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OS PRIMITIVOS DONOS DA TERRA DOS INHAMUNS Gomes de Freitas © branco invasor chegando ao centro sudoeste da Capltania do Ceara encontrou suas terras habitadas por hordas selvagens, sob 0 dominio da valente nacdo dos Jucis, abrigada &s margens do rla~ cho déste nome, nue desigua no Jaguaribe, perto da Serra dos Bo- queirées, atualmente Serra de Arneirés. sses indios pertenciam & grande familia dos tarairitis, orlundos da longinqua Sibéria, na opiniiio do sbto Tomas Pompeu Sobrinho, de saudosa meméria. A propésito das origens do nosso incola, ha uma fabula que nos faz recordar aquela histéria da léba, mie nutricia de Rémulo e Remo, fundadores de Roma. Diz a lenda tupi que o homem primitive da América é descen- dente da anta (Tapirus americanus), um dos maiores mamiferos do Novo Continente (Plinio Salgado, “Raizes Raciais do Brasil”, Correio do Ceard, ed. de 24.2. 1968.) No entanto, a grande escritora Elisabeth Chezley Baity destréi o mito com estas palavras: “Embora tais especulagées sejam interes- santes, hoje todos os cientistas se acham de acordo, em que a raca india atingiu a América, procedente da Asia, através do estreito de Bhering, numa longa sério de emigragées que ocorreram de tempos em tempos, através de milhares de anos.” Os Jucés eram um pove de compleicio forte, que se fixou em um pais de ares amenos, vegetacdo varlada, com largas faixas de arvores frutiferas e caga abundante. Dai porque, em qualquer época do ano, regalavam o apetite de carne e peixe, e, no verdo, vitaminavam-se com frutos de umbuzeiros (Spondiq tuberosa), colhidos do maior Pomar destas anacadedcias, no interior do Ceara, situado ac longo do Rio do Umbuzeiro e em um dos bragos do Riacho do Juca. 152 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA Por habitarem regido tio riea, os Jueds nunea tiveram problemas de deslocamentos em busca de alimentos, como sucedia com os Ta- bajaras e outras tribos que desciam para o litoral em procura de fru- tos e peixes para suprirem suas necessidades organicas. Ainda hoje se observa que, 20 contrario do que ocorre em outras zonas dos Inhamuns (Inho, inha — sertéo e mu -alto), nao se for- mam levas de retirantes, durante as séeas. Mesmo na época em que faltam as chuvas, o sertanejo dessa regiéo tira o sustento do sew chiqueiro de criacdo, A grande massa campesina dos Inhamuns deve ao bode (Capra hircus), a sua radicacao & terra. Os indios de minha terra eram hdbeis no preparo de iguarias como, por exemplo, a pacoca da améndoa do favelro (Cnidoscolus phyllacanthus), torrada em caco de barro cozido, e socada em pilio de pedra, com mel de abelha, e, do &mago do caroco da mucun’ (Dioclea, malacocarpa, Ducke), retiravam uma substancia com que faziam gostoso bélo. Mantinham os Jucas incipiente cultura de mandioca (Manthot- utilissima), nas chapadas da Serra Grande que lhes fornecia urus de farinha torrada e duros beijus. O vasilhame usado em suas fabricas de farinha, como significativo marco de sua passagem por aquela cordilheira, foi visto pelo Dr. Pedro Théberge, ha mais de um século (Esbéco Histérico da Provincia do Ceard). Nos tempos escassos, alimentavam-se os Jucds de comida braba preparada com a rizona da macambira (Bromelia laciniosa Mart.), do carauaté (Neoglaziovia variegata), ou da fécula do inhame (Dios- cored brasiliensis), e da trabalhosissima raiz da mucuna, que era, cuidadosamente, passada em nove aguas, da qual retiravam as subs- tancias toxicas, ‘A zona de expansdo dessa tribo de guerreiros, com uma superficie quase igual 4 da Republica de El Salvador, na América Central (cér- ca de 33 000 quilémetros quadrados), abrangia a vasta regio dos Inhamuns, que compreende in toctum, os Municfpios de Assaré, Cam- pos Sales (Varzea da Vaca), Araripe (Brejo Séco), Farias Brito (Quixara), Altaneira (Santa Teresa), Potengi (Kiquexique), Iguatu (Telha), Carias (Poco dos Paus), Jutas (S. Mateus), Saboeiro (Cruz), Aiuaba (Bebedouro), Antonina do Norte (Mucambo), Arneirés (Al- deia do Juc&), Cococi, Parambu (Cachoeirinha) e Taud. © académico J. de Figueiredo Filho, natural dos Cariris Novos, om opiniio semelhante & nossa, no que diz respeito & area da afamada zona do criatério cearense, em o jornal O Povo, edicéo de 29 de julho de 1954, féz esta interessante observacio: — “Conforme © Diciondrio Geogrdfico, Histérico e Descritivo do desembargador Alvaro Gurgel de Alencar, o sertéo dos Inhamuns estende-se desde. as cabeceiras do Jaguaribe até Iguatu, compreendendo Taua, Arne!- 16s, Cococi. Atualmente desdobram-se em outros municipios que por sua vez {4 comegam a formar outros de independéncia j4 asse- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 153 gurada pelo legislativo cearense: Acoplara, Saboeiro, Parambu, Alua- ba, Carlas, Ha até quem inclua na vasta zona criadora cearense 0 préspero municipio de Cratetis, que j4 pertencen ao Piaui.” Realmente, também integram o territério daquela zona sertaneja parte do municipio de Acopiara (Lajes), a que fiea no vale do Trugu, grande porgéo do municipio de Catarina (Santa Catarina), na bacia hidrogrfica do Condadu e do Riacho do Saco, uma faixa n&o pequena do municipio de Crates (Piranhas), e, finalmente, o flanco ocidental do municipio de Independéncia (Pelo Sinal), desde as encostas da Serra da Joaninha até a Lagoa dos Inhamuns, cor- rendo pelo meio os riachos Itaim e do Juca. Vale salientar que éste curso d’4gua, seguindo a norma, recebeu © nome do gentio que o ocupou. Inicialmente, quando o colonizador queria aludir @ Ribeira, a denominava Rio onde habita o gentio Jucd, simplificando, depois, para Rio do Juca. Para 0 lado Norte Oriental da bacia do Poti (Italm-agu), até o antigo Rio do Cavalo Morto, hoje Boa Viagem, nas vertentes do Quixeramobim, demoravam os Cratetis (Sesmarias, Vol. 14, pag. 131), e na outra extremidade, descendo o Jaguaribe, acima do Boqueirio dos Ords, “assistiam os Quixelds” (livro citado, Vol. 1.°, pag. 177). fsses selvagens eram os vizinhos mais préximos dos Jucés que, vez por outra, hostilizavam-se mituamente, dando origens a sangrentas escaramugas. Segundo o renomeado indiandlogo Carlos Studart Filho, a his- téria désse incola é “vioienta e tragica” e entremeada de lances de bravura e selvageria. A propésito da intrepidez e ferocidade dos Ju- cds, 0 escritor José de Alencar escreveu o seguinte: — “O sertio do Quixeramobim era infestado pelas correrias de uma valente nacio indigena, que se fizera temida desde Cratets até o Jaguaribe. Era a nac&o Jucé. Seu nome que em tuni significa matar indicava a sanha com que exterminava os inimigos. O laureado indianista conterraneo téz ainda esta revelagéo: — “O chefe da nac&o Jucé, era o terrivel ANHAMUM, nome que na lingua tupi significa irmdo do diabo” (0 Sertanejo, pag. 257). Efetivamente a palavra tipica Anhamum 6 formada de Ahan, de Anhanga, génio mau da floresta, e mu, irmao A cronica historiea da nossa terra regista as lutas encarnicadas que a nagio dos Jucs teve de sustentar, nos primérdios, com os seus irm&os de arco, e, depois, com os povoadores. Eram os nossos avos amerindios tenazes inimigos da colonizacéo. Tanto assim que “en- quanto nao foram éles completamente aniquilados pelas armas, nao puderam os brancos estender 0 seu dominio, no século XVII, além da aldeia junto ao forte ou além de outro arraial na barra dos rios”, na informacdo do mestre Anténio Bezerra. Refere ainda a tradi¢&o que, no ano de 1700, os guerreiros bar- baros do principal Anhamum, massacraram os Quixelds. Alguns anos atras, os Cratetis s6 nao foram exterminados pelos Jucds, porque, 154 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA quando se Ihes apertava o cérco, conseguiram escapar-se, procuran- do, atordoados, agasalhar-se sob 0 pAlio dos Jesuitas da Missio da Ibiapaba, a quem se submeteram, fato de admirar, pois, os Crateis, eram indios de c6rso, insubmissos ao aldeamento. £ o que participa a carta anua de 1695/1697 do diretor da citada Missfio, pe. Ascengo Gago, & sua paterntdade o Provincial da Compa- nhia de Jesus, na Bahia, adiantando o seguinte: “os Quiratitis por causa de uma guerra que lhes fizeram outros tapuias seus inimigos, em que Jhes mataram e cativaram mutta gente, andam ainda per- turbados.” (Pe. Serafim Leite, Histéria da Companhia de Jesus). & sabido que o sertdo dos Inhamuns era a patria dos Jucds, antes do periodo da dominagio. E, por esta razio, ésses caboclos foram também chamados pelo locativo da terra-bergo, isto é, gentio Inhamum, em vez de gentio do Inhamum, segundo o nosso ponto de vista, ste assunto exige uma explicacéo. Nossa convicefo é a de que uma tribo sob a denominacdo de Inhamum nunca existiu no Ceara, Ela firma-se no fato de havermos compulsado 0 antigo “Livro da Missio do Jucd em que se Axam Re- gistrados Baptizamentos Cazamentos e Mortes Desde 1755 Atte 1808”, os primeiros livros dg registros de batizados e casamentos da Fre- guesia, de N. Sta. da Expectacio, do Iced, para os anos de 1727 a 1775, © primeiro livro de registos de casamentos da Freguesla de N. Sra. do Monte do Carmo, da Ribeira dos Inhamuns, para os anos de 1756 a 1770 e os primetros livros de registos de batizados e easamentos da Freguesia de N. Sra, da Paz, de Arneirés, para os anos de 1777 a 1801, e, ndo obstante havermos encontrado batizados, casamentos e ébitos das mais diversas nacdes de indios, como a dos Cariris, Cariris-acu, Jenipapos, Xocés, Uanés, Jucds, Calabagas, Cariis, Iedzinhos, Cra- teas, Quixelés, Paiacus, Tabajaras, nfo encontramos um sé registo do gentio Inhamum, ‘Theberge, Joao Brigido e Araripe, sem provas documentais, loci lizaram a imagindria tribo Inhamum entre os Quixelés e os Jucéi Entretanto, o erudito Carlos Studart Filho diverge daqueles historia- dores com estas patavras esclarecedoras: — “Hesitamos em aceitar a realidade de sua existéncia em terras de nossa Capitania” (R.LC., 1963, pag. 216). “Alls, na chamada Regiéo dos Inhamuns, nao hé sinais histéricos de sua vivéncia ali, nem tradic¢aéo”, ¢ a opintao do Dr. Carlos Feitosa, probldoso pesquisador dos fastos da nossa his- toria, expressa em carta datada de 12 de agdsto de 1967, que dirigiu ao intelectual Mozart Soriano Aderaldo, que prepara uma edicio anotada do livro Esbéco Histérico da Provincia do Ceard, de auto- ria do Dr, Pedro Theberge. Temerdrios os selvagens, que se metessem entre Sio Mateus e Arneirés, trecho do dominio absoluto dos Jucas, pois fatalmente os intrusos serlam massacrados pelas falanges do cacique ANHAMUM. Reza, allds, a tradigio que os Jucés, dominando os inimigos decepa~ REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 155 vam-Ihes as cabecas e as expunham sdbre espeques no Saco do Co-~ ronzé. uma fortaleza situada entre muralhas rochosas que ficam num contraforte da Serra Grande, na area por éles entao dominada. Na pimeira metade do século pretérito, o Dr. Pedro Théberge estéve no Saco do Coronzé. Conta-nos, no seu livro Esbégo Histo~ rico que, no local visitado, deparou um quadro macabro pontilhado de caveiras humanas no tépo de tangreiras (cércas de estacas pon- tiagudas). Era assim que os primitivos donos da terra dos Inhamuns proce- diam contra os que tentavam violar os seus dominios sertanejos.

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