger, refe- nei incontorndvel para Ricoeur, 6 transmilida pela inguager, assim mos da histirla quo nos anteedo o quo dé sonido a nossa chogada nesta vida HERMENTUTICA DO Descartes pretendeu rechagar, com exercicio da divida, toda a’ tradigao filoséfica, a fim de marcar um ponto zero da certeza a patti do qual pudesse cerguer todo @ edifcio do conhecimen- fo. Ora, Ricoeur incorpora a critica heideggeriana 20 método cartesiano, critica esta que desconstréi a pretense de radicalidade da divida cantesiana, ‘mostrando que ela permanece inseri- da na tadiglo mecafisica da distinglo sujeito-objeto e, portanto, da idéia de conhecimento como apreensto objeti- va. Assim, Ricoeur, seguindo os passos de Heidegger e Gadamer, afirma que as filesofias do cogito so tolhidas pelo preconceito cientifcista, © mostram-se incapazes de esclarecer © que significa conhecer quando © visido € 0 “si mesmo” © aio um objeto toxalmente dlistinto do sujeito, Se atentarmos para 0 fato de que, nna proposicio "conhecer a si mesmo’ © conhecedor © 0 conhecido sio ambos 0 “si mesmo, a separicio sujeko-objeto cai por terra, € com ela a possibilidade para as ciéncias huma- pas de se verem como integrantes do campo de problemas compreendlido na chamada epistemologia. Dito de outra forma, as questées relativas a0 método segundo o qual um sujeito poderia de forma segura conhecer um objeto distinto dele, isto é, aquilo que a filo sofia tradicional chama *o problema do conhecimento’, 40 podem servir de parimetro para as cigneias do espitito, pois, neste caso, € 0 si-mesmo que se sutecompreende, Por fora do método que tudo aniquilow, © sujeito que Descartes. nos egou € desencarnado ¢ a-historico. ‘Quem nio quer, como Descartes, con- siderar nem minimamente como vilido nada que Ihe tenha chegado pela tra- diglo, nto tem outro remédio sendo colocar-se metodologicamente fora do tempo e do espago. Mas, se nossa pre- ocupagao deixa de ser a de encontrar lum inicio absolute para as ciéncias © passa a ser a de conhecer quem € esse ‘eu que se pensa”, somos obrigados a novainente inserilo no fluxo da hist6- ria na qual esse “eu cotidianamente vive. Ora, a tridicio nos é transmitida pela linguagem, assim como tudo que Ssabemos di hist6rla que nos antece- de e que da sentido nossa chegada nesta incontornvel condiclo terrestre. Em tais condi¢des, encontramo-nos jogados sempre in medias res, no meio das coisas ~ © primeira dessas coisas € sem davida a linguagem, da qual prendemos quem somos. Assim, 0 ¢30 ‘cogito caresiano se redescobre como historicidade indissoctivel do pr6prio meio de linguagem no qual vive. ‘Temos, entdo, uma linha de transfor magio que nos faz mudar de campo: se 0 skmesmo linguagem, conhecer significa aqui compreender ¢, para compreender, & preciso interprets. & por essa razt0 que Ricoeur define 0 Ambito de quesiées levantadas pela « ientidade nazeativa como uma herme- ngutica do si-mesmo, wow mentecerebeo.com. be mbito da tem da identidade na ir pretend eut que pense significa conhecé-lo SIGNOS E SIMBOLOS Trata-se, como dito acima, de ir um pouco além da simples exaliagio ou hhumilnagio do ego cagito (que se apreende diretamente como certeza no fexercicio mesmo da duvida). Ricoeur mio nega que esta seja uma verdade, apenas observa que € Go vA quanto impossivel de ultrapassar. Eu penso, ‘eu existo, existo enquanto penso. Para chuvidar € preciso existic Essa € a verda de primeira do ego cogita, do eu penso ccartesiano, Mas, se permanecermos res- fos a intuigdo imediata da existénc do eu, ficaremos imobilizados numa vverdade tio cesta quanto vazia, pois ela se desfaz assim que nos perguntamos quem € esse sujeilo que existe como cconsciéncia de si. A panic do momento fem que 0 ego passa no campo reflexi- vv, aquela verdade primeira jf ndo tem ‘nada 0 que ensinat ‘A pergunia & como pode 0 ego consciente conhecer a si mesmo? Para que o siemesmo possa retornar a si dee forma acrescida, com ganho de conhe: » 40 ponto de part ‘nas diz Ricoeur, a op¢i0 da via curta de uma analitica direta, $6 pelo outro, pela alteridade, ou, mais precisamente, pela dalética do mesmo € do outro, © sujeito so existe inserido rio “mundo da vida” (segundo 0 fatmose conceito de Edmund Husserl),“enseda- do nas histérias que os outros contain fe contaram a seu respeito” {para usar uma formulagio do filésofo © jurist: alemao Wilhelm Schapp), da_mesm: forma © ego s6 se sabe mediante suas expressées, seus a10s, suas obras, Assim, para Ricoeur, 0 sujeito 86 pode cchegar @ si mesmo através da anilise das préprias obras, mediante a interpr tagio dos sinais de sua existéncia, ow ainda, pela reflexdo critica sobre seus alos @ expressces, yma perceber 0 aleance de tis cimento em selae a, nao exist aberta a via longa, a via do desvio deserigbes, ¢ preciso ter em mente 0 quie fundamental é a nogio de lingua. ‘gem como mediagio total do mundo hhumano, A linguagem € constituinte do sujeito, Todas essas frmulas con- vergem para reforcar © que afirmamos PRESENCA DO OUTRO E INTERPRETACAG 53 scima, « saber, que a identidade em ‘questi no conceito de identidade mar- rativa € conhecimento entenclido como interpretaglo; Ricoeur expressa-se ccom muita chireza, a esse respeito, ma seguinte passageny “A afirmacio de ser, ‘0 descjo € 0 esforco de exist que me constitui, encontra pa interpretagao clos signos o caminho longo da tomads de consciéneit”, Ou ainda: "Compreender ‘© mundo dos signos € © meio de se compreendery 0 universo simbélico & (© meio da auto-explicacio; com efeito, no haveria mais problemas de sentido se 08 signos niio fossem a mediagi0, 0 ‘medium gragas a0 qual um existente hhumano busca se situar, se projetar & se compreender”. Ess €, pols, & vid Tonga, "© cogito mediatizado por todo 0 tuniverso das signos’. NARRATIVIDAD! Poxlemos ver, cada ver mais claramen- te, ao longo da obri de Paul Ricoeur, de que forma seu pensamento vai dlesgarrando da nogio de um eu intudo, pponfual e imeditamente a moda carte Siana, para pouco pouco concentra se na nocdo de sujeito como simesino, jst €, como reflexividade © historic 54 MENTE, CERERO & FILOSOFIA [ALEXANDRE WA BATALHA DE ISSUS CONTRA DARIO 1, REI DOS PERSAS. Dotal de st uma logdohlstrica, eompardvel auolasblogratia dos grandes homens na dade, sso implica que, no caminho de alcangar uma identidade mais auténtica, mais um desvlo se torn necessirio, & dessa ver por aquelas correntes que Ricoeur denomina “hermenéuticas da sauspeita”, S20 aquelas disciplinas, como (© marsismo © a psicandlise, que defi- nem ego mo como certezs, mas como engano. Marx, Freud e Nietzsche, fos *mestres da suspeita”, desenvolvem ormulagoes que se contrapdem a uma hermenéutica da “revelagio” ow apre ensio do sentide, No marxismo, por exemplo, @ axtica da ideologia como superestrutura e alienagao significa que tama visio de mundo é muito m: deformagio que atende a inter de determinada classe social € nao um conhecimento objetivo da realidade, Da ‘mesa forma o trabalho da psicandlise, tal como 0 entendia Freud, constitu um esforea que visa inconsciente ztravés da decfracio dos conhecer 0 sentido simbolos defornados pela censura, «nix ‘cos capazes de atingir a consciéneia Mais uma vez, Ricoeur reforca a necessidudde de encarar avis longs, iso & 0 desvio pela critica reflexiva, para retirar a consciéncia do engano conduzi-lt 0 Si mesmo mais proprio. Sobressi o gra de complesidade a que somos levados quando, em wer de fear- ‘mos reste 8 certezt medias © vezia do eu do ego cogito, determinamo-nos 3 tencarar com seriedkde a resposta 1 per faanta quem posta ao cogito, Quem fea que pens, que david, que existe? A via longa para responder a tal pergunta implica que © sujeito- preciss omega 4 arrar, _ contar sua hist6ria Sabemos dle manciea iawitiva que a vie de uma pesson tornsese compreensivel quando nos inteinimos ¢his historias conta 44 set respelto, F espontanes mente também, aplicimos configura (des narrativas a ekts (drama, romance, comédi, ee) 1 hisiéria prolong-se entre nas cimeato © morte, mas, na verdside, 10 Se inieia nein se completa em enuf dessen dos pontos. Noss hist inci § ardow outros, na qt Fiurmos como imagem, com peronagem no dese dios umros. nosow ph € ANCES, | antes mesmo «lo naseimento. Na outta § Dont, © projeto existencial (como se = expressiva Sartre, pouco discutide por Ricoeur) € inuesbado, sempre ainda = por coneluit, nem que Sea apenas pelo Faro dle que a Finguigem est aberta 3 virios sentidos, e un eventual bidgrafo que procurasse totalizar a vida de um hhomem, seria participe e constituider do sentido mesmo dessa vida, prolongando assim sua historia E pata fazer jus a essa fenomenolo- ute Ricoeur, usando da terminolo- gia inlocuzida pelo historiador Reinhart Kose se a0 tempo dt vida como ums dialética entre “espago de hhorizante de espera, Nessa medida, refletir sobre a espécie de identiicle que um homem adquice ragas a medliagio da Fungo aaueaiva Jevisnos timbém a ter de analisit a nature cle duas classes de naragae: ‘a nanativa histérica de um lado e a Bee eck, rele ional de outro, ¢, sober, a analisar que tipo de relagio e enuzamente pode hhaver entre as das, F foi, justamente, 0 se questionar sobre & possiilidade experifncia Fondamental que pudese inteyrar essis duas ordens narrativas, istéria e fiegdo, que. Paul Ricoeur no posficio do tercelto e cima volume de sua obra Tempo e narvatva, ingou a iéia de que 3 ideatidade que lum sujeito adquire mediante a aarrativa de suas historias ¢ 0 lugar onde encon- twamos realizada a fusto entre Regio & histéria, Nas pakiwnas do filésafe frances (© conhecimento de si € uma inter pretagio, a interpretagio de si, por sta vez, encontra na natrativa, dentre outros signos e simbolos, ima medingte privile lad, essa mediaglo nrarrativa absrea em Sitanto « histésa como a fiego, Eizendo dda bisa he una vi ional, ou se preferimos, una Fico his torica, comparavel aquelas biografias dos _grandes homens nies uais encontramos tunta nystura de histésa e fiegio". \ ama bistéria fie WVIZADO A concepqio de narsitiva, que Ricoeur define acima como mediagio privilegiae ma tengo especial. Ek = resulta de uma longi snterpretagao cht Postica de Aviséxeles © de um co fronagao dos resultados dessa andlise, a, merece fom a aporias sobre -o tempo hum rho, que Ricoeur recira de uma leitura S das Confissdes de Santo Agostinho, Enendendo o aleance do conceite de 0 (mimesis) presente em. 2 represent Aidentidade que um sujeito adquire pela narrativa de suas histérias € 0 lugar onde se a fusiio entre ficgao e histor ealiza a Aristteles, Ricoeur define a nactat va como uma representagio da aglo humana Gmimeses praxens). A compre- lensio das agdes humanas, por sua vez, implica poder configuri-las, usindo a capacidacle imaginativa, de acorda com uma determinada intriga Cnytbos), de leterminada trama, 2 qual organiza uma sermnticn das acoes ‘Ao falar em semintica, Ricoeur refe- yese a capacidace que uma pessoa tem de seguir uma historia com sentido, Jsto 6, que poe em cen comportamen- tos humanos dentro de tuna dimensao tempo ral; assim, por exempio, entendemos que toda historia de ages uma nas implica um antes © um depois, comego, meio ¢ fim, completude 4 incompletde, peri- pécias surpreendentes que mudam o curso da ‘sama, consirugio. esti- vel do cariter do. per sonagem ¢ assim por dante, Vemos como a ‘eapacidacle de compres ender uma hiswria esti carregada de implicagdes temporais. Ciente dessas cortelagoes, Ricoeur con- fron a idéia aristoxé lica da mimesis, como representagio ¢ eoloca- ‘a0 em intriga das agdes hhumanas (mythos), com as das ctractersticas da vivéncia humana do tempo, tal como descritas por Santo Agostinho no cupitula 11 de suas “confissdes", Com efeito, no cape tulo, Agostinho descreve a experiéncia Jnumana do tempo como uma tensio Ginientio) da alma para o futuro, isto &, luma attude de expectativa em direc no que & visado; & medida que @ acao vai se cumprindo, a alma se distende (dlsientio) em dicegdo a0 passado, reten: do 0 jf realizado na meméria. De medo ue, para Agostinho, o tempo € um des: lizamento intensio-disensio; em outras palavras, a experiéncia do tempo € uma protensio para o ainda nao realizado © uma retengao do passado como jf sido, Results assim que, se uma nazrativa dle historias deve ser mais do que um simples zelato de fatos, & porque con: figura uma forma, uma intriga que se desenvolve no tempo, de modo que cada elemento da trama conduz para PRESENCA NO OUTRO f INTERPRETAGAO 5: lum mesmo ponto futuro (propondo 0 que Ricoeur chama de uma “concor- diincia” do todo). Ou, 20 contririo, um momento da hist6ria pode nos desviar para uma diregdo inesperada, sugerindo ‘que, numa visio do ja ocortido, 0 todo podria no se sustentar como tal, isto car para 0 lugar esperado Gonfigurando 0 que Ricoeur denomi- na “discordincia"). Jogando com os conceitos de intensio-distensio e con: cordiincia-discordneia, Ricoeur mostra que © tempo humano 86 se compreen- de narrativizado. Dito de outro modo, 1 experiéneia temporal humana, como: futuro-vertendo-se-no-passado-atra vessando-o-presente, sO encontra uma representagio adequada na semdatica das agdes.colocadas em intriga pela rnavrativa, Assim, Ricoeur confronts « articuls respectivamente Arist6teles ‘Agostinho, narrativa e tempo. &, mio nos le ‘COLCHA DE RETALHOS do século XIX. Como se re 56 MENTE, CEREBRO & HILOSOFIA Ricoeur descreve como o ato de le Ura, NO Caso da literatura, produz uma dialética entre o mundo do leitor eo mundo da obra FICCAO E HISTORIA sganha pertingncia a ques- to, apenas evocads acima, da disting20 e do parentesco entre narrativa ficcio- nal ¢ histérica. Tal distinglo esti, antes de qualquer coisa, atrelada a maneira ‘como histéria ¢ fiecio fazem referéncia a realidade. A hist6ria, dizemos, tem compromisso com as coisas tal como focorreram na realidade, enquanto que 4 ficedo, dispensando esse compromis 80, evoca um mundo que pode multo hem ser isveal. Contudo, nuangas bem ‘mais complexas aparecem, no momen- nese wa costura, Aleoou formula sou ras ¢itorpretago da obra de outros autres to em que nos perguntamos © que pode sigaificar o “tal como” do real histérico eo “irseal” do mundo da ficgio. A histérla, claro, no pode pres- cindir do conhecimento dos fatos base- ado em documentos. Mas vai necessa- rigmente além, no momento em que procura compreender seu sentido. Af, para aprender a totalidade, mesino {que provisoriamente, 0 historiador pre- cisa interpretar e, para isto, fazer uso da faculdade imaginativa, Unica capaz de Ihe fornecer 06 simbolos e as meti- foras vivas do todo. Nesse sentido, Ricoeur defende a nasrativizagio da historiografia, Isto & a histéria deve, por fim, apresentar um agenciamento dos fatos estruturados como intriga (como drama, comédia, ironia ete). Fica evidente que, nesse ponto, volta- mos a introdvair fleg2o na histéria. Da mesma forma, 2 foglo_literdria, por exemple, nao é apenas fabulacao inmeal. A secepgao das grandes obras da cultura, as obras de arte, tem efeitos reais na medida em que transformam nossa visio de mundo, Retomando as anilises do ertico literirio Wolfgang Iser, Ricoeur des- ‘ereve como 0 at0 de leitura, no caso da Kkeratura, produz uma’ dialética entre @ mundo do lektor € © mundo da obra que é efetiva para a transfor magio tanto de um como do outro. A mudanga do mundo do leitor & um feito real produzido pela recepeio do mundo ireal projetado pela obra de ficgdo. Nessa medida, a fieglo refigue ra o real ¢, portanio, mesmo que de forma peculiar, refere-se a ele assim como @ histéria, Nao € preciso refor ‘gar a percepeio da proximidade que existe, na obra de Paul Ricoeur, entre 15 conceitos de self, reflexividade, via longa, temporalidade, narrativa, hist6- fa, fcga0, Todos eles so correlatos e se articulam entre si. Assim, a identida: de narrativa situa-se na confluéncia de todos esses concestos e, principalmen- te, no cruzamento entre a narrativa de fiegio e a historica, prefigurando o qu Ricoeur avangou no texto que citamos cima, a saber, a autobiografis ou, sim: plesmente, a biografia. ‘cee ars aoe Podemos agora comentar uma das titionas mediagbes necessrias part 2 compreen- Sto dla nogio de identidade narsatva, $4 vimos que, pars Ricoeur, idensidade aqui remete, antes de tudo, 2 idéia expandida de um skmesmo reflexiva, Mas a anilise do tempo refigurado na nacrativa nos leva a pensar a questo da continuidade no tempo da iddertidade do self. Pelo ‘que dissemos, ficou estabelecido que a narativa & uma forma de fazer a historia durar no tempo; inversamente, o tempo 86 encontra uma representagio adequa- a quindo naralvizido numa his6ra Agora, quando procuramos. respon- der 8 pergunta “quem sov?’, levando em conta a dimensio temporal, nos damos conta de que uma segunda pergunta vem redobrar a primeira, a suber, "0 que sou", O “quem” € 0 “0 que” remetem a uas vertentes da nogio de identidade, ‘que no deve ser confundides. Ricoeur as denomina identidadie-ielem e identidae de-ipse. As duas nocdes, idem ¢ ipse, ou mesmidace e ipseidade vespecivamente, dizem respeito 2 permanéncia no tempo do sinnesmo, poréin de modos diferen: tes. A mesmiclade ¢ assoclada & idéia de |NODBERTA MENGHU recebe o rio obo! da Paz om 1902. Sua autoblogre, com elamentne remaneeade, 6 um exemplo de como a deface rare ssa na eruzameno errs Rego © Metin algum substrto que continua idéntico si em meio as mucangas acazretadas pelo tempo. Podemos vinculae esse algo subs- ‘ancial 20 chamado caricer, ow tempera- mento, ou ainds, a tudo que nos permite reconhecer uma pessoa como 2 mesma através das wansformagdes que pass gem do tempo imprime na estruturacao Ue algum contetido substancial. £ nesse sentido que dizemos de um homem que 6 ‘0 mesmo” da infincia & velhice. Por sua vez, 2 ipseidace garante a perma- néncia no wempo sem qualquer apoio ou referéncia a algum substrato idéntica si. O caso mais paridigmaitico da ipse- dade 20 qual Ricoeur se refere é © da ‘promessa, portanto do sujeito ético ou ‘objeto de imputacio moral. Pela promes: SA, 0 sujeto compromete-se a cumprir a palavra empenhada sejam quais forem a intempéries pelas quais posse pasar sea temperamento e independentemente delas. A jpseidade, portanto, esté na hase do fato de podermos confiar aura indi viduo. Assim, mesmidade e ipseidade recobrem, sem se confundis, a mesma problemética relerente A permanéncia no tempo de uma pessoa Muito bem, para que serve essa distinc? Ricoeur considera que, ani- culada com a narratividade, ela permite superar as dificuldades que & problems tica do sujeito tadicionalmente apre- senta, A diffculdade esti em ficarmos presos 4 dicotomia representada por duas correntes antagénicas, uma delas declarando que © sujeito nada mais do que a reuniio de uma diversidade de voligdes, cogni¢des, emogdes ete; a outra se aferrando a ilusko substancia- lista de um sujeito idéntico a si mesino. Ricoeur mostra como a ipseidade pode escapar do dilema do Outro e do Mesmo, do Diferente © do Igual, do Formal e do Substancial, na medida em que dialetiza essas polaridades apoian do sua identidade sobre uma estrutura temporal conforme 0 modelo dinamico dda narcativa, Nesse sentido, aquilo que denomina- mos permanéncia do sujeito a0 tempo nio se diferencia em nada da identidade narrativa. Conhecer 0 simesmo ¢ narrar sua historia e ele existe enquanto sua hist6ria se desenrola_ no tempo, Da ‘mesma maneira, sua identidade confun: de-se com a concordaneia-diseordancia, (© agenciamento dos fatos numa intriga, ‘com @ imaginacio criadora que produz metiforas capazes de reunir o diverso um todo. O self encontra na identida- de narrativa a possibilidade de refigurar- se de maneira mais auténtica. & [DMIDLEWéprcwslisa clin, pega enpcplgncinc patna ee tie Pass ‘OPONTO DE PARTIOA © Tempo e narratv, tomo 3 Pat iceu, Pass 1am, ‘ESSENCIAL DO AUTOR © DeTTnterprétation,essal sur Freud Pa ze Sel, 1968, + Ametitora viva, Pat cout Lol, 2001 © confito das interprotagdes. Pau lose Imag, 197, PARA IR MAIS LONGE © Tempo enarativa tomas 1 2. Pau ie Poprus 1987 +O simosmo como um outro Paul Pcceu Pops, 1981, PRESENGA DO OUTRO B INTERPRETAGAO 57

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