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en eae ee ere ee ace ae reer ere eer erie tes Peer cee ae sea re Cee tc re ken ae Penne ee CoC ML ee coin | Peer eM res Peet nn CR Cr get cd finalmente, com a op¢&o por um tiporde escrita’: ee Ce Po eet ics % eee ee ee eee Cee ee eee UeED ae eee i Wee le eo S Cn om PMN CRU Cte ti 46 O Grito da Inquisi¢ao: auto-de-fé Em Lisboa, naquele 27 de outubro de 1765, o dia amanheceu mais agitado que o de costume. A semana precedente ja havia colocado grande parte da populacdo lisboeta em frenesi. A estratégia adotada foi simples: os Familiares do Santo Oficio distribuiram o Edito junto ao clero da cidade, que deveria lé-lo na missa no domingo anterior a0 auto € estimular a vinda dos fiéis: os paroquianos, depois das missas, comentaram, quase em regozijo, a suntuosidade ¢ a declaracao de fé tipica do auto. Os Familiares também afixaram o Edito em locais piblicos. Na cidade, poucos poderiam se dar o luxo de ignorar a noticia sobre a execucao de mais um auto-de-fé © tao esperado domingo chegara e, em varios pontos da cidade, entre o Rossio e a margem do Tejo, homens, mulheres, criancas e velhos se juntavam para celebrar a f€ diante da forca do aparelho inquisitorial. A maior parte do piblico ficava espalhada 20 longo da trajetoria da Procissao do auto-de-fé, formando uma espécie de moldura humana para aquele quadro que logo seria pintado. Alguns aproveitavam a ocasido para cumprirem peniténcias. Os mais abastados alugavam as janelas de sabrados com viedes privilegiadas, superlotando as residéncias e gerando uma renda extra aos proprietarios. De todos os lugares, o mais disputado era o Terreiro do Pago, préximo ao Palacio Real, onde o Rei assistia 4 ceriménia com sua familia. Todos queriam ver de perto 0 cortejo e a leitura das sentencas dos condenados pela Inquisi¢ao?. Os trajes também ganhavam destaque. A roupa usada era a melhor, tanto da parte da populagao, como dos condenados, Alingusiso eo Sento ¢ dos agentes inquisitoriais. Os nobres, em geral, aparavam suas barbas, barbichas ou bigodes, lustravam suas espadas cuja pontas rocavam nas pedras das ruas e produziam um som singular, aprumavam nos narizes culos ~ que além da clegancia - auxiliavam na visio mais detalhada do espetaculo. ‘As mulheres, sob o olhar atento de seus maridos, exibiam 0 rosto maquiado, com rubras bochechas, 0 busto decotado ¢ ‘ornado por ricas jéias, no canto da boca um ponto negro (de tafetd ou pintado) conferia uma certa aura de malicia’. Mas, namadrugada daquele domingo, nenhum outro ponto estava tio tenso e ansioso como no Estaus ~ sede do Tribunal do Santg Gificio lisboeta. Os condenados a fogueira, chamados de relaxados, ja sabiam de suas sentengas pelo menos ha trés dias. Receberam a constante assisténcia de religiosos, que buscavam obter o arrependimento dos condenados; embora na pratica ndo significasse alteragio da pena, mas, apenas mudanga no tipo de execucio (garrotear antes de queimar na fogueira) e na postura de seus dois acompanhantes ¢ da multidao - que passaria a ser mais complacente com 0 condenado arrependido*. De uma maneira geral, os condenados pela Inquisicao também usavam trajes apropriados para o auto. Vestiam habitos penitenciais, os sambenitos, feitos de linho cru e pintados de amarelo, com simbolos de reconciliagao com a Igreja (uma cruz vermelha) ou com 0 simbolo da condenagao (0 retrato do acusado rodeado por chamas). Alias, 0 encarregado dos retratos fazia seu trabalho em segredo, espreitando os condenados através de cavidades secretas nas celas. A pouca iluminagao, a pressa para executar 0 trabalho, os constantes movimentos dos condenados eram alguns dos motives que ajudavam a criar versdes distantes das feigées originais” ‘A Otavane Vieira Je. 47 48 Dos condenados, era possivel entrever feicées, silenciosas e tensas, que traduziam um misto de resignagio de revolta: a dor e a morte esperavam os condenados & fogueira. Os outros réus, condenados a punigées mais brandas, também integravam o cortejo: vestidos com os sambenitos, 0s reconciliados com a Igreja eram obrigados a usar 0 habito por um tempo ~ acentuando o estigma social de que seriam vitimas* Osino da Catedral, secundado pelo toque dos sinos de todas, as outras igrejas de Lisboa, anunciava o inicio da procissao. Na medida que os pés descalgos dos condenados pisavam o chao ainda frio do Rossio, o medo e o desespero invadiam a alma dos réus. Ao lado de cada sentenciado caminhavam dois Familiares. Estes Familiares, membros leigos do Tribunal do Santo Oficio, exerciam um papel fundamental na organizacio do evento ~ eram leigos, mas ganhavam destaque pela suposta pureza do sangue e pela intimidade que tinham com a Inquisigao’. A aparicdo dos Familiares era cercada de toda a pompa, que incluia trajes especiais e cavalgaduras. No auto-de-fé, os familiares causavam impressionante impacto visual e psicolégico na populacao’. Pelo sigilo dos processos, s6 durante o percurso da procissio era que o publico conhecia a culpa dos condenados. Reconheciam a culpa pelo tipo de sambenito que os réus vestiam, a cor, as gravuras e 08 proprios nomes dos delitos apresentavam para a plateia o crime e a sentenga dos acusados. A organizagao do cortejo era bastante simples. Na frente, um grupo de dominicanos, os primeiros Cies de Deus’, com 0 estandarte da Inquisicio, contendo a inscricdo Misericérdia ¢ Justisa. Seguiam-se-lhe um grupo de clérigos seculares que cercavam 0 padre responsavel pela principal pardquia AllnqusiSo eo Serio de Lisboa, que levava uma cruz. Os condenados, vigiados atentamente por uma companhia de soldados, caminhavam acompanhados pelos Familiares, numa ordem hierarquica de crimesecastigos. Os menos graves frente eos maisgraves atras, com os relaxados (condenados & morte) fechando o cortejo. O andar dos sentenciados era um espetéculo a parte, pois muitos deles acusavam, em cada passo, dias sofridos no potro e na polé (instrumentos de torturas inquisitoriais). No meio da procissao iam pesados batis que continham livros proibidos, ja arrolados no {ndex", que também logo conheceriam a chama da purificagao. © cortejo'margeava sinuosamente entre 0 Rossio e 0 Terreiro do Paco, onde estava armado o palco para a leitura das sentengas. Deslizar como serpente era uma das estratégias utilizadas para compassar 0 cortejo, tornando-o mais demorado. O piiblico presente era tomado por um misto de dor e euforia. A longa serpente continuava envolvendo Lisboa, ritmada pelos constantes e monétonos toques dos sinos das igrejas. Ali tudo era fé, medo e Inquisicao. Durante a leitura das sentengas, as autoridades religiosas e leigas sedistribuiam ao redordo palco, obedecendoaumarigida etiqueta pautada na hierarquia religiosa da cerimonia. Uma missa era rezada. Depois, cada acusado passava a ser chamado nominalmente para ouvir, diante do Inquisidor, a leitura publica de seus crimes e de suas sentenga. Esse momento era tenso; os soldados muitas vezes tinham que amordagar algum condenado que nao cansava de proferir impropérios. As sentencas eram variadas: admoestagio, agoite publico, degredo, galés e fogueira. Mas, naquele domingo, somente uma pena foi cumprida: a da fogueira ~ as outras poderiam esperar. Era preciso marcar a importdncia da punicao maior, sem confundi-la com punigdes menores, ‘A. Otaviano Vieira J. 49 50 Uma tltima oportunidade era dada aos relaxados. Caso se reconciliassem, diante da morte, com a Igreja ganhavam a benesse do garrote antes de serem queimados. Para os mais insistentes, a fogueira era mais dolorosa. O piblico, que pacientemente assistiu ao cortejo e a leitura das sentengas, € se encontrava de pé desde as primeiras horas da mana até aquele firn de tarde, torcia para ver a reconciliacio; e, com isso, ‘uma suposta vit6ria final da fé. Passado 0 periodo de reconciliac4o, os relaxados eram entregues ao poder leigo (dat 0 termo relaxado ao poder leigo), poisa Igreja condenava a morte, mas nio manchava suas mos de sangue e de fogo. Os réus eram conduzides para o lado oriental da Ribeira, onde as fogueiras estavam preparadas. Na ‘maior parte dos casos, as bases das fogueiras eram bastante simples: cada uma era um cubo formado com toros cruzados sobre os quais se colocava um banco apoiado no tronco vertical. Nesse tronco, a vitima podia ser estrangulada antes da fogueira, caso manifestasse ‘seu arrependimento e quisesse morrer como catélica’. espetaculo chegava ao seu momento final. Ali, entre a risa do Tejo e o odor de carne humana queimada, 0 Tribunal da Santa Inquisiséo mostrava publicamente sua fora € reafirmava a soberania dos dogmas da fé. Naquela noite de domingo, dia 27 de outubro de 1765 foi realizado o il auto-de-fé piiblico da Inquisigao de Lisboa.” A noite era encerrada com a seguinte imagem: Na Ribeira de Lisboa, que é frequentemente ventosa, a brisa inclinava a chama, e a vitima encontrava-se a uma altura tal que 0 lume néo the subia acima da cintura, A chama nao o afogava, mas grelhava-o, durante hora e meia, duas horas, antes que ele morresse. Os gritos ~ ‘Misericérdia ‘pelo amor de Deus’ - pravocavam o jubilo da assisténcia’®, Alngusigio eo Sertio A Forca da Inquisica o olhar silencioso que queima [Aquela noite de domingo, abrasada pelas chamas da foguelra da Inquisislo, nao pode ser definida como a sintese da atuagio do Santo Oficio. Em ultima instdncia, as acbes inquisitoriais nao ganhavam forga apenas no espeticulo, ‘mas na constancia silenciosa da vigilancia impostas por seus agentes, Fis uma estratégia que atravessou 0 Atlantica, € Sleangou as terras brasileiras. Nio podemos ser seduzidos pela grandeza e publicidade do espetaculo ¢ resumir as Empreitadas inquisitoriais aos autos-de-fé, ow mesmo aos jrocessos produzidos por évidos inquisidores que enchiam os tarceres secretos da Inquisicio de prisioneiros e suplicios. As fogueiras acesas, as procissbes com os relaxados, 05 desfiles de altas autoridades eclesidsticas e temporais e a sempre concorrida instalagdo de milhares de processos podem ser sinalisados como 0 4pice da montagem de um imbricado e sutil necanismo de vigilancia, distingdo e promosao social, ‘A fogueira no era a punigao mais comum para os condenados do Santo Oficio - embora tivesse um forte impacto teatral, na representagao do poder quase divino dos inuisidores. No Tribunal de Lisboa, entre 1536-1605. dos 3.376 processos, 256 acabaram na fogueira. Entre 1606- 1674, dos 3.210 processos, 337 réus foram consumidos pelas chamas inquisitoriais. De 1675-1750, dos 2.844 processados, 209 condenados conheceram as chamas, Finalmente, entre 1751-1767, com a reducao dos niimeros de processos (296), 09 foram condenades*. Embora nio possamos silenciar a dor de homens e mulheres queimados ‘A.Otariano Viena J. SL pelo Tribunal, tais nameros podem revelar que a fogueira tinha um importante papel simbilico. © auto-de-fé e a fogueira podem servir como uma nuvem de fumasa que ilude a interpretacdo sobre a forsa das agdes inquisitoriais. O poder do Santo Oficio nao se resumis ao espetaculo, apesar de nele se materializar. O Tribunal nic Gueimava apenas com a fogueira: queimava com o olhar Um olhar que criava sensacdes constantes de vigilancia, due legitimava socialmente os diligentes observadores, Ne lta entre vigilantes e vigiados, hierarquias de poder forare tramadas, e a busca pela distin, a capitania do Ceard, no Brasil, mesmo afastada da execugao do espetaculo, que era 0 auto-de-fé, nao se livrava da sanha meticulosa dos tentéculos da Inquisi¢ao. A historiografia brasileira ha muito insiste em dizer que © sopro da Inquisi¢ao nao ficou restrito ao lume que subia na Ribeira de Lisboa. Ele atravessou o Atlantico e alcangou as terras tupiniquins. No Brasil, a acao da Inquisicao lusitana ficou sob a chancela do Tribunal de Lisboa, que também estendeu suas preocupagées até outras Possessées lusitanas ~ entre elas as ilhas de Acores e Madeira, Da Américe Portuguesa, podemos listar um sem ntimero de nomes de enviados para Lisboa, com a finalidade de responderem 08 processos inquisitoriais”, De varias partes do Brasil Surgiam denunciados e denunciantes da Inquisicao, entre £8525 regides temos 0 Sertio do Ceard, palco de parte das trajetorias de vida que aqui irei narrar. Quando imaginamos 0 Cearé colonial, anos que precederam o final do século XVII Fequerem um esforco imaginativo maior. respeito a possivel presenca, na capitania c \¢40 social se efetivava. Assim, em especial os I, muitas coisas Uma delas diz ‘earense, da temida Alnquisigso 0 Serto i , por queimar Inquisigao, famosa por enredar fé e criar pecados, POY 4 ao no Ceara corpos e calar almas. Sim, a presenga es en no rs ss nd iO” se Tovulsiociala revelam ao tempo a as ae principalmente a partir da segunda per a Dezenas sto os nomes dos denunciades, homes ¢ Ho roar on cater [ace a eter tae aor Muitos sio aqueles que tiveram suas vidas e* idianos revirados™, ate presenga ie se por um lado 0 Cearé foi. alvoda a es inquisitorial, yor outro, foi também lécus P: eo annes ae do seu aparelho. Na proporgdo ia ne denunciados, também emergiam no! Inguisigao 1 de serem os olhos da Inquisica solicitavam o direito e o dever de en capa da race no Sertio, ae awe Duscavam, beeen € promoséo social. Deixaremos as a autorde-ft,e nos deslocaremos até os agentes 02 Ho eevee ean ae ea rc Tustano, nos sertdes do Cearé. Acompanhe uum desses candidatos a espiao da Inquisi¢. A Historia de um Exposto amento, em No dia 16 de junho de 1759, na igreja ar pes Recife, era batizado, pelo padre Pantaledo da Costs, 20 menino que recebera na plabatsmal o nome de Salon Be registro de btismo, lavrado na ocasgo, Antonie SeseneiS8 chancela de filho exposto; pois, aos olhos A.Otaviano Vieira Je 53 s4 cxianga de pais inc6gnitos, rejeitada e exposta na porta de uma casa alheia®. A ceriménia de batismo transcorrera cercada por uma atmosfera de resignasao, principalmente Por trazer para o seio da Igreja catélica uma alma que supostamente, nem mesmo os pais quiseram alimentar. Antonio fora exposto na freguesia do Corpo Santo, vila de Recife, na porta da casa de Dona Ana Maria Xavier, vitiva do sargento-mor Antonio Macedo. Sendo o exposto batizado na Igreja, carecia de padrinho e madrinha. A madrinha, que representava a segunda mie, foi a propria Dona Ana Maria que declarara haver recebido a crianca na soleira da sua porta € perante Deus. O padrinho fora o filho legitimo de Dona Ana: Antonio Macedo. Assim, no Livro V (que serviu 0 ano de 1759), Folha 140, dos Registros de Batismo da Freguesia de Recife, no dia, més e ano acima mencionados era batizado Antonio, crianca branca, exposta na casa de Dona Ana Maria, cujos padrinhos eram Dona Ana Maria e seu filho, Antonio de Macedo”, O registro de batismo poderia ter ficado perdido em meio a tantos outros como também poderia ter ficado perdido o Livro V, em estantes empoeiradas, matizadas paginas amarelas se calam e escondem tantas trajetérias de vida, mas o Tribunal do Santo Officio de Lisboa entrou em aco, naquilo que era uma das suas principais especializacées: investigar genealogias, buscar as origens de seus Familiares. Enquanto o Livro V dormia, espremido entre tantos outros, o padrinho de Antonio sonhara com a vida religiosa. Primeiro se tornara padre, sob o Habito de Sio Pedro. Havia sido aluno, durante seu tempo de seminarista em Olinda, do préprio vigirio Pantaledo da Costa, o mesmo que batizara seu afilhado exposto. Depois de sagrar-se sacerdote, Antonio Alngiscioe Serio Macedo acabara sendo nomeado secretério pelo Bispo D. Frei Luiz de Santa Tereza, que o levara para Visitagdes em algumas freguesias ao sul de Pernambuco e jé 0 iniciara no gosto em vigiar a fé, Ganhando confianga e admiragao do Bispo, fora por este levado a Olinda e ld se tornou confessando do dito Frei Luiz. Até que, em 1770, foi nomeado cura da freguesia dos Cariris Novos, na Comarca do Ceara”. Sua trajetéria entre o tempo de seminario até a nomeagio para uma paréquia no Ceara, incluindo os auspicios do Bispo Luiz de Santa Tereza, poderia ter passado sem nenhuma macula. Mas, apés exercer 0 curato por 10 anos nos Cariris, © padre Antonio Macedo almejara a qualificagdo como membro do Santo Oficio, pleiteando 0 posto de Familiar. Formalmente, queria trazer para aqueles sertdes cearenses a ago denunciadora e investigativa do Tribunal lisboeta. Como padre, formado num dos principais semindrios da América portuguesa, e com sua posterior convivencia direta com 0 Bispo da regiao de Recife, sabia que a candidatura a Familiar significava uma investigagao detalhada de seu passado pelo Santo Oficio. E foi justamente este pleito, a vontade e o interesse dese tornar Familiar do Santo Oficio, que trouxe um sopro sobre a poeira que descansava nas folhas do Livro V de Batismo de Recife. De Lisboa, veio o sopro, que atravessou 0 Atlantico e escrutinou detalhadamente a vida do entao candidato a0 posto de Familiar, e padrinho do exposto Antonio: 0 padre Antonio Macedo. Aliando a investigasao em registros paroquiais (batismo e casamento) com a inquirigdo de testemunhas que conheciam o candidato em Pernambuco e no Ceard, 0 Tribunal de Lisboa formara 0 processo de habilitagao do Familiar. A.Otaviano Vicia Je. 55 56 Na fala das testemunhas inquiridas, que eram pessoas que conviveram com o padre Antonio Macedo desde seu tempo de menino e seminarista em Olinda até sua agao como paroco no Cearé, pormenores foram levantados. Dentre eles 0 fato de que © padre Antonio Macedo, ainda em Recife, tivera vida comum com uma mulher chamada Josefa Maria de Jesus. Embora nao fossem acatados pela Igreja as ligagSes amorosas entre padres e mulheres, na pratica, na América portuguesa, ndo geravam grandes espantos”, Mas a investiga¢ao descobriu outros detalhes da vida amorosa do candidato a Familiar. Com Dona Josefa tivera 0 padre Antonio Macedo dois filhos, filhos ilegitimos gerados no concubinato a que este padre insistiu em dar continuidade. O primeiro dos filhos chamava-se José Xavier de Mendonca, que era soldado de infantaria em Recife. No entanto, fol © segundo filho a grande surpresa: chamava-se também Antonio de Macedo — como o pai. Antonio Junior, isso mesmo, era 0 exposto e afilhado do padre Antonio Macedo. Assim, aquele registro batismal do Livro V escondia urdiduras que questionavam diretrizes eclesidsticas. O padre Antonio Macedo nao apenas mantivera relagées sexuais regulares com Dona Josefa, mas com ela tivera filhos. Nao bastando isso, simulara, pelo menos para os registros institucionais da Igreja, que um dos seus filhos havia sido exposto na porta da casa de sua mae. Ainda nao satisfeito, se apresentara diante do altar de batismo como padrinho da crian¢a, embora fosse na realidade seu pai"*. Outro ponto instigante é que o padre Pantaleio da Costa, que batizara 0 exposto Antonio, enviara a Inquisicao uma carta a favor do padre Antonio Macedo, dizendo aos Inquisidores responsdveis que o conhecia desde de menino e Allnqusicioeo Serio o xecomendava para o cargo de Familiar. Essa recomenda¢ao ganhara um grau de estranhamento, principalmente por ter tevelado as testemunhas inquiridas, a notoriedade do fato que o padre Antonio Macedo tinha dois filhosilegitimos. Se no era segredo para as testemunhas da habilitagao, também nao 0 seria para o padre Pantaledo ~ que talvez.soubesse da verdade ‘mesmo antes do batismo de Antonio Jiinior, o exposto. ‘Antonio Junior, na época da habilitagio de Antonio Macedo, vivia na companhia paterna no Ceara. E mais: ja abracara o oficio do pai e também fora ordenado padre. Mas nndo queria se igualar ao pai apenas na profissio: continuava seguindo o camino paterno, e curiosamente tentara também a habilitagao como Familiar do Santo Oficio. Pai e filho, ambos padres, se submeteram volunta riamente a investigacao detalhada do seu passado pelo Santo Oficio; mesmo tendo o que esconder da Igreja. Esse isco consciente de oferecer suas genealogias & Instituicdo que se especializara nesse tipo de investigacao, em Portugal, deveria ser justificado pelo desejo de se tornarem Familiares do Santo Oficio®. Mesmo diante de tantas simulagdes e quebra de preceitos atélicos, paiefilho, tendo suas vidas investigadas fe seu parentesco confirmados diante do Santo Oficio, foram nomeados, em 1789, Familiares da Inquisisae de Lisboa. Ganharam o direito de denunciar e acompanhar 06 desviantes da fé e, caso necessario, de conduzi-los até os autos-de-fé em Lisboa. No Ceara, novos olhares estavam sendo habilitados para vigiarem a fé - embora, tais vigilantes fossem os primeiros a darem demonstracbes de burla dos preceitos catélicos. ‘A. Otaviano Vieira J. 57 58 Dos Familiares Quando sairam as habilitages do padre Antonio Macedo do seu filho Antonio, em 1789, as diretrizes de atuagio da Inquisigao portuguesa ainda estavam sob a tutela do tltimo Regimento do Santo Oficio da Inquisicio dos Reinos de Portugal, ordenado pelo Cardeal Da Cunha ~ editado em 1774. Esse regimento foi precedido por outros trés: os de 1552, 1613, © 1640. © Regimento do Cardeal da Cunha estava dividido entre artigos e parégrafos, que procuram enquadrar as aces inquisitoriais lusitanas aos ditames da politica pombalina. A politica de Sebastido José de Carvalho e Melo (0 notério Marqués de Pombal) aproximou a Inquisicao do poder régio e buscou diminuir as ingeréncias papais ”. A rede de Familiares comecou a ser organizada em Portugal no final do século XVI, com a ordem do Inquisidor- Geral, Cardeal D. Henrique. A montagem dessa estrutura foi lenta. Em 1608, 0 Tribunal de Evora contava apenas com 07 Familiares. Em 1692, 0 Conselho Geral da Inquisicao de Portugal fixou nimeros determinados para a nomeagio de Familiares nos seus tribunais: 178 para Evora, 236 para Coimbra e 187 para Lisboa”. A Inquisicio lusitana, diferentemente de sua irma espanhola, aumentou intensamente o ntimero de Familiares ao longo do século XVIII, chegando a 2.252 Familiares somente entre 1761-1770 — no total foram quase 20.000 em Portugal”, No Brasil, entre os séculos XVII a XIX, existe uum impreciso dado que alenta o nimero de 1.372 Familiares nomeados™. O caso dos Antonios, cujas habilitagées datam da segunda metade do século XVIII, entrava em sintonia com Alngusiioe o Serio a maioria das habilitagdes que encontrei para 0 Ceard ~ que também era desse periodo. Os Familiares nao eram nem funciondrios e menos ainda auxiliares, eram uma espécie de milicia voluntaria a disposi¢ao do Santo Oficio*!. A obrigacao fundamental do Familiar era ~ sendo um ponto de destaque dentro da trama inquisitorial de vigilancia - de denunciar pessoalmente ou por carta aos inquisidores qualquer caso que Ihes pareca ofensivo da nossa santa fé, ou se os penitenciados ndo cumprirem suas peniténcias. ‘Além disso, poderiam ser encarregados de diligéncias, pelos Comissérios, para efetuarem prisdes ou investigarem deniincias. Nesgas empreitadas deveriam vestir 0 Habito de Familiar. Na ‘véspera da comemoragio de Sao Pedro Mértir (patrono da Inquisicao) 0s Familiares deveriam comparecer nas Igrejas de suas paréquias para acompanharem 0 Tribunal e assistirem A festa em homenagem ao santo”. ‘Na pratica, eram espides que tinham a competéncia potencializada no em agées concretas, mas no dima de vigilancia que era criado a partir das suas existéncias. A discrigdo, que poderia ser uma caracteristica da nomeacio do Familiar, nem sempre era respeitada; pois a investidura na fungio era meio de promocdo social. Criando uma dubiedade: nao era raro a vizinhanga e membros da elite local conhecerein a identidade dos Familiares, tornando-a um segredo de Polichinelo. Os Familiares ganhavam destaque também por serem leigos, e suas nomeagées indicavam uma aproximacdo entre os poderes temporal e religioso™. Essa milicia assegurava a presenga viva da Inquisigio, principalmente a partir de suas acées investigativas. Representavam uma ponte entre 0 véu e o Tribunal, tendo um papel de destaque na América A. Otaviano Viera Je. 59 60 Portuguesa: auxiliar a depuragao da fé a partir das imposicée: contra-reformistas do Concilio de Trento e no combate especifico das religiosidades gestadas nas interfaces cultu: : que envolviam as populacées no Brasil™, = As Visitagées do Santo Oficio, ocorridas no Brasil em 1591 1618 (na Bahia), 1593 (em Pernambuco) e 1763 (Gra Para e Maranhio), aliadas as Devassas ou Visitas a montavam uma imbricada rede de controle. Essa trama se fortaleceu na América lusitana entre os séculos XVII j XVIII, com a intensificaco das nomeacées de Familiares, que Vigavam cotidianos de diferentes rinedes e eriavam suport para a efetivagao das Vistas e Devassas*, Nesse movimento, © século XVIII teve um papel especial, principalmente pelo aumento significativo de nomeagdes de Famili articulado com a multipicacdo de dioceses e prelaias, com 4 Sa pee top pap erento fortalecimento da estrutura eclesidstica no Brasil™, Como se Tornar um Familiar A habilitago de um Familiar era um lento processo: exigia 0 envio da documentasdo entre o Brasil e Portugal ‘lem de ‘ eS acionava outros dois Tribunais (Evora e Coimbra) ¢ Poderia signifcar o deslocamento de Comissérios para os pan nascimento e moradia do solicitante e/ou de seus Parentes, Durante a investigagio, que sustentaria 0 parecer aus em cena uma série de marcadores sociais: origem, eligi, renda, idade e genealogia do habilitando e de us parentes, Nao era facil conseguir a aprovacio do Sant Officio, era necessério tempo e dinheiro. ° Alngusigto ea Sertio Todo o processo corria as custas do habilitando, que tinha sua vida e a de sua familia investigadas. Dos av6s até a esposa, o candidato a Familiar seria alvo de uma sistematica rigorosa investigacao. O objetivo dessa pesquisa era saber se 0 habilitando tina, na sua linhagem, sangue judeu, mouro ou mulato, se tinha algum parente que fora réu do Santo Oficio, se tinha alguma macula moral no seu passado, ‘se tinha patriménio suficiente para viver decentemente, se sabia ler e escrever e também se era capaz de guardar os segredos do Santo Oficio”. ara iniciar-o proceso era necessario que o candidato solicitasse sua habilitagio junto ao Tribunal de Lisboa. Foi 0 que fez, por exemplo, Salvador de Souza Braga Barros, entio com a idade de 14 anos, em 15 de novembro de 1791: Diz Salvador de Souza Braga e Bairros estudante, natural da Vila de Santa Cruz do sertdo do Aracaty, Bispado de Pernambuco, ‘e morador na Vila do Recife do dito Bispado de Pernambuco que elle deseja que V. Magestade the faca a graca de o criar Familiar do ‘Santo Oficio da Inquisicdo desta Corte, por se persuadir ter todos 0s requisitos necessdrios™. ‘A partir daf seria investigado, primeiramente, sua genealogia, ou seja, a origem de sua familia. Nesse caso, Salvador tinha alguns pontos a seu favor. Era filho do Mestre de Campo Pedro José da Costa Barros, um rico comerciante portugués, natural da Vila da Ponte, que estava, hi muitos ‘anos, estabelecido em Aracati - no Ceara. Além de ser rico, seu pai também era Familiar do Santo Oficio, 0 que teoricamente serviria como uma certidao favordvel a sua genealogia e a sua moral. A mie, por ser esposa de Familiar, também j havia tido sua vida escrutinada pelo Santo Oficio e era por este habilitada - nao como Familiar, mas como esposa de Familiar. ‘A.Otaiano Vieira Je 61 62 Oavé materno de Salvador, também chamado Salvador Braga, era outro rico comerciante em Aracati, outro Familiar da Inquisigao. Tanto pelo lado materno, quanto pelo paterno, 0 habilitando se encontrava em posicdo privilegiada para obter a suposta permissio, que era t4o cara aos membros de sua familia ~ além do pai, mae e avo, Salvador tinha um irmao habilitado como Familiar (0 futuro presidente da Provincia Pedro Costa Barros). Quase um ano apés a solicitagao, em 12 de outubro de 1793, saia o primeiro nada consta. Fora emitido pelo notério do Santo Oficio de Lisboa, Joio Evangelista, e atestava que naquele Tribunal ndo existia nenhum processo contra Salvador. Em janeiro do ano seguinte, os Tribunais de Evora e de Coimbra emitiram documentos semelhantes. Apés passar pelo Conselho Geral do Santo Oficio, 0 processo retorna a Recife para ser dada continuidade®, Em 12 de marco de 1793, 0 comissdrio do Santo Oficio, Joaquim Marques de Araijo, nomeava seu escrivao, 0 padre Francisco Xavier de Deus para iniciar as diligéncias sobre 0 passado do habilitando. Tais diligéncias recebiam o titulo de investigacao sobre Filiagdo e Capacidade. Sua base era construida a partir da inquirigéo de testemunhas cristas, legais, fidedignas, noticiosas e dando-lhes 0 juramento dos Santos Evangelhos para dizerem a verdade, e terem segredo no que forem perguntados ®. As testemunhas deveriam responder perguntas relacio- nadas, como ja dito anteriormente, a situago social e eco- némica do habilitando e de sua familia; além do seu pasado moral e de sua situacao junto ao Santo Oficio. Aqui, um ele- mento merece destaque: o fato de que a histéria da familia poderia auxiliar a habilitacao ou comprometé-la; pois numa ‘Alinguisigto eo Sertio sociedade estamentaxia a origem era téo importante quan- to as posses. A pureza do sangue no mundo ibérico acaba~ va sendo um critério de classificacao social que legitimava hierarquias e controle de cargos administrativos — além de ‘outras mercés reais‘. Resumidamente as perguntas sobre Salvador Braga, formuladas para as 5 testemunhas convocadas, seguiram 0 padrao da habilitacao: se sabiam por que foram chamadas a depor, se conheciam o habilitando e sob que circunsténcias, se conheciam os pais do habilitando e sob que circunstancias, se 0 habilitando era filho legitimo dos pais nomeados, seo habilitando eraherege, se alidbilitando oualgum dos seus familiares 4 haviam sido condenados pelo Santo Oficio, se 0 habilitando sabia ler e escrever, se tinha bons procedimentos morais, se sabia guardar segredo, se vivia abastadamente e qual era sua renda anual, se 0 habilitando tinha filhos ilegitimos. Todas essas perguntas foram feitas a cada uma das testemunhas convocadas a casa de morada do Comissario® ‘Todas as testemunhas chamadas tinham que, inicialmen- te, declararem seus nomes, cognomes, naturalidades, moradas, oficios, qualidades e costumes. Esse era o primeiro momento onde a testemunha legitimava sua fala a partir de sua origem e passado. No caso de Salvador, todas as testemunhas eram comerciantes, como seu pai; 0 que poderia indicar a mon- tagem de uma rede de conhecimento auxilio miituo entre esses mercadores. A habilitacdo poderia ser percebida como elemento de promogio social para homens, que exerciam uma atividade associada muitas vezes ao judaismo. Das cinco teste- munhas, duas ja eram Familiares do Santo Oficio. ‘As falas das testemunhas em nada desabonaram o pleito de Salvador. Em geral, procuraram ressaltar a riqueza paterna 0 fato de o pai ser Familiar. Sem nenhum impedimento, no |. Otaviano Vieira J 63 64 dia 13 de margo de 1793, era lavrado o termo que certificava a validade dos depoimentos anexados ao proceso, Mas ainda no era o final. Os Registros de batismo do habilitando e do matrimonio dos seus pais foram anexados a habilitacao, como forma de assegurar a origem familiar de Salvador. O registro de batismo fora copiado do Livro de Batizado, folio 76, enviado diretamente de Aracati para Recife e depois até Lisboa. O de matriménio dos pais viera de Recife. De qualquer maneira, a Inquisigio solicitava que a documentacao paroquial estivesse organizada, 1a pesquisava elementos importantes para as: homes ¢ origens de pais e avés. Assim, se fechou o cerco sobre a vida de Salvador. A fala das testemunhas associadas aos Registros Paroquiais, envolviam pelo menos duas capitanias, sseverarem os que Pernambuco e Ceara, além das avaliagdes feitas em Lisboa. Em 14 de marco de 1793, 0 comissario Joaquim Marques de Araijo finalizava sua diligencia e indicava o deferimento do pedido de Salvador. Processo retornou para Lisboa, onde foi pesquisado e anexado um termo de comprovacao da habilitagao do pai de Salvador, que era Familiar desde 1788* Até que no dia 28 de outubro de 1793, dois anos apés a solicitacao feita por Salvador, ao custo de 4$315 (quatro mil trezentos e quinze réis), Salvador Braga Barros entrava para 0 r0l dos Familiares do Santo Oficio. O parecer foi o seguinte: Como os Pays do habilitando Salvador de Souza Braga e Barros fordo habilitados pelo Santo Oficio, e 0 habilitando na sua Pessoa demonstra sem defeito algum, e com aptidado precisa para servir 0 argo que pretende; esta nos termos de se Ihe dever passar a Carta de Familiar, e para este fim o habilito *, AlnguisgsoeoSertio Familiares Distantes do Santo Oficio ‘A documentacio que faz referéncia ao Cear4, até fins do século XVIII, insistia em chamé-lo de Sertdo. Este termo nao Ihe es associado apenas pelo cima, vegetagio ou aridez do solo capitania do Ceara era Sertao por ser caracterizada eee lugar distante e ermo. Uma regido que ainda nao havia rece = uma maior atengéo por parte das agdes administrativas da Coroa. Um vasto territério emoldurado por frégeis e nem aaa femme een ‘em processo ‘de consolidagao da ocupacao do seu territério pelo governo lsitano, controlada administativamente por potentados locais e palco de viscerais querelas entre familias. ‘Administrativamente, pela sua pouca importancia aoe a Capitania do Searé estava subordinada a de Pernambuco. Mas nio era apenas o pode leigo que se mostrava fr a terras cearenses, As igrejas locas estavam todas subordina a ao Bispado de Olinda, pois o Bispado do eae criado em 1859. Essa dependéncia acarretava ee a S5 principalmente pelas distancias, nas ages do Santo O eee territério cearense ~ o Cearé, diferentemente de a meer nio dispunha de um comissério local, A representacéo : Ceara, como lugar ermo e distante, emergia, por exemplo, lurant srocessos de habilitagao. F : Come no caso da habiitagao do padre Antonio Macedo, © pai do exposto, Durante sua habilitasao, 0 ane encarregado, Manoel Antonio da Rocha, disse o seguinte: pela distancia em que reside o habilitando [nos Cariris] nao poderd informar da sua capacidade e mais qualidades pessoais, ‘A. Otarane Weis Je 65 66 eu vou suprimir esta parte com dizer, que visitando a sobredita comarca do Seara, nela @ dois anos achei 0 Cura da Vara ao mesmo habilitando onde ainda hoje se acha no dito emprego a mais de dez anos. Ou seja, 0 comissario nao fez. a devida inquiricéo, como ordenava 0 Regimento, das testemunhas no local onde 0 habilitando residia ha mais de dez anos. O motivo alegado pelo préprio comissério era a grande distancia entre sua residéncia (na vila de Goiana, em Pernambuco) e a capitania do Cearé, Nao devemos esquecer que 0 comissario Manoel Antonio da Rocha era a maior e a mais préxima autoridade inquisitorial que deveria abranger todo o Bispado de Olinda, incluindo 0 Ceara. Talvez as dificuldades alegadas pelo comissario e a nao inquirigéo de testemunhas nos Cariris tenham contribuido para que o dito Manoel Antonio da Rocha atestasse: Nao me consta que fosse casado antes de se ordenar de ordens Sacras e menos que tenha para aquele lugar filho algum ilegitimo. Ora, ‘como jé vimos anteriormente, o habilitando era um padre que tinha filho ilegitimo. Um segredo de Polichinelo, corrente entre pessoas que moravam na vila. E mais: tal segredo ja havia chegado aos ouvidos do Santo Oficio, informado pelo préprio exposto que atestava sua condicao de ilegitimidade e o nome de seu pai. Muitas vezes isolamento administrative em que vivia o Ceara, criava situagdes inusitadas, que burlavam e questionavam um idealizado rigor e segredo defendidos pelo Santo Oficio durante a habilitagdo de seus Familiares. Foi o caso da habilitagdo de José Joaquim da Rocha. José Joaquim nascera em Pernambuco, na vila de Goiana, mas acabou se estabelecendo em Granja no Ceard. Sua chegada na regiéo foi articulada por um irmao, chamado Manoel Antonio da Anguisgio 0 Sertto Rocha: isso mesmo, o comissério que reclamara da distancia dos Cariris e que abdicava de diligéncias em detrimento de suas lembrancas. Manoel Antonio chegara no Ceara como Visitador Pastoral em 1782, trazia, na sua bagagem, além do fato de ser comissario do Santo Oficio, sua habilitacao como Cavaleiro da Ordem de Cristo ~ uma rara comenda naquelas paragens. E logo, utilizando toda sua distingao social, acordara 0 casamento entre seu irmio, que o acompanhava durante a Visitacao, ea filha de um rico proprietério de fazendas de gado da regio de Granja”. ‘Até ai nada que ameacasse os rigores do Tribunal do Santo Oficio, apenas‘aatilizagao do seu santo nome como elemento de promogao social ~ nada que nao tenha sido feito antes, ¢ continuasse sendo feito depois. Mas José Joaquim, seguindo o caminho do irmao, queria mais; queria também ser Familiar do Santo Oficio. Assim, em maio de 1790, solicitava a habilitagao. Esta s6 foi conseguida seis anos depois. A demora se deu pelas confusdes que envolveram 0 seu processo. © pedido de habilitacao deixara Granja no ano de 1790. Tal pedido foi encaminhado diretamente para Lisboa, pois deveria ser feito ao Tribunal do Santo Oficio. Esse pedido gerou duas missivas do Santo Oficio, que partiram de Lisboa com a intengao de legitimarem o inicio das diligéncias para a habilitacdo. © destinatario das cartas seria 0 comissario mais proximo da morada do habilitando, que era seu proprio irmio. O contetido da correspondéncia ordenava que o padre de Sobral, Basilio Francisco dos Santos, fizesse as inquirigées das testemunhas em Granja (onde morava o habilitando) e que © comissario Manoel Antonio da Rocha inquirisse em Goiana (onde nascera o habilitando). 0 procedimento padrao estava sendo cumprido. A. Otaviano Vieira Je. 67 68 Mas a trajetéria percorrida pelas cartas, que partiam de Lisboa, lacradas com 0 selo do Santo Oficio até chegarem as maos do comissario, foi no minimo, inusitada, O comissério recebeu as cartas com o lacre rompido. Foi entregue em suas méos por um escravo, chamado Vitorino, que residia no Ic6. O escravo singelamente dissera a0 comissério que ndo reparasse nos lacres rompidos, pois assim os recebew. Disse mais: falou que havia recebido as cartas em Recife, para onde 0 Santo Officio as enviara. Recebera Vitorino as cartas das maos de um preto forro, professor de espada e oficial de calafate, chamado José Pacheco. Pacheco dera os documentos pedindo Para que Vitorino fizesse o favor de os entregar na vila de Goiana, residéncia do comissario. O que foi feito. Como as cartas haviam chegado nas maos de um preto forro, que nao era funcionério ou membro da Inquisicéo, é um mistério que © tempo ocultou. Assim, o pedido de habilitasao partiu de Granja, foi até o Tribunal de Lisboa. De Lisboa 0 pedido, ja transformado em rocesso, alcangou Recife, De Recife, aproveitando a carona de ‘um escravo que rumava para Ic6, o processo chegou as maos do comissério. Nesse interim, o lacre foi rompido, e nao se pode imaginar qual v :émero de pessoas que tiveram acesso ao seu sigiloso contetido. O comissério, ainda mais interessado no proceso por ser de seu irmao, recebeu as cartas depois destas atravessarem © Atlantico duas vezes, andarem por veredas empoeiradas ¢ serem violadas por olhares indiscretos. Atonito, 0 comissario Manoel Antonio Rocha queixou-se ao vigario de Sobral, pedindo que este iniciasse as diligencias 0 mais rapido possivel: Eu [o comissério] aqui remeto para a prontidao de ‘Alnquskzoee Serio se averiquar este Cas, talves munca visto, sem demoras, Este pedido eradatado de 13 de agosto de2796% © comissario temia esse desleixo com o sigilo do Santo Ofico por ser ele orepresentante-mor do Tribunal na epi princpalmente, porenvolverum parenteseu—oqueagravaria sua suposta culpa. Apesar oa os percalgos e demoras, 4 ganhara mais um Familiar. Soe rmaneira, esse caso revela a fragilidade a presenga de ditames burocraticos do Santo Oficio em terr cearenses, agravada pla distancia iolamento da Capitani Diz mais: que apesar das adaptardes necessias,incluindo a hablitagig de um padre com filho ilegitime, do proprio filho ilegitimo e nao anulagao de processos que aes siflosrompidos, a Inquisigioleitimavao olhar vigilante de seus esides: os Familiares. Mesmo fg, menos estrutrade do que em outras regides da América portuguesa, 0 Cearé ganhava a presenca efetiva de membros da Inguissto, © Santo Oficio, pelo menos em relagao ao Sertao, se adap incar seu olhar e seu nome. com impedimentos moras, mesmo com correspondéncias violadas,o Tribunal do Santo Oficio de Lisboa estava presente naquele sertéo da América Portuguesa. Sua presenca tin um nome: Familiar. ‘A. Otaviano Vieira J. 69 70 Notas Cf: BETHENCOURT, Francisco, Histéria das Inquisigdes. Lisboa: Circulo de Leltores, 1994, p, 196, Gf: BETHENCOURT, op cit, DINES, Alberto. Vineulos do Fogo. Sao Paulo: Cia. das Letras, 1992.0 autor descreve com maestria um auto-de-fe, valendo-se a descrigao de viajantes em Lisboa ea imaginacéo. ®DINES, op. cit. “BETHENCOURT, op. cit, p. 212-226, “NAZARIO, Luiz, Autos-de-Fé como Espeticulos de Massa. Sio Paulo: Humanitas, Fapesp, 2005, p. 139, Ider, "idem, "CALAINHO, Daniela. Pelo Reto Mistério do Santo Ofco: flsos agentes ‘nquisitoriais no Brasil colonial. n: VAINEAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno & LAGE, Lana.A Inquisigio em Xeque, Rio de Janeiro: Ed. UERJ, PAPER, 2006, p. 69 ‘Os Dominicanos eram conhecides como Caes de Deus, por serem os primeiros soldados de Cristo, expecializados na vigilancia dos dogmas da fé. ai, o lugar de destaque no auto-de-fe INDEX: r0l dos livos censurados pela Inquisicao, MNAZARIO, op. cit, p.226, * Nao existe consenso sobre a data do Wkimo auto-de-fé (1765, 1767 ou 1768) tendo como ponto de tensio o ano do ultimo auto piblico, embora o ano de 1765 seja 0 comumente mais aceto. De qualquer maneira Pombl, proibiu os PAblicos autos-de-fé em 1771, NAZARIO, op. cit, p. 147, "Inquisigio e Cristios-Novos. Porto: Inova, 1963, p41 NAZARIO, op, cit. p. 17. © autor destaca o papel da humithacio pablica como instrumento de controle social, e destaca 0 atto-de-fé como um daccos ‘mecanismos de humilhacio, SSVAINEAS, Ronaldo, Trépico dos Pecados. Rio de Jancito: Ed, Campus, 1989, p. 224-236, a “BETHENCOURT, op. cit, p. 275. 2 Alguns historiadoresdedcaram pacelasignifcatva de seus trabalho para lenunciarem a presenga da Inquisicdo na América portuguesa: VAINFAS, t t . ee «it, MOTT, Luiz, © Sexo Proibido. Campina, SP: Papirus, 1988. NOVINSKY, Anita, Cristdos-Novos na Bahia. Sio Paulo: Perspectiva, 1972. SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Sio Paulo: Cia. das Letras, 1989, Alnguisgio eo Seto SIQUEIRA, Sénia. A Inquisido Portuguesa © a Sociedade Colonial. Sto Paulo: Ba tia, 1978, Ente outros {8Cf primeir capitulo dese liv. “Devers atentar para o pape das densincas como fonte de pesquisa das aes ingustorais. ois, no gerl existe uma tendénca historiogefica ae ster» pesquisa a0s processes. HIGGS, David. Servir ao Santo Of nas Minas setecenistas comitsrio Nicola Gomes Xavier In: VAINEAS, Ronaldo; HITLER, Bruno &e LAGE, Lana A Inguisigio em Xeque, Kio de Jancit: Ea ‘UERU, FAPERI, 2006, p. 118 > Sobre eriangas expostas cf VENANCIO, Renato Pinto. Familias ‘Abandonadas. Carnpna, SP: Papirus. 1999. CMANTT, Habilitagao de Families do Santo Oficio de Lisboa, Maco 195, Proc. 2916, "dem é **ARAIO, Emihuel. O Teatro dos Vicios. Rio de Janeiro: Jost Olympio, 1993, p. 246-257, *IANTT, Habiltasto de Famiiaes do Santo Ofico de Lisboa, Maso 196, Proc, 2924, MELLO, Bald Cabral de, O Nome eo Sangue. Rio de Janeiro: TopBooks, 2000, 9.27 2% ASSUNGAO, Palo & FRANCO, Joré Eduardo, As Metamorfoses de am Polvo, Lisboa Prefcio Bator, 2004 * CALAINHO, Danila, Em Nome do Santo Oficio. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, disertarto de mestrado em Historia, 1992, p44 > BETHENCOURT, op. cep. 50. TORRES, Jose Veiga. Da Represe Rtgs para Promo Social: «Inia como instancialegtimador da promot socal da buguesia, Revista de Ciéncias Sociale, Lisboa, n° 40, 1994p 109-135.Na segunda metade do séclo XVIL aumentouomimero signifiative de habitabes de Famiiars na Inquisiga de Lisboa, embora ouvesse uma diminulo ~ também signifiativa ~no mero de réus condenados por essa Inquisiao. 9SIQUEIRA, op cit, p- 181. &< HIGGS, David. Comissdrios e Familiares da Inquisigzo no Brasil aoe Fim do Periodo Colonial. In; NOVINSK, Anita & CARNEIRO, Maria Luiza Tucci Inquisigio: Ensaios sobre Mentalidade, Heresias e Arte. Sio Paulo: Edusp, 1992, 374-407. ‘A. Otaviano Weis Je n 72 "= Regimento do Santo Oficio da Inquisigao dos Reinos de Portugal, ‘ordenado pelo Cardeal Da Cunha, 1774, Titulo IX: dos famiares do Santo Ofico, ®SIQUEIRA, op cit, p.172 *CALAINHO, Daniela, Pel Reto Misério do Santo Oficio: falos agentes Inquisitorias no Brasil clonal. fn: VAINFAS, Ronaldo; PEITLER, Bruno & LAGE, Lana. A Inquisigdo em Xeque. Rio Ge Janeiro: Fd. UERL, FAPERI, 2006, ». 87-56. -CALANINHO, pct, p. 60-2. *CALANINHO, Pel Reto. op- et, p91. dem, 9.172.181 “IANTT, Habilitjdo de Famillares do Santo Oficio de Lishoa, Mago 03, Proc. 52 idem. idem, ‘MELLO, Evado Cabral de. © Nome eo Sangue. fio de Janete: TopBooks, 2000, p.27., por41 MELLO, op. ci, p. 27 “IANTT, Habilitacdo de Familias do Santo Ofiio de Lisboa, Mago 03, Proc. 52 ‘TANTT, Habiltardo de Familiares do Santo Oficio de Lisbos, Maso 03, Proc. 48 “TANT, Habilitacdo de Famiiares do Santo Oficio de Lisboa, Maro 03, Proc. 52 “Ct ARAUJO, Emanuel, Teo Vasto, Tao Erm, Tao Loge: sero ¢ 0 Sertanejo nes Temps colons. in: DEL PRIORE, Mary (org). Reviato da Paraiso, Kio de Janeiro: Campus, 2000, pp.45-92. VAINEAS, Ronaldo (org). Diclondeio do Brasil Colonial. Rio de Janeto: Objtira, 2000, pp. 528-9 Vanfas arma atenglo pera a associagio entre sertéo e naturezarebelada, que poder servis de freio ao tpetn dem enviguecimento fac. No qut ae celts vo canes on comurm autoridades coloniais destacarem 0 tamanho e natures do sertie

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