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EXPERIÊNCIAS EM ENSINO,

PESQUISA E EXTENSÃO NA

Universidade

Caminhos e Perspectivas
Experiências em Ensino, Pesquisa e Extensão na Universidade:
caminhos e perspectivas – Volume 6
© 2021 Copyright by Geranilde Costa e Silva (Organizadora)
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
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DR. JOSÉ BERTO NETO | UNILAB DRA. VANESSA LÚCIA RODRIGUES NOGUEIRA | UNILAB

Projeto Gráfico e Capa | Carlos Alberto Alexandre Dantas


Revisão de Texto | Os Autores
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária: Regina Célia Paiva da Silva – CRB – 1051
E96 Experiências em ensino, pesquisa e extensão na Universidade:
caminhos e perspectivas – v.6 / Geranilde Costa e Silva (orgs). –
Fortaleza: Imprece, 2021.
436p. il:
Incluem gráficos, tabelas e figuras.
ISBN: 978-65-87212-21-0
1. Ensino Superior – Brasil – História. 2. Extensão Univer-
sitária. 3. Pesquisa Educacional. 4. Ensino e Aprendizagem. 5.
Silva, Geranilde Costa e. I. Título.
CDD: 378
Geranilde Costa e Silva
O r g a n i z a d o r a

EXPERIÊNCIAS EM ENSINO,
PESQUISA E EXTENSÃO NA

Universidade

Caminhos e Perspectivas
Volume 6

Fortaleza | Ceará | 2021


Sumário
APRESENTAÇÃO • 11

Ensino
OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA
CONTEMPORANEIDADE • 17
Jonas Menezes Bezerra
Luiz Carlos Carvalho Siqueira
Marla Vieira Moreira de Oliveira

AGENDA NEOLIBERAL E CONSERVADORA PARA EDUCAÇÃO: O FUTURE-SE E


O PROGRAMA NACIONAL DAS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES (PECIM)  • 32
Danielle Coelho Alves
Jonas Menezes Bezerra
Antônia Rozimar Machado e Rocha

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO DE MONITORAS DE LIBRAS  •  45


Adriana Moreira de Souza Corrêa
Williana Ferreira de Andrade
Erica Duarte Arruda
Egle Katarinne Souza da Silva

O EMERGIR DO ENSINO HÍBRIDO E O DIÁLOGO FREIREANO NUMA


EDUCAÇÃO EM MUDANÇA  •  60
Erica Dantas da Silva
Willyan Ramon de Souza Pacheco
Raimunda de Fátima Neves Coêlho

O ENCONTRO COM A DOCÊNCIA: DE PROFESSORA ALFABETIZADORA A


DOCENTE DO ENSINO SUPERIOR  • 74
Zildene Francisca Pereira

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA: A ANALOGIA


COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA  • 87
Haziel Pereira Lôbo
Heitor de Andrade Silva
CONTRIBUIÇÕES DO TRABALHO COM PROJETOS COMO OPÇÃO
METODOLÓGICA PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES  •  99
Marcelle Arruda Cabral Costa
Fátima Maria Araújo Saboia Leitão
Maria Cecília Martins Aguiar Magalhães Pedrosa

A DINÂMICA PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO NA UUNDC/UFC EM TEMPOS


DE PANDEMIA • 111
Fátima Maria Araújo Saboia Leitão
Maria Auricélia da Silva

LIVES ALUSIVAS AO SETEMBRO VERDE NO INSTAGRAM: FORMAÇÃO


HUMANA EM TEMPO DE DISTANCIAMENTO SOCIAL  • 124
Gabriella Vilar de Alencar Rodovalho
Egle Katarinne Souza da Silva
Adriana Moreira de Souza Corrêa
Reginaldo Pedro de Lima Silva
Mirella Katiuze André Lopes Ponchet

LETRAMENTO INCLUSIVO: ATIVIDADES ENVOLVENDO EGRESSOS DA


UFCG  • 138
Egle Katarinne Souza da Silva
Adriana Moreira de Souza Corrêa
Thaíse Duarte Temoteo Gonçalves
Aparecida Carneiro Pires

PSICOMOTRICIDADE E EDUCAÇÃO: CONSTRUINDO NOVOS OLHARES  • 152


Mailane Vinhas de Souza Bonfim

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO


DE ENSINO E APRENDIZAGEM DOS ALUNOS DO 3O CICLO DO ENSINO
BÁSICO • 166
Elsa Maria Frederico Livo Ozobra
IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA EM CAUCAIA/CE:
RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO COLETIVA DE 2014
A 2020  • 182
Cláudia de Oliveira da Silva
Paulo Willian Almeida Sousa

OS PROCESSOS DE ENSINO, APRENDIZAGEM E DE AVALIAÇÃO NO ESTADO


DE PERNAMBUCO MEDIADOS PELA PERSPECTIVA GERENCIAL DO BANCO
MUNDIAL • 199
Isaias Julio de Oliveira
Joseane Fátima de Almeida Araújo
Márcia Socorro Florêncio Vilar

EDUCAÇÃO, SAÚDE E ESPIRITUALIDADE: RELATO DE EXPERIÊNCIA NA


DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA  • 210
Luciana de Moura Ferreira

CANTIGAS DE RODA EM PRÁTICAS COM A LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO


INFANTIL • 224
Stefania Maia Araújo
Luciana Matias Cavalcante

Pesquisa
CIBERESPAÇO E MICROPOLÍTICA: UMA ANÁLISE DO ATIVISMO NAS REDES
SOCIAIS  • 241
Zilda Maria da Silva Dutra
Sofia Ísis Dutra Rocha

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO COM ADOLESCENTES NO PROCESSO


EDUCACIONAL DURANTE O PERÍODO PANDÊMICO  •  252
Anaisa Alves de Moura
Edileuza Lima Freire
Vithória Alves de Moura
Talita Maria Araújo de Abreu
Tarcísio Pereira Vasconcelos Neto
DILEMAS VIVIDOS PELA ESCOLA FRENTE AO PROCESSO DE INCLUSÃO DE
CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA  •  266
Geranilde Costa e Silva
Ana Paula Silva Soares de Castro

JORNAL CORREIO DO CEARÁ: A TEMÁTICA DA SECA E A MEMÓRIA DO “DRAMA


SECULAR”  • 278
Luciane Azevedo Chaves

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO  •  290


Ângela Cláudia Rezende do Nascimento Rebouças

IMAGEM, HISTÓRIA: DESENHANDO POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA A


PESQUISA EDUCACIONAL  • 306
Maria Cecilia de Paula Silva
Ana Paula Trindade Albuquerque
Menandro Celso de Castro Ramos

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A MULHER PODE TUDO?: HISTÓRIAS E


MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E GÊNERO EM MAR ABERTO  • 321
Maria Cecilia de Paula Silva
Lygia Maria dos Santos Bahia

O FENÔMENO DA SUBORDINAÇÃO NO NÍVEL VOCABULAR: REFLEXÕES


NECESSÁRIAS  • 336
Jammara Oliveira Vasconcelos de Sá
Carlos Eduardo de Oliveira Pinheiro
Edmar Peixoto de Lima

TRAJETÓRIA EDUCATIVA E LITERÁRIA DE MARIA NELY DE OLIVEIRA


RAMOS • 350
Francisca Edjanaria Pereira
Débia Suênia da Silva Sousa
MEMÓRIAS DO LEGADO EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA  •  365
Débia Suênia da Silva Sousa
Flavia Moraes Cartaxo
Dagmar Alaíde de Lira Ferreira

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O PROCESSO


DE FEITOS DE SENTIDO  • 378
Lucineide Matos Lopes
Maria Margarete Fernandes de Sousa

TRABALHO E PRÁXIS NA CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA


EMANCIPADORA • 394
Francisco Ernande Arcanjo Silva
Rosalho da Costa Silva

BRINCANDO E PRODUZINDO HISTÓRIAS COM SUPORTE DIGITAL NA


EDUCAÇÃO INFANTIL • 407
Maria Auricélia da Silva
Hanna Almeida Sousa

Extensão
O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE
CAPITALISTA E DA PANDEMIA  •  421
Sandra M. M. Siqueira
Francisco Pereira
11

APRESENTAÇÃO
O livro Experiências em Ensino, Pesquisa e Extensão na
universidade: caminhos e perspectivas – Volume 6, é um convite
aos educadores e educadoras, professoras e professores, profissio-
nais e pesquisadores interessados em conhecer as culturas produ-
zidas nos cotidianos das salas de aulas, nos espaços potentes de
ensino, pesquisa e de extensão.
Uma obra especial por muitos motivos: o primeiro, porque
nasce num contexto social marcado por um grande desafio da hu-
manidade: a pandemia sanitária causada por um vírus, COVID-19,
que assolou o mundo no ano de 2020. O segundo, por reafirmar
o esforço na produção de conteúdos formativos que dialoguem
com os conhecimentos científicos nos principais eixos – ensi-
no, pesquisa e extensão – vivificados no cotidiano da escola e da
­universidade.
Essas razões explicam a excepcionalidade dos textos que
versam, em parte, sobre o ensino remoto como alternativa meto-
dológica encontrada para o desenvolvimento do processo de ensi-
no e aprendizagem, na educação básica e no ensino superior. Além
de inúmeras contribuições acadêmicas em conteúdos que reúnem
teorias e práticas, caminhos e perspectivas do trabalho pedagógi-
co, no âmbito dos processos educativos.
Neste livro, estão presentes aspectos que remetem às di-
mensões dos contextos cotidianos na escola ou na universidade.
No caso, cotidianos, no plural, por compreendermos as multipli-
cidades, heterogeneidades e individualidades contidas nas experi-
ências, vivências e práticas que constituem as criações/recriações
de tempos, espaços e culturas que se entrecruzam e dialogam o
tempo todo e por toda a vida, como nos inspira Certeau1.

1 Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vo-
zes, 2014.

APRESENTAÇÃO || LUÍS CARLOS FERREIRA


12

Nessa perspectiva, o Volume 6 nos permite a arte do en-


contro do ensino, da pesquisa e da extensão em contextos liga-
dos à educação básica e superior, em temáticas sobre as práticas
pedagógicas em sala de aula, as experiências didáticas de (multi)
letramento e de inclusão – seja nos aspectos da deficiência, no en-
sino de Libras e mesmo pelo contato digital – como nos sentidos,
significados e usos das ferramentas tecnológicas, aguçadas nesse
período de pandemia.
O diálogo, por vezes tenso, com as tecnologias digitais exi-
gidas nesse momento, revelam textos que apresentam o ensino hí-
brido, as redes sociais – Instagram – e as dinâmicas das conversas
ao vivo, na forma de Lives, como possibilidades de aproximação
e recriação de afetos na educação infantil à graduação, sugeridos
nesse volume.
As histórias, memórias e o legado, deixados em trajetórias
de formação literária e educacional de professores, alguns torna-
das personalidades – Profª Maria Nely de Oliveira Ramos e Profª
Vitória Bezerra, ambas do estado da Paraíba, potencializaram
estudos que analisam o que Conceição Evaristo chama de “escri-
vivências” nas cartas de leitor pernambucano, nas leituras de ima-
gens – fotografias e anúncios publicitários – e nos jornais de época,
Correio do Ceará, indicados em textos contidos na obra.
As preocupações com o processo de ensino e aprendizagem,
na escola e na universidade, aparecem em artigos que versam so-
bre a psicomotricidade e as experiências pedagógicas promovidas
nas cantigas de roda e nas brincadeiras, sobretudo, na perspectiva
da alfabetização, os processos inclusivos na Educação Especial e
na relação entre a escola e família do povoado Nhapoza-Muanza,
em Moçambique.
As questões étnico-raciais e as relações com o corpo, a saúde
e os saberes ancestrais e espirituais também suscitaram reflexões
acerca das práticas curriculares descolonizadoras em comunida-
des quilombolas do Ceará – Caucaia e Tremembé – tanto em arti-

APRESENTAÇÃO || LUÍS CARLOS FERREIRA


13

gos ligados às experiências na educação básica como na educação


superior.
Ainda nesse volume, as políticas públicas de educação en-
contraram apoio em textos que tratam da formação de profes-
sores, programas educacionais contemporâneos – Future-se e o
Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares –, avaliações da
aprendizagem e os recursos financeiros do Banco Mundial para a
educação.
A coletânea organizada por Geranilde Costa e Silva, enri-
quece o encontro científico e acadêmico, dá visibilidade aos diver-
sos autores e atores da Graduação e da Pós-Graduação e, sobretu-
do, fortalece os movimentos de luta e resistência, em favor de um
projeto emancipatório e humano.
Fica o convite à leitura crítica e reflexiva!

Luís Carlos Ferreira2

2 Dr. em Educação. Pedagogo. Docente junto à Universidade da Integração Inter-


nacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Endereço para acessar este CV:
http://lattes.cnpq.br/4442920811345896. E-mail: luisferreira@unilab.edu.br

APRESENTAÇÃO || LUÍS CARLOS FERREIRA


Ensino
17

OS PARADOXOS DAS
POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA
CONTEMPORANEIDADE
Jonas Menezes Bezerra1
Luiz Carlos Carvalho Siqueira2
Marla Vieira Moreira de Oliveira3

RESUMO
Este ensaio objetiva dialogar com as políticas educacionais brasi-
leiras e os paradoxos circunscritos aos projetos político-econômicos em
disputa na contemporaneidade. Um estudo que se justifica no escopo dos
debates relativos às disciplinas: Gestão da Educação Básica I e II e Está-
gio em Gestão da Educação Básica. Trata-se de uma pesquisa bibliográ-
fica e documental que, em sua tessitura, converge para um diálogo com
as práticas de ensino nas disciplinas referenciadas e os paradoxos com
questões expressivas do contexto educacional brasileiro. Verifica-se que
as políticas se interseccionam nas necessidades dos diversos atores e no
contexto social e educacional, resultando na confirmação que se trata de
um tema com nuances complexas. Conclui-se que o tensionamento gera-
do nesses debates e leituras nas disciplinas contribuem para um vislum-
brar de questões essenciais da educação e proporcionam um olhar para
novos estudos.
Palavras-chave: Políticas Educacionais. Ensino. Educação Básica.

1 Professor da Universidade Regional do Cariri (URCA). Doutorando em Educação


– PPGE/UFC; Mestre em Educação (USP); Graduado em Ciências Sociais (UFC).
E-mail: jonasmbezerra@gmail.com.
2 Professor da Universidade Regional do Cariri (URCA). Doutorando em Educação
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Mestre em Educação (MPEDU/
URCA). E-mail: luiz.siqueira@urca.br.
3 Professora da Universidade Regional do Cariri (URCA). Doutora em Educação –
PPGE/UFC; Mestra em Políticas Públicas e Sociedade (UECE); Graduada em Peda-
gogia (UECE). E-mail: marla.vieira@urca.br.

OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE


18

ABSTRACT
This essay aims to dialogue with Brazilian educational policies
and the paradoxes circumscribed to the dispute of political-economic
projects in contemporary times. A study that is justified in the scope
of debates related to the disciplines: Management of Basic Education
I and II and Internship in Management of Basic Education. It is a bibli-
ographical and documentary research that in its context converges to a
dialogue with teaching practices in the referenced disciplines and the
paradoxes with expressive issues in the Brazilian educational context.
It appears that policies intersect in the needs of different actors and
in the social and educational context, resulting in confirmation that
this is a topic with complex nuances. It is concluded that the tension
generated in these debates and readings of the disciplines contribute
to a glimpse of essential issues of education and provide a look at new
studies.
Keywords: Educational Policies. Teaching. Basic education.

INTRODUÇÃO

O presente ensaio tem como tema as políticas educacionais


brasileiras na contemporaneidade. Assim, ao se falar de políticas
educacionais estamos tratando de tensionamentos, de relações de
poder e práticas macro/micro sociais circunscritas em projetos de
governos e políticas públicas que contornam, tangenciam ou pro-
vocam manutenção ou mudanças nas várias esferas e contextos
escolares, e a isso chamamos de paradoxos.
Tais reflexões emergem de experiências e debates realiza-
dos no processo de organização do ensino de diferentes compo-
nentes curriculares sobre Gestão Educacional, no Curso de Licen-
ciatura em Pedagogia, na Universidade Regional do Cariri (URCA),
são eles: Gestão da Educação Básica I, ofertada no sexto semestre
e com uma carga horária de 72 horas-aula; Gestão da Educação
Básica II, ofertada no sétimo semestre e também com uma carga
horária de 72 horas-aula e Estágio Supervisionado em Gestão da

JONAS MENEZES BEZERRA • LUIZ CARLOS CARVALHO SIQUEIRA


MARLA VIEIRA MOREIRA DE OLIVEIRA
19

Educação Básica, oferecida no oitavo semestre do curso e com


uma carga horária de 144 horas.
Através destes deslocamentos, buscamos refletir breve-
mente sobre os paradoxos imbricados nas políticas públicas para
educação básica. Assim, ensejamos apontar incidências dos pro-
jetos político-econômicos em disputa na contemporaneidade em
políticas educacionais comumente discutidas nos componentes
curriculares supracitados.
Entre os elementos que nos ajudam a pensar sobre os pa-
radoxos das políticas educacionais em tempos de crise sanitária,
quarentena, pandemia, isolamento social, seja qual for a catego-
ria que usemos para localizar nossas reflexões temporalmente em
2020, nos deparamos com uma “realidade à solta” e de “excepcio-
nalidade da excepção”, que para Santos (2020, p. 13) significa dizer
que:
A pandemia confere à realidade uma liberdade caótica,
e qualquer tentativa de a aprisionar analiticamente está
condenada ao fracasso, dado que a realidade vai sempre
adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela. Teorizar
ou escrever sobre ela é pôr as nossas categorias e a nossa
linguagem à beira do abismo.

Nesse cenário se tem, portanto, diversos discursos em con-


flitos, que tensionam o lugar e o papel da escola, que amplificam as
relações de poder hegemônicas das políticas-econômicas de gru-
pos sociais de extrema-direita e a direita hiper-neoliberal de mer-
cado, potencializadores do aprofundamento das desigualdades,
precarização dos serviços essenciais do Estado como a educação,
saúde, assistência social e seus reflexos diretos principalmente na
vida de crianças, jovens e adultos em situação de escolarização.
São nesses entremeios que os deslocamentos da discência e
docências oportunizam entender as fragilidades, precariedades,
desigualdades que permeiam a educação escolar em suas fases
instituinte e instituídas de performatividades. A primeira sendo

OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE


20

as dimensões de ordem legalista dos discursos oficiais estabeleci-


dos nos documentos educacionais. A segunda se constitui nas/das
práticas cotidianas dos espaços escolares – onde o discurso oficial
chega ou não, são apropriados, incorporados ou refutados. Nos de-
bruçamos aqui na primeira delas.

OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS

As políticas educacionais brasileiras pós 1988 se estabele-


cem em meio a um cenário de profundas contradições. De um lado,
se tem a reabertura do sistema político e governamental democrá-
tico, de ideais republicanos, do bem comum, ética e solidariedade,
que nas palavras de Botler (2020, p. 30) se constitui como “[...] uma
ideia não apenas do ponto de vista formal, do direito adquirido,
mas, sobretudo, do ponto de vista social, do direito experimenta-
do.”, e do outro, o sistema capitalista de economia global, ou tam-
bém conhecido como neoliberalismo de mercado, estabelecendo
diretrizes para manutenção de sua hegemonia. Assim, tanto o res-
tabelecimento do sistema político-democrático nacional quanto a
reestruturação do sistema capitalista global passam a interpelar
o papel da escola diante das mudanças econômicas, políticas, so-
ciais e culturais do mundo contemporâneo.
Buscando traçar um panorama dos paradoxos das políticas
educacionais, três aspectos saltam aos olhos justamente pelas ex-
periências discentes-docentes, mencionadas anteriormente, que
são: a) Direito à Educação; b) Democratização da educação básica,
c) Formação dos profissionais da Educação. Estes três aspectos
embora vistos sob generalizações subsidiam o debate e visibilizam
o invisível.
O discurso oficial estabelece a Educação como um direito
subjetivo. Praticamente, todos os países/Estados no mundo cons-
tituem em seus textos legais, o acesso de seus cidadãos à escolari-
zação elementar. Acerca disso, Cury (2002, p. 246) assinala:

JONAS MENEZES BEZERRA • LUIZ CARLOS CARVALHO SIQUEIRA


MARLA VIEIRA MOREIRA DE OLIVEIRA
21

Afinal, a educação escolar é uma dimensão fundante da ci-


dadania, e tal princípio é indispensável para políticas que
visam à participação de todos nos espaços sociais e políti-
cos e, mesmo, para reinserção no mundo profissional. Não
são poucos os documentos de caráter internacional, assi-
nados por países da Organização das Nações Unidas, que
reconhecem e garantem esse acesso a seus cidadãos. Tal
é o caso do art. XXVI da Declaração Universal dos Direitos
do Homem, de 1948. Do mesmo assunto ocupam-se a Con-
venção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo
do Ensino, de 1960, e o art. 13 do Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966.

Assim, a educação escolar, incorpora em maior ou menor


grau as recomendações destes documentos oficiais. Mais recente-
mente expressada como “educação básica” e estabelecida no tex-
to da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN nº
9.394/96. Ela se apresenta como um conceito que é ao mesmo tem-
po um direito e uma forma de organização da educação brasileira.
Para Cury (2008, p. 294):
Como conceito, a educação básica veio esclarecer e ad-
ministrar um conjunto de realidades novas trazidas pela
busca de um espaço público novo. Como um princípio
conceitual, genérico e abstrato, a educação básica ajuda a
organizar o real existente em novas bases e administrá-lo
por meio de uma ação política consequente.

Essas duas formas contribuem para pensarmos acerca do


papel da escola nos dias de hoje, e sobre as implicações dos proje-
tos políticos em disputa e o contexto dinâmico das transformações
de ordem econômicas, políticas, culturais mais amplas inscritas
no sistema capitalista, tido como neoliberalismo de mercado im-
postas a escola contemporânea.
O deslocamento apontado pelos autores desvela o não temos
tido sobre planos e projetos políticos brasileiros implementados,
sobretudo, pós redemocratização de 1988 e chamam a atenção que

OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE


22

dentre essas políticas governamentais operam expressivamente


na última década do século XX, sobretudo no campo educacional,
são impostas como forma de implementação desse projeto onde:
Os países ricos realizaram suas reformas educacionais,
que, na maior parte dos casos, submeteram a escolariza-
ção às exigências da produção e do mercado. Os organis-
mos multilaterais vinculados ao capitalismo, por sua vez,
trataram de traçar uma política educacional aos países
pobres. A princípio, o interesse desses organismos este-
ve voltado quase exclusivamente para a otimização dos
sistemas escolares, no intuito de atender às demandas da
globalização, entre as quais uma escola provedora de edu-
cação que correspondesse à intelectualização do processo
produtivo e formadora de consumidores. (LIBÂNEO; OLI-
VEIRA; TOSCHI, 2012, p. 64)
Avançando para os dias de hoje, pouco mais de três décadas
da reabertura da democracia, Santos (2020), no entanto, deixa vá-
rios caminhos abertos para a percepção e desvelamento dos para-
doxos dos modelos sociais, políticos e econômicos vigentes. Den-
tre os caminhos, chamados por ele de “Lições”, destacamos duas
que nos ajudam a fazer um recorte e pensar mais especificamente
sobre a educação pública nas políticas educacionais de escolari-
zação de jovens e adultos, que são: 1) O tempo político e midiático
condiciona o modo como a sociedade contemporânea se apercebe
dos riscos que corre; 2) A extrema-direita e a direita hiper-neolibe-
ral ficam definitivamente (espera-se) desacreditadas.
A recente reforma do Ensino Médio realizada em 2017 (Lei
nº 13.415/2017) evidencia a relação paradoxal do direito à educação
no projeto de modernização neoliberal de mercado. Segundo Oli-
veira (2020, p. 2) essa Reforma,
[...] demarca mais uma forma autoritária e regressiva de
encaminhamento que as elites nacionais determinam
para a educação brasileira. Desencadeada em um momen-
to de turbulência política, as mudanças impostas à última

JONAS MENEZES BEZERRA • LUIZ CARLOS CARVALHO SIQUEIRA


MARLA VIEIRA MOREIRA DE OLIVEIRA
23

etapa da educação básica estabelecem um retrocesso e re-


afirmam, no plano educacional, perspectivas de formação
cujo objetivo é legitimar desigualdades históricas as quais
está submetida a maioria da população brasileira.

Para esse autor, o objetivo dessa Reforma “[...] é fazer da


escola um espaço de minimização da experiência formativa ao de-
mandado pelos interesses econômicos, a partir das possibilidades
de inserção ao mercado de trabalho.” (OLIVEIRA, 2020, p. 3). So-
mam-se a estas ideias que:
[...] o Ensino Médio emerge como solução relativa à gestão
limitadas às práticas de responsabilização e de empresa-
riamento. Estas vinculam eficiência escolar ao que pode
ser quantificado. O sentido da escola e sua qualidade são
definidos por avaliações em larga escala, as quais não cap-
tam, nem objetivam apreender a escola, a partir de práti-
cas e vivências nela desenvolvidas. Todos estes movimen-
tos constituem um direcionamento da educação pública
a um roteiro no qual a competitividade é a principal refe-
rência. (OLIVEIRA, 2020, p. 15)

A lógica que se faz presente a política educacional curricu-


lar do Ensino Médio nos dias de hoje, sempre fez parte das polí-
ticas públicas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) desde a sua
criação, e pelo menos dois aspectos nos faz pensar acerca da in-
visibilidade e não mobilização de um conjunto mais amplo e ex-
pressivo de estudantes, professores, pesquisadores e agentes go-
vernamentais (políticos). Um aspecto pode ser lido em virtude de
a EJA ser uma modalidade voltada para as classes e gerações que
mais sofrem os efeitos das desigualdades. O segundo aspecto, mais
visível e mais frágil, se estabelece na apropriação, incorporação do
Direito à Educação para os jovens e adultos não escolarizados, ou
em escolarização tardia. Neste último ponto estão inseridos ou-
tros agentes governamentais como políticos e gestores de redes de
ensino, professores.

OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE


24

Sobre o primeiro aspecto, Arroyo (2005) afirma que na his-


tória da EJA, por ser muito mais complexa que a história de outros
níveis e modalidades da Educação Básica,
[...] se cruzaram e cruzam interesses menos consensuais
do que na educação da infância e da adolescência, sobretu-
do quando os jovens e adultos são trabalhadores, pobres,
negros, subempregados, oprimidos, excluídos. O tema
nos remete à memória das últimas quatro décadas e nos
chama para o presente: a realidade dos jovens e adultos
excluídos. Os olhares tão conflitivos sobre a condição so-
cial, política, cultural desses sujeitos têm condicionado as
concepções diversas da educação que lhes é oferecida. Os
lugares sociais a eles reservados – marginais, oprimidos,
excluídos, empregáveis, miseráveis... – têm condicionado
o lugar reservado a sua educação no conjunto das políticas
oficiais. A história oficial da EJA se confunde com a histó-
ria do lugar social reservado aos setores populares. É uma
modalidade do trato dado pelas elites aos adultos popula-
res. (ARROYO, 2005, p. 221)

Dito isso, o segundo aspecto acrescenta o desafio de incor-


poração do Direito à Educação para os jovens e adultos.
Observa-se, assim, que o ensino fundamental de jovens
e adultos perde terreno como atendimento educacional
público de caráter universal, e passa a ser compreendido
como política compensatória coadjuvante no combate às
situações de extrema pobreza, cuja amplitude pode es-
tar condicionada às oscilações dos recursos doados pela
sociedade civil, sem que uma política articulada possa
atender de modo planejado ao grande desafio de superar
o analfabetismo e elevar a escolaridade da maioria da po-
pulação. Por outro lado, o veto presidencial à contagem
das matrículas no ensino fundamental de jovens e adultos
para efeito dos cálculos do FUNDEF representou a trans-
ferência aos estados e municípios da responsabilidade de
responder à crescente pressão de demanda, sem que lhes
fossem oferecidas as condições de atendê-la de maneira

JONAS MENEZES BEZERRA • LUIZ CARLOS CARVALHO SIQUEIRA


MARLA VIEIRA MOREIRA DE OLIVEIRA
25

satisfatória. Esse é um dos motivos pelos quais estados e


municípios têm procurado alternativas de redução dos
custos para satisfação da demanda por educação de adul-
tos, seja mediante o incentivo a iniciativas de organizações
da sociedade civil, seja recorrendo aos meios de ensino à
distância, mesmo quando essas alternativas metodológi-
cas não produzem os resultados esperados nos níveis de
aprendizagem, permanência, progressão e conclusão de
estudos. (SÉRGIO; DI PIERRO, 2000, p. 127-128)

Soma-se a esses aspectos a incipiência de estudos e pes-


quisas (NOBRE, 2015; NOBRE; SIQUEIRA, 2019, SIQUEIRA, 2020)
realizados no campo das políticas públicas voltados para escolari-
zação de jovens e adultos, sobretudo no contexto do Ceará e mais
especificamente na Região do Cariri cearense, bem como, da ne-
cessidade de refletir acerca da complexidade das desigualdades
agravadas pela pandemia da COVID 19. Assim, o Direito à Educação
nos projetos de reestruturação da educação, ou reformas educa-
cionais, constituídos sobre a égide da “lógica do capitalismo con-
correncial global e do paradigma da liberdade econômica, da efi-
ciência e da qualidade encaminha, de forma avassaladora, o novo
modelo societário [...]” (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 64)
ampliam muito mais as desigualdades, protagonizam elitismo psi-
cocultural (seletividade meritocrática), formação escolar voltadas
para o atendimento das demandas e exigências do mercado, des-
centralização dos serviços estatais com incentivo aos processos de
privatização, entre outros. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012)
Tais aspectos, nas palavras de Botler (2020, p. 29), estabele-
cem “competitividade, meritocracia, individualismo e privatismo,
inclusive como critérios de justiça nos processos de escolariza-
ção.”. A autora acrescenta que:
A democracia, na lógica mercadológica, portanto, reflete
não apenas poder e privilégios, mas principalmente, cer-
ta racionalidade e justificações das ações, o que limita o
potencial de emancipação. Assim, a cultura escolar, ainda

OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE


26

que se expresse na valorização das diferenças, cultiva o in-


dividualismo, pautando-se no argumento da neutralidade
da justiça formal/legal. (BOTLER, 2020, p. 29)

E é retomando isso que os elementos de democratização


da educação básica e a formação dos profissionais da Educação
evidenciam os paradoxos das políticas educacionais brasileiras.
A primeira delas – democratização da educação básica – embora
se constitua como um elemento interseccional da Nova Repúbli-
ca e dos discursos de reestruturação do capitalismo, sua imple-
mentação “[...] vem se consolidando desde a segunda metade do
século XX e vem ocorrendo primordialmente por meio da amplia-
ção de acesso e cobertura na escola.” (MARTINS et al, 2020, p. i).
Porém, é no contexto pós redemocratização de 1988 que a noção
de democratização da educação encena de forma mais expressi-
va as contradições e disputas entre os projetos de modernização
social-liberal e o liberalismo de mercado. Uma das formas de per-
ceber isso é apontado por Libâneo, Oliveira e Mirza (2012, p. 105)
que dizem:
Se, após a Segunda Guerra Mundial, o objetivo era certa
igualdade, com a universalização do ensino em todos os
graus, agora se fala em universalização do ensino funda-
mental. Se, na década de 1930, utilizou-se o discurso da
igualdade para expansão do ensino, em atendimento a de-
terminada modernização econômica, agora se faz uso do
discurso da eficiência e da qualidade para conter a expan-
são educacional pública e gratuita, sobretudo no ensino
superior, tendo como fim outro projeto de modernização
econômica.

Outra forma de apreensão das contradições da democrati-


zação ensaiadas nos espaços escolares está na possibilidade de ex-
ploração das práticas de gestão escolar, tais como, aponta Martins
(et al, 2020, p. i): a) Reuniões dos conselhos de escola e de classe;
b) Elaboração coletiva do Projeto Político-Pedagógico (PPP); c)

JONAS MENEZES BEZERRA • LUIZ CARLOS CARVALHO SIQUEIRA


MARLA VIEIRA MOREIRA DE OLIVEIRA
27

Participação de famílias e demais membros da comunidade. Esses


aspectos da gestão democrática-participativa nos permitem en-
tender que “A gestão participativa é diferente da gestão da partici-
pação.” (PRADO, 2012, p. 26). Segundo Prado (2012, p. 26), a gestão
participativa se constitui da presença de diversos sujeitos envolvi-
dos no processo educativo ativamente, tais como: representantes
das secretarias de educação (nas esferas municipais e estaduais);
equipe gestora; professores; funcionários; estudantes; pais e res-
ponsáveis pelas(os) estudantes; membros da comunidade escolar
externa.
Tais debates se reificam na Lei nº 13.005 de 2014, que ver-
sa sobre o (novo) Plano Nacional de Educação no Brasil (BRASIL,
2014) e na Meta 19 locus de proposições sobre a Gestão Democrá-
tica da Educação, se assentam alguns paradoxos das políticas edu-
cacionais.
Meta 19: assegurar condições, no prazo de dois anos, para
a efetivação da gestão democrática da educação, associada
a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta
pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas pú-
blicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para
tanto (BRASIL, 2014, p. 83).

Tem-se aqui, a constituição, legitimidade e legalidade sobre


como a gestão democrática é indispensável ao processo de efetiva-
ção do direito à educação e de reorganização escolar nas múltiplas
dimensões – físicas-estruturais e subjetivas: dos processos de de-
cisão, mediação de conflitos de interesses, das relações de poder,
das práticas educativas e pedagógicas, sobre socialização e produ-
ção de conhecimento, acerca dos direitos e responsabilidades no
exercício da cidadania democrática e participação ativa socioco-
munitária da autonomia da escola, em direção ao seu autogoverno
(LIMA, 2014).
Paro (2016) nos diz que a expectativa de superação do au-
toritarismo existente nos espaços escolares e da falta de envol-

OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE


28

vimento/participação de professores, alunos funcionários e pais


nos debates e decisões da escola. No entanto, a participação dos
vários segmentos escolares na escola municipais, sobretudo, de
modo a implicar a distribuição de poder ainda não é demonstrado
pelas escolas públicas, no que diz respeito às formas de seleção de
diretores por meio de processo seletivo qualificado e eleição com
participação da comunidade escolar pelos estudos realizados pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira – INEP (INEP, 2020)4.
Para o autor supracitado a eleição dos gestores implicaria:
na convivência democrática e para maior participação de todos na
gestão; mudança no comportamento, de forma radical e imediata
dos(as) gestores. Entretanto, ao perceber que muito das caracte-
rísticas do chefe monocráticas, que detém a autoridade máxima
na escola, tem persistido, mesmo depois das eleições. (PARO, 2016)
A incidência dos projetos político-econômico em disputa
na contemporaneidade evidenciam a necessidade de mais inge-
rências no campo da educação, sobretudo, em questões que con-
vergem aos seus mais diversos atores e suas condições sociais e
educativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os deslocamentos, tencionamentos, desdobramentos se


interseccionam provocando um olhar mais ampliado sobre dife-
rentes temas e políticas educacionais em disputas nos ajudam a
realizar uma síntese das leituras e debates.
Os deslocamentos discursivos dos papéis sociais dos(as)
colaboradores(as) – professor-aluno, ex-aluno agora professor,

4 Cf. o Relatório do 3º ciclo de monitoramento das metas do Plano Nacional de Edu-


cação (PNE) – 2020, exercendo, assim, a sua atribuição de publicar, a cada dois anos,
estudos para aferir a evolução do cumprimento das metas estabelecidas no PNE,
conforme determina a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. (INEP, 2020, p. 04)

JONAS MENEZES BEZERRA • LUIZ CARLOS CARVALHO SIQUEIRA


MARLA VIEIRA MOREIRA DE OLIVEIRA
29

pesquisador etc. – favorecem a percepção dos temas em sua di-


namicidade e contribuem significativamente para pensar acerca
dos “paradoxos” altamente complexos da educação. Assim, temas
como democracia, educação, escola, gestão da escola, formação
dos profissionais da educação, estudantes/alunos (lidos em seus
aspectos geracionais, de raça, classe) se entrelaçam nas falas e nos
textos.
Ficam em aberto a problematização de debates como Ho-
meschooling no Brasil, Educação das Relações Etnicorraciais, Edu-
cação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, entre outras
temáticas que convergem no âmbito da educação para debates in-
terseccionados.
Considera-se que a vivência dessas reflexões no desenvolvi-
mento das disciplinas Gestão da Educação Básica I, Gestão da Edu-
cação Básica II e Estágio Supervisionado em Gestão da Educação
Básica oportuniza um olhar diverso para questões complexas da
educação e suscita a presença de atores nos diferentes espaços.

REFERÊNCIAS

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exclusão.  In: Construção coletiva: contribuições à educação de
jovens e adultos. Brasília : UNESCO, MEC, RAAAB, 2005.
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9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e ba-
ses da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regula-
menta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Bá-
sica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação
das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de
1º de maio de 1943, e o Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967;
revoga a Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de
Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo
Integral. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assun-
tos Jurídicos. Brasília, 16 de fevereiro de 2017.

OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE


30

BBRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Na-


cional de Educação – PNE e dá outras providências – Plano Nacional
de Educação 2014-2024. Presidência da República. Casa Civil. Sub-
chefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, 25 de junho de 2014.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
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CURY, Carlos Roberto Jamil. A educação básica como direito. Ca-
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JONAS MENEZES BEZERRA • LUIZ CARLOS CARVALHO SIQUEIRA


MARLA VIEIRA MOREIRA DE OLIVEIRA
31

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gional do Cariri, Mestrado Profissional em Educação, Crato, 2020.

OS PARADOXOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE


32

AGENDA NEOLIBERAL E
CONSERVADORA PARA EDUCAÇÃO:
O FUTURE-SE E O PROGRAMA
NACIONAL DAS ESCOLAS CÍVICO-
MILITARES (PECIM)
Danielle Coelho Alves1
Jonas Menezes Bezerra2
Antônia Rozimar Machado e Rocha3

RESUMO
Este artigo objetiva apresentar uma análise do projeto neoliberal-
-conservador para a educação no primeiro ano do governo Bolsonaro, no
qual enfatizamos o Programa Future-se e o Programa Nacional das Es-
colas Cívico-Militares (PECIM). Realizamos uma pesquisa bibliográfica
e documental para subsidiar as categorias presentes na temática. Veri-
ficamos que estes programas manifestam mais explicitamente a conti-
nuidade do ajuste neoliberal implementado pelo atual governo que, por
um lado, favorece o processo de mercantilização das universidades pú-
blicas e, por outro, fortalece no âmbito da educação básica a segregação
e a desigualdade, disseminando uma concepção educacional autoritária,
adestradora e que restringe a liberdade de ser, pensar e se expressar dos
estudantes.
Palavras-chave: Neoliberalismo. Future-se. Escolas Cívico-Militares

1 Doutoranda em Educação – PPGE/UFC. Mestre em educação (UFC). Bolsista CA-


PES. Email: daniellecoelhoalves@gmail.com
2 Professor da Universidade Regional do Cariri (URCA). Doutorando em Educação
– PPGE/UFC. Mestre em Educação (USP); Graduado em Ciências Sociais (UFC).
Email: jonasmbezerra@gmail.com.
3 Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora em Educação Brasi-
leira (2009). Professora do Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado e
Doutorado) da UFC. Coordenadora do Projeto Cine Cena Social. Email: profa.rose-
machado@gmail.com

DANIELLE COELHO ALVES • JONAS MENEZES BEZERRA • ANTÔNIA ROZIMAR MACHADO E ROCHA
33

ABSTRACT
This article aims to present an analysis of the neoliberal-conser-
vative project for education in the first year of the Bolsonaro government,
in which we emphasize the Future-se Program and the National Civ-
ic-Military Schools Program (PECIM). We conducted a bibliographic and
documentary research to support the categories present in the theme.
We see that these programs express more explicitly the continuity of the
neoliberal adjustment implemented by the current government, which,
on the one hand, favors the process of commercialization of public uni-
versities and, on the other hand, strengthens segregation and inequality
in the area of basic education. authoritarian, training and restricting
students’ freedom to be, think and express themselves.
Keywords: Neoliberalism. Future-se. Military-civic Schools

INTRODUÇÃO

A eleição de Jair Bolsonaro, no final de 2018, inaugurou


um novo momento da política brasileira, após um breve período
de transição, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff
em 2016. A deposição da presidente, através de uma aliança que
envolveu grupos poderosos da mídia, o setor empresarial e velhas
lideranças do cenário político nacional, sinalizou um esgotamento
do modelo petista de governar.
O pacto social-econômico implementado pelas gestões pe-
tistas, que combinavam ganhos extremamente elevados para o se-
tor bancário-financeiro e políticas sociais de alto impacto e ganhos
para os segmentos mais pauperizados da sociedade, logrou avanços
inegáveis. No entanto, não foram consistentes a longo prazo e à me-
dida que a conjuntura externa deixou de ser favorável e a econo-
mia estagnou, a disputa pelo fundo público tornou inconciliável o
pacto social então estabelecido. Além do mais, a aposta do governo
Dilma pelo incentivo aos investimentos privados – ao invés dos in-
vestimentos públicos – agravou a crise econômica e a insatisfação
política, em virtude das graves consequências sociais decorrentes.

AGENDA NEOLIBERAL E CONSERVADORA PARA EDUCAÇÃO:


O FUTURE-SE E O PROGRAMA NACIONAL DAS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES (PECIM)
34

Após o impeachment, o Estado brasileiro acelerou seu pro-


cesso de (contra)reformas e cortes de gastos nas áreas públicas,
atacando diretamente os trabalhadores com a retirada de direitos
sociais e trabalhistas.
Na esteira deste processo, assume o governo, em 2019, Jair
Bolsonaro, impulsionando uma agenda política que busca aplicar
medidas vigorosamente neoliberais, calcadas em valores assaz
conservadores. No âmbito educacional, a combinação das medi-
das neoliberais com as pautas conservadoras se materializa por
meio de diversos discursos e programas.
Neste trabalho, optamos por enfatizar dois programas
principalmente: o Programa Nacional das Escolas Cívico-Milita-
res (PECIM) e o Future-se, por compreender que estes conjugam
de maneira mais evidente o ideário neoliberal conservador que
atravessa o atual governo do País. Antes, faz-se necessário aponta-
mentos sobre os impactos do ideário neoliberal no âmbito educa-
cional, relevante para entender que a política atual, nada mais é do
que uma nova roupagem de velhas ideias neoliberais.

NEOLIBERALISMO E OS IMPACTOS NA EDUCAÇÃO

Netto (2007) conceitua o neoliberalismo como uma argu-


mentação teórica que restaura o mercado como instância media-
dora social elementar e insuperável, e uma predisposição política
que repõe o Estado mínimo como única alternativa e forma para a
democracia.
A característica mais importante do neoliberalismo é a am-
pliação do raio de ação da lógica de mercado. Enquanto nas con-
cessões liberais-sociais se reconhece a desigualdade derivada do
modo de produção capitalista e, portanto, aceita-se a intervenção
do Estado para diminuir as polarizações, o neoliberalismo recha-
ça qualquer ação estatal que vá além da de ser um “árbitro impar-
cial” das disputas. (BIANCHETTI, 2005)

DANIELLE COELHO ALVES • JONAS MENEZES BEZERRA • ANTÔNIA ROZIMAR MACHADO E ROCHA
35

No Brasil, a educação pública tem sua história permeada


por sucessivos ataques e escassez de recursos. Porém, com o avan-
ço do ideário neoliberal e as demandas por reformas da máqui-
na estatal, essa situação ganhou novos contornos, acentuando o
quadro de precarização do ensino público nacional. Cenário este
que afeta os diversos níveis, desde a educação básica, até o nível
­superior.
No governo Collor de Mello (1990-1992) ocorreu a liberali-
zação comercial e incentivo à privatização (LIMA, 2007). Na área
educacional, objetivando reduzir os gastos públicos, o principal
alvo das reformas passou a ser as universidades federais, que ti-
nham a imagem de serem onerosas demais ao Estado.
Em continuidade ao projeto neoliberal, o governo FHC
(1995-2002) conduziu uma contrarreforma do Estado, que defen-
dia a educação superior como um serviço público não-estatal,
além da redução da responsabilidade do Estado com este nível de
ensino, seja por meio do corte de verbas e, paralelamente a isso, o
incentivo ao empresariamento deste campo, com o discurso fala-
cioso de ampliação do acesso à formação superior.
Os governos petistas de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-
2016), embora tenham ampliado vagas nas universidades públicas
e contribuído para interiorizar o ensino superior, não romperam
com a curva crescente de mercantilização do ensino superior im-
plementado no governo FHC. Utilizando-se de uma estratégia con-
ciliatória, mantiveram os determinantes do capital e operacionali-
zaram um conjunto de reformas, dentre as quais da educação, que
perpetuou a lógica privatizante e de financiamento de estudantes
em instituições privadas.
Seguindo a lógica de adesão ao modelo neoliberal na educa-
ção, destacaremos, a seguir, os projetos do atual governo federal
para esta área, marcados pelo neoliberalismo, de viés conserva-
dor, no governo Bolsonaro.

AGENDA NEOLIBERAL E CONSERVADORA PARA EDUCAÇÃO:


O FUTURE-SE E O PROGRAMA NACIONAL DAS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES (PECIM)
36

OS PROGRAMAS EDUCACIONAIS NO GOVERNO


BOLSONARO

Para fins de análise, optamos por examinar duas políticas


para a educação do governo Bolsonaro, uma que se refere ao ensi-
no superior, o Future-se, que consiste claramente num mecanis-
mo de privatização de instituições federais, e outra voltada para a
educação básica, o PECIM.
Antes, vale ressaltar o caráter que ele estendeu a educação,
tratando-a como inimiga de seu governo, seja a educação básica ou
a superior, com o contingenciamento médio das verbas, além de
atingir frontalmente a produção da ciência, através dos sucessivos
cortes de bolsas nas pós-graduação.

Future-se: a mercantilização da ciência em curso

O Programa Universidades e Institutos Empreendedores e


Inovadores – Future-se, tem como propósito declarado fortalecer
a autonomia administrativa, financeira e de gestão das institui-
ções federais de ensino superior. Para aderir, obrigatoriamente,
as instituições devem firmar “contratos de desempenho” com Or-
ganizações Sociais (OS), ou fundações de apoio, para gerir as suas
atividades acadêmicas e científicas e seu patrimônio físico, a fim
de melhorar a sua eficiência e produtividade e auxiliar na capta-
ção de recursos provenientes do mercado.
Este “contrato de desempenho” configura-se num mecanis-
mo coercitivo de controle e avaliação do desempenho que, como tal,
estabelece parâmetros e metas de desempenho como, por exem-
plo, a redução das despesas com pagamento de pessoal (redução de
salários, eliminação de concursos, suspensão das progressões de
carreira, etc.). Dessa forma, o Future-se traz no seu bojo a necessi-
dade de uma ampla reforma administrativa que, não por acaso, foi
recentemente apresentada pelo governo (LEHER, 2019b).

DANIELLE COELHO ALVES • JONAS MENEZES BEZERRA • ANTÔNIA ROZIMAR MACHADO E ROCHA
37

A despeito da amplitude deste Programa, neste artigo enfa-


tizamos três aspectos que evidenciam mais diretamente a inser-
ção desta proposta na agenda neoliberal do atual governo.
O primeiro aspecto refere-se à superestimação do potencial
investidor das empresas na pesquisa universitária. Como atesta
Dagnino, Romão e Bezerra (2019), o montante dos gastos em P&D
das empresas que é destinado aos projetos de pesquisa em parce-
ria com universidades e institutos de pesquisa é de apenas 1%, o
que revela, segundo os autores, a baixíssima importância dos re-
sultados das pesquisas universitárias para as empresas em todo o
mundo, com raras exceções.
Em virtude da condição periférica do Brasil no mercado
internacional, a estratégia de inovação das empresas brasileiras
não está associada à pesquisa científica, mas à aquisição e adapta-
ção de tecnologia já desenvolvida (DAGNINO; ROMÃO; BEZERRA,
2019). É pouco provável que o Programa leve os segmentos empre-
sariais a alterarem esse comportamento no atual ciclo de retração
econômica.
Essa questão associa-se ao segundo aspecto do Programa
que diz respeito à tentativa de desresponsabilizar o Estado pelo
financiamento da educação pública. O Estado é o principal finan-
ciador das pesquisas nas instituições universitárias, não apenas
no Brasil, mas na grande maioria dos países considerados desen-
volvidos. Os recursos advindos do setor privado são complemen-
tares e pontuais e, portanto, não são suficientes para substituir o
financiamento público e estatal obrigatório.
A pretensa preocupação com a manutenção das institui-
ções e com a promoção de uma educação pública de qualidade
contradiz a asfixia financeira promovida pelos recentes cortes
orçamentários executados pelo governo, bem como a permanên-
cia da Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, que conge-
lou os gastos públicos por vinte anos. O governo viola o princípio
constitucional da autonomia de gestão financeira, impondo uma

AGENDA NEOLIBERAL E CONSERVADORA PARA EDUCAÇÃO:


O FUTURE-SE E O PROGRAMA NACIONAL DAS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES (PECIM)
38

“autonomia financeira”(sob o discurso do empreendedorismo


universitário), isto é, responsabilizando as IFES pela sua própria
sobrevivência (LEHER, 2019a).
O financiamento público é a garantia da liberdade de en-
sinar e pesquisar nas universidades. As pesquisas de natureza
básica, do campo das ciências humanas ou de interesse público e
social não são, em sua grande maioria, rentáveis do ponto de vista
do mercado, ainda que proporcionem benefícios para a sociedade.
Em muitos casos, não apenas não são do interesse de determina-
dos segmentos empresariais, como prejudicam seus objetivos e
suas estratégias de atuação como, por exemplo, estudos sobre as
consequências do uso dos agrotóxicos sobre a saúde humana, ou
acerca da relação entre a posse das armas de fogo e o aumento das
taxas de mortalidade.
Ao estimular a captação de recursos junto à iniciativa pri-
vada, favorece a ampliação da ingerência privada sobre as univer-
sidades, ferindo a autonomia administrativa e científica das insti-
tuições e fortalecendo a mercantilização da educação e da ciência
e a privatização das universidades. Subjuga-se o patrimônio e os
recursos físicos, o corpo docente e discente, o conhecimento pro-
duzido e o próprio funcionamento das instituições aos parâme-
tros do mercado e à lógica da acumulação.
Por fim, o Future-se revela-se numa nova modalidade de ex-
pansão da financeirização no ensino superior. Como aponta Fer-
nandes (2019, p. 2),
a lógica das finanças procura atrair outros campos “não-
-financeiros” da sociedade contemporânea para sua di-
nâmica, em sua constante busca por ampliação de mer-
cados. Entre outros campos, vislumbra-se o da educação
superior, já incorporado por meio da securitização de
dívidas imobiliárias das instituições privadas, bem como
dos empréstimos estudantis. A redução de entraves à se-
curitização do patrimônio imobiliário das universidades e
institutos federais consubstanciada no programa Future-

DANIELLE COELHO ALVES • JONAS MENEZES BEZERRA • ANTÔNIA ROZIMAR MACHADO E ROCHA
39

-se representa, assim, uma expansão extraordinária desta


lógica financeira no Brasil.
A transformação do patrimônio imobiliário das IFES em
ativos fictícios (títulos securitizados, debêntures, etc.) e a pro-
moção de um ambiente favorável nas instituições à ampliação da
financeirização é uma oportunidade de investimentos no cenário
atual de taxas de juros menos elevadas do que no passado recente.
O Future-se, assim, se constitui numa medida direta de
transposição da lógica empresarial para a oferta pública de ensi-
no superior, submetendo as universidades à ação predatória do
mercado, a qual captura a ciência, colocando-a a serviço de seus
interesses.

Militarização das Escolas Públicas de educação


básica e a disciplinarização de corpos e mentes

O Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM)


visa expandir o modelo adotado em vários estados do País das
chamadas “escolas cívico-militares”. A adesão ao programa deve
ser feita a partir de uma consulta pública à comunidade e é vo-
luntária, contudo, no Brasil, muitos programas, como o PECIM e
o Future-se, cuja adesão é voluntária, na realidade, são impostos
arbitrariamente. Uma vez que, se não houver adesão a tais pro-
gramas, as instituições deixam de receber recursos, em alguns
casos, de considerável importância para o desenvolvimento de
suas ações.
A despeito de ter sido amplamente propagandeado, do pon-
to de vista quantitativo, o PECIM terá um alcance irrisório, afinal,
as 216 escolas previstas representam uma quantidade insignifi-
cante diante das mais de 180 mil escolas existentes no País. Isso su-
gere que, acima de tudo, trata-se de uma medida populista, voltada
para agradar um conjunto específico de pais e alunos que desejam
essa experiência e para servir como vitrine presidencial, uma vez

AGENDA NEOLIBERAL E CONSERVADORA PARA EDUCAÇÃO:


O FUTURE-SE E O PROGRAMA NACIONAL DAS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES (PECIM)
40

que os bons resultados que as escolas possam vir a alcançar serão


utilizados como propaganda política do governo.
A proposta tem seduzido muitos pais por duas razões prin-
cipais: o medo da violência, que os leva a associar a presença dos
militares no interior da escola a mais segurança para seus filhos;
e o desejo por um melhor rendimento escolar dos alunos, que
estaria relacionado com o problema da violência e seriam resol-
vidos pelo modelo militar de gestão, por valorizar a autoridade, a
hierarquia e a disciplina, valores estes considerados ausentes na
sociedade atual (VELOSO; OLIVEIRA, 2016; GUIMARÃES; LAMOS,
2018).
Em relação à problemática da violência, trata-se de uma
questão social complexa e que não está circunscrita ao âmbito
educacional, mas nas formas desiguais de acesso às condições
materiais e subjetivas, próprias de uma sociedade cindida em dis-
tintas e antagônicas classes sociais. Além disso, as forças policiais
brasileiras estão entre as mais violentas do mundo, de modo que é
questionável a crença de que a presença de policiais militares nas
escolas possa reduzir a violência no interior da instituição.
A militarização, como resposta à violência na escola, é mais
uma expressão da presença e predominância da cultura milita-
rista na sociedade contemporânea, que remonta tanto às heran-
ças da ditadura civil-militar no País, quanto ao fortalecimento no
contexto neoliberal de um Estado repressor e punitivo, que opera
como mecanismo de controle das classes subalternas.
Como aponta Santos e Pereira (2018, p. 264): “Se a polícia é
preparada para garantir segurança e não tem demostrado compe-
tência no desempenho de sua função, não é possível acreditar que
ela consiga ser competente em algo para o qual ela não foi criada e
que é, na sua essência, diametralmente oposta ao que se propõe.”
Ademais, trata-se de um evidente desvio de função. O Pro-
grama desconsidera e desrespeita o conjunto de profissionais
formados nas faculdades e universidades públicas e privadas para

DANIELLE COELHO ALVES • JONAS MENEZES BEZERRA • ANTÔNIA ROZIMAR MACHADO E ROCHA
41

atuar na gestão, privilegiando e criando uma reserva de mercado


para militares – que não dispõem de uma formação adequada – nas
escolas públicas, agradando ao público apoiador do presidente e à
categoria dos militares.
Em relação às boas notas obtidas pelas escolas militares
nos processos avaliativos, alguns fatores podem ser mencionados
e que não se referem à gestão militar. Uma das razões é o maior
aporte de recursos, provenientes das Secretarias de Segurança
Pública e de outras fontes do Estado, bem como de taxas “volun-
tárias” cobradas dos pais dos alunos, propiciando melhores con-
dições gerais da escola, bem como por dispor de um quadro de
pessoal maior do que a maioria das escolas públicas, em virtude
da inclusão dos militares, que dispõem de melhores rendimentos
financeiros (VELOSO; OLIVEIRA, 2016). Outro motivo é a seleção
realizada pelas escolas, que acabam por excluir os alunos com de-
sempenhos piores, consequentemente, elevando a média geral da
escola e passando a falsa impressão de que o ensino militar melho-
ra o desempenho. Outras escolas estaduais com alunos do mesmo
perfil socioeconômico ou os Institutos Federais (IFs), têm médias
superiores as das escolas vinculadas à polícia militar.
Neste sentido, concordamos que
[...] não nos parece ser esta doutrina a mais adequada ao
desenvolvimento de uma criança ou de um adolescen-
te. Se, em um indivíduo adulto, a formação militarizada
já pode provocar efeitos como o adoecimento mental e
comportamentos violentos em suas relações sociais, o
risco dessas consequências serem ainda mais graves em
pessoas que se encontram em um estágio psicológico e in-
telectual ainda em formação é alto (VELOSO; OLIVEIRA;
2016, p. 74)

Portanto, compreendemos que a lógica militar aplicada nos


colégios cívico-militares, baseada na submissão, na obediência ir-
restrita, nas punições, vai de encontro a uma perspectiva de for-

AGENDA NEOLIBERAL E CONSERVADORA PARA EDUCAÇÃO:


O FUTURE-SE E O PROGRAMA NACIONAL DAS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES (PECIM)
42

mação de sujeitos autônomos, críticos e participativos, capazes de


questionar os padrões e a ordem dominante e refletir sobre outras
possibilidades de existência e de transformação social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de mundialização do capital e a implantação das


políticas neoliberais implicaram na retirada de direitos e o ensino
sofreu drasticamente os efeitos dessa nova fase do capitalismo. Vi-
venciamos, atualmente, a continuidade da agudização de ajustes
neoliberais nos direitos sociais e trabalhistas. Ações essas que se
dão tanto pela retração relativa do Estado na expansão e qualidade
de escolas e universidades, seja pela transferência de fundos es-
tatais para o setor privado ou pela flexibilização de leis com o fim
de facilitar a abertura e disseminação de empresas de ensino su-
perior. No tocante a universidade pública, essa tem sido invadida
pela lógica da racionalidade empresarial por parte dos diferentes
governos, lógica esta retomada em dimensões aprofundadas com
o Future-se.
Os dois programas analisados manifestam mais explicita-
mente a característica singular do atual governo que é a combina-
ção de medidas neoliberais com um teor conservador/reacionário.
Diante deste cenário, vislumbra-se um ambiente escolar
cada vez mais conservador e autoritário, marcas deste governo
que persegue e censura quem o desagrada, ataca professores e de-
fensores de uma educação pública de qualidade.
O cenário requer uma disputa em defesa da educação pú-
blica, pois se concretizadas as reformas do governo Bolsonaro, o
campo da educação sofrerá cortes e distorções de sua função, que
trarão prejuízos à formação dos filhos da classe trabalhadora.

DANIELLE COELHO ALVES • JONAS MENEZES BEZERRA • ANTÔNIA ROZIMAR MACHADO E ROCHA
43

REFERÊNCIAS

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ed. São Paulo: Cortez, 2005.
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de recursos de empresas. Le Monde Diplomatique, São Paulo, 30
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-o-aporte-de-recursos-de-empresas/. Acesso em: 06 nov. 2019.
FERNANDES, A. C. Riscos que vão além da privatização: indí-
cios da lógica de financeirização embutida no Future-se. ANPUR,
2019. Disponível em: <http://anpur.org.br/wp-content/uplo-
ads/2019/08/Future-se_Financ_ACFernandes.pdf>. Acesso em: 10
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rede estadual de Goiás: a nova onda conservadora. Revista Pedagó-
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LEHER, R.. ?Future-se? indica a refuncionalização das universi-
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LIMA, K. Contra-reforma na educação superior: de FHC a Lula. São
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SANTOS, C. A.; PEREIRA, R. S. Militarização e Escola sem Partido:
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AGENDA NEOLIBERAL E CONSERVADORA PARA EDUCAÇÃO:


O FUTURE-SE E O PROGRAMA NACIONAL DAS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES (PECIM)
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255-270, 2018. Disponível em: <http://retratosdaescola.emnuvens.


com.br/rde/article/view/884>. Acesso em: 14 nov. 2019.
VELOSO, E. R; OLIVEIRA, N. P. Nós perdemos a consciência? apon-
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avaliação crítica das escolas militarizadas. Aparecida de Goiânia:
Escultura, p. 71-84, 2016. Disponível em: <https://pensar2015.ndh.
ufg.br/up/848/o/33._N%C3%B3s_Perdemos_a_Consci%C3%AAn-
cia___Apontametos_sobre_a_militariza%C3%A7%C3%A3o.pdf>.
Acesso em: 12 nov. 2019.

DANIELLE COELHO ALVES • JONAS MENEZES BEZERRA • ANTÔNIA ROZIMAR MACHADO E ROCHA
45

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO
DE MONITORAS DE LIBRAS
Adriana Moreira de Souza Corrêa1
Williana Ferreira de Andrade2
Erica Duarte Arruda3
Egle Katarinne Souza da Silva4

RESUMO
A pesquisa em tela objetiva identificar as interlocuções entre a
monitoria e os letramentos nas atividades de ensino, pesquisa e exten-
são da Universidade Federal de Campina Grande, campus Cajazeiras-PB,
que foram desenvolvidas por duas monitoras do curso de licenciatura em
letras/português. Trata-se de um relato de experiência, descritivo com
análise de dados qualitativa baseada na perspectiva dos multiletramen-
tos. Concluímos que a interlocução da prática de monitoria com outras
atividades ofertadas na universidade e na comunidade na qual está situa-
da são relevantes para a formação do licenciando e do educador, pois pro-
movem discussões sobre letramentos digitais, inclusivos e acadêmicos,
incentivando a reflexão sobre as possibilidades da monitoria para além
do acompanhamento do ensino, de modo a agregar outras atividades e
conhecimentos que contribuem para a formação docente.
Palavras-chave: Letramento inclusivo. Monitoria. Multiletramentos.

ABSTRACT
The screen research aims to identify the interlocutions between
monitoring and literacy in teaching, research and extension activities
at the Federal University of Campina Grande, campus Cajazeiras-PB,
1 Mestra em Ensino pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),
Professora de Libras da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail:
adriana.korrea@gmail.com.
2 Graduada em Letras pela UFCG. E-mail: williana.josue@gmail.com.
3 Graduada em Letras pela UFCG. E-mail: ericaduarteduda@gmail.com.
4 Mestra em Sistemas Agroindustriais pelo Centro de Ciências e Tecnologia Agro-
a¬limentar (CCTA) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e Gestora
da Escola Cidadã Integral Técnica Cristiano Cartaxo.
E-mail: eglehma@gmail.com.

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO DE MONITORAS DE LIBRAS


46

which were developed by two monitors of the degree course in letters


/ Portuguese. This is an experience report, descriptive qualitative data
analysis based on the perspective of multiliteracies. We conclude that
the interlocution of the practice of monitoring with other activities
offered at the university and in the community in which it is located are
relevant for the training of the licensee and the educator, as they promote
discussions about digital literacy, inclusive and academic, encouraging
reflection on the possibilities of monitoring beyond the monitoring of
teaching, in order to add other activities and knowledge that contribute
to teacher training.
Keywords: Inclusive literacy. Monitoring. Multi-tools.

INTRODUÇÃO

A formação do educador deve envolver atividades que lhe


permita se apropriar do conteúdo a ser ministrado, do conhe-
cimento de técnicas e práticas de ensino, bem como da reflexão
sobre o ensino de modo que o professor possa analisar as suas prá-
ticas e redefinir os caminhos que favoreçam a aprendizagem dos
estudantes. Por isso, as licenciaturas oferecidas pelo Centro de
Formação de Professores (CFP), da Universidade Federal de Cam-
pina Grande (UFCG), são organizadas de maneira a estimularem a
participação dos licenciandos nas atividades de ensino, pesquisa
e extensão, promovendo diferentes práticas de uso da leitura e es-
crita. Entre essas atividades, destacamos a monitoria da discipli-
na de Língua Brasileira de Sinais (Libras), uma atividade voltada
para o ensino e que apresenta desdobramentos e aprendizados
fomentados pelas discussões e práticas realizadas durante essa
disciplina.
Desse modo, objetivamos identificar as interlocuções entre
a monitoria e letramento inclusivo nas atividades de ensino, pes-
quisa e extensão desenvolvidas por duas monitoras no período da
sua formação na perspectiva dos letramentos. Diante do exposto,

ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • WILLIANA FERREIRA DE ANDRADE • ERICA DUARTE ARRUDA
EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA
47

elaboramos um Relato de Experiência, na perspectiva de Daltro e


Faria (2019), que é um estudo predominantemente descritivo, do-
cumental e qualitativo situado em um determinado tempo históri-
co e perpassado pelas percepções do sujeito bem como das lentes
das bases teóricas que guiaram as análises.
Esse escrito está organizado em 4 seções seguintes à intro-
dução: a metodologia; uma descrição pautada em documentos e na
literatura científica sobre a monitoria; uma análise de atividades
realizadas pelos estudantes durante e após a formação e as consi-
derações finais.

METODOLOGIA

As discussões ora apresentadas compõem um Relato de


Experiência que, para Daltro e Faria (2019), correspondem a uma
análise de singularidades que permitem compreender fenômenos
históricos e localmente situados. Desse modo, o objetivo desse es-
tudo foi identificar os letramentos que podem ser viabilizados a
partir da monitoria e, para tanto, delimitamos a pesquisa para o
CFP da UFCG e as análises compreendem duas participantes que
foram monitoras da disciplina de Libras e que contribuem para
esse escrito.
Em momentos de indicação das participantes, nomearemos
de Monitora A (MA) e Monitora B (MB) respectivamente. A título
de contextualização, MA, antes de ser monitora de Libras, havia vi-
venciado a monitoria em dois semestres anteriores, ao passo que,
para MB, se constituiu na sua primeira experiência na monitoria.
Ambas cursaram licenciatura em Letras/Português no referido
campus, foram alunas no componente curricular Libras e partici-
param da monitoria de Libras no mesmo período (2017.1 e 2017.2).
Nesse sentido, a reflexão em tela trata-se de uma investi-
gação predominantemente documental, tendo em vista que as
análises partem das informações contidas no registro pessoal da

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO DE MONITORAS DE LIBRAS


48

docente (Diário de Campo); nos relatórios de monitoria produzi-


dos pelas duas monitoras; nos demais registros de experiências
em trabalhos científicos; nas imagens de atividades realizadas pe-
las monitoras contidas em um grupo do Facebook denominando
“Letras Libras 2017.2” e no canal do YouTube “Letras Libras 2017.2”.
Para a análise desses dados buscamos as bases teóricas do Multile-
tramentos (ROJO, 2012).
Contudo, antes de analisarmos essas informações, é rele-
vante discorrermos sobre as interlocuções entre a monitoria e a
formação docente através de documentos da UFCG e autores que
abordam o tema na literatura científica.

MONITORIA E A FORMAÇÃO DOCENTE

O programa de iniciação à docência da UFCG objetiva pro-


porcionar aos licenciandos a ampliação dos tempos e espaços de
formação acadêmica de conteúdos e habilidades para o ensino
(UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE, 2014) à me-
dida que estimula: 1) o uso de novas metodologias e experiências
pedagógicas; 2) a interlocução entre discentes e docentes na rea-
lização de atividades de ensino; 3) o aprofundamento de conheci-
mentos teórico-metodológicos; 4) o desenvolvimento de habilida-
des relacionadas à atividade docente (UNIVERSIDADE FEDERAL
DE CAMPINA GRANDE, 2007, p. 25).
Matoso (2007) explica que, durante a atividade de monito-
ria, o licenciando pode manter contato com os demais estudan-
tes, vivenciar experiências de docência no nível superior e contri-
buir para o aprendizado dos colegas, ao auxiliando-os a superar
as dificuldades encontradas para realizar as atividades de ensino.
Nesse percurso, consideramos que a figura do professor é funda-
mental para orientar as redefinições de estratégias, indicar leitu-
ras de aprofundamento e socializar a sua experiência de docente
universitário.

ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • WILLIANA FERREIRA DE ANDRADE • ERICA DUARTE ARRUDA
EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA
49

De acordo com a Resolução de ensino da UFCG nº 26/2007, a


monitoria acadêmica compreende atividades que devem ser reali-
zadas atingindo a carga horária de 12h semanais (UNIVERSIDADE
FEDERAL DE CAMPINA GRANDE, 2007). Desse modo, para pos-
sibilitar a participação dos licenciandos em diferentes atividades
no percurso ora relatado, esse tempo foi dividido, prioritariamen-
te, em duas atividades, ensino e pesquisa, mas a participação nas
atividades de extensão foi realizada pela adesão das monitoras à
proposta.
A turma de Libras que MA e MB foram alunas contou com
o suporte de uma monitora de Libras que acompanhava a turma
e, diante disso, MB explica que observar a monitora fomentou o
desejo em participar desse programa ofertado pela universidade,
pois observou que o atendimento realizado pela monitoria opor-
tunizou o aprofundamento do conteúdo, a vivência em práticas de
ensino em sala de aula ou em atendimentos individualizados so-
licitados pelos estudantes. Além dos fatores citados por MB, MA
relata que o interesse iniciou em um momento de extensão que
integrou o projeto “Promovendo a Inclusão”, uma ação que com-
preendeu três cursos que tratavam do atendimento às pessoas
com deficiência.
Diante do exposto, notamos que entre os motivos que le-
varam as licenciandas a buscar a monitoria de Libras está o inte-
resse pela compreensão de práticas de uso da leitura e da escrita
acessíveis ao estudante com deficiência, ou seja, os letramentos
inclusivos (BATISTA-JUNIOR, 2008). Sobre isso, Sato, Magalhães e
Batista Júnior (2012, p. 706) explicam que os letramentos inclusi-
vos devem perpassar os letramentos diários que são “[...] os usos
da leitura e da escrita que integram a rotina das pessoas em dife-
rentes contextos”. Assim, a seguir, abordamos as relações das prá-
ticas da monitoria com os diferentes letramentos, com ênfase no
letramento inclusivo.

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO DE MONITORAS DE LIBRAS


50

MONITORIA E INTERLOCUÇÕES COM O ENSINO,


PESQUISA E EXTENSÃO

As atividades de ensino realizadas na monitoria integraram


quatro eixos: 1) o estudo do conteúdo ministrado nas aulas; 2) o pla-
nejamento de atividades; 3) produção de atividades; 4) aplicação
de atividades. Esse último compreendeu a seleção e a produção de
materiais bem como o atendimento de estudantes. O atendimento
oferecido pelas monitoras ocorreu em dois momentos: durante a
aula e em atendimentos individualizados presenciais e síncronos
ou assíncronos e mediados por tecnologias como o WhatsApp.
Entre as atividades de estudo de conteúdo, estão: 1) as
análises de textos teóricos de aprofundamento sobre a temática
abordada, geralmente, com textos impressos; 2) a compreensão e
releitura de vídeos em Libras; e 3) a produção de vídeos em Libras
de atividades indicadas pela professora ou sobre os assuntos abor-
dados. Esses vídeos de estudo foram socializados com as demais
monitoras em um grupo fechado do Facebook, no qual somente
elas e a docente tinham acesso, para que as demais colegas pudes-
sem assistir e discutir as estratégias utilizadas para a sinalização
em Libras.
Notamos que são atividades situadas entre o impresso e o
digital, pois à medida que os textos eram predominantemente im-
pressos, as atividades de produção em Libras eram partilhadas no
meio digital que oferece possibilidades mais adequadas de registro
e socialização. Assim, a leitura dos textos favoreceu o letramento
acadêmico, ou seja, a apropriação das convenções dos textos e for-
mas de socialização do conhecimento nesse meio (CRUZ, 2007). E,
a nível de conteúdo, estimularam a compreensão de práticas de
letramento voltadas para a inclusão dos estudantes surdos em di-
ferentes esferas sociais.
Na produção de vídeos, a internalização dos sinais e das
formas de composição em Libras ocorreram simultaneamente à

ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • WILLIANA FERREIRA DE ANDRADE • ERICA DUARTE ARRUDA
EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA
51

vivência em práticas de letramento digital, de produção e uso dos


textos nesses espaços (RIBEIRO, 2018) que envolviam reflexões
desde o planejamento do texto em função do público, o objetivo e
as características de produção de texto para o suporte digital, até a
recepção dos vídeos socializados para as demais monitoras.
Nas atividades de planejamento citamos: 1) seleção das mí-
dias e delineamento do roteiro dos vídeos produzidos para apre-
sentação em classe e/ou postados no canal denominado “Moni-
toria 2017.2”5 no YouTube; 2) a seleção de atividades em formato
Portable Document Format (PDF) para uso nos atendimentos indi-
vidualizados; 3) a escolha de jogos disponíveis no acervo da docen-
te para os referidos atendimentos.
A produção dos roteiros do vídeo proporcionou reflexões
sobre as características dos textos em Libras e/ou bilíngues (en-
volvendo Libras e Língua Portuguesa) em mídias digitais, tais
como posicionamento da mão para favorecer a visualização da si-
nalização, velocidade da produção dos sinais, enquadramento, ilu-
minação, vestimenta, inserção de legendas entre outros, seguindo
as orientações de Marques e Oliveira (2012). Além disso, a sinali-
zação, de maneira formal, característica dos textos acadêmicos
também foi trabalhada.
A seleção de atividades impressas favoreceu o reconheci-
mento de espaços digitais, em especial os blogs de educadores,
que disponibilizam material para ensino de Libras ou de conteú-
do, sendo esses momentos didáticos mediados pela Libras. Assim,
essa busca favoreceu que as monitoras conhecessem, discutissem
e socializassem essas atividades para que quando exerçam a do-
cência em turmas com surdos possam adaptar as atividades de
ensino de Língua Portuguesa às necessidades dos surdos, ou seja,
trabalhando-a como segunda língua e na modalidade escrita, con-
forme determina a Lei nº 10.436, a Lei da Libras (BRASIL, 2002).
5 Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UC52NImeW9FzsehKmN-
11xxrg Acesso em: 27 out. 2020.

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO DE MONITORAS DE LIBRAS


52

Na produção de atividades, inserem-se, entre outros, os ví-


deos de apresentação de monitoras disponibilizado no canal do
YouTube. Essas produções seguiam critérios mais rígidos de pro-
dução e edição do que as atividades realizadas para estudo e posta-
da no Facebook, tendo em vista que o objetivo era o ensino de sinais
por meio de gêneros textuais. Na Figura 01 identificamos um vídeo
produzido como atividade de estudo da monitoria e na Figura 02
identificamos um vídeo de perguntas selecionadas pelas monito-
ras para favorecer os estudantes a revisão de conteúdo estudado.

Figura 01 – Apresentação da família

Fonte: Facebook (2017)6

Figura 02 – Produção de vídeo de revisão

Fonte: YouTube (2017)7

6 Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZiWRSh98e7U Acesso


em: 03 nov. 2020.
7 Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZiWRSh98e7U Acesso
em: 17 out. 2020.

ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • WILLIANA FERREIRA DE ANDRADE • ERICA DUARTE ARRUDA
EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA
53

Enquanto no primeiro vídeo notamos sombra e uso do celu-


lar para a gravação, no segundo, o enquadramento e produção em
Libras são mais trabalhados, a sinalização revisada e editada. Con-
sideramos ainda que as atividades produzidas em 2017.1 e 2017.2,
divulgadas através do Facebook e do YouTube, contribuíram para
o desenvolvimento de habilidades que podem ser relevantes para
os docentes no ensino remoto por incentivar o letramento digital.
Assim, ressaltamos a necessidade de inserção de atividades que
perpassam os meios presenciais/físicos e digitais na produção do
conhecimento tendo em vista ampliar as possibilidades de inser-
ção da cultura impressa e da cultura digital (RIBEIRO, 2018) em
atividades de ensino e aprendizagem realizadas em diferentes si-
tuações educacionais.
Os momentos de planejamento realizados no semestre
2017.1 fomentaram a proposição, no semestre 2017.2, do projeto de
pesquisa intitulado “Recursos e Estratégias Didáticas para o ensi-
no de surdos em classes inclusivas” que objetivou investigar recur-
sos didáticos para o trabalho com disciplinas da área das ciências
exatas. Apesar de diferir da área de licenciatura dessas monitoras,
tinha em comum o uso de diferentes linguagens na prática edu-
cativa, logo, podemos afirmar que remetem à discussão sobre os
multiletramentos, que envolvem os letramentos digital, acadêmi-
co, entre outros.
Os resultados dessa ação (FIGURA 03) foram divulgados en-
tre os alunos do campus, por meio de cartazes fixados em um dos
prédios da instituição, de maneira a dar visibilidade aos recursos
que promovem a aprendizagem de surdos e ouvintes, estimulan-
do as práticas de letramento informativo (SATO; MAGALHÃES;
­BATISTA-JÚNIOR, 2012).

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO DE MONITORAS DE LIBRAS


54

Figura 03 – Cartazes com a apresentação dos recursos estudados


no projeto.

Fonte: Acervo das autoras.

Além da análise de textos científicos, a síntese e a socia-


lização desses dados em cartazes (conforme notamos na Figura
03) a pesquisa científica promoveu reflexões sobre a monitoria
publicadas na condição de egressas, como podemos citar o texto
“Letramento digital e inclusão: um relato de experiência na mo-
nitoria de Libras no CFP/UFCG” (ARRUDA; ANDRADE; CORRÊA,
2020) onde as monitoras, orientadas pela professora da discipli-
na, relacionam a relevância das atividades de produção de vídeo
para o desenvolvimento de habilidades de ensino mediado pelas
Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs) e as
suas interlocuções com o Ensino Remoto. Esses momentos de
estudo e produção de conhecimento divulgados por meio de um
capítulo de e-book, promoveram a pesquisa, a escrita, a reflexão e
a reescrita do texto científico e, consequentemente, o letramento
científico, ou seja, usos da língua em situações que envolvem or-
ganização, suporte e linguagem característicos da divulgação da
ciência.
Durante esse período foi realizado ainda um projeto de
extensão denominado “Libras, Arte, Ação” no qual MB participou
promovendo atividades que envolviam Libras e Língua Portuguesa
em uma turma inclusiva com um surdo. As discussões oriundas

ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • WILLIANA FERREIRA DE ANDRADE • ERICA DUARTE ARRUDA
EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA
55

dessa vivência, por vezes, foram elencadas nas reuniões de moni-


toria. Desse modo, MA participou de discussões que versavam so-
bre as vivências que a MB relatou, analisou e apresentou no Fórum
Internacional de Pedagogia (FIPED), em Cajazeiras, em 2019.
Notamos assim que mesmo após a conclusão da formação
inicial, os trabalhos de extensão e/ou a vida profissional das moni-
toras são perpassados por atividades que envolvem a Libras e/ou
o letramento inclusivo. Dentre a continuidade dessas discussões,
citamos ainda um evento virtual e uma live que tratavam sobre as-
pectos relativos à participação social do surdo.
O evento virtual, realizado em 2 e 9 de setembro de 2020,
pelo Google Meet, contou com uma palestra dedicada a tratar do
letramento inclusivo, conforme observamos no cartaz publicado
no Instagram do Grupo de Estudos Avançados sobre Letramentos
(GELETRAMENTOS), responsável pela promoção do evento (FI-
GURA 04).
O segundo refere-se a um Webinar promovido pela Secreta-
ria Municipal de Educação da cidade de São João do Rio do Peixe
– PB, realizado no encerramento da Semana Municipal da Educa-
ção Inclusiva (SEMEI), em 30 de setembro de 2020 (FIGURA 05).
Esse evento contou com atividade de ensino de Libras para ouvin-
tes, depoimento de familiares de surdos e apresentação de ações
desenvolvidas por educadores vinculados à SEMEI entre outras
atividades divulgadas no Instagram no perfil “@educação_sjrp”
(FIGURA 05).

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO DE MONITORAS DE LIBRAS


56

Figura 04 – Cartaz da palestra no evento

Fonte: @geletramentos8

Figura 05 – Cartaz do Webinar



Fonte: @educação_sjrp9

Os eventos foram realizados de maneira virtual, em fun-


ção da suspensão de aulas e outras atividades educacionais, por
meio da Portaria nº 343 (BRASIL, 2020), devido à pandemia gera-
da pela COVID-19. Nas atividades citadas, o foco da discussão foi
o letramento inclusivo, mas o letramento digital também foi sig-
8 Disponível em: https://www.instagram.com/p/CErDobOjSG0/ Acesso em: 17 out. 2020.
9 Disponível em: https://www.instagram.com/p/CFhMuu6MfI2/ Acesso em: 17 out. 2020.

ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • WILLIANA FERREIRA DE ANDRADE • ERICA DUARTE ARRUDA
EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA
57

nificativo para a seleção de recursos e linguagens utilizadas na


produção de significados utilizando-se de mídias digitais. Nesses
momentos em que a participação de MA e MB ocorreu enquanto
egressas, demonstra que o interesse pela pesquisa e divulgação de
conhecimentos sobre os letramentos, em especial, os inclusivos
permanecem como área de interesse mesmo após a conclusão da
graduação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises das experiências de MA e MB delinea­
das nesse escrito, notamos que a monitoria de Libras teve des-
dobramentos na formação para a docência durante o curso de
licenciatura e continua influenciando a prática dessas egressas
da UFCG, à medida que fomenta a participação em momentos
de ensino e extensão universitária, em especial, no período de
distanciamento social vivenciado em função da disseminação do
­coronavírus.
As atividades realizadas no âmbito do ensino, da pesquisa
e da extensão universitária, ora descritas, perpassam diferentes
espaços, como as interlocuções em momentos de interação pre-
sencial ou em mídias digitais e contribuem para a reflexão e a prá-
tica em situações de ensino presenciais e aqueles mediados por
tecnologias digitais. O ensino acompanhado pela docente, a pro-
dução de material, atendimento aos estudantes, reflexão sobre a
produção de gêneros textuais em Libras e com acessibilidade em
Libras e outras discussões necessárias para a produção de textos
multimodais e acessíveis à pessoa surda.
Desse modo, consideramos que a interlocução da monitoria
com outras atividades ofertadas na universidade e na comunidade
na qual está situada são relevantes para a formação do licenciando
(na qualidade de aluno) e do educador (egresso da instituição), à
medida que fomenta discussão e a socialização de práticas dife-

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO DE MONITORAS DE LIBRAS


58

renciadas que se propõem a ser inclusivas. Assim, acreditamos


que a produção do relato, como nos detemos a realizar nesse capí-
tulo, pode incentivar a reflexão sobre as possibilidades da monito-
ria para além do acompanhamento do ensino para agregar outras
atividades que contribuem para a formação docente.

REFERÊNCIAS

ARRUDA. E. D.; ANDRADE, W. F.; CORRÊA, A. M. S. Letramento


digital e inclusão: um relato de experiência na Monitoria de libras
no CFP/UFCG. In: CABRAL, S. A. A. de O.; UCHÔA, S. A. de O.; DIAS,
F. P. da S.; SILVA, H. M. de L. (Org.). Línguas, Tecnologia, Inclusão
e Ensino: caminhos que se entrecruzam. Cajazeiras – PB: IDEIA –
Inst. De Desen. Educ. Interd. e Aprendizagem, 2020.
BATISTA-JÚNIOR, J. R. L. Os discursos docentes sobre inclusão de
alunas e alunos surdos no ensino regular: identidades e letramentos.
2008. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Letras,
Universidade de Brasília, Brasília, 2008.
BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Lín-
gua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências.
BRASIL. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a
substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais
enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus –
­COVID-19.
CRUZ, M; E. A. O letramento acadêmico como prática social: no-
vas abordagens. Gestão e Conhecimento, v. 4, n. 1, julho/ novembro,
2007.
DALTRO, M. R.; FARIA, A. A. de. Relato de experiência: Uma narra-
tiva científica na pósmodernidade. Estudos e Pesquisas em Psicolo-
gia, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 223-237, jan./abr. 2019.
MARQUES, R. R.; OLIVEIRA, J. S. A normatização de artigos aca-
dêmicos em Libras e sua relevância como instrumento de consti-
tuição de corpus de referência para tradutores. In: CONGRESSO

ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • WILLIANA FERREIRA DE ANDRADE • ERICA DUARTE ARRUDA
EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA
59

NACIONAL DE PESQUISAS EM TRADUÇÃO & INTERPRETAÇÃO


DE LIBRAS LÍNGUA PORTUGUESA. 3., 2012, Florianópolis. Anais
[...]. Florianópolis: UFSC, 2012.
MATOSO, L. M. L. A importância da monitoria na formação acadê-
mica do monitor: um relato de experiência. Catussaba, Mossoró, v.
3, n. 2, p. 77-83, 2014.
RIBEIRO, A. E. Escrever hoje: palavra, imagem e tecnologias digi-
tais na educação. São Paulo: Parábola, 2018.
ROJO, R; MOURA, E. (orgs.) Multiletramentos na escola. São Paulo:
Parábola, 2012.
SATO, Denise Tamaê Borges; MAGALHÃES, Izabel; BATISTA-JÚ-
NIOR, José Ribamar Lopes. Desdobramentos recentes da educa-
ção inclusiva no Brasil: discursos e práticas de letramento. RBLA,
v. 12, n. 4, p. 699-724, 2012.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE. Câmara Supe-
rior de Ensino. Resolução de Ensino nº 26, de 13 de dezembro de
2007. Homologa o Regulamento do Ensino de Graduação da Uni-
versidade Federal de Campina Grande. Campina Grande: Câmara
Superior de Ensino, 2007.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE. Pró Reitoria
de Ensino. Portaria da nº 002, de 6 de maio de 2014. Regulamenta
o Programa de Monitoria para alunos dos cursos de graduação da
UFCG. Campina Grande: Pró Reitoria de Ensino, 2014.

MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO DE MONITORAS DE LIBRAS


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O EMERGIR DO ENSINO HÍBRIDO


E O DIÁLOGO FREIREANO NUMA
EDUCAÇÃO EM MUDANÇA
Erica Dantas da Silva1
Willyan Ramon de Souza Pacheco2
Raimunda de Fátima Neves Coêlho3

RESUMO
O atual contexto educacional tem evidenciado caminhos pos-
síveis de repensar a educação em tempos de transição. A pandemia da
CO¬VID-19 exigiu dos sistemas de ensino novas regulações e adaptações
que pudessem garantir o acesso dos discentes à educação formal e possi-
bilitar o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem median-
te o uso de diversos recursos tecnológicos. Frente a esse contexto, este
trabalho objetiva discutir o ensino híbrido na perspectiva da dialogici-
dade em Paulo Freire, reconhecendo os elementos pedagógicos, políticos
e tecnológicos como aspectos inerentes ao contexto educacional atual.
Metodologicamente, o trabalho se organiza numa abordagem qualitati-
va, do tipo teórico numa dimensão exploratória, oportunizando delinear
reflexões acerca de uma educação mediada por tecnologias que se sus-

1 Mestranda em ensino pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (PPGE-


UERN). Pós-Graduanda em Docência do Ensino Superior pela Universidade
Federal de Campina Grande (UFCG) e licenciada em Pedagogia pela Universidade
Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: ericadantassilva@alu.uern.br.
2 Mestrando em Educação no Programa de Pós-graduação em Educação da Universida-
de Federal do Rio Grande do Norte (PPGEd/UFRN). Especialista em Direito Educacio-
nal e Gestão Escolar pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI). Licenciado
em Pedagogia pelo Centro de Formação de Professores da Universidade Federal de
Campina Grande (CFP/UFCG). É vinculado ao Grupo de Estudos de Práticas Educati-
vas em Movimento (GEPEM/UFRN). E-mail: willyanpacheco@ufrn.edu.br.
3 Docente associada III/UFCG – Universidade Federal de Campina Grande. Douto-
ra em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra em
Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisadora do Grupo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Educação, Linguagem e Práticas So-
ciais (GIEPELPS)–UFCG/CNPq. Membro Titular do Comitê de Ética em Pesquisa
em Seres Humanos da UFCG/CFP. E-mail: raimunda.neves6@gmail.com.

ERICA DANTAS DA SILVA • WILLYAN RAMON DE SOUZA PACHECO


RAIMUNDA DE FÁTIMA NEVES COÊLHO
61

tenta na prática dialógica freireana. A discussão empreendida mostra a


relevância do ensino híbrido em articulação com uma prática educativa
sustentada na interação, na constituição de consciências críticas, autô-
nomas e pautadas no diálogo transformador.
Palavras-chave: Ensino híbrido. Dialogicidade. Tecnologias digitais.

ABSTRACT
The current educational context has shown possible ways of
rethinking education in times of transition. The COVID-19 pandemic
demanded from the educational systems new regulations and
adaptations that could guarantee entrance to formal education and
allow the development of a teaching-learning process by means of
several technological resources. Within the context, this work aims
at discussing hybrid teaching from the perspective of dialogism as
proposed by Paulo Freire, by recognizing pedagogical, political and
technological elements as aspects inherent to the current educational
context. Methodologically, the work is organized in a qualitative
approach, of a theoretical-reflective type, in an exploratory dimension,
as an effort to outline reflections about an educational configuration
mediated by technologies that is sustained in Freire’s dialogic practice.
The resulting discussion shows the relevance of hybrid teaching paired
with an educational practice which, in turn, is sustained by interaction,
to the constitution of a critical and independent thinking guided by the
perspective of a dialogue of change.
Keywords: Hybrid teaching. Dialogicity. Digital Technologies.

INTRODUÇÃO

A inserção de recursos tecnológicos no contexto educacio-


nal é o marco social que reconfigurou a educação formal em tem-
pos de pandemia. Com o surto da Covid-19 no Brasil e no mundo,
as instituições educacionais foram, em sua maioria, compulsoria-
mente submetidas a um sistema de ensino sustentado no uso das
tecnologias, a partir da utilização de plataformas digitais e meto-
dologias que pudessem subsidiar a ausência das aulas presenciais.

O EMERGIR DO ENSINO HÍBRIDO E O DIÁLOGO FREIREANO NUMA EDUCAÇÃO EM MUDANÇA


62

Diante desse cenário, faz-se imprescindível empreender


discussões que versam acerca da compreensão e implementação
das tecnologias nos processos de ensino-aprendizagem, especifi-
camente a partir do ensino híbrido, seu delineamento pós-pan-
demia e o campo de possibilidades na perspectiva de tornar-se
elemento propulsor da dialogicidade, da consciência crítica im-
prescindível à aquisição da autonomia defendida por Paulo Freire.
Destarte, objetiva-se discutir o ensino híbrido na perspec-
tiva de uma dialogicidade em Freire, como recurso pedagógico e
político em uma cultura digital. Para tanto, inicialmente aborda-
-se conceitualmente o ensino híbrido e suas características. Em
seguida, discute-se a dialogicidade em Freire como recurso peda-
gógico e político da ação pedagógica em espaço – tempo virtual.

COMPREENDENDO O ENSINO HÍBRIDO

A inserção das tecnologias no âmbito educacional em suas


diferentes etapas vem se constituindo como um desafio a ser en-
frentado, seja pela falta de acesso dos estudantes a estes recursos,
pela ausência de formação qualificada dos professores em utilizar
as ferramentas tecnológicas enquanto recursos metodológicos nas
aulas ou até mesmo pela própria estrutura da escola que não opor-
tuniza ao aluno o contato com o universo tecnológico ­pedagógico.
Na atualidade, a inserção das tecnologias na esfera escolar
vem se tornando uma realidade cada vez mais presente em razão
da pandemia provocada pelo novo coronavírus, que impôs a todos
os agentes sociais mudanças nas suas formas de se relacionar e in-
teragir. No âmbito educacional, em virtude das medidas de distan-
ciamento social, foram suspensas as aulas presenciais e adotou-se
o sistema de ensino remoto mediado pelas plataformas virtuais
como forma de minimizar os prejuízos na aprendizagem em todos
os níveis de ensino.

ERICA DANTAS DA SILVA • WILLYAN RAMON DE SOUZA PACHECO


RAIMUNDA DE FÁTIMA NEVES COÊLHO
63

Conforme explana Alves (2020, p. 358) “Na educação remota


predomina uma adaptação temporária das metodologias utiliza-
das no regime presencial, com as aulas sendo realizadas nos mes-
mos horários e com os professores responsáveis pelas disciplinas
dos cursos presenciais [...]”. Este modelo de ensino teve um cresci-
mento considerável em virtude da pandemia da COVID-19, sendo
que a realização das aulas é frequente durante a semana, dando
prosseguimento ao mesmo cronograma de atividades em caráter
presencial.
O espaço para interação agora torna-se virtual e, com ele, a
possibilidade de experimentar, aprender e utilizar novas formas
de interagir com o outro. Tais aspectos mencionados corroboram
com o que é preconizado pela Base Nacional Comum Curricular em
que se pontua que: “Nesse cenário os jovens precisam ter uma visão
crítica, ética e estética, e não somente técnica das TDIC e seus usos,
para selecionar, filtrar, compreender e produzir criticamente sen-
tidos em quaisquer campos da vida social” (BRASIL, 2018, p. 489).
Diante da era digital, faz-se necessário desenvolver no âmbito es-
colar processos de ensino-aprendizagem de forma compartilhada
e por meio do diálogo, que possam construir conhecimentos signi-
ficativos, tendo assim uma aprendizagem efetiva em uma perspec-
tiva colaborativa através do uso das tecnologias digitais.
Este trabalho pode ser desenvolvido através do ensino hí-
brido, em razão de ser uma metodologia de ensino que possibilita
a customização do processo de aprendizagem, levando em consi-
deração as habilidades e competências individuais, por meio da
articulação de espaços físicos e virtuais. Assim, devido as suas
inúmeras possibilidades de realização, o ensino híbrido divide-se
em modelos sustentados e disruptivos. Conforme Bacich e Moran
(2018), os modelos sustentados são aqueles que para transcorre-
rem não dependem de grandes transformações na instituição es-
colar, enquanto que os modelos disruptivos implicam em altera-
ções mais profundas do processo tradicional da sala de aula.

O EMERGIR DO ENSINO HÍBRIDO E O DIÁLOGO FREIREANO NUMA EDUCAÇÃO EM MUDANÇA


64

Tem-se a exemplificação de alguns modelos, dentre eles:


modelo de rotação, modelo flex, modelo à la carte e o modelo
virtual enriquecido; cada um com suas próprias especificidades,
mas todos com um elemento em comum: o aluno como sujeito
ativo e autônomo do processo de aprendizagem e o professor en-
quanto mediador deste processo. A seguir tem-se estes modelos
­detalhados:
PRESENCIAL ENSINO ON-LINE

ENSINO HÍBRIDO

Modelo Modelo Modelo à Modelo virtual


de Flex la carte enriquecido
Rotação

Rotação
por
estações
Laboratório
rotacional
Sala de
aula
invertida

Rotação
individual

Fonte: (HORN; STAKER, 2015).

É possível perceber que o ensino híbrido é uma combinação


de espaços- tempos presencial e online e também de pedagogias e
metodologias. Assim, este ensino oportuniza o fomento da pesqui-
sa, fazendo com que o aluno seja protagonista do seu próprio saber.
O modelo de rotações, por exemplo, considerado um modelo sus-
tentado, possui subdivisões em que podemos ver as especificidades
a seguir, conforme conceituam Bacich, Neto e Trevisani (2015):

ERICA DANTAS DA SILVA • WILLYAN RAMON DE SOUZA PACHECO


RAIMUNDA DE FÁTIMA NEVES COÊLHO
65

Modelo Rotação por estações: É uma prática em que o pro-


fessor elabora experiências que favoreçam o dinamismo das ativi-
dades e o desenvolvimento da colaboração. O educador organiza
os grupos de trabalho conforme as necessidades dos estudantes,
nas estações são realizadas atividades em que os alunos compar-
tilham descobertas, incluindo as tecnologias digitais em pelo me-
nos uma estação.
Modelo Laboratório rotacional: Os alunos fazem rodízio
entre um laboratório de informática e a sala de aula de acordo com
a agenda de tarefas ou por decisão do professor. No laboratório são
realizadas atividades individuais e o professor fica na sala de aula
orientando os alunos. Este modelo pode envolver mais profissio-
nais da escola, exigindo também alterações na estrutura escolar,
com a criação de laboratórios de informática e equipe para acom-
panhar os alunos neste ambiente.
Modelo Sala de aula invertida: É uma prática em que o
conteúdo é postado previamente em ambiente virtual de apren-
dizagem pelo professor, e este sugere que os estudantes discutam
com a turma na aula seguinte. Assim, o discente se prepara e o
professor pode estimular atividades colaborativas e reflexivas em
sala de aula e o educador pode utilizar o tempo de aula com foco na
realização de atividades e não mais na apresentação de conteúdo.
Modelo Rotação individual: O modelo de rotação indi-
vidual é o primeiro exemplo considerado disruptivo (apesar das
semelhanças com o modelo de rotação por estações). Porém, o
diferencial é que o aluno cumpre uma agenda individualizada em
seu percurso pelas estações, sendo previamente combinada com
o professor e, pode envolver a passagem em todas as estações, ou
não, pois o discente poderá percorrer apenas algumas a depender
das suas necessidades. Ratifica-se ainda que os objetivos pedagógi-
cos devem estar bem explicitados e o percurso do estudante deve
corresponder ao que ele precisa atingir.

O EMERGIR DO ENSINO HÍBRIDO E O DIÁLOGO FREIREANO NUMA EDUCAÇÃO EM MUDANÇA


66

Modelo Flex: Nesse modelo o aluno também possui uma


agenda de atividades, mas não há uma determinação de sequên-
cias a serem seguidas, é o educando quem determina qual é a se-
quência de atividades que ele deseja fazer, com ênfase no ensino
online. Porém, o discente pode aprender também em grupo ou
com auxílio do professor. Neste modelo, há também a integração
de alunos de diferentes séries/níveis.
Modelo a la carte: Nesse caso o aluno tem o apoio educa-
cional online de acordo com as suas habilidades e necessidades e,
ao mesmo tempo, continua com as aulas tradicionais na escola. O
apoio online pode ocorrer no local e horário mais apropriados ao es-
tudante, podendo acontecer em casa, na escola ou em outros ­locais.
Modelo virtual enriquecido: Neste modelo, todas as aulas
e atividades das disciplinas são online, tendo a possibilidade de se
agendar tutorias presenciais, geralmente individuais. Torna-se
raro os alunos se encontrarem todos os dias, tendo a possibilidade
de apresentarem-se na instituição apenas uma vez por semana.
Nessa perspectiva, mediante todos os modelos que foram
apresentados, observa-se que o aluno não mais possui um papel
de passividade frente ao seu processo de aprendizagem, mas co-
meça a assumir uma postura ativa, colaborativa e participativa.
Enquanto isso, o professor exerce sua função de mediador do co-
nhecimento de forma dialógica e crítica, desempenhando suas
atribuições conforme cada metodologia adotada.
Desse modo, para que o processo educativo transcorra de
forma satisfatória, faz-se substancial que o momento presencial
em sala de aula torne-se mais produtivo e colaborativo, sendo este
um espaço não mais de exposição conteudista, mas de discussões e
reflexões entre todos. Dado o exposto, torna-se possível construir
entre os educandos uma aprendizagem significativa, em que por
meio da interação, da articulação e da construção da experiência
com o outro, torna-se possível a aquisição do conhecimento. Acer-
ca disso:

ERICA DANTAS DA SILVA • WILLYAN RAMON DE SOUZA PACHECO


RAIMUNDA DE FÁTIMA NEVES COÊLHO
67

[...]. Não basta colocar os alunos na escola. Temos de ofere-


cer-lhes uma educação instigadora, estimulante, provoca-
tiva, dinâmica, ativa desde o começo e em todos os níveis
de ensino. Milhões de alunos estão submetidos a modelos
engessados, padronizados, repetitivos, monótonos, previ-
síveis, asfixiantes (MORAN, 2007, p. 8).

Desse modo, não basta apenas garantir-se o acesso dos


alunos à escola, mas assegurar- lhes, principalmente, uma educa-
ção que seja significativa e que seja a própria vida experienciada
de forma interativa e colaborativa com o outro, em um processo
dialógico. Assim, ratifica-se que “a conscientização não é propria-
mente o ponto de partida do engajamento. A conscientização é
mais um produto do engajamento. Eu não me conscientizo para
lutar. Lutando, me conscientizo” (FREIRE, GADOTTI e GUIMA-
RÃES, 1995, p. 87).
Destarte, uma das ações mais importantes da educação
crítica é propiciar aos sujeitos condições favoráveis para que se
tornem seres transformadores, autônomos, críticos e reflexivos.
Fazendo-se necessário, assim, a ruptura da educação do silêncio
e iniciar uma educação participativa e colaborativa, superando as
barreiras estabelecidas pelas ações e atitudes antidialógicas, cons-
truindo, dessa forma, uma educação sustentada na dialogicidade
como instrumento de emancipação e libertação humana.

O DIÁLOGO FREIREANO E A EDUCAÇÃO MEDIADA


POR TECNOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA

As transições educacionais ocorridas em tempos de pan-


demia da COVID-19 implicaram em uma reestruturação teórico-
-metodológica de pensar, compreender e mobilizar o processo de
ensino e aprendizagem. Como menciona Amaral (2002, p. 108) “Os
que fazem a Educação devem estar cientes de que novos padrões
de competitividade se colocam, e neles o conhecimento surge

O EMERGIR DO ENSINO HÍBRIDO E O DIÁLOGO FREIREANO NUMA EDUCAÇÃO EM MUDANÇA


68

como a matéria prima das economias modernas”. Desse modo, as


mutações sociais exigem da educação novas regulações que pos-
sam corresponder às demandas da realidade presente, isso ocasio-
na pensar em modelos e estratégias educativas que oportunizem a
condução de um processo de ensino-aprendizagem próximo das
necessidades apresentadas, neste caso, a compulsória transição
do presencial ao virtual.
Pensar a dialogicidade nessa dimensão tecnológica, isto é,
nas possibilidades de construir pontes de comunicação que favo-
reçam a aprendizagem mediante a problematização do conheci-
mento, a assunção da realidade e as plataformas digitais, é cami-
nhar em direção aos modos possíveis de constituir uma educação
pautada na liberdade de pensamento, no respeito aos sujeitos e na
necessária politização do conhecimento.
Discutir a concepção de diálogo a partir de Paulo Freire
torna-se necessário para compreender os demais elementos que
compõem o arquétipo que organiza seu pensamento, sendo a no-
ção de diálogo a base de sua organização teórica. A prática do diá-
logo oportuniza a enunciação do mundo, a sua problematização, a
ação que produz rupturas nas relações de poder que são estabele-
cidas socialmente e abre espaço para a inclusão de pensamentos e
ações democratizantes.
Dizer a palavra é um ato de poder, é a representação singu-
lar de uma prática que possibilita a liberdade (BRANDÃO, 1995),
portanto, “não é no silêncio que os homens se fazem, mas na pa-
lavra, no trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 2016a, p. 44). A
palavra constitui-se, conforme Freire (2018), como ação criadora
que movimenta um pensar-agir ético, comprometido com o outro,
com a coletividade.
Pensar eticamente a partir de Freire (1996) é fator indis-
pensável para possibilitar a convivência humana, para propiciar
a construção de práticas que viabilizem a efetivação da vocação
ontológica de ser mais, o que implica em um constante devir, em

ERICA DANTAS DA SILVA • WILLYAN RAMON DE SOUZA PACHECO


RAIMUNDA DE FÁTIMA NEVES COÊLHO
69

caminhos de possibilidades que são leques contínuos de buscas.


Desse modo, a ética está imbricada na elaboração de práticas que
objetivam corresponder a interesses coletivos, genuinamente hu-
manos, a serviço das gentes (FREIRE, 2016b), das populações que
timidamente pronunciam a palavra e, assim, buscam a transfor-
mação do mundo.
Essa transformação necessária à condição de reorientação
das estruturas opressoras que tendem a inibir o anúncio das ma-
zelas sociais é a característica que se deve evidenciar na relevância
de dizer a palavra democraticamente, coletivamente. Freire (2016,
p. 50) acentua:
Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é
práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é pri-
vilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens,
precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra ver-
dadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de
prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais.

O ato de pronunciar o mundo através da palavra é, portan-


to, uma ação que deve ser necessariamente constituída através da
consciência crítica individual, que se une a consciências críticas e
se reúnem em uma coletividade maior que emana a representação
social macro dos interesses de cada realidade. Exatamente por isso
que Freire (2016) pontua a impossibilidade de representar o pen-
samento daquele que não pronuncia a palavra, porque a palavra é
o ato de liberdade que explicita a mobilização de uma consciência,
despertando para sua inconclusão, para o devir, para o ser mais.
No contexto educativo, as práticas que são estabelecidas
através do diálogo estão intimamente relacionadas à concepção
de mudança de consciência, isto é, mudança nos modos de pen-
sar e atuar no mundo, ações imprescindíveis para a organização
de metodologias que estejam alinhadas ao conjunto de elementos
que configuram a realidade do sujeito, fugindo da mera exposição
de conceitos.

O EMERGIR DO ENSINO HÍBRIDO E O DIÁLOGO FREIREANO NUMA EDUCAÇÃO EM MUDANÇA


70

Assim, “mudar não significa simplesmente mudar uma vi-


são, um conceito isolado, mas é mudar a forma de trabalhar com o
conjunto de informações, conseguindo extrair o que é relevante, o
que é fundamental para os sujeitos” (RÊGO, 2006, p. 89). A mudan-
ça, através do diálogo, nas práticas educativas é o movimento que
possibilita a reorientação de estratégias de ensino estáticas, dire-
cionando sua organização a partir de abordagens estreitamente
alinhadas à problematização da realidade, como menciona Freire
(1983, p. 34-35):
O que se pretende com o diálogo, em qualquer hipótese,
[...] é a problematização do próprio conhecimento em sua
indiscutível relação com a realidade concreta na qual se
gera e sobre a qual incide, para melhor compreendê-la,
explicá-la, transformá-la [...]. [...]. É preciso que discuta o
significado deste achado científico; a dimensão histórica
do saber, sua inserção no tempo, sua instrumentalidade.
E tudo isso é tema de indagação, de diálogo. [...] O diálo-
go problematizador não depende do conteúdo que vai ser
problematizado. Tudo pode ser problematizado [...].
Nessa perspectiva, o diálogo se sustenta enquanto matriz
direcionadora de práticas educativas que se pautam na proble-
matização, na reflexão e criação de possibilidades de mudanças,
constituindo um sujeito crítico, criativo, solidário e participativo.
Vale ressaltar que essa problematização perpassa discussões ex-
ploratórias e investigativas, visando conduzir o processo de apren-
dizagem, indo de encontro à problematização da constituição da
prática docente.
Assim, “dialogar é problematizar o fazer-pedagógico e suas
respectivas consequências, é suscitar exigências para a mudan-
ça” (SILVA, 2004, p. 40). As contínuas revisões e reestruturações
dos modos de abordar e construir o conhecimento são, portanto,
necessárias para a organização de uma prática docente dialógica
libertadora que esteja consciente de sua incompletude e necessi-
dade de reconstrução permanente.

ERICA DANTAS DA SILVA • WILLYAN RAMON DE SOUZA PACHECO


RAIMUNDA DE FÁTIMA NEVES COÊLHO
71

É através dessa compreensão de coletividade, cooperação,


criatividade, criticidade e autonomia que a educação dialógica
pode se estabelecer através de muitas outras maneiras, não estan-
do necessariamente atrelada a práticas pedagógicas presenciais.
O contexto em que se vive atualmente apresenta uma demanda
crescente que direciona os professores a reestruturarem e repen-
sarem suas práticas, adaptando metodologias que incluam a reali-
dade e os interesses de cada sujeito.
As características do diálogo em Paulo Freire se tornam cada
vez mais presentes pelas inúmeras possibilidades de criação, que
balizam a formação e apresentam a necessidade e a possibilidade
de buscas constantes para a criação de novos meios de construir o
conhecimento a partir de uma situação real. É nesse aspecto que
as tecnologias digitais são ferramentas que podem se constituir
como elementos possíveis da concretização de um novo modo de
dialogar, frente às mudanças e exigências ­contemporâneas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do cenário de um mundo em mutação, não se pode


negar que as práticas educativas nesse ensino híbrido, que per-
meiam o espaço presencial e o virtual, apresentam múltiplos de-
safios, principalmente, por se estar em um contexto que se con-
sidera de ambivalência. Nessa realidade tem-se, de um lado, toda
uma racionalidade instrumental materializada na aplicação dos
artefatos digitais e, de outro, junto a essa cultura digital, a busca
da fecundidade na premissa dialógica freireana. Elementos que
subsidiarão a construção dos sujeitos sociais, de modo a buscar-se
o uso reflexivo desses dispositivos digitais, ao se fazer análises so-
bre a utilização crítica do ensino híbrido ou remoto.
Dessa maneira, entende-se que nessa era virtual, mediada
pelas tecnologias digitais, torna-se impossível negar essa cultura,
e até se pode argumentar que será desinteligente e pouco produti-

O EMERGIR DO ENSINO HÍBRIDO E O DIÁLOGO FREIREANO NUMA EDUCAÇÃO EM MUDANÇA


72

vo se não a aceitar. Porém, necessita-se, urgentemente, qualificar


esse espaço virtual com a dialogicidade que, certamente, deverá
emergir desse contexto, dissensos, tensões e conflitos. Assim,
diante de várias questões expostas pela pandemia da COVID-19,
torna-se preciso apropriar-se dessa cultura digital, no seu modo
de democratização e horizontalidade a favor da sociedade e da
­ciência.

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O EMERGIR DO ENSINO HÍBRIDO E O DIÁLOGO FREIREANO NUMA EDUCAÇÃO EM MUDANÇA


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O ENCONTRO COM A DOCÊNCIA:


DE PROFESSORA ALFABETIZADORA A
DOCENTE DO ENSINO SUPERIOR
Zildene Francisca Pereira1

RESUMO
No presente artigo, apresento uma breve reflexão acerca do en-
contro com a docência, enquanto vivências relacionadas à sala de aula,
na infância e na adolescência, permeada por situações, encontros e de-
sencontros que me fizeram ressignificar o ambiente escolar enquanto
espaço impulsionador de sonhos e de expectativas quanto à mudança de
perspectivas educacionais, tanto relacionada a posicionamentos, quanto
a relações interpessoais entre professores e alunos que culminaram com
a aprendizagem da docência universitária em suas várias dimensões: no
ensino, na pesquisa e na extensão. Refletir a dinâmica de sala de aula fez
com que a docência ganhasse um novo olhar não apenas para as conquis-
tas, mas que os medos pudessem ser repensados enquanto possibilida-
des para o processo de ensino-aprendizagem dos conteúdos.
Palavras-chave: Aprendizagem da Docência, Alfabetização, En-
sino Superior.

ABSTRACT
In this article, I present a brief reflection on the encounter with
teaching, as experiences related to the classroom, in childhood and
adolescence, permeated by situations, encounters and mismatches that
made me resignify the school environment as a space that drives dreams
and expectations about changing educational perspectives, both related
to positions, as well as interpersonal relationships between teachers

1 Pedagoga; Mestre em Educação pela Universidade Cidade de São Paulo/UNICID;


Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo/PUC/SP; Professora da Unidade Acadêmica de Educação/UAE, do Cen-
tro de Formação de Professores/CFP, da Universidade Federal de Campina Grande/
UFCG, Campus de Cajazeiras/PB; atualmente Coordenadora de área do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID; Pesquisadora no campo da
formação de professores e estudos da infância. Email: denafran@yahoo.com.br

ZILDENE FRANCISCA PEREIRA


75

and students that culminated in the teaching of university teaching in


its various dimensions: in teaching, research and extension. Reflecting
the dynamics of the classroom made teaching a new look not only for
achievements, but for fears to be rethought as possibilities for the
teaching-learning process of content.
Keywords: Teaching Learning, Literacy, University education.

INTRODUÇÃO

Trago dentro do meu coração,


como num cofre que se não pode fechar
de cheio, todos os lugares onde estive,
todos os portos a que cheguei,
todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
ou de tombadilhos, sonhando,
e tudo isso, que é tanto, é pouco para o que quero.
(Fernando Pessoa, Passagem das Horas)

Iniciar com esse trecho de Fernando Pessoa traz à tona


memórias confusas, alegres, tristes, lembranças que contribuí-
ram, em parte, para o que sou hoje; tanto como indivíduo, quanto
no coletivo e na vida profissional, como professora. Caminhar no
mundo das letras sempre foi muito instigante. Cada letra indicava
algo, alguém, algum lugar. Foi assim que me foi apresentada a pos-
sibilidade de escrever e de conhecer o que escrevia, antes mesmo
de ingressar em uma sala de alfabetização. E assim surgia o ques-
tionamento que me fez pensar a docência: Será que, nesse emara-
nhado de letras apresentadas, o mundo abriria suas cortinas?
A compreensão das letras como possibilidade de decifrar o
mundo dá visibilidade à minha trajetória pessoal e familiar, ao iní-
cio da minha alfabetização, meu trabalho como alfabetizadora e
mais recentemente como pesquisadora da área de formação docen-
te e estudos da infância, no curso de Pedagogia, no Centro de For-
mação de Professores, da Universidade Federal de Campina Grande.

O ENCONTRO COM A DOCÊNCIA:


DE PROFESSORA ALFABETIZADORA A DOCENTE DO ENSINO SUPERIOR
76

Quando iniciei minha vida escolar, estava praticamente al-


fabetizada, pois minha mãe auxiliava-me, como também aos ou-
tros cinco filhos, no processo de construção da leitura e da escrita,
soletrando palavras e frases. Todavia, a professora alfabetizadora
partia do princípio de que ensinar dessa forma não era possível,
porque atrapalhava o meu andamento nas atividades em sala de
aula. Dizia que o método que utilizava era o construtivismo e os
alunos tinham que ler a palavra toda. Destaco em especial essas
palavras pelo equívoco que se tornaram, durante muitos anos, na
área educacional, o que impossibilitava um maior entendimento.
Na década de 80, mais precisamente, houve inúmeras dis-
cussões acerca do construtivismo. Dos professores que trabalha-
vam com crianças, era exigido que considerassem, em sala de aula,
o que os alunos sabiam, seus conhecimentos prévios; contudo,
aqueles professores que não se identificavam com a proposta, até
mesmo por desconhecimento e insegurança, eram ‘convidados’ a
serem construtivistas do dia para a noite, sem ter tempo nem mes-
mo para uma maior compreensão acerca do assunto.
A proposta era repassada nos planejamentos nas escolas,
bem como pela leitura obrigatória de alguns artigos de Emília Fer-
reiro e Ana Teberosky, pois os teóricos Piaget e Vigotsky não eram
lidos, pela densidade da sua teoria, ou em alguns casos, quando
lidos, eram mal interpretados. O que tinha validade eram as apli-
cações das teorias nas atividades práticas em sala de aula. Segundo
Oliveira (2002, p.162), as propostas construtivistas são considera-
das em dois extremos ora “[...] como verdades de fé – por exemplo, –
a criança constrói seu próprio conhecimento ou são apresentados
em tal nível de generalidade que ninguém poderia discordar [...]”.
Com essa visão do construtivismo, a professora apresenta-
va um jeito peculiar de ensinar a ler e a escrever, bem como não
considerava as experiências que os alunos levavam para a sala de
aula, oriundas da família e da comunidade da qual faziam parte.
Eram transmitidos conteúdos, apenas, através de cópias retiradas

ZILDENE FRANCISCA PEREIRA


77

da lousa e em seguida das leituras de palavras e frases que eram re-


alizadas em duplas. Era como se o ensinar-aprender se restringis-
se, apenas, à sala de aula, à presença do professor diante do aluno,
à imagem de alguém que manda e de outro que obedece, a partir de
uma visão distorcida do que os construtivistas defendiam.
Esse momento da alfabetização me permitiu uma compre-
ensão voltada à sala de aula como o espaço da ordem, da obediência
e da passividade, em que o professor, tantas vezes, assumia uma
postura autoritária e distante como se esse fosse o melhor cami-
nho para fazê-lo aprender, evitando, assim, uma proximidade, que
poderia vir carregado de incertezas ou descobertas que pudessem
favorecer a relação professor-aluno de maneira satisfatória e tirá-
-lo da posição de autoridade.
Apesar das considerações tecidas anteriormente, a sala de
aula sempre foi, para mim, um espaço impulsionador de sonhos,
instigado pela compreensão dos meus pais. Por meio da leitura e
da escrita, conseguiríamos mudar o pensamento na nossa própria
casa e acerca da participação social na comunidade da qual fazía-
mos parte. O ambiente escolar sempre foi considerado como espa-
ço de grandes aprendizagens para vencermos os obstáculos, que a
própria dinâmica da sociedade impunha.
Aos poucos, assimilei esse discurso, ora acreditava que ele
era verdadeiro, ora percebia outras tantas nuances em que o su-
jeito não seria o único responsável pelo seu fracasso ou pela sua
conquista. Seria preciso rever algumas falas assertivas em que o
indivíduo teria mérito ou não pelo seu esforço pessoal. Ao longo do
tempo, vivenciei cada discurso com seriedade, tornando-o signifi-
cativo, para também ser repensado.
Hoje, ao lembrar de alguns acontecimentos oriundos de ex-
periências durante o processo ensino-aprendizagem, da leitura e
da escrita, lembro-me também de uma professora de matemática.
Eu ainda adolescente, encantada com a profissão, e ela com a sobe-
rania de alguém que havia aprendido tudo e considerava a sala de

O ENCONTRO COM A DOCÊNCIA:


DE PROFESSORA ALFABETIZADORA A DOCENTE DO ENSINO SUPERIOR
78

aula o local apropriado para depositar no outro toda bagagem que


ela levava para a escola, em termos de conhecimento sistematiza-
do. Para Wallon (1941/1995, p. 29) “O egocentrismo do adulto pode,
enfim, manifestar-se através da sua convicção de que toda a evolu-
ção mental tem por termo inelutável as suas próprias maneiras de
sentir e de pensar, as do seu meio e da sua época”.
Neste sentido, a criança teria que agir, pensar e se compor-
tar, no ambiente escolar, de acordo com o que o adulto esperava,
aqui, no caso, a professora de matemática. Hoje, depois de tantas
leituras e de ressignificar alguns fatos ocorridos na sala de aula,
enquanto aluna, percebo a importância de pensar a criança e o
adolescente nas suas peculiaridades, observá-los em seu desen-
volvimento, com suas características típicas a sua faixa etária, ao
seu meio e a sua época.
Considerando alguns fatos vivenciados em sala de aula,
tanto como aluna, quanto como professora, sinto a necessidade
de repensar a prática pedagógica com uma maior abrangência
quanto à apreensão do conceito afetividade, sua importância nas
interações em sala de aula, bem como na relação entre afetividade
e aprendizagem escolar. De acordo com Sérgio Leite (2006, p. 25)
“[...] todas as decisões pedagógicas que o professor assume, no pla-
nejamento e desenvolvimento do seu trabalho, têm implicações
diretas no aluno, tanto no nível cognitivo quanto no afetivo”.
Considerando que todas as decisões tomadas pelo profes-
sor recaem sob o aluno, somente o fato de ser chamada à lousa,
na frente de todos sempre me acarretou medo e constrangimento,
por não poder errar diante das respostas aprendidas nas ativida-
des propostas pela professora de matemática, era como se fosse
uma trilha a ser seguida que me levaria exatamente à resposta
correta. Essa experiência hoje me faz pensar na apropriação sim-
bólica do ato, pois tantos anos se passaram e a possibilidade de ir
à lousa me causa o mesmo estranhamento. Esses sentimentos ex-
perimentados na adolescência podem ser traduzidos nas palavras

ZILDENE FRANCISCA PEREIRA


79

de Freire (1998, p 47-48) quando afirma: “Às vezes mal se imagina


o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples
gesto do professor. O que pode um gesto aparentemente insignifi-
cante valer como força formadora ou como contribuição à do edu-
cando por si mesmo”.
Essa experiência vivenciada por Freire foi um gesto de re-
forço confiante por parte do professor, foi uma experiência boa
que o fez perceber que ele era capaz de aprender. Apresento, dessa
forma, a mesma fala para nos fazer pensar no quanto um simples
gesto do/a professor/a faz toda diferença no processo de aprendi-
zado, considerando que tanto pode ser em uma situação agradável
ou desagradável para o aluno, ou para ambos.
De acordo com tantas leituras realizadas ao longo da minha
escolaridade, deparei-me, certa vez, com Carta ao pai de Franz Ka-
fka (1997), que me fez ir muito além de apenas uma relação de pai
e filho. Deparei-me com lembranças do porque eu não aprendia
matemática e do quanto era difícil estar mais próximo de um pro-
fessor, e então lembrei que como diz Fernando Pessoa no trecho
citado, também trago comigo lugares, pessoas, frases, caminhos e
olhares, que, ao reler Carta ao pai, me faz ter o mesmo sentimento
de medo, de incapacidade para aprender. Destacarei alguns tre-
chos do texto de Kafka (1997, p. 7) e tentarei mediar com algumas
lembranças, iniciando do “[...] porque eu afirmo ter medo de você
[...]”, essa frase é na verdade o início da Carta de Kafka para seu pai.
Conforme Wallon (1941/1995, p. 28), o adulto reconhece que
possam existir diferenças entre ele e a criança, porém o adulto
reduz, muitas vezes, essas diferenças como se fossem subtrações:
é como se ele fosse capaz de resolver e vivenciar determinados
problemas, situações e atividades que a criança por si só não teria
condições. Assim, “[...] Comparando a criança a si própria, vê-a re-
lativa ou totalmente inapta em relação às acções ou tarefas que ele
próprio pode executar” [...]. Na Carta ao pai, Kafka escreve:

O ENCONTRO COM A DOCÊNCIA:


DE PROFESSORA ALFABETIZADORA A DOCENTE DO ENSINO SUPERIOR
80

[...] o mundo se dividia para mim em três partes, uma onde


eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só
para mim e às quais, além disso, não sabia por que, nun-
ca podia corresponder plenamente; depois, um segundo
mundo, infinitamente distante do meu, no qual vivia, ocu-
pado em governar, dar ordens e irritar-se com o seu não-
-cumprimento; e finalmente um terceiro mundo, onde as
outras pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obedi-
ência. Eu vivia imerso na vergonha: ou seguia as suas leis
e isso era vergonha porque elas só valiam para mim; ou fi-
cava teimoso, e isso também era vergonha, pois como me
permitia ser teimoso diante de você? Ou então não podia
obedecer porque, por exemplo, não tinha a sua força, o seu
apetite, a sua destreza, embora você exigisse isso de mim
como algo natural: esta era com certeza a vergonha maior.
Desse modo se moviam não as reflexões, mas os sentimen-
tos do menino. (1997, p. 19)

Quando destaquei a possibilidade de a professora de mate-


mática ter aprendido tudo, não aceitava erros por parte dos alu-
nos, entendia que ela considerava, apenas, as inaptidões. Isso me
faz lembrar o que Kafka (1997, p.13) descreve em sua carta quando
diz: “... Anos depois eu ainda sofria com a torturante idéia de que o
homem gigantesco, meu pai, a última instância, podia vir quase sem
motivo me tirar da cama à noite para me levar à pawlatsche2 e de
que, portanto, eu era para ele um nada dessa espécie”.
Assim como Kafka, eu também sentia medo de ser levada
mais uma vez à lousa para errar nas atividades e ser ridiculariza-
da por todos e, pior ainda, pela própria professora. Isso causava
um sentimento de desconforto que se confundia com incapaci-
dade de aprender matemática. Os recursos educativos utilizados
pela professora eram sempre para desqualificar o aluno, e eu
acreditava que professores tinham a capacidade de mediar o con-
teúdo, a vida, o convívio na escola com outros professores, alunos

2 Termo tcheco que designa o balcão ou a varanda de uma casa (KAFKA, 1997, p. 13).

ZILDENE FRANCISCA PEREIRA


81

e a construção do conhecimento de forma significativa para mim


e para o outro.
Esse foi um dos episódios marcantes que me fez ter mais cla-
reza da necessidade de repensar a prática pedagógica e a relação
professor/a – aluno. Hoje, compreendo que para pensar essa práti-
ca é necessário discutir a questão da afetividade na sua amplitude e
definição, eliminando, assim, a ambiguidade que o termo traz.
Henri Wallon é um autor que colabora para esclarecer essa
ambiguidade, pois ele estudou as emoções por perceber que elas
desempenhavam uma função importante na criança, depois do
nascimento e durante o seu desenvolvimento, considerando as
transformações ocorridas para que esta mesma criança se tornas-
se um adulto da sua espécie. A afetividade, portanto, na psicogené-
tica walloniana é entendida como a capacidade que o ser humano
tem de afetar e de ser afetado pelo mundo exterior e interior, de
maneira agradável e/ou desagradável.
É nessa complexidade de narrativas, expressas ao longo do
texto, que se misturam leituras atuais e lembranças distantes, pelo
menos em termos de datas. O entrelaçamento do que para mim foi
e continua sendo fundamental no processo ensino-aprendizagem,
considerando os vários pólos desse caminhar: o professor, o aluno,
o conteúdo, o ensinar, o aprender e o trançar de todos esses aspec-
tos na melhoria de um indivíduo completo com suas dimensões:
afetiva, cognitiva e motora.

A docência como um caminho aprendido: reflexões


de aluna alfabetizada a professora

Antes mesmo de iniciar os estudos já me sentia inclinada na


escolha da profissão docente, pois em minha casa tudo era movido
pela educação, à escola era exatamente o espaço mais valorizado
para uma criança fazer parte. Minha mãe com sua sapiência expe-
riencial me ensinava a ler e escrever, meu pai o provedor da família

O ENCONTRO COM A DOCÊNCIA:


DE PROFESSORA ALFABETIZADORA A DOCENTE DO ENSINO SUPERIOR
82

e comerciante me ensinava a contar. Meu avô paterno era professor


e a educação era a única saída da ignorância em que eram subme-
tidos os filhos das camadas populares. Não quero dizer com essa
explanação que a escolha da profissão tenha sido algo naturalizado,
mas foi algo induzido, vivido e experienciado ao longo dos anos.
Quando iniciei o trabalho como docente na Educação Infan-
til e no Ensino Fundamental, no município de Crato-Ceará, leva-
va comigo aspectos do ambiente escolar como aluna da alfabeti-
zação, assim como o jeito de alfabetizar de algumas professoras.
Carregava marcas significativas e uma grande expectativa de que
poderia desenvolver um trabalho em sala de aula, diferente do que
tinha vivido em algumas matérias, mais especificamente na mate-
mática, como aluna, no qual houvesse outro tipo de interação pro-
fessor-aluno, aluno-aluno, professor-aluno-conteúdo, juntamente
com os pais e a comunidade, para que o processo ensino-aprendi-
zagem não fosse visto dissociado da vida fora da escola.
Iniciei como docente em 1995, numa escola pública munici-
pal, sendo auxiliar de uma professora jovem, porém experiente na
profissão. Minha tarefa consistia apenas em passar atividades no
mimeógrafo e acompanhar os alunos, crianças de dois anos e meio
e três anos, quando estes iam para o recreio.
No ano seguinte, em 1996, obtive minha primeira sala de aula
como titular, com crianças de três e quatro anos. Nessa ocasião, foi
extinta a figura da professora auxiliar, o que para mim foi algo re-
levante, visto que ela era muito mais compreendida como mão de
obra, para diminuir o trabalho da titular, do que como uma edu-
cadora que também poderia contribuir na educação das c­ rianças.
Conduzir uma sala de aula sozinha era mais trabalhoso, pela
quantidade de crianças que eram depositadas numa sala pequena da
escola todos os dias, sem condições mínimas tanto de recursos ma-
teriais, quanto de espaço físico. No entanto, era também o momento
de aperfeiçoar a interação professor-aluno e considerar dificuldades
que poderiam ocorrer durante o processo ensino-aprendizagem.

ZILDENE FRANCISCA PEREIRA


83

Esperei pelo momento certo para aprender a lidar com a


profissão, com os imprevistos ocorridos na relação professor-alu-
no, na própria dinâmica de sala de aula e na interação existente
neste ambiente. Tive muitas dificuldades no início da profissão,
especialmente por se tratar de um trabalho com crianças muito
pequenas e por tentar defendê-las de tudo que pudesse envolver
uma situação desagradável, então era uma posição de ‘mãe’ no es-
paço de sala de aula, o que atrapalhava, de certa forma, o processo
educativo. Na verdade, eu ainda era vista como aprendiz de profes-
sora, talvez por ter entrado na profissão muito jovem.
Falar em interação entre professor e alunos é também pen-
sar nas interações passadas, visto que estas poderão interferir ou
não nas relações futuras, como sugere Aranha (1993, p. 23), numa
reflexão a respeito da contribuição de Hinde sobre interação
­social:
[...] a relação é um fenômeno que envolve algum tipo de
interação intermitente entre duas pessoas, envolvendo
intercâmbios durante um período relativamente extenso
de tempo. Aponta ainda que existe algum grau de conti-
nuidade entre as interações passadas e podem afetar as
interações no futuro. [...] para compreender uma relação
precisa-se conhecer também os aspectos afetivos/cogni-
tivos envolvidos, reconhecendo que estes, além dos com-
portamentais estão intimamente interligados.

Essas interações é que, de certa forma, possibilitariam a


troca de experiências entre professor e aluno, em que consegui-
riam realizar seus papéis: ensinar e aprender em diversas situ-
ações proporcionadas pelo ambiente restrito de sala de aula. A
interação professor-aluno possibilitaria tirar o outro do silêncio,
no caso, a criança, por meio de uma relação de cuidado, de escuta
sensível às suas dificuldades e necessidades, pois “[...] é mediante
o estabelecimento de vínculos afetivos que ocorre o processo ensino-
-aprendizagem” (CODO e MENEZES, 1999, p. 50).

O ENCONTRO COM A DOCÊNCIA:


DE PROFESSORA ALFABETIZADORA A DOCENTE DO ENSINO SUPERIOR
84

Ao discutir o cuidar, Almeida (2006) argumenta que como


somos geneticamente sociais, no dizer de Wallon, precisamos ser
cuidados pelo outro e também cuidar do outro, assim nos constitu-
ímos, internalizamos outros indivíduos, situações e contextos que
nos tornam quem somos. O cuidar implica uma opção que poderá
ser de intervir ou não, conforme a situação, e, isso fica claro numa
relação pedagógica em que o cuidar do professor é intencional.
No início da docência, minha visão de educação, de aluno e de
professor, oscilava entre a compreensão do papel do professor diante
das dificuldades encontradas – alunos que sofriam agressões em casa,
que tinham dificuldades financeiras, pais que não acompanhavam
a vida escolar dos filhos – e a presença daqueles alunos que tinham
acompanhamento e incentivo por parte dos familiares e se encon-
travam diante de mim como se fossem aprender tudo neste espaço.
Junto a esses obstáculos, existia, ainda, o sentimento de impotên-
cia, por estar no início da carreira, como se tudo fosse um fracasso.
Na tentativa de compreender o papel do professor de Edu-
cação Infantil e em busca de encontrar saídas para o sentimento
de descrença na educação, deparei-me, durante o período de es-
tudante de graduação, com diversos modelos de formadores, os
quais me possibilitaram reconstruir conceitos – ora o professor
sabia tudo, ora passava a ideia de que o seu saber seria reelaborado
com o passar do tempo, com as experiências, leituras e reflexões
no decorrer dos anos. Assim, ressignifiquei o modelo de professor
que guardara desde a época da minha alfabetização.
Nesse sentido, concordo com Almeida (2002, p. 78), ao desta-
car a importância das relações interpessoais entre mestres e cole-
gas de profissão, pois “[...] as habilidades de relacionamento inter-
pessoal – o olhar atento, o ouvir ativo, o falar autêntico – podem ser
desenvolvidas, e que nesse exercício o profissional vai fazendo uma
revisão de suas concepções de escola, de professor e de aluno”.
Percebi que ser professora era algo acompanhado de toda
uma construção que envolvia experiências cotidianas e possibili-

ZILDENE FRANCISCA PEREIRA


85

dades de rever certezas cristalizadas que me acompanhavam du-


rante todo o processo de formação, ressignificar práticas apren-
didas, assim como reconstruir novos caminhos. Essa forma de
compreender o meu processo como professora possibilitou-me
enxergar a docência como algo a ser aprendido, pois “Não me fiz
professora, me construo professora, cotidianamente, em diferen-
tes instâncias nas quais tenho interagido, nas diferentes interlo-
cuções que tenho feito, nas múltiplas teias de relações que tenho
tecido [...]” (FÁTIMA DE JESUS, 2000, p. 39).
Por estas e tantas outras razões, assim como Fátima de Je-
sus (2000), me construo professora cotidianamente e compreendo
que o estar na profissão docente e nela permanecer está relaciona-
da a escolhas pensadas, ressignificadas, refletidas e analisadas ao
longo da minha trajetória de estudante e profissional da educação.
Com isso vasculho minha memória em busca de narrativas que
dêem sentido às minhas escolhas a partir de experiências vivi-
das, sentimentos de pertença à profissão, pensamentos distantes
e próximos ao mesmo tempo em que me fizeram e fazem, ainda,
hoje permanecer como docente, mas agora do ensino superior
com novas demandas e peculiaridades. Continuo vendo na educa-
ção a única chave para abrir todas as portas.

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ZILDENE FRANCISCA PEREIRA


87

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO


DE PROJETO DE ARQUITETURA:
A ANALOGIA COMO ESTRATÉGIA
METODOLÓGICA
Haziel Pereira Lôbo1
Heitor de Andrade Silva2

RESUMO
O ensino de projeto exerce um papel crucial na definição dos
projetos pedagógicos dos cursos de arquitetura, já que reúne desenvol-
vimento de conhecimento, bem como de competências e de habilidades
essenciais da formação para intervenção no espaço. Nesse ambiente, a
construção de repertórios projetuais, com base na análise de projetos
correlatos, pode favorecer analogias no momento da concepção. Neste
artigo, é apresentada uma experiência de projeto em contexto acadêmi-
co, revelando alguns princípios e práticas. Tem o objetivo de analisar as
estratégias metodológicas, realizadas no componente curricular Projeto
de Arquitetura 02, no segundo semestre letivo de 2019, do Curso de Ar-
quitetura e Urbanismo, da UFRN. A coleta de dados se deu por meio de
entrevistas, questionários e observações, além da análise de ­documentos.
Palavras-chave: Projeto de arquitetura. Ensino de projeto. Ana-
logias projetuais.

ABSTRACT
Project teaching plays a crucial role in the definition of the
pedagogical projects of the architecture course, because it gathers
knowledge development, as well as some skills and essencial abilities in
space intervention training, besides considering humanistic variables
and techniques. In this environment, the construction of the projective

1 Arquiteto e Urbanista (UFCG), Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em


Arquitetura e Urbanismo da UFRN. E-mail: haziellobo801@gmail.com
2 Dr. em Arquitetura e Urbanismo (UFRN), professor de projeto do Departamento
de Arquitetura da UFRN. Email: heitor.andrade@ufrn.abea.arq.br

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA:


A ANALOGIA COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
88

repertories, based on the analysis of related projects, may favor the


rise of analogies in the moment of conception. In this article, a design
experience in an academic context is presented, revealing some principles
and practices. Its main goal consists in the analysis of methodological
strategies, carried out in the curricular component Architecture Project
02, 2019 second semestre, of the Architecture and Urbanism course, at the
UFRN. The data collection was performed by interviews, questionnaires
and comments, besides the analysis of the documents.
Key-word: Architecture design. Project Teaching. Projectual
Analogies.

INTRODUÇÃO

O ensino de projeto, essencialmente, reúne bases pedagógi-


cas que visam a uma formação humanística e técnica do estudante
de arquitetura. O ateliê é um espaço de síntese e “prática projetual
reflexiva” (SCHÖN, 2000), onde se busca a formulação de soluções
de intervenção no espaço, fundamentadas em variáveis com na-
turezas distintas – sociais, ambientais, culturais, técnicas e eco-
nômicas. A ampliação de repertórios projetuais, por meio da ana-
logia, pode favorecer a concepção de novas propostas e, portanto,
promover o aprendizado, não sendo essa estratégia metodológica
uma substituta das experiências dos estudantes, tampouco um
condicionante, mas um recurso para estimular a escolha de alter-
nativas possíveis, e, sobretudo, um meio de fundamentação teóri-
ca, prática e instrumental para a concepção de novas soluções.
Este artigo tem o objetivo de analisar as estratégias me-
todológicas, realizadas no segundo semestre letivo de 2019 do
componente curricular Projeto de Arquitetura 02, do Curso de
Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). São duas abordagens, uma primeira de natureza
fundamental, que aborda, no item 2.2, aproximações conceituais
sobre o projeto, bem como o contexto em que é tratado, com des-

HAZIEL PEREIRA LÔBO • HEITOR DE ANDRADE SILVA


89

taque para o ateliê; encerra-se discorrendo sobre alguns métodos


de analogias adotados na área de arquitetura e adotados como es-
tratégias metodológicas. Em um segundo momento, no item 2.2, é
apresentada uma experiência didática, no componente curricular
Projeto de Arquitetura 02, do Curso de Arquitetura e Urbanismo
da UFRN, no segundo semestre letivo de 2019, que usou a analo-
gia com outros projetos como estratégia para favorecer a concep-
ção de novas soluções, facilitando, portanto, o aprendizado dos
­estudantes.

DISCUSSÕES E EXPERIÊNCIAS DIDÁTICO-


PEDAGÓGICAS

O projeto de arquitetura: aproximações conceituais,


contextos e estratégias pedagógicas

Inicialmente, é importante trazer algumas definições acer-


ca de projeto. Para Boutinet (2002), projeto significa “pré-visão”,
projeção, antecipação de ações e empreendimentos a serem reali-
zados em um futuro próximo. Requer controle, resolução de pro-
blemas, tomada de decisões (soluções espaciais, organizacionais),
meios para concretização, comunicação e representação de ideias
e intenções. Para o autor, o projeto consiste na sistematização de
dados e de ideias. É, contudo, da ordem do processo, quando a di-
retriz avança e permite alterar, deixando de ser projeto quando
surge o objeto em sua configuração definitiva. Boudon (et al, 2000)
acrescentam, observando que o projeto não pode ser reduzido a
uma atividade de composição gráfica; está na intersecção de pro-
cessos intelectuais e de atividades práticas e técnicas de concep-
ção inserido em um contexto complexo de fatores sociais, ambien-
tais e econômicos.
O projeto, como observa Hillier (1990), articula intenção
(com base na realidade) e intuição (o seu desenvolvimento no cam-

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA:


A ANALOGIA COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
90

po estruturado pela razão). É, segundo o autor, processo (mental


que traduz formas físicas e espaciais), procedimento, conjectura-
-teste (inferição ou dedução sobre a algo que é provável, com base
em presunções, evidências incompletas, hipóteses). Por conse-
guinte, pode-se adotar as compreensões de projeto que o reconhe-
cem como processo de tomada de decisões (racionais e intuitivas),
que considera condicionantes da realidade de natureza social, am-
biental e econômica, de algum modo representadas (graficamen-
te), visando escolher soluções hipotéticas, de natureza técnica,
que podem ser, posteriormente, testadas e desenvolvidas.
Ademais, é válido observar que, no processo de projeto, po-
dem ser identificadas três fases: análise, síntese (concepção) e de-
senvolvimento (avaliação). Para Lawson (2011), a análise é a fase de
identificação dos principais elementos que compõem o problema
de projeto; a síntese está associada à fase criativa dos estágios de
decisão; e, a avaliação visa garantir que a solução proposta seja a
mais aceitável. Contudo, como observa vários autores – Broadbent
(1973), Andrade; Ruschel; Moreira (2011), Lawson (2011) – o proces-
so não é linear, já que as ideias surgem em diferentes estágios de
definição, e as fases interagem entre si e ao longo de todo o percur-
so, apesar de cada momento demandar estratégias metodológicas
específicas.
Nesse sentido, projeto pode ser analisado em diferentes
contextos. Chupan (2003) chama atenção para três situações: o
projeto em situação de pesquisa, quando a ambição do conheci-
mento predomina, o projeto em situação profissional, impulsio-
nado pela solução e o projeto em situação pedagógica, em que o
aprendizado do estudante é o objetivo principal. Neste artigo o
projeto é abordado em seu contexto pedagógico, que no ambiente
acadêmico de cursos de arquitetura e urbanismo tem no ateliê o
lócus da síntese.
Existem indícios de que o ateliê de projeto encontra-se no
ambiente acadêmico desde a Ècole Nationale et Espéciale des Be-

HAZIEL PEREIRA LÔBO • HEITOR DE ANDRADE SILVA


91

aux-Arts, na França, sobretudo desde a segunda metade do século


XIX e no século XX nas escolas alemãs Bauhaus (1919) e Ulm (1952).
No Brasil, o componente curricular é considerado a “espinha dor-
sal” dos cursos de Arquitetura e Urbanismo, tendo, como marco, a
reforma na estrutura curricular do curso de Arquitetura e Urba-
nismo da Universidade de São Paulo (1957). (LEITE; SILVA, 2019).
Entre as abordagens identificadas por Lebahar (1999), no
atelier de projeto, sobressaem duas: a resolução de problemas e as
competências de áreas multimeios e multidomínios. A resolução
de problemas fundamenta-se nas ciências da computação e con-
siste numa aproximação científica ligada à inteligência artificial.
A concepção visa resolver problemas, interpretando a realidade a
fim de realizar um objetivo. Dois princípios resumem essa aborda-
gem: a inteligência humana e os computadores apresentam estru-
turas cognitivas comuns; e, a racionalidade dos sistemas é limita-
da e depende da capacidade das memórias. Embora a “inteligência
do projeto” (SPEAKS, 2013) seja um campo fértil na pesquisa sobre
projeto nos últimos anos, não se pode reduzir o processo de con-
cepção a um treinamento racional (lógico) de informação para re-
solver problemas.
Em outro sentido, embora não, necessariamente, oposta,
as competências de áreas multimeios e multidomínios, parte do
pressuposto de que o projeto não é uma solução absoluta. Trata-se,
portanto, de uma simulação que busca a redução de incertezas.
Nessa abordagem, a competência é também um olhar “mentalista”,
como uma capacidade abstrata e invisível para executar uma tarefa
específica. Pode simular uma pergunta muito comum, raramente
manifestada e necessária ao trabalho de concepção. Nessa visão
relativista, pode-se supor que a atividade de projeto arquitetônico
combina exploração, aprendizagem e julgamentos com base em ar-
gumentos não exclusivamente racionais, em resoluções de proble-
mas e em diferentes áreas do conhecimento (construção, geome-
tria, humanidades, economia). Essas são atividades de simulação

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA:


A ANALOGIA COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
92

e redução das incertezas multimeios e multidomínios. O processo


projetual de arquitetura pode encontrar consistência na “compe-
tência” do projetista, que consiste na sua proficiência em suas di-
ferentes fases e no domínio de todo o caminho. (LEBAHAR, 1999).
O uso da analogia, como estratégia para estimular soluções
projetuais novas, é uma prática recorrente no ensino de projeto
de arquitetura. Naturalmente, devem ser consideradas as dimen-
sões sociais, históricas e individuais dos projetos correlatos, bem
como é preciso haver uma devida “interpretação” e “adaptação”
dos precedentes, possibilitando, assim, a formulação de novas
composições arquitetônicas. Mahfuz (1995) classifica alguns mé-
todos analógicos mais utilizados: Inovativo; Tipológico; Mimético
e Normativo.
O método Inovativo consiste na resolução de uma proble-
mática sem precedentes de uma forma distinta, em que a busca
por materiais novos a serem empregados é um dos caminhos per-
corridos. O método Tipológico demanda a aplicação do conceito
de “tipo” para o projeto arquitetônico. É um princípio que pode
sofrer variações e se adequar a diferentes contextos com base em
uma ideia inicial. O método Mimético é parte de um princípio
aristotélico, em que há uma interpretação e adaptação do modelo
escolhido, partindo-se de analogias visuais referentes de caráter
arquitetônico. Por fim, o método Normativo remete à idealização
de formas arquitetônicas por meio de “princípios reguladores” e
“normas estéticas”. Logo, essas normas estéticas conferem auto-
ridade ao projetista na tomada de decisões no processo projetual.
O redesenho é um meio adotado por grande parte dos mé-
todos de análise de projeto – por Baker (1984), Ching (1998), Clark
e Pause (1983), Unwin (2003), Leupen (1999) e, Radford, Morkoc
e Srivastava (2014) – e tem o propósito de reconstruir, por inter-
médio da representação gráfica, os caminhos dos projetistas, am-
pliando a percepção dos estudantes, incluindo decisões de ordem
estrutural, geométrica, programática, entre outras.

HAZIEL PEREIRA LÔBO • HEITOR DE ANDRADE SILVA


93

Estudo de caso: Projeto de Arquitetura 02 (2019.2)


– UFRN

O Curso de Arquitetura e Urbanismo (CAU) da Universidade


Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) foi, oficialmente, criado
no dia 13 de agosto de 1973, com a Resolução nº 58/73 CONSUNI.
Em 2017, aprovou o seu quinto Projeto Pedagógico (PP), vigente
até hoje. Já está pronto e aprovado nas instâncias administrativas
da universidade a sexta versão, mas ainda não foi implantado. O
PP vigente organiza os conteúdos trabalhados em cinco áreas de
conhecimento, sendo distribuídos os componentes curriculares
obrigatórios e eletivos pelo curso: (I) Representação e Linguagem;
(II) Projeto; (III) Estudos Urbanos e Regionais; (IV) História e Teo-
ria da Arquitetura e Urbanismo; (V) Tecnologia. Existem, ainda, os
componentes interáreas, que abarcam, pelo menos duas das áreas
mencionadas. Um princípio fundamental do PP do CAU/UFRN é a
integração, que articula os conteúdos de todos os componentes do
período em torno de um enfoque temático: 1º período, Forma e re-
presentação; 2º período, Espaço e sociedade; 3º período, Projeto e
tecnologia; 4º período, Meio ambiente; 5º período, Ambiente cons-
truído; 6º período, Verticalização e paisagem; 7º período, Patrimô-
nio histórico; 8º período, Complexidade; 9º período, Demandas
sociais; 10º período, Tema livre (TFG). O componente Projeto de
Arquitetura 02, tem cinco créditos (75 horas); é oferecido pela área
de Projeto e no 4º período (Meio ambiente) do curso (Figura 1).

Figura 1 – Disciplinas obrigatórias na área de projeto.

2o período 3o período 4o período 5o período 6o período


ESPAÇO E PROJETO DE PROJETO DE PROJETO DE PROJETO DE
FORMA 02 ARQUITETURA 01 ARQUITETURA 02 ARQUITETURA 03 ARQUITETURA 04
Carga horária: 75 h
Créditos: 5 créditos
Fonte: Projeto Político – Pedagógico de Arq. e Urb. da UFRN, alterado pelos autores.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA:


A ANALOGIA COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
94

No Plano de Curso de Projeto de Arquitetura 02, a ementa


ressalta a relação do edifício com seu entorno, destacando os con-
dicionantes (ambientais, tecnológicos, legais) que influenciam o
projeto. Os objetivos salientam a concepção arquitetônica com
base na ênfase no processo de projeto, com o uso da pesquisa em
métodos de análise projetual que dão suporte à compreensão dos
estudantes para variáveis formais, tecnológicas e funcionais do
edifício e seu contexto.
No âmbito do componente curricular, um projeto, normal-
mente, de caráter social (centro comunitário, com atividades de
educação, cultura e lazer), é desenvolvido pelos discentes ao longo
do semestre letivo, que é organizado em três momentos: na primei-
ra unidade, são aplicados métodos de análise do ambiente onde
são realizados os exercícios projetuais; na segunda unidade, são
realizados exercícios de concepção; na terceira unidade, o projeto
é desenvolvido, respondendo a especificidades de outros compo-
nentes curriculares (estudos urbanos, fundamentos ambientais,
psicologia, instalações, estruturas, representação gráfica) segun-
do parâmetros estabelecidos em normas de desenho técnico.
Ao longo da segunda unidade (4 aulas), foram feitas análises
da relação entre as estratégias metodológicas adotadas, situando
a atuação do docente com respeito aos princípios da reflexão na
ação e no atual papel do professor de projeto (SCHÖN, 2000; Veloso
e Elali, 2003), bem como o comportamento dos estudantes. Além
dessas observações, foram realizadas entrevistas com o docente
e questionários com os discentes, verificando as convergências e
divergências. Com base nesses dados, procedeu-se a uma análise
sobre a forma de promoção da aprendizagem adotada (Quadro 1).

HAZIEL PEREIRA LÔBO • HEITOR DE ANDRADE SILVA


95

Quadro 1 – Questionário aplicado com os discentes e docente da


disciplina.
TEMA DA PERGUNTA RESPOSTA DOS ALUNOS RESPOSTA DO PROFESSOR
Considera que é adequado,
MÉTODO DE ENSINO
mas sente dificuldade de
SOBRE O PROCESSO DE Adequado
medir o grau de aprendizado
PROJETO
do aluno
Considera que é adequado,
USO DA MAQUETE tendo em vista que a ma-
Muito Adequado
FÍSICA quete é uma forma de verifi-
car em 3D as possibilidades.
Fonte: Produzido pelos próprios autores.

As abordagens metodológicas utilizadas com base nos mé-


todos analíticos formulados por Baker (1984) e Peña; Parshall
(2001, Problem Seeking), buscando promover um Branstorm fun-
damentado e representado por meio de maquetes físicas de con-
cepção foram positivamente avaliadas pelos estudantes. Durante
o desenvolvimento das propostas projetuais de cada equipe, uti-
lizaram-se, de forma decisiva, estudos de referências (realizados
de forma indireta), empregados para se compreender melhor o
programa arquitetônico de um centro comunitário, a diversidade
de arranjos estruturais que poderia se tornar soluções viáveis, e
as diferentes maneiras de se conceber uma edificação, pensando
com base na relação com o entorno. Segundo Sá (2014), as análises
de projetos podem influenciar, diretamente, em novas soluções,
desde que sejam compreendidas as naturezas das correlações. A
autora acrescenta que é preciso estabelecer uma relação entre as-
pectos formais e funcionais do projeto correlato, adotando crité-
rios que norteiem o processo projetual, para que a analogia tenha
sua eficácia.
A maquete física foi uma ferramenta de análise decisiva,
uma vez que auxiliou na maneira como os estudantes enxergaram
o desenvolvimento de suas hipóteses de projeto ao longo do pro-

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA:


A ANALOGIA COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
96

cesso. Foi possível perceber que a turma reagiu bem à utilização


desse recurso, tendo em vista que ele possibilitou visualizar a vo-
lumetria da forma arquitetônica.
A experiência com a estratégia de analogia, no ateliê, iniciou
com o exercício de aplicação do método desenvolvido por Baker
(1984) no projeto do Centro Comunitário Altenessen (2017), situa-
do em Essen, Alemanha, concebido pelo escritório de arquitetura
Heinrich Böll Architekt, com ênfase no redesenho e análise das
categorias propostas (genius loci, iconologia, identidade, significa-
do de uso, forma, geometria, estrutura). Ao longo do componente
curricular, os discentes utilizaram diversos projetos correlatos (de
outros centros comunitários), como o caso do Shanghai Vanke Qi-
chen, situado na China, que foi utilizado por algumas equipes para
compreender a distribuição espacial dos setores no edifício. Outras
análises auxiliaram na compreensão do sistema estrutural e mate-
riais aplicados, como o caso do Salão Comunitário de Curra (Aus-
trália) ou da composição formal do edifício e sua inserção na paisa-
gem, como o Cam Thanh Community House, no Vietnam. Os estudos
dos precedentes fundamentaram e estimularam os estudantes na
concepção de novas soluções de natureza funcional, formal e tec-
nológica de forma evidente. Isso revela que, nesse contexto (estu-
dantes iniciantes), pode ser considerada uma adequada estratégia
metodológica,visando promover o aprendizado de projeto.

CONCLUSÃO

A experiência do componente curricular Projeto de Arqui-


tetura 02 (2019.2), do CAU UFRN, revela que a analogia é um meio
para auxiliar o processo de projeto e tomada de decisões por estu-
dantes iniciantes. É importante que essa estratégia não se resuma
a uma mera ampliação de repertórios projetuais (como um banco
de dados de soluções), mas, leve em consideração as experiências
dos projetistas em formação, sobretudo, formem uma base teóri-

HAZIEL PEREIRA LÔBO • HEITOR DE ANDRADE SILVA


97

ca e instrumental de processos bem fundamentados. Abarcar esse


debate constitui um dos grandes desafios do ensino de projeto.
Os desafios do século XXI demandam práticas que potencializem
o ensino e a aprendizagem de forma mais adequada e articulada
com as questões socioambientais e tecnológicas vigentes. O modo
de aplicação de analogias, como recurso didático-pedagógico, é
um campo fértil de pesquisa em diferentes áreas do conhecimento
e, hoje, mais do que nunca, precisa ser explorado.

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HAZIEL PEREIRA LÔBO • HEITOR DE ANDRADE SILVA


99

CONTRIBUIÇÕES DO TRABALHO
COM PROJETOS COMO OPÇÃO
METODOLÓGICA PARA A FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
Marcelle Arruda Cabral Costa1
Fátima Maria Araújo Saboia Leitão2
Maria Cecília Martins Aguiar Magalhães Pedrosa3

RESUMO
Neste artigo pretendemos discutir as contribuições do trabalho
com projetos como opção metodológica para a formação de professores
desenvolvida por meio de uma ação de extensão. No item “O caráter for-
mativo do trabalho com projetos” destacamos as bases do trabalho com
projetos que viabilizam seu potencial formativo. Na segunda etapa, de-
nominada “A extensão como caminho formativo: o olhar sobre o trabalho
com projetos”, caracterizamos um Projeto de Extensão, com objetivos,
ações e explicitamos seu desenvolvimento. Por fim, socializamos o relato
de uma bolsista de extensão sobre sua vivência no desenvolvimento de
um projeto pedagógico com as crianças e suas implicações para seu per-
curso formativo, destacando as contribuições para sua formação como
estudante do curso de Pedagogia.
Palavras-chave: Trabalho com projetos, Formação de professo-
res, Educação Infantil

ABSTRACT
In this article we intend to discuss the contributions of working
with projects as a methodological option for teacher education developed
through an extension action. In the item “The formative nature of working
with projects” we highlight the bases of working with projects that make
their formative potential viable. In the second stage, called “Extension as

1 Dra. Em Educação Brasileira. Pedagoga. E-mail: marcelleacc@ufc.br


2 Dra. Em Educação Brasileira. Pedagoga. E-mail: saboiaf@ufc.br
3 Graduanda em Pedagogia. Bolsista de extensão. E-mail: mariacecilia1997@alu.ufc.br

CONTRIBUIÇÕES DO TRABALHO COM PROJETOS COMO OPÇÃO METODOLÓGICA


PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
100

a formative path: looking at working with projects”, we characterize an


Extension Project, with objectives, actions and explain its development.
Finally, we socialize the report of an extension scholarship about her
experience in the development of a pedagogical project with children and
its implications for their formative path, highlighting the contributions
to their training as a student in the Pedagogy course.
Kei words: Working with projects, Teacher training, Child
­education

O CARÁTER FORMATIVO DO TRABALHO COM


PROJETOS

A Proposta Pedagógica, que orienta o trabalho pedagógico,


as ações desenvolvidas e as tomadas de decisão na UUNDC, com-
preende a criança como foco do planejamento curricular, agente
de sua aprendizagem, cidadã, com direitos reconhecidos e com
papel ativo e protagonista no planejamento e na vivência das expe-
riências. A Proposta busca garantir os direitos da criança de viver
a infância de forma significativa; de se desenvolver em todos os
aspectos (afetivo, emocional, cognitivo, físico motor); e de apren-
der diferentes linguagens, na articulação de seus conhecimentos
com os conhecimentos da cultura. Em sua estrutura, a Proposta
apresenta as interações e a brincadeira como eixos estruturantes
das práticas pedagógicas; os espaços como ambientes dinâmicos
e potentes de relações e iniciativas das crianças e o trabalho com
projetos pedagógicos como forma preferencial de integrar e orga-
nizar as experiências no cotidiano.
Como integração e organização das experiências no coti-
diano da UUNDC é importante esclarecer que a opção é pela pers-
pectiva de trabalho com projetos apresentada por John Dewey, em
especial, pela relação que esse autor faz de educação como vida e
como experiência educativa, intencional e contínua que transfor-
ma. Para Dewey “a experiência na medida em que é experiência,

MARCELLE ARRUDA CABRAL COSTA • FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO


MARIA CECÍLIA MARTINS AGUIAR MAGALHÃES PEDROSA
101

consiste na acentuação da vitalidade. [...] significa uma troca ativa


e alerta com o mundo” (2010a, p. 83). Pressupõe portanto, estado
de inteireza com aquilo que está acontecendo. O trabalho com
projetos é considerado uma possibilidade de práticas pedagógicas
participativas e democráticas com as crianças, com destaque para
seu protagonismo, por meio de escolhas e negociação.
Essa perspectiva de projeto, cujos surgimento e desenvol-
vimento ocorrem a partir das questões e interesses das crianças,
não pode apresentar uma única estrutura nem ser preconcebido.
Seu planejamento e desenvolvimento ocorrem de forma coletiva,
com as crianças e não para as crianças.
Por todas essas características apresentadas, o trabalho
com projetos na UUNDC também se apresenta como uma impor-
tante opção metodológica de formação. Isto ocorre porque numa
perspectiva de planejamento coletivo, na dinâmica do projeto,
em que as crianças, na vivência de experiências, questionam, pro-
põem, atuam; onde a professora que observa, escuta e registra seus
interesses acolhe, oportuniza e amplia as propostas das crianças,
existe a possibilidade de identificar aspectos fundamentais da
Proposta Pedagógica da UUNDC, como concepção de criança; pa-
pel do professor e de Educação Infantil; de organização de ambien-
te; de currículo. Também é possível compreender o que significa
a criança ser foco do planejamento, ter sua voz escutada e consi-
derada. Entender por fim, que o planejamento e desenvolvimento
das experiências ocorrem a partir dos interesses das crianças.

A EXTENSÃO COMO CAMINHO FORMATIVO: O


OLHAR SOBRE O TRABALHO COM PROJETOS

Atentos ao potencial formativo para a docência que o traba-


lho com projetos, na perspectiva de John Dewey abriga, iniciamos,
em 2015, um mini curso que buscava atender a uma demanda de

CONTRIBUIÇÕES DO TRABALHO COM PROJETOS COMO OPÇÃO METODOLÓGICA


PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
102

estudantes e professores em conhecer como ocorria o desenvolvi-


mento de projetos pedagógicos na UUNDC. Essa iniciativa trans-
formou-se no projeto de extensão denominado “O Trabalho com
Projetos na UUNDC/UFC: Contribuindo para a organização do
trabalho pedagógico de professores da Educação Infantil do mu-
nicípio de Fortaleza” e, desde esse período, já atendeu mais de 804
professores e estudantes.
Esse projeto de extensão tem como objetivo geral contri-
buir com a formação de professores da Educação Infantil, espe-
cialmente quanto aos fundamentos e estratégias para a organiza-
ção do trabalho pedagógico, a partir do trabalho com projetos. O
público-alvo é constituído por estudantes de licenciatura (em es-
pecial Pedagogia) e professores e gestores de instituições de Edu-
cação Infantil.
O projeto é desenvolvido por meio de 3 ações principais: 1)
A realização de encontros formativos com ênfase no Trabalho com
Projetos na UUNDC; 2) a parceria com o Centro de Educação Infan-
til – CEI Municipal Mário Quintana e 3) publicações de trabalhos
em eventos científicos.
Os Encontros Formativos acontecem na UUNDC e se desen-
volvem em diferentes momentos: de apresentação da Proposta
Pedagógica da UUNDC, inclusive da organização do cotidiano e da
rotina; de visita aos espaços com os materiais da UUNDC e de apre-
sentação de projetos pedagógicos desenvolvidos com as crianças
no CEI e na UUNDC. Esse momento se constituiu muito importan-
te, pois tornou visível aos participantes as estratégias que poten-
cializam o desenvolvimento dos projetos “com as crianças” e não
“para as crianças”, explicitando o movimento em que as crianças,
a partir das experiências, propõem, questionam e atuam e as pro-
fessoras, a partir das propostas das crianças, buscam oportunizar
e ampliar experiências.
Construir uma pedagogia com a criança implica começar
por descobrir essa criança na sua vivência fenomenoló-

MARCELLE ARRUDA CABRAL COSTA • FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO


MARIA CECÍLIA MARTINS AGUIAR MAGALHÃES PEDROSA
103

gica, no seu cotidiano vivencial. Tal acarreta a exigência


profissional de descobrir o gosto e a prática de observar
cada criança, os vários grupos e o coletivo, de encontrar
formas de anotar essas descobertas e as refletir como sus-
tentáculo do ambiente educativo que se cria no dia a dia.
A práxis é o locus da pedagogia e o cotidiano, o seu terri-
tório vivencial. Esta práxis de descoberta busca transfor-
mar o espaço e o tempo que a criança vive, as interações
e relações que vivencia, o cotidiano da aprendizagem que
experiencia, as atividades e projetos que desenvolve, a
avaliação em que participa. (OLIVEIRA-FORMOSINHO &
FORMOSINHO, p.118, 2017).

A parceria com o CEI municipal Mário Quintana, situado


no bairro Vila Velha, se desenvolve em encontros quinzenais para
reflexões e estudos sobre o trabalho com projetos em desenvolvi-
mento no CEI e na UUNDC, e, especialmente, na participação das
professoras nos Encontros Formativos, apresentando os projetos
pedagógicos desenvolvidos no CEI. Essa parceria trouxe um gran-
de ganho aos Encontros Formativos, uma vez que, esporadica-
mente, alguns participantes questionaram se o desenvolvimento
de projetos a partir da escuta das crianças somente era possível
em um contexto como o da Unidade, em uma instituição federal.
A parceria com o CEI, uma instituição municipal, situada na peri-
feria, explicitou que o requisito primordial para o desenvolvimen-
to de projetos na perspectiva de Dewey é a disposição em ouvir as
crianças e investigar com elas.
Quanto às publicações, do ano de 2015 a 2020 foram 16 tra-
balhos publicados e apresentados nos Encontros Universitários
(Encontro de Extensão, Encontro de Iniciação Acadêmica e En-
contro de Práticas Docentes), inclusive trabalhos de autoria das
professoras do CEI Mário Quintana. Publicamos ainda 3 artigos
em livros coletânea “Ensino, Pesquisa e Extensão”, inclusive em
co-autoria com professoras do CEI e estudantes de graduação da
UFC vinculados ao projeto de extensão.

CONTRIBUIÇÕES DO TRABALHO COM PROJETOS COMO OPÇÃO METODOLÓGICA


PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
104

O perfil dos estudantes e professores(as) que participa-


ram dos Encontros Formativos no ano de 2019 sendo 77% com ida-
de entre 16 e 30 anos, 81,9% do sexo feminino, 71,2% negros, 82%
estudantes e 37,4% já atuam como docentes. O perfil é constituído,
principalmente, por um público jovem e em processo inicial de
sua formação docente. Ao final dos Encontros Formativos os par-
ticipantes têm a oportunidade de avaliar a experiência. Comparti-
lhamos aqui a avaliação de duas participantes:
Reveladora do currículo das práticas que privilegiam os
interesses das crianças, tendo a Resolução e a BNCC como
norteadora das práticas pedagógicas, mas não sendo mais
importante do que a criança”. (Professora de Educação In-
fantil, 51 anos).
“Enriquecedora. Me ajudou a entender como funciona na
prática tudo aquilo que é aplicado e tratado nos documen-
tos oficiais.” (Estudante de Pedagogia, 27 anos).

As avaliações reconhecem que o trabalho com projetos pri-


vilegia os interesses das crianças, estando em consonância com
um currículo vivo, que integra diferentes campos de experiência
e adota as interações e brincadeiras como eixos da prática peda-
gógica de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil – DCNEI, como poderemos ver em um breve re-
corte de um projeto desenvolvido na UUNDC no ano de 2019 intitu-
lado: “Investigadores de Bissetos: borboletas, aranhas, formigas,
baratas, joaninhas e besouros rinocerontes” e realizado por uma
turma de crianças de 3 anos.
Nesse projeto, as crianças, interessadas nos bichos encon-
trados no espaço da Unidade, questionaram e investigaram: Será
que a aranha morreu (por causa) do trovão? A aranha compra ou
faz sua teia? As baratas são perigosas? Vamos colocar flores para
atrair borboletas para a nossa sala? O pó da asa da borboleta faz a
gente ficar cego? Os besouros-rinocerontes gostam de lutar? A for-
miga come uva? O que as formigas comem? As crianças realizaram

MARCELLE ARRUDA CABRAL COSTA • FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO


MARIA CECÍLIA MARTINS AGUIAR MAGALHÃES PEDROSA
105

pesquisas, levantaram hipóteses, investigaram com lupas, fizeram


muitos passeios na natureza do Campus do Pici procurando bichi-
nhos, colecionaram os bichinhos mortos encontrados no parque
e fizeram muitas observações e narrativas sobre eles. Desenha-
ram, brincaram com teatro de sombras tematizando os insetos,
produziram textos sobre as borboletas (tendo a professora como
escriba), jogaram jogos de dado e da memória, percorreram cir-
cuitos para salvar aranhas, escreveram bilhetes para os amigos,
cuidaram das flores, entre outras experiências contextualizadas
e significativas.
No recorte aqui apresentado nesse artigo, apresentado no
relato de experiência da bolsista Cecília, destacamos os interesses
das crianças em conhecer mais sobre as formigas e as mediações da
professora para oportunizar ampliar as investigações e propostas
das crianças no episódio “A formiga come o quê?”. O recorte apre-
sentado foi escolhido por ter sido considerado por Cecília como
muito significativo para seu processo de formação ­acadêmica.
Destacamos algumas considerações de ordem pedagógica
sobre a mediação da professora a partir do interesse das crianças
pelas formigas: As crianças questionaram, atuaram:

• Procuraram, por várias vezes, formigas com lupas pela


UUNDC;
• Coletaram formigas mortas encontradas na UUNDC;
• Construíram hipóteses e narrativas sobre as formigas;
• Formularam questões e apresentaram dúvidas sobre as
formigas e seus hábitos;
• Construíram formigueiros em suas brincadeiras;

A professora, tendo como centro os interesses das crianças


e atenta a suas linguagens, buscou oportunizar, ampliar as investi-
gações e propostas das crianças:

CONTRIBUIÇÕES DO TRABALHO COM PROJETOS COMO OPÇÃO METODOLÓGICA


PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
106

• Disponibilizando lupas e recipientes para observar e


guardar as formigas;
• Estimulando as crianças a expressarem suas dúvidas e
curiosidades sobre as formigas;
• Registrando as questões das crianças e visitando o labora-
tório de formigas na busca de responder essas questões;
• Ampliando os conhecimentos sobre fungos, explorando
a receita de pão e o experimento científico sobre o fer-
mento;
• Oportunizando experiências sensoriais, de letramento e
de manipulação de quantidades, na exploração e prepa-
ração da receita do pão;
• Convite para registrar as experiências por meio de desenho;

Destacamos que a escuta da criança no cotidiano é funda-


mental e só é possível a partir de um reposicionamento radical das
relações, bastante distanciado do contexto tradicional e transmis-
sivo. Como dizem Fochi & Carvalho é legitimar a criança em um
outro lugar.
Esse outro lugar que as crianças vão ocupando na relação
educativa em que o adulto as escuta e toma esses aspec-
tos como parte de suas reflexões pedagógicas nos mostra
como, no cotidiano educativo, podemos ascender de uma
pedagogia transmissiva para uma pedagogia participativa.
Nessa transição, estamos mudando radicalmente nossa
visão de homem, de aprendizagem, do papel da escola e da
dimensão cívica do ato educativo. (FOCHI & CARVALHO,
p.36, 2017).

Tal perspectiva deve ser pensada em relação à formação do-


cente, relacionar-se com as crianças em um contexto participativo
repercute positivamente no processo de formação profissional.

MARCELLE ARRUDA CABRAL COSTA • FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO


MARIA CECÍLIA MARTINS AGUIAR MAGALHÃES PEDROSA
107

CONTRIBUIÇÃO DO TRABALHO COM PROJETOS NA


UUNDC PARA O PERCURSO DE FORMAÇÃO DOCENTE:
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Meu nome é Maria Cecília Martins Aguiar Magalhães Pe-


drosa, tenho 23 anos e sou estudante do curso de Pedagogia da Uni-
versidade Federal do Ceará. Atualmente estou no sétimo semestre
do curso e sou bolsista e estagiária da UUNDC desde 2019. Sou es-
tagiária na turma Infantil 3 da professora Marcelle Cabral e bolsis-
ta do projeto de extensão, do qual ela é coordenadora, intitulado:
O Trabalho com Projetos na UUNDC/UFC: Contribuindo para a
organização do trabalho pedagógico de professores da Educação
Infantil do município de Fortaleza. Participo do dia-a-dia com as
crianças, nos registros diários, nos momentos de autocuidado,
nas brincadeiras e nas mediações de conflito, assim como também
participo dos encontros formativos.
A opção pelo desenvolvimento de projetos pedagógicos
como forma de integrar e organizar as experiências no cotidiano
da Educação Infantil possibilita colocar a criança como centro de
todo o planejamento pedagógico, ela é protagonista na construção
do projeto por meio de seus questionamentos e sua atuação nas
experiências vivenciadas. As professoras têm o papel de observar,
registrar e acolher os interesses das crianças e ampliar as propos-
tas e curiosidades das crianças, para que elas ampliem seu reper-
tório e conhecimento de mundo. Dito isso, na vivência cotidiana
na UUNDC, pude perceber cada etapa da construção do projeto e
pude também perceber como a criança é respeitada e realmente
colocada como protagonista de todo o planejamento.
Participei da construção de um projeto que envolvia in-
setos e bichinhos encontrados pelas crianças na Unidade e fora
dela, onde, a partir do olhar atento da professora acerca do que
mais as crianças traziam como temáticas para a roda de conversa
e os registros, a professora foi trazendo experiências que insti-

CONTRIBUIÇÕES DO TRABALHO COM PROJETOS COMO OPÇÃO METODOLÓGICA


PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
108

gassem e ampliassem os conhecimentos das crianças a respeito


daquele assunto. Como exemplo, nesse projeto, em uma roda de
conversa surgiu entre as crianças o questionamento a respeito de
o que as formigas comem, cada criança levantou suas hipóteses e,
a partir disso, a professora oportunizou um passeio ao laborató-
rio de formigas da UFC. Neste espaço, as crianças tiraram todas as
suas dúvidas e descobriram que a formiga se alimentava de uma
espécie de fungo. A partir dessa descoberta, a professora trou-
xe vídeos que mostravam que não eram apenas as formigas que
se alimentavam com fungos, nós também nos alimentamos, por
meio do fermento que existia no pão. As crianças então, desenvol-
veram a experiência de explorar e executar a receita do pão, par-
ticipando de todo o processo de produção da massa, observaram
seu crescimento e produziram formatos variados de pães. Nesse
exemplo, consegui ver na prática o movimento de questionamen-
to das crianças e observação dos interesses dela e da ampliação
de experiências que a professora trouxe. Tais experiências, não
seriam possíveis sem os registros que fazemos todos os dias das
falas das crianças, dos questionamentos que elas trazem, das
conversas que elas têm entre si e conosco. Um exemplo de um
registro quando do retorno da visita da turma ao laboratório de
formigas. Quantas descobertas!
Thais: Será que ela come pirulito? Crianças: Não.
Professora: E ela come uva pipoca, arroz, folha...?
Todos: Nãaaao!
Thais: Só o Gabriel e a Alice acertaram! (A Formiga faz xixi
e cocô)
Professora: E a formiga faz o que com essas comidas?
Sarah: A casa dela! Sarah: Ela come isso! (Apontou a foto
do fungo)
Professora: Quem sabe o nome disso que a formiga come?
Sarah e Thais: Fungo!!
Professora: E ela fica comendo a casa dela?
Sarah: É sim!

MARCELLE ARRUDA CABRAL COSTA • FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO


MARIA CECÍLIA MARTINS AGUIAR MAGALHÃES PEDROSA
109

A experiência na UUNDC, como primeiro contato com a


Educação Infantil e com o desenvolvimento de projetos pedagó-
gicos tem contribuído para ampliar meus conhecimentos sobre
uma Educação Infantil de qualidade que com a aprendizagem e
desenvolvimento das crianças; para construir novo olhar sobre a
criança, compreendê-la como protagonista, capaz e agente de seu
processo de aprendizagem, abrindo possibilidades para a constru-
ção de uma prática pedagógica de qualidade que se tenha reflexos
positivos na vida das crianças.
Percebo o quanto as atividades vivenciadas são significati-
vas para as crianças, elas se sentem realmente parte e protagonis-
tas do projeto, fazendo com que elas se sintam mais seguras de si
já que sua opinião é ouvida. Todas as experiências vividas nesse
projeto me abriram os olhos para as diversas possibilidades de
atividades que podem ser feitas na Educação Infantil a partir do
olhar das crianças, pensadas com elas e para elas, onde existe sig-
nificado e a criança é respeitada e valorizada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na UUNDC o Trabalho com Projetos é considerado uma op-


ção para a integração e organização das experiências no cotidiano
das crianças, bem como uma opção metodológica para a formação
de alunos de diferentes cursos de graduação e de professores e
técnicos da Educação Infantil. A opção pela perspectiva de Dewey
ocorre pela possibilidade de protagonismo das crianças tanto no
planejamento quanto no desenvolvimento de projetos. A apresen-
tação de um projeto, com sua dinâmica destacada, contribui para
o vislumbramento de aspectos fundamentais de uma Educação
Infantil de qualidade.
O compartilhamento de práticas pedagógicas interessantes
e de qualidade apresentadas na ação de extensão destacada pode
contribuir para a ampliação de conhecimentos sobre a educação e
o cuidado de crianças da Educação Infantil.

CONTRIBUIÇÕES DO TRABALHO COM PROJETOS COMO OPÇÃO METODOLÓGICA


PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
110

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica.


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasí-
lia: MEC/SEB, 2010.
BARBOSA, M. C. S.;  RICHTER, S. R. S.  . Campos de experiência:
uma possibilidade para interrogar o currículo. In: Daniela Finco;
Maria Carmen Silveira Barbosa; Ana Lúcia Goulart de Faria. (Org.).
Campos de experiências na escola da infância: contribuições itaLe-
androas para inventar um currículo da educação infantil brasilei-
ro. 1ed.Campinas/SP: Leitura Crítica, 2015, v. 1, p. 185-198.
DEWEY, J. Vida e Educação. Trad. Anísio Teixeira. São Paulo: Me-
lhoramentos, 1978. _________. Experiência e Educação. Trad. Aní-
sio Teixeira. São Paulo, Ed. Nacional, 1976.
FOCHI, P. S.; CARVALHO, Rodrigo Saballa de. Pedagogia do coti-
diano: reivindicações do currículo para a formação de professo-
res. REVISTA EM ABERTO – INEP, v. 30, p. 23-42, 2017.
OLIVEIRA-FORMOSINHO, Júlia; FORMOSINHO, João. Pedagogia-
-em-Participação: a documentação pedagógica no âmago da insti-
tuição dos direitos da criança no cotidiano. Em Aberto. Brasília, v.
30, n. 100, p. 115-130, set./dez. 2017.

MARCELLE ARRUDA CABRAL COSTA • FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO


MARIA CECÍLIA MARTINS AGUIAR MAGALHÃES PEDROSA
111

A DINÂMICA PEDAGÓGICA EM
CONSTRUÇÃO NA UUNDC/UFC EM
TEMPOS DE PANDEMIA
Fátima Maria Araújo Saboia Leitão1
Maria Auricélia da Silva2

RESUMO
O ano letivo 2020 foi marcado por limitações relativas ao desen-
volvimento das atividades pedagógicas em razão da pandemia causada
pelo coronavírus, e o trabalho remoto mostrou-se desafiador para pro-
fessores e crianças da Educação Infantil. Desse modo, as professoras da
UUNDC/UFC implementaram estratégias pedagógicas diferenciadas,
com vistas ao trabalho pedagógico com crianças de três a cinco anos. Este
artigo tem por objetivo apresentar a dinâmica pedagógica desenvolvida
pela equipe de docentes da UUNDC junto às crianças e familiares durante
o período da pandemia. Será feito o relato das ações desenvolvidas para
a continuidade do trabalho pedagógico, que aconteceu de forma remota,
permeada de diálogos e parcerias com professoras, crianças e familiares.
Palavras-chave: Educação Infantil. Pandemia. Trabalho Remoto.

ABSTRACT
The academic year 2020 was marked by limitations related to
the development of pedagogical activities due to the pandemic caused
by the coronavirus, and remote work proved challenging for teachers
and children in Early Childhood Education. In this way, UUNDC / UFC
teachers implemented differentiated pedagogical strategies, with a view
to pedagogical work with children aged three to five years. This article
aims to present the pedagogical dynamics developed by the UUNDC
1 Pedagoga, doutora em Educação Brasileira/UFC, professora titular da Unidade
Universitária de Educação Infantil Núcleo de Desenvolvimento da Criança/UFC,
atualmente exercendo a função de coordenadora pedagógica da Unidade.
Email: saboiaf@ufc.br
2 Pedagoga, doutora em Educação Brasileira/UFC, professora da Unidade Universi-
tária de Educação Infantil Núcleo de Desenvolvimento da Criança/UFC, atualmen-
te exercendo a função de gestora da Unidade. Email: auricelia.silva@ufc.br

A DINÂMICA PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO NA UUNDC/UFC EM TEMPOS DE PANDEMIA


112

teaching team with children and family during the pandemic period.
The actions developed for the continuity of the pedagogical work will
be reported, which happened remotely, permeated by dialogues and
partnerships with teachers, children and family members.
Keywords: Early Childhood Education. Pandemic. Remote Work.

INTRODUÇÃO

A pandemia da Covid-19, causada pelo coronavírus, impôs


sérias restrições à convivência social, o que interferiu diretamen-
te nos processos pedagógicos, visto que a educação de crianças, na
Educação Infantil, tem como eixos estruturantes as interações e
a brincadeira, de acordo com as recomendações contidas nas Di-
retrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL,
2010).
Diante do quadro sanitário que se instalou no mundo, como
oferecer possibilidades para que as interações e as brincadeiras
infantis tivessem continuidade? Como pretender que as crian-
ças se mantivessem afastadas de seus pares e de suas professoras
durante o desenvolvimento da rotina diária nas instituições de
Educação Infantil? Seria muito difícil para crianças de três a cin-
co anos de idade (faixa etária das crianças atendidas na Unidade
Universitária de Educação Infantil Núcleo de Desenvolvimento da
Criança/UFC) cumprirem as determinações de distanciamento
social recomendadas, mesmo depois de passado o período crítico
da pandemia.
Além disso, as restrições impostas pelas autoridades sani-
tárias para o enfrentamento do coronavírus limitaram, considera-
velmente, o cotidiano da UUNDC, que passou a estudar outras pos-
sibilidades para o acompanhamento das crianças, pois o contato
presencial não se mostrava adequado. Diante disso, foi necessário
buscar o suporte dos recursos tecnológicos com acesso à internet
para minimizar os efeitos causados pelo distanciamento social.

FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO • MARIA AURICÉLIA DA SILVA


113

O objetivo deste artigo é apresentar a dinâmica pedagógica


desenvolvida pela equipe da UUNDC junto às crianças e familiares
durante o tempo de pandemia. Especificamente, explanar todas as
ações desenvolvidas, destacando a parceria com os familiares.
Desse modo, este trabalho apresenta os momentos prin-
cipais vivenciados por professoras, crianças e seus familiares no
ano letivo 2020: a) interrupção das atividades presencias a partir
de 17/03/2020; b) contatos com as crianças e seus familiares, por
meio de grupos de WhatsApp, para a manutenção dos vínculos afe-
tivos e sugestões de experiências, de março a junho de 2020; c) en-
contros interativos remotos com as crianças para o estreitamento
dos vínculos e o desenvolvimento de experiências pedagógicas a
partir de agosto de 2020.
A vivência desses momentos marcantes foi permeada de
dúvidas, incertezas, desafios, estudos e diálogos. A prática de
planejamento das ações pode ser definida como uma construção
permanente da equipe docente, que envolveu observação, regis-
tro, estudo e muita reflexão. A parceria das professoras com os fa-
miliares mostrou-se a estratégia principal para que os encontros
interativos remotos com as crianças fossem recheados de ação,
participação, sugestões, diálogos e afeto.

SUSPENSÃO DAS ATIVIDADES PRESENCIAIS: O QUE


FAZER A PARTIR DE AGORA?

Após o início do ano letivo de 2020, especificamente no dia


17 de março, interrompemos as atividades na UUNDC e iniciamos
o isolamento social prescrito pelas autoridades de saúde. Tivemos,
portanto, pouco tempo para a criação de vínculos das crianças das
diferentes turmas com as “novas” professoras. Tempo mais curto
ainda para as crianças da turma Infantil 3 vivenciarem seu perí-
odo de transição e conhecerem sua professora. Sem o contato e a
possibilidade de interagir com as crianças, o que fazer a partir de

A DINÂMICA PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO NA UUNDC/UFC EM TEMPOS DE PANDEMIA


114

então? Como dar continuidade à proposta pedagógica estruturada


nos eixos das interações e brincadeira?
Diante da gravidade da situação e da imprevisibilidade de
retorno, durante um tempo ficamos ansiando e aguardando a boa
notícia sobre a volta às atividades presenciais. Nesse período, bus-
camos conhecer os aspectos legais apresentados nos documentos
emitidos pelo Estado do Ceará e pela Universidade Federal do Ce-
ará, referentes ao funcionamento das instituições de Educação
Infantil e da Universidade.
Contudo, a possibilidade de retorno cada vez mais distante
nos direcionou a planejar ações e medidas para garantir a manu-
tenção dos vínculos com as crianças e seus familiares. Dentre as
muitas ações, cumpriu-nos a elaboração do Plano de Biossegu-
rança da UUNDC a partir da consulta à Proposta Pedagógica de
Emergência/UFC e às recomendações periódicas de continuidade
do trabalho remoto. Esse Plano, amplamente discutido e divulga-
do com a comunidade escolar, contempla protocolos sanitários a
serem adotados por todos os segmentos da Unidade: professoras,
funcionários, crianças, familiares, bolsistas e visitantes, com vis-
tas ao resguardo da saúde individual e coletiva.
Estamos certas de que esse processo de retomada exigirá de
todos nós muita atenção aos protocolos de biossegurança, para que
possamos resguardar a saúde e a segurança das crianças e de seus
familiares, bem como dos profissionais que trabalham na Unidade.
Durante esse período, outras ações foram realizadas: o es-
treitamento do vínculo com as crianças por meio do envio de ma-
terial (músicas, histórias, vídeos, programação cultural online)
via WhatsApp; manutenção do relacionamento com os familiares,
com envio de comunicações. Muitas decisões também foram to-
madas, dentre elas, a suspensão do edital para o ingresso de crian-
ças novatas.
Na tentativa de garantir os vínculos com as crianças e seus
familiares, as professoras mantiveram contatos frequentes por

FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO • MARIA AURICÉLIA DA SILVA


115

meio de redes sociais, sugerindo atividades diversas, como subsí-


dio ao desenvolvimento de experiências que poderiam enriquecer,
cada vez mais, o cotidiano familiar. Não se tratava de transformar
os familiares em professores, mas de oferecer um apoio pedagógi-
co em um período de tantas e diversas demandas enfrentadas pe-
las famílias. Nessa ação, as professoras disponibilizaram um acer-
vo de livros de literatura infantil, de histórias contadas, cantadas
e filmadas; vídeos interessantes com sugestões de experiências
diversificadas, acervo de músicas infantis e da Música Popular
Brasileira (MPB). Também propuseram encontros com as crianças
por meio de postagens e vídeos.
A manutenção da relação com os familiares ocorreu por
meio de mensagens via WhatsApp para a orientação da utilização
dos acervos enviados, das ações e conversas com as crianças.

PARCERIA DAS PROFESSORAS COM OS FAMILIARES:


PREPARAÇÃO PARA OS ENCONTROS INTERATIVOS
REMOTOS COM AS CRIANÇAS

Até o final de junho de 2020, a equipe de professoras e ges-


toras da UUNDC acreditava que seria possível o retorno às ativida-
des presenciais a partir de agosto. Contudo, à medida que o tempo
passava, a continuidade do trabalho remoto mostrava-se mais evi-
dente, de modo que a UUNDC se preparou, no decurso do mês de
julho, para a implementação de encontros interativos síncronos
com as crianças, por meio do Google Meet.
Diante das incertezas e desafios vivenciados naquele momen-
to, a equipe de profissionais da UUNDC compreendia que as crian-
ças têm acesso a diversos recursos tecnológicos, pois nasceram na
era digital e, em razão disso, demonstram considerável familiarida-
de com esses dispositivos. Assim, desde a Educação Infantil, primei-
ra etapa da Educação Básica, convém favorecer o acesso das crian-
ças às tecnologias digitais para que ampliem suas experiências.

A DINÂMICA PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO NA UUNDC/UFC EM TEMPOS DE PANDEMIA


116

Desse modo, o suporte tecnológico favoreceria o acesso a


múltiplas linguagens e a diferentes recursos, para que as crianças
aprendessem e se desenvolvessem no mundo letrado e tecnológi-
co, ao mesmo tempo em que seria a estratégia possível para a vi-
vência de experiências pedagógicas em tempos de pandemia.
Sobre o suporte que as Tecnologias Digitais de Informação
e Comunicação (TDIC) oferecem para a manutenção das relações
entre as pessoas e as tecnologias, Kenski (2007 p. 21) afirma que “o
homem transita culturalmente mediado pelas tecnologias que lhe
são contemporâneas. Elas transformam sua maneira de pensar,
sentir e agir”. Em razão das vivências em uma sociedade que utili-
za recursos tecnológicos em seu cotidiano, facilmente as crianças
aprendem a usar smartphones, tablets, laptops e outros recursos.
Lévy (1993) e Papert (2008) têm discutido os benefícios das
tecnologias digitais na educação como meio de promover a demo-
cratização do acesso ao saber. Uma vez que os recursos tecnológi-
cos fazem parte do cotidiano das crianças onde quer que estejam,
é necessário fazer parte de suas vidas dentro da escola. Contudo, é
fundamental pensar na qualidade do uso desses instrumentos e na
construção de significados, como enfatiza Pais (2006, p. 71): “Como
esses recursos estão cada vez mais disponíveis, é oportuno refletir
sobre a expansão das condições de ensino, sobretudo quanto aos
aspectos favoráveis à compreensão por parte do aluno”.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação In-
fantil (DCNEI) recomendam a realização de atividades que “possi-
bilitem a utilização de gravadores, projetores, computadores, má-
quinas fotográficas e outros recursos tecnológicos e midiáticos”
(BRASIL, 2010, p. 27). Deve-se dar especial atenção aos aspectos
lúdicos e às interações entre as crianças, entre estas e os profes-
sores, quando recursos tecnológicos forem utilizados como apoio
pedagógico.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece,
dentre os Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento na Educa-

FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO • MARIA AURICÉLIA DA SILVA


117

ção Infantil, o direito de explorar “movimentos, gestos, sons, for-


mas, texturas, cores, palavras, emoções, transformações, relacio-
namentos, histórias, objetos, elementos da natureza [...] em suas
diversas modalidades: as artes, a escrita, a ciência e a tecnologia”
(BRASIL, 2018, p. 38). Percebemos o acesso à tecnologia como um
aspecto relevante da criação e expressão humanas, como também
o são as artes, a escrita e a ciência.
Durante esse processo de construção das práticas pedagógi-
cas possíveis em tempo de pandemia, a UUNDC consultou a Asso-
ciação Nacional de Unidades Universitárias de Educação Infantil
(ANUUFEI), a fim de conhecer a realidade enfrentada por outras
Unidades Universitárias, as providências que estavam sendo to-
madas por essas instituições de Educação Infantil e as recomen-
dações para o desenvolvimento das ações pedagógicas.
A participação dos familiares na gestão e no apoio às ativi-
dades desenvolvidas na UUNDC, no início de agosto/2020, aconte-
ceu por meio de reuniões online, com os familiares de cada turma,
para a apresentação da proposta de encontros interativos remotos
com as crianças. Nessas reuniões, a posição dos familiares foi ao
encontro das estratégias pensadas pelas professoras para a conti-
nuidade do acompanhamento pedagógico, já que a perspectiva de
encontros interativos online foi comum aos dois segmentos (pro-
fessoras e familiares).
Paralelamente a essa ação e durante o mês de agosto, foi pro-
posta uma enquete, a fim de reforçar e registrar, por meio de um
formulário online, os seguintes aspectos: perspectivas de retorno
às atividades presenciais; opinião dos familiares sobre os encon-
tros interativos online; acesso a recursos tecnológicos e à internet.
Os resultados coletados nessa enquete constituíram uma
amostra muito significativa, pois 87% das crianças foram repre-
sentadas por seus familiares. Sobre o retorno às atividades pre-
senciais, 80,4% expressaram sua intenção de que as crianças per-
manecessem em casa, em comunicação online com as professoras,

A DINÂMICA PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO NA UUNDC/UFC EM TEMPOS DE PANDEMIA


118

participando de encontros interativos e recebendo propostas de


atividades a serem desenvolvidas com o apoio dos familiares.
Em relação às condições para a participação nos encontros
interativos online, as respostas indicaram que 97,8% tinham aces-
so à internet. Quanto aos dispositivos tecnológicos aos quais as
crianças tinham acesso em seus lares, foram obtidas as seguintes
respostas: 82,6% usavam smartphones; 65,2% tinham acesso a lap-
tops; 56,5% dispunham de smart TV; 34,8% utilizavam tablets; 13%
acessavam desktops.
Esses dados revelaram que as crianças da UUNDC poderiam
participar de encontros interativos online, pois a grande maioria
dos familiares havia optado por esse formato tanto nas reuniões
online quanto nas respostas obtidas na enquete 1. Além disso, as
condições de acesso a recursos tecnológicos e à internet mostra-
vam-se muito favoráveis.
Satisfeitas essas condições, chegava a hora de (re)pensar os
aspectos pedagógicos, que serão descritos no próximo tópico.

ENCONTROS INTERATIVOS REMOTOS: TENTATIVA
DE RESGUARDAR AS INTERAÇÕES E A BRINCADEIRA

Antes da implementação dos Encontros Interativos Online,


houve ampla discussão da equipe sobre quais requisitos seriam
importantes observar nesses momentos: em destaque, a certeza
da busca de coerência com a nossa Proposta Pedagógica, ou seja,
de priorizar o papel protagonista das crianças, do respeito às suas
iniciativas e falas. São as crianças, em suas brincadeiras e investi-
gações, que nos apontam os caminhos, as questões, os temas e os
conhecimentos de distintas ordens que podem ser por elas com-
preendidos e compartilhados no coletivo (MALAGUZZI, 1999).
Também discutimos a necessidade do respeito aos familia-
res e suas condições concretas. Para orientar essas discussões e
contribuir com o planejamento dos Encontros a partir do acom-

FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO • MARIA AURICÉLIA DA SILVA


119

panhamento das ações realizadas, a equipe gestora elaborou o do-


cumento “Planejamento – intencionalidade educativa em tempos
de pandemia: o desafio dos encontros remotos”. Esse documento
orienta que o planejamento das ações busque garantir os direitos
das crianças de: conviver com outras crianças e adultos; brincar
de diversas formas (dimensões corporais, sensoriais, expressivas,
relacionais); participar ativamente do planejamento das ativida-
des propostas e da sua realização (escolha das brincadeiras, dos
materiais); explorar movimentos, gestos, sons, formas, texturas,
cores, palavras, emoções, transformações, relacionamentos, his-
tórias, objetos, elementos da natureza, artes, a escrita, a ciência
e a tecnologia; expressar, como sujeito dialógico, criativo e sensí-
vel, suas necessidades, emoções, sentimentos, dúvidas, hipóteses,
descobertas, opiniões, questionamentos; conhecer-se e construir
sua identidade pessoal, social e cultural. O planejamento, nessa
perspectiva, é ratificado pelas ideias de Ostetto (2000, p. 195):
(...) planejar na Educação Infantil é planejar um contexto
educativo, envolvendo atividades e situações desafiadoras
e significativas, que favoreçam a exploração, a descoberta
e a apropriação de conhecimento sobre o mundo físico e
social. Ou seja, nesta direção o planejamento estaria pre-
vendo situações significativas que viabilizem experiências
das crianças com o mundo físico e social, em torno das
quais se estruturem interações qualitativas entre adultos
e crianças, entre crianças e crianças, e entre crianças e ob-
jetos/mundo físico.

Durante o mês de outubro, a UUNDC propôs novas reuniões


online, por turma, com os familiares, para avaliação das estraté-
gias implementadas e a posição dos familiares sobre o retorno às
atividades presenciais. Além da reunião, foi enviada nova enquete
aos familiares, para a sondagem e o registro de suas impressões e
opiniões, na certeza de que, nesses Encontros Remotos, a partici-
pação dos familiares junto às crianças era fundamental.

A DINÂMICA PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO NA UUNDC/UFC EM TEMPOS DE PANDEMIA


120

A quantidade de respostas caiu um pouco em relação à en-


quete 1, pois 69,8% dos familiares responderam à enquete 2, mas
esse percentual também foi considerado bastante representativo.
Quanto ao interesse das crianças pelos encontros interati-
vos online, 56,8% demonstravam muito interesse em participar;
32,4% demonstravam pouco interesse em participar; 10,8% não
demonstravam interesse em participar. Se considerarmos o per-
centual de crianças que demonstravam muito interesse em par-
ticipar com os que apresentavam pouco interesse, perceberemos
que 89,2% demonstravam interesse pelos encontros interativos
online, em maior ou menor grau. Contudo, era motivo de preocu-
pações pedagógicas e investigação docente a existência dos fatores
que poderiam interferir nesse processo.
As conversas com os familiares e as justificativas apresen-
tadas indicaram que algumas crianças não se satisfaziam com o
contato virtual e desejavam encontrar-se presencialmente com a
professora e os colegas. Havia momentos em que as crianças de-
monstravam mais interesse por outras experiências que estavam
realizando em casa e seus interesses concentravam-se nas vivên-
cias concretas, que se apresentavam como prioridade em determi-
nado momento e se sobrepunham ao horário do encontro online,
com a professora e os colegas.
Quanto ao material solicitado pelas professoras para as
atividades propostas nos encontros interativos online, 94,6% os
consideraram de fácil acesso. Esse retorno foi muito importante,
pois a proposta era que o material solicitado fosse de fácil acesso,
de preferência recursos simples, de que todos os familiares pudes-
sem dispor em suas casas, já que o isolamento social dificultava ou
impedia a aquisição de determinados materiais.
Quanto ao acompanhamento das crianças por parte dos
familiares durante os encontros online, 64,9% afirmaram que ti-
nham facilidade em oferecer o suporte necessário para que as
crianças participassem dos encontros; para 35,1% dos familiares,

FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO • MARIA AURICÉLIA DA SILVA


121

não era fácil acompanhar os encontros interativos online com as


crianças, porque já haviam voltado ao trabalho presencial, ou por-
que a logística familiar tornava-se complexa diante dos afazeres,
do acompanhamento de mais de uma criança ou da distribuição
dos recursos tecnológicos para todos os membros da família.
Em relação à sistemática de encontros interativos online,
75,7% dos familiares mostraram-se satisfeitos e desejavam que
esse formato fosse mantido até o final do ano letivo. Esse retorno
tranquilizou e encorajou o grupo de professoras da UUNDC a con-
tinuar investindo nos encontros remotos, pois essa ainda se mos-
trava a forma possível de estar ao lado das crianças e propor expe-
riências que favorecessem sua aprendizagem e desenvolvimento.
Quanto ao retorno às atividades presenciais, o percentual
caiu um pouco em relação à enquete 1. Desta vez, 67,6% não deseja-
vam que as crianças retornassem. Os familiares inseridos no per-
centual de 32,4%, que desejavam o retorno presencial, citaram os
seguintes aspectos como justificativa para sua opção: muitos fami-
liares haviam retornado ao trabalho presencial; alguns familiares
haviam sido acometidos da Covid-19 e se sentiam mais seguros; as
crianças mostravam-se entediadas e/ou inquietas com a rotina; as
crianças desejavam retornar à UUNDC para rever e brincar com os
colegas e a professora.
Os Encontros Interativos Online eram gravados e serviam
como recurso para reflexão e o repensar das ações realizadas. Os
registros realizados subsidiaram a elaboração dos relatórios de
avaliação, tanto o geral quanto o individual.
Essas ações, tomadas coletivamente, a partir da análise e
reflexão sobre os processos pedagógicos vivenciados e à medida
que as demandas surgiam, fortaleceu a parceria já existente en-
tre professoras e familiares. Mesmo de forma remota, tínhamos a
clareza e a convicção de que a criança é a protagonista do trabalho
pedagógico, razão pela qual seus interesses e necessidades devem
ser respeitados.

A DINÂMICA PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO NA UUNDC/UFC EM TEMPOS DE PANDEMIA


122

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse tempo de pandemia, destacamos o esforço da equipe


da UUNDC em continuar a desenvolver suas ações de Ensino, Pes-
quisa e Extensão, em especial a educação e o cuidado das crian-
ças matriculadas. Marcamos, inicialmente, a continuidade do
trabalho da equipe da UUNDC com reuniões para compreender a
complexidade do momento vivido: na busca de discutir o que se
sabia, o que seria feito, sobre os sentimentos e as muitas incerte-
zas. Destacamos outras ações desenvolvidas como a manutenção
do contato com os familiares por meio de reuniões, comunicados
e a elaboração de documentos; o contato com as crianças para o
estreitamento dos vínculos e os Encontros Remotos.
Sobre o retorno às atividades presenciais, nós temos al-
gumas certezas até o surgimento de uma vacina eficaz e segura.
A primeira delas é que, quando houver retorno ao trabalho pre-
sencial, nada será igual na UUNDC, pois as interações, as brinca-
deiras, as ações das crianças e das professoras serão restritas. O
medo e a desconfiança persistirão nas relações. Outra certeza é
a necessidade de muitas mudanças administrativas, sanitárias e
pedagógicas.
Entendemos que o compartilhamento de práticas pedagógi-
cas interessantes e de estratégias para dar continuidade à educa-
ção das crianças em situação de pandemia pode contribuir para o
enfrentamento dos desafios como suporte pedagógico para a supe-
ração das dificuldades enfrentadas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infan-


til. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secre-
taria de Educação Básica – Brasília: MEC, SEB, 2010.

FÁTIMA MARIA ARAÚJO SABOIA LEITÃO • MARIA AURICÉLIA DA SILVA


123

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Mi-


nistério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria
de Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, 2018.
KENSKI, V. M. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informa-
ção. Campinas, São Paulo: Papirus, 2007.
LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na
era da Informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
MALAGUZZI, Loris. História, idéias e filosofias básicas. In:
EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George. As Cem
Linguargens da Criança: a abordagem de Reggio Emilia na educa-
ção da primeira infância. Porto Alegre: Artmed, 1999.
OSTETTO, L. E. (Org.). Encontros e encantamentos na educação in-
fantil. Campinas/SP: Papirus, 2000.
PAIS, Luiz Carlos. Ensinar e aprender Matemática. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
PAPERT, Seymour. A máquina das crianças: repensando a escola
na era da informática. Porto Alegre: Artmed, 2008.

A DINÂMICA PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO NA UUNDC/UFC EM TEMPOS DE PANDEMIA


124

LIVES ALUSIVAS AO SETEMBRO


VERDE NO INSTAGRAM:
FORMAÇÃO HUMANA EM TEMPO DE
DISTANCIAMENTO SOCIAL
Gabriella Vilar de Alencar Rodovalho1
Egle Katarinne Souza da Silva 2
Adriana Moreira de Souza Corrêa 3
Reginaldo Pedro de Lima Silva 4
Mirella Katiuze André Lopes Ponchet5

RESUMO
A pesquisa em tela objetiva relatar três lives alusivas à campanha
Setembro Verde que foram realizadas na rede social Instagram. As lives
foram organizadas com a participação de convidados e docentes da Escola
Cidadã Integral Técnica Cristiano Cartaxo, localizada em Cajazeiras-PB,
a fim de abordar a inclusão social das pessoas com deficiência. Trata-se
de um relato de experiência, descritivo com análise de dados qualitati-
va. Concluímos que as ações ampliam as discussões sobre a importância
do acolhimento de todas as pessoas, da visão positiva acerca das poten-
cialidades da pessoa com deficiência de modo a repensar as práticas
educativas e as sociais para a o desenvolvimento da educação inclusiva.
Palavras-chave: Lives. Instagram. Inclusão.
1 Graduada em Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Professora da Base Técnica
da Escola Cidadã Integral Técnica (ECIT) Cristiano Cartaxo, Cajazeiras – PB, Bra-
sil, gabirodovalho@gmail.com
2 Mestra em Sistemas Agroindustriais pelo Centro de Ciências e Tecnologia Agroali-
mentar (CCTA) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Gestora da
ECIT Cristiano Cartaxo, eglehma@gmail.com;
3 Mestra em Ensino pelo Programa de Pós-graduação em Ensino (PPGE/UERN). Pro-
fessora da UFCG, adriana.korrea@gmail.com
4 Licenciado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e em Artes
Visuais pela Faculdade de Ciências Administrativas e de Tecnologia de Rondônia
(FATEC). Professor da ECIT Cristiano Cartaxo, regysdance@gmail.com
5 Licenciada em Letras pela UFCG. Coordenadora Pedagógica da ECIT Cristiano
Cartaxo, mirellaponchet@gmail.com

GABRIELLA VILAR DE ALENCAR RODOVALHO • EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA


ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • REGINALDO PEDRO DE LIMA SILVA
MIRELLA KATIUZE ANDRÉ LOPES PONCHET
125

ABSTRACT
The on-screen survey aims to report three live streams alluding
to the September Green campaign that were held on the social network
Instagram. The live streams were organized with the participation of the
some invited people and teachers from Escola Cidadã Integral Técnica
Cristiano Cartaxo (Intern Technician High School), located in Cajazeiras-
PB, in order to discuss about the social inclusion of people with
disabilities. This is an experience report, descriptive with qualitative
data analysis. We have concluded that the actions widened discussions
about the importance of embracing everyone, the positive view over the
potential of the person with disability in order to rethink educational
and social practices for the development of an inclusive education.
Keywords: Lives. Instagram. Inclusion.

INTRODUÇÃO

Diante do atual cenário educacional, que em decorrência


da proliferação da COVID-19, doença causada pelo coronavírus,
desencadeou as medidas de isolamento social, os sistemas de en-
sino municipais e estaduais, seguindo as orientações da Portaria
nº 343 (BRASIL, 2020), implementaram o ensino remoto, ou seja,
o desenvolvimento de atividades educacionais passaram a ocorrer
mediadas, prioritariamente, por atividades síncronas e assíncro-
nas realizadas em mídias digitais.
Em consonância com o documento supracitado, que segue
as orientações de contenção do vírus divulgadas pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) o governo da Paraíba, emitiu o Decreto
nº 40.118 (PARAIBA, 2020a) suspendendo as aulas presenciais da
rede pública estadual. Assim, a Secretaria de Estado da Educação
e da Ciência e Tecnologia expediu a Portaria 418 (PARAÍBA, 2020b)
que orienta a retomada de atividades educacionais, de maneira
remota, utilizando as mídias digitais. Nesse entendimento, a pre-
feitura de Cajazeiras/PB divulgou, por meio do Decreto nº 02/2020
(CAJAZEIRAS, 2020), as diretrizes que orientam o distanciamento

LIVES ALUSIVAS AO SETEMBRO VERDE NO INSTAGRAM:


FORMAÇÃO HUMANA EM TEMPO DE DISTANCIAMENTO SOCIAL
126

social e a suspensão de atividades que geravam aglomerações, in-


clusive as atividades educacionais, medida que deveria ser acatada
pelas instituições que funcionam nessa cidade, sejam elas munici-
pais, estaduais, federais ou da iniciativa privada.
Em face dessa modificação de locus e, consequentemente,
de práticas de ensino mediadas pelas Tecnologias Digitais de In-
formação e Comunicação (TDICs), inicialmente, o desafio a ser
enfrentado pela equipe escolar referiu-se aos estudos sobre o uso
e inserção dos diversos recursos digitais nas atividades de ensino-
-aprendizagem. Esses recursos digitais, que antes eram inseridos
de forma pontual, na emergência do distanciamento social e do
ensino remoto, passaram a ser a principal ferramenta utilizada
pelos educadores para ministrar aulas.
Contudo, além de ministrar aulas remotamente, os docen-
tes se veem diante de um segundo desafio: precisam diversificar a
sua prática pedagógica, de forma a estimular os alunos a participa-
rem assiduamente das atividades propostas. Nessa perspectiva, foi
fundamental que os docentes compreendessem as especificidades
de diversos recursos digitais e os utilizassem de forma a promover
a aproximação com o alunado. Esses últimos, por serem nativos
digitais6 encontram-se imersos no mundo tecnológico, são usu-
ários assíduos nas diversas redes sociais e, portanto, esse espaço
digital, que permeia o cotidiano do aluno, precisa ser incorporado
às práticas de ensino realizadas pela escola.
Al-Bahrani e Patel (2015) afirmam que, atualmente, o Ins-
tagram é a rede social mais utilizada entre os jovens pela facilidade
na interação e engajamento que ela proporciona aos usuários/se-
guidores. Nesse contexto, o Instagram pode funcionar como uma
plataforma de suporte às práticas pedagógicas, onde professores
das diversas áreas do conhecimento podem postar materiais, pro-
6 Termo designado por Marc Prensky (2001) na distinção de nativos digitais, os nas-
cidos em contexto tecnológico com a evolução das tecnologias digitais, e imigran-
tes digitais, os emergidos de décadas anteriores a 90.

GABRIELLA VILAR DE ALENCAR RODOVALHO • EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA


ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • REGINALDO PEDRO DE LIMA SILVA
MIRELLA KATIUZE ANDRÉ LOPES PONCHET
127

duzidos com diversas linguagens: imagens, vídeos, música entre


outras. Por meio dessas linguagens os professores produzem testes
de perguntas e respostas (estilo quiz), enquetes com duas alternati-
vas (verdadeiro ou falso; sim ou não), entre outros, de modo assín-
crono (24 horas quando é utilizada à função Stories) ou indetermi-
nado (quando os Stories são salvos como Destaques ou na função
Feed do perfil). Além disso, podem produzir lives, atividades síncro-
nas, com duração de até 1 hora que podem ser salvas no Feed e ficar
disponível por tempo indeterminado. Assim, as diferentes funções
do Instagram permitem usos diversos e contribuem para alcançar
o objetivo pedagógico delimitado pelo educador.
Em 2005, através da Lei nº 11.133, o dia 21 de setembro foi
destinado à comemoração do dia de Luta da Pessoa com Deficiên-
cia (BRASIL, 2005) de maneira a dar visibilidade a esse movimen-
to, bem como à discussão e reivindicação de Políticas Públicas que
minimizem as barreiras encontradas pelas pessoas com deficiên-
cia. Nesse seguimento, a Federação das Associações de Pais e Ami-
gos dos Excepcionais (APAEs) de São Paulo e a APAE de Valinhos/
SP, em 2015, iniciaram uma campanha para tornar o mês de se-
tembro um período de intensificação das discussões sobre as es-
tratégias de inclusão e acessibilidade das pessoas com deficiência
(FEDERAÇÃO DAS APAEs DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2017).
Em julho de 2015, foi aprovado o Estatuto da Pessoa com
Deficiência por meio da Lei nº 13.146 que, no Art. 1º, se apresenta
como uma legislação “[...] destinada a assegurar e a promover, em
condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades
fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão
social e cidadania” (BRASIL, 2015). Entretanto, para que esse di-
reito seja implementado nas práticas de ensino, é fundamental o
desenvolvimento de ações que promovam a visibilidade à inclusão,
de maneira que a escola enquanto instituição que realiza ativida-
des de socialização e aprendizado, seja de forma presencial e/ou
remota, promova discussões e práticas inclusivas.

LIVES ALUSIVAS AO SETEMBRO VERDE NO INSTAGRAM:


FORMAÇÃO HUMANA EM TEMPO DE DISTANCIAMENTO SOCIAL
128

Em 2019, as atividades alusivas ao Setembro Verde, na Es-


cola Cidadã Integral Técnica (ECIT) Cristiano Cartaxo, aconteceram
de forma presencial por meio de palestras, acolhimentos diários e
mesa redonda. Todavia, com vista a se adequar ao ensino remoto,
em 2020, as atividades da campanha que foram promovidas por
essa escola, ocorreram por meio de atividades síncronas realizadas
na rede social Instagram, por meio de três lives organizadas com
a participação de docentes e convidados que dialogaram sobre te-
máticas relacionadas a inclusão social da pessoa com deficiência.
A primeira convidada é educadora física e dançarina com
Paralisia Cerebral Despargia; o segundo, que é seu parceiro e
coreó­grafo, está cursando licenciatura em educação física e o ter-
ceiro convidado é um aluno egresso da ECIT Cristiano Cartaxo ca-
deirante com deficiência física e cognitiva estudante atualmente
do curso de licenciatura em geografia na Universidade Federal de
Campina Grande (UFCG), campus Cajazeiras/PB.
Os três encontros realizados foram disponibilizados Feed
do perfil @ecitecristianocartaxo, utilizando o IGTV, e, a partir
desse material, duas integrantes do Grupo de Estudo e Desenvolvi-
mento de Objetos Virtuais de Aprendizagem (GEDOVA), um proje-
to de pesquisa vinculado a Unidade Acadêmica de Ciências Exatas
e da Natureza (UACEN) da Universidade Federal de Campina Gran-
de (UFCG), do Centro de Formação de Professores (CFP) da UFCG,
buscaram analisar, juntamente com três docentes da instituição,
as contribuições sociais dessa atividade. Esse projeto analisa prá-
ticas pedagógicas e recursos educacionais promovidos em mídias
digitais, portanto, seus membros se interessam por investigar as
alternativas usadas pelos docentes no ensino remoto.
Nesse contexto, o objetivo desta pesquisa é relatar as lives
desenvolvidas para Campanha Setembro Verde7 oferecidas tanto
a comunidade escolar como ao público externo, em função de ser
7 Apesar da atividade ser alusiva á campanha Setembro Verde, as ações, em função
da agenda dos convidados, aconteceram nos primeiros dias do mês de outubro.

GABRIELLA VILAR DE ALENCAR RODOVALHO • EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA


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MIRELLA KATIUZE ANDRÉ LOPES PONCHET
129

realizada em um ambiente digital aberto. Desse modo, esse estudo


trata-se de um relato de experiência, descritivo com análise de da-
dos qualitativa.

ABORDAGEM DAS LIVES



Com o intuito de convidar os alunos para participarem da
primeira live, os professores, da área de linguagens da ECIT Cristia-
no Cartaxo, apresentaram a temática durante um acolhimento vir-
tual diário, uma prática das ECITs da Paraíba, na sexta-feira ante-
cedente à primeira ação. O recurso produzido para o ­acolhimento
foi um vídeo com duração de 5:49 min. que apresenta o projeto de
dança da Educadora Física Karina Rocha e do coreógrafo Paulino
Scouper. Nesse vídeo, os convidados buscam, por meio da dança,
mostrar que a deficiência física não é impedimento para realização
de diferentes atividades, mas que, para isso, é necessário buscar no-
vos caminhos para favorecer a participação da pessoa com defici-
ência nas múltiplas atividades sociais desenvolvidas no c­ otidiano.
Juntos, a dupla desenvolveu o projeto: “Isso é Calypso” em
que gravaram vídeos dançando o ritmo Calypso, que é a preferência
musical da educadora física. Os vídeos desse projeto encontram-
-se disponíveis em seus perfis de Instagram @paulinhoscouper e
@karina_rocha_mendes e foram desenvolvidos com o objetivo de
mostrar para a sociedade que é possível haver a inclusão das pes-
soas com deficiência por meio da linguagem corporal dança.
Karina relata que se deparou com obstáculos, pois as pesso-
as acreditam que, para os cadeirantes é difícil dançar ritmos que
envolvem movimentos rápidos. Por essa razão, o vídeo utilizado
como acolhimento virtual diário foi um convite à reflexão sobre as
possibilidades da pessoa com deficiência de maneira a despertar
a comunidade escolar a participar da primeira live. Observamos,
na Figura 1, alguns prints do acolhimento virtual diário que ser

LIVES ALUSIVAS AO SETEMBRO VERDE NO INSTAGRAM:


FORMAÇÃO HUMANA EM TEMPO DE DISTANCIAMENTO SOCIAL
130

acessado, na integra, pelo link: https://www.instagram.com/tv/


CFjq7sxDTH-/?igshid=rgp035kx94c.

Figura 1 – Acolhimento Virtual como Convite para Live

Fonte: Instagram @ecitecristianocartaxo.

A primeira live foi realizada dia 01 de outubro de 2020,


utilizando o perfil no Instagram do professor de artes e Projeto de
Vida8 “@regynaldo_”. Inicialmente, o professor mediador abriu
espaço para a convidada se apresentar e ela pontuou sua área de
atuação. A participante explicou que é licenciada em Educação Fí-
sica pelo Centro Universitário de Goiatuba – Unicerrado, dançari-
na, fotógrafa, artesã, designer e editora de vídeos, demonstrando
as possibilidades de participação dessas pessoas. Na live, Karina
Rocha organizou a fala em três pontos: barreiras sociais, experi-
ências educacionais e relações familiares.
A convidada explicou que possui Paralisia Cerebral Despar-
gia que afetou os membros inferiores, deixando-a cadeirante e, em
função dessa característica, foi vítima de preconceito sofrido ao
longo da vida. No âmbito educacional, pontua a falta de Atendi-
mento Educacional Especializado (AEE) na escola, bem como as
barreiras – entre elas a arquitetônica – para o acesso aos espaços
de aprendizagem. Ela apontou ainda as alternativas de superação,

8 “O projeto de vida reside no “coração” do projeto escolar. Ele é a centralidade e


sua razão de existir. É fruto do foco e da conjugação de todos os esforços da equipe
escolar. É nele que o currículo e a prática pedagógica realizam o seu sentido, no
aspecto formativo e contributivo, na vida do jovem ao final da educação básica”.
(INSTITUTO DE CORRESPONSABILIDADE PELA EDUCAÇÃO, 2016, p. 28).

GABRIELLA VILAR DE ALENCAR RODOVALHO • EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA


ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • REGINALDO PEDRO DE LIMA SILVA
MIRELLA KATIUZE ANDRÉ LOPES PONCHET
131

como a substituição das sessões de fisioterapia pela prática de es-


portes e a inserção no curso de licenciatura em Educação Física
que permitiu desempenhar a docência na área do seu interesse.
Entretanto, mesmo no nível superior, cursando uma licen-
ciatura, ela explica que se deparou com docentes que desacredita-
ram do seu potencial e criaram barreiras atitudinais que a levaram
a trancar o curso. No entanto, no mesmo período, o interesse pela
fotografia surgiu a convite de outra educadora, o que demonstra
a importância da formação e compromisso do docente na educa-
ção de pessoas com deficiência, tendo em vista que as ações desses
educadores tiveram reflexos na sua autoestima e na permanência
dos estudos em cada área.
Karina destaca que sua maior conquista foi ter concluído o
curso superior, pois reflete o percurso de superação e afirma que é
a primeira cadeirante do Estado de Goiás a se formar em Licencia-
tura em Educação Física. Na fala fica evidenciada a postura autô-
noma para traçar e buscar realizar o seu Projeto de Vida e a resili-
ência, característica que a auxiliou a superar cada dificuldade em
busca da felicidade e realização pessoal e profissional.
Sobre o apoio familiar, ela pontua que a mãe a tratou sem me-
didas de superproteção e que sempre frisava que ela era capaz de
superar cada obstáculo que se apresentasse no seu caminho, o que
contribuiu para formação de seu caráter e sua postura autônoma.
No relato de Karina, o incentivo familiar para alcançar os seus obje-
tivos é evidente e ressalta que é necessário que a família reconheça
as possibilidades da pessoa com deficiência e a incentive a desenvol-
ver atividades com autonomia e reivindicar os seus direitos.
Observamos, na Figura 2, o cartaz digital de divulgação e
o registro da live que está disponível9 no perfil do Instagram da
escola @ecitecristianocartaxo e no perfil do professor de arte @
regynaldo_ . A live, até o dia 17 de outubro de 2020, teve 177 acessos.

9 https://www.instagram.com/tv/CF0dP2rJOdk/?igshid=1u3ijurodop2o

LIVES ALUSIVAS AO SETEMBRO VERDE NO INSTAGRAM:


FORMAÇÃO HUMANA EM TEMPO DE DISTANCIAMENTO SOCIAL
132

Figura 2 – Cartaz Digital e Registro da Live com a Educadora Físi-


ca, Fotógrafa e Dançarina.

Fonte: Instagram @regynaldo_

A segunda live aconteceu no dia 02 de outubro de 2020,


no Instagram da escola, sendo a mediadora uma docente da base
técnica da ECIT Cristiano Cartaxo e o convidado um aluno egresso
da instituição com deficiência física e cognitiva.
O estudante egresso concluiu o curso técnico em informáti-
ca na ECIT Cristiano Cartaxo e atualmente é licenciando em geo-
grafia pela UFCG campus Cajazeiras-PB. Inicialmente, a professo-
ra mediadora pediu para que o convidado se apresentasse e, nesse
momento, o estudante definiu a si mesmo como uma constante
mudança. Durante a live, ele pontuou que desde criança vivenciou
situações nas quais sofreu preconceito, mas optou por ignorá-las.
Sobre o âmbito social, o aluno explica que ainda hoje viven-
cia situações de exclusão, mas prefere focar sua atenção aos mo-
mentos nos quais é incluído e se sente partícipe das atividades e
dos grupos sociais que s acolhem. No que se refere à relação com a
família, destaca o empenho da mãe, que é professora, durante o seu
processo de alfabetização e da irmã que o auxilia na produção das
atividades da universidade. Observamos na Figura 3, o cartaz digi-
tal e o registro da live disponível10 no Instagram da escola @ecite-
cristianocartaxo e, até o dia 17 de outubro de 2020, teve 187 acessos.

10 Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CF2f4PGD854/?igshid=sabtlijagznz

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MIRELLA KATIUZE ANDRÉ LOPES PONCHET
133

Figura 4 – Cartaz Digital e registro da Live com o Aluno Egresso.

Fonte: Instagram @ecitecristianocartaxo

A terceira live aconteceu no dia 05 de outubro de 2020, no


perfil do Instagram @paulinhoscouper sendo o docente mediador
o professor de artes e Projeto de Vida e o convidado o coreográfo e
dançarino que formou dupla com a primeira convidada no projeto
“Isso é Claypso”.
Inicialmente o convidado se apresentou, pontuando que
está concluindo o curso de licenciatura em educação física pelo
Centro Universitário de Goiatuba – Unicerrado e que tem vários
cursos de formação na área de aeróbico com foco na dança e core-
ografia. Além disso, ministra aulas de dança nos diferentes níveis
de ensino e atua como recreador de piscina.
Durante o curso de licenciatura em educação física iniciou o
contato com a primeira convidada e juntos decidiram iniciar o proje-
to que trata da inclusão por meio da dança, e após alinhamentos e en-
saios, gravaram os vídeos e que darão continuidade ao projeto após o
encerramento do isolamento social em decorrência do Corona vírus.
Ele conta que inicialmente a Karina dançava de joelhos e
pela proposta inicial, o projeto deveria ser desenvolvido com ela
dançando na cadeira de rodas. Observamos na Figura 4, alguns
registros da live que teve 104 visualizações, até o dia 17 de outubro
de 2020, e está disponível no perfil do Instagram do convidado @
paulinhoscouper11.
11 https://www.instagram.com/tv/CF-2w6VAQoS/?igshid=dvy1qf8g1qbv

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134

Figura 4 – Cartaz Digital e registro da Live com o Coreógrafo e


Dançarino.

Fonte: Instagram @paulinhoscouper

As lives trazem em comum as discussões relacionadas às


possibilidades de participação das pessoas com deficiência em
diferentes atividades desde que sejam oferecidas as condições ne-
cessárias para a sua participação. Assim, a ação foi relevante no
sentido de apresentar, inicialmente, duas pessoas com deficiência
e uma pessoa que atua junto a uma delas, revelando que cada um
pode buscar alternativas para conviver e desenvolver atividades
coletivas. Nesse sentido, a temática foi trabalhada, predominan-
temente, a partir da vivência de pessoas com deficiência, o que fa-
vorece a reflexão dos estudantes sobre situações semelhantes que
ocorrem com pessoas próximas e assim, repensar suas atitudes e
das pessoas próximas nessas ocasiões.
As reflexões que envolvem a participação da escola e da fa-
mília também foram fundamentais, pois reafirmam a necessidade
de uma ação articulada entre essas duas instituições sociais na
educação e participação das pessoas com deficiência conforme
afirmam o Art. 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e o
Art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL,
1996).
As lives ressaltam ainda a necessidade de reconhecimento
e superação de diferentes barreiras, como a atitudinal, presentes
nas relações sociais e que impedem a consolidação da escola e de

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ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • REGINALDO PEDRO DE LIMA SILVA
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135

outros espaços sociais como inclusivos, conforme destaca o Esta-


tuto da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015).
Nesse sentido, a partir dos comentários realizados durante
as lives, consideramos que as ações educacionais realizadas em mí-
dias digitais favoreceram a reflexão da comunidade escolar e que
continuarão a sensibilizar outros interessados sobre as possibili-
dades das pessoas com deficiência. Desse modo, a ECIT Cristiano
Cartaxo pôde contribuir com uma ação que favorecesse a reflexão
social, ou seja, uma ação que alcançasse os alunos da escola e que
tivesse representação na sociedade, estimulando a compreensão
do papel de cada pessoa no acolhimento das pessoas e na promo-
ção de uma sociedade inclusiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reflexão em tela apresentou uma ação de mobilização re-


alizada em mídias sociais pela ECIT Cristiano Cartaxo, em 2020,
utilizando a rede social Instagram para viabilizar o Ensino Remo-
to. Nessa ação a promoção de lives foi pensada como a utilização
de um espaço digital, de amplo acesso dos estudantes, que poderia
promover as discussões sobre a temática para a comunidade esco-
lar e outros interessados como forma de contribuir com a mobili-
zação em prol desse movimento.
A promoção de lives com pessoas com deficiência que supe-
raram obstáculos e desenvolvem atividades acadêmicas e de arte
buscou apresentar ao segmento dos alunos que, com determina-
ção e perseverança, é possível superar os obstáculos. Ao segmento
dos pais, as discussões sobre a importância do suporte da família
fomentam reflexões sobre o papel dos pais no desenvolvimento
dos filhos. À comunidade escolar, na sua totalidade, as reflexões
sobre a importância do acolhimento, da visão positiva acerca das
potencialidades da pessoa com deficiência e da reorganização do

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136

espaço escolar para atendê-los estimula o repensar das práticas


educativas e as sociais para a construção da educação inclusiva.
Nesse sentido, consideramos que a ação não encerra na fi-
nalização das lives, tendo em vista que desenvolveu um produto,
com fins educativos, que pode sensibilizar outros interessados, de
diferentes regiões do país, que seguem o perfil ou que foram mar-
cados na publicação. Em estudos futuros, pretendemos analisar o
impacto individual dessas lives na mudança da percepção da pes-
soa com deficiência junto aos estudantes da escola.

REFERÊNCIAS

AL-BAHRANI, A.; PATEL, D. Incorporating Twitter, Instagram,


and Facebook in Economics Classrooms. The Journal of Economic
Education, n. 46, v. 1, p. 56-67, 2015.
BRASIL.  Constituição  Federal do Brasil. Constituição  Federal da
República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado: Centro Grá-
fico, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as di-
retrizes e bases da educação nacional.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasilei-
ra de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência).
BRASIL. Lei nº 11.133, de 14 de julho de 2005. Institui o Dia Nacio-
nal de Luta da Pessoa Portadora de Deficiência.
BRASIL. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a
substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais
enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus –
­COVID-19.
CAJAZEIRAS. Decreto nº 2, de 16 de março de 2020. Dispo-
nível em: https://cajazeiras.pb.gov.br/arquivos/1201/Decre-
tos_09_2020_0000001.pdf Acesso em: 4 out. 2020.

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ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA • REGINALDO PEDRO DE LIMA SILVA
MIRELLA KATIUZE ANDRÉ LOPES PONCHET
137

FEDERAÇÃO DAS APAES DO ESTADO DE SÃO PAULO. Cartilha Se-


tembro Verde. São Paulo: FEAPAES-SP, 2017.
PARAÍBA. Decreto nº 40.188, de 18 de abril de 2020a. Dispõe sobre
a adoção de novas medidas temporárias e emergenciais de preven-
ção de contágio pelo Novo Coronavírus.
PARAÍBA. Portaria nº 418, de 18 de abril de 2020b. Dispõe sobre a
adoção, no âmbito da rede pública estadual de ensino da Paraíba,
do regime especial de ensino, como medida preventiva à dissemi-
nação do COVID-19, e dá outras providências.
PRENSKY, M. Nativos Digitais, Imigrantes Digitais. Tradução: Ro-
berta de Moraes Jesus de Souza. On the Horizon, MCB University
Press, v. 9, n. 5, 2001.
INSTITUTO DE CORRESPONSABILIDADE PELA EDUCAÇÃO. In-
trodução às bases teóricas e metodológicas do modelo de escola da
escolha. 2a. ed., 2016.

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LETRAMENTO INCLUSIVO:
ATIVIDADES ENVOLVENDO EGRESSOS
DA UFCG
Egle Katarinne Souza da Silva 1
Adriana Moreira de Souza Corrêa 2
Thaíse Duarte Temoteo Gonçalves3
Aparecida Carneiro Pires 4

RESUMO
O capítulo versa sobre quatro experiências acessíveis em Libras
promovidas por instituições educacionais que contribuem para o letra-
mento inclusivo. Trata-se de um relato de experiências de egressas do
Centro de Formação de Professores, da Universidade Federal de Campina
Grande, sendo uma professora da classe regular e uma mãe de estudan-
tes da educação infantil. A análise se pauta na abordagem qualitativa dos
dados, na base teórica dos multiletramentos, de modo a desvelar os usos
da leitura e da escrita, na família e na escola, envolvendo ações que pro-
movem reflexões à pessoa surda e à sua língua, bem como as modificações
necessárias para que esses eventos de letramento se tornem inclusivos.
Palavras-chave: Libras. Letramento inclusivo. Universidade.
Egressos.

ABSTRACT
The chapter deals with four accessible experiences in Libras pro-
moted by educational institutions that contribute to inclusive literacy. It

1 Mestra em Sistemas Agroindustriais pelo Centro de Ciências e Tecnologia Agroa-


limentar (CCTA) da UFCG e Gestora da ECIT Cristiano Cartaxo.
E-mail: eglehma@gmail.com.
2 Mestra em Ensino pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),
Professora de Libras da UFCG. E-mail: adriana.korrea@gmail.com.
3 Especialista em Linguagem e Ensino pelo Instituto Superior de Educação de Caja-
zeiras (ISEC), Professora da rede privada de ensino de Cajazeiras.
E-mail: taise_cz@hotmail.com.
4 Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Professora da UFCG.
E-mail: cidaufcg2017@gmail.com.

EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA • ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA


THAÍSE DUARTE TEMOTEO GONÇALVES • APARECIDA CARNEIRO PIRES
139

is an account of experiences of graduates from the Teacher Training Cen-


ter, Federal University of Campina Grande, being a teacher of the regular
class and a mother of students in early childhood education. The analysis
is based on the qualitative approach of the data, on the theoretical basis
of the multi-courses, in order to reveal the uses of reading and writing,
in the family and at school, involving actions that promote reflections to
the deaf person and their language, as well as the necessary modifica-
tions for these literacy events to become inclusive.
Keywords: Pounds. Inclusive literacy. University. Graduates.

INTRODUÇÃO

A disciplina de Língua Brasileira de Sinais (Libras) tornou-


-se obrigatória com a aprovação da Lei nº 10.436 (BRASIL, 2002,
2005) e, a partir disso, foi implementada como componente cur-
ricular obrigatório nos cursos de licenciatura e formação para a
docência a nível médio ou superior.
Contudo, analisamos, a partir das experiências observadas
pelas autoras, no espaço que se configura como locus da pesqui-
sa, que a presença dessa disciplina no ementário dos cursos nem
sempre garante que os conhecimentos nela desenvolvidos sejam
conscientemente utilizados na sua vivência em sociedade. Isso
ocorre, principalmente, se nos espaços que o licenciando frequen-
ta não contarem com a presença de um surdo. Assim, a falta de
contato com surdos faz com que o conhecimento construído entre
em desuso e, com isso, dificulta retomá-lo quando é necessário.
Diante disso, buscamos discutir experiências de egressos
que promoveram a inserção de conhecimentos de Libras e sobre a
Libras em vivências posteriores à formação em nível superior, seja
em momentos de interações familiares e/ou escolares.
Em face do exposto, nesse capítulo, objetivamos discutir
quatro experiências utilizando a Libras com egressos do Centro
de Formação de Professores (CFP), da Universidade Federal de

LETRAMENTO INCLUSIVO: ATIVIDADES ENVOLVENDO EGRESSOS DA UFCG


140

Campina Grande (UFCG), de Cajazeiras/PB e buscamos responder


a seguinte questão: quais são os aprendizados que podem ser cons-
truídos a partir da inserção de discussões e práticas com textos
em Libras e sobre a Libras nas atividades familiares e/ou escolares
de egressos do CFP/UFCG?
Esses momentos são analisados na perspectiva dos letra-
mentos, em especial letramento inclusivo, termo divulgado, prin-
cipalmente, nas pesquisas de Batista-Júnior (2008) para nomear
as experiências que visam acolher as especificidades de uso da lei-
tura e da escrita para as pessoas com Necessidades Educacionais
Específicas (NEE).
Desse modo, esse escrito pauta-se no Relato de Experiência
(RE) que compreende “mais uma possibilidade de criação de nar-
rativa científica, especialmente no campo das pesquisas capazes
de englobar processos e produções subjetivas” (DALTRO; FARIA,
2019, p. 224). Para as autoras, mais do que descrever, o RE analisa
situações históricas situadas e indicam possibilidades de estudos
sobre determinada temática, com vista a confirmar ou ampliar os
estudos sobre fenômenos sociais.
Assim abordamos e analisamos essas experiências na seção
a seguir.

DISCIPLINA DE LIBRAS NO CAMPUS DA UFCG DE


CAJAZEIRAS-PB

A disciplina de Libras, no CFP, campus Cajazeiras, da UFCG
inicialmente foi ofertada em 2015, com a contratação de uma
professora ouvinte e um professor surdo, docentes efetivos, con-
cursados para ministrar esse componente curricular (CORRÊA;
LIMA-JÚNIOR, 2020). Em 2020, o componente curricular é ofer-
tado por uma professora surda e uma docente ouvinte, seguindo
as diretrizes da Resolução nº 6, da Câmara Superior de Ensino
(UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE, 2020) que

EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA • ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA


THAÍSE DUARTE TEMOTEO GONÇALVES • APARECIDA CARNEIRO PIRES
141

orienta as atividades acadêmicas na perspectiva do Ensino Remo-


to, uma prática mediada pela tecnologia em função da pandemia
do ­coronavírus.
Nos cinco anos de oferta desse componente curricular,
foram promovidos Workshops sobre Libras, cursos de extensão,
oficinas de metodologias e produção de material para ensino me-
diado pela Libras, pesquisas, entre outras atividades que tinham
como intuito promover a visibilidade dessa língua e do surdo no
meio acadêmico e em atividades de pesquisa e de extensão univer-
sitária (CORRÊA; LIMA-JÚNIOR, 2020).
Sobre o uso da Libras por licenciandos em espaços educa-
cionais e familiares destacamos atividades realizadas em está-
gios supervisionados na perspectiva bilíngue por estudantes que
visaram discutir essa língua com ouvintes; as interlocuções com
os filhos/familiares dos estudantes, na realização das atividades
(descrito por CORRÊA, ALMEIDA, 2018); atividades de extensão
universitária em escolas entre outras.
Contudo, nesse escrito, nosso interesse é discorrer sobre as
atividades que envolvem egressos da instituição na implementa-
ção de usos da leitura e da escrita (letramentos) que reflitam sobre
a relevância da promoção de atividades, no âmbito escolar e fami-
liar, que favoreçam o letramento inclusivo para atender as neces-
sidades linguísticas da pessoa surda.
Entendemos que o surdo participa de uma minoria linguís-
tica brasileira, portanto, é a pessoa que, em função da perda audi-
tiva, interage com o mundo por meio da visualidade, expressa-se
através de sistemas linguísticos sinalizados e participa da Cultura
Surda (BRASIL, 2005). Para essas pessoas, a Língua Portuguesa
se configura como uma segunda língua e deve ser utilizada pelo
surdo na modalidade escrita (BRASIL, 2002). Assim, o contato com
as práticas sociais que discutem e/ou apresentam alternativas de
produção de textos escritos, impressos ou digitais na perspectiva
bilíngue (com o uso da Língua Portuguesa e Libras) e da multimo-

LETRAMENTO INCLUSIVO: ATIVIDADES ENVOLVENDO EGRESSOS DA UFCG


142

dalidade (vários modos de expressão das linguagens, sendo esses


escrito, oral, sinalizado, visual, imagem em movimento entre
outros) devem ser discutidas e implementadas em diferentes es-
paços sociais, para que as relações desenvolvidas nesses espaços
sejam mais acolhedoras e inclusivas.
Nesse escrito, elencamos discorrer sobre a família e a esco-
la por entender que são grupos sociais essenciais para a formação
do indivíduo e porque eles são citados na legislação educacional
brasileira, a exemplo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) nº 9.394, (BRASIL, 1996). Dentre os eventos de le-
tramento inclusivo, ou seja, uma situação de uso da língua (KLEI-
MAN, 2005) citamos, três práticas observadas no ambiente escolar
e uma prática emergente do espaço familiar.
Kleiman (2005) explica que o letramento envolve capacida-
des e conhecimentos relacionados ao uso da escrita em sociedade.
Nessa perspectiva, o letramento emerge de práticas situadas, ou
seja, variam em função do espaço, das mídias e outros elementos
envolvidos na produção e leitura de textos. Logo, a mobilização de
saberes necessários para participar dos eventos de letramento em
agrupamentos familiares variam em relação àqueles que acontecem
em ambientes escolares. Desse modo, a escola precisa visar a cons-
trução de conhecimentos que permitam ao estudante interagir por
meio da língua, através dos mais diferentes gêneros textuais, nas
mais variadas situações e mídias em que ocorrem a comunicação.
Nesse sentido, Rolim-Moura (2020) explica que essas insti-
tuições de letramento atuam ou deveriam atuar, na sociedade, em
relação de complementaridade e que ambas trazem contribuições
essenciais para a formação do indivíduo. Logo, a família e a escola,
ainda que não contem pessoas surdas ou outras NEEs, precisam
discutir letramentos que permitam a interação com essas pessoas
em alguma esfera social. Isso porque, dessa maneira, será possí-
vel consolidar saberes que formem cidadãos que reivindiquem os
seus direitos de interagir com as demais pessoas, do mesmo modo

EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA • ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA


THAÍSE DUARTE TEMOTEO GONÇALVES • APARECIDA CARNEIRO PIRES
143

que lutam pelo direito de minorias linguísticas e culturais à parti-


cipação de interações vivenciadas na cultura letrada.
Diante disso, acreditamos que o letramento inclusivo deve
perpassar outros letramentos, como o Letramento escolar, Letra-
mento familiar, Letramento digital para que sejam internalizadas
formas de produção de texto acessíveis à pessoa surda e demais
pessoas com deficiência ou limitação de uso da leitura e da escrita.

LETRAMENTO INCLUSIVO: EXPERIÊNCIAS MEDIADAS/


RELATADAS POR EGRESSOS DO CFP/UFCG

As discussões de eventos de letramento ora apresentados
são analisadas sob a perspectiva inclusiva, ou seja, de implementa-
ção de estratégias e recursos que visam o atendimento às pessoas
nas suas singularidades, em múltiplas práticas sociais mediadas
pela linguagem: os letramentos inclusivos.
O primeiro evento de letramento, ocorrido no âmbito
escolar, se refere à uma contação de histórias realizada por uma
egressa e uma docente de Libras da UFCG, em 2019, em uma turma
de Nível III, da Educação Infantil, de uma escola da rede particular
de ensino situada na cidade de Cajazeiras/PB. A atividade original
consistiu em um momento proposto pela escola que buscou apro-
ximar familiares e a escola ao solicitar que os pais selecionassem
uma história infantil e realizassem a contação, junto a turma, na
qual o(s) seu(s) filho/a(s) estavam matriculados.
Na ocasião, a mãe de dois alunos e a professora da Educação
Infantil, ambas egressas do CFP/UFCG, acordaram que, na data da
contação, as estratégias e recursos envolveriam multiletramentos,
ou seja, práticas de uso da leitura e escrita que compreendem dife-
rentes modos e mídias para a interação (ROJO, 2012).
Assim, a docente e a mãe vestiram pijama (FIGURA 1), figu-
rino relacionado à temática do livro selecionado que foi “A casa
sonolenta”, escrito por Audrey Wood.

LETRAMENTO INCLUSIVO: ATIVIDADES ENVOLVENDO EGRESSOS DA UFCG


144

Figura 1 – Contação de História

Fonte: Arquivo Pessoal.

Destarte, essa caracterização, comum no âmbito do uso do


texto literário, utilizada por contadores de histórias, despertou o
interesse dos estudantes sobre o motivo do uso da roupa de dor-
mir no ambiente escolar. Essa estratégia foi utilizada, durante o
projeto, apenas nessa contação e foi de iniciativa da mãe dos estu-
dantes, que é graduada em química, mas que ao realizar leituras
das imagens, modificava o tom de voz na contação, uma vez que
demonstra compreender os letramentos necessários do processo
de contação.
Após os esclarecimentos sobre a atividade, assim como das
crianças apresentarem os sinais em Libras aprendidos em contato
com a professora da educação infantil, as contadoras explicaram
a proposta às crianças e iniciaram a contação. A mãe apresentou
imagens ilustrativas da história em um computador e, à medida
que ela contava a história em Língua Portuguesa, a professora de
Libras realizava a tradução.
Nessa situação, apesar da classe ser composta sem a presen-
ça de surdos, a atividade motivou perguntas que versavam sobre a
relevância do aprendizado da Libras por todas as pessoas e da ne-
cessidade de uso da Libras em momentos que houvessem pessoas

EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA • ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA


THAÍSE DUARTE TEMOTEO GONÇALVES • APARECIDA CARNEIRO PIRES
145

surdas. Nessa vivência, as crianças experienciaram uma contação


de histórias acessível e que remete à reflexão sobre as modifica-
ções necessárias para a promoção da participação de pessoas sur-
das e ouvintes na mesma atividade (MANTOAN, 2015).
O próprio uso do computador para projetar a imagem das
páginas do livro, também despertou o interesse dos estudantes
que, ao serem informados que se tratava de uma contação, pergun-
taram onde estaria o livro da história, uma vez que viram apenas o
computador nas mãos das contadoras. Essa constatação é relevan-
te, pois as discussões oriundas dessa observação permitiram a ex-
posição e compreensão de argumentos que versam que é possível
desfrutar da literatura em mídias impressas ou digitais, envolven-
do assim, outros letramentos (digital, literário e inclusivo).
A segunda atividade parte da observação de cena realiza-
da por uma egressa sobre a participação dos filhos, na qualidade
de expectadores, em uma live junina promovida por uma escola
da rede estadual da Paraíba, situada em Cajazeiras/PB. Nesse mo-
mento, o letramento inclusivo ocorreu a partir da identificação da
intérprete da Libras na janela da interpretação e da constatação
de que isso era destinado a acessibilizar a participação do surdo.
Assim, a experiência reforça que é necessário o contato constante
com gêneros, em mídias impressas ou digitais, que naturalizem
essas práticas de uso da linguagem, de forma a torná-las mais pró-
ximas das atividades cotidianas das pessoas.
A live proporcionou o contato com traduções de outros
gêneros textuais, como entrevista, propaganda, relato, música e o
entendimento que todos podem ser vertidos para a Libras. Além
disso, puderam observar a participação, em Libras, de pessoas
surdas no momento dos depoimentos.
Trata-se de um evento de letramento oferecido por uma
instituição educacional, mas que enseja discussões no âmbito
da família. No fato apresentado, a mãe das crianças que assis-
tiram à live, por estudar sobre acessibilidade, pode realizar es-

LETRAMENTO INCLUSIVO: ATIVIDADES ENVOLVENDO EGRESSOS DA UFCG


146

clarecimentos sobre o surdo, a Libras e a acessibilidade nessa


atividade digital.
A terceira atividade corresponde a uma ação proposta em
2020, por uma egressa do curso de Letras, do CFP/UFCG, profes-
sora da educação básica de outra escola particular de Cajazeiras
e que, ao desenvolver um projeto sobre Poesia, buscou inserir dis-
cussões que tratam da produção desse gênero literário/textual em
Libras.
Notamos, na Figura 2, o cartaz digital divulgado nas redes
sociais da escola e pelas educadoras que participaram da ação,
uma prática dos letramentos diários da escola, ressignificada nas
mídias digitais, e que contribuem com o letramento inclusivo. Ao
lado, na Figura 3, identificamos a realização da atividade junto a
turma.

Figura 2 – Cartaz de divulgação   Figura 3 – Imagem da


declamação do poema

Fonte: Arquivo pessoal.    Fonte: Arquivo pessoal.

A vivência foi organizada em seis momentos: 1) apresenta-


ção pessoal da professora de Libras; 2) explicações sobre a Libras;
3) preparação para a declamação do texto/poema com a predição
da temática e ensino de alguns sinais que apareceriam no poema
sinalizado; 4) declamação/apreciação do poema; 5) discussão so-

EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA • ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA


THAÍSE DUARTE TEMOTEO GONÇALVES • APARECIDA CARNEIRO PIRES
147

bre as significações percebidas pelos alunos; 6) e relação do tema


com as vivências cotidianas dos estudantes. Os passos três a seis se
repetiram a cada contação.
Para esse momento, foram selecionados três poemas dispo-
níveis no site de compartilhamento de vídeos – YouTube – denomi-
nados, respectivamente: Mundos5, sinalizado por Lyvia Vilas Boas;
Amor à primeira vista6, declamado por Ananda Elias; e Estranhos
do mar7, de Renata Freitas.
Essa constatação tem base na informação abaixo da foto que
indica que as poesias são em Libras e, portanto, a própria divulga-
ção desse cartaz nas redes sociais pode despertar a reflexão de que
a Libras é uma língua completa e complexa capaz de produzir múl-
tiplos gêneros e expressar quaisquer conhecimentos (GESSER,
2009). Assim, a língua utilizada pelos surdos deve ser incluída nas
atividades educativas para permitir a reflexão da participação dos
surdos nos momentos mediados pela linguagem.
Esses são conhecimentos sobre a Libras que emergem dos
letramentos diários, definidos por Sato, Magalhães e Batista Jú-
nior (2012) como usos da leitura e da escrita que integram as ati-
vidades cotidianas das pessoas considerando os contextos de uso.
No cartaz digital, os letramentos informacional e inclusivo per-
passam a composição do gênero textual/literário e as informações
nele contidas, de modo a ampliar as possibilidades de leitura e os
conhecimentos sobre a Libras e suas funcionalidades.
Em decorrência dessa atividade, surgiu o convite à partici-
pação de outra atividade, a interpretação de uma live promovida
pela mesma escola, em 2020, para celebrar o Dia das Crianças (FI-
GURA 4). Apesar de não haverem crianças surdas matriculadas
5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=her93sHy7L0 Acesso em: 29
out. 2020.
6 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QKl6Kz0JLmY Acesso em: 29
out. 2020.
7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FpkgT9RvMNo Acesso em: 29
out. 2020.

LETRAMENTO INCLUSIVO: ATIVIDADES ENVOLVENDO EGRESSOS DA UFCG


148

nessa instituição de ensino, houve a preocupação em promover a


acessibilidade tendo em vista que a ação foi promovida em mídias
digitais (letramento inclusivo).

Figura 4 – Live de dia das crianças com Libras

Fonte: Colégio Nossa Senhora de Lourdes (2020)8

A live apresentou a história Romeu e Julieta, de Ruth Rocha,


encenada pelos docentes, sorteios, mensagens, orações, informa-
ções, brincadeiras e outras atividades que se tornam acessíveis à
criança surda que acessa o canal, permitindo o contato com dife-
rentes gêneros textuais, além de promover a reflexão social sobre
a acessibilidade.
Diante das situações relatadas, constatamos que se trata de
vivências, ainda pontuais e voltadas para os anos iniciais da edu-
cação básica. Notamos também que as experiências foram cres-
centes no período do Ensino Remoto, ou seja, atividades síncronas
e assíncronas, não presenciais, que ocorrem nas mídias digitais
(BRASIL, 2020), mas que desejamos que tenham continuidade no
retorno das aulas presenciais.
8 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OPzIP-CiEuM Acesso em: 30
out. 2020.

EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA • ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA


THAÍSE DUARTE TEMOTEO GONÇALVES • APARECIDA CARNEIRO PIRES
149

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Situações como as apresentadas, mostram a vivência dos


mais diversos letramentos necessários à sociedade, em especial
o inclusivo, para isso, alunas egressas colocam em prática o que
foi estudado na graduação, mostrando assim, que o conhecimento
acadêmico não se limita à universidade, mas pode e deve ser esten-
dido à sociedade em geral.
Diante do exposto, consideramos que, apesar de se cons-
tituírem em atividades pontuais, esses momentos se configuram
como um passo para a inserção de Libras nas atividades escolares
e nas discussões realizadas no âmbito familiar que são relevantes
para a promoção da sociedade inclusiva. Isso porque envolve co-
nhecimentos internalizados a partir das experiências e que po-
dem contribuir para que, desde pequenos, os estudantes reflitam
sobre as características e necessidades dos interlocutores para a
interação e para a participação nos eventos de letramento.
Nesse sentido, acreditamos que essas práticas de letramen-
to inclusivo devem ter continuidade nas práticas educacionais
formais e informais, realizadas em atividades desenvolvidas de
maneira presencial ou mediada pelas tecnologias, de maneira a
visibilizar e discutir usos da leitura e da escrita que permitam o
acesso e a participação de pessoas surdas.

REFERÊNCIAS

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sobre inclusão de alunas e alunos surdos no ensino regular: identi-
dades e letramentos. 2008. Dissertação (Mestrado em Linguística)
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LETRAMENTO INCLUSIVO: ATIVIDADES ENVOLVENDO EGRESSOS DA UFCG


150

BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Lín-


gua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências. Disponí-
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tituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquan-
to durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus – COVID-19.
Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/–/portaria-n-
-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376 Acesso em: 24 out. 2020.
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EGLE KATARINNE SOUZA DA SILVA • ADRIANA MOREIRA DE SOUZA CORRÊA


THAÍSE DUARTE TEMOTEO GONÇALVES • APARECIDA CARNEIRO PIRES
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LETRAMENTO INCLUSIVO: ATIVIDADES ENVOLVENDO EGRESSOS DA UFCG


152

PSICOMOTRICIDADE E EDUCAÇÃO:
CONSTRUINDO NOVOS OLHARES
Mailane Vinhas de Souza Bonfim1

RESUMO
O presente artigo descreve a contribuição da psicomotricidade
para a área da pedagogia, tendo por objetivo, fazer algumas considerações
sobre o conceito e características da psicomotricidade, e também, conhe-
cer as relações entre psicomotricidade e educação, construídas pelos alu-
nos do ensino superior de uma Instituição privada do município de Salva-
dor-BA. Nesse sentido, a abordagem psicomotora permitirá compreender
como a psicomotricidade, enquanto ciência que busca conceber o homem
através de seu corpo e suas interações, pode contribuir com a educação
de crianças em seu processo escolar. O caminho metodológico percorri-
do corresponde a uma abordagem qualitativa, fazendo uso de conceitos
importantes para a pesquisa como: psicomotricidade; elementos de base
psicomotora; e etapas do desenvolvimento psicomotor. Complementando
a pesquisa, buscou-se, através da aplicação de questionários, conhecer as
percepções construídas pelos discentes. O estudo mostrou que os discen-
tes compreendem a psicomotricidade e a educação como um binômio ne-
cessário no processo escolar das crianças, estabelecendo relações entre
brincadeiras/recursos/práticas e componentes psicomotores básicos.
Palavras-chave: Psicomotricidade; Educação.

ABSTRACT
This article describes the contribution of psychomotricity to an
area of pedagogy, aiming to make some considerations about the concept
and characteristics of psychomotricity, and also, to know the relationships
between psychomotricity and education, built by higher education
students from a private institution of the municipality of Salvador-BA.
1 Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia- UFBA, e
Pedagoga, licenciada pela Universidade do Estado da Bahia- UNEB.
Atualmente é docente nos cursos de Pedagogia e Psicologia do Centro
Universitário Maurício de Nassau- Uninassau, Salvador- BA.
Contato: mailanebonfim@gmail.com

MAILANE VINHAS DE SOUZA BONFIM


153

In this sense, a psychomotor approach will allow us to understand how


psychomotricity, while the science that seeks to conceive man through
his body and his interactions, can contribute to the education of children
in their school process. The methodological path followed corresponds
to a qualitative approach, making use of important concepts for research
such as: psychomotricity; psychomotor based elements; and stages of
psychomotor development. Complementing the research, it was sought,
through the application of questionnaires, to know the perceptions
constructed by the students. The study revealed that students
understand psychomotricity and education as a necessary binomial in
the children’s school process, establishing relationships between games
/ resources / practices and basic psychomotor components.
Keywords: Psychomotricity; Education.

INTRODUÇÃO

Este estudo versa sobre o entendimento dos discentes do


curso de pedagogia de uma Instituição privada do município de
Salvador-BA, sobre aspectos inerentes a psicomotricidade e sua
relação com a educação. A intencionalidade de abordar essa temá-
tica deveu-se ao fato da autora deste artigo (também docente da
disciplina de psicomotricidade), perceber que a prática da educa-
ção psicomotora está se consolidando nos processos brasileiros de
escolarização, sendo utilizada de forma preventiva, favorecendo
o desenvolvimento global dos indivíduos, sejam eles crianças na
Educação Infantil ou na primeira etapa do Ensino Fundamental.
Autores como Pereira (2018) estabelece uma relação entre
o avanço tecnológico e o aumento da violência como fatores de-
terminantes para que as crianças fiquem mais tempo em casa,
em frente à televisão, jogando videogame, ou no computador, não
vivendo corporalmente o mundo. Nesse sentido, aponta para a ne-
cessidade de profissionais da educação estarem atentos a possíveis
dificuldades de aprendizagem que possam surgir, em detrimento
de uma ausência da estimulação das bases psicomotoras.

PSICOMOTRICIDADE E EDUCAÇÃO: CONSTRUINDO NOVOS OLHARES


154

Daí a importância de se compreender o que é psicomotri-


cidade, seus elementos de base, como podem ser trabalhados na
escola e como esta ciência pode estar associada à educação. A psi-
comotricidade envolve toda a ação realizada pelo indivíduo, que
represente suas necessidades e permita sua relação com os de-
mais e com o mundo.
Considerando essa realidade, e analisando-a à luz do mo-
mento pandêmico atual em que o mundo está passando, essa pre-
ocupação se tornou mais latente devido aos protocolos de preven-
ção contra a covid-192, dentre os quais estão, evitar aglomeração e
consequentemente a interação presencial entre as pessoas, o que
acarretou suspensão das aulas nos ambientes físicos escolares.
Pensando no momento do retorno às escolas, e na necessi-
dade de adequá-las à realidade social e a realidade das crianças,
enquanto docente da disciplina de psicomotricidade percebo a
importância da retomada de conceitos e práticas psicomotoras,
diante das poucas estimulações vivenciadas por muitas crianças.
Por se tratar de alunos concluintes do curso de pedagogia e
que estarão, possivelmente, com essas crianças no momento pós
pandemia, me inquietei quanto aos conhecimentos apreendidos e
quanto as construções significativas realizadas acerca dos conteú-
dos da disciplina.
A partir destas considerações, foi construído o seguinte
questionamento norteador da pesquisa: De que maneira os dis-
centes concluintes do curso de pedagogia compreendem a relação
entre psicomotricidade e educação? Nesse sentido, este estudo ca-
minha na direção de conhecer as relações entre psicomotricidade
e educação construídas pelos discentes do ensino superior de uma
Instituição privada do município de Salvador-BA.

2 A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus, denominado SARS-CoV-2,


que apresenta um espectro clínico variando de infecções assintomáticas a qua-
dros graves. Para maiores informações acessar o site: https://coronavirus.saude.
gov.br/sobre-a-doenca

MAILANE VINHAS DE SOUZA BONFIM


155

O percurso metodológico desenvolvido compreende uma


análise qualitativa, tendo como suporte, estudos teóricos desen-
volvidos acerca do tema, tendo como principais autores: Fonseca,
2012; Oliveira (2014); Alves (2012); Ramalho (2014). Com o intuito
de conhecer o que os alunos pensam sobre a relação entre psico-
motricidade e educação, foi aplicado um questionário semi estru-
turado a 10 alunos do 8º semestre do curso de pedagogia.
O critério de seleção dos alunos para aplicação do questio-
nário foi a disponibilidade para responder e acessibilidade. A es-
colha do último semestre foi intencional, buscando verificar o que
de fato foi apreendido pelos mesmos durante o curso, uma vez que
esta disciplina é ofertada no 4º semestre, ou seja, no segundo ano
da graduação3.
A organização deste artigo compreende quatro etapas: a
primeira refere-se a esta introdução; a segunda, intitulada: “Co-
nhecendo a psicomotricidade”, apresenta algumas reflexões teóri-
cas pertinentes ao estudo; a terceira etapa refere-se a “Psicomotri-
cidade e Educação: percepções dos alunos”, na qual são relatados o
entendimento dos mesmos em relação a psicomotricidade e edu-
cação; e por último, encontra-se as “Considerações Finais”.

CONHECENDO A PSICOMOTRICIDADE

Para compreendermos o lugar que a psicomotricidade


ocupa na área da educação, é preciso entendê-la como uma ciên-
cia que busca compreender o indivíduo a partir das suas relações
corporais consigo e com os outros, numa proposta integrativa das
dimensões cognitivas, afetivas e motoras.
De acordo com a Associação Brasileira de Psicomotricida-
de- ABP, a “Psicomotricidade é um termo empregado para uma
concepção de movimento organizado e integrado, em função das

3 Para estes alunos, a disciplina foi oferecida no segundo semestre do ano de 2018.

PSICOMOTRICIDADE E EDUCAÇÃO: CONSTRUINDO NOVOS OLHARES


156

experiências vividas pelo sujeito cuja ação é resultante de sua in-


dividualidade, sua linguagem e sua socialização.” Portanto, é uma
ciência que ajuda a criança tornar coerente os seus movimentos e
percepções, compreendidos como sua linguagem gestual.
Contribuindo com entendimento sobre psicomotricidade,
Fonseca (2008, p. 1) afirma que a Psicomotricidade pode ser con-
ceituada como “o campo transdisciplinar que estuda e investiga as
relações e as influências, recíprocas e sistêmicas, entre o psiquis-
mo e a motricidade”.
A compreensão desse contexto, nos induz a perceber que a
função psicomotora não pode ser estudada senão como uma uni-
dade onde se integram a organização espaço temporal; o equilí-
brio; a construção da imagem e esquema corporais; a lateralidade;
as motricidades fina e grossa; coordenação óculo manual e pedal;
estes, considerados como elementos básicos da psicomotricidade
(FONSECA, 2012).
Esses elementos, são responsáveis pela preensão dos ob-
jetos; utilização de ambos os lados do corpo (direito e esquerdo);
compreensão das partes do corpo (cabeça, braço, perna...); movi-
mentos como andar, saltar, rolar, correr; enfim, são responsáveis
pela realização de movimentos cotidianos como escovar os dentes,
vestir uma roupa, subir uma escada, pentear os cabelos, dentre
outros.
Corroborando com esse pensamento, Ramalho (2014, p.
253) afirma que: “Os objetivos da psicomotricidade visam auxiliar
a criança no seu desenvolvimento motor, sensório-motor, percep-
tos-motor, na sua relação com o meio e consigo mesma, buscando
portanto, atingir a aprendizagem, o conhecimento, a criatividade
e a interação afetivo social”.
Para cada etapa do seu desenvolvimento, a criança preci-
sa desenvolver habilidades que deem conta de sua relação com
ela e com o mundo. Nesse sentido, é fundamental perceber que o
desenvolvimento psicomotor começa a ser desenvolvido desde o

MAILANE VINHAS DE SOUZA BONFIM


157

momento de seu nascimento e vai se aprimorando de forma gra-


dativa, de acordo com as oportunidades que a criança possui em
explorar o mundo em que vive.
Essas etapas, se caracterizam por aprendizagens indivi-
duais, considerando o desenvolvimento maturacional da criança
e sua relação com a idade cronológica. De acordo com Oliveira
(2014), essas etapas são conhecidas como: corpo vivido (até os 3
anos de idade); corpo percebido ou descoberto (3 a 7 anos) e corpo
representado (7 a 12 anos).
Na etapa do corpo vivido, a criança aprende a manipular ob-
jetos e a andar. É a fase denominada de vivência corporal. A crian-
ça começa a explorar o mundo que a cerca, ampliando seu espaço
de atuação, e concomitantemente, vai desenvolvendo sua preen-
são e coordenação oculomanual, adaptando-se a novas situações
cotidianas e desenvolvimento sua função de ajustamento ao meio.
Na etapa do corpo percebido, a criança já consegue fazer
ajustes importantes como discernir entre o leve e o pesado, além
de aperfeiçoar e refinar movimentos, adquirindo uma melhor co-
ordenação ampla e fina dentro de um espaço específico. Um marco
importante dessa fase, refere-se ao fato de que a criança “por meio
do seu eixo corporal chega à representação e à assimilação de con-
ceitos tais como embaixo, acima, direita, esquerda” (OLIVEIRA,
2014, p. 103).
Na última etapa, do corpo representado, verifica-se um
avanço no entendimento e na organização de seu esquema corpo-
ral. A criança consegue desenhar sentimentos e emoções de seus
personagens; consegue utilizar outros pontos de referência exte-
riores a ela no espaço e não somente o seu corpo; e vai adquirindo
noções de reversibilidade.
Conhecer essas etapas do desenvolvimento psicomotor nos
permite entender o que cada criança pode fazer individualmente
e coletivamente, sempre respeitando o ritmo de desenvolvimento
individual e as vivências que cada uma apresenta. Como afirma

PSICOMOTRICIDADE E EDUCAÇÃO: CONSTRUINDO NOVOS OLHARES


158

Pereira (2018, p. 20) “Cada criança é única. O desenvolvimento é


comum a todas as crianças, porém, as diferenças de caráter, as
possibilidades físicas, as vivências, o meio e o ambiente familiar
evidenciam que, com a mesma idade, crianças perfeitamente
“normais” comportam-se de maneiras diferentes”.
Corroborando com esse lugar que a individualidade precisa
ocupar nas relações psicomotoras, Alves (2012, p. 18) afirma que
“cada elemento da motricidade deve ser considerado no conjunto
e na história que lhe dá significação. Por isso mesmo, a Psicomo-
tricidade deve ser compreendida em sua integridade, partindo de
fenômeno que envolvem o desejar e o querer”.
Ainda de acordo com as contribuições de Alves (2012, p. 19),
cabe destacar que:
O mundo psicomotor surge também na escola. Por exem-
plo, o material “corda” libera várias expressões no contato
dual, surgindo o afeto e o prazer. Na sala de aula, o aluno
busca um espaço para o seu corpo, vivendo intensamente
cada momento. Se inibido de imediato, haverá bloqueio
psicomotor, levando-o ao isolamento, e ele passa a se tor-
nar “observador do mundo...”.

Daí a importância do entendimento da relação entre psico-


motricidade e educação. Os professores precisam compreender
que a função motora, o desenvolvimento intelectual (função psí-
quica) e o desenvolvimento afetivo estão intimamente relaciona-
dos ao ser da criança. O corpo e a aprendizagem caminham juntos
e é pelo corpo que a criança entra em contato com o conhecimento.

PSICOMOTRICIDADE E EDUCAÇÃO: PERCEPÇÕES


DOS ALUNOS

Antes e apresentar a percepção dos alunos do curso de


pedagogia sobre a relação existente entre a psicomotricidade e a
educação, cabe esclarecer que, foram aplicados questionários a

MAILANE VINHAS DE SOUZA BONFIM


159

10 alunos concluintes4 do curso no período de 05 a 10 de outubro


de 2020. As questões versaram sobre: o que você entende por psi-
comotricidade?; Você conhece os elementos que compõem a base
psicomotora de um indivíduo? Se, sim, quais?; Você acha que a psi-
comotricidade pode ser utilizada na educação? Justifique sua res-
posta. Também foi deixado um espaço aberto para que os sujeitos
da pesquisa pudessem apresentar outros conhecimentos acerca
do tema.
Sobre o entendimento da psicomotricidade, os alunos, em
sua maioria, disseram que a psicomotricidade refere-se às rela-
ções entre movimento, cognição e afeto.
A1- A psicomotricidade considera o movimento motor e a
forma como o sujeito pensa e vive;
A2- A psicomotricidade trata da tríade entre emoção, mo-
vimentos motores e a forma como o sujeito pensa.
A3- Não tem como pensar em psicomotricidade sem con-
siderar que todo movimento que a pessoa faz está integra-
do. É preciso considerar o aspecto subjetivo, o motor, o
pensamento e o afeto.

Essas respostas servem para ilustrar o entendimento de 8


dos entrevistados que afirmam compreender a psicomotricidade
próximo ao conceito apresentado pela ABP (2020): “Psicomotrici-
dade é um termo empregado para uma concepção de movimento
organizado e integrado, em função das experiências vividas pelo
sujeito cuja ação é resultante de sua individualidade, sua lingua-
gem e sua socialização”.
Os 2 alunos restantes, disseram que a psicomotricidade re-
fere-se apenas ao movimento. Sobre esse aspecto, Ferreira, (2011,
p. 22) afirma que, analisar a psicomotricidade relacionando-a ape-
nas ao ato motor é um equívoco e representa um “reducionismo
que distorce a ideia central de Psicomotricidade”.

4 Os alunos foram identificados de A1...A10.

PSICOMOTRICIDADE E EDUCAÇÃO: CONSTRUINDO NOVOS OLHARES


160

Quando perguntado se conhecem os elementos básicos


da psicomotricidade, percebeu-se em 100% dos entrevistados os
conhecimentos de alguns elementos, mas, identificou-se dificul-
dades quanto a definição dos elementos citados. Os alunos disse-
ram lateralidade; coordenação motora fina e ampla; construção da
imagem corporal; estruturação temporal e espacial.
Com relação a esses conceitos, Oliveira (2014); Pereira
(2018) e Fonseca (2012); Alves (2012) afirmam que a lateralidade
pode ser compreendida como a utilização dos dois lados do corpo
do sujeito e está relacionada a precisão, força, habilidade e velo-
cidade dos movimentos. Quanto às coordenações motoras fina e
ampla, refere-se a primeira, a capacidade de coordenar os movi-
mentos para realização de tarefas complexas utilizando pequenos
grupos musculares. Já a coordenação motora ampla, é a coorde-
nação existente entre os grandes agrupamentos musculares como
braços e pernas, por exemplo.
De acordo com os mesmos autores, a construção da imagem
corporal, diz respeito aos sentimentos do indivíduo em relação a
estrutura de seu corpo, como ele se vê (imagem subjetiva de si). A
estruturação temporal permite a compreensão e execução de um
determinado movimento no tempo, distinguindo-o de rápido e
lento, o sucessivo e o simultâneo.
Reconhecendo a relação entre psicomotricidade e educa-
ção, Alves (2012, p. 85) afirma que:
O desenvolvimento da estruturação temporal na criança
é importante, pois, por intermédio do ritmo é que ela terá
uma boa orientação no domínio do papel, construindo
palavras de forma ordenada e sucessiva na utilização das
letras, uma atrás das outras, obedecendo a um certo ritmo
e dentro de um determinado tempo.

Dialogando com Alves (2012) quanto a importância da psi-


comotricidade em ambientes escolares, Fontana (2012, p. 10) diz
que:

MAILANE VINHAS DE SOUZA BONFIM


161

a Educação Psicomotora deve ser considerada como uma


educação de base na Educação Infantil e séries iniciais. Ela
condiciona o processo de alfabetização, leva a criança a to-
mar consciência de seu corpo, da lateralidade, a situar-se
no espaço, a dominar seu tempo, a adquirir habitualmente
a coordenação de seus gestos e movimentos. A Psicomotri-
cidade não é apenas uma prática preventiva, mas educati-
va, que contribui na aquisição da autonomia para a apren-
dizagem, facilitando assim o processo de alfabetização nas
escolas.

Não menos importante, o desenvolvimento da estruturação


espacial busca fazer com que a criança se organize no espaço, es-
tabelecendo relações entre as coisas, percebendo a posição do seu
próprio corpo e se orientado no mundo que a rodeia. Corroboran-
do com esse contexto, Oliveira (2014, p. 75) diz que pela “interiori-
zação do seu corpo apreende o espaço que a cerca, trabalha com a
representação deste espaço, prevendo e antecipando suas ações. A
interiorização garante a representação mental de seu corpo e dos
objetos”.
Apesar dos discentes não terem apresentado uma definição
dos elementos de base destacados por eles, percebeu-se, que eles
conseguem visualizar essas habilidades (lateralidade, coordena-
ção motora fina e ampla, estruturação corporal, dentre outros)
em jogos e brincadeiras e conseguem estabelecer relações entre
psicomotricidade e educação:
A3- Acredito que essa relação é fundamental porque quan-
do pensamos na educação infantil, por exemplo, preci-
samos trabalhar o desenvolvimento integral da criança
e para isso, o uso de recursos como bolas, cordas, caixas,
formas geométricas, potencializam o desenvolvimento de
algumas dessas habilidades.
A6- Eu acho que não tem como pensar em educação sem
pensar em psicomotricidade. A criança precisa desses es-
tímulos, inclusive está amparado na BNCC quando afirma

PSICOMOTRICIDADE E EDUCAÇÃO: CONSTRUINDO NOVOS OLHARES


162

dentre os seus direitos de aprendizagem: conviver, brin-


car, participar, explorar, expressar e conhecer-se.
A9- (...) atividades em bancos de areia, por exemplo, per-
mite o desenvolvimento das sensações, de cheio e vazio, de
muito e pouco e todas essas construções perpassam pelo
conhecimento da psicomotricidade.
A10-quando pensamos sala de psicomotricidade no am-
biente escolar, estamos pensando num espaço prepara-
do para as experiências do alunos em recursos que eles
podem subir, descer, passar por dentro, esperar a vez do
colega e por aí vai... tudo isso entendo que trabalha o co-
nhecimento do próprio corpo, sua relação com os objetos
e com os outros colegas, o tempo de espera, enfim isso pra
mim é estruturação temporal, espacial, coordenação glo-
bal e lateralidade.

Além desses exemplos, outros foram citados, demons-


trando que as alunas percebem a relação entre psicomotricida-
de e educação: na brincadeira não estruturada numa casinha de
brinquedo; na atividade chamada de cama de gato; no recorte de
papel; no uso de pinceis, lápis e dedos; na manipulação de objetos
de diversas cores, texturas e tamanhos; objetos de encaixe e de-
sencaixe; na brincadeira de morto/vivo; nas músicas cantadas e
dançadas; nas mímicas; dentre outras. As respostas obtidas pelos
sujeitos da pesquisa encontram respaldo nos constructos de Alves
(2012, p. 107), segundo a autora, “é bom sinalizar e observar a im-
portância do jogo, pois, é por meio dele que a criança também po-
derá se desenvolver, ele é um meio de exploração e aprendizagem,
não é somente um brinquedo”.
A Aluna A9, ao citar a Base Nacional Comum Curricular
para a Educação Infantil, mostra que está atenta às legislações
que permeiam a estruturação curricular educacional, pois, cons-
ta também além dos direitos das crianças (citados pela aluna), os
campos de experiências que devem ser trabalhados na educação
infantil. São eles: O Eu, o Outro e o Nós; Corpo, gestos, movimen-

MAILANE VINHAS DE SOUZA BONFIM


163

tos; Traços, sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e ima-


ginação; Espaço, tempo, quantidades, relações e transformações
(BRASIL, 2017).
A verificação dessas respostas, mostram que os sujeitos da
pesquisa percebem a psicomotricidade como fundamental para
que haja, por meio do desenvolvimento psicomotor, consciência
dos movimentos corporais integrados e expressados com a emo-
ção. Nesse sentido, cabe-nos reportar a Toledo (2011, p.145) quan-
do nos esclarece que “a prática psicomotora na educação é para a
criança um espaço acolhedor e seguro no qual ela poderá experi-
mentar o prazer de movimentar-se no qual viverá sua sensório-
-motricidade e será ouvida e reconhecida em sua maneira singular
de ser e estar no mundo”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na revisão bibliográfica selecionada e concomi-


tantemente direcionada à abordagem metodológica proposta, pô-
de-se inferir, pelas respostas apresentadas, que a percepção dos
discentes de pedagogia acerca da psicomotricidade perpassa pela
interseção das dimensões motoras, cognitivas, afetivas e sociais
do sujeito, entendendo-a como a ciência que estuda os movimen-
tos corporais de forma integrada.
Essa integração contempla os elementos de base psicomo-
toras como lateralidade, coordenação motora fina, coordenação
motora grossa, estruturação espacial e temporal, imagem corpo-
ral e outros que não foram citados pelos discentes como equilí-
brio, tonicidade, coordenação óculo manual e pedal.
Este percurso fez com que os discentes retomassem ativi-
dades com jogos e brincadeiras como potencializadoras dessas ha-
bilidades, e compreendessem que o espaço pedagógico é também,
um espaço psicomotor. Sendo assim, essa pesquisa mostrou que
os discentes do curso de pedagogia percebem que a prática psico-

PSICOMOTRICIDADE E EDUCAÇÃO: CONSTRUINDO NOVOS OLHARES


164

motora em ambientes escolares possibilita o desenvolvimento de


aquisições importantes, quando a criança é levada a explorar seu
movimento por meio de diferentes dinâmicas, ritmos e atividades,
para posteriormente usar seu corpo na expressão de sentimentos
e emoções. A criança tem a possibilidade de descobrir seus limites
e potencialidades corporais, mediante explorações cada vez mais
complexas.
Percebe-se desse modo que as discussões e práticas reali-
zadas durante a disciplina de psicomotricidade e retomadas em
outras disciplinas ao longo do curso de graduação, tem nos convi-
dado (docentes e discentes) a pensar em práticas educativas cada
vez mais potencializadoras, de experiências vividas pelos sujeitos,
pelos corpos, de acordo com as múltiplas condições do meio am-
biente físico e social.

REFERÊNCIAS

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166

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A


ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO
DE ENSINO E APRENDIZAGEM DOS
ALUNOS DO 3o CICLO DO ENSINO
BÁSICO
Elsa Maria Frederico Livo Ozobra1

RESUMO
O presente artigo, analisa o impacto da relação entre a escola e
a família no processo de ensino e aprendizagem dos alunos do 3º ciclo
do ensino Básico, a metodologia usada nesta abordagem foi análise qua-
litativa no estudo efectuado com 57 indivíduos, a colecta de dados foi
aplicado entrevista a 2 membros da direcção da escola, um questionário
a 50 famílias/ encarregados de educação e 05 professores. Ainda nesse
trabalho foi usada a técnica de observação que permitiu verificar a parti-
cipação das famílias ou encarregados de educação no processo de ensino
aprendizagem. Os resultados dessa pesquisa, dão indicação de que, há
fraca relação entre a Escola e as famílias do Povoado de Nhapoza-Muan-
za, no entanto, a família desconhece do seu papel face a educação dos
seus filhos, mesmo quando é solicitada pouca família aparece na escola,
muito menos no acompanhamento diário dos seus filhos, sendo assim, a
direcção da EPC de Nhapuzo-Muanza tem envidado esforço na matéria
de promoção e participação da família na escola, através de reuniões que
são realizadas na própria escola.
Palavras – Chave: Relação, Ensino Aprendizagem, Escola, e Família.

ABSTRACT
This article analyzes the impact of the relationship between
school and family in the teaching and learning process of students in the

1 Elsa Maria Frederico Livo Ozobra, doutoranda na Universidade Federal Fluminen-


se (UFF) – Brasil, docente da Universidade Licungo Extenção da Beira- Moçambi-
que. Pesquisadora do CEDECA-UL. E-mail: elsa.ozobra@yahoo.com.br

ELSA MARIA FREDERICO LIVO OZOBRA


167

3rd cycle of basic education, the methodology used in this approach was
qualitative analysis in the study conducted with 57 individuals, the data
collection was applied to 2 members of the school board, a questionnaire
to 50 families/ parents and 05 teachers. Also in this work, the observation
technique was used, which allowed verifying the participation of
families or guardians in the learning teaching process. The results of this
research indicate that there is a weak relationship between the School
and the families of the village of Nhapoza-Muanza, however, the family
is unaware of its role in relation to the education of their children, even
when little family is requested appears in school, much less in the daily
monitoring of their children, so the management of the EPC of Nhapuzo-
Muanza has made efforts in the matter of promotion and participation of
the family at school, through meetings that are held at the school itself.
Keywords–Key: Relationship, Teaching Learning, School, and
Family.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objectivo analisar o impacto da


relação entre a escola e a família no processo de ensino e aprendi-
zagem dos alunos do 3º ciclo do ensino Básico. Para efectivação do
trabalho recorreu-se a método bibliográfico, técnicas de observa-
ção directa, inquérito e entrevista.
A relação entre a família e escola no processo de ensino e
aprendizagem é muito importante no desenvolvimento pessoal e
social das crianças e dos adolescentes é imprescindível para o de-
senvolvimento afectivo dos filhos.
É muito importante fazer com que os pais e encarregados
de educação se sintam responsabilizados pelo processo de ensino
e aprendizagem dos seus filhos porque são os primeiros e princi-
pais educadoras, uma vez que no seio familiar constitui o primei-
ro espaço educativo. A escolha do presente tema teve o intuito de
querer perceber da relação entre escola e a família e sua interfe-
rência no Processo de Ensino Aprendizagem.

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM


DOS ALUNOS DO 3o CICLO DO ENSINO BÁSICO
168

A escola e a família estão frequentemente em concorrência


e em conflito, facto que tem levado, muitas vezes, por parte das or-
ganizações escolares á marginalização da família. Obviamente, a
escola e a família devem cultivar relações saudáveis de forma que
os pais e professores possam assumir como parceiros, numa acção
solidária e de inter-ajuda. Face a isso colocasse a seguinte questão:
Que impacto tem a relação entre a escola e a família no processo de
ensino e aprendizagem dos Alunos do 3º ciclo do ensino Básico?

QUADRO TEÓRICO

Escola
De acordo com Lakato (2006:310), escola é um estabeleci-
mento ordenado pela autoridade reconhecida da nação, cujo aces-
so é para todo o povo, onde o Estado é gestor em sua plenitude.
Segundo DIAS (1993:90), diz que:
A escola é um sistema complexo de comportamentos hu-
manos organizados de modo a responder a certas funções
no seio da estrutura social graças a currículos, a diplomas
diversos, a uma excessiva contracção na avaliação sumati-
va e à criação de estruturas promotoras da diferenciação
(distância) a instituição escolar desenvolve entropias ne-
gativas permitindo mais facilmente a definição de papeis
e status claramente diferenciados que serão o garante de
competências e atribuições de pertença.

Família
Segundo Diogo (1998), diz que, a família é a primeira etapa
de socialização de criança e como tal ela constitui a primeira es-
cola para ela que lhe fornece as bases sólidas para a construção da
sua vida académica, social e cultural. Para Diogo (1998:37):
A família, espaço educativo por excelência, é vulgarmen-
te considerada o núcleo central do desenvolvimento mo-
ral, cognitivo e afectivo, no qual se “criam” e “educam” as

ELSA MARIA FREDERICO LIVO OZOBRA


169

crianças, ao proporcionar os contextos educativos indis-


pensáveis para cimentar a tarefa de construção de uma
existência própria. Lugar em que as pessoas se encontram
e convivem, a família é também o espaço histórico e sim-
bólico do qual se desenvolve a divisão do trabalho, dos
espaços, das competências, dos valores, dos destinos pes-
soais de homens e mulheres. A família revela-se, portanto,
um espaço privilegiado de construção social da realidade
em que, através das relações entre os seus membros, os
factos do quotidiano individual recebem o seu significado.

Ensino
Na visão de LIBÂNEO (1994):
Ensino é a actividade que tem por finalidade que o outro
obtenha o conhecimento. Para que se tenha um ensino de
forma que realmente agregue valor é preciso que o pro-
fessor como sendo um transmissor de conhecimentos se
utilize de métodos e técnicas adequadas que tenham base
não apenas no contexto geral como o local, assim a neces-
sidade básica do aluno será encarada como uma ponte
para o ensino e não como um obstáculo.

O ensino é uma forma sistemática de transmissão de co-


nhecimentos utilizada pelos humanos para instruir e educar seus
semelhantes, geralmente em locais conhecidos como escolas. O
ensino pode ser praticado de diferentes formas. As principais são:
o ensino formal, o ensino informal e o ensino não formal1.

Aprendizagem
Segundo LIBÂNEO (1994), aprendizagem é o processo de as-
similação de qualquer forma de conhecimento, desde o mais sim-
ples onde a criança aprende a manipular os brinquedos, aprende a
fazer contas, lidar com as coisas, nadar, andar de bicicleta etc., até
processos mais complexos onde uma pessoa aprende a escolher
uma profissão, lidar com as outras. Dessa forma as pessoas estão
sempre aprendendo.

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM


DOS ALUNOS DO 3o CICLO DO ENSINO BÁSICO
170

Aprendizagemé o processo pelo qual as competências, ha-


bilidades, conhecimentos, comportamento ou valores são adqui-
ridos ou modificados, como resultado de estudo, experiência, for-
mação, raciocínio e observação.
Este processo pode ser analisado a partir de diferentes
perspectivas, de forma que há diferentes teorias de aprendiza-
gem. Aprendizagem é uma das funções mentais mais importantes
em humanos e animais e também pode ser aplicada a sistemas
­artificiais.

Interacção entre escola e família

Segundo Souza (2009:23):


Tanto a família quanto a escola são referenciais que emba-
sam o bom desempenho escolar, portanto, quanto melhor
for o relacionamento entre estas duas instituições mais
positivo será esse desempenho. Todavia, a participação da
família na educação formal dos filhos precisa ser constan-
te e consciente, pois vida familiar e vida escolar se com-
plementam. Com base nos depoimentos de pais e profes-
sores acreditamos que o desempenho escolar das crianças
melhorará a partir do bom relacionamento entre família
e escola.

De acordo com Souza (2009:23) a família, em consonância


com a escola e vice-versa, são peças fundamentais para o pleno
desenvolvimento da criança e consequentemente são pilares im-
prescindíveis no desempenho escolar. Entretanto, para conhecer
a família é necessário que a escola abra suas portas, intensificando
e garantindo sua permanência.
Porém, não existe uma fórmula mágica para se efectivar
a relação família/escola, pois, cada família, cada escola vive uma
realidade diferente. Igualmente, a interacção família/escola se
faz necessário para que ambas conheçam suas realidades e cons-

ELSA MARIA FREDERICO LIVO OZOBRA


171

truam colectivamente uma relação de diálogo mútuo, buscando


meios para que se concretize essa parceria, apesar das dificulda-
des e diversidades que as envolvem. O diálogo promove uma maior
aproximação e pode ser o começo de uma grande mudança no re-
lacionamento entre a Família e a Escola.
A partir dos pressupostos acima citados, deu para perce-
ber a relação entre a família e escola, dai que, as famílias, respon-
sáveis pelo desenvolvimento social e psicológico de seus filhos,
devem buscar a interacção com a escola, promovendo, questio-
nando, sugerindo e interagindo de forma a fornecer elementos
que através de discussões e ampla comunicação com os educado-
res promovam as iniciativas que vão de encontro às necessidades
dos educandos.

As causas da fraca interacção entre escola e família

Segundo VASCONCELOS (1989:125):


Um factor que dificulta muito a aproximação dos pais na
escola é a falta de tempo e os compromissos cotidianos.
A sociedade contemporânea, com todas as transforma-
ções estruturais, conjunturais, vulnerabilidades sociais e
exigências impostas pelo mundo do trabalho, reflecte na
forma de vida da família. Muitos pais se dispersam e se vol-
tam apenas para o trabalho, ficando sujeitos a fragilizar os
laços e vínculos relacionais com os filhos.

ʺVê-se que a relação família-escola está permeada por um


movimento de culpabilização e não de responsabilização com-
partilhada, além de estar marcada pela existência de uma forte
atenção dirigida à instrumentalização dos pais para a acção edu-
cacional, por se acreditar que a participação da família é condição
necessária para o sucesso escolarʺ. (OLIVEIRA, & MARINHO-A-
RAÚJO, 2010:102)

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM


DOS ALUNOS DO 3o CICLO DO ENSINO BÁSICO
172

ʺo comportamento dos pais com relação ao estabeleci-


mento de limites e regras no processo de educação dos
filhos. Percebe-se duas realidades contraditórias nas fa-
mílias: ou a ausência de regras, ou a imposição autoritá-
ria de normas. Muitas vezes, por um medo interno de não
serem aceitos, os pais acabam não estabelecendo e/ou não
fazendo cumprir os limites, levando a uma relação muito
permissiva. Outras vezes, sentindo necessidade de fazer
alguma coisa, mas não tendo clareza, acabam impondo
limites, sem explicar a razão. A superação desta situação
pode se dar pelo diálogo, com afeto e segurança, chegando
a limites razoáveis. Assim sendo, têm-se condições de não
ceder diante da insistência infantil. VASCONCELOS (1989,
p. 125).

As consequências da fraca relação entre escola e


família
A escola precisa alertar os pais sobre a importância de sua
participação: o interesse em acompanhar os estudos dos
filhos é um dos principais estímulos para que eles – alunos
– estudem. É importante a participação dos pais nas reu-
niões escolares que todos os meios para convocá-los são
válidos: recados na agenda, correspondência, telefone-
mas, e-mails ou mesmo o sistema “boca a boca”. Cada es-
cola pode utilizar o meio que julgar mais suficiente (TIBA,
2006:152).

É preciso que cada um dos sujeitos envolvidos em cada uma


das instituições reconheça suas atribuições frente ao sujeito que
da educação necessita, ou seja, o aluno. A construção da relação
entre escola e família, enquanto cooperação, precisa se fortalecer
em uma relação, primeiramente, de confiança, implica se colocar
no lugar do outro, e não apenas de troca de ideias e discussões
É um direito da família, participar das propostas pedagógi-
cas, como tal direito é um dever das escolas promover meios para
que isso aconteça. Na relação família e escola podem ser destaca-
dos, dois aspectos principais: 1) a incapacidade da família para a

ELSA MARIA FREDERICO LIVO OZOBRA


173

tarefa de educar os filhos e 2) a entrada da escola para subsidiar


essa tarefa, principalmente quando se trata do campo moral.
Logo, pode-se perceber que:
A partir destas colocações, ʺvê-se que a relação família-esco-
la está permeada por um movimento de culpabilização e não
de responsabilização compartilhada, além de estar marca-
da pela existência de uma forte atenção da escola dirigida à
instrumentalização dos pais para a ação educacional, por se
acreditar que a participação da família é condição necessá-
ria para o sucesso escolarʺ. (OLIVEIRA, 2002, p. 107).

Nesse contexto, é preciso que a escola esteja em perfeita


sintonia com a família, pois a escola é uma instituição que deve
complementar a formação educacional da criança. Essas duas ins-
tituições devem caminhar juntas na tentativa de alcançar o objec-
tivo maior que é a formação integral da criança.

Importância da participação da família na escola

Segundo KALOUSTIAN apud VARANI e SILVA (2010, p. 516),


afirma que:
A família é o espaço indispensável para a garantia da so-
brevivência de desenvolvimento e da protecção integral
dos filhos e demais membros, independentemente do ar-
ranjo familiar ou da forma como se vêm estruturando. É
a família que propicia os aportes afectivos e, sobretudo,
materiais necessários ao desenvolvimento e bem estar dos
seus componentes. Ela desempenha um papel decisivo na
educação formal e informal, é em seu espaço que são ab-
sorvidos o valor ético e humanitário, e onde se aprofun-
dam os laços de solidariedade partindo do princípio de
que tanto a família quanto a escola, salvo as especificida-
des já apontadas, são responsáveis por garantir os direitos
das crianças (no que se refere ao ensino, apoiando e dan-
do-lhes base para desenvolver-se integralmente).

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM


DOS ALUNOS DO 3o CICLO DO ENSINO BÁSICO
174

Podemos concluir que ambas tem deveres em relação à


educação das crianças. Portanto, é necessário desenvolverem um
trabalho em parceria, buscando sempre beneficiar o educando.
Segundo Pereira (2008, p. 61):
A família é o lugar indispensável para a garantia da so-
brevivência e da proteção integral dos filhos e demais
membros, independentemente do arranjo familiar ou da
forma como vêm se estruturando. É a família que propí-
cia os aportesafetivos e sobretudo materiais necessários
ao desenvolvimento e bem-estar dos seus componentes.
Ela desempenha um papel decisivo na educação formal e
informal, é em seu espaço que são absorvidos os valores
éticos e humanitários, e onde se aprofundam os laços de
solidariedade. É também em seu interior que se constro-
em as marcas entre as gerações e são observados valores
culturais”.

De acordo com Pereira (2008, p. 77): a relação Escola-Famí-


lia na vida escolar das crianças é de extrema importância. Não se
pode desistir, e a procura de novas soluções e respostas deve conti-
nuar mas de uma forma integradora e global, que permita a conti-
nuidade entre as escolas, os valores e as culturas das famílias

Papel dos pais no processo de ensino e aprendizagem

De acordo Breitman (2001):


O papel dos pais no estudo dos filhos é fundamental, senão
o mais importante, porque o acompanhamento sistemá-
tico, metódico e constante permite que as crianças e jo-
vens tenham uma organização e desempenho muito mais
coerentes e lógicos, pois o apoio parental é fulcral para o
“crescimento” académico, a criança sente-se “protegida” e
acompanhada.

As razões que justificam o envolvimento dos pais no apoio


ao processo educativo são: Melhorias nos resultados escolares

ELSA MARIA FREDERICO LIVO OZOBRA


175

sempre que os pais apoiam os filhos em casa; Os pais passam a


compreender e a valorizar melhor os professores; Os pais e os pro-
fessores aprendem a apoiar-se mutuamente na tarefa comum que
é a educação dos alunos; Os pais aprendem a comunicar melhor
com os filhos e a valorizar, ainda mais, o seu esforço e todo o seu
trabalho (MARQUES apud BREITMAN, 2001).

METODOLOGIA

A metodologia usada nesta abordagem foi análise qualita-


tiva no estudo efectuado com 57 indivíduos, a colecta de dados foi
aplicado entrevista a 2 membros da direcção da escola, um ques-
tionário a 50 famílias/ encarregados de educação e 05 professores.
Ainda nesse trabalho foi usada a técnica de observação que permi-
tiu verificar a participação das famílias ou encarregados de educa-
ção no processo de ensino aprendizagem.

RESULTADOS

Resposta dos professores inquiridos da EPC de


Nhapuzo-Muanza

Tabela 1 – resposta sobre a existência da relação entre a família e


a escola no processo de ensino e aprendizagem (PEA)
Há relação entre a família e a escola no processo de ensino e aprendizagem
(PEA)?
Total dos professores
Sim Não
inquiridos
01 04 05
Fonte: autora

Dos 5 professores inquiridos sobre a existência da relação


entre a família e a escola no processo de ensino e aprendizagem,
1 respondeu sim que há relação entre a família e a escola no pro-

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM


DOS ALUNOS DO 3o CICLO DO ENSINO BÁSICO
176

cesso de ensino e aprendizagem e 4 afirmaram não haver relação


entre a família e a escola no processo de ensino e aprendizagem.
Segundo a observação feita na EPC de Nhapuzo-Muanza,
verificou-se a fraca relação entre a escola e a família no processo
de ensino e aprendizagem, visto que, pouca família vinha na escola
acompanhar os seus filhos e ouvir a divulgação das notas.
Segundo Piaget (2007:50):
Uma ligação estreita e continuada entre a escola e a família
leva, pois a muita coisa que a uma informação mútua: este
intercâmbio acaba resultando em ajuda recíproca e, fre-
quentemente, em aperfeiçoamento real dos métodos. Ao
aproximar a escola da vida ou das preocupações profissio-
nais dos pais, e ao proporcionar, reciprocamente, aos pais
um interesse pelas coisas da escola chega-se até mesmo a
uma divisão de responsabilidades.

Nessa perspectiva, dá para entender que na EPC de Nhapu-


zo-Muanza há fraca relação entre a família e a escola no processo
de ensino e aprendizagem , visto que apenas 1 professor que afir-
mou existir a tal relação e a observação feita mostrou também a
fraca relação.

Tabela 2 – resposta sobre o momento em que a família tem parti-


cipado na escola
Em que momento a família tem participado na escola?
Na reunião 03
Diariamente 0
As vezes participa 0
Quando é solicitada 02
Total dos professores inquiridos 05
Fonte: autora.

Dos 5 professores inquiridos sobre o momento em que a fa-


mília tem participado na escola, 3 professores responderam que
é na reunião momento em a família tem participado na escola e

ELSA MARIA FREDERICO LIVO OZOBRA


177

2 professores afirmaram que tem participado quando a família é


solicitada.
Olhando para as respostas acima, deu para perceber que, a
família não vai na escola por iniciativa própria visto que, espera
ser solicitada para ir na reunião ou resolver problemas do seu fi-
lho, enquanto em condições normais deveria acompanhar os seus
filhos na escola, e não deixar a responsabilidade de educação de
seu filho a escola apenas.

Tabela 3 – Resposta sobre as causas da fraca interacção entre a


família e a escola no processo de ensino e aprendizagem
Quais são as causas da fraca interacção entre a família e a escola no proces-
so de ensino e aprendizagem?
A falta de tempo e os compromissos quotidianos 04
Não constituir importante a participação da família na escola 0
A família atribui a responsabilidade a escola no ensino e
01
aprendizagem dos seus filhos
Todas alternativas acima estão correctas
Total dos professores inquiridos 05
Fonte: autora

A partir da tabela acima, dos 5 professores inquiridos sobre


as causas da fraca interacção entre a família e a escola no proces-
so de ensino e aprendizagem, 4 professores responderam a falta
de tempo e os compromissos quotidianos e 1 professor respondeu
que a família na escola atribui a responsabilidade a escola no ensi-
no e aprendizagem dos seus filhos quotidianos.
De acordo com BRASIL (1998), a educação constitui direito
e dever de todos, pois é de responsabilidade do Estado e da família
para garanti-la, no entanto, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualifica-
ção para o trabalho.
Nesse âmbito, o que está acontecer nesta escola é ao con-
trario com o que esta sendo abordado com Brasil, neste caso as

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM


DOS ALUNOS DO 3o CICLO DO ENSINO BÁSICO
178

famílias estão abster-se das suas responsabilidades delegando-as


a escola.

Resposta da família da EPC do Povoado de


Nhapuzo-Muanza

Tabela 5 – resposta da família sobre a sua participação na escola


do seu filho no auxílio do processo de ensino e aprendizagem
Tem participado na escola do seu filho no auxílio do processo de ensino e
aprendizagem (PEA)?
Sim Não Total da família inquirida
42 08 50
Fonte: autora.

Das 50 famílias inquiridas sobre a sua participação na esco-


la do seu filho no auxílio do processo de ensino e aprendizagem, 42
famílias responderam que sim tem participado na escola do seu
filho no auxílio do processo de ensino e aprendizagem e 8 famílias
disseram que não tem participado na escola do seu filho no auxílio
do processo de ensino e aprendizagem.
Com base na observação feita na EPC de Nhapuzo-Muanza,
embora a maioria das famílias ter afirmado que tem participado
na escola dos seus filhos, verificou-se poucas que participam.

Tabela 6 – resposta da família sobre a exigência do seu filho para


que faça trabalhos de casa orientados pelo professor
Exige o seu filho para que faça trabalhos de casa orientados pelo professor?
Sim Não Total da família inquirida
43 07 50
Fonte: autora.

Segundo a tabela acima exposta, das 50 famílias inquiri-


das sobre a exigência do seu filho para que faça trabalhos de casa
orientados pelo professor, 43 famílias responderam sim exigem o

ELSA MARIA FREDERICO LIVO OZOBRA


179

seu filho para que faça trabalhos de casa orientados pelo professor
e 3 afirmaram que não exige o seu filho para que faça trabalhos de
casa orientados pelo professor.
A partir da observação feita , na EPC do Povoado de Nha-
puzo-Muanza embora muitas famílias terem afirmado unanime-
mente exige o seu filho para que faça trabalhos de casa orientados
pelo professor, poucas famílias exigem, visto que muitas crianças
eram tiradas nas salas de aulas por falta de TPC, o que repercutem
no fraco desempenho e consequentemente no baixo aproveita-
mento pedagógico.

Resposta da Direcção da EPC de Nhapuzo-Muanza


através da entrevista
1. Como tem sido a relação entre a família e a escola no
processo de ensino e aprendizagem?
Segundo o director da Escola disse que há fraca relação
entre a família e a escola no processo de ensino e aprendizagem,
porque mesmo quando solicitamos a família poucas aparecem,
muitas delas encarregam o seu filho ou empregado para resolver
os problemas do seu filho na escola;
Para director adjunto pedagógico afirmou que não existe
nenhuma relação da escola com a família no processo de ensino
aprendizagem visto que nas reuniões são poucos que aparecem
para ouvir o desempenho do seu filho.
Fazendo análise do exposto acima, todos os membros da di-
recção da Escola afirmaram negativamente face a iteração com a
família, neste caso ela esta abster-se da sua responsabilidade tam-
bém de educação do seu filho.
2. O que a direcção da escola tem feito para converte
esta situação?
Segundo director da quela instituição de ensino e o seu ad-
junto afirmaram unanimemente que, tem sensibilizado a família

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM


DOS ALUNOS DO 3o CICLO DO ENSINO BÁSICO
180

nas reuniões para poder participar activamente na escola do seu


filho porque traz muitos benefícios para o aluno assim como para
a família.
Olhando para o exposto acima, percebemos que a direcção
da escola tem envidado esforço na matéria de promoção participa-
ção da família na escola, através de reuniões que são realizadas na
própria escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que, na Escola Primaria Completado de Nha-


puzo-Muanza há fraca relação com a família, no entanto a família
desconhece do seu papel face a educação dos seus filhos, mesmo
quando são solicitadas poucas aparecem na escola, muito menos
no acompanhamento diário dos seus filhos.
Quanto as causas da fraca participação da família na esco-
la, compreende-se que o grande entrave tem sido a falta de tempo
por ocupação no serviço. E compreende-se também que são várias
as consequências da fraca interacção entre a família e a escola no
processo de ensino e aprendizagem desde o baixo aproveitamento
pedagógico dos alunos até frequentes faltas na escola o que com-
promete também os objectivos dos professores até do Ministério
da Educação e Desenvolvimento Humano .
Percebemos também que, a direcção da Escola envida esfor-
ço na matéria de promoção participação da família nas reuniões
que são realizadas na própria escola

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ciplina consciente e interactiva em sala de aula e na escola. 7. ed. São
Paulo: Libertad, 1989.

IMPACTO DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM


DOS ALUNOS DO 3o CICLO DO ENSINO BÁSICO
182

IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO
ESCOLAR QUILOMBOLA EM
CAUCAIA/CE: RELATOS DE
EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO COLETIVA DE 2014 A
2020
Cláudia de Oliveira da Silva1
Paulo Willian Almeida Sousa 2

RESUMO
O presente artigo tem por objetivo relatar algumas experiências
realizadas no município de Caucaia-CE, no que diz respeito às ações para
a implementação da Educação Escolar Quilombola de 2014 a 2020. Tra-
ta-se de atividades relevantes desenvolvidas pela Supervisão de Inclusão
Étnico Racial e Territorial – SIERT, da Secretaria Municipal de Educação,
Ciência e Tecnologia – SMETC, através do regime de colaboração entre
movimentos sociais e outras instituições. A fundamentação teórica está
amparada em Silva (2019), Cunha Júnior (2019), Vieira (2019), Castilho
(2019), dentre outras referências que influenciaram essas reflexões. Or-
ganizamos esta escrita para registrar o caminho já percorrido, os desa-
fios enfrentados, novas possibilidades que nos aproximem de uma edu-
cação que inclua em seu currículo os saberes sócio/históricos e culturais
presentes nas comunidades quilombolas.
Palavras-chave: Educação – Escola – Quilombola

ABSTRACT
This article aims to report some experiences carried out in the
municipality of Caucaia-CE, with regard to actions for the implementation
1 Mulher quilombola, professora efetiva do município de Caucaia; Especialista em
Formação de Professores(as) de quilombo – UFC, Mestra em Educação – UFC.
2 Jovem ativista das lutas sociais e campesinas. Graduado em Matemática – UFC.
Professor contratado da Escola Quilombola Nicolau Noronha – Caucaia/CE.

CLÁUDIA DE OLIVEIRA DA SILVA • PAULO WILLIAN ALMEIDA SOUSA


183

of Quilombola School Education from 2014 to 2020. These are relevant


activities developed by the Supervision of Racial and Territorial Ethnic
Inclusion – SIERT, of the Municipal Department of Education, Science
and Technology – SMETC, through the regime of collaboration between
social movements and other institutions. The theoretical foundation is
supported by Silva (2019), Cunha Júnior (2019), Vieira (2019), Castilho
(2019), among other references that influenced these reflections. We
organize this writing to record the path already taken, the challenges
faced, new possibilities that bring us closer to an education that includes
in its curriculum the socio/historical and cultural knowledge present in
quilombola communities.
Keyword: Education – School – Quilombola

INTRODUÇÃO

A Educação Escolar Quilombola é uma modalidade de ensi-


no oficializada através da Resolução CNE Nº 08/2012 que legaliza
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Qui-
lombola na Educação Básica. Essa conquista é resultado de uma
das principais bandeiras de luta dos movimentos sociais, especial-
mente do movimento negro e movimento quilombola.
Atualmente as reivindicações são pela efetivação das orien-
tações previstas na Resolução CNE 08/2012. Espera-se que todas
as escolas quilombolas e as escolas que atendem ao público oriun-
do destas comunidades, incluam em sua prática pedagógica ações
que valorizem os saberes civilizatórios afro-brasileiros e as práti-
cas culturais. Que reconheçam as formas de trabalho, os acervos
orais, bem como as tecnologias, as memórias e as resistências das
comunidades quilombolas, através de uma escuta ativa e um fazer
coletivo.
O município de Caucaia – CE possui nove comunidades qui-
lombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares – FCP, e
sete instituições de ensino presente nesses territórios. A educa-

IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA EM CAUCAIA/CE:


RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO COLETIVA DE 2014 A 2020
184

ção é um direito primordial a todos(as) e diante de tão importante


presença étnica no município não se pode negar as especificidades
das escolas quilombolas. Fundamentados pelo referencial teórico
metodológico da Pretagogia3, que nos permite reconhecer nosso
lugar de fala, a partir das nossas próprias experiências, estamos
construindo processualmente um currículo significativo e ade-
quado aos estudantes quilombolas, sem perder de vista as ações
de nível mais amplo.
Demonstrando nossa relação com as africanidades, apre-
sentamos um pouco da nossa história. Eu sou Cláudia Quilombola
(45 anos), nascida e criada no quilombo Serra do Juá – Caucaia/
CE. Fui registrada pelos meus avós maternos que eram agriculto-
res(as) analfabetos. Meu pai (avô) era um homem que tinha muitos
conhecimentos e o principal deles era os saberes sobre as ervas
medicinais. Comecei a estudar aos sete anos de idade, a partir do
desejo de recitar poesias de cordéis para meu pai (avô) que amava
ouvi-las à luz da lamparina, nas noites silenciosas. Assim, iniciei
minha vida escolar no quilombo, rodeada de um amplo repertório
oral sobre as histórias de vida e os saberes ancestrais.
As minhas ações profissionais como professora e gestora da
Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental Maria Iracema
do Nascimento na minha comunidade e hoje como supervisora
de inclusão étnico racial e territorial – SIERT/SMECT, são volta-
das para o fortalecimento da educação específica nas escolas das
comunidades quilombolas de Caucaia/CE. Assim, registro minha
relação identitária, étnica e ancestral que sustenta o interesse em
contribuir com a Educação Escolar Quilombola em Caucaia, pois
os meus princípios ancestrais estão interligados às minhas ações e
são a continuidade da luta dos(as) meus antepassados(as).
Eu, sou Paulo Willian Almeida Sousa, (30 anos) filho de agri-
cultores, moradores da fazenda Capine (Companhia Agropecuária
3 Referencial teórico-metodológico afrorreferenciado que se desenvolve a partir do
fortalecimento da própria identidade afro-brasileira.

CLÁUDIA DE OLIVEIRA DA SILVA • PAULO WILLIAN ALMEIDA SOUSA


185

do Nordeste), localizada no distrito Sítios Novos – Caucaia/CE. Na


década de 80, meus pais foram morar na periferia de Fortaleza,
onde vivi os meus primeiros 15 anos, no qual passei muita dificul-
dade econômica, pois meu pai sempre estava desempregado.
Em 2005 voltamos a morar na Capine, que agora é denomi-
nado Assentamento Santa Bárbara. No início, estranhei um pouco
por ser um lugar bem diferente, mas logo fiquei encantado com
o novo ambiente. Desde então, senti a importância de melhorar
meus conhecimentos para conseguir vencer as barreiras das in-
justiças sociais. Ingressei na universidade e em 2010, iniciei minha
trajetória pedagógica na Escola de Educação Infantil e Ensino Fun-
damental Nossa Senhora da Conceição no referido Assentamento.
Esta escola trabalha com a modalidade da Educação do
Campo e desenvolve diversos projetos voltados à valorização do
homem do campo, da preservação ambiental e da cultura campo-
nesa. É uma referência na Educação do Campo do município de
Caucaia/CE, pois além dos projetos já desenvolvidos como o Horto
Medicinal, Horta Pedagógica e Campo Experimental, também tem
um diálogo permanente sobre a implementação dos seguintes Ei-
xos Integradores: Agroecologia, Trabalho e Técnicas Produtivas e
Valores Culturais e Práticas Comunitárias.
No ano de 2018 comecei a lecionar na Escola de Educação In-
fantil e Ensino Fundamental Nicolau Noronha (escola quilombola),
situada na comunidade quilombola do Deserto, Caucaia/CE. Ape-
sar dos desafios, a comunidade escolar é muito comprometida com
o ensino e a aprendizagem e desenvolve projetos interventivos de
valorização da cultura afro-brasileira e das especificidades locais.
A comunidade quilombola do Deserto foi reconhecida pela
Fundação Cultural Palmares – FCP em 2018 e no mesmo ano a
escola foi cadastrada como escola quilombola no Censo Escolar
– INEP. A partir dessas comprovações o Núcleo Gestor, o corpo
docente e a comunidade, começaram a desenvolver os projetos de
fortalecimento da identidade negra e quilombola.

IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA EM CAUCAIA/CE:


RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO COLETIVA DE 2014 A 2020
186

Minhas experiências como morador de Assentamento da


Reforma Agrária e educador de escola de Educação do Campo con-
tribuíram para os diálogos e as ações sobre a coletividade e iden-
tidade quilombola na minha prática pedagógica. Hoje posso dizer
que a educação escolar quilombola, faz parte de mim e da minha
luta por um mundo melhor, com educação de qualidade e equida-
de para os povos tradicionais.

PROCESSO DE IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO


ESCOLAR QUILOMBOLA NO MUNICÍPIO DE CAUCAIA/CE

A Secretaria Municipal de Educação, Ciência Tecnologia


criou em sua organicidade a Supervisão de Inclusão Étnico Racial
e Territorial (2014). Seu objetivo geral foi desenvolver a política
municipal da Educação do Campo, Educação Escolar Quilombola
e Educação Indígena. Cada modalidade possui técnicos especia-
lizados e pertencentes aos povos tradicionais, com experiência
profissional correlata e formação específica para atuar no desen-
volvimento dessa política. Esse fato é um marco na história da
educação de Caucaia/CE, porque as experiências pessoais e pro-
fissionais dos(as) técnicos(as) influenciam na luta e resistência
para implementar uma educação que seja significativa e respeite
as especificidades dos povos tradicionais.
Apesar de, a supervisão incluir outras modalidades de en-
sino, aqui nos detemos somente sobre a Educação Escolar Qui-
lombola, relatando algumas ações que foram realizadas em regi-
me de colaboração. A Comissão Municipal da Educação Escolar
Quilombola criada através da portaria Nº 293/2017 – GAB/SME
construiu o texto minuta que foi aprovado em dois momentos de
audiência pública com participação e intervenção das escolas e
suas respectivas comunidades, oficializando a Resolução CMEC
Nº 24/2018 que trata sobre a funcionalidade da modalidade em
Caucaia/CE.

CLÁUDIA DE OLIVEIRA DA SILVA • PAULO WILLIAN ALMEIDA SOUSA


187

Um conjunto de ações pedagógicas vem sendo desenvolvi-


do como as formações de professores(as), gestores(as) e lideran-
ças, seminários, reuniões técnicas, seleção pública específica
para professores(as) quilombolas, diálogos sobre a reformulação
dos Projetos Políticos Pedagógicos, a implementação dos Valores
e Eixos Afroquilombola como ferramenta de construção do cur-
rículo especifico, para provocar a construção de conhecimentos
mais contextualizados e adequados aos pressupostos da educação
escolar quilombola e os processos específicos da comunidade de
gerir a vida e construir conhecimento (CASTILHO E SANTANA,
2019, p. 42).
Esse conjunto de ações representa a efetivação da moda-
lidade em Caucaia/CE e com ele os desafios se apresentam por
parte de todos os envolvidos (sistema governamental, escola e
­comunidade).
O racismo estrutural instalado nas organizações governa-
mentais tentam invizibilizar, podar e tolher as poucas ações pen-
sadas ou realizadas pela SIERT. As escolas (professores e gestores)
sentem-se impactadas(as) pelas reflexões a respeito das africani-
dades, que por muitas vezes acharam ser apenas mais uma carga
de trabalho. Essas ações mexem com as estruturas do pensamento
cristalizado de profissionais da educação, imposto pela visão eu-
rocêntrica como verdade absoluta.
No início, as próprias comunidades estranhavam ou rejei-
tavam a ideia da escola ser uma escola quilombola. Foi um termo
que gerou silenciamento, devido aos processos identitários, terri-
toriais e na maioria das vezes, as famílias sentiam-se ofendidas em
sua religiosidade. Algumas comunidades quilombolas de Caucaia/
CE, além de catequisada, são fortemente influenciadas pela reli-
gião evangélica. Nem todas as famílias aceitam que as crianças e
jovens ouçam ou dialoguem com seu professores(as) a respeito dos
mitos africanos e da cultura afro-brasileira.

IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA EM CAUCAIA/CE:


RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO COLETIVA DE 2014 A 2020
188

Essa visão distorcida sobre as africanidades tem se des-


construído principalmente através das formações continuadas
para professores(as) e gestores(as) e também pelos Projetos de
Intervenções Pedagógicas – PIP que são desenvolvidos pelas es-
colas e reconhecidos como importantes ferramentas para inserir
no currículo escolar os saberes das comunidades, envolvendo nas
práticas pedagógicas os referenciais teórico-metodológicos que
oportunizam a busca das nossas próprias raízes como explica Sil-
va (2019) sobre a Pretagogia,
Conceito este que propõe com que o indivíduo fale sem-
pre a partir de si, reconhecendo o lugar de onde fala e
analisando sua relação com a/s instituição/ões, no caso
dos/as cursistas a relação destes com a História e Cultura
africana e dos afrodescendentes e os temas de pesquisa
escolhidos. Todos nós estamos ligados às instituições,
seja a família, nacionalidade, religião, etnia, escola, etc.
E de certa forma, tendo consciência, ou não, interioriza-
mos o instituído por estas, e podemos até mesmo resistir
ou negar as nossas implicações, mas podemos reconhecê-
-las, nos apropriarmos deste conhecimento. (SILVA, 2019,
p. 99)

Iniciar essa desconstrução, para muitos(as) foi dolorosa,


mas compreendemos que esse processo de reencontro com nos-
sas próprias raízes, nossa história e nossa ancestralidade é algo
que muito tempo tivemos que silenciar, mas a manutenção das
nossas memórias é um processo permanente e contínuo. Atual-
mente já temos outra conjuntura, pois os(as) professores(as) e
gestores(as) que atuam nas escolas quilombolas de Caucaia/CE,
abriram-se para conhecer sua própria história, seu pertencimen-
to étnico e sua relação com os territórios ancestrais e com isso
motivaram as pessoas quilombolas para a valorização da história
e cultura local.

CLÁUDIA DE OLIVEIRA DA SILVA • PAULO WILLIAN ALMEIDA SOUSA


189

GUARDIÕES DA MEMÓRIA QUILOMBOLA DE


CAUCAIA/CE: FORMAÇÃO CONTINUADA PARA
PROFESSORES(AS), GESTORES(AS) E LIDERANÇAS
QUILOMBOLAS

O projeto de extensão Guardiões da Memória Quilombola


de Caucaia foi um curso com 180 h/a, realizado através da parce-
ria do Instituto Federal Campus Caucaia com a SIERT/SME (2016).
Seu principal objetivo foi a promoção de processos de apropriação
coletiva da cosmovisão africana para a formação de grupos guardi-
ões da identidade e da cultura quilombola nas escolas.
Os Grupos Guardiões (escola e comunidade) produziram
dispositivos didáticos para implementar nas escolas e nos currí-
culos a história e as culturas africanas, afro-brasileira e afrodias-
pórica, além de um portfólio auto reflexivo dos cursistas. Realiza-
mos uma avaliação da qualidade da educação racial e quilombola,
que analisou diversas dimensões, tais como: Atitudes e relaciona-
mentos proporcionando uma reflexão consciente de como a esco-
la trata as questões raciais.
A reflexão sobre o currículo e a proposta político-peda-
gógica oportunizou aos(as) professores(as) a desconstrução de
conceitos, ideias prontas e conteúdos historicamente exaltados,
possibilitando a valorização de saberes ancestrais, vivências e as-
pectos potenciais da população negra, pois urge repensar o papel
dos professores e educadores como mediadores interculturais e
sóciopedagógicos (VIEIRA E VIEIRA, 2019, p 33). As dimensões re-
ferentes aos recursos didático-pedagógicos, acesso, permanência
e sucesso na escola analisaram as condições de garantia dos direi-
tos de aprender.
Além da reflexão sobre a atuação de profissionais da educa-
ção com concepções que afetam negativamente as crianças e ado-
lescentes negros(as), o modelo de gestão das escolas quilombolas

IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA EM CAUCAIA/CE:


RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO COLETIVA DE 2014 A 2020
190

também foi debatido e referenciada a importância de uma admi-


nistração que valorize a participação para além da escola.

AMPLIANDO NOSSOS HORIZONTES COM O PROJETO


CONHECENDO NOSSA HISTÓRIA: DA ÁFRICA AO
BRASIL

Em março de 2018 a Fundação Cultural Palmares – FCP,


através do então presidente Erivaldo Oliveira disponibilizou para
o município de Caucaia/CE o projeto Conhecendo Nossa História:
da África ao Brasil. O referido projeto identificou a necessida-
de de promover a implantação de políticas públicas que contri-
buam para as disposições contidas no § 1º do art. 26A da Lei Nº
9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com a
redação dada pela Lei Nº 10.639/2003 e Lei Nº 11.645/2008.
A Prefeitura de Caucaia assinou a adesão e a formação con-
tinuada (120 h/a) foi desenvolvida em regime de colaboração para
os professores(as) do componente curricular de História e pro-
fessores(as) quilombolas. Foram disponibilizados pela FCP 3.200
(três mil e duzentos) exemplares do livro O Que Você Sabe Sobre
a África. Esses livros foram destinados às bibliotecas das escolas
públicas municipais para uso de estudos e pesquisas pelos estu-
dantes e professores(as).
Durante esse período os(as) professores(as) desenvolveram
atividades diversas e criaram os projetos Africanidades na Esco-
la. Esses projetos são considerados ferramentas curriculares da
educação para as relações étnico raciais, com ações permanentes
e não apenas nas datas pontuais. Buscar vias para descolonização
curricular é afirmar a condição de que a formação é experiencial e
o futuro social é construído por plurinarrativas curriculares (MA-
CEDO; GUERRA, 2016, p. 37)

CLÁUDIA DE OLIVEIRA DA SILVA • PAULO WILLIAN ALMEIDA SOUSA


191

JORNADAS PEDAGÓGICAS COMO PROCESSO DE


FORMAÇÃO PARA PROFESSORES(AS), GESTORES(AS)
E LIDERANÇAS QUILOMBOLAS

Uma das melhores conquistas de 2019 foi a realização da I e


II Jornada Pedagógica das escolas quilombolas. Sendo esse o pri-
meiro contato direto com todos(as) os(as) professores(as), gesto-
res(as) e lideranças quilombolas, realizado nos meses de fevereiro
e agosto do ano supramencionado.
Todas as nossas atividades coletivas são iniciadas com a
apresentação do Hino Nacional a Negritude e em seguida uma mís-
tica de auto apresentação com exposição de imagens e artefatos
representativos da cultura quilombola, para influenciar no forta-
lecimento da própria identidade.
No primeiro encontro foram realizadas oficinas como: Meu
Lugar de Memoria, Minha identidade, Meu Pertencimento onde
cada participante apresentou um saber relacionado à cultura afro-
-brasileira para cada etapa de sua vida. Os alimentos como sempre
tem lugar privilegiado nos encontros e dessa vez foram trazidos
pelos participantes (representando as comunidades quilombolas)
para compartilhar e identificar os valores da cultura alimentar e
da cosmovisão africana presentes nessa ação.
As Rodas de Conversa promoveram reflexões de conceitos his-
tóricos e contemporâneos, fortalecendo as escolas quilombolas locais
e visando à valorização e a afirmação dos valores étnico-raciais.

ACOMPANHAMENTO PEDAGÓGICO: TECENDO


DIÁLOGOS E CONSTRUINDO SABERES

Essa ação pedagógica é uma das mais importantes para o su-


cesso da escola. É com esse trabalho que a SMECT se aproxima da
comunidade escolar, orienta, apoia e constrói coletivamente pro-
postas de melhoria na qualidade da educação. Retratamos em poesia
o acompanhamento pedagógico de 2019, nas escolas quilombolas.

IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA EM CAUCAIA/CE:


RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO COLETIVA DE 2014 A 2020
192

1. As escolas quilombolas 5. A escola e a comunidade 9. Após conhecer melhor


Dos territórios sagrados Participam do momento A história do lugar
Onde tudo tem sentido Uns trazendo alegria Como o povo resistiu
Nada está desvinculado Outros, o encantamento Para hoje ainda está lá
Precisa formar uma teia Com certeza os mais velhos Essa força de gigante
Para ter aprendizado. Trazendo o conhecimento. Só tem que sabe lutar.

2. Essa teia que eu falo 6. Após degustar o sabor 10. A luta é do dia a dia
É igual a uma trança Dos produtos da região Para tudo conquistar
De saberes científicos Bolos, tapiocas e frutas A agricultura, o artesa-
Com as vivências das crianças Trazidos por cada mão nato
Os fazeres da comunidade Reaviva os costumes Fazem parte do lugar
Traduzindo a esperança. E fortalece a tradição. Mulher forte, homem
valente
3. Queremos uma escola 7. A conversa vai nascendo Não se cansam de lutar.
Livre do preconceito Em torno da identidade
Que diga não ao racismo Falamos de tudo um pouco 11. A estrutura da edu-
E promova mais direitos Trabalho e ancestralidade cação
Igualdade e educação Tradição e culinária Que tanto queremos
Equidade e bons conceitos. Da nossa comunidade. mudar
Ter direitos garantidos
4. A escola pode ajudar 8. Lembramos nossas raízes Segurança alimentar
A fortalecer o pertenci- Através da nossa linhagem A escola bem cuidada
mento Trançamos o parentesco Para a comunidade des-
Da criança quilombola Daqueles que vem na imagem frutar.
Qualificar os conhecimentos Da árvore genealógica
Para ter orgulho de sua cor Representamos a folhagem. 12. Além das dificuldades
Negritude é empodera- Têm muitos projetos vivos
mento. Pesquisando a realidade
Do saber que é nativo
Enriquecer o currículo
Tornando significativo.
Trechos do poema Acompanhamento Pedagógico é um trabalho eficiente.
Cláudia Quilombola – 03/11/2019

O Acompanhamento Pedagógico proporcionou interven-


ções, análise da qualidade da educação e identificação das poten-
cialidades que transformam para melhor o ensino e a aprendiza-
gem nas escolas quilombolas de Caucaia/CE.

CLÁUDIA DE OLIVEIRA DA SILVA • PAULO WILLIAN ALMEIDA SOUSA


193

PROJETOS DE INTERVENÇÕES PEDAGÓGICAS – PIP:


DESPERTANDO AS AFRICANIDADES NA ESCOLA

O Projeto de Intervenção Pedagógica – PIP é elaborado co-


letivamente com a participação de representantes de todos os seg-
mentos. As escolas são orientadas a elaborarem e desenvolverem
seus PIPs, mas as escolas quilombolas fazem um PIP específico
para trabalhar as especificidades da comunidade local.
Geralmente esses projetos são criados para melhorar os
índices de aprendizagem em algum componente curricular, que
são identificados pelas avaliações externas como fator de bai-
xo rendimento escolar. Porém, nas escolas quilombolas eles são
construídos para dar visibilidade aos saberes e fazeres locais, as
expressões culturais e assim melhorar a qualidade do ensino e da
aprendizagem.
A título de exemplo citamos aqui a experiência com o PIP
(2019/2020) da Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental
Nicolau Noronha (Deserto – Caucaia/CE). A partir de um formu-
lário sócio/histórico e cultural da comunidade foi construído o
projeto Vivências Quilombolas: valorizando os saberes ancestrais.
Esse projeto tem como objetivo principal sensibilizar os estudan-
tes e as famílias a respeito dos valores ancestrais da comunidade
quilombola, através de ações pedagógicas que ressaltem a impor-
tância do reconhecimento e valorização da História e Cultura
afro-brasileira.
Foi dividido em três categorias: 1. Modos de Ser: Ancestrali-
dade e Identidade. Essa categoria foi desenvolvida através do ma-
peamento dos artefatos históricos e culturais que representam
a ancestralidade e identidade coletiva da comunidade, rodas de
conversa com as pessoas mais idosas para falar sobre sua história
de vida e as memórias locais. 2. Modos de Fazer: Formas de Traba-
lho e Vivências. Aqui os estudantes e professores(as) organizaram
um minimuseu com os artesanatos e artefatos da comunidade, de-

IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA EM CAUCAIA/CE:


RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO COLETIVA DE 2014 A 2020
194

monstrando as formas de cultivo e armazenamento das sementes,


plantas medicinais e práticas dos remédios caseiros. 3. Modos de
Conviver: Expressões Culturais e Sabores Locais. Essa categoria
proporcionou relembrar os brinquedos e brincadeiras de ontem
e de hoje na comunidade, a identificação das comidas típicas, as
belezas naturais do lugar (caatinga) e aspectos sócio/histórico do
quilombo.
Os(as) professores(as), estudantes e comunidade se envol-
veram e realizaram uma exposição de artes intitulada Meu Lugar,
Minha Vida, com o intuito de valorizar as características do ter-
ritório. O território negro pode ser pensado com lugar coletivo,
como espaço geográfico onde uma determinada população negra
realiza sua vida (CUNHA, 2019).
Foi construída pedagogicamente a Parede da Memória con-
tendo a Árvore da Ancestralidade que apresentou em uma lingua-
gem artística as fotos das famílias troncos e seus descendentes,
promovendo o despertar da negritude nos estudantes e nas pes-
soas da comunidade. O patrimônio cultural da população negra
é tudo que confira valor a memória negra, a identidade negra e a
produção da história e cultura negra (CUNHA JUNIOR, 2019, p 91).
As produções literárias e culturais das crianças e jovens enrique-
ceram o currículo vivo, pois ultrapassaram os muros da escola e
encontraram-se com as lutas e histórias de vida do povo.

BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR – BNCC E A


EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NO MUNICÍPIO
DE CAUCAIA/CE

A Base Nacional Comum Curricular – BNCC é um docu-


mento que define as aprendizagens essenciais para todos(as) os
alunos(as) da Educação Básica do país. As orientações da BNCC
asseguram os direitos de aprendizagem e o desenvolvimento em
interface com o Plano Nacional de Educação – PNE. A partir de

CLÁUDIA DE OLIVEIRA DA SILVA • PAULO WILLIAN ALMEIDA SOUSA


195

2021 a implementação das competências definidas pela BNCC se-


rão obrigatórias em todos os municípios brasileiros.
Sendo assim, a Secretaria Municipal de Educação, Ciência
e Tecnologia – SMECT construiu coletivamente (2019) a Proposta
Curricular de Caucaia, a partir das orientações da BNCC e do Do-
cumento Curricular Referencial do Ceará – DCRC.
As modalidades específicas relacionadas aos povos tradicio-
nais apresentaram orientações a referida proposta para subsidiar
os(as) professores(as) em suas reflexões sobre a BNCC e a prática
pedagógica das escolas das comunidades tradicionais. Torna-se
necessário e obrigatório a inclusão de propostas curriculares ade-
quadas aos princípios da modalidade em discussão, tendo em vista
o processo de reflexão e ação voltado às especificidades das esco-
las quilombolas iniciado em 2014. Segundo Rocha (2019)
Os conceitos historicamente construídos de forma euro-
cêntrica estão sendo agora refletidos, reconstruídos e em-
basados em uma cosmovisão afrorreferenciada para desta
forma tornar os(as) estudantes e lideranças quilombolas
como protagonistas de suas próprias histórias e saberes
ancestrais. Compreender a multiplicidade da formação
do povo brasileiro reflete uma heterogeneidade cultural,
étnica e racial, constituindo riqueza e marca nacional que
deve ser valorizada na escola como patrimônio cultural de
raiz africana e afro-brasileira. (Rocha, 2019, p 02)

Diante destas evidências, estruturamos as temáticas espe-


cíficas em Valores Civilizatórios Afroquilombola para a Educação
Infantil que foram inspirados nos valores civilizatórios afro-brasi-
leiro do projeto A Cor da Cultura, e também desencadeou os Eixos
Afroquilombola para os Anos Iniciais e Anos Finais do Ensino Fun-
damental. São eles: (Silva, 2020, p. 05 a 09)

IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA EM CAUCAIA/CE:


RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO COLETIVA DE 2014 A 2020
196

EDUCAÇÃO INFANTIL
Nº Valores Civilizatórios Afroquilombola
01 Educação e Circularidade
02 Educação e Espiritualidade
03 Educação e Corporeidade
04 Educação e Musicalidade
05 Educação e Memória
06 Educação e Ancestralidade
07 Educação e Cooperativismo
08 Educação e Oralidade
09 Educação e Energia Vital – Axé
10 Educação e Ludicidade
ENSINO FUNDAMENTAL
Nº EixosAfroquilombola
01 Educação e Ancestralidade Negra
02 Educação e Territorialidade Quilombola
03 Educação e Práticas Culturais
04 Educação e Saberes Tradicionais
05 Educação e Memória Coletiva
06 Educação e Mulher Quilombola
07 Educação e Espiritualidade Afro-brasileira
08 Educação e Identidade Étnico Racial
09 Educação e Racismo Institucional/Estrutural
10 Educação e Tradição Oral

Assim, os(as) professores(as) desenvolvem as habilidades e


competências da BNCC, associando-as aos valores e eixos afroqui-
lombola para construção de um currículo significativo e adequado
aos estudantes das escolas quilombolas. Isso significa assegurar
competências específicas com base nos princípios da coletivida-
de, reciprocidade, integralidade e espiritualidade a serem desen-
volvidas a partir de suas culturas tradicionais reconhecidas nos
currículos dos sistemas de ensino e propostas pedagógicas das
instituições escolares (BNCC, 2018, p. 17).

CONCLUSÃO

Esta escrita representa parte das conquistas que percor-


remos durante esses anos e abre novas perspectivas para outras

CLÁUDIA DE OLIVEIRA DA SILVA • PAULO WILLIAN ALMEIDA SOUSA


197

ações coletivas se efetivarem. Estamos cientes do processo já per-


corrido e agora buscamos outras parcerias para continuarmos
avançando na política da educação para os povos quilombolas de
Caucaia/CE.
Os desafios sempre existirão, mas quando o trabalho é cons-
truído coletivamente as possibilidades de sucesso aumentam.
Tudo foi aprendizado, resiliência e resistência, porém cada brecha
abriu uma porta para o nosso próprio crescimento. Falar a partir
do que vivemos, construímos e avaliamos é muito significativo,
pois nos faz sentir parte do processo e valorizar as ações. Da mes-
ma forma trabalhamos para envolver cada pessoa da comunidade,
no chamado a fortalecer os vínculos entre escola e comunidade,
pois só assim, todos(as) participando do processo compreenderão
as lutas e as conquistas adquiridas.

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CLÁUDIA DE OLIVEIRA DA SILVA • PAULO WILLIAN ALMEIDA SOUSA


199

OS PROCESSOS DE ENSINO,
APRENDIZAGEM E DE AVALIAÇÃO
NO ESTADO DE PERNAMBUCO
MEDIADOS PELA PERSPECTIVA
GERENCIAL DO BANCO MUNDIAL
Isaias Julio de Oliveira1
Joseane Fátima de Almeida Araújo2
Márcia Socorro Florêncio Vilar3

RESUMO
O presente estudo tem como foco a análise dos documentos que
orientam as diretrizes para a atuação do Banco Mundial no âmbito dos
sistemas de educação, dentre esses o brasileiro, com observância dos
processos de ensino e aprendizagens e avaliativos desenvolvidos por es-
ses sistemas. Nessa perspectiva, destacamos o Estado de Pernambuco
como integrante desse conjunto de sistemas educacionais que sofrem as
influências do Banco Mundial e percebemos a convergência para a de-
fesa de adoção do gerencialismo na educação visando elevar a eficiência
e apresentar resultados mensuráveis, que consiste no uso de uma pode-
rosa tecnologia de monitoramento, avaliação e regulação, empregada no
âmbito da educação em Pernambuco. Percebemos através da análise da
literatura pesquisada que no Estado em tela que a educação passou a ser
dimensionada e ajustada aos interesses do mercado, onde até a formação
dos profissionais que assume características de instrução e treinamento,
para que haja competitividade entre os próprios sujeitos envolvidos no

1 Doutorando em Educação pela UFRN. Mestre em Educação pela UPE.


E-mail: isaias-matematica@hotmail.com.
2 Doutoranda em Humanidades e Artes com ênfase em Ciências da Educação pela
UNR. Mestre em Ciências da Educação pela ULHT de Portugal.
E-mail: joseanefalmeida@gmail.com.
3 Doutoranda em Humanidades e Artes com ênfase em Ciências da Educação pela
UNR. Mestre em Ciências da Educação pela ULHT de Portugal.
E-mail: marciafvilar@yahoo.com.br.

OS PROCESSOS DE ENSINO, APRENDIZAGEM E DE AVALIAÇÃO NO ESTADO DE PERNAMBUCO


MEDIADOS PELA PERSPECTIVA GERENCIAL DO BANCO MUNDIAL
200

processo educativo, prevalecendo o ranqueamento entre as instituições


afim de atingirem metas educacionais pré estabelecidas com base nas
perspectivas das políticas do Banco Mundial.
Palavras-Chave: Política educacional de Pernambuco. Banco
Mundial. Sistema de Avaliação do Estado de Pernambuco.

ABSTRACT
The present study focuses on the analysis of the documents that
guide the guidelines for the world bank’s performance in the scope
of education systems, among these the Brazilian, with observance of
the teaching and learning and evaluative processes developed by these
systems. In this perspective, we highlight the State of Pernambuco as part
of this set of educational systems that are influenced by the World Bank
and we perceive the convergence to defend the adoption of management
in education in order to increase efficiency and present measurable
results, which consists in the use of a powerful monitoring, evaluation
and regulation technology, used in the field of education in Pernambuco.
We perceive through the analysis of the researched literature that in the
state on screen that education began to be dimensioned and adjusted
to the interests of the market, where even the training of professionals
who assumes characteristics of education and training, so that there is
competitiveness among the subjects involved in the educational process,
prevailing the ranking among institutions in order to achieve pre-
established educational goals based on the perspectives of World Bank
policies.
Keywords: Educational policy of Pernambuco. World Bank.
Evaluation System of the State of Pernambuco.

INTRODUÇÃO

Este texto, com base na literatura estudada, faz referên-


cia  a  alguns aspectos da  influência das  políticas  do  Banco  Mun-
dial  para  os sistemas  de educação  brasileiros, com ênfase  nos
processos avaliativos  educacionais, em particular a  política de
avaliação do estado de Pernambuco. Traz uma trajetória das po-
líticas dessa instituição financeira, suas características  básicas

ISAIAS JULIO DE OLIVEIRA • JOSEANE FÁTIMA DE ALMEIDA ARAÚJO


MÁRCIA SOCORRO FLORÊNCIO VILAR
201

e  formas  de atuação nos países signatários dos acordos de coo-


peração, com destaque para as brasileiras e, por simetria, o Esta-
do de Pernambuco.  O estudo ressalta a importância de voltar o
olhar sobre os impactos dessas políticas nos sistemas estaduais de
avaliação educacional, ou seja, observando as especificidades e as
suas condições e peculiaridades locais, em detrimento do sistema
estandardizado vigente. 
A  pesquisa  enfatiza o  conhecimento e a  compreensão das
políticas educacionais  de avaliação,  e, se  estas  suscitam  melho-
rias na aprendizagem dos estudantes. A análise e reflexão teóri-
cas acerca da temática não vislumbra apenas a discussão acerca
dos mecanismos de averiguação dos objetivos conforme propõem
os organismos  internacionais, mas, pretendem também,  contri-
buir para ampliar e dar mais corpo a literatura existente sobre a
temática.   
Nesta investigação, compuseram como objetivos, para
tanto, conhecer nessas políticas educacionais de avaliação, tais
influências no sistema estadual de avaliação de Pernambuco.
Compuseram ainda os objetivos desse trabalho a análise e reflexão
teóricas acerca da temática, pretendendo-se também contribuir
para a ampliar a literatura existente
Nas últimas décadas, tanto a economia quanto as políticas
mundiais vêm sofrendo grandes influências de instituições finan-
ceiras internacionais. Como destaque no cenário educacional, po-
demos citar o Banco Mundial. Dessa forma, buscou-se conhecer
os fundamentos que conduzem a agenda do Banco Mundial, pro-
curando entender a atuação dessa agência multilateral no cenário
das políticas de avaliação educacional.
Para tanto, a observação será nosso ponto de partida para
demarcarmos as variáveis externas e internas, as quais irão in-
terferir, consideravelmente, nos resultados a serem encontrados.
Utilizaremos os procedimentos metodológicos da pesquisa de
campo utilizando-se as diretrizes da análise qualitativa. O corpo

OS PROCESSOS DE ENSINO, APRENDIZAGEM E DE AVALIAÇÃO NO ESTADO DE PERNAMBUCO


MEDIADOS PELA PERSPECTIVA GERENCIAL DO BANCO MUNDIAL
202

da pesquisa foi formado por relatórios e outros documentos redi-


gidos a partir das observações no interior das instituições educa-
cionais estaduais.

A ORGANIZAÇÃO DA PRÁXIS EDUCATIVA EM


PERNAMBUCO A PARTIR DAS DIRETRIZES
EDUCACIONAIS DO BANCO MUNDIAL

A partir de 1962, o Banco Mundial inicia suas atividades


no âmbito da educação. Inicialmente, seu trabalho limitava-se a
oferecer suporte aos programas educacionais já existentes nos
países signatários. As principais áreas contempladas foram o en-
sino secundário e a formação profissional técnica. As instituições
passaram a exercer as chamadas condicionalidades cruzadas, ou
seja, passaram a impor aos países solicitantes de empréstimos
que, para conseguirem empréstimo de uma instituição, deveriam
aceitar as condicionalidades da outra e vice-versa, impondo ainda
mais dificuldades para aqueles países. As exigências para as frá-
geis economias, em termos de garantias como, por exemplo, défi-
cit primário em detrimento de investimentos importantes como
a própria educação, passaram a ser duplicadas (Espindola 2008).
Ainda segundo Espindola (2008), um país quando devedor
de uma das agências, solicitando empréstimo à outra, mesmo que
aceitando todas as condições políticas e econômicas impostas,
pode não conseguir o empréstimo solicitado enquanto não efetuar
o pagamento de dívidas em atraso.
Uma discussão muito cabível e importante é que os países
são entes soberanos, ou seja, possuem uma organização jurídica,
política e econômicas internas que lhes garantam que possam to-
mar determinadas decisões sobre os seus rumos e de suas popula-
ções. Esta soberania, no entanto, no cenário das relações interna-
cionais, é ferida diante das imposições supracitadas. Elas ocorrem
porque os países economicamente mais fortes – que determinam

ISAIAS JULIO DE OLIVEIRA • JOSEANE FÁTIMA DE ALMEIDA ARAÚJO


MÁRCIA SOCORRO FLORÊNCIO VILAR
203

efetivamente as regras das instituições internacionais – incidem


ferindo a soberania dos países economicamente mais frágeis, im-
pondo os seus interesses inclusive econômicos. Dessa maneira, a
partir dos anos 1990 percebe-se a progressão de um aprofunda-
mento ainda maior das reformas educacionais.
Uma das críticas mais fortes a estas reformas educacionais
capitaneadas pelo Banco Mundial incide no caráter global, ou seja,
o Banco Mundial atua com programas padronizados que são exe-
cutados em todo o mundo, independente das especificidades de
cada nação, que no âmbito educacional, podemos citar a obser-
vância dos dados do PISA (Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes). As prioridades pelo Banco Mundial, dentre outros
elementos, no tocante a educação, são: a prioridade na educação
primária; melhoria da eficácia da educação; ênfase nos aspectos
administrativos; descentralização e autonomia das instituições
escolares, no tocante das responsabilidades de gestão e captação
de recursos; e análise econômica como critério dominante na de-
finição das estratégias.
Segundo Altman (2002, p. 25), o BIRD (Banco Internacional
para Reconstrução e Desenvolvimento), a partir de uma visão eco-
nomicista, gerencialista, defende o vínculo explicitamente entre
educação e produtividade. Afirma a necessidade da produção de
talentos para a difusão tecnológica dos países da América Latina
como meio de incremento econômico. Um dos elementos mais im-
portantes do apelo político educacional do Banco Mundial, como
explicitado acima, fundamentado na Declaração Mundial de Edu-
cação para Todos, é a ênfase na educação básica.
As recomendações contidas nos instrumentos de concessão
de empréstimos do Banco Mundial para as políticas educacionais,
giram em torno do foco na garantia de resultados, erradicando a
evasão e a repetência escolar (sem levar em consideração as con-
sequências), como forma de assegurar os investimentos externos.

OS PROCESSOS DE ENSINO, APRENDIZAGEM E DE AVALIAÇÃO NO ESTADO DE PERNAMBUCO


MEDIADOS PELA PERSPECTIVA GERENCIAL DO BANCO MUNDIAL
204

Segundo Reis (2006), os sistemas externos de avaliação na


concepção neoliberal, encontram suas justificativas em razão da
influência exercida pelos elementos do mercado na educação,
atrelados aos resultados dos sistemas externos de avaliação da
aprendizagem, visando à promoção da competição entre as insti-
tuições escolares. Portanto:
[...] a lógica utilizada é a de que o controle externo pode
trazer eficiência e eficácia para o ensino e a culpabilização
dos indivíduos pelos fracassos das instituições é uma das
representações dominantes na atualidade e permite tirar
a responsabilidade dos setores privados em relação aos
problemas sociais gerados, pela escassez de investimen-
tos para minimizar a falta de emprego. Transfere-se para
a instituição escolar a responsabilidade de preparar os
indivíduos com novos valores e comportamentos para su-
perar a crise econômica [...] esses discursos e práticas têm
levado a opinião pública a aceitar como causa dos proble-
mas econômicos e sociais a crise na educação, imputando
a responsabilidade para as instituições educativas (REIS,
2006, p. 52-54).

No cenário educacional do Estado de Pernambuco, tais in-


fluências são marcantes e a prática pedagógica passa a ser orienta-
da, controlada e avaliada na capacidade de produzir um conjunto
de habilidades intelectuais, definição de certas atitudes, transfe-
rência de um dado conjunto de conhecimentos que proporcionem
a ampliação da capacidade de trabalho e, tão logo, de produção.
Significa uma transmutação do conceito de homo economicus para
a prática pedagógica, a gerar um produto ao modo de produção
capitalista: um homem com maior capacidade produtiva. Não in-
teressa o homem enquanto homem, sujeito histórico, mas como
representação de um conjunto de competências a serem desenvol-
vidas pela educação para se integrar ao sistema econômico-capita-
lista. De tal maneira, “se todos os indivíduos são livres, se todos no
mercado de trocas podem vender e comprar o que querem, o pro-

ISAIAS JULIO DE OLIVEIRA • JOSEANE FÁTIMA DE ALMEIDA ARAÚJO


MÁRCIA SOCORRO FLORÊNCIO VILAR
205

blema da desigualdade é culpa do indivíduo”, (FRIGOTTO, 2006, p.


61) que não se qualificou para tal, e não do capitalismo enquanto
sistema econômico.
A proposta deste trabalho residiu em elucidar, mesmo que
parcialmente, as principais definições e orientações do Banco
Mundial nas políticas de educação brasileiras, com destaque para
o Estado de Pernambuco. Tais definições pertencem, no seu con-
junto, ao ajuste estrutural do capitalismo, iniciado desde a déca-
da de 1990, no chamado neoliberalismo. O Banco Mundial indica
a realização de investimentos privados na educação, ao passo de
privatizá-la por completo. Para tal feito, o organismo vem criando
uma rede de influência mútua nas informações sobre as conveni-
ências de se investir em educação nos países receptores dos em-
préstimos, cuja economia neocolonial se faz presente, submetida
aos interesses dos países de alto capital financeiro-monopolista.
Nas propostas de avaliação educacional do estado de Per-
nambuco, se materializam as políticas e programas do imperialis-
mo capitalista como estratégias de dominação ideológica, restru-
turação produtiva, e maiores exigências na exploração da força de
trabalho (nível básico de educação, com aquisição de competências
e habilidades específicas), resultando assim em melhores resulta-
dos educacionais sob a ótica quantitativa do processo ­educativo.
Neste contexto, em Pernambuco, a educação passou a ser
redimensionada e ajustada aos interesses do mercado. Entra em
cena, novamente, o discurso de formação de capital humano, a
partir de capacitação, treinamento e competências técnicas ao
exercício do trabalho manual. Neste sentido, a própria formação
dos educadores estaduais ganha, também, tal característica de
instrução e treinamento, ao passo que possa haver competitivida-
de entre os próprios sujeitos que desenvolvem a educação, em uma
escala de ranqueamento de resultados educacionais por escola,
afim de atingimento de metas que levam ao recebimento de bônus
financeiros a todos que compõem a escola.

OS PROCESSOS DE ENSINO, APRENDIZAGEM E DE AVALIAÇÃO NO ESTADO DE PERNAMBUCO


MEDIADOS PELA PERSPECTIVA GERENCIAL DO BANCO MUNDIAL
206

De acordo com esse modelo de sistema, existem objetivos


educacionais com metas pré-estabelecidas, avaliação própria, po-
lítica de incentivos às escolas e a seus agentes, com estratégias de
monitoramento. Outra constatação possibilitada pelos achados
é que a responsabilização se faz depois de assinado um termo de
compromisso, que coloca professores, gestores, alunos e suas famí-
lias como responsáveis pelos resultados educacionais referentes
aquela instituição. Porém, esse termo é firmado e assinado ape-
nas entre a Secretaria de Educação e os(as) diretores(as) escolares
(Afonso, 2001,). O diretor e/ou a escola são apontados como os prin-
cipais responsáveis pelos resultados, enquanto o Estado apresenta-
-se como corresponsável. Isso mostra uma inversão de papéis, pois
o Estado, que deveria apresentar-se como provedor ou garantidor
do bem-estar social, é que deveria ser o principal responsável, e
não, as escolas. Como observamos, o modelo de responsabilização
(accountability) implantado ocorreu de forma verticalizada por
meio de atos normativos, dentre o principal é o termo de compro-
misso de cumprimento de metas assinado entre as partes.
Esse termo de compromisso além de definir objetivos e
metas a serem alcançadas, busca a responsabilização das escolas
e professores. O termo consiste em imprimir um mecanismo de
accountability típico das administrações públicas que adotam a
perspectiva gerencialista, a qual conforme Afonso (2009), impu-
ta responsabilidades, bem como sanções aos servidores. Assim,
considerando-se o contexto educacional criado pelo Modelo de
Gestão Todos por Pernambuco, percebe-se a tendência para esta-
belecer um ambiente permeado pela performatividade.
Segundo esclarece Ball (2005), a performatividade é uma es-
tratégia que emprega mecanismos de visibilidade e exposição pú-
blica, bem como utiliza os processos de mensuração, julgamentos
e comparações, classificações e rankings como meio de regulação.
É dessa forma que a divulgação dos resultados sobre as escolas das
avaliações estandardizadas estaduais na mídia e nos meios ofi-

ISAIAS JULIO DE OLIVEIRA • JOSEANE FÁTIMA DE ALMEIDA ARAÚJO


MÁRCIA SOCORRO FLORÊNCIO VILAR
207

ciais públicos de divulgação, bem como a constituição dos rankin-


gs com as melhores e piores escolas, podem ser compreendidas.
Além disso, para Ball (2014), a escolha de escolas é uma das solu-
ções propostas pelo modelo de educação global para solucionar os
problemas e alcançar a “qualidade” na educação. Esse processo é
estimulado pela exposição pública dos resultados das pessoas e
das escolas nas avaliações externas e indicadores educacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tendência é que, a partir dessa perspectiva de regulação


educacional por parte das diretrizes educacionais do Banco Mun-
dial, um dos propósitos da escola esteja pautado em adaptar os
indivíduos às exigências do capital, de maneira que a escola esteja
preparada para formar dois tipos de indivíduos: a classe popular,
pronta para o mercado e para se adaptarem as condições de traba-
lho e a classe mais favorecida, para os cargos mais altos e melhores
condições sociais, que é a que muitas vezes detém o capital eco-
nômico, social e cultural. Em um governo neoliberal capitalista e
globalizado, a educação torna-se uma mercadoria em meio a uma
sociedade que intitulamos do conhecimento, na qual todos tem
que ter acesso a educação, não importa de que forma, nem a quali-
dade e muito menos os meios para adquiri-la.
Partindo do pressuposto de que nem todas as crianças têm
as mesmas condições sociais de aprendizagem, é difícil que a es-
cola consiga promover efetivamente a assimilação dos conteúdos
por parte de todos os alunos, pois cada um dos educandos vivem
realidades diferentes, o que uma criança consegue aprender, ou-
tras não conseguem, ou demoram para fazê-lo. As avaliações em
larga escala mostram nada mais do que números que não expres-
sam o real aprendizado do aluno, mas somente reproduzem a de-
sigualdade existente dentro da escola. É muito importante a refle-
xão de Freitas, que diz:

OS PROCESSOS DE ENSINO, APRENDIZAGEM E DE AVALIAÇÃO NO ESTADO DE PERNAMBUCO


MEDIADOS PELA PERSPECTIVA GERENCIAL DO BANCO MUNDIAL
208

As políticas de avaliação centralizadas se esquecem que


não basta o dado do desempenho do aluno ou do profes-
sor coletado em um teste ou questionário e seus fatores
associados. É preciso que o dado seja “reconhecido” como
“pertencendo” à escola. Medir propicia um dado, mas me-
dir não é avaliar. Avaliar é pensar sobre o dado com vistas
ao futuro. (FREITAS, 2012, p. 48)

Diante do exposto, podemos concluir que o papel da escola


precisa ser repensado pelas políticas públicas educacionais, pois o
ensino não pode e nem deve ser percebido pela ótica da sorte ou do
azar, ou seja, quando falamos em ensino de qualidade temos que
pensá-lo acima de tudo como um direito de todos. Porém, percebe-
mos também, que o sistema neoliberal traz consigo o discurso da
liberdade, mas que na realidade esse sistema nos controla, fazen-
do-nos acreditar que a única lógica de organização da sociedade é
essa, mediante a ideia de que pode nos oferecer serviços, como por
exemplo, o conhecimento, quando na realidade esses serviços são
nada mais do que direito de cada cidadão.

REFERÊNCIAS

AFONSO, A. J. Nem tudo o que conta em educação é mensurável ou com-


parável, Crítica à accountability baseada em testes estandardizados e
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ISAIAS JULIO DE OLIVEIRA • JOSEANE FÁTIMA DE ALMEIDA ARAÚJO


MÁRCIA SOCORRO FLORÊNCIO VILAR
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OS PROCESSOS DE ENSINO, APRENDIZAGEM E DE AVALIAÇÃO NO ESTADO DE PERNAMBUCO


MEDIADOS PELA PERSPECTIVA GERENCIAL DO BANCO MUNDIAL
210

EDUCAÇÃO, SAÚDE E
ESPIRITUALIDADE: RELATO DE
EXPERIÊNCIA NA DISCIPLINA DE
ANTROPOLOGIA NA GRADUAÇÃO DE
PSICOLOGIA
Luciana de Moura Ferreira1

RESUMO
A proposta desse artigo é apresentar o resultado das experiências
vivenciadas por estudantes de psicologia na disciplina de antropologia, a
partir do projeto de ensino Educação, saúde e espiritualidade. Dessa manei-
ra, a metodologia adotada trata de um relato de experiência que descreve
as vivências dos estudantes do curso de psicologia no projeto supracitado,
no primeiro semestre do ano de 2018 e 2019. Os métodos pedagógicos uti-
lizados no projeto foram: aulas expositivas dialogadas, rodas de discussão,
filmes, convidados das áreas de teologia, saúde, educação e psicologia, cria-
ção de diários de campo e relatos de experiência. Para além da sala de aula
foram utilizados os espaços de instituições de saúde, visita a comunidade
indígena dos Tremembés da Barra do Mundaú, Itapipoca- CE e a comuni-
dade externa. Como resultado dessas experiências, constatou-se, a partir
das falas dos estudantes o quanto é importante a disciplina de antropologia
para o curso de graduação em psicologia, pois a partir do referido projeto
os discentes sentiram-se estimulados a analisarem o contexto social dos
indivíduos e compreender as subjetividades que permeiam sua existência,
contribuindo assim para que percebessem necessidades além das relatadas
pelos pacientes que irão receber seus cuidados. Ao final do projeto conclui-
-se que o cuidado com o outro na sua integralidade envolve para além dos
cuidados com a saúde, o cuidado com as dimensões espirituais e emocio-
nais do paciente, constituindo-se assim como um cuidado humanizado.
Palavras-chave: Educação; Saúde, Sociedade
1 Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará – UFC; Pro-
fessora da Faculdade Uninta Itapipoca; Coordenadora de extensão e responsabili-
dade social da Faculdade Uninta Itapipoca. Vice líder do grupo de estudos História
social e memória- GPHISME. E-mail: lucianamoura797@gmail.com

LUCIANA DE MOURA FERREIRA


211

ABSTRACT
The purpose of this article is to present the result of the experiences
lived by psychology students in the subject of anthropology, based on the
Education, Health and Spirituality teaching project. Thus, the methodology
adopted deals with an experience report that describes the experiences of
students from the psychology course in the aforesaid project, in the first
semester of 2018 and 2019. The pedagogical methods used in the project were:
dialogued expositive classes, discussion circles, films, guests from the areas
of theology, health, education and psychology, creation of field diaries and
experience reports. Beyond the classroom, the spaces of health institutions
were used, as well as visits to the indigenous community Tremenbés da Barra
do Mundaú, Itapipoca-CE and the external community. As a result of these
experiences, it was verified, from the students’ speeches, how important is
the subject of anthropology for the psychology graduation course, because
from the referred project the students felt stimulated to analyze the social
context of the individuals and to understand the subjectivities that cross
their existence, thus helping them to perceive needs beyond those reported
by the patients who will receive their care. At the end of the project, it is
concluded that caring for the other in its wholeness involves, in addition
to health care, caring for the patient’s spiritual and emotional dimensions,
constituting as a humanized care.
Keywords: Education; Health, Society

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, ocorreram diversas mudanças no que


concerne ao ensino em saúde, para além das mudanças ocasiona-
das pelos avanços da tecnologia que proporcionou melhoria na
prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, houveram tam-
bém mudanças dos métodos de ensino nas áreas da saúde, afinal é
urgente preparar os discentes para atuar profissionalmente num
mundo em mudanças. Inserida nesse contexto de transformações
no âmbito de formação profissional e trabalho, ocorreu também o
aumento do número de pesquisas, publicações cientificas e grupos
de estudos que discutem a relação entre saúde e espiritualidade.

EDUCAÇÃO, SAÚDE E ESPIRITUALIDADE:


RELATO DE EXPERIÊNCIA NA DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA
212

A Constituição de 7 de abril de 1999 da Organização Mundial


da Saúde, publicou uma resolução que inclui a espiritualidade no
conceito de saúde multidisciplinar, que reúne também os aspec-
tos físicos, psíquicos e sociais. (DAL-FARRA; GEREMIA, 2010)
Entretanto, cabe ressaltar que os conceitos de espiritua-
lidade e religiosidade apresentam diferenças entre si, ao mesmo
tempo em que se revelam importantes para a área da saúde, pois
influenciam o processo saúde doença. Dessa maneira, acredi-
tamos ser relevante apresentar a diferença entre os conceito de
espiritualidade e religião, ao mesmo tempo que apresentar a con-
cepção de espiritualidade adotada nesse artigo.
A religiosidade é a pratica de uma religião especifica, a qual
é composta por rituais e dogmas, nela o indivíduo participa dos ri-
tos, celebrações que estão enraizados culturalmente nas práticas
coletivas. Para Jung (1990) a religião é um comportamento do es-
pírito humano e que pode influenciar a consciência e experiência
do indivíduo, ou seja, a religiosidade é uma “atitude particular de
uma consciência transformada” pelo encontro com o sagrado.
A distinção entre religião e espiritualidade também é de-
senvolvida por Jung (1990), que apresenta a espiritualidade como
uma experiência primordial e individual, enquanto a experiência
religiosa é mediada pelo sistema simbólico da religião e pressupõe
a crença através dos dogmas.
A espiritualidade é parte da experiência do indivíduo, fun-
damentada na busca por sua essência os quais são definidos pela
cultura. Os estudos de Koenig (2001), conceituam a espiritualida-
de como a busca individual por respostas sobre “o significado da
vida e o relacionamento com o sagrado e/ou transcendente.”
Segundo Cassirer (1994 p.17),
(...) o homem é a criatura que está em constante em busca
de si mesmo – uma criatura que, em todos os momentos de
sua existência, deve examinar e escrutinar as condições de
sua existência. Nesse escrutínio, nessa atitude crítica para
com a vida humana, consiste o real valor da vida ­humana.

LUCIANA DE MOURA FERREIRA


213

Desde a antiguidade já se discutia a relação entre a espiritu-


alidade e os cuidados com a saúde das pessoas. No âmbito da psi-
cologia, a compreensão da relação entre saúde e espiritualidade
torna-se relevante pois o profissional pode se deparar com situa-
ções em que essa problemática emerja, e nessas situações ele deve
ser ético ao tratar de demandas oriundas dos diversos contextos
em que atua.
A compreensão desses conceitos pelos psicólogos amplia a
identificação dos mesmos nos tratamentos psicológicos, pois for-
nece-lhes embasamento para esclarecer questões de difícil enten-
dimento na totalidade do indivíduo, além de favorecer a identifi-
cação de questões que não são percebidas durante o tratamento.
(OLIVEIRA; JUNGES, 2012)
Estudos científicos revelam que a espiritualidade favorece
a manutenção da saúde mental a partir do desenvolvimento do
equilíbrio emocional e compreensão do sentido da vida, além de
proporcionar a compreensão da importância das diversas experi-
ências do indivíduo para seu crescimento emocional, autoconhe-
cimento e desenvolver sua autonomia. (OLIVEIRA; JUNGES, 2012)
Apesar do aumento de estudos científicos sobre a relação
entre psicologia e espiritualidade, os psicólogos ainda precisam
aprimorar suas habilidades para compreender e relacionar a es-
piritualidade com os tratamentos psicoterapêuticos, apesar da
espiritualidade ser discutidas por diversas teorias da psicologia,
como por exemplo: Jung (1990), Oliveira; Junges, (2012), Angera-
mi-Camon (2004;2008).
Diante das reflexões aqui levantadas, o objetivo desse es-
tudo é apresentar um relato de experiência desenvolvidas por es-
tudantes do curso de psicologia na disciplina de antropologia, ao
mesmo tempo em que propõe um reflexão sobre a crescente inser-
ção da espiritualidade no âmbito da saúde e do cuidado.

EDUCAÇÃO, SAÚDE E ESPIRITUALIDADE:


RELATO DE EXPERIÊNCIA NA DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA
214

METODOLOGIA

Esse estudo tem como metodologia um relato de experiên-


cia de natureza descritiva, a partir da experiência de estudantes
de psicologia na disciplina de antropologia no projeto Educação,
saúde e espiritualidade nos anos de 2018 e 2019. Esta disciplina é
ofertada no 3º período do Curso de psicologia da Faculdade Unin-
ta Itapipoca, com carga horária de 60 horas. A disciplina possui
como objetivo geral investigar a estrutura ontológica do ser huma-
no, pois é a partir dele que que tudo é deduzido. Dentro da disci-
plina foi criado o projeto de ensino Educação, saúde e espiritua­
lidade, com o objetivo de levar os discentes a refletirem sobre a
relação ontológica do homem com sua espiritualidade e como essa
interfere na sua existência.
Dessa maneira, esse relato tem como proposta apresentar
as percepções dos discentes de psicologia de duas turmas, sobre
a relação entre educação, saúde e espiritualidade. O cronograma
de atividades pedagógicas desenvolvidas nas duas turmas difere
quanto a culminância do projeto, pois no ano de 2018 foi elaborado
um portfólio do projeto e no de 2019 foi organizada uma oficina de
arte terapia que tinha como objetivo levar os discentes a refleti-
rem sobre sua essência e sua relação com a espiritualidade.
As estratégias pedagógicas durante a aplicação do projeto,
2018 e 2019 foram, aulas dialógicas, dinâmicas, exibição de filmes,
círculo de palestras com profissionais da área de teologia, psico-
logia, enfermagem, sociologia e filosofia, aula de campo no assen-
tamento indígena dos Tremembé da Barra do mundaú, Itapipoca
– CE, construção do portfólio, relatos de experiência, e estudo de
pesquisas que envolvem a temática espiritualidade e saúde. Além
de rodas de conversa com a finalidade de discutir a relação entre
espiritualidade e saúde, com a participação de líderes religiosos
tais como um pastor, um padre, um espirita e um babalorixá.

LUCIANA DE MOURA FERREIRA


215

Os resultados apresentados nesse artigo foram analisados e


organizados a partir dos textos construídos pelos alunos tanto nos
portfólios quanto na autobiografia da oficina de arte terapia. Res-
saltamos que as narrativas construídas pelos alunos são referentes
às percepções e vivências sobre a relação espiritualidade e saúde.
Após esta análise, foram organizados tópicos que apresentam as te-
máticas abordadas e desenvolvidas no projeto de Ensino, Educação,
saúde e espiritualidade no âmbito da disciplina de antropologia.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao refletir sobre o ser humano a partir da perspectiva glo-


bal, deve-se considerar sua individualidade, sua relação com o
meio, ou seja considera-lo a partir de uma perspectiva bio-psico-
social, nesse contexto a presença da espiritualidade contribui para
o fortalecimento da compreensão do indivíduo quanto o mundo
que o cerca e as problemáticas que o envolvem seja no âmbito da
saúde física ou psíquica, afinal a compreensão moderna de saúde
não está relacionada apenas a ausência de doenças, mas também
a aspectos comportamentais, sociais e culturais. (GARCIA, 2007)
Partindo do exposto, a análise dos portfolios nos levou a
perceber que os discentes envolvidos no projeto, mostraram gran-
de interesse sobre a temática educação, saúde e espiritualidade,
sobretudo na relação entre saúde e espiritualidade.
O projeto de ensino, foi criado com o intuito de despertar
nos discentes o interesse pela disciplina de antropologia, já que os
mesmos mostravam-se desmotivados com a disciplina e não com-
preendiam com clareza sua relevância para sua formação profis-
sional, dessa maneira, a proposta do projeto aliada aos métodos
pedagógicos mostraram-se eficientes quanto aos seus objetivos,
além de possibilitar uma mudança de percepção sobre a concep-
ção dos alunos quanto as diferentes religiões com as quais entra-
ram em contato.

EDUCAÇÃO, SAÚDE E ESPIRITUALIDADE:


RELATO DE EXPERIÊNCIA NA DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA
216

A análise das narrativas presentes nos portfólios revelaram


que diversos “pré-conceitos” sobre dogmas, doutrinas, rituais e
comportamentos foram ressignificados durante o projeto e as vi-
vencias por eles desenvolvidas. Para além dessa ressignificação de
valores e percepções houve também um maior envolvimento dos
discentes com a disciplina, através da participação e da proposi-
ção de debates e discussões que favoreceram o desenvolvimento
do senso crítico e reflexivo dos discentes diante dessa temática.
Segundo Reginato; Benedetto e Gallian (2016), despertar
nos discentes conhecimentos diferentes do modelo biomédico
favorece a valorização da espiritualidade durante a profissiona-
lização dos estudantes das áreas de saúde, ao mesmo tempo que
promove a aproximação entre pacientes e profissionais, que se
reconhecem a partir da condição humana, simbolizada pela fé e
confiança nos serviços de saúde. Partindo do exposto, abaixo apre-
sentamos a descrição das atividades e metodologias desenvolvidas
pelo projeto para trabalhar a relação entre educação, saúde e espi-
ritualidade.

RODAS DE CONVERSA SOBRE ESPIRITUALIDADE E


SAÚDE

Nas rodas de conversa os alunos foram convidados a pesqui-


sar sobre os conceitos de saúde, educação, educação e saúde, espi-
ritualidade, espiritualidade e saúde, psicologia e espiritualidade.
Foram realizadas quatro rodas de conversas onde contamos com
a presença de representantes religiosos de diferentes orientações,
dentre as quais os evangélicos (adventistas, testemunhas de Jeo-
vá, Bastista e Mormóns), espiritualistas (espiritas e umbandistas),
católicos e religiões sapienciais (Budistas e praticantes de yoga e
meditação). Para promover o debate nas rodas de conversa os con-
vidados eram convidados a discutir o tema “A relação entre saúde
e espiritualidade na percepção dos líderes religiosos”. Durante as

LUCIANA DE MOURA FERREIRA


217

rodas de conversa emergiram questões oriundas dos alunos tais


como: qual o papel da fé no processo de adoecimento/tratamento/
cura dos fiéis? A fé pode curar sem a ajuda dos profissionais da
saúde? Você conhece na sua igreja algum caso? Na sua religião
quais as atividades de cura/tratamento que são realizadas? Como
elas acontecem? Se não tiver resultados as pessoas perdem a fé?;
dentre outras questões que serão discutidas a posteriori.
Na segunda turma de antropologia onde o projeto foi apli-
cado, no ano de 2019, foram realizados círculos de debate com pro-
fissionais da saúde, enfermeiras e psicólogos, esses círculos de de-
bate tinham como intuito levar os alunos a conhecer a percepção
desses profissionais sobre a relação entre espiritualidade e saúde
e como essa relação se apresentava no cotidiano dos tratamentos
e da relação pacientes/profissionais. A questão que norteou essas
discussões foi “A contribuição da espiritualidade no processo de
tratamento e cura dos pacientes”, dentre a discussão surgiram
alguns relatos de casos por profissionais, além de discussões que
envolveram questões como luto, depressão, ideação suicida, morte
entre outros temas.
As discussões com os profissionais revelaram que a relação
espiritualidade e saúde é fator relevante no processo de aceitação
de diagnósticos, tratamento e cura, porém houve o destaque para
a necessidade de um maior aprofundamento dos profissionais so-
bre essa relação, pois muitos revelaram não sentirem-se aptos a
abordar e lidar com essa temática no cotidiano profissional.
Os estudos desenvolvidos por Oliveira e Junges (2012, p.473)
demonstraram que os profissionais da psicologia consideram essa
relação relevante, apesar da dimensão espiritual nem sempre ser
levado em consideração ou mesmo compreendida num contexto
amplo da vida do paciente.
Partindo da análise das rodas de conversa e dos círculos
de debate, constatou-se a presença da diversidade cultural e que
essa deve ser relevante na relação entre psicólogo/profissional

EDUCAÇÃO, SAÚDE E ESPIRITUALIDADE:


RELATO DE EXPERIÊNCIA NA DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA
218

e paciente. Ambas as atividades, (rodas de conversa e círculo de


debates) proporcionaram discussões interessantes e favoráveis
a ressignificação de percepções e valores sobre as religiões, suas
crenças, suas práticas e dogmas.
A maior parte dos portfólios trazia em sua descrição os as-
suntos debatidos e as reflexões proporcionadas pelas discussões,
com maior destaque para a necessidade dos profissionais da saúde
de conhecer a diversidade cultural e religiosa do Brasil para assim
promoverem a integralidade dos cuidados com a saúde.
Para Cavalheiro e Falcke (2014), conhecer a diversidade cul-
tural e religiosa do Brasil revela-se fator singular na relação psicó-
logo e paciente, à medida que revela um caminho para ampliação
dos cuidados com a saúde, além de favorecer novos cenários para
a formação dos acadêmicos de psicologia.

AULA DE CAMPO AO ASSENTAMENTO INDÍGENA


TREMEMBÉ DA BARRA DO MUNDAÚ – ITAPIPOC/CE

A aula de campo no Assentamento Indígena dos Tremen-


bés, teve como objetivo proporcionar a vivência de uma comuni-
dade que recebe atendimento de saúde diferenciado, à medida que
os profissionais de saúde que trabalham e atendem essa popula-
ção, são preparados para dimensionar a questão social, cultural
e religiosa, diante das relações profissionais e pacientes. A visita
ocorreu a partir do contato com a assistente social do assentamen-
to, que direcionou as turmas para um momento de imersão na cul-
tura dos Tremembés, a partir de uma conversa com as lideranças
indígenas, que repassaram para os estudantes de psicologia, suas
crenças, seus modos alimentares, seus valores e principalmente
sua compreensão sobre a relação entre doença e espiritualidade.
Após a conversa com as lideranças indígenas, houve uma
roda de conversas com os profissionais da equipe multidisciplinar
do assentamento, que destacaram como é o cotidiano relacional de

LUCIANA DE MOURA FERREIRA


219

acompanhamento dos tratamentos de saúde, e como a questão da


cultura e da espiritualidade se apresenta na prática profissional
desses e como ela contribui e interfere no processo saúde doença.
Os discentes ao relatar nos portfólios sobre a aula de cam-
po, destacaram a importância de conhecer as características cul-
turais, sociais e religiosas das populações atendidas pelos profis-
sionais da saúde. Revelaram ainda sobre a importância do diálogo
entre a comunidade indígena (seus representantes) e os profissio-
nais da saúde para a garantia de serviços de saúde em sua integra-
lidade aos indígenas.
Além disso os estudos relataram a riqueza da aula de campo,
por possibilitar o contato in loco com a diversidade cultural e reli-
giosa da população de Itapipoca, ao mesmo tempo que favoreceu a
vivencia praticas das discussões teóricas realizadas na disciplina.

PORTFÓLIO: AVALIAÇÃO CRÍTICA E REFLEXIVA DO


ALUNO

A avaliação existe com a finalidade de perceber o que o estu-


dante aprendeu e o que precisa ser reforçado, a partir de estraté-
gias que possibilitem que o discente aprenda o que não aprendeu
e dê continuidade a sua formação educativa, dessa maneira, faz-se
necessário que o professor utilize a avaliação como sua aliada e
do estudante. (CAMARGO DAS NEVES; GUERREIRO; AZEVEDO,
2016)
O modelo tradicional de avaliação vem mostrando fragili-
dades quanto ao acompanhamento do aprendizado do alunos, e
isso tem requerido dos professores novas estratégias de avaliação
que garantam o acompanhamento do avanço dos alunos e suas
limitações. Dentro dessa perspectiva, o portfólio apresenta-se
como uma das estratégias de avaliação eficaz, sendo considera-
do por Alves (2003), como um dos melhores métodos de ensino
aprendizagem. Segundo Vieira (2006), o portfólio é uma atividade

EDUCAÇÃO, SAÚDE E ESPIRITUALIDADE:


RELATO DE EXPERIÊNCIA NA DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA
220

minuciosa, que registra os conhecimentos dos discentes, a partir


da seleção e da organização de evidências de aprendizagem dos
discentes, essa atividade contribui para identificar a forma como
discentes e professores refletem sobre as implicações do processo
de aprendizagem.
A utilização desse instrumento avaliativo descreveu a com-
preensão e opinião dos discentes em relação as metodologias didá-
ticas utilizadas pela disciplina, outro fator relevante da utilização
desse instrumento avaliativo diz respeito a sua possibilidade de
promover reflexões por parte do discente no seu processo forma-
tivo. Ressaltamos que os portfólios elaborados pelos alunos auxi-
liaram no aprimoramento da consciência do aluno quanto o seu
aprendizado, pois ao documentar as experiências vivenciadas os
alunos revisitam os conhecimentos adquiridos e transcrevem os
conhecimentos subjetivos que que foram construídos a partir do
projeto e como esses conhecimentos foram ressignificados na in-
dividualidade de cada um.
Finalmente os portfólios, produzidos por esse projeto, con-
tribuíram para auxiliar os discentes a construir reflexões sobre
suas práticas e sobre o contexto social e cultural que estão inseri-
dos, promovendo uma mudança na percepção da postura do pro-
fissional de psicologia diante da diversidade cultural e religioso do
meio social onde estão inseridos.

OFICINA DE ARTE TERAPIA: SENSIBILIDADES E


REFLEXÕES NA CONSTRUÇÕES DE NARRATIVAS
AUTOBIOGRÁFICAS

A oficina de arte terapia desenvolvida na atividade, con-


sistiu na realização de uma meditação guiada com os discentes, a
qual tinha como finalidade despertar a autoconsciência de si, dos
seus sentimentos e sua relação com o mundo. Após a relação da
meditação os alunos foram convidados a refletir sobre como per-

LUCIANA DE MOURA FERREIRA


221

cebiam sua individualidade diante das questões educacionais, cul-


turais e religiosas que foram abordadas na disciplina.
As narrativas autobiográficas foram desenvolvidas a par-
tir da produção de um autorretrato com materiais diversos, tais
como contas coloridas, flores, linha, algodão colorido, retalhos
de tecidos, grãos, sementes e outros objetivos. A proposta dessa
produção autobiográfica era estimulada a partir da questão “Eu e
minha relação com a espiritualidade”. Após a confecção desses au-
torretratos os alunos elaboraram um pequeno texto apresentando
sua produção autobiográfica e como a espiritualidade influenciava
na sua auto percepção e na relação com o outro. Ressaltamos que a
utilização da oficina de arte terapia foi valiosa por impulsionar os
discentes a refletirem sobre suas percepções espirituais, compre-
endendo assim como a espiritualidade pode ser fator contribuinte
na relação saúde-doença, especialmente, quando essa dimensão é
valorizada na relação profissional/paciente.
Finalmente o desenvolvimento do projeto “ Educação, saú-
de e espiritualidade” no âmbito da disciplina de antropologia,
para além dos conhecimentos adquiridos pelos alunos, contribuiu
para a ampliação da percepção dos alunos sobre as disciplinas de
antropologia, sociologia e filosofia no âmbito da sua formação pro-
fissional, ao mesmo tempo que permitiu que os alunos observas-
sem na prática como a questão da individualidade, da cultura e da
espiritualidade são fatores relevantes dentro pratica profissional
e mesmo da relação com outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consciente da insatisfação dos alunos diante da disciplina


de antropologia, a qual os alunos consideravam irrelevante para
sua formação profissional, optamos pela criação e desenvolvimen-
to de um projeto de ensino “Educação, saúde e espiritualidade”,
que levasse os alunos do curso de psicologia, a perceberem na prá-

EDUCAÇÃO, SAÚDE E ESPIRITUALIDADE:


RELATO DE EXPERIÊNCIA NA DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA
222

tica a riqueza e importância dessa disciplina para a sua formação


profissional. Dessa maneira, o projeto despertou a compreensão
dos alunos sobre a importância das dimensões, culturais, espi-
rituais e sociais na construção da relação profissional/paciente,
além de atingir os objetivos propostos pela disciplina quanto a
compreensão do homem como um ser múltiplo, respeitando sua
individualidade e cultura.
Com a conclusão do projeto e da disciplina, percebemos a im-
portância de desenvolver projetos de ensino e metodologias ativas,
que possam estimular os discentes a buscar construir o conheci-
mento, relacionando teoria e prática. Os métodos de ensino utiliza-
dos, como roda de conversas, discussões, construção de portfólios,
aula de campo e oficina de arte terapia, além de motivarem os alunos
a se envolverem na disciplina, ainda foram fatores preponderantes
para o desenvolvimentos de competências e habilidades.
Finalmente, ao final da aplicação do projeto/disciplina re-
velou-se a contribuição de disciplinas da área de humanas, para
a formação dos profissionais de saúde, no caso de psicologia, pois
elas estimulam nos discentes a percepção da necessidade de com-
preenderem conceitos tais como cultura, individualidade, espiri-
tualidade para sua formação profissional, a qual deve ir além da
instrumentação técnica, para assim tornarem-se profissionais
que irão atender a demanda de cuidados integrais de um mundo
em constate transformação.

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EDUCAÇÃO, SAÚDE E ESPIRITUALIDADE:


RELATO DE EXPERIÊNCIA NA DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA
224

CANTIGAS DE RODA EM PRÁTICAS


COM A LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO
INFANTIL
Stefania Maia Araújo1
Luciana Matias Cavalcante2

RESUMO
O objetivo desse estudo é refletir sobre a área da linguagem no contex-
to da Educação Infantil, apresentando práticas de letramento/alfabetização
mediadas por cantigas de roda. Preocupamo-nos em entender de que forma
essas práticas de inserção ao universo da leitura e da escrita são facilitadas
pela música e pela brincadeira, respeitando os interesses das crianças, suas
singularidades e valorizando a cultura popular. Apresentamos nessa escrita
um relato de experiência do planejamento e desenvolvimento de práticas na
área da linguagem a partir da educação musical, ressaltando a indissociabi-
lidade entre letramento e alfabetização. Como resultados das experiências
destacamos que as atividades com a linguagem, desde os primeiros anos leti-
vos da criança, precisam ser vivenciadas considerando as especificidades da
infância, ou seja, em sua integralidade no que diz respeito ao movimento, ao
lúdico, a afetividade, dentre outros aspectos. Dessa forma, a música, e nesse
estudo priorizou-se especificamente as cantigas de rodas, demonstram ser
um dispositivo rico para estimular vivências de leitura e escrita no início da
fase escolar. Observamos que o letramento/alfabetização pode e deve ser tra-
balhado de forma prazerosa, com atividades que façam parte do repertório
infantil, contextualizadas, destacando o faz-de-conta, o brincar, o reinven-
tar, e o ressignificar próprios da linguagem, respeitando principalmente o
processo de desenvolvimento e interesses das crianças.
Palavras-chave: Educação Infantil. Alfabetização. Letramento.
Cantigas de roda.
1 Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Piauí. Docente da Educa-
ção Básica no município de Luís Correia – PI. Especialista em Educação Especial
e Inclusiva pelo Instituto Dexter de Ensino e em Língua Brasileira de Sinais pela
Universidade Aberta do Piauí – Universidade Federal do Piauí.
2 Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Ceará. Doutora em Edu-
cação pela Universidade Federal do Ceará. Professora Associada da Universidade
Federal do Delta do Parnaíba – UFDPar.

STEFANIA MAIA ARAÚJO • LUCIANA MATIAS CAVALCANTE


225

ABSTRACT
This study aims to reflect about the language field on the context
of children education, presenting literacy practices mediated by nursery
rhymes. We focused about understanding how these input practices to
the reading and writing universe were eased by songs and fun, respecting
children´s interests, their singularities and valorizing popular culture.
We present an experience report of the planning and development of
practices on language field coming from musical education, highlighting
literacy. As a result of the experiences we emphasize that since the first
school years of children education the activities with language need to
be experienced considering infancy specificities, in other words, in their
completeness concerning movement, playfulness, affection, among oth-
er aspects. Therefore, the music was specifically prioritized as nursery
rhyme on this study proving to be a rich device to stimulate reading and
writing experiences on the early days of school. We observe that litera-
cy can and should be worked on a pleasure way with activities that are
part of their contextualized musical background, highlighting the make
believe, the play, the reinvent, and the signify inherent to language, pri-
marily respecting the process of development and children’s interests.
Keywords: Children education. Literacy. Nursery rhymes.

INTRODUÇÃO

Essa escrita nasceu em discussões promovidas no grupo de


pesquisa “Diálogos e Reflexões em Educação”, como parte das ati-
vidades de docentes e discentes do Curso de Licenciatura em Pe-
dagogia, da Universidade Federal do Delta do Parnaíba, em parce-
ria com professores da educação básica, da rede pública da cidade
de Parnaíba – PI e municípios circunvizinhos. O objetivo desse es-
tudo é refletir sobre a área da linguagem no contexto da Educação
Infantil, apresentando práticas de letramento/alfabetização, me-
diadas por cantigas de roda. Preocupamo-nos em entender de que
forma as práticas de inserção ao universo da leitura e da escrita
são facilitadas pela música e pela brincadeira, respeitando as sin-
gularidades da infância e valorizando a cultura popular. Discutir

CANTIGAS DE RODA EM PRÁTICAS COM A LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL


226

letramento/alfabetização na Educação Infantil exige uma postura


de reflexão, de cuidado e valorização dos processos de desenvolvi-
mento infantil, dos interesses das crianças, na busca por superar
práticas tradicionais, centradas na memorização, na repetição e
em processos fragmentados de construção da escrita.
Para o desenvolvimento do estudo propomos um olhar re-
flexivo sobre nossas práticas, concordando com Zeichner (1993),
que percebe o professor como um prático reflexivo que produz
saberes ao problematizar e investigar a própria prática. Assim, en-
tendemos que o relato de experiência se apresenta como caminho
estimulador desse movimento do professor pesquisador, reflexivo
em seus fazeres cotidianos, inquieto com o que planeja, sistemati-
za, produz e executa no contexto da docência. Portanto, nas trocas
de experiências, as autoras desse estudo produziram essa escrita,
dialogando sobre as práticas na Educação Infantil, no ambiente de
uma escola pública municipal da zona urbana na cidade de Luís
Correia, Estado do Piauí, especificamente com duas turmas de ní-
vel I, que atende crianças na faixa etária de três e quatro anos.
Pretendemos nessa escrita enfatizar a indissociabilidade
entre letramento e alfabetização, ampliando o conceito de alfabe-
tização a partir das experiências sociais com a escrita, reconhe-
cendo que a imersão em uma sociedade grafocêntrica já inicia
esses processos independente da escola, ou seja, a criança já pen-
sa sobre a escrita e amplia esse movimento com a vida escolar .
Nessa fase do trabalho escolar é preciso reconhecer essa imersão,
mas também a cultura própria da infância que é o brincar, por-
tanto defendemos que a música favorece práticas significativas
de letramento/alfabetização, destacando a consciência sonora, o
movimento, a ludicidade, a dimensão sociocultural e emocional e
respeitando o momento vivido de desenvolvimento do corpo, da
oralidade, de conceitos e compreensão do mundo adulto, constru-
ção de vocabulário e da expressividade.

STEFANIA MAIA ARAÚJO • LUCIANA MATIAS CAVALCANTE


227

As discussões postas na atualidade acerca do momento ade-


quado para iniciar de modo mais sistemático as práticas escolares
de alfabetização não sinalizam para um consenso entre educado-
res, pesquisadores e estudiosos da área. Esse é um assunto bastan-
te discutido no cenário da escola: devemos ou não trabalhar a al-
fabetização com as crianças na Educação Infantil, principalmente
por que a história da alfabetização no Brasil expressa uma traje-
tória de aplicação de métodos tradicionais, centrados na codifica-
ção e decodificação do signo escrito, sem considerar que a língua é
viva e que faz parte das experiências de vida de cada sujeito imerso
na sociedade, ou seja, uma perspectiva de alfabetização reduzida
a um código de transcrição da língua oral, fragmentado, a ser me-
morizado e reproduzido?
Diante dessa polêmica é preciso considerar que a criança,
imersa na vida em sociedade, está em contato com o mundo le-
trado e assim como o brincar, a realidade social mais ampla faz
parte da sua vida, portanto as práticas de letramento são promo-
vidas nas experiências de vida, ou seja, a criança já experiencia o
letramento em seu cotidiano, por exemplo no contato com rótulos
de produtos industrializados, assistindo desenhos de sua prefe-
rência, no manuseio de livros, no contato com as mídias digitais
através da internet e uso de celular, dentre outras situações. Por-
tanto, a escola não deve negar essas experiências ou mesmo os in-
teresses pessoais das crianças pela língua escrita, possibilitando a
construção do saber escolar a partir de conhecimentos adquiridos
em vivências sociais, pois negá-las seria neutralizar esses saberes
e focar apenas nos conteúdos programáticos, estipulados por pla-
nos bimestrais e anuais, desconsiderando a realidade cultural dos
discentes.
Tomando por base a valorização dos campos de interesse da
infância, para propor uma aprendizagem significativa e sistema-
tizada, investigamos como a educação musical, especificamente
as práticas com cantigas de roda, podem ser fortes aliadas para

CANTIGAS DE RODA EM PRÁTICAS COM A LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL


228

despertar na criança o gosto pela leitura e, além dessa perspecti-


va, compreender os limites na utilização da música como recurso
para o letramento/alfabetização nas primeiras etapas de escolari-
zação, tendo em vista que diversifica a linguagem e abre janelas
para diferentes atividades, tais como o desenho, movimentos e
ritmos, a oralidade, dentre outros. Nessa esteira, tecemos nossas
considerações a partir da descrição e análise das ações pedagógi-
cas, sistematizando experiências de ensino e dialogando acerca
das concepções que consubstanciam nossos fazeres.

RELATOS DE EXPERIÊNCIA NA EDUCAÇÃO


INFANTIL: A MÚSICA MEDIANDO PRÁTICAS DE
LINGUAGEM

Propomos o relato de experiência como caminho de siste-


matização e reflexão de práticas, em diálogo com professores e
licenciandos que integram o grupo de estudo e pesquisa do qual
fazemos parte. Nesse ambiente realizamos leituras e discussões
a partir de diversos estudos na área de letramento/alfabetização,
compartilhando nossas dúvidas, inquietações e experiências e foi
nesse processo que iniciamos essa escrita, questionando sobre a
música e a dimensão pedagógica circunscrita nessa linguagem,
enquanto forma de expressão e também por representar um re-
curso estimulante e significativo.
Observamos, em diversas situações de contato com o uni-
verso escolar que a música adentra a escola de forma mais incisiva
em momentos de lazer, nas datas comemorativas, eventos festivos,
ações rotineiras (hora do lanche, relaxamento, entre outros), na
maioria das situações desvinculada do planejamento diário. Dessa
forma, a presença da música na escola, nas experiências observa-
das, ainda se encontra distante do que concerne a Lei 11.769/2008,
que viabiliza o ensino da música como conteúdo curricular obri-
gatório nas escolas de educação básica de maneira significativa,

STEFANIA MAIA ARAÚJO • LUCIANA MATIAS CAVALCANTE


229

no que tange aos saberes próprios dessa linguagem, mas que na


prática não se efetiva.
A presença da música na Educação Infantil é incentivada
pela BNCC ao apresentar o campo de experiência “Traços, sons,
cores e formas” destacando experiências e práticas que levem a
criança a “vivenciar diversas formas de expressão e linguagens,
como as artes visuais (pintura, modelagem, colagem, fotografia
etc.), a música, o teatro, a dança e o audiovisual, entre outras.”
(BRASIL, 2017, p. 41). Com igual propósito a Lei Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – LDB, Nº 9394/1996, afirma que essa etapa
da educação básica tem por finalidade o desenvolvimento integral
da criança e, nesse sentido, a música assume uma função privile-
giada por conseguir alcançar os aspectos que englobam o desen-
volvimento infantil (BRASIL, 1996). A criança, por intermédio da
música, consegue expressar-se através dos movimentos, sons,
ritmos, exploração dos espaços, descobertas sensoriais, afetivas
e pelo contato com a diversidade cultural, que confirma a impor-
tância que a música alcança para a formação integral das pessoas.
O potencial da música na escola, em nossa compreensão,
vai além de propiciar o relaxamento e o lazer ou mesmo enquanto
ambientação de festividades, mediando atividades alusivas às da-
tas comemorativas, mas a música pode impulsionar significados
renovados às práticas de letramento, às práticas de psicomotrici-
dade, à escuta sensível e interpretação, em atividades com a orali-
dade, promovendo o senso crítico, estético e novas experiências
culturais. Nos processos de letramento/alfabetização a música
auxilia-nos a repensar práticas tradicionais, centradas em um
fazer mecânico e descontextualizado, em muitos casos restrita a
ensinar letras e números ou apenas anunciar a rotina escolar (mo-
mento da acolhida, momento do lanche, momento da saída). Nesse
contraponto, quando percebida em todo seu potencial, a música
entra na sala de aula para fazer parte de um processo contínuo de
aprendizagem e pode ser explorada em diferentes atividades, esti-

CANTIGAS DE RODA EM PRÁTICAS COM A LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL


230

mulando a percepção, a interação, o movimento, o ritmo, a escuta,


a fala, a interpretação, constituindo dispositivo completo que sub-
sidia uma proposta interdisciplinar e favorece o desenvolvimento
da criança a partir de uma aprendizagem significativa.
Nesse sentido, entendemos que a compreensão de letra-
mento/alfabetização trazida pelo(a) docente é fundamental na
transformação do seu fazer pedagógico, assim como sua percep-
ção de infância, de Educação Infantil, dos objetivos de aprendiza-
gem que devem conduzir o trabalho docente nesse contexto, no
momento em que vai planejar a mediação didática. Fazendo uso
da música como recurso para o ensino, precisa conhecer técnicas
que a musicalização permite explorar, tais como o trabalho com o
corpo, com o texto (letra da música), com as rimas e sons (consci-
ência fonológica) e criar outras possibilidades, pois com base tam-
bém no potencial criativo a musicalização impulsiona situações
envolvendo a ludicidade e o dinamismo, como assinala Cascudo
(2001).
Considerando o conceito ampliado de alfabetização em sua
indissociabilidade com o letramento, entendendo que o contato
com a escrita em suas mais diferentes expressões integra esse
conceito, elegemos as cantigas de roda como dispositivos cen-
trais para as práticas com a linguagem, em uma perspectiva in-
terdisciplinar, tomando a música como principal recurso para a
promoção de uma aprendizagem significativa de leitura e escrita.
Nessa articulação, a proposta favoreceu a interação, a oralidade, a
psicomotricidade, a interpretação, leitura e escrita, expressas em
dinâmicas de escuta e canto da música, dos movimentos e teatra-
lização, fantasiando e encenando (imaginação e criatividade), da
socialização das experiências através da roda de conversa (orali-
dade), da escrita com gravuras (atividades de desenho), da dança
e expressão corporal, destacando nossas raízes e ancestralidade.
Ainda foi possível trabalhar posturas de trabalho em grupo na
interação com os pares (diálogos), destacando a cooperação e a

STEFANIA MAIA ARAÚJO • LUCIANA MATIAS CAVALCANTE


231

solidariedade. Ao final avaliamos os resultados obtidos no desem-


penho das atividades.
Buscamos materiais concretos de fácil obtenção para de-
sempenhar essas atividades, estimulando sons através da voz e
do próprio corpo e materiais escolares como lápis de cor, pincéis,
tesoura, papéis, cola, entre outros. Dispomos do espaço da escola
para praticar as rodas, as danças, os movimentos, as interpreta-
ções, as interações do grupo, estimulando a expressão criativa das
crianças, para reinventar processos de aprendizagem e constru-
ção de novos saberes.
Iniciamos com a apresentação da música “um, dois, três
indiozinhos”, fizemos a roda e começamos a coreografar a letra
da música utilizando as mãos para representar os indiozinhos, o
jacaré, o pequeno bote, navegando/quase virando e o corpo para
o ritmo da música. Após a canção usamos o caderno de desenho
para recriar a letra da cantiga no papel. A maioria das crianças
desenhou os personagens como o índio e o jacaré. Segundo Fer-
reiro (2001, p. 16), “os indicadores mais claros das explorações que
as crianças realizam para compreender a natureza da escrita são
suas produções espontâneas”, ou seja, a partir da vivência da mú-
sica as crianças foram estimuladas a recriarem a canção por meio
de uma produção escrita, respeitando seu modo de perceber a
escrita, sua expressão, ampliando também nosso conceito acerca
do registro escrito, para além do modelo alfabético, que pode ser
representado como registros da fala e do que se quer comunicar,
ou seja, passaram a compreender o que a escrita representa e seu
papel social, além de indicar os modos de compreensão ou hipóte-
ses sobre a escrita alfabética.
Portanto, é importante valorizar o desenho e as diversas
formas de escrita da criança, assim como identificar suas contri-
buições aos processos de letramento/alfabetização. Evidenciamos
o estreito laço que a arte possui para o desenvolvimento do pensa-
mento, da socialização, da afetividade, assim como é forte aliada

CANTIGAS DE RODA EM PRÁTICAS COM A LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL


232

para o desenvolvimento dos processos de construção da leitura e


escrita, diversificando a produção de linguagens diversas. Nesse
contexto, o desenho infantil constitui prática importante por am-
pliar o repertório de registros da criança, de expressão de sua sub-
jetividade e comunicação, possibilitando conhecer o olhar sobre a
vida social e particular, a interpretação, a criação, o senso crítico,
estético, a afetividade, etc., favorecendo também a motricidade e
a cognição, como por exemplo, a função simbólica presente nas
produções e os sistemas de representação que estimulam o desen-
volvimento das operações mentais (PILAR,1996).
No decorrer da atividade com a cantiga de roda, especifi-
camente no momento das produções de escrita individual, pro-
pomos a cada criança a leitura de sua escrita, solicitando que
escrevessem o nome da personagem principal. Várias crianças
desenharam o jacaré e/ou o índio. Elas fizeram como solicitado,
colocando o nome representado por sua escrita, constituindo ga-
ratujas para o modelo de escrita convencional. Ferreiro (2001, p.
16) confirma que: “quando uma criança escreve tal como acredita
que poderia ou deveria escrever certo conjunto de palavras, está
nos oferecendo um valiosíssimo documento que necessita ser in-
terpretado para poder ser avaliado”.
Em cada desenho que a criança faz, o jogo simbólico é viven-
ciado, constituindo, portanto, em caminho importante para am-
pliar sua imersão em práticas de letramento/alfabetização, pois ao
desenhar problematiza o tema e recria a partir de seu imaginário,
representando pelo desenho o que deseja comunicar (PILLAR,
1996). Concomitantemente, o desenho se torna um precursor do
desenvolvimento da escrita alfabética, mediando processos de le-
tramento/alfabetização.
As crianças, em um terceiro momento da sequência didáti-
ca, formaram a roda de conversa para socializar suas produções,
trabalhando a oralidade. Cada uma apresentou oralmente sua arte
e sua escrita. Notamos que muitas crianças tiveram facilidade em

STEFANIA MAIA ARAÚJO • LUCIANA MATIAS CAVALCANTE


233

expressar seus pensamentos acerca do desenho produzido, outras


ficaram mais tímidas e fizeram a apresentação com a ajuda da pro-
fessora. Observamos nessa atividade de oralidade que as crianças
identificaram a diferença entre o desenho e os símbolos que repre-
sentam a escrita convencional, nesse sentido Ferreiro (2001, p. 45
e 46) explica:
[...] que as crianças elaboram ideias próprias a respeito
dos sinais escritos, ideias estas que não podem ser atribu-
ídas à influência do meio ambiente. Desde aproximada-
mente os quatro anos, as crianças possuem sólidos crité-
rios para admitir que uma marca gráfica possa ou não ser
lida, antes de serem capazes de ler os textos apresentados.
O primeiro critério organizador de um material compos-
to por várias marcas gráficas é o de fazer uma dicotomia
entre o “figurativo”, por um lado, e o “não-figurativo”, pelo
outro. Isto é, aquilo que é “uma figura” não é para se ler
(embora possa ser interpretado). Para que se possa ler, são
necessários outros tipos de marcas, definidos inicialmen-
te por pura oposição ao figurativo e, às vezes, na ausência
de qualquer termo genérico (“letras” ou “números”).

Refletimos no momento de socialização e expressão oral que


o processo de representação do imaginário emergiu da interligação
entre as atividades com a cantiga de roda, a brincadeira e movi-
mento de cantar e teatralizar o “indiozinho no barco” navegando/
quase virando, e a prática de desenhar e escrever. Nesse sentido,
sentiram-se confortáveis no exercício de expressão escrita e pelas
vivências pessoais de letramento já conseguiram perceber certo
jogo de regras que a escrita alfabética traz, identificando que o dese-
nho é uma figura que representa os acontecimentos/objetos/seres
que aparecem na canção, e que essa figura pode ser denominada de
outra forma quando se propõe a escrita, com outros símbolos. Con-
cluímos que as crianças demonstraram compreender as diferenças
entre escrita convencional e desenho e fizeram uso também do pen-
samento criativo para seguirem essa ordenação (FERREIRO, 2001).

CANTIGAS DE RODA EM PRÁTICAS COM A LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL


234

Em continuidade à sequência didática, no dia seguinte, fi-


zemos uma roda e cantamos a música do indiozinho de maneira
que cada um pudesse criar seu ritmo e sua coreografia. Algumas
crianças bateram palmas, outras tentavam fazer a coreografia do
dia anterior, outras pulavam e outras imitavam o jacaré abrindo a
boca ou o índio colocando a mão na cabeça, imitando uma pena ou
o barco navegando. Ficou claro que as crianças recriavam a coreo-
grafia a partir da sua imaginação. Nossos parceiros nessa jornada
se concentraram na história cantada, deram vida a cada perso-
nagem, experimentando seu corpo, interagindo com o grupo, em
momento de entrega e de felicidade (CASCUDO 2001).
O momento de expressão livre, mediados pela arte, pelo mo-
vimento, pela musicalização abriu espaço para que escolhessem
diferentes formas de comunicação, principalmente pelo corpo.
Percebemos o quanto as crianças se envolveram na atividade, de-
monstrando grande satisfação em recriar os passos que eram can-
tados na música, a alegria tomou conta da sala de aula à medida que
elas cantavam e dançavam ao som da cantiga de roda e foi visível o
prazer que sentiram pela liberdade de expressão, pela dança e pela
música. Saíram de seus locais e começaram a ocupar os espaços
diferenciados da sala, sentiram-se livres para experimentar suas
emoções. Essa atividade deixou bem evidente o quanto a música
conseguiu alcançar a verdadeira essência da infância, de levá-las
para o mundo da brincadeira, da alegria, da espontaneidade.
Como última fase da sequência didática, passamos a traba-
lhar com a letra da canção, apresentando a escrita da música em
um cartaz, afixado na parede da sala de aula. Como no planejamen-
to um dos objetivos era o reconhecimento da vogal “i”, as crianças
foram identificando a letra na música e circulando cada uma. Em
sequência, desenhamos a letra “i” e fizemos dela um índio com um
cocar, uma parte das crianças coloriram a letra “i” fantasiadas de
índio e o restante ajudou a desenhar em uma cartolina o cenário
da música (o rio, o barco, o jacaré, o céu), depois elas recortaram a

STEFANIA MAIA ARAÚJO • LUCIANA MATIAS CAVALCANTE


235

letra “i” e colaram no bote. Todo planejamento foi seguido com o


objetivo também de apresentar a letra “i”, sua presença nas pala-
vras e seu som, mas no caminho perseguido foi possível envolver
cada criança na construção desse saber, desenvolvendo muitas
outras dimensões em sua formação.
Assim, compreendemos a importância de propor práticas
de letramento/alfabetização a partir dos interesses das crianças,
valorizando o lúdico e o brincar nesses processos. As práticas, no
modo como pensamos a sequência didática, com cantigas de roda,
são exemplos de como podemos desenvolver uma ação interdis-
ciplinar, centrada na cultura da infância e também trabalhar di-
ferentes linguagens. Foram práticas que buscaram superar uma
perspectiva de ensino mecânico e repetitivo, utilizando outras es-
tratégias que se mostraram mais significativas às crianças, como
é possível perceber na descrição da sequência didática realizada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando a necessária construção de uma concepção


progressista de alfabetização pelo viés de uma pedagogia crítica,
norteamos nossas práticas na perspectiva de valorização das ex-
periências sociais dos sujeitos com a linguagem, identificando a
língua como viva e em permanente transformação, na perspectiva
de que não há sujeito sem saberes nessa área pela imersão social
e contato permanente com a língua em suas experiências de vida,
criando e recriando a linguagem em seu contexto. Nesse sentido,
Luizato (2003, p 71) pondera que “[...] nas sociedades urbanas mo-
dernas, não existe grau zero de letramento” e, por esse caminho
também podemos afirmar que esse sujeito não constitui tábula
rasa nos processos de alfabetização, haja vista considerarmos,
assim como propõe Ferreiro e Teberosky (1999, p. 24), a íntima re-
lação entre letramento e alfabetização, ou seja, a criança cria a lín-
gua e elabora saberes acerca de sua construção, pois “[...] no lugar

CANTIGAS DE RODA EM PRÁTICAS COM A LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL


236

de uma criança que recebe pouco a pouco uma linguagem inteira-


mente fabricada por outros, aparece uma criança que reconstrói
por si mesma a linguagem, tomando seletivamente a informação
que lhe provê o meio”. Essa percepção propõe a superação de um
modelo tradicional associacionista de aquisição da língua, presen-
te em métodos tradicionais de ensino ao longo da história da alfa-
betização no Brasil.
De igual modo, na proposição de uma pedagogia crítica, as
práticas na Educação Infantil devem ser planejadas consideran-
do a ludicidade, a brincadeira, o faz-de-conta, a dança, a música,
o movimento, entre outros aspectos e recursos que dialogam com
o contexto da infância, além de considerar o desenvolvimento in-
fantil em seus diferentes aspectos como principal objetivo. Nessa
reflexão, qual o lugar do letramento/alfabetização na Educação In-
fantil? A escola abrirá espaço para as práticas sociais de letramen-
to/alfabetização que já acontecem no convívio social das crianças
com a escrita, respeitando tempos e espaços, concepções e cons-
truções pessoais de escrita, problematizando a língua pelo letra-
mento, pela arte, pelas brincadeiras, pela dinâmica presente em
práticas lúdicas. De acordo com Mariani (2011), a música é veículo
que dinamiza as práticas sociais e também educacionais, pois per-
mite o movimento, o ritmo, estimula a interpretação/coreografia
da letra, estimula a imaginação, o faz-de-conta, desenvolve a sensi-
bilidade para ouvir e promove a concentração. Para as crianças as
cantigas de roda entregam um conjunto cultural facilmente iden-
tificado com o mundo ao seu redor, por ser algo que represente os
diferentes modos de vida e os elementos que nos cercam, tornan-
do nossa prática mais significativa dentro dos muros escolares.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a


Base. Brasília, MEC/CONSED/UNDIME, 2017.

STEFANIA MAIA ARAÚJO • LUCIANA MATIAS CAVALCANTE


237

BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 11.769, de 18 de agosto de


2008. Brasília/DF,
2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2008/lei/l11769.htm>. Acesso em 11 fev. 2015.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei núme-
ro 9394, 20 de dezembro de 1996.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed.
São Paulo: Editora Global, 2001.
FERREIRO, Emilia. Reflexões sobre alfabetização. Tradução Horá-
cio Gonzales (et. al). 24. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escri-
ta. Porto Alegre: Artmed, 1999. 300 p.
LUIZATO, Carla. Contexto de letramento: é possível trabalhar com
produção de texto na Educação Infantil. Leopoldianum – revista de
estudo e comunicação, v. 28, n. 78, p. 71-73, jun. 2003.
MARIANI, Silvana. Émile Jaques-Dalcroze: a música e o movimen-
to. In.: MATEIRO, Teresa; ILARI, Beatriz (Org.). Pedagogias em edu-
cação musical. Curitiba: Ibepex, 2011.
PILLAR, Analice Dutra. Desenho e escrita como sistemas de repre-
sentação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
ZEICHNER, Kenneth M. A formação reflexiva de professores: ideias
e práticas. Lisboa: EDUCA, 1993.

CANTIGAS DE RODA EM PRÁTICAS COM A LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL


Pesquisa
241

CIBERESPAÇO E MICROPOLÍTICA:
UMA ANÁLISE DO ATIVISMO NAS
REDES SOCIAIS
Zilda Maria da Silva Dutra1
Sofia Ísis Dutra Rocha2

RESUMO
Diante de estudos sobre poder, relações sociais e tecnológicas,
é possível perceber o ciberespaço como propulsor do crescente exercí-
cio de novos formatos de micropolítica por agentes não estatais através
do ativismo político na rede e o sujeito anônimo como resistência à um
“poder coercitivo” do Estado, como classificado por Foucault (1979). No
entanto, para compreender tal relação, é preciso identificar os elemen-
tos que constituem esse ciberespaço e seus agentes quanto à força emer-
gente das novas tecnologias, focando em plataformas de redes sociais que
permitem de forma mais ativa o exercício da micropolítica centrada no
sujeito anônimo, como o Twitter.
Palavras-chave: Ciberespaço. Redes Sociais. Micropolítica.

ABSTRACT
In the face of studies on power, social and technological relations,
it is possible to perceive cyberspace as a driver of the growing exercise
of new formats of micropolitics by non-state agents through political ac-
tivism in the network and the anonymous subject as resistance to a “co-
ercive power” of the State , as classified by Foucault. However, in order
to understand this relationship, it is necessary to identify the elements
that constitute this cyberspace and its agents regarding the emerging
strength of new technologies, focusing on social networking platforms
that more actively allow the exercise of micropolitics centered on the
anonymous subject, such as Twitter.
Key-words: Cyberspace. Social Networks. Micropolitics.
1 Profa. Mestra em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN) – Pau dos Ferros. E-mail: zildamarialetras@gmail.com.
2 Graduanda em Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Ceará
(UFC) – Fortaleza. E-mail: sofiaisis@alu.ufc.br.

CIBERESPAÇO E MICROPOLÍTICA: UMA ANÁLISE DO ATIVISMO NAS REDES SOCIAIS


242

INTRODUÇÃO

As tecnologias sempre tiveram importância vital na manu-


tenção dos ambientes humanos, surgiram nas sociedades, não só
nas atuais, como algo inerente, como que já fizessem parte tam-
bém da cultura de todos os povos. Não é de hoje que elas se fa-
zem necessárias, já que desde o início das civilizações as técnicas
apropriadas pelos homens moldaram a sociedade em que viviam,
passando pela agricultura até a internet. Assim, seguindo a teo-
ria proposta por McLuhan (1971), tais ambientes devem ser vistos
como totais, como agentes de transformação social. Desse modo,
as novas tecnologias, que fogem das precursoras mídias massivas,
não são isentas desse caráter ao criar um novo ambiente pulsante,
virtual e ao mesmo tempo, intensamente humano: o ciberespaço.
Esse, entendido como meio pela percepção McLuhaniana, em sua
forma intensa como transformador social, reconfigura o homem
e suas ações.
Na intenção de aprofundarmos nossas discussões sobre
o ciberespaço vemos a necessidade, a priori, de apresentar algu-
ma definição do que seja. Monteiro (2007) em um estudo acerca
das definições e conceitos de ciberespaço, de início, dá a seguinte
­definição:
O ciberespaço é definido como um mundo virtual porque
está presente em potência, é um espaço desterritoria-
lizante. Esse mundo não é palpável, mas existe de outra
forma, outra realidade. O ciberespaço existe em um local
indefinido, desconhecido, cheio de devires e possibilida-
des (MONTEIRO, 2007, p. 1).
Assim, podemos entender que esse meio em si mesmo já
carrega potencialidade e conteúdo, chegando ao que é pontuado
por McLuhan (1971) em Os Meios de Comunicação Como Extensões
do Homem, que propõe o meio como mensagem e não como ape-
nas transmissor dessa. Esse é um ponto importante para com-

ZILDA MARIA DA SILVA DUTRA • SOFIA ÍSIS DUTRA ROCHA


243

preender que o ciberespaço, como transformador, molda nossa


consciência ao ponto de percebermos as novas tecnologias como
extensões dos nossos sentidos, pois transpiramos esse meio e nos
projetamos nele e através dele.
Entender a tecnologia como extensão do homem nos leva a
refletir sobre a relação entre ambos dentro desse espaço e como
ele é modificado pelo meio. A partir desse entendimento é possível
observar a estreita relação que o ser humano sempre teve com as
tecnologias e a evolução dessas. Sobre essa relação dizemos que a
sociedade e tudo que a compõe – costumes, comunicação, relações
sociais – é produto da relação entre o ser humano e a técnica. Po-
demos concluir também que esse vínculo não é exclusivo da atua-
lidade, haja vista, que a tecnologia sempre atuou como extensão
do homem e dos seus sentidos. O que nos encaminha a proposição
de um novo ser humano, e, por esse pressuposto utilizamos aqui
a mesma expressão que Di Felice e Lemos (2014) abordam em sua
obra, citando-a como título de um livro do filósofo francês Michel
Puech, “Homo sapiens technologicus”. Assim, justifica-se tal ex-
pressão não só a nível de titulação de uma obra, mas seguindo a
perspectiva de que devido às alterações da tecnologia não somos
mais compreendidos enquanto Homo sapiens, e sim como uma
nova espécie.
No entanto, segundo Di Felice e Lemos (2014) e conforme
reflexões acerca dos pensamentos de McLuhan (1971), a sapiência
do homem sempre esteve vinculada à relação que existe entre a
tecnologia e como essa afeta o meio. Ou seja, por essa lógica, sem-
pre fomos Homo sapiens tecnologicus. Apesar dessas constatações,
é possível perceber o quanto esse vínculo tecnologia-ser-humano
ainda é entendido como opositivo e hierárquico por muitos, con-
sequência da óbvia eurocentrização das nossas perspectivas. En-
tão, para compreendermos de fato essa relação, precisamos con-
siderar outras perspectivas para além da já constituída Ocidental,
que constatam a técnica como intrínseca ao ser humano.

CIBERESPAÇO E MICROPOLÍTICA: UMA ANÁLISE DO ATIVISMO NAS REDES SOCIAIS


244

Ainda que consideremos o ponto de vista do Homo sapiens


tecnologicus, não podemos ignorar a evidente transformação do ser
humano daquele que descobre a natureza para aquele que trans-
forma essa e se fertiliza através das tecnologias digitais. Assim, por
meio dessa mudança, as formas de comunicação se alteram, de modo
a inferir diretamente nos modos de exercer política na sociedade.

AS MÍDIAS DE MASSA

As mídias de massa, anteriores à informatização, exerciam


comunicação de caráter unidirecional, de modo que a opinião pú-
blica era relativizada à opinião que era publicada pelos jornalistas,
políticos e qualquer outros que tivessem real acesso à produção de
conteúdo para os meios de comunicação de massa – rádio, televi-
são, jornal. Desse modo, a opinião do povo, na verdade não era a do
“povo”, e sim a de quem estava no poder dos meios de comunica-
ção: os grandes empresários, políticos e jornais, que também eram
totalmente influenciados por aspectos políticos ou mercadológi-
cos. Se essa conjuntura era injusta para a população em geral, as
minorias foram, e de certa forma ainda são, as mais atingidas por
essa estrutura comunicacional unidirecional, pois lhes é negado
o direito de voz. Fato que podemos assimilar ao fazer um recor-
te do Brasil e seu histórico em relação à negligência das mídias de
massa e consequentemente do poder público quanto à questões de
gênero, raça, sexualidade, ou seja, não há representatividade nem
espaço ativo, principalmente para as minorias, na comunicação
das mídias de massa anteriores.

O CIBERESPAÇO E AS REDES SOCIAIS: UM ESPAÇO


PARA O ATIVISMO

Na perspectiva de Massimo Di Felice e Ronaldo Lemos


(2014), o contexto do ciberespaço, recente e constituído a partir

ZILDA MARIA DA SILVA DUTRA • SOFIA ÍSIS DUTRA ROCHA


245

da introdução de novas tecnologias e do homem, em sinergia com


essas, permitiu a ascensão de um novo formato comunicacional,
em que as plataformas/sites de redes sociais e interação passam
a ser mídias comunicativas de extremo potencial democrático.
Esse novo cenário comunicacional afeta o meio social de forma
intensa, porque permite a participação pública de forma direta e
individual através das plataformas de rede social do ciberespaço,
como o Facebook, Instagram, e principalmente o Twitter, que como
vamos pontuar a seguir é referência no que diz respeito à expres-
são da opinião pública nas redes em tempo real. Sendo assim, cada
pessoa passa a ser um comunicador de sua própria opinião sem
a necessidade de intermediação, concebendo novas discussões
(sempre em atualização) sobre protagonismo e representatividade
das minorias sociais.
Com base nessas discussões, percebemos a criação de um
meio em que torna possível um “novo modelo de democracia, no
qual não existe um poder central, uma liderança” (DI FELICE;
­LEMOS, 2014, p. 39). Dessa forma, as novas tecnologias viabili-
zam uma participação política mais abrangente, quando o aces-
so à informação, cultura, conhecimento e protagonismo de fala
é democratizado. Desse modo os indivíduos passam a participar
e influenciar, de fato, sobre a conjuntura política do país, partin-
do de micropolíticas exercidas no ciberespaço que se expandem
para o externo. Entendendo aqui as micropolíticas como ações
em proporções estruturais alternativas à sistemática da macro-
política, isto é, uma política intermediada, e ainda de natureza
­insubordinada.
Acreditamos, portanto, que a nova conjuntura social em
que vivemos advém da transformação do ser humano e das suas
formas de comunicação, e por essa perspectiva o funcionamento
dessa nova esfera social de participação política por meio da rede
precisa ser assimilado. Para isso, é preciso entender duas coisas:
como o ciberespaço se constitui como um elemento virtual; e as

CIBERESPAÇO E MICROPOLÍTICA: UMA ANÁLISE DO ATIVISMO NAS REDES SOCIAIS


246

formas de interação na rede, que moldam esse fenômeno da comu-


nicação nas democracias, principalmente a brasileira.
Visto essa necessidade, podemos inferir, conforme Pierre
Levy (1996), a propriedade de ser virtual inerente ao ciberespaço.
Isso, pois, o virtual, ao contrário do entendido pelo senso comum,
não tem caráter imaginário, muito menos não presente. Levy (1996)
nos esclarece acerca da compreensão do virtual como diferente
do possível, uma vez que não é estático e constituído como esse,
e oposto ao atual, já que se desvelam como duas maneiras de ser
diferentes complementando-se no ciberespaço. Esse espaço é
regulado pelo ciclo contínuo dos processos de atualização para
virtualização e vice-versa, de modo que infere a passagem de uma
solução dada, própria do atual, para um novo complexo proble-
mático, próprio do virtual. Dessa forma, apreende-se o caráter
virtual do ciberespaço, em razão de que é inteiramente envolvido
em complexos problemáticos que envolvem as novas formas de co-
nhecimento, interação e construção de sentido. Nesse espaço vir-
tual, novas velocidades são projetadas e a posição geográfica dos
aspectos descritos acima perde sua pertinência frente a um meio
desterritorializado, nômade e isento de inércia, no qual a sincro-
nização tomará uma posição de lugar e a unidade de tempo será
distribuída pela interconexão (LEVY, 1996).
Partindo dessa perspectiva, é importante compreender
como o virtual muda nossas experiências na rede e como influi nas
micropolíticas diárias nesse meio. Com efeito, o hipertexto surge
como o vigente sistema de comunicação no meio virtual, nômade
e pulsante, favorecendo a virtualização dos sentidos humanos a
partir desse meio, de modo a remeter à concepção de McLuhan
(1971) da tecnologia como extensão do homem e dos seus sentidos.
Diante disso, é pressuposta a partir dessa concepção McLuhania-
na uma nova realidade, em que o conhecimento e a comunicação
incorporam nossos corpos e as tecnologias, enquanto Levy (1996)

ZILDA MARIA DA SILVA DUTRA • SOFIA ÍSIS DUTRA ROCHA


247

desenvolve e contextualiza tal concepção, constituindo esses no-


vos espaços e como se definem.

O CIBERESPAÇO COMO UMA NOVA ESFERA


COMUNICACIONAL

Ao entendermos o ciberespaço como virtual, o método


proposto por Bertalanffy (1975) e sustentado por Recuero (2011) da
teoria geral dos sistemas, que compreende a necessidade de ana-
lisar as partes de um fenômeno em interação, se mostra frutífero
para nossa construção de sentido. Isso porque é a interação entre
as partes do ciberespaço – nós e conexões – que configura a nova
esfera comunicacional que tanto influi na participação política e
estimula a criação e a identificação de atores em um mesmo grupo
ideológico, formulando o ativismo político em massa na rede. Des-
sa maneira, é notável o protagonismo insurgente dos atores sociais
na rede, pois os indivíduos e o amontoado deles, entendidos como
atores por Recuero (2011), são os principais elementos transfor-
madores da rede social. Tais atores são representados pelos nós no
ciberespaço, no qual suas identidades são construídas a partir das
performances que eles fazem de si mesmos, é o chamado “Impera-
tivo da visibilidade” proposto por Sibilia (2003) e reafirmado por
Recuero (2011). Nesse ângulo, os nós são construídos como identi-
dades com base nas relações das redes sociais da internet e para
além dela, isto é, performamos nossas ideologias e convicções de-
corrente do impacto benéfico ou maléfico com outros atores fora
e principalmente dentro do ciberespaço. Aqui salientamos que a
linha de fronteira do ciberespaço mostra-se extremamente tênue,
configurando o chamado “Efeito Moebius” apontado por Levy
(1996).
Portanto, torna-se mais claro que a onda de identificação
política e social característica das plataformas de redes sociais do
meio virtual advém de interações sincrônicas ou assincrônicas (si-

CIBERESPAÇO E MICROPOLÍTICA: UMA ANÁLISE DO ATIVISMO NAS REDES SOCIAIS


248

mulação de interação em tempo real que estimula ou não o diálogo


contínuo e a aproximação de nós), mútuas ou reativas (as mútuas
principalmente, pois são as que mais tendem a proporcionar a for-
mação de laços sociais), simétricas ou assimétricas. Desse modo,
percebemos as novas configurações desse espaço que estimulam
novas formas de praticar política em escala menor, partindo do
povo para o Estado, pois existe liberdade para construção, omis-
são e distanciamento da sua persona no ciberespaço, de modo a
servir como um meio de se apropriar das técnicas de controle e
usá-las ao favor dos que não detém do poder coercitivo, pensado
por Foucault (1979), e tratado por Castells (2003) em suas questões
sobre o Estado, o mercado, população e privacidade.

O Twitter como um espaço para o ativismo político

O anonimato, percebido na dinâmica de construção de per-


sona no Twitter (SANTAELLA; LEMOS, 2010), pode ser entendido
como uma apropriação por parte da parcela que resiste aos contro-
les do Estado e toma partido de tecnologias consideradas “crimi-
nosas”, apenas se não forem usadas em favor do Estado, em prol do
fortalecimento do poder do povo. Isso é possível, visto que, como
assegurado por Foucault (1979), o poder não é propriedade isolada
do Estado. Por ser uma relação e não objeto, ele pode ser exercido
em diferentes níveis e redes sociais como forma de resistência ao
próprio poder estatal, como forma de ocupação e disputa.
Consequentemente, segundo Recuero (2011), tais interações
possuem o poder de construir laços sociais fortes ou fracos que
interessam bastante para a mobilização de um grupo em prol de
uma causa ou ideologia política, fortalecendo as práticas ativistas
dos atores sociais como modo de resistência à poderes coercitivos,
normalmente apropriados pela figura do Estado, mas que também
pode ser associado à atores políticos com discursos totalitários
e repressivos. Trata-se, porém, de um fenômeno de mobilização

ZILDA MARIA DA SILVA DUTRA • SOFIA ÍSIS DUTRA ROCHA


249

sócio-política nas redes como forma de resistência a discursos de


poder repressor que foi observado na conjuntura social brasileira
com o movimento “Ele Não”, e que adquiriu força em território na-
cional e internacional provocado por uma onda de insatisfação à
crescente popularidade de Jair Bolsonaro, candidato então à pre-
sidência nas eleições brasileiras de 2018.
Esse fenômeno da micropolítica na nossa conjuntura social
brasileira só foi possível por meio da formação de laços fracos e
principalmente fortes nas plataformas de redes sociais, uma vez
que, os laços fortes das interações sociais se mostraram multiple-
xas por conseguirem transformar um evento virtual em platafor-
mas como Facebook e Twitter, em um movimento que se expandiu
para além do online e lotou as ruas das cidades brasileiras.
Em virtude de acontecimentos como esse, percebemos
como essas plataformas de rede sociais foram de extrema impor-
tância para a devida manutenção do ativismo político no ciberes-
paço. Dessas plataformas, é notável a força que o Twitter teve ao
lançar as hashtags do “Ele Não”. Além disso, percebemos ser possí-
vel compreender o porquê dessa potência, através dos estudos de
Santaella e Lemos (2010) sobre esse site de rede social. Segundo as
autoras, o Twitter funciona como uma colmeia, ou seja, “um siste-
ma complexo natural de auto-organização” (SANTAELLA; LEMOS,
2010, p. 66), se configurando como um meio em que se constrói
um espaço colaborativo de veiculação ininterrupta de ideias que
partem do micro para o macro. Desse modo, se caracteriza como
extremamente favorável ao desenvolvimento das interações ana-
lisadas por Raquel Recuero (2011) e a apropriação do poder da
ferramenta como forma de resistência através da identificação
massiva a um ideal, e consequentemente, novas formas de pen-
sar política pelo ativismo nas redes sociais. Afinal, a convergência
é o principal foco do Twitter, em que através de um processo de
inserção complexo dentro do site, os usuários são apresentados a
“múltiplos fluxos informacionais de diversos canais de interesse”

CIBERESPAÇO E MICROPOLÍTICA: UMA ANÁLISE DO ATIVISMO NAS REDES SOCIAIS


250

(SANTAELLA; LEMOS, 2010, p. 68) a ele, além de que o modo como


esse usuário irá performar (suas postagens e interações) irá inter-
ferir diretamente nesse fluxo informacional e a natureza dos seus
novos seguidores.
Apesar de ser o Twitter uma das ferramentas mais impres-
cindíveis para base dessas mudanças comunicacionais, não pode-
mos deixar de citar o Facebook e o Instagram como plataformas
que também geram um impacto considerável através das ações de
seus usuários.

CONCLUSÃO

A partir do exposto, entendemos o ciberespaço como um


meio propulsor de ações micropolíticas. E, ainda, é importante
ressaltar que o seu surgimento se deu através das transformações
do homem e suas técnicas, como também de suas propriedades
como virtual e agente de virtualização dos corpos, as quais se con-
cretizam pelas interações entre os atores do meio. Assim sendo,
cria-se uma identificação e laços sociais em favor de lutas e resis-
tências políticas, que ultrapassam o contexto online.
Em suma, é possível compreender como o ser humano en-
contra no meio virtual do ciberespaço, alicerçado nas plataformas
de redes sociais, principalmente o site de rede social Twitter, um
novo sistema de comunicação com o contexto sócio-político. Esse
cenário se concretiza através da resistência coletiva do ativismo
político em rede, como aqui tentamos demonstrar.

REFERÊNCIAS

BERTALANFFY, L.V. Teoria Geral dos Sistemas. 2. ed. Petrópolis:


Vozes, 1975.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Zahar;
1. ed. 2003.

ZILDA MARIA DA SILVA DUTRA • SOFIA ÍSIS DUTRA ROCHA


251

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10. ed. Graal: Rio de Ja-


neiro, 1979. 295p.
LEMOS, Ronaldo; DI FELICE, Massimo. A Vida em rede. Campinas,
SP: Papirus Editora, 2014. 142p.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo, SP: Editora 34, 1996.
157p. (Coleção TRANS.).
MCLUHAN, Herbert Marshal. Os meios de comunicação como ex-
tensões do homem. Rio de Janeiro: Cultrix, 1971. 407p.
MONTEIRO, Silvana Drummond. O Ciberespaço: o termo, a defini-
ção e o conceito. DataGramaZero – Revista de Ciência da Informa-
ção. v. 8, n. 3, jun./2007.
RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. 2. ed. rev., amp. Porto
Alegre: Sulina, 2011. 206p. (Cibercultura).
SANTAELLA, Lúcia; LEMOS, Renata. Redes sociais digitais: a cog-
nição conectiva do Twitter. São Paulo, SP: Paulus, 2010. 137p. (Co-
municação).
SIBILIA, Paula. Os diários íntimos na internet e a crise da interiori-
dade psicológica do sujeito. Grupo de Tecnologias Informacionais
da Comunicação e Sociedade, XII Congresso da Associação Nacio-
nal de Programas de Pós-Graduação em Comunicação. COMPOS,
Niterói/RJ, 2003. Acesso em: 10 nov. 2020.

CIBERESPAÇO E MICROPOLÍTICA: UMA ANÁLISE DO ATIVISMO NAS REDES SOCIAIS


252

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO
COM ADOLESCENTES NO PROCESSO
EDUCACIONAL DURANTE O
PERÍODO PANDÊMICO
Anaisa Alves de Moura1
Edileuza Lima Freire2
Vithória Alves de Moura3
Talita Maria Araújo de Abreu4
Tarcísio Pereira Vasconcelos Neto5

RESUMO
Estudo que tem como objetivo principal mostrar a relevância
do acompanhamento psicológico com adolescentes no processo edu-
cacional durante o período pandêmico e, assim, ajudá-los na busca por
aceitação, desconstruções, enfrentamentos e melhorias no que tange ao
ensino-aprendizagem. Durante a construção deste estudo, utilizou-se a
pesquisa bibliográfica, na qual se faz necessário realizar uma explana-
ção mais abrangente sobre o tema. Portanto, no decorrer do artigo, au-
1 Doutoranda em Educação – ULHT – Lisboa/Portugal (2018). Mestre em Ciências da
Educação. Especialista em Gestão Escolar, Educação Especial, Educação a Distân-
cia, Psicopedagogia Institucional, Clínica e Hospitalar e Licenciada em Pedagogia.
Professora pesquisadora pela CAPES desde 2013. Docente do Centro Universitário
UNINTA presencial e EAD e atualmente integra o grupo de Estudos e Pesquisas
Narrativas Autobiográficas do CNPq. E-mail: anaisa1000@hotmail.com
2 Mestranda em Educação – CECAP (2019). Especialista em Língua Brasileira de Si-
nais – Libras – UCESP (2015). Especialista em Psicopedagogia e Educação Especial
–UCAM (2015). Bacharel em Teologia – FAK (2007). Licenciatura em Pedagogia –
FAK (2016). Licenciatura em Letras/Libras – UFPB (2019). Docente do Centro Uni-
versitário UNINTA. Email: edileuza_sbc@yahoo.com.br
3 Acadêmica do curso de Psicologia do 9º semestre pela Faculdade Luciano Feijão
(FLF) – Sobral-CE. Linha de pesquisa voltada para a temática Transtorno do Espec-
tro Autista (TEA) no âmbito escolar. E-mail: vithoriaalves@hotmail.com
4 Acadêmica do curso de Fisioterapia pelo Centro Universitário Inta – UNINTA.
E-mail: talitamaria017@gmail.com
5 Acadêmico do curso de Fisioterapia pelo Centro Universitário Inta – UNINTA.
E-mail: tarcisioneto2512@gmail.com

ANAISA ALVES DE MOURA • EDILEUZA LIMA FREIRE • VITHÓRIA ALVES DE MOURA


TALITA MARIA ARAÚJO DE ABREU • TARCÍSIO PEREIRA VASCONCELOS NETO
253

tores como Brotto (2008), Dubrule (2017), Spritzer (2012), entre outros
especialistas, fundamentaram e contribuíram para a construção desta
pesquisa, surgindo então a pergunta central: como o atendimento psico-
lógico pode contribuir positivamente no cotidiano dos adolescentes no
processo educacional durante o período pandêmico? Nesta perspectiva,
em decorrência do desconhecimento, é comum que pais ou responsá-
veis apresentem “preconceito” ou “receio” de buscar ajuda psicológica,
acabando por desconsiderar o fato de que o(a) filho(a) necessita de um
acompanhamento adequado. Como resultado da pesquisa, foi possível
compreender e identificar o quanto o atendimento psicológico na vida
desses adolescentes pode ser eficaz e capaz de ajudá-los, portanto, a en-
tenderem seus problemas e expressarem seus sentimentos, adquirindo
um melhor rendimento no processo educacional durante a pandemia.
Palavras-chave: Adolescentes. Ensino-aprendizagem. Pande-
mia. Acompanhamento psicológico.

ABSTRACT
This study aims to show the relevance of psychological assistance
to adolescents in the educational process during the pandemic period
and, thus, help them in the search for acceptance, deconstructions,
confrontations and improvements regarding the teaching-learning
process. During the development of this study, bibliographic research
was used, in which carrying out a more comprehensive explanation on
the subject is necessary. Therefore, in the course of the article, authors
such as Brotto (2008), Dubrule (2017), Spritzer (2012), among other
scholars, supported and contributed to the construction of the research.
On these lines, we come to the central question of the study: how can
psychological assistance contribute positively to the daily lives of
adolescents in the educational process during the pandemic period? In
this perspective, due to the lack of knowledge, it is common for parents
or guardians to show “prejudice” or “fear” of seeking psychological help,
ending up disregarding the fact that the child needs adequate assistance.
As a result of the research, we could identify and understand the
effectiveness of psychological care in the lives of these adolescents, and
how it is able to help them, therefore, to understand their problems and
express their feelings, acquiring a better performance in the educational
process during the pandemic.
Keywords: Adolescents. Teaching-learning process. Pandemic.
Psychological assistance.

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO COM ADOLESCENTES


NO PROCESSO EDUCACIONAL DURANTE O PERÍODO PANDÊMICO
254

INTRODUÇÃO

A adolescência é um período crucial para o desenvolvimen-


to e manutenção de hábitos sociais e emocionais importantes para
o bem-estar mental. Em todo o mundo, estima-se que 10% a 20%
dos adolescentes vivenciam problemas de saúde mental, mas per-
manecem diagnosticados e tratados de forma inadequada. Sinais
de transtornos mentais podem ser negligenciados por uma série
de razões, tais como a falta de conhecimento ou conscientização
sobre saúde mental entre trabalhadores de saúde ou o estigma que
os impede de procurar ajuda.
Os transtornos emocionais geralmente surgem durante a
adolescência. Além da depressão ou da ansiedade, os adolescentes
com essa condição também podem sentir irritabilidade, frustra-
ção ou raiva excessiva. Os sintomas podem se sobrepor em mais
de um transtorno, com mudanças rápidas e inesperadas no humor
e explosões emocionais. Os adolescentes mais jovens também po-
dem desenvolver sintomas físicos como dor de estômago, dor de
cabeça ou náusea.
Em todo o mundo, a depressão é a 9ª causa de doença e
incapacidade entre os adolescentes, a ansiedade é a 8ª principal
causa. Transtornos emocionais podem ser profundamente inca-
pacitantes para o desenvolvimento de um adolescente, afetando o
trabalho, o convívio social e o ensino-aprendizagem. A retirada ou
a separação de familiares, colegas ou comunidade podem exacer-
bar o isolamento e a solidão. Na pior das hipóteses, a depressão
pode levar ao suicídio.
Portanto, neste período de pandemia, do Coronavírus, se o
indivíduo, neste caso, os adolescentes, em sua maioria, principal-
mente deixando o ensino médio e iniciando em uma etapa bastan-
te difícil, que é seu ingresso no ensino superior, gera a incerteza de
tudo em sua vida, pois, reações como estas, “porque tanto tempo,

ANAISA ALVES DE MOURA • EDILEUZA LIMA FREIRE • VITHÓRIA ALVES DE MOURA


TALITA MARIA ARAÚJO DE ABREU • TARCÍSIO PEREIRA VASCONCELOS NETO
255

que loucura, que exagero, poderia suspender 15 dias e depois ava-


liar”, não se imaginava que viria pela frente.
A suspensão das atividades escolares foi uma medida di-
reta e rápida, tomada, a fim de conter o avanço do vírus (Coro-
navírus), e é na escola que acontecem as diversas formas de in-
teração, portanto, foi uma das primeiras questões a ser resolvi-
da, suspender as aulas presenciais e acontecer remotamente. “A
sala de aula é uma grande rede de interações sociais, e, para que
essa organização funcione como instrumento de aprendizagem,
é muito importante que haja uma boa comunicação entre o pro-
fessor e os alunos; pais e alunos; professor e pais; aluno e alunos.”
(DAYRELL, 1999 p. 137).
Outra questão importante a ser pensada no momento foi,
“como vamos recuperar tantos dias”, sendo que possuímos um ca-
lendário que não nos dá essa condição? Mas também tivemos mui-
to forte a questão de que é “impossível” trabalhar com crianças na
educação infantil e anos iniciais, se não for com aulas presenciais,
por conseguinte, tivemos que nos reinventar para que tudo conti-
nuasse dando certo em todas as fases do ser humano no contex-
to educacional. Assim, foram fechadas escolas, isolando alunos,
professores, gestores, servidores, todos em suas casas. Não se via
ninguém nas ruas, cada família no seu espaço familiar. Todos com
medo e inseguros.
Então, estima-se que para o adolescente que tem o hábito
de se divertir fora de seu habitat normal, se relacionar com os
amigos, ir baladas, estudar acompanhado fisicamente, fazer tra-
balhos junto com os colegas, enfim, tudo isso quando retirado re-
pentinamente de seu cotidiano, com certeza, lhe deixa apreensivo,
gerando incertezas sobre sua rotina. “A incerteza que Edgar Mo-
rin descreve em suas obras, nunca esteve tão presente”. “É preciso
aprender a enfrentar a incerteza, já que vivemos em uma época de
mudanças em que valores são ambivalentes, em que tudo é ligado”
(MORIN, 2007, p. 84). Caminhamos na direção de novas incertezas.

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO COM ADOLESCENTES


NO PROCESSO EDUCACIONAL DURANTE O PERÍODO PANDÊMICO
256

Com base nisto, é crescente os índices de depressão e suicí-


dio, tendo como principais vítimas os adolescentes. A partir desse
contexto, dos tempos atuais, é que foi realizada a escolha do tema,
visto que esta é uma temática bastante relevante e sua discussão
torna-se imprescindível para que seja compartilhado conheci-
mentos sobre o assunto e, deste modo, possibilite melhorias no
que diz respeito a saúde mental e por conseguinte a aprendizagem
dos adolescentes.
Durante a construção deste estudo, utilizou-se a pesqui-
sa bibliográfica, onde se faz necessário realizar uma explanação
mais abrangente sobre o tema, portanto, no decorrer do artigo,
autores como Brotto (2008), Dubrule (2017), Spritzer (2012), entre
outros especialistas, fundamentaram e contribuíram para a cons-
trução desta pesquisa, surgindo então, a pergunta central: como
o atendimento psicológico pode contribuir positivamente no coti-
diano dos adolescentes no processo educacional durante o perío-
do ­pandêmico?
É de suma importância que os adolescentes busquem por
atendimentos psicológicos, visto que estes podem ajudar no pro-
cesso psicoterapêutico, na melhoria em longo prazo da demanda
trazida pelo jovem e das demandas que surgem durante o acompa-
nhamento, como também na prevenção de futuros problemas que
poderão surgir.
O presente artigo intitulado “acompanhamento psicológico
com adolescentes no processo educacional durante o período pan-
dêmico” tem como objetivo principal mostrar a relevância desse
acompanhamento com adolescentes no processo educacional du-
rante o período pandêmico e assim, ajudá-los na busca por aceita-
ção, desconstruções, enfrentamentos e melhorias no que tange ao
ensino-aprendizagem.
É impossível ficarmos indiferentes à pandemia do Covid-19,
é impossível não constatar que os efeitos vão ser globais, geracio-
nais e nas mais vastas áreas e fases da vida humana. Portanto, ao

ANAISA ALVES DE MOURA • EDILEUZA LIMA FREIRE • VITHÓRIA ALVES DE MOURA


TALITA MARIA ARAÚJO DE ABREU • TARCÍSIO PEREIRA VASCONCELOS NETO
257

final desse estudo, será possível para o leitor compreender a im-


portância do acompanhamento, bem como do atendimento psico-
lógico na vida dos adolescentes, tornando possível também a iden-
tificação de melhorias decorrentes da psicoterapia no processo de
entendimento, aceitação, desconstrução, ensino-aprendizagem e
enfrentamento destes jovens quanto às situações adversas da vida
que emergem.

CONTEXTUALIZANDO ADOLESCÊNCIA E SEUS


DESAFIOS EDUCACIONAIS DURANTE A PANDEMIA

O termo “adolescência”, utilizado para designar um período


do ciclo vital no qual ocorre a intermediação entre a infância e a
idade adulta, é um conceito relativamente novo no contexto cul-
tural. Segundo a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2010), são
consideradas adolescentes as pessoas que se encontram entre 10 e
19 anos de idade, o que corresponde a 20% da população mundial.
A adolescência é um período marcante na vida de todos
os indivíduos, uma fase acompanhada de mudanças, um período
complicado na vida dos jovens. É nessa fase que começa a surgir os
primeiros dilemas de uma futura vida adulta, é um grande período
de transição. Para a psicologia, a adolescência é uma fase recheada
de mudanças. A transição da infância para a vida adulta consiste
num período de desenvolvimento humano, com alterações bioló-
gicas e comportamentais que envolvem o comportamento e as re-
lações do publico jovem com o restante do mundo.
Segundo uma pesquisa de 2016, um a cada três adolescen-
tes sofre de transtornos mentais, dados preocupantes, segundo a
OMS, onde o Brasil lidera o ranking de habitantes com transtor-
nos de ansiedade, e mesmo com dados como esses os números de
consultas e acompanhamentos psicológicos ainda são pequenos
no país inteiro. Diante disso percebe-se que mudanças precisam
ocorrer para que esses problemas possam ser sanados.

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO COM ADOLESCENTES


NO PROCESSO EDUCACIONAL DURANTE O PERÍODO PANDÊMICO
258

Na visão da Psicóloga F. Brotto Graduada em Psicologia pela


PUC-PR em 2008, a principal busca por tratamentos psicológicos
em adolescentes são muita das vezes por uso de drogas: muitas
regras sociais e culturais estão envolvidas nesse caso, inclusive
o próprio aprendizado através de modelos em casa, como quan-
do um parente sofre de algum tipo de dependência, e, também,
das próprias sensações fisiológicas causadas por determinada
substância; Sexualidade: problemas de ordem sexual geralmente
englobam uma gravidez que não foi planejada ou a ocorrência de
estupros, por exemplo; Falta de orientação vocacional: a formação
no ensino médio que se aproxima e a dificuldade para descobrir
a vocação no mercado de trabalho, ou até mesmo o ingresso ao
ensino superior, aumentando também a pressão para que uma es-
colha seja feita; Dificuldade para ter independência dos pais, essa
pandemia do Coronavírus, etc. Enfim todos esses problemas
irão afetar de maneira negativa na vida dos adolescentes no qual
na maioria das vezes é necessária a busca por um profissional da
psicologia.
A ajuda de um psicólogo será fundamental. Ele vai orien-
tar sobre como melhorar a comunicação, quais estratégias
deverá utilizar para a aprendizagem, como aceitar as mu-
danças que ocorrem nesta fase da vida e como estabelecer
o que os pais podem e devem esperar dos filhos e vice-ver-
sa. (BROTO, 2008).

Por conseguinte, muitos jovens sofrem com diversos proble-


mas como sintomas de ansiedade, rebeldia, stress e até manifes-
tações mais sérias, como os transtornos alimentares, os quadros
depressivos ou os pensamentos suicidas. Se já não é fácil enfrentar
esse tipo de conflito, imagina nos casos em que o adolescente não
tem uma relação aberta com os pais e responsáveis. Com quem
desabafar? Como lidar com os sentimentos desencontrados sem o
apoio da família? Onde pedir ajuda? E nesse período de pandemia,
o que e como fazer com a aprendizagem educacional? Este é o foco

ANAISA ALVES DE MOURA • EDILEUZA LIMA FREIRE • VITHÓRIA ALVES DE MOURA


TALITA MARIA ARAÚJO DE ABREU • TARCÍSIO PEREIRA VASCONCELOS NETO
259

principal que será abordado neste estudo. Por esses motivos mui-
tos procuram refúgio nas redes sociais e plataformas de chat ou jo-
gos, são nestes, que se manifestam sobre aquilo que os incomoda,
especialmente sobre as questões tidas como tabus quando se fala
do relacionamento que mantém com os pais. Entretanto, isso nem
sempre é suficiente.
A Psicologia destaca-se nesse contexto por reunir funda-
mentação teórica-conceitual e evidências científicas que podem
ser aplicadas e generalizadas, contribuindo para uma compreen-
são dos aspectos psicológicos durante a grave crise contemporâ-
nea da pandemia do COVID-19. Os estudos atuais mostram influ-
ências dessa situação no comportamento das pessoas no cotidia-
no, causando ansiedade, medo, depressão e pânico (HOLMES et
al., 2020; JIAO et al., 2020).
O estudo de Wang, Zhang, Zhao, Zhang e Jiang (2020) mos-
trou que o confinamento em casa de 220 milhões de crianças e
adolescentes chineses, incluindo 180 milhões de estudantes de
escolas primárias e secundárias e 47 milhões da pré-escola, provo-
cará impactos psicológicos, na medida em que estão sujeitos a es-
tressores, tais como duração prolongada, medo de infecção, frus-
tração e tédio, informações inadequadas, falta de contato pessoal
com colegas, amigos e professores, falta de espaço pessoal em casa
e a perda financeira da família.
Partindo dessas exposições, segundo a normativa do Conse-
lho Federal de Psicologia (CFP), é fundamental que pai ou respon-
sável tenha ciência e autorize o acompanhamento psicológico do
adolescente. (CEP- CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA). O psi-
cólogo Arthur Dubrule (2017), que tem experiência nesse tipo de
atendimento, esclarece que não funciona bem assim, pois isso já é
um fator desestimulante para o adolescente que se preocupa com
sua privacidade, muita vezes temendo que o profissional exponha
sua intimidade ou que até mesmo não possua apoio de sua família
na hora de procurar um profissional da psicologia.

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO COM ADOLESCENTES


NO PROCESSO EDUCACIONAL DURANTE O PERÍODO PANDÊMICO
260

“É importante que o adolescente converse com os seus


pais sobre fazer uma terapia”. Saiba que o terapeuta não
contará o conteúdo da sessão nem para os pais, nem para
qualquer outra pessoa. O que se fala na terapia, fica na te-
rapia. (DUBRULE, 2017).

Apesar de todos esses problemas, a psicologia ajuda o ado-


lescente a superar essas mazelas. A psicologia de maneira geral irá
dar um auxílio na hora de enfrentar as questões que geram mal-es-
tar no adolescente, independentemente da gravidade do proble-
ma. Os resultados fazem parte de um processo, não são imediatos,
mas costumam mostrar seus efeitos rapidamente, como comenta
Dubrule (2017). Além disso, contribuem de maneira positiva para
o decorrer da vida dos adolescentes, trazendo apoio e conforto que
muitos não possuem em casa com sua a família, ou fora de seu lar,
como no seu ciclo de amizades. A psicologia nesse momento será
uma espécie de apoio para o adolescente superar fases difíceis ou
até mesmo os dogmas impostos pela sociedade que dependendo
do contexto geram cargas negativas na vida do adolescente.
A terapia psicológica em geral não tem data certa para tér-
mino, pois depende muito da subjetividade de cada caso.
Porém o alívio e a melhora costumam aparecer em algum
grau já nas primeiras sessões. “O ideal é fazer a terapia ao
menos uma vez por semana, na duração de 60 minutos, em
média.” (DUBRULE, 2017)

Ajuda psicológica por meio de ONGS: medidas


criadas para enfrentar esses desafios

Apesar de todas as dificuldades dos jovens, medidas fo-


ram criadas para dar um suporte ao adolescente, como palestras
promovidas pela NURAP (Núcleo de Aprendizagem Profissional e
Assistência Social) no qual contemplam diversos programas um
deles é o programa jovem aprendiz criado a partir da lei do apren-
dizado Nº 10.097/00. O NURAP, este, sempre preocupado com seus

ANAISA ALVES DE MOURA • EDILEUZA LIMA FREIRE • VITHÓRIA ALVES DE MOURA


TALITA MARIA ARAÚJO DE ABREU • TARCÍSIO PEREIRA VASCONCELOS NETO
261

aprendizes e colaboradores e por isso em parceria com o Psicólogo


e palestrante, Mateus Amaral desenvolveu um programa de acom-
panhamento psicológico a fim de garantir não só o bem estar físi-
co, mas também o mental dos seus colaboradores.
Temas como depressão, ansiedade e outros transtornos são
discutidos em conjunto, entre os próprios jovens e seus familiares.
O olhar atento da família, escola e empresas são de suma impor-
tância no cuidado com os jovens. O psicólogo Mateus Amaral de
forma primorosa toca nesses temas, junto ao jovem do NURAP, e
cada vez mais o debate tem gerado resultados positivos, as pales-
tras a cada encontro ficam mais cheias, e a participação dos fami-
liares também só cresce.
Além, desse programa, ONG`S, foram criadas com o intuito
de estender a mão e ajudar os adolescentes e até mesmo crianças a
obter ajuda psicológica. É o caso de Isabel Marçal, paulistana, que
há cinco anos viveu uma depressão profunda e para tentar evitar
que outras pessoas passem pelo que ela passou, Isabel criou, ao
lado da amiga Milena Fanucchi, o Instituto Bem do Estar. “O pro-
pósito é desafiar as pessoas a mudarem seu relacionamento com a
saúde mental, ajudando a prevenir doenças psicológicas e contri-
buindo para uma sociedade mais saudável” diz Isabel.
O trabalho da ONG está dividido em três frentes: a conscien-
tização das pessoas (com textos escritos por uma rede de 15 espe-
cialistas nas mais diversas áreas), o cuidado com a saúde da mente
(com a criação de vivências para comunidades, escolas e empresas)
e a mobilização (por meio da sugestão de mudanças em políticas
públicas, que poderão ser implementadas depois de um abrangente
estudo que o Bem do Estar está organizando sobre saúde da mente
no Brasil.). São medidas importantes como estas que irão acarretar
bons resultados em relação à saúde mental dos jovens.
Campanhas como setembro amarelo realizado pelo Centro
de Valorização da Vida (CVV) que tem como objetivo incentivar o
diálogo sobre o suicídio para a sociedade, lançou, em parceria com

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO COM ADOLESCENTES


NO PROCESSO EDUCACIONAL DURANTE O PERÍODO PANDÊMICO
262

Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), três séries de ví-
deos com informações sobre o tema. A primeira série é composta
por seis vídeos de um minuto cada um. Entre os temas estão o uso
de drogas, o abuso sexual, a discriminação, o bullying e a pressão
por notas, fazendo assim com que esse assunto não seja mais um
‘tabu’ na sociedade, incentivando os indivíduos a buscar ajuda de
psicólogos, a fim de que essas pessoas amenizem seus problemas.
Para que se consiga ultrapassar este momento da melhor
forma possível, várias entidades têm vindo a desenvolver guias
para ajudar os pais de crianças e jovens, na melhor forma de con-
versar com eles sobre a atual realidade, sem alarmismos, mas de
forma verdadeira e transparente, como a UNICEF foi uma dessas
entidades a disponibilizar diretrizes para auxiliar a enfrentar este
momento (RICH, 2020), dentre muitos outros, como já citados
­anteriormente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A psicologia têm um papel fundamental em situações de


crise e a situação na qual o mundo se encontra atualmente, cons-
tatamos, não só por um olhar analítico, como também pelo olhar
espontâneo e genuíno das crianças e dos adolescentes; que há im-
portância de fornecer apoio continuo e especializado, para redu-
zir sintomas de stress, ansiedade e medo é deveras, não só perti-
nente, como fundamental e urgente.
Esta pandemia decretada pela OMS veio dar um susto a toda
população mundial, o que se pensava ser apenas um surto viral
numa determinada região, afinal propagou-se exponencialmente
para incredulidade de muitos e terror para os demais, por isso, a
importância de um acompanhamento psicológico, principalmen-
te com os adolescentes durante o processo educacional.
Portanto, durante o percurso desse estudo, refletiu-se bas-
tante sobre os problemas que muitos jovens vêm passando neste

ANAISA ALVES DE MOURA • EDILEUZA LIMA FREIRE • VITHÓRIA ALVES DE MOURA


TALITA MARIA ARAÚJO DE ABREU • TARCÍSIO PEREIRA VASCONCELOS NETO
263

período tão difícil que é o período da pandemia do Coronavírus, e


que, na maioria das vezes, passam despercebidos pela sociedade
ou vistos de maneira equivocada.
Todavia, através deste artigo, buscamos mostrar o quão
sério e complexo são esses problemas que afetam diariamente
diversos adolescentes de classes variadas, principalmente nes-
se período pandêmico, mas também na práxis psicológica, nesse
contexto, a preocupação destes profissionais em trabalhar a cons-
cientização das pessoas, o cuidado com a saúde mental e o desen-
volvimento de propostas transformadoras nas políticas públicas,
são medidas consideradas importantes que irão acarretar bons re-
sultados em relação à saúde mental dos adolescentes e por conse-
guinte lhes dar a credibilidade de uma aprendizagem significativa
em meio a esse turbulento momento.

REFERÊNCIAS

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é a melhor para você. Revista Veja. São Paulo: Publicada em 9 de
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ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO COM ADOLESCENTES


NO PROCESSO EDUCACIONAL DURANTE O PERÍODO PANDÊMICO
266

DILEMAS VIVIDOS PELA


ESCOLA FRENTE AO PROCESSO
DE INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM
DEFICIÊNCIA
Geranilde Costa e Silva1
Ana Paula Silva Soares de Castro2

RESUMO
Traz elementos da pesquisa monográfica de conclusão de curso
de uma estudante de Antropologia da Universidade da Integração In-
ternacional da Lusofonia Afro-brasileira – UNILAB3, que trata do tema
da Educação Especial Inclusiva. A pesquisa em questão teve por título:
A escola frente ao/a estudante com deficiência: tentativas em curso para
a inclusão. Essa monografia teve por objetivo geral entender/conhecer
quais as ações/estratégias desenvolvidas pela escola, diga-se gestores/as
e professores/a, no que se refere à inserção de escolares com deficiên-
cia. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, por meio de um estudo de caso,
desenvolvida em uma escola de Barreira (CE). Por meio desse estudo foi
possível conhecer as dificuldades enfrentadas pela escola (docentes e
gestão escolar) para desenvolver uma educação inclusiva voltada aos/as
estudantes com deficiência intelectual.
Palavras-chave: Educação Especial Inclusiva; Escola; Docentes.

1 Doutora em Educação. Pedagoga. Docente junto à Universidade da Integração In-


ternacional da Lusofonia Afro-brasileira – UNILAB, em Redenção (CE). Professora
efetiva nos Mestrado Acadêmico em Ensino e Formação Docente (UNILAB-IFCE)
e Mestrado Acadêmico em Sociobiodiversidade e Tecnologias Sustentáveis –
MASTS, ambos na UNILAB. Desenvolvo estudos na área do CosmoViver Africano
e afro-brasileiro, Pretagogia, Escola e Educação para as relações étnico-raciais,
Psicologia Africana e Afro-brasileira da Educação. Membro do Grupo de Pesquisa:
ÁFRICA-BRASIL: Produção de conhecimento, Sociedade civil, Desenvolvimento e
Cidadania Global, na linha de pesquisa: Educação e Pedagogias das Relações Ét-
nico-Raciais: territórios, religiosidades e intelectualidades. Vice coordenadora do
grupo de estudos SAKHU SHET: Psicologia Afro-centrada e Educação.
E-mail: geranildecosta@unilab.edu.br
2 Pedagoga. Possui Especialização em Ensino de História. Estudante de Antropolo-
gia na Unilab. E-mail: anna.paula.ssoares@gmail.com
3 Sede em Redenção (CE) e possui campus fora de sede em São Francisco do Conde (BA).

GERANILDE COSTA E SILVA • ANA PAULA SILVA SOARES DE CASTRO


267

ABSTRACT
It brings elements of the monographic research at the end of the
course of an Anthropology student at the University of International
Integration of Afro-Brazilian Lusophony – UNILAB, which deals with the
theme of Special Inclusive Education. The research in question had the
title: The school vis-à-vis the student with disabilities: ongoing attempts for
inclusion. This monograph had the general objective of understanding
/ knowing which actions / strategies were developed by the school, say
managers and teachers, regarding the insertion of students with disabilities.
It is a qualitative research, through a case study, developed in a school in
Barreira (CE). Through this study it was possible to perceive the difficulties
faced by the school (teachers and school management) to develop an
inclusive education aimed at students with intellectual disabilities.
Keywords: Special Inclusive Education; School; Teachers.

QUESTÕES INTRODUTÓRIAS – CONTEXTUALIZAÇÃO

A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia


Afro-brasileira – UNILAB, tem por meta desenvolver formação de
mão de obra por meio de cooperação solidária voltada a contribuir
com o processo de desenvolvimento socioeducativo de seus países
parceiros, tendo por base a História e a Cultura da Comunidade
dos Países da Língua Portuguesa (PCLP) com destaque para Bra-
sil, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, Timor Leste, Cabo Verde,
São Tomé e Príncipe. Segundo as Diretrizes Gerais da UNILAB
(2010, p. 14), a Formação Docente, é um dos: “temas propícios ao
intercâmbio de conhecimentos na perspectiva da cooperação so-
lidária, além de sua aderência às demandas nacionais e relevância
e impacto em políticas de desenvolvimento econômico e social.”
Atualmente a Unilab possui 5.203 estudantes sendo no Ceará: 287
– Angola; 3184 – Brasil; Cabo Verde – 39; Guiné-Bissau – 511; Mo-
çambique – 42; São Tomé e Príncipe – 44. Já na Bahia, temos: 92
– Angola; 807 – Brasil; 7 – Cabo Verde; 169 – Guiné-Bissau; 3 – Mo-
çambique; 9 – São Tomé e Príncipe.

DILEMAS VIVIDOS PELA ESCOLA FRENTE AO PROCESSO DE INCLUSÃO


DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA
268

Apresentando as autoras do texto

Da Professora Geranilde Costa


Sou mulher, professora e pesquisadora negra e já venho de-
senvolvendo estudos sobre a temática das relações etnicorraciais
e aplicação da lei federal nº 10.639/03 – que determinou a obriga-
toriedade do ensino de História e Cultura africana e afro-brasilei-
ra, há mais de uma década. Dentro deste contexto sou docente do
curso de Pedagogia (CE) e tenho ministrado desde 2015 as compo-
nentes Psicologia da Educação, do Desenvolvimento e da Aprendi-
zagem (90h) e Metodologia da Pesquisa em Educação nos países da
integração Unilab.
No entanto, após o nascimento de um familiar com dificul-
dades para desenvolver a fala e em paralelo também assumir, desde
2018, a disciplina Fundamentos da Educação Especial e Inclusiva
(30h), disciplina obrigatória do curso de Pedagogia, fui levada a
estudar sobre o processo de inclusão de crianças com deficiência
em escolas regulares. Contudo essa disciplina recebe muitos/as
estudantes de outras licenciaturas e também de bacharelados in-
teressados pela temática em questão. Contexto que tem me oportu-
nizado atuar ainda como orientadora de Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) junto aos cursos de Bacharelado em Humanidades, Pe-
dagogia, Antropologia e Letras da Unilab, discutindo a temática da
Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Bem com
realizar eventos de cunho científico para o trato da citada t­ emática.

Da autora da pesquisa monográfica


Da estudante Ana Paula – autora da pesquisa
Essa proposta de pesquisa surgiu a partir da minha experi-
ência enquanto docente em escolas públicas no município de Aca-
rape (CE), pois venho observando que as crianças que possuem lau-
dos clínicos ou são laudadas, como são popularmente chamadas,
são marginalizadas por tal condição. De modo que a relevância so-

GERANILDE COSTA E SILVA • ANA PAULA SILVA SOARES DE CASTRO


269

cial da pesquisa reside na importância de conhecer as dificultadas


da escola quanto à inclusão de estudantes com ­deficiência.

DO DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

Para o trato da temática da educação especial na perspectiva


da educação inclusiva temos por base a lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira, LDB nº 9.394/1996, que evoca o artigo 58, em
que a Educação Especial caracteriza-se como modalidade de edu-
cação escolar e se organiza de modo a disponibilizar os recursos e
serviços de apoio pedagógico especializado. De forma paralela, é
importante frisar que o laudo clínico e/ou psicológico é direito do/a
estudante, isso porque a Lei Brasileira de Inclusão (LBI, 2015) garan-
te “oferta de rede de serviços articulados, com atuação intersetorial,
para atender às necessidades específicas da pessoa com deficiência”,
assegurando, especificamente, diagnóstico e atendimento clínico.
Contudo, é necessário dizer que o laudo não responde à problemá-
tica do processo de aprendizagem do/a aluno/a, mas evidencia que
esse/a estudante requer Atendimento Educacional Especializa-
do (AEE) que é de cunho pedagógico e que deve ser oferecido pela
escola tendo por missão compor as ações de educação inclusivas.
Na óptica de Mantoan (2015), a educação inclusiva está no
reconhecimento de que todos têm direito à educação de qualida-
de, no sentido também de respeito às diferenças individuais de
cada um, ou seja, que é necessária uma educação sem discrimi-
nação, estendendo os benefícios de uma educação adaptada às
necessidades e realidades de todos os/as alunos/as, sem barreiras
físicas e/ou educativas que impeçam ou limitem a aprendizagem
e a participação de todos/as no sistema educacional, de modo que
Nem todas as diferenças necessariamente inferiorizam
as pessoas. Há diferenças e há igualdades — nem tudo
deve ser igual, assim como nem tudo deve ser diferente.
(­MANTOAN, 2003, p. 21).

DILEMAS VIVIDOS PELA ESCOLA FRENTE AO PROCESSO DE INCLUSÃO


DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA
270

Todavia, tem sido cada vez mais comum, infelizmente, ou-


virmos dentro do espaço escolar diferentes termos negativos se-
rem atribuídos a uma criança que apresenta alguma dificuldade
no seu processo de aprendizagem. Dentre esses os mais comuns
são: transtornos, dificuldade e deficiência. Apesar desses termos
serem usados como sinônimos, essas expressões apresentam uma
diferença significativa, tendo em vista que a dificuldade está rela-
cionada a uma condição psicopedagógica, ou seja, está relaciona-
da a uma questão que tanto pode ser de ordem social, cultural da
criança e que afeta diretamente seu comportamento; o transtorno
é um problema neurológico que fala de alguma condição clínica da
criança; e a deficiência vai mais além, tendo em vista que aqui pode
se relacionar a questões, como: Autismo, Síndrome de Dow, defi-
ciência intelectual, visual, auditiva entre outras exigindo uma (re)
adaptação na estrutura das instituições bem como no comporta-
mento dos/as profissionais que lidam com essas crianças, significa,
portanto, que
(...) se quisermos uma escola que atenda a diversidade, ou
seja, uma escola inclusiva precisa-se pensar com o outro,
precisamos de um processo longo e constante de reflexão-
-ação-critica com os profissionais que fazem o ato educa-
tivo acontecer. Se quisermos mudanças significativas nas
práticas convencionais de ensino precisamos pensar a
formação continuada dos educadores (JESUS, ALMEIDA:
SOBRINHO, 2005, p.145).
Dessa forma, a pesquisa monográfica em questão teve como
objetivo geral Conhecer quais as ações/estratégias desenvolvidas
pela escola, diga-se, gestores/as e professores/as no que se refere à
inserção de escolares com deficiência. A problemática que foi dis-
cutida é de sobremaneira relevante uma vez que a criança que têm
laudo psicológico e/ou clínico é, comumente, penalizada e estig-
matiza passando a ser considerada incapaz, e assim, excluída do
ambiente escolar. Marcando, portanto, negativamente sua passa-

GERANILDE COSTA E SILVA • ANA PAULA SILVA SOARES DE CASTRO


271

gem pela escola, fazendo com que a família, em alguns casos, seja
forçada a retirá-la do convívio escolar.
Para a realização dessa pesquisa foi necessária uma inves­
tigação bibliográfica e qualitativa para um maior embasamento
teórico, por meio da leitura de livros, dissertações e artigos de pe-
riódicos sobre a temática do laudo psicológico junto às crianças
com necessidades educacionais especiais. Segundo Gerhardt e
Silveira (2009, p. 31), a pesquisa qualitativa “não se preocupa com
representatividade numérica, mas, sim, com o aprofundamento
da compreensão de um grupo social, de uma organização etc.”.
Logo em seguida, para a obtenção da coleta de dados, foi
construída uma entrevista estruturada com o propósito maior
de obter informações acerca do desenvolvimento de práticas de
inclusão social e como esses/as alunos/as são percebidos no âm-
bito da instituição. Todavia em função das medidas preventivas
à pandemia do Covid-19, em contexto mundial, tivemos que fazer
a aplicação do questionário através da plataforma Google Docs4,
que foram respondidos entre os meses de julho a setembro/2020.
Importante ressaltar, que segundo o Jornal G1 Ceará, até o dia 08
nov/2020, “o Ceará registrou 278.350 casos confirmados de Co-
vid-19 e 9.402 óbitos em decorrência da doença, segundo a plata-
forma IntegraSUS, da Sesa5.
A entrevista, acima citada, foi aplicada junto à Escola Antô-
nio Correia de Castro, em Barreira (CE), direcionada a dois profes-
sores e uma professora que tinham estudantes nas condições aqui
4 O  Google Docs  é um pacote de aplicativos do  Google. Ele permite aos usuários
criar e editar documentos online ao mesmo tempo colaborando em tempo real
com outros usuários. Google Docs combina as características de Writely e Spre-
adsheets com um programa de apresentação incorporando tecnologia projetada
por Sistemas Tonic. Armazenamento de dados de arquivos de até 1 GB no total de
tamanho foi introduzido em 13 de janeiro de 2011, os documentos criados no Goo-
gle Docs não contam para este contingente.
5 Fonte: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/11/06/ceara-tem-aumento-de-
-casos-de-covid-19-em-mais-areas-de-saude.ghtml

DILEMAS VIVIDOS PELA ESCOLA FRENTE AO PROCESSO DE INCLUSÃO


DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA
272

especificadas, além da diretora geral e coordenadora pedagógica


da mesma. Optou-se por realizar a pesquisa na referida escola ten-
do em vista que a pesquisadora atua na mesma e acompanha de
perto o desenvolvimento do trabalho que vem sendo realizado no
que tange o processo de inclusão e o laudo psicológico.

Dos dados da pesquisa

Dentre as indagações feitas aos/as docentes, gestão e coor-


denação pedagógica destacamos:

1 Sobre o comportamento desses/as quanto á temática da


inclusão escolar e se partilham dessa filosofia de inclusão, sendo
dito que:
– Concordo plenamente porque se percebe o interesse dos
mesmos. (entrevistado 1)
– Não. Ainda há pessoas que tem um grande preconceito
em relação a crianças com deficiências. (entrevistado 2)
– Não, pois ainda existem pessoas que não respeitam as di-
ferenças e são preconceituosas em relação as pessoas com
deficiências e necessidades especiais. (entrevistado 3)
– Ainda é muito novo a questão da inclusão na escola tendo
em vista que os casos apesar de serem um número expres-
sivo para a quantidade de alunos na escola, não existem
um cuidado especial, além de uma atenção especifica no
processo de aprendizagem. (entrevistado 4)
– Aos poucos esse sentimento vai nascendo dentro da es-
cola. Embora ainda se perceba certa dificuldade por não
saber lidar com essa clientela. (entrevistado 5)

De modo que 80% dos/as entrevistados/as compreendem a


importância de contribuir no processo de inclusão, enquanto 20%
afirmam que ainda existe muito a ser discutido em vista que al-
guns casos de preconceitos já visíveis.

GERANILDE COSTA E SILVA • ANA PAULA SILVA SOARES DE CASTRO


273

2 Foi perguntado aos/as informantes se a escola organiza os


grupos/turma valorizando a diversidade, sendo dito que
– Discordo. Não existe um trabalho especifico com relação
a isso. (entrevistado 1)

– Sim, mas divisão das turmas ainda não estão mescladas


como deveria ser. (entrevistado 2)

– Sim, porém as divisões de turmas ainda não está da for-


ma necessária. (entrevistado 3)

– Não. A escola não faz essa triagem. Pela própria estrutu-


ra e até pelos números de alunos insuficiente para que isso
possa acontecer. (entrevistado 4)

– Não existe essa divisão. Até porque a escola não tem es-
trutura. (entrevistado 5)

Quanto à questão da diversidade, foi possível identificar,


pela fala dos/as entrevistados/as que não houve um consenso o
que é difícil de se compreender tendo em vista que a organização
das salas e a adequação dos/as escolares está prevista no Projeto
Político Pedagógico da escola.

3 Com relação aos/as alunos/as que têm necessidades edu-


cacionais especiais foi perguntado se os pais recorrem à escola
para esclarecimento/apoio da criança com deficiência, sendo dito
que:
– Sim. Qualquer indício de uma possível anormalidade
eles procuram a escola para tirar dúvidas. (entrevistado 1)

– Não, os pais procuram a escola para adquirir um auxílio.


(entrevistado 2)

– Não, pois os pais vão à escola em busca de ajuda. (entre-


vistado 3)

DILEMAS VIVIDOS PELA ESCOLA FRENTE AO PROCESSO DE INCLUSÃO


DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA
274

– Normalmente a escola detecta a dificuldade e chama


a família. Mas quando o caso já vem desde a criança nos
primeiros anos de vida e vem de acompanhamento os pais
notificam a escola e esta busca encontrar mecanismos que
ajudem essas crianças. (entrevistado 4)

– Às vezes, é o contrário, a escola é que detecta o problema.


Somente quando a criança já chega com o diagnóstico é
que a família vai notificar a escola. (entrevistado 5)

De acordo com os dados obtidos 20% dos/as entrevistados/


as responderam que sim, 40% disseram que é a escola que detecta
o problema e 20% apontaram que os pais procuram a escola em
busca de receber algum benefício quanto ao problema do/a filho/a.
Entende-se dessa forma que na visão dos/as entrevistados/as a es-
cola é a primeira instituição que os pais procuram quando per-
cebem alguma anormalidade. Ainda de acordo com as respostas,
normalmente é a escola que detecta e convoca os pais para uma
conversa e explica a situação percebida pelos/as professores/as.
4 Sobre os recursos financeiros foi perguntado se esses são
conhecidos pela comunidade escola. E se a comunidade sabe como
o mesmo é utilizado.
– Sim. Existe um conselho que acompanha esses recursos.
(entrevistado 1)
– Não, a comunidade não visa a educação como um direito
seu. (entrevistado 2)
– Não, pois a comunidade não se sente envolvida no pro-
cesso de aprendizagem. (entrevistado 3)
– Nos últimos anos tem se notado uma centralização nas
decisões e nem sempre a comunidade está por dentro do
que acontece quando se fala em recursos que a escola re-
cebe. (entrevistado 4)
– Não. Nos últimos tempos a comunidade parou de se inte-
ressar por esses recursos. Quando a escola convida é que a
mesma vem. (entrevistado 5)

GERANILDE COSTA E SILVA • ANA PAULA SILVA SOARES DE CASTRO


275

Frente às respostas podemos evidenciar que 80% dos/as


informantes responderam que não, enquanto 20% responderam
que sim. Com isso entende-se que a gestão da escola não se mostra
transparente como deveria ser. Fala-se muito em gestão partici-
pativa, democrática e isso implica a participação de todos os seg-
mentos nas decisões quanto à aplicação dos recursos financeiros
da escola, mas de acordo com as falas isso não está acontecendo
na escola.

5 Sobre o papel dos/as profissionais com relação à apren-


dizagem dos/as escolares foi questionado: “Os/as profissionais de-
senvolvem medidas para apoiar a aprendizagem e a participação
dos(as) alunos(as)?”.
– Sim. Muitos inovam e trazem metodologias que ajudam
nesse processo. (entrevistado 1)
– Sim, pois os professores se reinventam diariamente para
promover a participação de todos os alunos. (entrevistado 2)
– Sim, pois os professores buscam diariamente formas que
promovam a participação de todos no processo de ensino/
aprendizagem. (entrevistado 3)
– Sim. Estes recebem formação mensal o que de certa for-
ma contribui para as trocas de experiencias e o apoio pe-
dagógico dentro da instituição também ajuda a que estes
busquem o que melhor pode contribuir na aprendizagem
dos alunos. (entrevistado 4)
– Sim. É complexo, demanda tempo, investimento no co-
nhecimento, mas a grande maioria tem esse compromis-
so. (entrevistado 5)

De acordo com as respostas, 100% dos/as informantes afir-


maram que sim e a resposta dos/as mesmos/as está relacionada à
formação que recebem por parte da secretaria de educação por
meio das formações pedagógicas que ocorrem mensalmente e que
contribuem de forma significativa para dar suporte a estes/as na

DILEMAS VIVIDOS PELA ESCOLA FRENTE AO PROCESSO DE INCLUSÃO


DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA
276

elaboração de estratégias que corroboram para a aprendizagem


dos/as alunos/as.

CONCLUSÕES

A pesquisa contribuiu para reforçar que a maioria dos/as


professores/as assim, como a autora da pesquisa, tem dificuldades
para atuar como docente junto a crianças com deficiência. É possí-
vel dizer que existe uma distância muito grande entre o que se de-
fende acerca da Educação Especial na perspectiva da educação In-
clusiva e as práticas executadas no cotidiano escolar. Dessa forma,
fala-se muito de inclusão, de sua importância, dos avanços, mas
essa pesquisa mostrou que a escola pode até compreender a im-
portância da inclusão de estudantes deficientes. No entanto, o que
foi possível de se verificar é que os/as alunos/as com deficiência
estão matriculados/as no sistema regular de ensino mas, de for-
ma geral, são deixados/as a margem do processo de aprendizagem,
tendo em vista que os/a docentes comumente justificam não saber
o que fazer para o sucesso escolar de estudantes com ­deficiência.

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DILEMAS VIVIDOS PELA ESCOLA FRENTE AO PROCESSO DE INCLUSÃO


DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA
278

JORNAL CORREIO DO CEARÁ: A


TEMÁTICA DA SECA E A MEMÓRIA DO
“DRAMA SECULAR”
Luciane Azevedo Chaves1

RESUMO
Esta pesquisa aponta para uma discussão sobre as políticas públi-
cas implementadas pelo Estado para os agricultores na década de 1970,
na microrregião de Sobral – Ceará em períodos de estiagem. O objetivo
é analisar a conjuntura do jornal Correio do Ceará, um periódico tradi-
cional cearense que já não se encontra em circulação. O procedimento de
análise foi de atentar para a conjuntura do jornal, percebendo através de
suas publicações a forma como noticiava a temática da estiagem no Ce-
ará durante a década de 1970. Nos jornais, essa temática ganhava ampla
visibilidade devido à força de verdade que acompanha a prática da im-
prensa com o trabalho de produção de notícias sobre a realidade, que, no
caso do Nordeste, tem sido constantemente associada ao sofrimento pela
constante presença das secas. Ao analisá-lo, foi possível constatar como
esse periódico propôs suas notícias e a partir de qual olhar a imprensa
cearense as elaborava.
Palavras-chave: Políticas Públicas. Imprensa. Estiagem.

ABSTRACT
This research points to a discussion about public policies
implemented by the State for farmers in the 1970s, in the micro region
of Sobral – Ceará during periods of drought. The objective is to analyze
the situation of the newspaper Correio do Ceará, a traditional Ceará
newspaper that is no longer in circulation. The analysis procedure was
to pay attention to the situation of the newspaper, perceiving through its
publications the way it reported the theme of drought in Ceará during

1 Doutoranda em História do Brasil na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mes-


tra em História Social na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduada em
História na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). É professora de História
no Centro Universitário (INTA-UNINTA). E-mail: lucianeazechaves@gmail.com

LUCIANE AZEVEDO CHAVES


279

the 1970s. In the newspapers, this theme gained wide visibility due to the
force of truth that accompanies the practice of the press with the work
of producing news about reality, which, in the case of the Northeast, has
been constantly associated with suffering due to the constant presence
of droughts. By analyzing it, it was possible to see how this periodical
proposed its news and from which point of view the press in Ceará
produced them.
Keywords: Public Policies. Press. Drought.

INTRODUÇÃO

Nesse artigo se discute a imagem construída pela impren-


sa em torno da seca de 1970 na microrregião de Sobral, dando ên-
fase para como o Jornal Correio do Ceará2 abordava as notícias a
respeito das estiagens. Dentro da perspectiva da História Social,
atento para como se constituiu a memória hegemônica sobre a es-
tiagem, pois os periódicos legitimavam constantemente a presen-
ça da miséria, do flagelo e do atraso da região Nordeste. A partir de
tal olhar, foi fundamental a discussão sobre como ocorria a imple-
mentação das políticas públicas durante os períodos de escassez
de chuvas, a quem beneficiavam e por que não atendiam às neces-
sidades de todos os agricultores sertanejos que viviam em áreas
atingidas pela estiagem, como a microrregião de Sobral.
O Correio do Ceará era considerado um dos mais tradicio-
nais jornais cearenses. Foi fundado em 2 de março de 1915 por
Álvaro da Cunha Mendes, mais conhecido como A. C. Mendes,
empresário do ramo gráfico, e passou a integrar os Diários Asso-
ciados, de Assis Chateaubriand, a partir de 1937. O jornal deixou
de circular em dezembro de 1982. No acervo onde se encontrava
o Jornal Correio do Ceará do ano de 1970, faltavam os meses de ja-

2 Durante o ano de 1970, localizava-se na Rua Conde de Mauá, 2390, no centro da cida-
de de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, e seus setores administrativos estavam
estruturados em: diretoria, gerência, secretaria, publicidade, assinaturas e redação.

JORNAL CORREIO DO CEARÁ: A TEMÁTICA DA SECA E A MEMÓRIA DO “DRAMA SECULAR”


280

neiro, fevereiro, março e abril. Portanto, só foi possível ter acesso


aos cadernos de maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro,
novembro e dezembro. Ao me direcionar à bibliotecária, fui infor-
mada que não se sabia onde poderiam estar esses números e foi
sugerido que, possivelmente, haveriam sumido ou se deteriorado
com o tempo. Diante disso, debrucei-me em analisar os demais ca-
dernos que se encontravam em bom estado de conservação, salvo
alguns com páginas rasuradas ou corroídas.

AS NOTÍCIAS SOBRE SECA E O CEARÁ COMO LUGAR


DE MISÉRIA

O Jornal Correio do Ceará tinha uma rotina diária de pu-


blicações. Muitos dos noticiários sobre a seca eram publicados ao
lado de outros assuntos que acabavam tendo maior visibilidade.
A notícia do dia 13 de junho, página 06, intitulada “Drama Secu-
lar”, fazia referência à seca, tendo, logo abaixo, uma imagem em
destaque: uma moça, loira, jovem, bonita e, em sua companhia, a
cerveja Astrinha, novo lançamento da cerveja Astra – uma propa-
ganda que fazia analogia entre a cerveja e a mulher. (CORREIO DO
CEARÁ, 1970, p. 6).
Além deste, existiam outros anúncios que chegavam a se-
rem visivelmente mais atraentes aos olhos do leitor do que as notí-
cias sobre seca. Esse periódico estava sempre atento às novidades,
e, portanto, procurava ser bem diversificado em suas notícias. No
campo religioso, trazia reportagens tanto da Igreja Católica, como
da Doutrina Espírita, Candomblé, Umbanda. Também publicava o
horóscopo diário. Contemplando três ou quatro páginas, em 1970
o jornal trouxe um caderno especial intitulado A Copa do Mundo.
Com toda essa diversidade de notícias, deveria abranger um gran-
de número de leitores, principalmente do ramo empresarial.
Importante indagar sobre qual a relação desse jornal com
a sociedade da época. Uma sociedade que vivenciava um período

LUCIANE AZEVEDO CHAVES


281

de ditadura, bem como a euforia da Copa do Mundo, o incentivo à


industrialização na região Nordeste e sua “integração” às demais
regiões do país. Ao mesmo tempo, cabe entender que o jornal não
é uma expressão fidedigna de uma realidade passada ou presen-
te, e que ocorre uma prática constituída a partir de uma realidade
social, como sinaliza Laura Antunes Maciel, citada por Heloísa de
Faria Cruz: uma prática “que modela formas de penar e agir, defi-
ne papéis sociais, generaliza posições e interpretações [...]” (CRUZ
e PEIXOTO, 2007).
No Correio do Ceará, as notícias sobre a seca eram geral-
mente muito similares, com a reprodução de algumas notícias
vindas de outros jornais, como Diário de São Paulo, Correio Brasi-
liense e O Povo. O ato de informar significaria dar ao leitor uma in-
formação “pronta”, como quando se referiam ao flagelo, às frentes
de serviço e aos recursos enviados pela SUDENE. As notícias pare-
ciam sempre às mesmas: frentes de serviço em 10 dias; abertas ou
suspensas frentes de serviços. Mas, afinal, o que significaria “in-
formar” em plena ditadura militar? Além de dar a notícia pronta,
é possível pensar que, naquela conjuntura, havia uma notícia que
informava, mas que também era deformada.
Outra característica predominante no Correio do Ceará era
a de colocar os assuntos sobre estiagem ao lado de reportagens de
perfil policial. Quando se tratavam de notícias relacionadas a sa-
ques ou ao flagelado3 pedindo esmolas ou mortos por algum tipo
3 A palavra “flagelado”, nesse contexto, é atribuída como sinônimo de miserável,
desamparado, sofrido, afligido. O termo “cassaco” tornou-se comum como refe-
rência ao trabalhador pobre e faminto em períodos de seca. Cassaco é um animal
roedor, cujo nome científico é Didelphis albiventris (Lund, 1840). Popularmente, é
conhecido como Gambá ou Mucura (Amazônia e Brasil Meridional); sarigué, sa-
riguê, saruê, sarigueia (Bahia); timbú ou cassaco (Pernanbuco ao Ceará); micurê
(Paraguai e Mato Grosso); comadreja overa; e large american opossum ou opossum
(EUA). Disponível em <http://www.webanimal.com.br>. Acesso em: 9 abr. 2015.
Com relação ao termo “homem do campo”, faz referência ao próprio sertanejo,
sendo utilizado pelo Jornal Correio da Semana para identificar os agricultores da
região Norte de Sobral.

JORNAL CORREIO DO CEARÁ: A TEMÁTICA DA SECA E A MEMÓRIA DO “DRAMA SECULAR”


282

de doença, logo estavam ao seu lado notícias de roubos, assassi-


natos, sequestros. Mas, quando se tratavam de recursos enviados
pela SUDENE ou pelo DNOCS, da chegada de autoridades em áreas
atingidas pela seca, da abertura de estradas ou da organização de
frentes de serviço para alistamento de flagelados, era possível en-
contrar essas notícias em primeira página. E também havia aque-
las notícias que vinham no cantinho da página. Portanto, a ordem
dos noticiários dependia da importância que o periódico lhes atri-
buía. E a importância da notícia vinculava-se ao sujeito da experi-
ência noticiada: se o trabalhador pobre e faminto, se a autoridade
ou a iniciativa governamental.
Essa questão de reportagens quase fixas sinaliza para o que
Barbosa (2004, p.67) aponta sobre os noticiários de seca no Jornal
Gazeta de Notícias, de 1877, no Rio de Janeiro: nesse período, as
notícias sobre estiagem eram constantes, chegando até, em alguns
momentos, a “quadros quase fixos”, entre eles “A fome no Ceará”,
“A seca no Ceará”. As constantes notícias sobre a seca desenhavam
o Ceará como um lugar de misérias e o sertanejo como o retirante,
o “faminto” e o “flagelado”. Em 1970, embora houvesse uma políti-
ca que se propunha a evitar a migração e a dar, ao sertanejo, “con-
dições” de permanecer em sua região, novamente se vê a projeção
de tal imagem: é o Ceará da fome, do flagelo, de gente faminta em
busca de auxílios nas cidades.
No diálogo com os jornais cearenses, dando destaque nessa
discussão para o periódico Correio do Ceará de 1970, pude cons-
tatar que cada detalhe era importante. Não se tratava apenas de
extrair a notícia chave que contemplaria a pesquisa. Era preciso
mergulhar no universo constituído por aquele documento para
entender sua contextualização. Ao analisar documentos não tão
recentes, em relação à nossa contemporaneidade, é preciso agu-
çar o faro investigativo, atentar para os detalhes determinantes
que nos levam a desvendar questões importantíssimas que dão

LUCIANE AZEVEDO CHAVES


283

suporte à pesquisa. Neste sentido, “[...] é necessário examinar os


pormenores mais negligenciáveis” (GINZBURG, 1991).
No caminho da pesquisa, alguns pontos foram pertinentes,
dando-me pistas sobre o documento analisado Atentei para a for-
ma como a notícia era destacada, se apenas numa nota de roda-
pé ou contemplando a página inteira, se vinha na primeira ou na
última página; as palavras que mais se destacam no periódico; a
equipe que o produzia, os proprietários, os diretores, os redatores
e os colaboradores; qual a abrangência desse jornal; se publicado
semanal ou diariamente (CRUZ e PEIXOTO, 2007).
Assim como em outros periódicos pesquisados, ao analisar
o jornal Correio do Ceará percebi que os sujeitos apresentados nas
notícias referentes à estiagem como dizia Ginzburg (1989), não ti-
nham rostos, nem uma identidade própria, não tinham nomes. A
única identificação registrada nas páginas dos jornais trazia em
sua conjuntura referências depreciativas sobre essas pessoas. Re-
forçando o que já foi mencionado anteriormente as referências
atribuídas aos agricultores sertanejos são as mesmas feitas pelos
jornais cariocas e cearenses do final do século XIX e do início do
século XX. Seriam estes agricultores os eternos famintos ou ser-
tanejo faminto, flagelado, cassaco? Em algumas notícias, era pos-
sível encontrar referências de menor impacto, como “homem do
­campo”.
É importante refletir sobre como o cotidiano do agricultor
sertanejo se constituía em meio à situação de escassez de alimen-
tos e de trabalho, pois, em período de estiagem, o seu modo de
vida passava por modificações. O seu comportamento também era
modificado, como as iniciativas de saques em diversas cidades ce-
arenses que acompanhamos registradas pelos noticiários. Saque-
avam-se armazéns e trens de carga em busca de alimentos. À in-
suficiência das frentes de serviços, disponibilizadas apenas para
alguns municípios, os agricultores sertanejos respondiam com os
saques.

JORNAL CORREIO DO CEARÁ: A TEMÁTICA DA SECA E A MEMÓRIA DO “DRAMA SECULAR”


284

Portanto, ao lado das diversas notícias de calamidade, che-


gada de frentes de serviços, abertura de estradas, aparecem as
notícias sobre recursos enviados pela SUDENE para “resolver” a
situação dos sertanejos, como se vê na edição do Correio do Ceará
de 06 de maio de 1970:
A SUDENE vai reconhecer o estado de calamidade em vas-
tas áreas do Ceará. Um relatório sigiloso a respeito da real
situação do Estado foi levado pelo superintendente daque-
la agência de desenvolvimento ao Ministro do Interior, Ge-
neral Costa Cavalcanti, pedindo recursos imediatos para
frentes de serviço para conter a fome no interior. [...] A cri-
se se avoluma muito mais quando se sabe, realmente, que
os estoques de abastecimento esgotaram completamente,
começando a faltar gêneros no comércio. A estocagem é
o ponto principal arguido no relatório do General Tácito
Teófilo de Oliveira. [...] Dificilmente será possível esperar
mais. As chuvas continuam esparsas e sem perspectiva de
generalização [..]. SUDENE vai reconhecer calamidade.
Correio do Ceará, ano LV, n. 16. 635, 6 maio 1970. p. 11.

Ao falar do “reconhecimento” da situação de calamidade no


Ceará, a reportagem leva a refletir que era preciso “reconhecer a
situação de calamidade” para serem tomadas as devidas providên-
cias. A reportagem menciona que a seca estaria abrangendo as ex-
tensas áreas do Ceará. Isso significa que a situação de calamidade
não atingia todo o Ceará ou, para a SUDENE, apenas essas extensas
áreas eram prioridade no momento. O jornal não informa onde es-
tariam concentradas essas áreas, mas que seriam tomadas medi-
das, como o envio de frentes de serviços.
Em sua conjuntura, é possível perceber a necessidade de
produzir a notícia de forma que convidasse o leitor a se deleitar nos
noticiários, fosse de caráter esportivo, político, de entretenimen-
to ou voltados para o drama das notícias consideradas bárbaras,
como as que vinham nas páginas policiais, entre elas a de estiagem.
Atrativo, com muitas imagens ainda em preto e branco, depen-

LUCIANE AZEVEDO CHAVES


285

dendo do teor de importância da notícia, o periódico não poupava


espaço para destacar as imagens e os títulos em letras garrafais.

A MEMÓRIA DO FLAGELO É REAVIVADA NO


PERIÓDICO CORREIO DO CEARÁ

As estiagens do Nordeste sempre foram consideradas si-


nônimos de catástrofes e, de modo geral, a imprensa manipula-
va tal ideia a seu favor. Homogeneizando a região, ela construiu
uma memória hegemônica, uma imagem negativa e aterrorizante,
dando a entender ao leitor que o sertanejo “bebia lama” e “comia
calango”. No final do século XIX e no início do século XX, isso se
tornou frequente, com a chegada de repórteres do Rio de Janeiro
ao Norte como era denominado o Nordeste daquela época, devido
à ­repercussão da propaganda pela imprensa sobre os costumes do
povo dessa região “castigada e sofrida”, (ALBUQUERQUE JUNIOR,
1999, p.42)
Barbosa (2004, p.112) problematiza essa memória construí-
da sobre os sertanejos, vistos como uma gente exótica, de hábitos
alimentares estranhos. Isso teria chocado os correspondentes de
grandes jornais, como José do Patrocínio, sendo relatado também
pelo médico Guilherme Studart (1909), conhecido como o Barão de
Studart, no livro Climatologia, epidemias e endemias no Ceará. O
livro faz referência a um sertanejo que se alimentava de animais
como ratos e corvos. Essa memória será sempre lembrada para
reafirmar os horrores das secas, chamados por Barbosa de “me-
mória do flagelo”, relembrada e reafirmada pela literatura e pela
imprensa.
No ano de 1970, tal memória seria reavivada no periódico
Correio do Ceará. Numa coluna escrita por José Américo de Al-
meida, intitulada “Como controlar a seca”, o texto contemplava a
página inteira, trazendo imagens do sertão seco do Nordeste. Tra-
tava-se de uma longa retrospectiva sobre uma determinada seca,

JORNAL CORREIO DO CEARÁ: A TEMÁTICA DA SECA E A MEMÓRIA DO “DRAMA SECULAR”


286

considerada de grande impacto. Dependendo da intensidade, da


importância e da repercussão causada, a notícia sobre estiagem
publicada no Correio do Ceará poderia vir praticamente como
uma simples nota de rodapé ou em primeira página ou a contem-
plar uma página inteira.
Noticiar esse tipo de “tragédia” ainda era considerado uma
necessidade da imprensa da década de 1970. Os mecanismos utili-
zados para trazer à tona as lembranças de sofrimento, calamida-
de, fome, os impactos causados pela estiagem registrariam, mais
uma vez, uma memória jornalística, como se a imprensa quisesse
reafirmar a identidade daquele lugar a partir desse olhar negativo.
No ano de 1970, o periódico Correio do Ceará passou a publi-
car também páginas inteiras sobre algumas das secas que tiveram
repercussão na imprensa, como as de 1915, 1932 e 1958. Nessas re-
portagens, o periódico trazia imagens de sertanejos em retirada,
rostos sofridos de mulheres, homens e crianças, grupos de pes-
soas, inclusive famílias inteiras, que fugiam da seca. Havia uma
comparação dessas secas com a de 1970. Remetia a elas como um
drama que se estendia havia séculos.
Era comum, nesse jornal, encontrar notícias com títulos
impactantes, algumas delas nem sempre se remetiam exclusiva-
mente ao que constava no título. Com isso, chamo a atenção para o
fato de o jornal utilizar um dos assuntos da reportagem para atrair
a atenção do leitor. A matéria de 21 de outubro de 1970 descreve
cenas de pessoas em busca de alimentos na cidade de Irauçuba. A
reportagem se refere a “famintos” desesperados que invadem as
cidades em busca de sobrevivência. Com essas referências, a no-
tícia se constrói. A partir do olhar sobre tais reportagens, percebo
que o drama era uma das características predominantes para rea-
firmar a memória da seca, bem como da identidade dos habitantes
desse lugar. Outro ponto a ser observado são as ações da “multi-
dão”. Como percebê-las dentro desse contexto da notícia? Por que
de fato aconteciam?

LUCIANE AZEVEDO CHAVES


287

Ao discutir a economia moral da multidão inglesa no século


XVIII, Thompson (1998) alerta para o fato de que tais ações tinham
razões fundamentadas no aumento do preço do pão. Tratava-se de
um tipo de ação que não era comum e que se justificava por uma
razão. A reportagem utiliza o verbo “invadir”, o que proporcio-
na maior impacto à notícia. Entender as razões que os levaram a
tais ações implica em pensar sobre outras ações, as dos gestores
­públicos.
Onde estavam as políticas públicas dos governos militares?
Por que essa gente não foi assistida com tais políticas? Para aque-
les agricultores, esse comportamento poderia estar relacionado
não apenas à fome, mas a uma forma, embora enérgica, de chamar
a atenção das autoridades para a situação vivenciada naquele mo-
mento. Outro ponto importante a ser refletido é a capacidade que
a imprensa possui de homogeneizar as notícias sobre seca, trans-
formando-as em verdadeiras catástrofes.

CONCLUSÃO

Diante disso, é possível analisar que em várias publicações


do jornal Correio do Ceará, as notícias sobre estiagem se encon-
travam ajustadas em tamanhos reduzidos, dividindo o espaço com
propaganda de publicidade ou policial, ou com anúncios de finan-
ciamentos. Pelos anúncios publicados em suas páginas, percebi
que muitos estavam voltados para um determinado público cea-
rense, como aqueles que frequentavam os bailes da alta sociedade
fortalezense. O referido periódico não tinha um posicionamento
declarado sobre qual partido político apoiava, mas demonstrava
simpatia pelos governos militares, tecendo elogios ao Presidente
Médici, à sua política de governo e ao governador do Ceará, Cesar
Cals.
Nos espaços que vão sendo disputados nesse jornal, com-
põe-se uma imagem cada vez mais complexa. Um emaranhado de

JORNAL CORREIO DO CEARÁ: A TEMÁTICA DA SECA E A MEMÓRIA DO “DRAMA SECULAR”


288

informações, de dicas de beleza, de notas de colunas sociais. Isso


conduz a pensar que esse periódico estava para servir a um pú-
blico leitor exigente e consumidor. Essas notícias se construíam
dentro de um projeto editorial que caminhava para o olhar sobre
os acontecimentos do interior do Ceará, sendo importante pensar
que realidade o jornal propôs mostrar e com quem estabelecia
alianças. (VIEIRA, PEIXOTO e KHOURY, 1991).
Portanto, as notícias sobre estiagem se destacavam nas pági-
nas do periódico Correio do Ceará nos momentos em que precisava
reproduzir a memória acerca da miséria do povo cearense. O olhar
da imprensa se constituía na legitimação de uma memória hege-
mônica sobre a seca, onde os agricultores eram percebidos pela
grande imprensa, bem como por jornais como o Correio do Ceará
como eternos “flagelados”, “famintos”, “cassacos” que migravam
constantemente, tumultuando as cidades e promovendo saques.

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fotografia entre o final do século XIX e o início do século XX. 2004.
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JORNAL CORREIO DO CEARÁ: A TEMÁTICA DA SECA E A MEMÓRIA DO “DRAMA SECULAR”


290

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE
LEITOR DE PERNAMBUCO
Ângela Cláudia Rezende do Nascimento Rebouças1

RESUMO
As cartas de leitor têm a função de estabelecer uma comunica-
ção entre o público alvo do jornal e a equipe jornalística que o produz,
neste sentido as escolhas feitas pelos escritores das cartas são altamente
determinantes no alcance do propósito comunicativo do gênero. Com
o escopo da Linguística Sistêmico Funcional de Halliday e com suporte
dos trabalhos de SOUZA, (2006), CUNHA e SOUZA (2007), CUNHA (2011),
GHIO e FERNANDÉZ (2008), LIMA-LOPES (2008), este trabalho objetiva
observar a transitividade nas cartas de leitor do estado de Pernambuco
situadas no século XIX e analisar como se constroem no discurso as quei-
xas e as manifestações de reclamações sobre um determinado tipo de
assunto neste corpus.
Palavras-chave: Linguística Sistêmico-Funcional. Cartas de lei-
tor. Processos.

ABSTRACT
Reader letters have the function of establishing communication
between the target audience of the newspaper and the journalistic team
that produces it. In this sense, the choices made by the letter writers
are highly determinant in reaching the communicative purpose of the
genre. With the scope of Halliday’s Functional Systemic Linguistics and
supported by the works of SOUZA, (2006), CUNHA and SOUZA (2007),
CUNHA (2011), GHIO and FERNANDÉZ (2008), LIMA-LOPES (2008), this
work aims observe the transitivity in the letters of readers from the state
of Pernambuco located in the 19th century and analyze how complaints
and manifestations of complaints are constructed in the discourse on a
certain type of subject in this corpus.
Key-words: Systemic-Functional Linguistics. Letters from
readers. Processes.
1 Professora no Departamento de Letras Vernáculas-DLV/UERN, Dra. em linguísti-
ca pela UFPE. ang-thi@hotmail.com

ÂNGELA CLÁUDIA REZENDE DO NASCIMENTO REBOUÇAS


291

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O estudo dos textos tem sempre novas descobertas a serem


mostradas e exploradas pelos estudiosos. Nunca as possibilidades
de estudos são esvaziadas, nem mesmo quando pensamos que as
ideias e perspectivas parecem ter sido esgotadas. Na linguística,
explorar o texto é sempre partir da materialidade, seja ele falado
ou escrito, é o texto que nos mostra como a língua existe, funciona
e se transforma.
Várias teorias e correntes linguísticas buscam a explicação
de como a língua funciona, como alcançamos os efeitos desejados
na produção do discurso, como os usuários dessa língua dela se
utilizam para a comunicação, o que faz a comunicação ser eficien-
te. Estas são questões que encontram respostas em muitas meto-
dologias e sob várias perspectivas.
À luz da teoria Linguística Sistêmico-Funcional (HALLI-
DAY, 1985; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004), a explicação de
como a língua funciona parte da consideração da situação em que
é produzido o texto, a partir da situação comunicativa, além de se
pensar no propósito do evento da fala, nos participantes da situa-
ção e dá a devida importância ao contexto discursivo.
Desta forma, a pesquisa feita neste trabalho, busca obser-
var a transitividade nas cartas de leitores de Pernambuco, século
XIX, amparada na Linguística Sistêmico-Funcional, que utiliza a
noção de linguagem como um sistema semiótico social e um dos
sistemas de significado que compõem a cultura humana (CUNHA
e SOUSA, 2007), e através do sistema de transitividade, identificar
ações e atividades humanas expressas no discurso em questão. Ou
seja, como a transitividade contribui para a construção das ideias
e queixas das cartas de leitores.

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO


292

UM POUCO DE HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA


SISTÊMICO-FUNCIONAL

O funcionalismo é uma corrente que, de certa forma, nas-


ceu em oposição às ideias gerativistas de Chomsky, que em seus es-
tudos inatistas descartava a importância do contexto, da situação
comunicativa e propunha que para se analisar a língua, um falante
apenas seria suficiente, pois este teria em sua mente a estrutura
da língua e todos os dados necessários para que se entendesse o
funcionamento da linguagem (CUNHA, 2011, p.157). No entanto,
este falante ideal, além de não conhecer toda a estrutura da lín-
gua, pois isso não é possível a nenhum falante, não daria conta de
reproduzir um evento comunicativo que envolvesse mais partici-
pantes, sendo então a pesquisa de Chomky limitada neste sentido.
A concepção de linguagem da corrente funcionalista é a
linguagem como um instrumento de interação social, e que é sub-
metida a diversas pressões provenientes de fatores ligados à situ-
ação comunicativa, pois o funcionamento da estrutura opera com
essas variáveis. Ainda, o que orienta essa corrente é a reflexão da
noção de função, que os funcionalistas têm não apenas como uni-
dade sintática, mas, como a união do estrutural (sistêmico) com
o funcional (NEVES, 2013, p. 17-18). Outro ponto que diferencia os
funcionalistas dos gerativistas é a preocupação com a multifunção
e não apenas com a competência para a organização sintática das
frases. Basicamente, a preocupação com a ideia de que a língua é
funcional e que essa funcionalidade é o que deve ser observada nas
pesquisas é o cerne da questão que orienta essa teoria.
Como muitas correntes da Linguística, o funcionalismo
tem suas vertentes que se originam da mesma base mas que dão
enfoques diferenciados aos fatos ou a uma concepção, e suas análi-
ses são distintas conforme o grau em que se considera o condicio-
namento do sistema linguístico pelas funções externas. Algumas
posturas são mais radicais como a de Du Bois (1985) que propõe

ÂNGELA CLÁUDIA REZENDE DO NASCIMENTO REBOUÇAS


293

que as funções externas influenciam diretamente as categorias


gramaticais, ou seja, que não existiria o nível estrutural chamado
sintaxe: a língua poderia ser descrita unicamente com base nos
princípios comunicativos, além de Hopper e Thompson (1980) que
vê a transitividade como uma categoria que deriva do discurso.
(CUNHA, idem).
Posturas menos radicais em relação a este tema são as de
Dik e Halliday que aceitam a interação entre a forma e a função,
pois, a forma não serve sem uma função e a função só existe e é
posta em prática se materializada numa forma, assim se influen-
ciariam mutuamente na produção do discurso e na comunicação
de forma geral. É dessa vertente dos estudos de Halliday que nasce
a Gramática Sistêmico-Funcional, que tanto pode ser considerada
uma técnica de descrição da língua, como num sentido mais am-
plo é modelo de análise textual, já que fornece técnicas e métodos,
instrumentos e uma metalinguagem própria.
Para Halliday, a noção de função ocupa a sua preocupação
central e ele a vê como o papel que a linguagem desempenha na
vida dos indivíduos, servindo aos muitos e variados tipos univer-
sais de demanda (NEVES, 2013).
Neves (1997, p. 58-59, apud NEVES, 2013), oferece algumas
indicações sobe a base da teoria hallidayiana:
A teoria sistêmica à qual se liga a gramática funcional de
Halliday baseia-se na teoria de Jonh Rupert Firth (Robins,
1964, p. 290, lhe chama “neofirthiana”), com inspiração
em Malinovsky e Whorf (Kress, 1976, p. viii-xi). Mathies-
sien (1989) aponta que, na base da teoria da Hallliday, estão
o funcionalismo etnográfico e o contextualismo desenvol-
vido por Malinovsky nos anos 20, além da linguística fir-
thiana da tradição etnográfica de Boas-Sapir-Whorf e do
funcionalismo da Escola de Praga. Mathiessen (1989) indi-
ca, como primeira versão da teoria sistêmico –funcional,
‘a scale-and-category theory’, estabelecida em Halliday
(1961), depois revista e ampliada, com proposição de uma

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO


294

base paradigmática e, afinal, completada com a teoria das


metafunções. (HALLIDAY, 1967-1968, 1973).

A teoria das metafunções exibe uma lógica que mostra que


acima dos falantes e dos sistemas lingüísticos há a línguagem, esta
que cumpre certas funções, que Halliday separa em três como as
fundamentais, que vão além da troca de informações e negociação
de sentidos, de acordo com Gouveia (2009, p. 15):
[...] a linguagem serve para expressarmos conteúdo, para
darmos conta da nossa experiência do mundo, seja este
o real, exterior ao sujeito, seja este o da nossa própria
consciência, interno a nós próprios; mas a linguagem ser-
ve também para estabelecermos e mantermos relações
sociais uns com os outros, para desempenharmos papéis
sociais, incluindo os comunicativos, como ouvinte e falan-
te; e, por fim, a linguagem providencia-nos a possibilidade
de estabelecermos relações entre partes de uma mesma
instância de uso da fala, entre essas partes e a situação
particular de uso da linguagem, tornando-as, entre outras
possibilidades, situacionalmente relevantes. (GOUVEIA,
2009, p. 15)
De forma que essas metafunções recebem os nomes de me-
ta-função interpessoal, meta-função ideacional e meta-função
textual. A primeira, nós utilizamos nomear a interação entre as
pessoas, de forma que essa função é responsável por expressar-
mos nossa relação com o outro, nossa posição, nossas ideias sobre
o relacionamento social, ajuda-nos a codificar e interpretar os sig-
nificados sociais.
Já a metafunção ideacional utilizamos para codificar nossa
experiência no mundo, é onde criamos as imagens para uma dada
realidade, função sem a qual não conseguiríamos nomear os fenô-
menos e as imagens que fazemos do mundo, ou seja, ela serve para
criar significados ideacionais.
A metafunção textual é a função reguladora da organização
dos significados ideacionais materializados numa estrutura x, se-

ÂNGELA CLÁUDIA REZENDE DO NASCIMENTO REBOUÇAS


295

quenciados de forma coerente e linear. Com ela produzimos e or-


ganizamos significados textuais, que nos permitem efetivamente
que haja a comunicação de nossas ideias e pensamentos.
Ghio e Fernández (2008, p. 24), em sua obra que trata da
linguística Sistêmico Funcional e suas aplicações na língua espa-
nhola, trazem um quadro que exemplifica muito bem o esquema
no qual as metafunções aparecem e são subdividas em outras me-
nores:

Tabela 1 – Metafunções da linguagem segundo a teoria hallidayiana


Caracterização Denominações relacionadas com esta
Função em outras tipologias
Formação de ideias,
Semântica
interpretação e repre-
Representacional
Experiencial sentação do mundo que
Denotativa
nos rodeia e do mundo
Cognitiva
interior
Ideacional Recursos para estabele-
cer ralações lógico-gra-
Lógica maticais
Atribuições de papel de
fala e observações mo-
dal-atitudinais

Interação entre falantes Conativa-expressiva


Interpessoal
e ouvintes, (pragmática)

Organização do contexto Pragmática Discur-


ideacional e interpessoal siva
Textual
como texto coerente e Perspectiva funcio-
coeso nal da criação

Essas são consideradas as funções básicas e permitem a


organização interna da língua, pois estão presentes em todos os
contextos de uso, sociais e etc.
Sobre as definições de estrutura e sistema é importante sa-
ber, Halliday adota as seguintes posturas: 1 Sistema- é a represen-
tação teórica da rede de paradigmas disponíveis, 2 Estrutura- seria

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO


296

a configuração das opções concretas que se realizam nas relações


sintagmáticas (GHIO e FERNÁNDEZ, idem, p. 26)
É no sistema que estão as possibilidades de escolha sobre a
qual a teoria sistêmico funcional é fundada, mesmo que essas es-
colhas sejam condicionadas em algum momento por pressões ex-
tra estruturais e mesmo que essas escolhas não sejam tão simples
como aparentam ser. É Sobre o sistema que recai nossa atenção de
agora por diante, mais especificamente no sistema de transitivida-
de que será explicado a seguir.

O SISTEMA DE TRANSITIVIDADE

O Sistema de Transitividade mostra como os falantes repre-


sentam o mundo, suas experiências nele, a partir de suas escolhas
léxico-gramaticais e tem como foco a transmissão de ideias reali-
zando a função ideacional da linguagem.
Na gramática tradicional, a transitividade é uma proprie-
dade dos verbos que são caracterizados como transitivos, quan-
do necessitam de um objeto direto ou indireto e são intransitivos
quando não necessitam desse complemento (CUNHA, 2011, p. 171).
Ela também se define a maneira como um verbo se relaciona com
os Sintagmas Nominais (SN) numa mesma oração (TRASK, 2004
apud CUNHA e SOUZA, 2007).
Em termos gerais o Sistema de Transitividade é um recurso
linguístico que dá conta de “quem fez o que a quem e em que cir-
cunstância” (GOUVEIA, 2009).
Essa gramática da oração possibilita a identificação de
ações e atividade humanas evidenciadas no discurso propriamen-
te dito, e isso só é possível graças ao esquema de transitividade que
mostra os principais papeis, sendo eles processos, participantes
e circunstâncias. (BUTT et al., 2001, p.46 apud. CUNHA e SOUZA,
2007) traz a seguinte figura de Padrões experienciais na oração:

ÂNGELA CLÁUDIA REZENDE DO NASCIMENTO REBOUÇAS


297

nais circund
s nomi am
tagma os
pro
sin
s m -se aos
cia proc

ce
sso

un
es

sso
sa

alg

s
se

so
ai

com
om

sc
gmas adverbiai s c o mo P
bai

sintagmas n

omo

o CIRCUNSTÂNCIAS
mas ver

RO

PARTICIPAN
CESSSOS
tag
itos
Sin
Sinta

Mu

TES
Fonte: BUTT et al., 2001, p.46 apud. CUNHA e SOUZA, 2007)

As circunstâncias se materializam nos sintagmas adver-


biais e também podem aparecer em alguns sintagmas nominais
e são informações adicionais direcionadas aos processos. Os par-
ticipantes são os termos associados diretamente aos processos, é
quem age, quem faz, quem experiencia, quem constrói e manifesta
algum pensamento ou se encontra num determinado estado.
Já os processos, são os elementos que exprimem ações,
acontecimentos, estados, evoluções, gradações, e constituem o
elemento central de análise deste Sistema de Transitividade, sem
deixar de destacar a importância das circunstâncias e dos parti-
cipantes que completam o sistema, pois sem participante, há pro-
cessos que não se completariam semanticamente.
De forma resumida, os processos dividem-se em seis tipos:
1. Processos materiais: que são executados por um agente
ou ator, são os processos do fazer e traz como partici-
pante Meta, podendo haver também outros participan-
tes relacionados aos processos materiais; o recebedor,
o cliente, o escopo (HALLIDAY e MATHIESSEN, 2004
apud. LIMA-LOPES, 2008).

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO


298

2. Os processos mentais são os de sentir, pensar, ver, dese-


jar, perceber e refletem as atividades não do mundo ex-
terior, mas do interior, da mente. Os participantes são o
experienciador e o fenômeno.
3. Os processos relacionais expressam a forma de relacio-
nar, de ser ou estar, caracterizam e identificam. Os par-
ticipantes são o portador e o atributo, o identificado e o
identificador.
4. Os processos verbais são os de dizer, comunicar e vão da
enunciação a processos semióticos que não são necessa-
riamente verbais. O participante deste processo é o di-
zente, o dizer, a verbiagem.
5. Os processos existenciais são os quais há apenas um par-
ticipante; o existente.
6. Os processos comportamentais são relacionados a pro-
cessos fisiológicos humanos, que manifestam no exte-
rior, ações da vida interior do homem, como por exem-
plo, olhar, escutar, rir. E os participantes principais des-
te processo são o comportante e o comportamento.

Neste sistema, a oração como representação se constitui de


processos, participantes e circunstâncias. E uma análise sob esta
perspectiva teórica busca encontrar, através da forma como se
dão as escolhas, como os falantes, escritores constroem suas ex-
periências de realidade, à qual eles tiveram acesso, como discur-
so materializado na fala ou na escrita. Assim, busca-se entender
como os participantes são descritos, como são discriminados, e de
quais domínios fazem parte.
Embora seja importante uma análise que contemple todos
os constituintes da oração, processos, participantes e circunstân-
cias, neste trabalho serão levados em conta apenas os processos
encontrados nas cartas, e em virtude das escolhas dos processos
será observado como se constroem as cartas de leitor.

ÂNGELA CLÁUDIA REZENDE DO NASCIMENTO REBOUÇAS


299

AS CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO DO SÉCULO


XIX

As cartas que compõem o corpus deste trabalho fazem par-


te de uma pesquisa do PHPB2 (para a História do Português bra-
sileiro) e foram coletadas por diversos pesquisadores dos estados
da Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraná e São
Paulo. São cartas oitocentistas que vão de 1808 a 1900 e registram
diferentes períodos na história do Brasil.
O objetivo deste projeto é reunir cópora pretérito a fim de
evidenciar alguns fenômenos de forma coordenada e organizada
por diversos grupos regionais orientados sob três pontos princi-
pais da coleta:

1. Organização de corpora diacrônicos com variados tipos


de textos manuscritos e impressos;
2. Mudanças linguísticas; e
3. História Social do Português do Brasil.

O conteúdo destas cartas gira em torno de queixas pessoais,


reivindicações dos direitos, insatisfações individuais e coletivas
de um Brasil que vivia um momento político de instabilidade e de-
sorganização.
2 O Projeto Para uma História do Português Brasileiro- equipe Rio de Janeiro
(PHPB-Rio) foi organizado em 1998 na Faculdade de Letras da UFRJ, integrando-se
à proposta de trabalho coletivo lançada no I Seminário para a História do Portu-
guês Brasileiro, realizado em abril de 1997 pelo Programa de Pós-Graduação em
Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP). Esse encontro,
por sua vez, foi o resultado da articulação entre vários projetos pessoais e coletivos
que, a partir de momentos distintos durante a década de 90, se haviam ocupado
das questões histórico-lingüísticas envolvidas na formação do português brasilei-
ro. Coube aos Professores Doutores Ataliba de Castilho e Rosa Virgínia Mattos e
Silva a tarefa de reunir, naquele primeiro seminário, professores, pós-graduandos
e graduandos a fim de estabelecer as primeiras idéias de uma investigação coor-
denada. Essa iniciativa garantiu a continuidade do trabalho sob um mesmo plano
geral. Nascia, assim, o Projeto Nacional Integrado Para a história do português
brasileiro dividido em equipes regionais por todo o país.

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO


300

Com as cartas de leitor, é possível verificar a voz de um pú-


blico leitor que está se formando, o Brasil letrado da época impe-
rial e suas queixas, angústias e desejos. Que só foi possível quando
a imprensa foi trazida para o Brasil, de certa forma tardiamente,
mas que inaugurava um período muito relevante na tradição escri-
ta do país, esta tradição que acabava de se formar com a influencia
da vida da família real para o Brasil em 1808 e consequentemente
a importação de material de imprensa para a criação de jornais e
revistas no país.
Para este trabalho, foram escolhidas 5 cartas de leitor que
estão compreendidas neste período supracitado e para a análise
escolheu-se observar todos os processos, para avaliar como se
constroem essas queixas, quais são as escolhas mais frequentes na
estrutura oracional da época.

OS PROCESSOS DAS CARTAS DE LEITOR

As cartas de leitor que constituem o córpora do PHPB do


estado de Pernambuco servem para manifestar algum contenta-
mento ou descontentamento público ou dirigido aos editores do
jornal, de forma que essas queixas vêm de pessoas dos mais varia-
dos grupos, mas que fazem parte de uma pequena fatia da socieda-
de brasileira imperial que sabe ler e tem acesso aos jornais.
O corpus apresenta um total de 103 processos, descrimi-
nados da seguinte forma 58 materiais, 6 mentais, 26 relacionais,
5 comportamentais, 5 verbais e 4 existenciais. De forma que estão
assim apresentados.
Retomando os processos materiais, Cunha e Souza (2007,
p.56), afirmam ser aquele através do qual uma entidade faz algo,
ou seja, são os processos do fazer e estão ligados ao mundo físico e
tem como participantes Ator, Meta, Extensão e Beneficiário.

(1) Bem longe d’entreter opiniaõ contraria | áquella, que


sempre entretive do Thezou- | reiro, e mais agentes da

ÂNGELA CLÁUDIA REZENDE DO NASCIMENTO REBOUÇAS


301

Loteria Publica em | favor do Seminario de Olinda, notto


porem | que se naõ tenha publicado huma Lista Ge- | ral,
empreça, porque em realidade quem ar- | riscou o seu
dinheiro, e na melhor fé, quer | taõbem na mesma boa fé,
ter hum dezenga- | no em forma.
(2) Eu ví Senhores Redactores, quei- | xumes contra o The-
zoureiro, que precedeo | o actual, e naõ me atrevo a di-
zer, que fos- | sem bem fundados, mas se assim he, elles |
taõbem revertem agora sobre o Senhor Martino.
(3) casos há, que se naõ podem prevenir, mas quanto | á
nós, se se naò tivesse dado tanto apreço | aos gritos de
corra a roda, a lista naõ leva- | ria quase 15 dias sem ser
impressa, pois nos | consta, que hoje (4) he que ella che-
gou | a Imprensa. || Os Redactores.

Já os mentais, expressam percepções de um mundo inte-


rior como sentir, ver, ouvir, perceber:

(4) Bem longe d’entreter opiniaõ contraria | áquella, que


sempre entretive do Thezou- | reiro, e mais agentes da
Loteria Publica em | favor do Seminario de Olinda, notto
porem | que se naõ tenha publicado huma Lista Ge- | ral,
empreça, porque em realidade quem ar- | riscou o seu
dinheiro, e na melhor fé, quer | taõbem na mesma boa fé,
ter hum dezenga- | no em forma.
(5) Supomos que o Senhor Aleixo não’o obrou com muito
acerto, si e’ que não’ veio somente para gosar da nossa
bella athmosfera, e tomar alguns banos do Capibaribe:

Os processos relacionais estabelecem conexões entes entidades

(6) Sou Senhores Redactores. || O Amigo dos Esclarecimen-


tos || Nos estamos bem informados por via | do Impres-

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO


302

sor da nossa folha, que o actual | Thezoureiro nenhuma


culpa tem na demora | da publicaçaõ da lista exigida.
(7) assim como | estamos persuadidos da boa fé de qual-
quer | dos Empregados nessa administraçaõ;

Processos Comportamentais 5

(8) Eu ví Senhores Redactores, quei- | xumes contra o The-


zoureiro, que precedeo | o actual, e naõ me atrevo a di-
zer, que fos- | sem bem fundados, mas se assim he, elles |
taõbem revertem agora sobre o Senhor Martino. |
(9) aproveito esta ocasião para em duas pala- | vras respon-
der ao seu anuncio do Diario d’| hoje a respeito do Se-
nhor Breck-mesfreg, | que com toda a sua dignidade não
pòde dei- | xar de mentir no momento em que lhe deu | a
satisfação de não Ter visto o autografo da | sua mão visto
que o contrario disse a pes- | soas muito capazes as quaes
se for preciso | apareceráõ ao publico.

Processos verbais

(10) Eu ví Senhores Redactores, quei- | xumes contra o The-


zoureiro, que precedeo | o actual, e naõ me atrevo a di-
zer, que fos- | sem bem fundados, mas se assim he, elles |
taõbem revertem agora sobre o Senhor Martino.
(11) aproveito esta ocasião para em duas pala- | vras respon-
der ao seu anuncio do Diario d’| hoje a respeito do Se-
nhor Breck-mesfreg, | que com toda a sua dignidade não
pòde dei- | xar de mentir no momento em que lhe deu | a
satisfação de não Ter visto o autografo da | sua mão visto
que o contrario disse a pes- | soas muito capazes as quaes
se for preciso | apareceráõ ao publico.

ÂNGELA CLÁUDIA REZENDE DO NASCIMENTO REBOUÇAS


303

Processos existenciais 4

(12) casos há, que se naõ podem prevenir, mas quanto | á


nós, se se naò tivesse dado tanto apreço | aos gritos de
corra a roda, a lista naõ leva- | ria quase 15 dias sem ser
impressa, pois nos | consta, que hoje (4) he que ella che-
gou | a Imprensa.
(13) o ressentimento da sua Policia ainda existe, e ninguem
tem culpa de o ex-Imperador não’ ter pago melhor os
seus serviços.

As porcentagens dos processos aparecem de forma bastan-


te variada. Os processos materiais se exibem em maior número e
essa percentagem equivale a 56, 31% dos processos. O que nos per-
mite afirmar que as ideias das cartas de leitor são em sua maio-
ria representadas por estes processos. Isso coloca o leitor numa
posição de quem faz algo (entidade), já que os processos materiais
expressam a ideia de que um ator, participante efetuou alguma
ação. São pois, representações de ações concretas e dão conta das
mudanças do mundo real.
Já os processos mentais aparecem em poucos exemplos,
apenas 6, o que equivale a 5.8 % dos processos. Um número pe-
queno diante da quantidade total. O que se mostra uma espécie
de contradição com o que se espera de cartas que tem o objetivo
de expressar queixas, reclamações e etc. Além de insatisfações
dos leitores com algum fato que tenha ocorrido com eles, e não
necessariamente tem a ver com a equipe que produz o jornal mas
na época o jornal era uma das únicas formas de alcançar a massa
e enviar uma mensagem, já que a tecnologia era limitada. Era um
meio de utilidade pública.
Os processos relacionais aparecem em segundo lugar na
lista dos que são mais utilizados nos textos, aparecem 25,24% das
vezes que há processos e estes exprimem a ideia de ser ou estar e

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO


304

envolve duas partes ou seja, de algo que diz de outra parte e que
relaciona entidades separadas.
Já os processos comportamentais que estão ligados a pro-
cessos fisiológicos humanos aparecem numa pequena parte do
total, o que no caso indica que as ações praticadas pelos escritores
das cartas ficam muito mais no plano do mental que nas ações físi-
cas. Eles totalizam 5% dos processos das cartas.
Os processos verbais, como já vimos, são os processos do
dizer e tem como participante o dizente e são raros nas cartas,
aparecem apenas 5% das vezes, assim como os existenciais que
totalizam 3,8% dos processos. Isso mostra que a principal forma
expressão escolhida pelos leitores partem da função representa-
tiva e que narrações por exemplo, que normalmente utilizam os
processos verbais, ou descrições de cenas, fatos e etc. não consti-
tuem as cartas de leitor por nós analisadas.

ALGUMAS CONCLUSÕES

As cartas de leitor que compõem este corpus estão longe de


parecer com uma carta de leitor do século XXI. Nestas cartas, os
discursos se apresentam sempre com um teor de queixa, de ques-
tionamentos, o que predomina no dia-a-dia, na ordem social da
época, sendo o jornal um veículo de comunicação da massa, em
que o leitor brasileiro recém constituído pode se expressar.
O sistema de transitividade permitiu avaliar quais escolhas
nesses escritos predominavam, nos nossos resultados os proces-
sos materiais, seguidos dos relacionais obtiveram maior número
de ocorrências. Isto significa dizer que as ideias se materializam
nas ações concretas e nas relações entre entidades separadas e que
mesmo os autores das cartas sejam diferentes, existe um padrão
no discurso da época que pode ser ligado ao estilo, a uma tradição
de escrita que se utilizam na época, já que os modelos eram bas-
tante valorizados.

ÂNGELA CLÁUDIA REZENDE DO NASCIMENTO REBOUÇAS


305

Já o pouco uso dos processos mentais permite-nos observar


um distanciamento escritor da carta mesmo sendo este um gêne-
ro em que normalmente se expressam de forma mais confidente,
pois a carta apresenta um nível pessoal alto em relação a outros
textos.
O número em que aparecem os outros processos é relativa-
mente muito pequeno, não podendo ser feita uma análise mais a
fundo deles.
De modo geral, as cartas apresentam escolhas baseadas no
que se faz materialmente e não no que diz nem no que se sente.

REFERÊNCIAS

CUNHA, Maria Angélica Furtado da; SOUZA, Maria Medianeira


de. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna,
2007.
CUNHA, Angélica Furtado da. Funcionalismo. In: MARTELOTTA,
Mário Eduardo (Org.). Manual de Linguística. 2.ed. São Paulo: Con-
texto 2011.
GHIO, Elsa; FERNÁNDEZ, María Delia. Linguística Sistêmico Fun-
cional: Aplicaciones a La lengua española. 1. Ed. Santa Fe: Universi-
dad Nacional del Litoral, Walchuter Editores, 2008.
GOUVEIA, Carlos A. M. Texto e gramática: uma introdução à lin-
guística Sistêmico-Funcional. Matraga: Rio de Janeiro, v.16, n.24,
jan./jun. 2009.
HALLIDAY, M.A.K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. 2004. Introducion
to FunctionalGrammar. 3 edition. London: Arnold, 2004.
NEVES, Maria Helena Moura. Texto e Gramática. 2.ed. São Paulo:
Contexto, 2013.

A TRANSITIVIDADE EM CARTAS DE LEITOR DE PERNAMBUCO


306

IMAGEM, HISTÓRIA: DESENHANDO


POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS
PARA A PESQUISA EDUCACIONAL1
Maria Cecilia de Paula Silva2
Ana Paula Trindade Albuquerque3
Menandro Celso de Castro Ramos4

RESUMO
O artigo relaciona-se a pesquisas educacionais que tratam a educa-
ção e cultura brasileira por meio da leitura imagética. Temática importante
na atualidade para conhecermos formas como as imagens transmitem e
comunicam mensagens realizando uma escrita histórica. Na educação, a
imagem torna-se importante para decodificar nuances das culturas, pelo
poder de flagrar o tempo/espaço e cristalizá-lo, de manter sua dinâmica,
o trazer para leituras e re-leituras de tempos (passado/ presente/ futuro),
desenhar outros caminhos. Considerar a imagem como fonte de pesquisa
histórica, familiarizar o olhar para este campo de análise oportuniza outras
interpretações. Na lógica do capital, a mudança social é substituída por uma
alteração de imagens na busca de anestesiar conflitos de classe, desigual-
dades econômicas, estimular o consumo e fornecer uma ideologia na qual
coexistem estruturas capitalistas tradicionais com estruturas de produção,
distribuição e consumo pós-fordista (CIAVATTA, 2004). Isso exige uma com-
preensão imagética e uma investigação que a relacione com percepção, con-
dições sociais, culturais, econômicas envolvidas no processo.
Palavras-chave: imagem e história; pesquisa educacional; cultu-
ra e ideologia.
1 A partir do artigo Imagem e História: rascunhando possibilidades metodológicas
para a pesquisa educacional (18 EPENN 2007).
2 Pós-doutorado em Sociologia e Antropologia, Université de Strasbourg, Fr. Pes-
quisadora CAPES. Profa. Titular da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Educação. E-mail: ceciliadepaula.ufba@gmail.com
3 Formada em Desenho e Plática, Mestre e Doutora em Educação – PPGE/ FACED/
UFBA. Profa. do Centro Universitário Jorge Amado-UNIJORGE, Bahia, Brasil.
E-mail: aptrinda@gmail.com
4 Doutor em Educação PPGE/ FACED/ UFBA. Professor Associado da Faculdade de
Educação, Universidade Federal da Bahia. E-mail: menandro@ufba.br.

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • ANA PAULA TRINDADE ALBUQUERQUE


MENANDRO CELSO DE CASTRO RAMOS
307

ABSTRACT
The article relates to educational research that deals with
Brazilian education and culture through imagery reading. An important
topic nowadays to learn about ways in which images transmit and
communicate messages carrying out historical writing. In education, the
image becomes important to decode nuances of cultures, by the power
to capture time / space and crystallize it, to maintain its dynamics, to
bring it to readings and re-readings of times (past / present / future)
, draw other paths. Considering the image as a source of historical
research, familiarizing the view of this field of analysis makes other
interpretations possible. In the logic of capital, social change is replaced
by an alteration of images in an attempt to anesthetize class conflicts,
economic inequalities, stimulate consumption and provide an ideology
in which traditional capitalist structures coexist with structures of
production, distribution and post-Fordist consumption (CIAVATTA,
2004). This requires an image understanding and an investigation that
relates it to perception, social, cultural, economic conditions involved in
the process.
Keywords: image and history; educational research; culture and
ideology.

DE RASCUNHOS E DESENHOS

A humanidade desde sempre e através dos mais diversos e


criativos meios tenta registrar situações cotidianas do seu tempo,
sua história, representados por objetos e/ou eventos de época que,
explicita ou implicitamente, despertam a atenção e comunicam
algo. É curiosa a obstinação da humanidade para eternizar mo-
mentos numa tentativa ainda pouco compreensiva para nós de
partilhá-los com as gerações futuras.
Essa busca de congelar o tempo, pelo desenho, pintura, fo-
tografia, grandes monumentos teria relação com a percepção de
uma realidade fugaz, sempre evanescente no plano do indivíduo,
a apontar para a finitude do ser? Ou seria a percepção aguçada
da possibilidade de manipular os signos para criar realidades

IMAGEM, HISTÓRIA:
DESENHANDO POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA A PESQUISA EDUCACIONAL
308

com finalidade do exercício da dominação de seus semelhantes


numa forma antecipada do que hoje se conhece como marketing
­político?
O que teria pretendido Quéops ao construir em Gizé, no
Egito, por volta de 2575 a .C., uma pirâmide que envolveu 100 mil
trabalhadores durante vinte anos? Qual seria o sentido da constru-
ção da estátua de Zeus Olímpico, em ouro e marfim, cuja cabeça,
apenas para se ter uma idéia, media treze metros de altura, a dar
crédito de relatos dos nossos antepassados? E o Colosso de Rodes,
estátua em bronze com mais de 35 m de altura construída para ho-
menagear Hélios, ou o deus Sol, na antiga Grécia? E todo acervo
ocidental de esculturas e pinturas que imortalizaram persona-
gens das classes hegemônicas e que hoje ocupam salas especiais
de museus e centros culturais, atraindo anualmente milhares de
visitantes? De quais mídias, afinal,  o poder se vale para assegurar
a sua estabilidade no tempo presente? 
A história do homem é assinalada pela presença da imagem
e diversas possibilidades de suportes e técnicas que asseguram a
comunicação humana: madeira, pedra, argila, osso, couro, mate-
riais orgânicos em geral, metais papéis, acetatos, suportes digi-
tais, desenho, pintura, escultura, fotografia, cinema, televisão,
web. Uma história rica em soluções plásticas com a finalidade de
representação para a expressão e o registro. Marcada pela imagem
como elemento de linguagem, como ato sêmico, como signo do-
tado de intencionalidade. Com capacidade evocatória de objetos,
pessoas e eventos que comunicam e transmitem intenções e inten-
cionalidades específicas.
Da mesma forma que é curiosa a obstinação da humanidade
para eternizar momentos de sua vida, é instigante  a sua capacida-
de de criar soluções técnicas para perenizar esses momentos. A fo-
tografia, sem dúvida, é uma delas. As pinturas rupestres e demais
soluções plásticas encontradas em diversos sítios arqueológicos
fazem-nos indagar qual teria sido o sentido dessas manifestações,

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • ANA PAULA TRINDADE ALBUQUERQUE


MENANDRO CELSO DE CASTRO RAMOS
309

o que gostariam de comunicar, fins mágico-propiciatórios, estéti-


cos ou de registro?
Teria relação com a busca e a manutenção do poder. Igual-
mente podemos destacar os Césares, homenageados e com seus
nomes imortalizados no mármore magistralmente esculpido.
Num rápido inventariado é possível verificar o quanto o poder
historicamente se valeu da arte, da técnica e dos artistas para se
perpetuar.

IMAGEM: UM POUCO DA HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA

A imagem se torna importante no registro da história hu-


mana. A história da fotografia mostra bem isso. Os caminhos que
antecederam aos aparatos atuais de registro de imagens são cons-
truídos de pequenas descobertas, aparentemente insignificantes,
que culminam, mais adiante, em grandes achados.
Podemos destacar, entre eles, o princípio da câmara escura,
a partir da observação de que os raios de luz solar que penetra num
recinto fechado e escuro, por um orifício e projetavam na parede
oposta, imagens do exterior, já em IVa C, pelos gregos. A câmara
escura com os princípios elementares da câmara fotográfica mo-
derna foi usada pela primeira vez com fins práticos na observação
de um eclipse solar por astrônomo árabe, no séc. XI. Na Renascen-
ça, Leonardo da Vinci descreveu-a minuciosamente e, seus con-
temporâneos pintores e projetistas usaram-na largamente como
importante método auxiliar de construção da imagem. Neste perí-
odo os primeiros modelos portáteis projetados pelo italiano Gerô-
nimo Cardano, diferenciavam-se das primeiras câmaras escuras,
imensos quartos, capazes de abrigar um homem no seu interior.
As tentativas de melhoria da qualidade da imagem e da
captura da ‘realidade’, da verdade objetiva vão se ampliando com
o passar dos anos por personalidades como, por exemplo, Giam-
battista della Porta (século XVI); Johann Schulze (1727); Thomas

IMAGEM, HISTÓRIA:
DESENHANDO POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA A PESQUISA EDUCACIONAL
310

Wedgewood (1790); Joseph Nicéphore Niepce (1922); Louis Jacques


Mandé Daguerre (1837); William Henry Fox Talbot (1841) George
Eastman(1882); J. Gaedicke e A Miethe(1887), ente muitos outros.
E as primeiras câmeras surgiram num clima de muita
euforia. A possibilidade de registrar cenas do cotidiano com uma
relativa facilidade não encontrada no desenho e na pintura en-
cantou o europeu e o americano. Deste período até os dias atuais,
muitos tipos de fotos surgiram como o calótipo, a partir de nega-
tivos de papel, as fotos feitas em chapas úmidas de colódio, o am-
brótipo, o ferrótipo, a fotografia colorida, o slide e tantas outras
­modalidades.
Aos poucos foram surgindo outros tipos de câmeras mais
leves e com dispositivos de maior controle de entrada de luz no
filme e também equipamentos de tamanhos e formatos variados,
além de finalidades específicas. Aperfeiçoaram-se as lentes e obje-
tivas, surgiram-se filtros para diversas finalidades.
Como forma comunicativa a fotografia está presente na
atualidade, na medicina (diversas modalidades), na biologia, na
astronomia, na agronomia, nos vôos espaciais, em inúmeros cam-
pos das ciências e áreas tecnológicas, nas artes, na educação, na
história, na propaganda e na comunicação, incluindo-se aí a área
editorial. Nestas duas últimas, com enorme possibilidade de in-
terferência ou manipulação. Com o surgimento da microeletrôni-
ca e dos chips, novas possibilidades se configuram. Aos poucos a
câmera digital vem conquistando espaços. Ainda que em menor
freqüência, também a fotografia holográfica vem sendo explorada.
A fotografia é marcada também por imprevistos que re-
velam, por vezes mais de uma imagem, mais de um personagem.
Também a possibilidade de capturar o efêmero e o fugaz, e re-o-
rientan, inclusive, muitas interpretações históricas. A fotografia
nos remete a diversas realidades. Apresenta e cristaliza instantes
de tempo, espaços, permite a passagem de imagens e histórias en-
tre gerações, remete a leituras de mundo específicas. A pessoa que

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • ANA PAULA TRINDADE ALBUQUERQUE


MENANDRO CELSO DE CASTRO RAMOS
311

fotografa liga-se à forma de registrar a imagem e a interpretá-la (o


olhar do outro).

IMAGEM, LINGUAGEM, LEITURA DE MUNDO...

A imagem configura, por sua escolha de registro, nuances,


cores, perspectiva, formas, enfim, nos olhares, visões específicas
de mundo, de ser humano e educação, explicitando linguagens
determinadas, ideologias e saberes que denotam mensagens. Co-
tidianamente, discute-se a função referencial da fotografia, da
sua capacidade de remissão a um referente real ou a um objeto
­referente.
Especialmente, a fotografia figurativa veicula uma mensa-
gem denotativa. Por assemelhar-se ao objeto, diz-se que ela é de
natureza analógica e a sua mensagem é icônica, portanto, diferen-
te da mensagem lingüística, via de regra não-analógica, arbitrária,
convencional, simbólica. Embora conciliáveis, a mensagem icôni-
ca é completamente distinta da mensagem lingüística. É comum
vir à baila a discussão de natureza hierárquica de uma em relação
à outra.
Vanoye (1993, p.190), cita a inflamada defesa de Alexandre
Astruct – cineasta francês, em favor da imagem obtida pelo recur-
so mecânico da máquina fotográfica, com poder de objetividade,
que a palavra não possui, no seu entender:   “A câmara não mente
[...] O cinema exige, afirma, postula, demonstra antes de tudo o
respeito pela aparência real [...]; a linguagem humana, as palavras
(são) o lugar privilegiado do erro e da mentira”. 
Entretanto, atribuir à fotografia apenas a função denotati-
va torna-se  temeroso. A escolha pela imagem nos remete aos bas-
tidores da cena fotográfica. Por trás da câmera, via de regra, está
um observador que decide o que enquadrar, o que merece ter ou
não destaque, qual objetivo a alcançar. Utiliza o código icônico ou 
imagético  com uma intenção. A decisão de enquadrar pessoas ou

IMAGEM, HISTÓRIA:
DESENHANDO POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA A PESQUISA EDUCACIONAL
312

objetos é proveniente de valores culturais e visões de mundo de


quem fotografa ou de quem paga o serviço. Assim como a posição
da câmera, a composição, perspectiva, iluminação, cor. A prepara-
ção e montagem também. Decisões sobre fotos e outros elementos
textuais da mensagem lingüística.
A posição da câmera (plongée/ contre-plongée) em relação 
ao objeto pode torná-lo monumentalizado ou diminuído. Cria,
com isso, sentidos especiais na mensagem icônica. A foto obtida a
partir da posição da câmera abaixo ou acima do objeto fotografado
pode criar significados hierárquicos diversos como o de superio-
ridade/ inferioridade, dominador/ dominado. Imagens registra-
das registradas na memória pode evocar sentimentos a partir do
estímulo do significante fotográfico. Do mesmo modo, a ênfase a
um objeto ou pessoa pode ocorrer na escolha de uma posição vi-
sualmente privilegiada ou de uma dimensão ampliada deles em
relação ao conjunto.
Fatores como esses podem destituir a imagem fotográfica de
significados puramente denotativos, deixando-a cada vez mais dis-
tante da verdade objetiva. É na publicidade que a mensagem cono-
tativa fica mais evidenciada, através da manipulação explícita  e das
trucagens utilizadas na construção do discurso persuasivo. Mas
não apenas nela. Diariamente os meios de comunicação também se
valem dos recursos da manipulação da imagem, hoje potencializa-
dos pela ferramenta digital, para atrair e plasmar a sedução.  Nesse
caso, a imagem é confundida com o próprio objeto, o significante
passa a gozar do status e prerrogativas do referente e as câmeras
são compreendidas como máquinas de reproduzir o real.
Outra questão a destacar refere-se à perspectiva históri-
co-social do olhar que se, “por um lado, depende do olho físico,
por outro, o transcende na medida em que é produzido nas/ pelas
relações sociais em que pessoas concretas se inserem e das quais
ativamente participam” (ZANELLA, 2006, p.143). Neste sentido,
os olhares estão sendo educados desde o início de nossas vidas, de

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MENANDRO CELSO DE CASTRO RAMOS
313

forma forjada e determinada por condições políticas, culturais e


sociais específicas.
A manipulação da imagem vem sendo objeto de interesse e
pesquisa pelo poder ilusionista da fotografia, não só pelo universo
da publicidade e propaganda, mas também pelo  mundo acadêmi-
co e empresas, em especial aquelas com atividades voltadas para a
difusão da informação ou ditas de comunicação e formadoras de
opinião. 
Em 1986, o lançamento simultâneo do livro e da exposição
sob a responsabilidade do jornalista, escritor e cineasta Alain
­Jaubert, e autor de outros trabalhos sobre o tema da fotografia, in-
titulada ‘As Fotos que Falsificam a História’, em Paris, mostraram
documentos históricos fotográficos que sofreram intervenções a
mando de governos ditatoriais, ou foram dramatizadas por inicia-
tiva do próprio fotógrafo, no sentido de monumentalizar deter-
minados acontecimentos ou de fazer desaparecer personas non
gratas aos regimes por eles sustentados, portanto, imagens que
procuraram falsificar a história, forjando o simulacro. 
Questões como essas pequenas e aparentemente inocentes
‘mentiras’ que muitas vezes, aliadas a outras em diversas esferas,
dão  sustentação a governos autoritários com fachadas de demo-
cracia, ontem e hoje, aqui e alhures. São questões como estas que
temos que estar destacando na pesquisa educacional: educar o
olhar, a interpretação da imagem, as possibilidades de leitura de
mundo daí advindas, pois estas sim nos levam a refletir sobre os
determinantes sócio-históricos e culturais, as questões políticas
envolvidas, a leitura da imagem a partir de seus múltiplos sentidos
e significados.
Necessita-se refletir sobre as possibilidades do olhar além,
das possibilidades de educar esse olhar para além das restrições
que hegemonicamente o modulam e modelam por meio das milha-
res de mensagens imagéticas difundidas pelas mídias contempo-
râneas, com grande poder de sedução, conforme demonstrado em

IMAGEM, HISTÓRIA:
DESENHANDO POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA A PESQUISA EDUCACIONAL
314

pesquisas sobre o público televiso. Na década de 80, estas já apon-


tavam que 300.000 das mensagens veiculadas na televisão chega-
vam ao jovem de 15 anos, sendo o tempo de exposição, o dobro do
tempo empregado em sala de aula. 
Uma das consequências dos valores difundidos pelas mí-
dias contemporâneas, principalmente a TV é  “a confirmação da
‘justeza’ do modelo atual da sociedade – os pobres são mais pobres
porque são incapazes, mas todos têm iguais ‘oportunidades’, de-
vem,  pois, pagar pela sua incompetência” (SOARES, 1982, p.10). 
Moholy-Nagy, professor da Bauhaus já dizia, em 1935, que “os
iletrados do futuro vão ignorar tanto o uso da caneta quanto o da
câmera”.  Podemos acrescentar à fala do ilustre mestre que igno-
rância e cidadania caminham em sentidos opostas.
Neste sentido, explicita-se que a produção da imagem não
é neutra. Esta constatação nos remete a necessidade de compre-
ender tal fato para além da apreciação e/ ou captura de momen-
tos e acontecimentos específicos; nos remete à necessidade da
apropriação da mesma para os estudos e pesquisas educacionais;
nos remete a compreensão da  linguagem imagética como uma ne-
cessidade e um desafio para artistas, educadores, pesquisadores e
professores que se empenham em construir uma sociedade demo-
crática  com a participação de cidadãos conscientes possibilitando
a transformação social.
Importa pois, conhecer os fundamentos da construção do
discurso imagético fotográfico, assim como de outras formas de
discurso,   na perspectiva de formar indivíduos críticos, vigilantes,
interlocutores, propositores, participativos, capazes de distinguir
a mensagem voltada para a dignificação e emancipação humana,
das mensagens de produções obscuras, ainda que sedutoras, vol-
tadas para o propósito de   manter e legitimar  os privilégios de
poucos em detrimento da grande maioria.
Considerando a ideologia impressa nos signos, vamos en-
tender que a manipulação da imagem é fundamental para a per-

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MENANDRO CELSO DE CASTRO RAMOS
315

manência de determinadas legitimizações e, portanto, a disse-


cação da ideologia por trás dos signos apresentados no nosso dia
a dia se apresenta com ponto fundamental para a construção da
liberdade e autonomia do indivíduo, uma vez que a postura diante
de tais signos vai perpassar pela crítica e reflexão.
Da pré-história até os dias atuais, vivemos cada vez mais os
processos de inclusão/ exclusão simbólica, faceta que se apresenta
como um importante veículo de manipulação das hegemonias, já
que o
referencial hegemônico traz à tona a questão da inclusão.
Sabe-se que esta questão tem subjacente dois tipos de ex-
clusão: – a exclusão material, quando não somos incluídos
no referencial hegemônico; – a exclusão simbólica, pela
assimilação ao referencial hegemônico, com a consequen-
te renúncia ao seu referencial originário. (SERPA, 2004,
p.233/234).

Verifica-se uma assustadora manipulação imagética no pre-


sente histórico. Isto porque ela serve como um poderoso veículo
do sistema hegemônico, cada vez mais evidente e perverso, que
imprime seu referencial e tenta obstruir a contemplação de cultu-
ras que poderiam significar certo ‘risco’ à hegemonia.
A diversidade em um sistema que visa o lucro só pode sobre-
viver a partir dos ditames das suas engrenagens. Discurso este re-
forçado com a manipulação da imagem como forma de anestesiar
e persuadir, de buscar enlaçá-los a uma lógica perversa que busca
eliminar peculiaridades culturais, identidades, enfim, a própria
diversidade.
A lógica do capital é desenvolvida sob uma cultura ba-
seada em imagens que estimulam o consumo e anestesiam da-
nos sociais, de classe, raciais, de gênero, entre outros. A imagem
reúne informações e determinações que nos levam a explo-
rar “uma ilimitada quantidade de informações para melhor
explorar os recursos naturais, aumentar a produtividade,

IMAGEM, HISTÓRIA:
DESENHANDO POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA A PESQUISA EDUCACIONAL
316

manter a ordem, fazer guerra e dar empregos para os buro-


cratas” (SONTAG, 2004, p.112).
Estas duas funções criam necessidades e as fortale-
cem. A interferência das câmeras na realidade objetiva e
subjetiva acabam por definir a realidade a partir de dois si-
mulacros: compreender a realidade como um espetáculo
(condição para subjugar), e como um instrumento de vigi-
lância (do poder).
A produção de imagens também fornece uma ideo-
logia dominante. A mudança social é substituída por
uma mudança nas imagens. A liberdade para con-
sumir inúmeras imagens e produtos é equiparada à
liberdade em si. O estreitamento entre liberdade de
escolha política e liberdade de consumo econômico
exige um consumo e uma pro­dução de imagens ilimi-
tadas. (SONTAG, 2004. p.112)

A educação nesse contexto deve estar ancorada no entendi-


mento desses processos de manipulação imagética, para que o es-
paço educacional seja um importante veículo de transgressão des-
sa ordem. É preciso que a educação venha a contemplar as culturas
e que seja, não um espaço neutro, pois não existe neutralidade em
nossas ações, somos constituídos por composição sócio-cultural
própria e que imprime valores diferentes em cada individuo, mas
que seja um espaço de abertura que contemple a discussão de uma
construção social pautada na rebeldia, na crítica e na reflexão.
Assim, a apropriação da imagem, enquanto ver e fazer apresenta-
-se como importante artilharia para tal processo, pois a imagem
trabalha com a intersubjetividade o que nos leva a possibilidade,
criatividade, imaginação, em inventividades e autonomia.
Segundo Tânia Souza (2006) “assim como a palavra, a ima-
gem é um signo ideológico, nos termos de Bakhtin, se remete ao
político e deve ser pensada como discurso e não como um sinal
inerte no processo de comunicação” (p.81), já que o código imagé-

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • ANA PAULA TRINDADE ALBUQUERQUE


MENANDRO CELSO DE CASTRO RAMOS
317

tico tem peculiaridades que o diferem do código escrito. Deve-se


igualmente observar a relação entre as linguagens, como o filme,
que trabalha a linguagem verbal e a não-verbal.
Com base nos estudos de Davallon (1999), Souza (2006) nos
apresenta duas características da imagem que sustentam sua
eficácia simbólica valorativa para a análise do discurso: uma do
dispositivo, capaz de regular o tempo e a recepção do conjunto
de imagens, a emergência da significação; outra que afirma a ima-
gem como operador de simbolização, registrando a relação inter-
subjetiva e social, que confere a força da lembrança ao quadro da
­história.
Ao tratar de signos e significantes e o seu caráter ideológi-
co necessita-se explicitar a ideologia que, sob a ótica do discurso,
apresenta duas vertentes. Uma que compreende a ideologia como
concepção de mundo de comunidades determinadas, em deter-
minada circunstância histórica. Esta acarreta uma compreensão
vinculada e necessária entre fenômenos da linguagem e ideologia.
Assim, todos os discuros são ideológicos. Fundante esta sinaliza-
ção, pois altera a direção do sentido de ideologia como ‘falsa cons-
ciência’ para algo, em geral, inerente ao signo.
Pelo caráter de signo ele se torna arbitrário ao deslocar a
linguagem para o espectro da criação e produção de sentido. Mas,
por outro lado ele representa um perigo à medida ‘em que permite
manipular a construção da referência. Conforme aponta Brandão
(2004, p.31) “essa liberdade de relação entre signo e sentido permi-
te produzir, por exemplo, sentidos novos, atenuar outros e elimi-
nar os indesejáveis”.
Necessário constatar que o homem vive em muitos mundos
e cada um tem uma chave diferente. Neste sentido, só seria possí-
vel possuir estas chaves se mudarmos a intencionalidade e o modo
de se apropriar da realidade, dos sentidos. Entendimento funda-
mental para a análise do discurso em imagem por este trabalhar
com a perspectiva polifônica. As várias linguagens e as diversas

IMAGEM, HISTÓRIA:
DESENHANDO POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA A PESQUISA EDUCACIONAL
318

vozes que formam o discurso oportunizam entender o contexto


dos sentidos, os mesmos sentidos por meio dos quais, para Kosik
(1976), se descobre que a realidade e o sentido dela é histórico e
­social.

IMAGEM E HISTÓRIA NA PESQUISA EDUCACIONAL

Fundamental este tema no tempo presene. A perspectiva


histórica na pesquisa educacional, a partir da imagem, traz refle-
xões sobre as escolhas metodológicas que devemos fazer para a
leitura das mensagens visuais, compreendendo os seguintes cam-
pos: localização temporal e espacial, pessoas, objetos, atribuição
das pessoas e dos lugares, não de forma estanque, mas atualizando
sempre o método de análise.
Ciavatta (2004) nos chama a atenção para a ênfase do espa-
ço como um campo semântico, ao aglutinar unidades culturais em
um nível de significação mais complexo, estruturadas em cinco
dimensões espaciais: fotográfico, geográfico, do objeto, da figura-
ção e da vivência (ou evento). Cabe ressaltar que a “mesma unidade
cultural pode estar presente em diferentes campos espaciais e que
tais campos não são estanques” (p.34). Estas considerações nos re-
metem a pensar o tempo (presente, passado, futuro), a partir do
dado de materialidade que impera na imagem.
E relevante, pois nossa sociedade apresenta o mundo como
um corpo, em que se pode possuir com os olhos e que podem cole-
cionar imagens. Mergulhar no campo da história, a partir da pes-
quisa educacional imagética, discutir e familiarizar o olhar para
este rico campo de análise oportuniza outras interpretações no
tempo em que a mudança social é substituída por uma mudança
nas imagens.
A imagem se coloca como elemento singular na educação
por penetrar nos meandros das culturas visto o seu poder de fla-
grar o tempo/ espaço e, paradoxalmente, cristalizá-lo. E por man-

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • ANA PAULA TRINDADE ALBUQUERQUE


MENANDRO CELSO DE CASTRO RAMOS
319

ter sua dinâmica e movimento ao trazer para leituras e re-leituras


de tempos (passado, presente, futuro), desenha outros caminhos
para a pesquisa em educação. Em especial, para pesquisas histó-
ricas de culturas localizadas que guardam, de forma singular, os
tempos em suas ações, visões, formas de lidar com a vida e com a
educação. Questões que precisam ser registradas, refletidas, am-
pliadas, compreendidas.
A investigação aponta para o trabalho de documentar,
mostrar a realidade e entender a poética imagética como um ins-
trumento que confronta e provoca discussões das múltiplas vivên-
cias, peculiaridades, lutas e conquistas. Também para o espaço
em que Universidade e Comunidade, Conhecimento e Saber se
entrelaçam, se incorporam, sem perder suas características, para
articular a pesquisa educacional à estratégias de melhorias de
condições de desenvolvimento acadêmico-científico que podem
provocar outras possibilidades para o desenvolvimento e a trans-
formação social.
Por meio da história podemos aprofundar ou dissolver o
olhar, as imagens, já que as imagens são, acima de tudo, recorda-
ção dos sentidos. Sentidos que lembram. Essencial, portanto, co-
nhecermos e compreendermos melhor maneiras como as imagens
transmitem e comunicam mensagens numa escrita histórica. Pes-
quisas educacionais que utilizam a poética da imagem e da histó-
ria apontam marcas, indícios, fantasmas, resistências e rupturas
históricas e nos possibilita ampliar o campo ­investigativo.

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São Paulo: Hucitec, 2004. BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine.
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Editora da UFSC: NUP/CED/UFSC, 2006.

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • ANA PAULA TRINDADE ALBUQUERQUE


MENANDRO CELSO DE CASTRO RAMOS
321

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A


MULHER PODE TUDO?: HISTÓRIAS E
MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E
GÊNERO EM MAR ABERTO
Maria Cecilia de Paula Silva1
Lygia Maria dos Santos Bahia2

RESUMO
Apresenta uma reflexão sobre a trajetória da mulher na sociedade
brasileira dos anos 1950, a partir de histórias e memórias de uma mulher
na natação a mar aberto e suas relações com a educação e as relações de
gênero. Objetivou-se, a partir da experiência da primeira mulher a parti-
cipar da competição esportiva em mar aberto na Bahia, a Travessia Mar
Grande-Salvador, questionar a estrutura social, educacional e esportiva
atravessadas na vida desta mulher e possíveis reverberações coletivas.
Pesquisa histórica do tempo presente. Privilegiou-se a história oral te-
mática com depoimentos, narrativas e entrevista semiestruturada e a
análise de conteúdo (VERÓN, 1980) para a interpretação da investigação.
A inscrição do corpo feminino insurgente nas memórias desta mulher
potencializou uma tensão nas relações de gênero historicamente defini-
das no esporte e na educação hegemônica. Conclui-se pela relevância de
rememorar histórias que ousam romper lógicas opressivas na educação
da mulher é significativo para a emancipação.
Palavras-chave: Natação em mar aberto. Educação de mulheres.
Relações de gênero.

1 Pós-doutorado em Sociologia e Antropologia, Université de Strasbourg, Fr. Pes-


quisadora CAPES. Profa. Titular da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Educação. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA.
Editora Associada da revista entreideias: educação, cultura e sociedade. Líder do
grupo de pesquisa HCEL/UFBA/CNPq. ceciliadepaula.ufba@gmail.com
2 Doutoranda PPGE/FACED/UFBA. Membro do Grupo HCEL/UFBA/CNPq. Docente
da UNIFACS – Universidade Salvador e do Centro Universitário UNINASSAU. lygia.
bahia@hotmail.com

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A MULHER PODE TUDO?:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E GÊNERO EM MAR ABERTO
322

ABSTRACT
It presents a reflection on the trajectory of women in Brazilian
society in the 1950s, based on the stories and memories of a woman
swimming in the open sea and her relations with education and
gender relations. The objective was, from the experience of the first
woman to participate in the open sea sports competition in Bahia, the
Travessia Mar Grande-Salvador, to question the social, educational and
sports structure crossed in this woman’s life and possible collective
reverberations. Historical research of the present time. Thematic oral
history was privileged with testimonies, narratives and semi-structured
interviews and content analysis (Verón, 1980) for the interpretation
of the investigation. The insurgent female body’s inscription in the
memories of this woman potentiated a tension in the gender relations
historically defined in sport and in hegemonic education. It concludes
that the relevance of recalling stories that dare to break oppressive logic
in the education of women is significant for liberation.
Keywords: Swimming in the open sea. Education of women.
Gender relations.

MULHERES AO MAR, EDUCAÇÃO E RELAÇÕES DE


GÊNERO

Este artigo analisa as relações entre a prova de natação em


mar aberto, as relações de gênero e a instituição de lugares de-
terminados às mulheres pela educação durante os anos 1950 por
meio de memórias e narrativas.
Discute o esporte competitivo e a participação irreverente
de mulheres em lugares e ações historicamente definidos como
lugares e ações apropriadas aos homens, possíveis ‘luminuras
disrruptivas’ em lógicas sociais hegemônicas, no que se refere à
educação das mulheres e relações de gênero.
Em especifico, objetiva mergulhar nas lembranças da pri-
meira mulher a se desafiar a participar de uma travessia em mar
aberto nas águas da Baia de Todos os Santos, a Travessia Mar

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA


323

Grande – Salvador; os sentidos e significados que essa experiência


representou para a sua educação.
Esta pesquisa avança a partir dos resultados de um estudo
de mestrado, na busca de aprofundar a questão levantada à época
a respeito de qual o lugar da mulher na sociedade. Onde a mulher
poderia estar? O que a mulher poderia fazer? Em específico o es-
tudo aborda a questão específica da mulher no esporte natação em
mar aberto, um esporte que se fortalecia em meados do século XX
em Salvador, Bahia.
Para Silva (1999, p. 141), “a difícil trajetória percorrida pelas
mulheres é constantemente evocada por historiadores de todo o
mundo, no que diz respeito a história da sociedade [...]. A história
das mulheres é, de fato um caso particular de uma história geral
das formas de dominação”, ou, como afirma Bourdieu (2000), his-
tória de nossa sociedade. Questionava-se de forma sistemática se o
esporte seria um lugar de pertencimento da mulher. E o que dizer,
então, dela na natação em mar aberto?
A mesma pergunta se coloca em relação ao tema educação:
como a compreendermos quando as lentes se voltam para as mu-
lheres no esporte e a relação com a educação, seja formal, informal
ou não formal? Para esta pergunta muito pouco temos a dizer no
que tange a pesquisas específicas. A carência de pesquisas histó-
ricas que tratam de experiência esportiva de mulheres, e, mais
especificamente, da natação em mar aberto e sua relação com a
educação, confere singularidade e relevância para o debate sobre
relações de gênero, esporte e educação de mulheres.
Esta pesquisa versa, portanto, sobre o tempo presente, o
tempo do agora e as memórias que uma mulher que se aventurou
no mundo esportivo nos anos de 1950, em um esporte eminente-
mente masculino, por suas exigências de força, coragem, virili-
dade, valências permitidas somente ao sexo masculino naquele
período histórico.

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A MULHER PODE TUDO?:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E GÊNERO EM MAR ABERTO
324

E as memórias de Angela Maria Carvalho3 aqui revisitadas,


a partir das lembranças da sua participação na competição espor-
tiva Travessia Mar Grande – Salvador de 1956, nos serviram para
refletir sobre a singularidade desta experiência, conexões, apren-
dizados e possíveis alterações da estrutura social, educacional e
esportiva atravessadas em sua vida e coletivamente reverberadas.
A metodologia utilizada foi a história oral temática que,
segundo Rousso (2001) propicia a escuta de si e dos outros, o que
confere aos entrevistados a possibilidade de se aperceberem da
importância da experiência para as suas vidas. A história oral
temática oportuniza um movimento ondular entre as memórias
individuais e coletivas e as histórias. Nestas ondas que seguiram
a construção dos caminhos da história oral chegou-se a uma
com¬preensão que supera uma oposição anteriormente estabe-
lecida entre história e memória. Neste estudo, admitimos que há
uma história na memória. Sendo assim, consideramos necessário
compreender esta história. Este foi o nosso desafio; trazer uma
história da natação em mar aberto e das mulheres neste lugar a
partir das memórias da primeira nadadora a realizar a Travessia
Mar Grande – Salvador.
Consideramos aqui o processo de relembrar como uma for-
ma para descobrir significados subjetivos da experiência vivencia-
da de forma relacional, entre a memória individual e coletiva.
A escolha da depoente seguiu o critério da consideração de
seu papel social para a pesquisa (MEIHY, 2005, p. 19), pois o passa-
do está contido no presente imediato das pessoas. Desta forma, ao
se utilizar a história oral, mais que alterar o conceito de história,
“garante sentido social à vida de depoentes e leitores, que passam
a entender a sequencia histórica e se sentir parte do contexto em
que vivem”. Ao focarmos nesta depoente e suas memórias pessoais
sinaliza-se a possibilidade de construirmos uma visão mais con-
3 As entrevistas e depoimentos aconteceram entre 2017 e 2018. Angela nasceu em
janeiro de 1938

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA


325

creta da dinâmica relativa à trajetória e a funcionalidade do grupo


social que ela pertence.
Lançamos mão de depoimentos, narrativas e entrevista
semiestruturada a partir das memórias desta nadadora, tratadas
por meio da análise de conteúdo de Verón (1980). Consideramos
que os sentidos são construídos por outros sentidos e o autor in-
dica investigar a pertinência das relações e sugere uma proposta
analítica que supõe uma análise tratada a partir dos materiais
arrolados, na busca dos elementos que ilustram cada aspecto dos
depoimentos lembrados, rememorados.
Chauí (1994, p. 18) entende este rememorar como possibi-
lidade de ser e não como o simples lembrar o que foi “não é coisa
revista por nosso olhar, nem é uma ideia inspecionada por nosso
espírito – é alargamento das fronteiras do presente”.

CORPO, MULHER, MAR ABERTO: ‘LUMINURAS


DISRRUPTIVAS’

A indagação sobre a mulher e o mar já fora anunciado por


Lispector em As águas do mundo (1998, p. 144),
Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não
humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais inin-
teligível dos seres vivos. Como ser humano fez um dia uma
pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível
dos seres vivos. Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se
entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognos-
cíveis feita com a confiança com que se entregariam duas
compreensões.
Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado
pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade hu-
mana de ver a curvatura da terra.
São seis horas da manhã. Só um cão hesita na praia, um
cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Por que ele é

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A MULHER PODE TUDO?:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E GÊNERO EM MAR ABERTO
326

o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque


vai entrar.
Seu corpo se consola com sua própria exiguidade em rela-
ção à vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o
permite manter-se quente e é essa exiguidade que a torna
pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas
areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva
ruge no silêncio das seis horas.

No primeiro momento questionamos esta afirmativa de Lis-


pector. O que a mulher pode? A mulher pode fazer mais que sim-
plesmente olhar? A mulher pode entrar no mar? O enfrentar? A
mulher pode tudo? Esta é a questão que nos persegue neste artigo.
E para respondê-la buscamos atravessar os caminhos da história e
das memórias de uma mulher. Uma mulher que olhou o mar. E não
só. Uma mulher que, como a de Clarice, entrou no mar. O ­enfrentou.
A Travessia Mar Grande – Salvador é uma competição rea-
lizada na Baía de Todos os Santos, em Salvador/BA, e por isso con-
siderada uma prova em mar aberto ou de águas abertas, com dis-
tância aproximada de 10 km em linha reta. Em 1956, um ano após
a sua criação, registra-se a primeira participação feminina, a de
Angela Maria Carvalho (BAHIA, 2017).
Sobre a sua história com a Travessia Mar Grande – Salvador
conta: “eu tenho mania de ser a primeira a fazer, eu sempre estive a
frente do meu tempo porque eu acho que a mulher pode tudo em-
bora seja contra o movimento feminista, eu acho que a mulher pode
tudo [...] em 1955 foi feita a primeira Travessia, aí eu disse, bom! Mu-
lher pode também [...] aí eu me inscrevi e fui”. Lispector (1998, p. 145)
continua com uma característica atrelada ao corpo frágil,
A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma co-
ragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não
tem o exemplo de outros humanos que transformam a
entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está
sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA


327

grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece


menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de,
não se conhecendo, no entanto, prosseguir. É fatal não se
conhecer, e não se conhecer exige coragem.

Apresentar as narrativas advindas das lembranças de Ange-


la sobre o acontecimento evidencia a possibilidade de observar as
diversas posições assumidas pelas mulheres na educação à época.
De acordo com Silva (2020, p. 69-70) “os corpos passam por uma
educação e uma aprendizagem de comportamentos apropriados
para responder às exigências normalizadoras do sistema, como se
fossem encaixados para atender a determinadas funções e desejos
de proprietários definidos pelo lugar social que estiverem: na fa-
mília, na escola, na fábrica, cumprindo uma hierarquia. (...) Como
consequência deste processo cultural, forja-se uma educação para
a obediência e para a submissão”.
Para Bahia (2017) ‘o determinismo biológico’ talvez tenha
sido o mais contundente e perverso argumento para educar as
mulheres como um ser ‘inferior por natureza’, o que tem gerado
desigualdades sociais. Já Louro (1987) afirma que para se compre-
ender o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade
é importante estar atento não exatamente para seus sexos, mas o
que se construiu socialmente sobre eles.
Neste aspecto, Silva (2020, p.70) complementa que na so-
ciedade industrial capitalista onde a educação obedece a determi-
nantes macro sociais,
o ser humano reconhece a sua qualidade como força pro-
dutiva e, como tal, é reduzido a uma coisa, não importando
que coisa, quase sempre uma mercadoria.
Dentro desta maquinaria ocorre a reificação que é a razão
do sistema capitalista: o corpo, “nome que se dá também
aos despojos do morto – é tornado coisa útil –, o corpo uti-
litário, múltiplo em formas (homem, trabalhador, herói,
mulher, criança, velho, santa, sábio, puta, negro, deficien-

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A MULHER PODE TUDO?:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E GÊNERO EM MAR ABERTO
328

te,...) surge como coleção de ‘diferenças’ fixas e determi-


nadas ‘naturalmente’, independentemente do próprio
processo histórico de diferenciação”4

Ao rememorar a experiência do esporte que a tocou, Ange-


la reflete sobre a educação das mulheres e a perversa e histórica
‘naturalização’ das mesmas como inferiores e incapazes, se com-
paradas aos homens.
Ao dialogarmos sobre a questão da força da educação nas
determinações e papéis sociais designados aos homens e as mu-
lheres observamos na literatura específica uma sugestão precoce
de estereótipos pré-definidos para as meninas e os meninos, com
marcas mais viris ligadas ao comportamento próprio dos meni-
nos. Baubérot (2013, p. 195), apresenta esta construção desde mui-
to antes, já em finais do século XIX quando “o sucesso da indústria
de brinquedo encorajou a generalização de tipos de modelos ten-
do forte conotação sexuada. Às meninas são destinadas bonecas,
enxovais e casas em miniatura que apresentam os atributos da fe-
minilidade: maternidade e cuidado com o lar”.
Alcançar o mar, participar do esporte e competir, eis o de-
safio da nadadora. “Eu acho muito importante a presença da mu-
lher no esporte [...] a mulher tem condição de fazer qualquer es-
porte [...] é muito importante pra mulher se sentir capaz, porque a
mulher é criada para ser inferior, né?”
E esta questão está presente nas narrativas de Angela.
Uma narrativa recheada de reflexão, muitas advindas do tempo
presente. Reflexões que atualizam um passado que é individual
mas que é também coletivo. Reflexões, portanto, individuais e
coletivas. Uma narrativa que movimenta a vida da depoente e a
ressignifica. Reflexão que Bosi (1994, p.88) anuncia quando com-
preende que o ato de narrar “não visa a transmitir o ‘em si’ do

4 Conforme aponta Foucault (2015).

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA


329

acontecido, ela o tece até atingir uma forma boa. Investe sobre o
objeto e o transforma”.
Ao afirmar que a mulher tem condição de fazer qualquer es-
porte Angela ascende e descoloniza o pensamento hegemônico na
educação das mulheres nos anos 1950, de que elas são impedidas
de projetar e experimentar o que desejarem.
Vigarello (2013, p. 270) ao refletir sobre o desenvolvimento
do esporte durante o século XX, sugere uma contestação advin-
da da prática esportiva em relação a algumas qualidades deter-
minadas exclusivamente ao sexo masculino, como a virilidade,
quando se observa a presença da mulher no esporte e “quando
os ‘valores’ que dela se esperaram são rigorosamente idênticos
àqueles contemplados para os homens: força, coragem, enga-
jamento, determinação...”. Para ele, o esporte potencializou o
questionamento de qualquer exclusividade masculina, como a
‘velha excelência viril’. E Angela, em 1956 ousou fazer isso, ou-
sou questionar papéis e lugares previamente definidos para os
homens e para as mulheres quando ela ousou adentrar em um
espaço anteriormente determinado aos homens, seja pelas exi-
gências do vigor físico, do desenvolvimento muscular, como uma
determinada virilidade para enfrentar os desafios da natação
em mar aberto. Mesmo sem saber, Angela sugere uma alteração,
uma desconstrução de modelos tradicionais no que concerne
aos lugares dos corpos das mulheres no esporte, na educação e,
por consequência, na sociedade.
Angela se refere à experiência de nadar em mar aberto e a
importância da mesma em sua educação. “Então, a Mar Grande –
Salvador teve muita influencia na minha vida, na minha formação,
no meu conhecimento, no meu comportamento”. Esta rememora-
ção anuncia a importância desta experiência para a educação. E
continua, “a Travessia, pra mim, foi muito importante, porque fui
muito homenageada, passei a ser ‘Angela Maria Carvalho’, porque

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A MULHER PODE TUDO?:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E GÊNERO EM MAR ABERTO
330

todo mundo, até fora da Bahia, conhecia Angela por causa da Tra-
vessia Mar Grande-Salvador [...].”.
Lispector (1998, p. 146) anuncia o que causou a aventura ao
mar no corpo da mulher que ela anuncia em sua crônica:
Agora ela esta toda igual a si mesma. A garganta alimenta-
da se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal
secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois
ela é um anteparo compacto.
Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem so-
freguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe
que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao se-
cá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e
menos aguda. Agora sabe o que quer.

ENTRE ONDAS E CORRENTEZAS: MEMÓRIAS E


EXPERIÊNCIA

As narrativas de Angela são acompanhadas de conhecimen-


tos e reflexões que anunciam opiniões, valores, cosmologias. Im-
porta destacar o lugar da narradora como representante de uma
comunidade de pertença que influencia o estilo narrativo e o co-
mentário sobre o narrado.
A forma como a narradora anuncia suas narrativas das nar-
rativas sociais é relevante. Segundo Chauí (1994, p.26), necessário
atentar ao “modo pelo qual o sujeito vai misturando na sua narra-
tiva memorialista a marcação pessoal dos fatos com a estilização
das pessoas e situações e, aqui e ali, a crítica da própria ideologia”,
não sendo muito significativo possíveis contradições.
Atravessar o mar entre Mar Grande e Salvador e enfrentar
correntezas e marés de forma pública oportunizou a esta nadado-
ra experimentar outros lugares e desafios anteriormente negados
às mulheres.
Quando Lispector (1998, p. 146) anuncia a conquista da
mulher ao adentrar o incerto e desafiador mar, ela afirma que

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA


331

ninguém lhe tira esta conquista, qual seja, “caminhar dentro das
águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a com for-
ça para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais
dura e áspera”. E continuando sua narrativa, apresenta-nos uma
imagem que pode ilustrar a conquista desta mulher imaginária
de Lispector (1998, p.146), “E agora pisa na areia. Sabe que está
brilhando de água, e sal, e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns
minutos, nunca poderá perder isso”. Isso, a compreensão de que
mulher pode pisar em outros lugares, conquistar outros espaços,
perseguir seus desejos, conforme verificamos pela narrativa de
Angela no tempo presente.
Marcas que ela anuncia em suas memórias, marcas que fi-
caram tatuadas em seu corpo e que, possivelmente, incitaram, à
época, pequenas alterações como, por exemplo, uma ruptura com
o modelo de corpo feminino padrão, pequenas mudanças em sua
postura diante da vida e, provavelmente, alteração na perspectiva
que tinha em relação a sua interação social.
Um elemento singular que oportunizou tencionar e barrei-
ras em relação às permissões em relação ao corpo feminino e aos
lugares e modalidades esportivas permitidas e interditas. E, quem
sabe, oportunizou um redimensionar de sua compreensão de si e
da própria vida. Da experiência de ter participado da prova emer-
gem diferentes sentidos e significados, expressos pelas reflexões
de Angela, a partir de suas memórias. “Pra mim é muito bom, por-
que eu não me sinto heroína, mas acho que foi muito importante e
outras vieram atrás de mim”.
Angela confere significado à sua experiência, de abrir ca-
minhos e de contribuir para a quebra de paradigmas, de inspirar
outras mulheres a repensarem o seu papel social e conquistarem
outros espaços na sociedade. Estas memórias nos apresentam a
consciência do seu pioneirismo para as mulheres, quando afirma
que, mesmo sendo chamada a heroína da Travessia, não se con-

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A MULHER PODE TUDO?:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E GÊNERO EM MAR ABERTO
332

sidera como tal. Como faculdade épica, a memória recria, a cada


lembrança, uma nova história.
Sobre as resistências, relembra: “teve muita gente que du-
vidou, inclusive mulheres. Achavam que eu não ia fazer, que mu-
lher não podia fazer”. Esta concepção advém da educação ofertada
para as mulheres que imprimia esta lógica de impotência, de in-
capacidade diante do novo e ligava esta inferioridade à natureza
humana do ser feminino, ao corpo das mulheres.
Quando afirma “antigamente as mulheres eram muito
dona de casa, as moças eram criadas bordando, tocando piano, eu
aprendi, eu sei bordar e sei tocar piano, eu sei tudo, mas eu tam-
bém sei nadar [...], deixa claro o lugar das mulheres na década de
1950, lugar que também ocupava, mas demonstra a sua ousadia em
conquistar outros lugares.
Nas aprendizagens da natação em mar aberto, entre ondas
e correntezas, Angela explicita o que o mar a ensinou. A romper e
ampliar fronteiras, a não esmorecer, a conquistar outro lugar di-
ferente do que a educação hegemônica à época determinava, a do
lugar de subalternidade para as mulheres.
Ao narrar suas lembranças ela rememora e amplia as fron-
teiras de nadar contra maré, de enfrentar correntezas e obstáculos
desconhecidos em mar aberto e, em decorrência, assumir a possi-
bilidade de se tornar mulher na contracorrente de uma educação
que definia lugares de inferioridade para a mulher em relação aos
homens. Angela, em certa medida, personificou este desafio, pois
viveu contra a corrente de uma imposição social, que afirmava que
mulher não podia nada. Contrária à ideologia dominante à época,
Angela afirma: “mulher pode tudo!”

CONTRA A MARÉ, O CORPO DA MULHER PODE TUDO

Este artigo pretendeu dialogar sobre as possibilidades de,


por meio das narrativas e rememorações de mulheres explicitar

MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA


333

rupturas na lógica social hegemônica historicamente forjada pela


educação, de permissões, proibições, interdições para as mulhe-
res, colocando-as em posição de subalternidade em relação aos
homens. De lugares e práticas esportivas para as mulheres e que
busca forjar uma educação diferenciada que forja para as mulhe-
res um lugar subalterno na sociedade.
Evidencia-se que, por meio da natação em mar aberto, nos
anos de 1950, mulheres como Angela possibilitaram a construção
de espaços e tempos de transgressão, conquistas e procedimentos
que romperam uma lógica hegemônica na educação das mulheres
e nas relações de gênero que superaram o lugar historicamente de-
terminado para a mulher na sociedade e no esporte. Ao iniciar-se
na prova ‘Travessia Mar Grande-Salvador’, Angela possibilitou es-
tabelecer outro lugar para as mulheres, no esporte e na sociedade,
demonstrou conquistas e interesses que superaram a posição das
mulheres àquela época, ao estabelecer representações contrárias
à lógica social hegemônica e criar obstáculos resistentes à inter-
venção da educação que definia pela educação, uma posição de su-
balternidade para as mulheres.
A partir das memórias da experiência de mulheres na prova
de natação em mar aberto podemos inferir os sentidos e significa-
dos da afirmação de Angela de que Mulheres podem tudo!, bem
como a importância desta compreensão para a organização de
uma outra lógica que amplia a inscrição do corpo esportivo como
potência positiva para romper lógicas opressivas nas relações de
gênero, na educação das mulheres e na ideologia hegemônica da
sociedade. E podem sinalizar outras possibilidades na elaboração
de uma educação transformadora.

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A MULHER PODE TUDO?:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E GÊNERO EM MAR ABERTO
334

REFERÊNCIAS

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MARIA CECILIA DE PAULA SILVA • LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA


335

SILVA, Maria Cecilia de Paula. Do corpo objeto ao sujeito histórico:


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VERÓN, Eliseo. A produção de sentidos. São Paulo: Cultrix: Editora
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Alain; COURTINE, Jean-Jacques ; VIGARELLO, George. Histó-
ria da virilidade: a virilidade em crise? Petrópolis, RJ: Vozes,
2013. p. 269-301.

COM O CORPO CONTRA A MARÉ, A MULHER PODE TUDO?:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCAÇÃO, ESPORTE E GÊNERO EM MAR ABERTO
336

O FENÔMENO DA SUBORDINAÇÃO
NO NÍVEL VOCABULAR: REFLEXÕES
NECESSÁRIAS
Jammara Oliveira Vasconcelos de Sá1
Carlos Eduardo de Oliveira Pinheiro2
Edmar Peixoto de Lima3

RESUMO
Nos compêndios gramaticais de perspectiva normativa, a menção
ao mecanismo de subordinação somente é feita por meio dos estudos re-
lativos ao período composto. Por conta disso, infere-se que esse proces-
so não ocorre em níveis inferiores ao sintagma verbal. Distanciando-se
dessa proposição, este artigo objetiva investigar a ocorrência da subor-
dinação em nível vocabular, a fim de demonstrar a hipótese de que esse
mecanismo sintático ocorre em níveis inferiores ao período composto.
Para tanto, sob os fundamentos propostos por Azeredo (1990), Carone
(1991) e Castilho (2012), realizou-se a análise de dois capítulos referentes
ao processo de formação vocabular contidos nas obras de Cunha e Cin-
tra (2017) e Bechara (2015). Como aporte metodológico, assumem-se os
pressupostos da pesquisa qualitativa de caráter documental; e, com rela-
ção aos resultados, foi possível perceber que as análises corroboraram a
premissa norteadora deste trabalho. Ou seja, baseando-se nos preceitos
analíticos, conclui-se que o processo de subordinação ocorre, também,
em nível vocabular, mesmo que disso os autores dos compêndios analisa-
dos não façam menção.
Palavras-chave: Gramática. Subordinação. Formação vocabular

1 Profa. Doutora do Departamento de Letras Vernáculas (DLV/FALA), Programa de


Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPCL) da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN). E-mail: jammaravasconcelos@gmail.com
2 Estudante do curso de Letras Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas da Uni-
versidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN/FALA).
E-mail: carloseduardolpt@gmail.com
3 Profa. Doutora do Departamento de Letras Vernáculas (DLV/FALA), do Programa
de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN). E-mail: edmarpeixoto@uern.br

JAMMARA OLIVEIRA VASCONCELOS DE SÁ • CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA PINHEIRO


EDMAR PEIXOTO DE LIMA
337

ABSTRACT
Normative perspective grammatical compendius, the mention of
the subordination mechanism only is made through the studies related
to the compound period. Therefore, it is inferred that this process
does not occur at levels lower than the verbal phrase. Moving away
from this proposition, this article aims to investigate the occurrence
of subordination at a vocabulary level, in order to demonstrate the
hypothesis that this syntactic mechanism occurs at levels lower the
compound period. For such, from on foundations proposed by Azeredo
(1990), Carone (1991) and Castilho (2012), two chapters were analysed
regarding the vocabulary formation process contained in the works
of Cunha and Cintra (2017) and Bechara ( 2015). As methodological
contribution, the assumptions of qualitative research documentary
character is assumed; and, in relation to the results, it was possible to
perceive that the analyzes corroborated the guiding premise of this
work. That is, it based in the analytical precepts, it is concluded that the
subordination process also occurs at a vocabulary level, even that the
authors of the analyzed compendiums do not mention it.
Keywords: Grammar. Subordination. Vocabulary formation.

INTRODUÇÃO

Ao lançarmos um olhar analítico sobre as abordagens re-


alizadas nos compêndios gramaticais de perspectiva tradicional,
veremos, conforme já enfatizou Bagno (2015), que a gramática nor-
mativa não contempla todos os fenômenos da língua e, além disso,
apresenta classificações que, muitas vezes, não explicam com pre-
cisão as ocorrências presentes nos diversos segmentos que consti-
tuem a língua portuguesa. Dentre essas imprecisões, chamam-nos
atenção os critérios mobilizados na descrição do mecanismo de
subordinação, principalmente pelo fato de esse tema ser trabalha-
do, como nos mostra Carone (1991), somente vinculado aos estu-
dos sobre o período composto.
Essa limitação, conforme aprofundaremos adiante, projeta
uma concepção reduzida de se observar o mecanismo de subordi-

O FENÔMENO DA SUBORDINAÇÃO NO NÍVEL VOCABULAR: REFLEXÕES NECESSÁRIAS


338

nação, tendo em vista que dela podemos inferir que esse proces-
so não ocorre fora do período composto. Ou seja, com base nesse
ponto de vista, não seria possível, por exemplo, pressupor a ocor-
rência da subordinação em nível vocabular.
A essa concepção nos referimos como reduzida e, por con-
siderarmos que as explicações até então apresentadas não são su-
ficientes para o entendimento do assunto, propomos este artigo
como forma de empreender alguns encaminhamentos que am-
pliem as discussões sobre o tema. Sendo assim, aludimos ao pres-
suposto teórico, defendido em Carone (1991), de que o processo de
subordinação é um fenômeno que ocorre, também, no encadea-
mento dos sintagmas da língua; e, com base nesse entendimento,
indagamo-nos: é possível compreender a subordinação como uma
ocorrência que faz parte da estruturação interna do vocábulo?
Diante dessa inquietação, objetivamos, portanto, analisar o fenô-
meno da subordinação no processo de formação vocabular, a fim
de nos certificarmos de que esse mecanismo não se restringe ape-
nas ao sintagma verbal.
Para cumprir nosso objetivo, analisamos dois capítulos
referentes ao processo de formação vocabular contidos em obras
normativas, consideradas por alguns pesquisadores como produ-
ções de grande prestígio, quais sejam: Nova gramática do portu-
guês contemporâneo (CUNHA; CINTRA, 2017) e Moderna gramática
portuguesa (BECHARA, 2015). Neles, buscamos demonstrar que
o mecanismo da subordinação está presente, também, no nível
vocabular, mesmo que isso os autores das obras analisadas não
­mencionem.
Assim, além desta introdução, organizamos o artigo em
duas seções. Na segunda, fracionada em duas subseções, tratamos
do modo como a subordinação é conceituada nos estudos linguís-
ticos de perspectivas tradicionais, para, em seguida, observarmos
esse mecanismo sintático sob o ponto de vista das teorias da lin-
guagem de base descritiva. E, na terceira seção, apresentamos os

JAMMARA OLIVEIRA VASCONCELOS DE SÁ • CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA PINHEIRO


EDMAR PEIXOTO DE LIMA
339

resultados encontrados, nos quais demonstramos que a subordi-


nação não se limita somente ao período composto.
Delineados os objetivos a serem cumpridos doravante, ain-
da nos parece necessário esclarecer que, nas abordagens reflexivas
necessárias à análise cogitada, não temos o intuito de vilipendiar
nenhum autor citado. Ao contrário, pretendemos proporcionar,
por meio de nossas ponderações, algumas reflexões que possibi-
litem o redimensionamento conceitual do fenômeno de subordi-
nação, as quais, certamente, fornecerão ao ensino e, sobretudo, à
aprendizagem do período composto maior viabilidade no enten-
dimento das conceitualizações. Com isso, este artigo vislumbra
proporcionar ao professor de língua materna a possibilidade de
ampliar as abordagens tanto em relação ao processo de subordi-
nação quanto em relação aos mecanismos de formação vocabular.

PROCESSO DE SUBORDINAÇÃO: ASPECTOS TEÓRICOS

Na seção anterior, já apontamos que o objetivo deste traba-


lho é demonstrar a ocorrência do mecanismo de subordinação em
níveis inferiores ao período composto, mais precisamente em ní-
vel vocabular. Para cumprir esse propósito, discutiremos, mesmo
que de forma sintética, sobre como o processo de subordinação
é contemplado na perspectiva tradicional e também na literatu-
ra linguística. Pretendemos, com essas abordagens, não somente
descrever o modo como a subordinação é tratada sob o ponto de
vista normativo, mas também observar se há, direta ou indireta-
mente, alguma menção à ocorrência desse processo em níveis in-
feriores ao sintagma verbal. Assim sendo, como subdividimos a se-
ção, iniciaremos a primeira tratando das orientações normativas
sobre o fenômeno investigado neste trabalho.

O FENÔMENO DA SUBORDINAÇÃO NO NÍVEL VOCABULAR: REFLEXÕES NECESSÁRIAS


340

A subordinação sob o viés dos preceitos normativos-


prescritivos

Ao tratar de oração principal, assunto sobre o qual versa-


-remos doravante, Rocha Lima vale-se dos estudos de Celso Cunha
para afirmar “[...] que o período composto por subordinação se
arma assim à guisa de uma ‘constelação sintática’ em torno da ora-
ção principal, ratificamos estas palavras do professor Celso Cunha”
(ROCHA LIMA, 2007, p. 285, grifo nosso).
À medida que vemos essa citação, percebemos a credibili-
dade de que desfrutam Cunha e Cintra. Comprovado isso, passe-
mos, pois, à abordagem feita por esses autores em relação ao pro-
cesso de subordinação. Para a compreensão desse mecanismo, é
essencial, de acordo com os autores, entendermos os chamados
termos essenciais, integrantes e acessórios da oração. Isso porque
“as orações sem autonomia gramatical, isto é, as orações que fun-
cionam como termos essenciais, integrantes ou acessórios de ou-
tra oração, chamam-se SUBORDINADAS” (CUNHA; CINTRA, 2017,
p. 608). Dessa forma, sendo a subordinação a projeção dos termos
da oração por meio de sintagmas verbais, conforme nos mostram
Cunha e Cintra (2017), constatamos que tal mecanismo somente é
discutido por esses autores a partir do nível oracional.
Posto isso, assim como os termos essenciais, integrantes e
acessórios, a noção de oração principal é fundamental à compre-
ensão do mecanismo de subordinação, tendo em vista que ela “(ou
um de seus termos) serve sempre de suporte a uma ORAÇÃO SU-
BORDINADA” (CUNHA; CINTRA, 2017, p. 609). Para ilustrar esse
conceito, retomamos as palavras dos autores na exemplificação a
seguir:

(1) “Não me esqueço” de que estavas doente quando ele


­nasceu;

JAMMARA OLIVEIRA VASCONCELOS DE SÁ • CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA PINHEIRO


EDMAR PEIXOTO DE LIMA
341

Analisando essa oração, vemos que o seguimento “Não me


esqueço” serve, de acordo com Cunha e Cintra (2017), como su-
porte para a oração que a ele se subordina (de que estavas doente
quando ele nasceu). Por esse motivo, então, os autores a denomi-
nam como oração principal, pois é nela que a oração subordinada
encontra suporte. Diante disso, entendemos que há, no processo
de subordinação, a projeção de uma base na qual “deve estar, ou
convém que esteja, a ideia principal” (SAUTCHUK, 2018, p. 127).
Por meio das abordagens realizadas até o momento, enten-
demos que, na perspectiva normativa, a subordinação consiste,
basicamente, na projeção dos termos essenciais, integrantes e
acessórios em forma de oração. Entretanto, consideramos im-
prescindível relembrar que o objetivo desta seção não consiste em
abordar todas as classificações e subclassificações do processo de
subordinação sob a perspectiva tradicional.
Pretendemos, na verdade, mencionar as características
principais deste mecanismo fornecidas pela gramática tradicio-
nal, visando a identificar se há, direta ou indiretamente, alguma
menção sobre a possibilidade de ele ocorrer em níveis inferiores
ao sintagma verbal. Por isso, no que tange às classificações das
chamadas orações subordinadas, somente nos atemos à menção
de cada uma delas, baseados, ainda, em Cunha e Cintra (2017).
Exposto o conceito de subordinação de acordo com a pers-
pectiva tradicional, passemos às classificações dos tipos de ora-
ções subordinadas. Afirmamos, então, que três são, para Cunha
e Cintra (2017), as classificações em se tratando de subordinação,
quais sejam: subordinadas substantivas, subordinadas adjetivas e
subordinadas adverbiais. Segundo esses autores, tal classificação
se dá pelo fato de as orações exercerem funções equivalentes às
terminologias que lhes são atribuídas. E, para exemplificar essa
diferenciação, Cunha e Cintra (2017, p. 612) nos fornecem exem-
plos, tais como:

O FENÔMENO DA SUBORDINAÇÃO NO NÍVEL VOCABULAR: REFLEXÕES NECESSÁRIAS


342

(2) É necessário que venhas urgente;


(3) Não desaprendi as lições que recebi;
(4) Ainda não o tinha visto depois que voltara;

Para os autores, essa análise é feita semelhantemente à de


“um período simples. Distingue-os apenas o fato de os TERMOS
(ESSENCIAIS, INTEGRANTES e ACESSÓRIOS) deste serem repre-
sentados naquele por ORAÇÕES” (CUNHA; CINTRA, 2017, p. 614).
Nesse sentido, o exemplo número (2) apresenta, em destaque, um
termo que desempenha, assim como no período simples, a função
de sujeito. Entretanto, por haver nele um verbo, damos-lhe a clas-
sificação de oração subordinada (pois depende da oração principal
que lhe está anteposta) substantiva (tendo em vista que desempe-
nha uma função exercida, também, por um substantivo) subjetiva
(pois exerce função sintática de sujeito).
A mesma lógica é aplicável, também, aos exemplos (3) e (4),
com a diferença de que neles há, respectivamente, uma função
adjetiva e adverbial. Por isso, tais orações são classificadas como
subordinadas adjetivas e subordinadas adverbiais, pois desem-
penham uma função igualmente realizada pelos adjetivos e ad-
vérbios. Dessa forma, as orações subordinadas, sob a perspectiva
gramatical, exercem funções efetivadas, também, pelo substanti-
vo (sujeito, objeto direto, objeto indireto, complemento nominal
etc.), pelo adjetivo e pelo advérbio. Esse é, pois, o critério por meio
do qual é possível identificá-las e, sobretudo, classificá-las.
Posto isso, compreendemos os princípios que norteiam
o processo de subordinação sob a perspectiva tradicional. Para
tanto, optamos por Cunha e Cintra (2017) como representantes da
visão normativa e, por meio disso, vimos que a noção de subordi-
nação somente vem à tona a partir do nível oracional. Na subseção
seguinte, discutiremos o processo de subordinação sob a perspec-
tiva dos estudos linguísticos de natureza descritiva.

JAMMARA OLIVEIRA VASCONCELOS DE SÁ • CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA PINHEIRO


EDMAR PEIXOTO DE LIMA
343

A subordinação sob o ponto de vista dos princípios


descritivos

Conforme apontamos, convém tecer, mesmo que de manei-


ra sintética, algumas considerações sobre o fenômeno em estudo,
considerando os encaminhamentos defendidos pela literatura
linguística. Para tanto, fundamentamos nossos apontamentos va-
lendo-nos dos estudos de Azeredo (1990), Carone (1991) e Castilho
(2012) e, com base nesses autores, pretendemos não somente des-
crever o processo de subordinação, mas também argumentar que
esse mecanismo ocorre, diferentemente do proposto pela tradição
normativa, em níveis inferiores ao período composto.
Em primeiro lugar, temos de considerar que, como aponta
Azeredo (1990), a distinção entre subordinação e coordenação não
é integralmente nítida. Tradicionalmente, esses mecanismos são
diferenciados sob a afirmativa de que a coordenação apresenta
unidades independentes; a subordinação, dependentes. Entretan-
to, tal distinção “nada esclarece até que se defina a natureza dessa
dependência” (AZEREDO, 1990, p. 53). Por conta disso, optamos,
metodologicamente, por descrever e analisar, neste artigo, somen-
te o processo de subordinação, de modo que seja possível provar e,
sobretudo, demostrar sua efetiva ocorrência em nível inferior ao
período composto.
Azeredo (1990, p. 54) esclarece-nos, retomando a distinção
tradicional entre subordinação e coordenação, a diferença entre
esses mecanismos, afirmando que somente “a subordinação é um
processo criador de funções”. Partindo disso, o autor distancia-
-se da proposta contida na Nomenclatura Gramatical Brasileira
(NGB), porquanto, por meio desse conceito, analisa, posterior-
mente, a efetiva ocorrência do processo de subordinação em nível
sintagmático e vocabular. Logo, é possível ratificarmos, conforme
já sinalizamos, que o processo de subordinação ocorre, também,

O FENÔMENO DA SUBORDINAÇÃO NO NÍVEL VOCABULAR: REFLEXÕES NECESSÁRIAS


344

em níveis inferiores ao período composto, o que ampara e justifica


nossos argumentos.
Castilho vai além do que muitos autores advogam, pois con-
sidera que “as relações de coordenação e subordinação ocorrem
também no processo de derivação morfológica” (CASTILHO, 2012,
p. 346). Dessa forma, vemos que, mesmo antes de iniciarmos a
seção analítica, podemos constatar apontamentos significativa-
mente favoráveis à premissa norteadora deste trabalho, qual seja:
a inviabilidade de conceber o processo de subordinação restrita-
mente ao período composto.
Ademais, ainda com base nas perspectivas de Castilho
(2012), é relevante mencionar que, em se tratando desse fenôme-
no, “o elemento subordenado tem natureza sintática distinta da do
superordenado, ao qual modifica semanticamente” (CASTILHO,
2012, p. 346). Por mais que consideremos a modificação semânti-
ca extremamente relevante, chama-nos atenção, na citação, o uso
da palavra elemento. Isso porque, caso o autor tivesse utilizado a
palavra oração, restringiria a noção de subordinação ao sintagma
verbal, conforme fazem os compêndios normativos.
Assim, podemos afirmar, sinteticamente, que a caracterís-
tica basilar da subordinação é a modificação semântica (CASTI-
LHO, 2012) e, também, a projeção de uma nova função (AZEREDO,
1990). Ora, essas características não se manifestam, conforme
vimos, apenas em sintagmas verbais, fato que torna incoerente
conceber subordinação como uma exclusividade do período com-
posto. Mesmo assim, se observarmos a tradição gramatical, nas
palavras de Carone, veremos que:
só vamos encontrar as palavras coordenação e subordina-
ção a partir do item relativo ao período composto. Antes,
ao tratar dos termos da oração, tais palavras não são men-
cionadas, o que pode conduzir à conclusão de que esses
mecanismos sintáticos não operam em nível inferior ao
período composto; isto é, eles não ocorreriam dentro da
oração (CARONE, 1991, p. 16).

JAMMARA OLIVEIRA VASCONCELOS DE SÁ • CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA PINHEIRO


EDMAR PEIXOTO DE LIMA
345

E, nesse sentido, aludimos às palavras de Silva (2013, p. 218),


que reforça esse diálogo com Carone (1991), quando afirma que os
estudiosos, “em geral, lembram-se dos processos subordinação e
de coordenação apenas quando se trata do estudo do período (frase
composta de uma ou mais orações). Mas esses dois processos são
fenômenos que não ocorrem apenas entre orações”. Por isso, deli-
mitaremos nossa análise ao nível vocabular, no qual buscaremos
demostrar de que maneira ocorre o mecanismo de ­subordinação.

O PROCESSO DE SUBORDINAÇÃO EM NÍVEL


VOCABULAR

Na seção anterior, construímos duas ideias basilares ao


nosso trabalho. Em primeiro lugar, vimos que, de acordo com
Azeredo (1990), a característica substancial da subordinação é a
projeção de uma nova função. Posteriormente, com base em Cas-
tilho (2012), esclarecemos que o mecanismo da subordinação não
se limita somente ao período composto. Ou seja, é possível identi-
ficá-lo em níveis inferiores ao sintagma verbal. Cabe-nos, portan-
to, aprimorar essa perspectiva. Para tanto, procederemos a uma
análise do capítulo “Classe, estrutura e formação de palavras”,
contido na Nova gramática do português contemporâneo (CUNHA;
CINTRA, 2017) e, também, do capítulo “Estrutura das palavras”, si-
tuado na Moderna gramática portuguesa (BECHARA, 2015). Com
isso, pretendemos investigar de que maneira a subordinação ma-
nifesta-se no nível vocabular.
Nesse sentido, consideramos necessário salientar a distin-
ção feita por Cunha e Cintra no que se refere à desinência e a sufi-
xos. Para os autores, “os SUFIXOS, como as desinências, unem-se à
parte final do radical. Mas, enquanto estas caracterizam apenas o
gênero, o número ou a pessoa da palavra, sem lhe alterar o sentido
lexical ou a classe, os SUFIXOS transformam substancialmente o
radical a que se juntam” (CUNHA; CINTRA, 2017, p. 94).

O FENÔMENO DA SUBORDINAÇÃO NO NÍVEL VOCABULAR: REFLEXÕES NECESSÁRIAS


346

Percebemos, portanto, que a diferença estabelecida entre


sufixo e desinência toma como critério, nesse caso, a alteração do
radical em classe ou em sentido. Para exemplificar tal diferencia-
ção, Cunha e Cintra (2017, p. 94) apresentam os seguintes exemplos:
Assim, em terroso, terreiro, novinho e novamente, encon-
tramos os sufixos:
-oso, que do substantivo terra forma um adjetivo (terroso);
-eiro, que do substantivo terra forma outro substantivo
(terreiro);
-inho, que do adjetivo novo forma um diminutivo
(­novinho);
-mente, que do feminino do adjetivo novo forma um ad-
vérbio (novamente).

Compreendemos, nesse caso, que, ao acrescentar um sufi-


xo a um radical, temos a possibilidade de gerar uma nova função.
A fim de melhor exemplificar nossos apontamentos, analisemos
o primeiro exemplo apresentado por Cunha e Cintra (2017) para
tratar do conceito de sufixos. Como evidenciamos anteriormente,
os autores mostram que, ao adicionar o sufixo oso ao substantivo
terra, obtemos uma alteração de classe gramatical. Dessa forma,
de um substantivo formamos um adjetivo, por meio do acréscimo
sufixal. Mudam-se, portanto, as funções. Ou seja, a função subs-
tantiva torna-se adjetiva mediante a adição do sufixo oso ao subs-
tantivo terra.
Guiados pelos conceitos defendidos por Azeredo (1990), Ca-
rone (1991) e Castilho (2012), consideramos que os exemplos ante-
riores citados por Cunha e Cintra (2017) revelam o mecanismo de
subordinação, pois apresentam a projeção de uma nova função e,
além disso, uma alteração semântica. É necessário relembrarmos,
porém, que essa perspectiva não é mencionada pelos autores, os
quais só citam o termo subordinação a partir das abordagens refe-
rentes ao período composto.

JAMMARA OLIVEIRA VASCONCELOS DE SÁ • CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA PINHEIRO


EDMAR PEIXOTO DE LIMA
347

Em continuidade, vejamos as considerações feitas por Be-


chara (2015) sobre a estrutura dos vocábulos, mais precisamente
sobre os sufixos. Nesse sentido, temos de considerar que, para esse
autor, o sufixo consiste em:
Um elemento mórfico [...] que não tem curso independen-
te na língua (e por isso se chama forma presa) para formar
uma palavra nova, emprestando-lhe uma ideia acessória
e marcando-lhe a categoria (substantivo, adjetivo, etc.) a
que pertence. O sufixo assume uma função morfológica,
pois, em geral, altera a categoria gramatical do radical de
que sai o derivado (real adj. → realidade s. [...]) (BECHARA,
2015, p. 355).

Se observarmos essa caracterização, veremos, mais uma


vez, o processo de subordinação no nível vocabular. Para assim
concluir, basta que relembremos, novamente, os atributos basi-
lares da subordinação elencados na seção anterior: a modificação
semântica (CASTILHO, 2012) e a projeção de uma nova função
(AZEREDO, 1990). Ora, ao conceituar sufixo, Bechara (2015) desta-
ca-nos, assim como Cunha e Cintra (2017), a formação de uma nova
palavra como uma das características principais de tal afixo.
O exemplo exposto pelo autor ajuda-nos, significativamen-
te, a visualizar o mecanismo da subordinação em nível vocabular.
Isso porque, ao transformarmos real adj. em realidade s., observa-
mos com clareza as duas particularidades do processo de subordi-
nação: alteração de sentido e, também, de função.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas considerações iniciais deste trabalho, relembramos


que a gramática normativa apresenta significativas imprecisões
em suas abordagens. Partindo disso, selecionamos, por questões
metodológicas, a redução do conceito de subordinação presente
nas gramáticas tradicionais como objeto de nosso estudo. A fim

O FENÔMENO DA SUBORDINAÇÃO NO NÍVEL VOCABULAR: REFLEXÕES NECESSÁRIAS


348

de que fosse possível explorar essa problemática, partimos, ini-


cialmente, do conceito tradicional de subordinação contido nas
gramáticas de perspectiva normativa. Com isso, percebemos que
a menção à subordinação se restringe, na visão prescritiva, apenas
ao nível oracional.
Entretanto, ao procedermos à análise, percebemos que o
nível vocabular também manifesta, assim como o nível oracional,
o mecanismo de subordinação. E assim concluímos à medida que
visualizamos, no processo de derivação sufixal e/ou prefixal, a pro-
jeção de novas funções, alterações semânticas e, também, relações
de dependências. Nesse sentido, cumprimos os objetivos aos quais
nos propomos neste trabalho.
Esperamos, ainda, no devir, suscitar reflexões mais abran-
gentes quanto ao processo da subordinação e entendemos que
análises desta natureza podem facilitar a compreensão do pro-
cesso da subordinação em sala de aula de língua portuguesa, não o
restringindo somente a subclassificações, mas o compreendendo
como um recurso ativo na língua.

REFERÊNCIAS

AZEREDO, José Carlos de. Iniciação à sintaxe do português. Rio de


Janeiro: Zahar, 1990.
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábo-
la Editorial, 2015.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 38. ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
CARONE, F. B. Subordinação e coordenação: confrontos e contras-
tes. São Paulo: Ática, 1991. (Série Princípios).
CASTILHO, Ataliba T. de.  Nova gramática do português brasilei-
ro. São Paulo: Contexto, 2012.

JAMMARA OLIVEIRA VASCONCELOS DE SÁ • CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA PINHEIRO


EDMAR PEIXOTO DE LIMA
349

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português


contemporâneo. 7. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2017.
LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 47. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
SAUTCHUK, Inez. Prática de morfossintaxe: como e por que apren-
der análise (morfo)sintática. 3. ed. São Paulo: Manole, 2018.
SILVA, Fernando Moreno da. Os processos de subordinação e de
coordenação. Revista Leitura, Maceió, v. 1, n. 47, p. 215-229, 21 maio
2013. Universidade Federal de Alagoas. http://dx.doi.org/10.28998/
rl.v1i47.910.

O FENÔMENO DA SUBORDINAÇÃO NO NÍVEL VOCABULAR: REFLEXÕES NECESSÁRIAS


350

TRAJETÓRIA EDUCATIVA E
LITERÁRIA DE MARIA NELY DE
OLIVEIRA RAMOS
Francisca Edjanaria Pereira 1
Débia Suênia da Silva Sousa2

RESUMO
Neste estudo buscou-se delinear a história da educadora, Maria
Nely de Oliveira Ramos que perpassa entre sua formatura, atuação na
docência como também na gestão da Escola Estadual de Ensino Funda-
mental Professor Nestor Antunes. A pesquisa foi realizada através da
perspectiva teórico-metodológico da produção biográfica, de modo que,
respalda-se em concepções de novos sujeitos históricos na construção de
uma historiografia por novos olhares e contextos através de um recorte
histórico de 1951 a 1984 fundamentando práticas docentes e influências
literárias que contribuíram para a educação da cidade de Santa Cruz, no
interior da Paraíba. Os resultados mostraram, principalmente, que a edu-
cadora tinha uma formação adequada e um sistemático processo de for-
mação continuada para o exercício da docência e da gestão. E também que
a trajetória educativa e literária de Maria Nely de Oliveira Ramos influen-
ciou significativamente seus educandos através de sua prática docente,
com valores construídos através das identificações e interpretações que
fazem os sujeitos no contexto escolar repercutir de forma significativa
para contribuição no processo de qualificação e transformação social.
Palavras-chave: Mulheres na Educação. Historiografia Local.
Prática Educativa.
1 Especialista em Formação Docente para Educação Básica/ Universidade Federal
de Campina Grande – Centro de Formação de Professores e Graduada em Pedago-
gia pela Universidade Federal de Campina Grande – CFP, Campus Cajazeiras-PB.
E-mail: edjanaria@yahoo.com.br
2 Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Norte – Centro de Educação – Natal-RN. Profes-
sora Adjunta da Universidade Federal de Campina Grande, lotada no Centro de
Formação de Professores – Campus de Cajazeiras, desde 2009. Atualmente, exerce
a função de Vice-Diretora do Centro de Formação de Professores, da Universidade
Federal de Campina Grande. E-mail: debia.sousa@ufcg.edu.br

FRANCISCA EDJANARIA PEREIRA • DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA


351

ABSTRACT
This study sought to outline the history from Maria Nely
de Oliveira Ramos that goes through her graduation, teaching and
management of the State School of Elementary Education Professor
Nestor Antunes. The research was made through the theoretical-
methodological perspective of biographical production, so that, based
on conceptions of new historical subjects in the construction of a
historiography by new point of views and contexts through a historical
section from 1951 to 1984, substantiating teaching practices and literary
influences that contributed to the education of Santa Cruz city, in
Paraíba countryside. The results showed, mainly, that the educator
has an adequate graduation and a systematic process of continuous
training for the teaching exercise and management. And also that Maria
Nely de Oliveira Ramos educational and literary trajectory influenced
meaningfully her students through her teaching practice, as values built
through identification and interpretations that make the individual in
the school context resonate in a significant way to the contribution in
the qualification and social transformation process.
Key-words: Women in Education. Local historiography.
Educational Practice.

INTRODUÇÃO

O presente estudo propõe-se descrever a história da edu-


cadora, Maria Nely de Oliveira Ramos, especialmente, sobre suas
práticas docentes e suas influências literárias que contribuíram
para a educação da cidade de Santa Cruz, no interior da Paraíba
(PB). Nesse sentido, faz-se necessário um recorte histórico de 1951
a 1984, que transcorre do período de sua formatura, atuação na
docência como também na gestão da Escola Estadual de Ensino
Fundamental Professor Nestor Antunes.
A análise da prática educativa e a representação histórica
local de mulheres na educação trás contextos importantes na re-
presentatividade para a formação de docentes. Assim, definiu-se
o método biográfico para a realização desse estudo priorizando

TRAJETÓRIA EDUCATIVA E LITERÁRIA DE MARIA NELY DE OLIVEIRA RAMOS


352

as fontes documentais, de modo que apresentem um panorama


de sua história enquanto educadora e sua formação docente. E
respaldar-se em concepções de novos sujeitos históricos na cons-
trução de uma historiografia por novos olhares e contextos, assim,
“[...] a historiografia da educação é um campo de estudo que tem
por objeto de investigação as produções históricas e por objeto de
estudo o educacional” (LOMBARDI, 2013, p. 09), portanto, vislum-
brar a educação de uma cidade sob a perspectiva de uma professo-
ra que atuou em escola pública e compreender aspectos sociais e
culturais da época fortalece a trajetória da educação na visão da-
queles que fizeram parte de sua formação.
Nessa conjuntura, surgem inquietações a respeito da histó-
ria da educação em uma época que a mulher detinha como prin-
cipal função afazeres domésticos, em sua maioria, ao retratar um
percurso diferente pode-se considerar uma conquista para o gê-
nero feminino, com a ascensão na carreira da docência e na gestão
escolar, como também suas contribuições literárias. Outro ponto
a ser discutido relaciona-se aos fatos históricos dos saberes adqui-
ridos no percurso de sua formação docente, haja vista, uma breve
contextualização da escola onde atuou para melhor compreensão
do percurso educacional de Maria Nely de Oliveira Ramos.
Assim, ao analisar a trajetória histórica na percepção do
magistério utilizando poemas, fotos e fontes documentais que
reconstroem seu percurso docente no ensino público na cidade
de Santa Cruz, na Paraíba, o estudo sobre Maria Nely de Oliveira
Ramos, se respalda nas contribuições da Nova História Cultural,
para compreensão do ensino e cultura de uma época, e da atuação
de uma educadora que contribuiu significativamente para a for-
mação de gerações enquanto professora e gestora de uma escola
pública. Outrossim, o ensaio biográfico ao revelar a ação docente
de uma mulher em uma época majoritariamente masculina, nos
possibilita observar a história cultural com novos olhares.

FRANCISCA EDJANARIA PEREIRA • DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA


353

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE UMA EDUCADORA

Em linhas iniciais é importante contextualizar os traços


biográficos de Maria Nely de Oliveira Ramos, para compreender as
relações entre a singularidade do indivíduo e sua influência para
com a sociedade por meio dos fatos históricos. Portanto, Maria
Nely de Oliveira Ramos, nasceu em 29 de setembro de 1930, sítio
Pitombeira, localizado no município de Santa Cruz, sertão da Pa-
raíba e veio a falecer em 25 de janeiro de 2020. A seguir uma foto de
família, no qual Maria Nely está à esquerda de vestido branco com
as mãos para frente. Seus pais sentados traz a representação como
era a hierarquia na formação familiar na época, ou seja, os filhos
em pé, em sinal de respeito aos pais:

Foto 1 – Família de Maria Nely de Oliveira Ramos

Fonte: Arquivo pessoal de Maria Nely de Oliveira Ramos

Aos sete anos, Maria Nely iniciou seus estudos com Dona
Egídia Saldanha de Oliveira, na Escola Rural Mista de Santa Cruz
onde concluiu o Ensino Fundamental I (Anos Iniciais), a referida
escola chamava-se “Grupo Escolar”. Para concluir o que atualmen-
te é denominado de Ensino Fundamental II (Anos Finais) foi para
a cidade de Cajazeiras, interior da Paraíba onde estudou através

TRAJETÓRIA EDUCATIVA E LITERÁRIA DE MARIA NELY DE OLIVEIRA RAMOS


354

do método Admissão ao Ginasial3 no Colégio Nossa Senhora de


­Lourdes.
Transferiu-se para a cidade de Catolé do Rocha na Paraíba
no ano de 1951 para dar continuidade a seus estudos na Escola Nor-
mal D. Francisca Henriques Mendes, que era dirigida pelas “Irmãs
de São Francisco”. Nesta Instituição concluiu o quarto ano do Cur-
so Normal. A seguir uma foto de sua formatura na Escola Normal:

Foto 2 – Maria Nely de Oliveira Ramos em sua formatura

Fonte: Arquivo pessoal de Maria Nely de Oliveira Ramos

Maria Nely de Oliveira Ramos iniciou sua trajetória docente


no município de Sousa-PB no período de 1952 a 1955 onde prestou
serviços como professora a Prefeitura Municipal. Lecionou, pri-
meiramente, no sítio Juazeiro do compadre Isaías de Luiz Silva de
1952 a 1954 e depois em 1955 no povoado de São Francisco – PB,
atualmente, município próximo a Santa Cruz – PB.
3 O livro Admissão ao ginásio, assinado por Aída Costa (português), Renato Pasquale/
Marcius Brandão (matemática), Aurélia Marino (história do Brasil) e Renato Stemp-
niewski (geografia), teve sua primeira edição publicada em 1943, pela Editora do
Brasil1, e, em 1970, já havia ultrapassado mais de 550 edições. Sua publicação e cir-
culação se deram no contexto dos exames de admissão ao ginásio. (SILVA, 2018 p. 02).

FRANCISCA EDJANARIA PEREIRA • DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA


355

Na data de 31 de janeiro de 1956, Nely casou-se com Carlos


Pereira Ramos com quem conviveu ao longo de 50 anos em Santa
Cruz – PB. Dessa união nasceram Maria Goretti Sobreira Ramos e
Maria do Socorro Sobreira Ramos, atualmente, ambas estão casa-
das e a agraciaram com quatro netos.
Seu percurso educacional na cidade de Santa Cruz-PB deu
início em quatro de março de 1960 quando foi nomeada para exer-
cer o cargo de professora na chamada Escola Elementar Mista de
Santa Cruz que funcionava no prédio atual da prefeitura. No en-
tanto foi demitida após dois meses de trabalho. Em 27 de dezem-
bro de 1962 foi nomeada para o cargo de professora classe “C” e
também exercer a função de diretora (gratificada) nesse ano a
escola foi renomeada de Grupo Escolar Santa Cruz. Em 05 de de-
zembro de 1968 durante sua gestão passou a denominar-se Grupo
Escolar Professor Nestor Antunes, como ressalta em suas anota-
ções ao descrever seu percurso educacional na época:
Em dezembro de 1962 fui designada como diretora do
Grupo Escolar Santa Cruz recentemente construído. Em
1968 o grupo passou a chamar-se Grupo Escolar Professor
“Nestor Antunes de Oliveira” e mudou de 3° para 2° catego-
ria. Passei 16 anos na direção da escola. (MARIA NELY DE
OLIVEIRA RAMOS, 1987, s.p).

Nas figuras a seguir é possível a comprovação de seus regis-


tos citados acima, onde existem duas portarias nos anos de 1960 e
1962, nomeando-a para o cargo de diretora escolar:

TRAJETÓRIA EDUCATIVA E LITERÁRIA DE MARIA NELY DE OLIVEIRA RAMOS


356

Figura 1 – Portaria de 1960 Figura 2 – Portaria de 1962

Fonte: Acervo pessoal Maria Nely de Oliveira Ramos

Nely Sobreira4 como até hoje, ainda, é conhecida, durante


vinte e dois anos atuou na Escola Estadual de Ensino Fundamental
Professor Nestor Antunes. Por muitos anos nesse período atuou
concomitantemente, no cargo de diretora e professora devido o
número reduzido de docentes para atender a demanda da escola.
Mas, em 25 de agosto de 1978 solicita por meio de um ofício sua
exoneração do cargo de diretora, no entanto, continuou traba-
lhando na escola exercendo a função de professora até o ano de
1984, ano de sua aposentadoria.
Cabe, enfatizar que o trajeto de memórias permitiu o levan-
tamento de uma documentação importante sobre a formação e
atuação de Maria Nely de Oliveira Ramos estabelecendo um diá-
logo com alguns estudos e abordagens da Nova História Cultural,
afim de, contextualizar saberes, memórias e histórias, como tam-
bém contribuir para a história da educação no Brasil. Conseguin-

4 Ficou conhecida por Nely Sobreira devido o sobrenome de sua família, mas como
costume da época o funcionário do cartório decidiu não colocar no registro de
Maria Nely de Oliveira Ramos, o sobrenome “Sobreira” que a mesma sente muito
desgosto por isso, informou sua filha, Maria do Socorro Sobreira Ramos.

FRANCISCA EDJANARIA PEREIRA • DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA


357

te, será discutido e apresentado recortes de sua formação docente


e continuada, como também aspectos metodológicos de sua atua-
ção enquanto professora.

Formação e atuação docente de Maria Nely de


Oliveira Ramos

Ao analisarmos a história de Maria Nely de Oliveira Ramos,


é perceptível que sua formação não ficou estagnada ao terminar o
curso Normal, durante sua atuação enquanto professora e gestora
participou de inúmeros cursos de formação continuada, que para
Nóvoa (1991, p.335) “[...] a formação continuada deve estimular
uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça aos professores os
meios de um pensamento autónomo e que facilite as dinâmicas de
uma autoformação participada”.
Tanto em suas bases teóricas quanto em suas consequ-
ências práticas, os conhecimentos profissionais são evo-
lutivos e progressivos e necessitam, por conseguinte, de
uma formação contínua e continuada. Os profissionais
devem, assim, autoformar-se e reciclar-se através de di-
ferentes meios, após seus estudos universitários iniciais.
Desse ponto de vista, a formação profissional ocupa, em
princípio, uma boa parte da carreira e os conhecimentos
profissionais partilham com os conhecimentos científicos
e técnicos a propriedade de serem revisáveis, criticáveis e
passíveis de aperfeiçoamento (TARDIF, 2007, p. 249).

Ao relacionar os dizeres de Tardif, com o percurso de forma-


ção de uma educadora que procura uma formação contínua como
também continuada, torna-se uma profissional comprometida,
pois no século XX as possibilidades e oportunidades de ensino e
capacitação demandavam mais empenho e Maria Nely de Oliveira
Ramos não deixou de buscar sua formação profissional apesar das
adversidades da época.

TRAJETÓRIA EDUCATIVA E LITERÁRIA DE MARIA NELY DE OLIVEIRA RAMOS


358

Outro ponto a ser enfatizado é que no ano de 1983, Maria


Nely conclui o Ensino Supletivo Projeto Logos II, que lhe conferiu
título de professora de Ensino de Primeiro Grau, dando-lhe o di-
reito de lecionar de 1° a 4° série, como era conceituado na época,
os Anos Iniciais, do Ensino Fundamental, atualmente. No entanto,
essa formação era destinada a professores leigos e sem formação
inicial que estavam atuando em sala de aula, mas não era o caso da
educadora pesquisada, a mesma já tinha o Curso Normal, o que de-
mostra sua preocupação e vontade de ampliar seus conhecimen-
tos para sua atuação na educação básica. Segue abaixo, o Cartão de
identificação, Declaração e Diploma do Projeto Logos II:

Figura 3 – Cartão de identificação

Figura 4 – Declaração Projeto Logos II

Fonte: Acervo pessoal de Maria Nely de Oliveira Ramos

FRANCISCA EDJANARIA PEREIRA • DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA


359

Figura 5 – Diploma Projeto Logos II (Frente e verso)

Fonte: Acervo pessoal de Maria Nely de Oliveira Ramos

O percurso de formação traçado por Maria Nely de Oliveira


Ramos, possibilitou uma melhor preparação de sua atuação em
sala de aula, ao analisar seu caderno de aulas práticas da Escola
Normal D. Francisca Henrique Mendes, como também diários es-
colares de 1981 e 1982, levando em consideração uma época em que
a reprodução do conhecimento era prática cotidiana nas escolas,
foi possível perceber uma ação docente diferenciada oferecendo
ao seu alunado uma aprendizagem significativa. Conforme pode-
-se observar nas fotos e figuras que seguem:

Foto 3 – Maria Nely de Oliveira em Sala. Figura 6 – Diário de classe.

Fonte: Arquivo pessoal de Maria Nely de Oliveira Ramos

TRAJETÓRIA EDUCATIVA E LITERÁRIA DE MARIA NELY DE OLIVEIRA RAMOS


360

Figura 7 – Caderno de planos e registros de aulas práticas.

Fonte: Arquivo pessoal de Maria Nely de Oliveira Ramos

A educadora tinha a preocupação em detalhar cada passo


a ser desenvolvido no processo de ensino e aprendizagem, desde
desenhos, interpretações e o que deveria ser desenvolvido e ex-
plicado em sala de aula. Isso demonstra um apreço por sua pro-
fissão. E tão significativo como a formação docente são os saberes
adquiridos ao longo de suas jornadas acadêmicas e suas reflexões
acerca de suas práticas para se oferecer um ensino de qualidade.
Transformar, reelaborar e incorporar novas atitudes à profissão
de educador amplia o sentido da educação.

Trajetos Representados na Literatura: Reminiscências

O livro Reminiscências de autoria de Maria Nely de Oliveira


Ramos trata-se de uma antologia poética que retrata as emoções,
vivências e expectativas através de versos que rememoram sua
vida. Em suas palavras, é possível identificar sua paixão pelo lugar
que nasceu, por sua família e, principalmente, por sua profissão. A
poetisa em seus escritos casuais descreve suas paixões, momentos
de sua infância como também sua trajetória educativa na Escola
Nestor Antunes. Assim, apresento a capa do livro, na imagem que
segue:

FRANCISCA EDJANARIA PEREIRA • DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA


361

Figura 8 – Livro de poesias autorais de Maria Nely de Oliveira Ramos

Fonte: Arquivo pessoal de Maria Nely de Oliveira Ramos

Os escritos de Maria Nely de Oliveira Ramos foram lançados


em 01 de novembro de 2009, na Escola Estadual de Ensino Funda-
mental Professor Nestor Antunes. No poema “O trabalho”. Maria
Nely de Oliveira Ramos manifesta que trabalhar na educação é um
dom, mas o reflexo de sua formação é visível quando menciona as
atribuições com o cumprimento de horários e eficiência na sua
função, o que nos leva a refletir sobre a importância da formação
continuada para o professor em pleno exercício de trabalho.
O valor do trabalho é inconteste
Envolve a vida num eterno teste
[...] Herdamos de Deus os “dons”
Que nos fazem medíocres ou bons
[...] No trabalho, há criatividade e ânimo
[...] Trabalho, aspirações, incentivos
Vontade, desejos e objetivos
Exemplos a imitar...
A sociedade, realização
Devemos se envolver nesta ação
E o ideal do trabalho, propagar.
(RAMOS, 1998, p. 37-38).

TRAJETÓRIA EDUCATIVA E LITERÁRIA DE MARIA NELY DE OLIVEIRA RAMOS


362

Existem conflitos na profissão que remete a identidade do-


cente que segundo Nóvoa (2000, p. 16) “A identidade não é um dado
adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identida-
de é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de
maneiras de ser e de estar na profissão [...]” por isso, a formação
implica no atuar docente de maneira objetiva sabendo as adversi-
dades e que as mesmas precisam ser superadas.
Na sua trajetória docente é perceptível o amor pela docên-
cia, como também das pessoas com que trabalhou e, principal-
mente, pela Escola Nestor Antunes. Outro poema que merece des-
taque com relação a sua trajetória educativa é “O Nestor Antunes”,
que relata memórias e sentimentos dos dezesseis anos de dedica-
ção à referida escola.
Escola inesquecível que me envolveu
E no cotidiano me convenceu
A lutar com amor e doação
[...] Vivenciei momentos de euforia
[...] O Nestor Antunes para mim não passou
Entre outras “direções”, ficou
E continua a tarefa na Educação
Mais difícil e mais complicada
Pois o tempo exige outra jornada
Tolhendo, as extras atividades, sem explicação!
O Nestor Antunes me empolgou de verdade
Marcou, no Magistério, minha identidade
A Ele ainda me sinto ligada
Vejo-me cantando, junto ao alunado
Como se tudo não tivesse passado...
Mas hoje, somente lembranças gravadas
(RAMOS, 2000, p. 58).

Maria Nely de Oliveira Ramos expressa nesse poema a con-


cepção da importância do seu trabalho nesta escola como também
dos dilemas de sua profissão. Dessa forma, a representatividade
da sua atuação docente perpassa por aspectos sociais, educati-

FRANCISCA EDJANARIA PEREIRA • DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA


363

vos e literários, pois ao representar suas expectativas, emoções e


anseios por meio desses poemas demostra sua preocupação com
uma prática docente de qualidade, com valores éticos e morais exi-
gidos na época e que representa a classe educativa positivamente
e com competência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa de cunho biográfico possibilitou entender de


modo mais significativo o percurso educacional e literário de uma
educadora que atuou no século XX, como também conhecer a re-
alidade e os dilemas da trajetória educativa de Maria Nely de Oli-
veira Ramos. Mas, é perceptível em seus escritos, nas fotos, figuras
e em seus poemas sua paixão pela profissão docente e o orgulho
em ter contribuído significativamente para a educação de muitas
crianças e jovens da cidade de Santa Cruz – PB.
A realização desse estudo possibilitou fazer uma aborda-
gem mais ampla acerca das concepções das fontes históricas. As
contribuições do seu trabalho frente à Escola Nestor Antunes fo-
ram de grande relevância nesse processo, visto que suas experi-
ências educativas analisadas colaboraram significativamente para
a construção de novos conhecimentos. Visto que a investigação
fundamentou-se na análise da formação, dos saberes e da prática
dessa professora e gestora, levando em consideração também as
dificuldades que permeiam sua atuação, e a influência da forma-
ção e dos saberes na prática pedagógica.
Conclui-se que a ações analisadas na trajetória educativa
e literária de Maria Nely de Oliveira Ramos contribuiu conside-
ravelmente do decorrer de sua atuação na cidade de Santa Cruz
– PB, formando gerações e procurando capacita-se para atender
as necessidades de aprendizado dos educandos e das atribuições
e competências que exige a gestão escola. Apesar de seu nome não
estar registrado na historiografia oficial é importante ressaltar e

TRAJETÓRIA EDUCATIVA E LITERÁRIA DE MARIA NELY DE OLIVEIRA RAMOS


364

enaltecer a história dessa mulher paraibana dedicada à vida edu-


cacional e que é um exemplo de perseverança para as educadoras
da atualidade.

REFERÊNCIAS

LOMBARDI, José Claudinei. História e historiografia da educa-


ção no Brasil: atentando para as fontes. In: NASCIMENTO, Maria
Isabel Moura. (Org.). Fontes, história e historiografia da educação.
Campinas: Autores Associados, 2013. cap. 9, p. 141- 178.
NÓVOA, Antônio. Os professores e as histórias da sua vida. In: Vi-
das de Professores. 2. ed. Portugal: Porto. 2000.
NÓVOA, Antônio. Os professores: em busca de uma autonomia
perdida? In: Ciências da Educação em Portugal – situação actual e
perspectiva. Porto: SPCE, 1991.
RAMOS, Maria Nely de Oliveira. Reminiscências. Santa Cruz-PB. 2009.
SILVA. Cristiani Bereta da. Era Uma Vez... Uma Editora, Um Livro:
Admissão Ao Ginásio, Editora Do Brasil (Décadas De 1940-1960).
Revista Brasileira de História da Educação (v. 18, 2018). Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/rbhe/v18/2238-0094-rbhe-18-e032.
pdf. Acesso em: 26 ago. 2019.
TANURI, Leonor Maria. História da formação de professores. Rev.
Bras. Educ. 2000, n.14, pp.61-88. Disponível em: http://www.scielo.
br/pdf/rbedu/n14/n14a05.pdf. Acesso em: 26 set. 2019.
TARDIF, M. LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma
teoria da docência como profissão de interações humanas. 3. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
Fontes Manuscritas
Anotações de Maria Nely de Oliveira Ramos
Fotografias, figuras, documentos pessoais, certificados, diploma,
diário escolar, caderno de planos de aula.
Acervo pessoal de Maria Nely de Oliveira Ramos

FRANCISCA EDJANARIA PEREIRA • DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA


365

MEMÓRIAS DO LEGADO
EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA
Débia Suênia da Silva Sousa1
Flavia Moraes Cartaxo2
Dagmar Alaíde de Lira Ferreira3

RESUMO
O objetivo deste trabalho é desvelar e analisar o legado educacio-
nal da professora cajazeirense Vitória Bezerra a partir dos indícios de
suas memórias. Este estudo é resultado do Projeto de Iniciação Científica
– PIBIC/CNPq: Nos vestígios das fontes escritas e iconográficas: me-
mórias e histórias de mulheres que nomeiam as escolas no município
de Cajazeiras – PB (1969-1999). Este buscou revelar a história das patro-
nesses das escolas municipais de Cajazeiras – PB. O estudo norteia-se na
abordagem da Nova História Cultural, subsidiado pelo método indiciá-
rio. Fundamenta-se nas concepções de Almeida (1998), Cartaxo (2000),
Perrot (2019), Lopes e Galvão (2000), Ginzburg (1989), Nunes (2000). Nes-
se sentido, entre as patronesses em evidência no estudo destaca-se a pro-
fessora Vitória Bezerra, que era natural de Cajazeiras-PB, nasceu em 1873
e faleceu em 1969 aos 95 anos de idade. Entre os indícios encontrados das
memórias de Vitória Bezerra, consta-se que esta iniciou suas atividades
docentes no ano de 1914. Vitória Bezerra atuava no ensino público e tam-
bém tinha sua própria escola particular localizada em sua residência. A
patronesse foi integrante de uma revista feminina que circulava na cida-
de de Cajazeiras. Portanto, verificou-se que Vitória Bezerra foi uma pro-
fessora que durante muitos anos dedicou-se ao magistério e contribuiu
com a formação de muitos cajazeirenses e cajazeirados.
Palavras-chave: Memórias. Educação. Vitória Bezerra

1 Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-


sidade Federal do Rio Grande do Norte – Centro de Educação – Natal-RN. Profes-
sora Adjunta da Universidade Federal de Campina Grande, lotada no Centro de
Formação de Professores – Campus de Cajazeiras, desde 2009. Atualmente, exerce
a função de Vice-Diretora do Centro de Formação de Professores, da Universidade
Federal de Campina Grande. e-mail: debia.sousa@ufcg.edu.br
2 Graduanda do curso de Pedagogia- UFCG/CFP. E-mail: flaviamoraes2610@gmail.com
3 Graduanda do curso de Pedagogia- UFCG/CFP. E-mail: dagmaralaide1@gmail.com

MEMÓRIAS DO LEGADO EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA


366

ABSTRACT
The objective of this work is to unveil and analyze the educational
legacy of Cajazeirense teacher Vitória Bezerra from the evidence of her
memories. This study is the result of the Scientific Initiation Project
– PIBIC / CNPq: In the remains of written and iconographic sources:
memories and stories of women who name schools in the municipality
of Cajazeiras – PB (1969-1999). This sought to reveal the history of the
patronesses of the municipal schools of Cajazeiras – PB. The study is
guided by the approach of the New Cultural History, subsidized by the
indicatory method. It is based on the concepts of Almeida (1998), Cartaxo
(2000), Perrot (2019), Lopes and Galvão (2000), Ginzburg (1989), Nunes
(2000). In this sense, among the patronesses in evidence in the study
stands out Professor Vitória Bezerra, who was born in Cajazeiras-PB,
was born in 1873 and died in 1969 at 95 years of age. Among the evidence
found in the memoirs of Vitória Bezerra, it is stated that the latter
began her teaching activities in 1914. Vitória Bezerra worked in public
education and also had her own private school located at her residence.
The patroness was a member of a women’s magazine that circulated
in the city of Cajazeiras. Therefore, it was found that Vitória Bezerra
was a teacher who for many years dedicated herself to teaching and
contributed to the training of many cajazeirenses and cajazeirados.
Keywords: Memories. Education. Vitória Bezerra.

INTRODUÇÃO

O presente estudo é resultado das atividades desenvolvidas


no Projeto de Iniciação Científica: Nos vestígios das fontes escri-
tas e iconográficas: memórias e histórias de mulheres que no-
meiam as escolas no município de Cajazeiras – PB (1969-1999).
O referido projeto foi fomentado pelo Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC/CNPq. O objetivo do proje-
to era realizar uma pesquisa que pudesse revelar a história das
mulheres que dão nome às escolas da rede pública de ensino no
município de Cajazeiras – PB, através da memória presente como
vestígios nas próprias escolas, em documentos oficiais (atas, por-

DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA • FLAVIA MORAES CARTAXO • DAGMAR ALAÍDE DE LIRA FERREIRA
367

tarias, decretos, relatórios, projetos de lei etc.) como também em


jornais e periódicos.
Nesse sentido, entre as patronesses das escolas municipais
de Cajazeiras-PB figurava o nome de Vitória Bezerra. Dessa forma,
o objetivo deste trabalho é desvelar e analisar o legado educacional
da professora cajazeirense Vitória Bezerra.
Este estudo trata-se de uma abordagem histórica, através
de uma pesquisa bibliográfica e documental. Situamos nosso es-
tudo na abordagem da Nova História Cultural – NHC trata-se de
uma corrente teórico metodológica que ampliou as possibilidades
de pesquisa histórica e trouxe a tona a história dos sujeitos que
ficaram a margem da historiografia oficial. Dessa forma, para res-
ponder as novas perguntas sobre o passado os historiadores preci-
saram lançar mão de novas fontes e métodos.
Assim sendo, partindo dos pressupostos da NHC, o referido
estudo foi subsidiado pelo método indiciário criado pelo historia-
dor italiano Carlo Ginzburg (1989). O método indiciário consiste
em fontes consideradas marginais, a exemplo de: fotografias, do-
cumentos escritos, cartas, bilhetes.
Os índicos encontrados da memória da patronesse em des-
taque podem ser considerados fontes raras, a exemplo: de uma
fotografia, um recorte de jornal, um registro de óbito, uma nota
encontrada em uma revista, e também uma breve biografia escrita
em um livro que reúne várias biografias de mulheres ­cajazeirenses.
A partir dos indícios encontrados da memória de Vitória
Bezerra verificou-se que esta nasceu na cidade de Cajazeiras-PB,
era filha de João Bezerra de Melo e Alexandrina Bezerra de Albu-
querque. Vitória Bezerra foi uma das primeiras professoras da
cidade de Cajazeiras-PB e contribuiu com a formação de muitos
cajazeirenses. Era uma mulher branca, solteira, e veio a falecer no
ano de 1969, aos 95 anos de idade.

MEMÓRIAS DO LEGADO EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA


368

SURGIMENTO DA HISTÓRIA DAS MULHERES

No Brasil, a partir de meados do século XX, surge a valoriza-


ção de estudos dos novos sujeitos da História, que anteriormente,
eram “desprezados” pela História positivista. Ao iniciar, pela es-
cola dos Annales que surgiu na França por Lucien Febvre e Marc
­Bloch, que era contraria a História positivista. Posteriormente,
com a Nova História Cultural, que valorizam os sujeitos conside-
rados marginalizados e consideram novos tipos de fontes: orais,
documentos não oficiais, fotografias e etc. Surge assim, um novo
modelo de se fazer História, não apenas relacionada à política,
mas também voltado para aspectos econômicos sociais e cultu-
rais, alargando desse modo, objetos e fontes. As crianças, os ado-
lescentes, os grupos populares, sentimentos, mulheres, etc. Os su-
jeitos considerados “esquecidos” em campos de estudos ganham
visibilidade e participam da História.
A partir destes acontecimentos, e o surgimento dos movi-
mentos feministas que reivindicam direitos igualitários para ho-
mens e mulheres, “quer fosse no trabalho, na família, na religião,
na educação foi uma luta que se espalhou por diversos campos e
se fez de muitas formas”. (LOPES; GALVÃO, 2001, p.68). Portanto,
a mulher que era participante da História, mas que não era reco-
nhecida, surge também como objeto de estudo, o que veio possibi-
litar ao ser feminino protagonizar sua história.
Por muito tempo, a história de mulheres foi mantida em
sigilo, a História positivista tratava de fatos relacionados ao setor
público, ao relatar a História de grandes homens, pois eram eles
quem estavam no poder e mereciam destaques, poucas eram as
mulheres que mereciam ter suas histórias relatadas, pois poucas
tinham acesso ao setor público a exemplo: de biografias de rai-
nhas, santas, mulheres consideradas extraordinárias (PERROT,
2019). Portanto, as mulheres que mereciam destaque, ou seja, as
que tinham seus relatos evidenciados eram bem restritas, e as de-

DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA • FLAVIA MORAES CARTAXO • DAGMAR ALAÍDE DE LIRA FERREIRA
369

mais ficavam esquecidas, não havendo assim, a continuidade e va-


lorização de suas histórias. Sem contar que o acesso às fontes era
bem difícil, pois não havia a valorização necessária e estas por
vezes, eram destruídas pelas suas próprias autoras, acreditando
não ter nenhuma importância.
Gradativamente a historiografia predominante foi substi-
tuída por um novo modelo, considerando a importância de ambos
os sexos fazerem parte da História. (LOPES; GALVÃO, 2001, p.68). A
partir do surgimento desta Nova História, a mulher perpassa as bar-
reiras do anonimato e adentra aos estudos de historiadores. Ela que
não era considerada objeto de estudo, se configura como persona-
gem da historiografia. Deixando o silêncio profundo como nos diz
a estudiosa Perrot (2019) e passando a ter notoriedade na História.
Portanto, pesquisar e escrever sobre a mulher, é romper
com este silêncio evidenciando sua existência e descortinando
sua trajetória de vida. Neste sentido, abordaremos nas próximas
páginas a história da professora cajazeirense Vitória Bezerra.

O LEGADO EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA

Vitória Bezerra era natural da cidade de Cajazeiras- PB, fi-


lha de João Bezerra de Melo e Alexandrina Bezerra de Albuquer-
que. Nasceu no ano de 1873 e faleceu no ano de 1969. Quando se
trata da sua atuação como professora, a partir dos indícios encon-
trados verificou-se que Vitória Bezerra iniciou suas atividades a
partir do ano de 1914, nesse período foi nomeada para exercer o
cargo de professora primária do sexo feminino.
A professora cajazeirense realizou seus estudos na sua ci-
dade natal, mais precisamente, na escola para meninas fundada
pelo Padre Inácio de Sousa Rolim, homem conhecido e prestigiado
na História desta cidade. (MOREIRA NETO, 2018).
De acordo com Cartaxo (2000), quase todos os cajazeiren-
ses daquela época foram alunos da professora Vitória Bezerra. No

MEMÓRIAS DO LEGADO EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA


370

ensino das primeiras letras ela usava as cartas de “ABC” e a “CAR-


TILHA DO POVO”.
Além de trabalhar na educação pública Vitória Bezerra ti-
nha sua própria escola particular, que era localizada na sua resi-
dência. Os alunos pagavam uma pequena quantia, como mensali-
dade. (CARTAXO, 2000).
No ano de 1934, Vitória Bezerra tornou-se efetiva na cadeira
rudimentar urbana mista por aprovação no exame que trata da ‘C’,
do art.24 da regulamentação da instrução pública. Tem-se um re-
gistro deste fato ocorrido em uma nota do Jornal a União.
Na figura abaixo tem-se um indício da nomeação de Vitória
Bezerra como professora efetiva.

Figura 1 – Vitoria Bezerra nomeada professora efetiva

Fonte: Acervo digital Jornal A UNIÃO, p.2, 1934

Conforme a figura 1 observa-se que Vitória Bezerra solicita


a sua efetivação no cargo em que foi aprovada.
Nesse sentido, a partir das memórias da professora Vitó-
ria Bezerra, compreende-se que nos anos iniciais do século XX,
o magistério era uma das poucas possibilidades de acesso à vida
pública e ao mercado de trabalho em que as mulheres poderiam
inserir-se. De fato:

DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA • FLAVIA MORAES CARTAXO • DAGMAR ALAÍDE DE LIRA FERREIRA
371

Entre mulheres e educação, o que sempre se esculpiu nas


vidas femininas foi um entrelaçamento de destinos in-
corporando sujeitos históricos aspirando por um lugar
próprio no tecido social e uma profissão que se adaptou
perfeitamente àquilo que elas desejavam, aliando ao de-
sempenho de um trabalho remunerado as aspirações
humanas e afetivas que lhes sempre foram definidas pela
sociedade. (ALMEIDA, 1998, p.26).

Assim sendo, o magistério foi uma profissão que adaptou-se ao


que a sociedade da época esperava das mulheres, pois, era conside-
rada uma atividade que não traria prejuízos a vida privada. De certa
forma, contemplava as aspirações femininas que buscavam o direito
de exercer uma profissão. Além disso, essa profissão era caracteriza-
da como missão e também considerada uma extensão da maternida-
de. Por isso, foi uma função considerada aceitável para as mulheres.
Nos anos iniciais das atividades docentes de Vitória Bezer-
ra, mais precisamente, no ano de 1914, esta começou a ensinar,
apenas, as meninas. Nessa época o ensino era separado por sexo.
Então, as mulheres eram responsáveis pela educação das meninas.
Nesse contexto:
A mão-de-obra feminina na educação principiou a revelar-
-se necessária, tendo em vista, entre outras causas, os im-
pedimentos morais dos professores educarem as meninas
e a recusa à co-educação dos sexos, liderada pelo catolicis-
mo conservador. (ALMEIDA,1998, p. 64).

Nesse sentido, entende-se que a proibição da co-educação


foi um dos fatores que levaram a feminização do magistério, uma
vez que, os professores eram proibidos de ensinarem as meninas.
Outrossim, não era apenas uma separação de corpos, mas também
o ensino destinado era diferenciado. Os meninos tinham uma for-
mação mais intelectualizada, já as meninas aprendiam algumas
noções de leitura e escrita, e, sobretudo, estavam incluídas aulas
de prendas domésticas.

MEMÓRIAS DO LEGADO EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA


372

Portanto, percebe-se que o período em que a professora


Vitória Bezerra exerceu sua profissão docente, era uma época em
que as mulheres ainda estavam vedadas de exercerem outras ativi-
dades, as únicas possibilidades de trabalho para as mulheres eram
as profissões consideradas femininas, a exemplo do magistério.
Na fotografia da página que segue tem-se um raro indício
iconográfico da memória da professora Vitória Bezerra.

Foto 1 – Professora Vitória Bezerra

Fonte: https://www.coisasdecajazeiras.com.br/dona-vitoria-bezerra-em-
minha-memoria/

No recorte acima, tem-se a representação de uma mulher


professora que viveu durante os anos finais do século XIX e mea-
dos do século XX. A figura representa uma mulher de fisionomia
seria, com cabelos presos, vestida com roupas discretas. A mulher
professora deveria ter em sociedade um comportamento exem-
plar, por isso era difundida a imagem da professora como uma
mulher severa e discreta. Afinal, havia um controle sobre a condu-
ta dessas mulheres.
Em relação às práticas em sala de aula da professora Vitória
Bezerra, encontramos alguns indícios no blog Coisas de Cajazeiras
(2019), a partir de uma entrevista com Saulo Perícles Brocos Pires

DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA • FLAVIA MORAES CARTAXO • DAGMAR ALAÍDE DE LIRA FERREIRA
373

Ferreira, no qual o entrevistado relatou as experiências que seus


pais vivenciaram com Vitória Bezerra.
Outras coisas que eu ouvi sobre Dona Vitória, me foi conta-
do por minha mãe, por exemplo, que Salviano Matos de Sá,
que era o pior aluno de sua escola, enganchou uma pena de
escrever no cabelo de minha mãe, e quando ela balançou o
cabelo, essa pena veio a ferir sua a face, e a professora o co-
locou para se ajoelhar sobre caroço de milho. (FERREIRA,
2019 In: COISAS DE CAJAZEIRAS, 2019).

Logo, percebe-se que Vitória Bezerra era muito rígida, princi-


palmente, quando se tratava da indisciplina, quando utilizava como
punição para os indisciplinados, a palmatória, e ajoelhar-se no caro-
ço de milho. De acordo com Nunes (2000), essas práticas eram, ge-
ralmente, muito utilizadas pelos professores e professoras. Existiam
várias formas para o controle da indisciplina tais como: cascudos,
beliscões, palmatória, ajoelhar-se no caroço de milho, e etc.
Além de atuar como professora Vitória Bezerra desempe-
nhou o papel de vice tesoureira na revista feminina cajazeirense
Flor de Liz, essa Revista fazia parte da Ação Social Católica Femi-
nina Cajazeirense. A Flor de Liz era dirigida por mulheres, elas
eram professoras e alunas da Escola Normal de Cajazeiras. Na fi-
gura abaixo tem-se um vestígio da participação da professora na
referida Revista

Figura 2 – Vitória Bezerra na Flor de Liz

Fonte: Flor de Liz,1931,p 17

MEMÓRIAS DO LEGADO EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA


374

Observa-se no recorte acima que Vitória Bezerra tinha sido


reeleita ao cargo de vice tesoureira. A revista Flor de Liz contava
com muitos textos de autoria feminina, elas escreviam sobre di-
versas temáticas, principalmente, sobre educação. Na Revista não
encontramos em nenhuma das edições textos de autoria da pro-
fessora Vitória Bezerra, provavelmente, ela dedicava-se somente
as questões administrativas.
Diante da sua trajetória de dedicação à educação de Cajazei-
ras, no ano de 1969, Vitória Bezerra tornou-se patronesse de uma
escola municipal criada no mesmo ano do seu falecimento. A esco-
la passou a ser designada como: E.M.E.I.E.F VITÓRIA BEZERRA. A
homenagem patronímica destinada à professora Vitória Bezerra
pode ser considerada uma conquista para a história das mulheres,
pois, durante anos a história das mulheres estava na obscurida-
de da historiografia oficial. De fato: “As mulheres ficaram muito
tempo fora desse relato, como se destinadas á obscuridade de uma
inenarrável reprodução, estivessem fora do tempo, ou pelo menos,
fora do acontecimento”. (PERROT, 2019, p.16). Nesse sentido, o
nome de uma mulher em evidência numa fachada de escola, pode
ser considerado uma homenagem muito importante, sobretudo,
quando se trata de uma mulher professora, uma vez que, duran-
te muitas décadas elas foram a maioria nessa função, por isso são
merecedoras de todos os meios de reconhecimento.
A história de Vitória Bezerra é conhecida na cidade de Ca-
jazeiras. Já foi biografada em breves páginas do livro “Mulheres
do Oeste” (2000) escrito pela historiadora cajazeirense Rosilda
Cartaxo, que foi aluna de Vitória Bezerra. Vitória Bezerra é uma
das poucas mulheres em evidência na ACAL (Academia de Artes e
Letras), pois, recentemente tornou-se patronesse.
Na figura a seguir tem-se mais um raro vestígio da memória
de Vitória Bezerra. Trata-se de um registro de óbito.

DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA • FLAVIA MORAES CARTAXO • DAGMAR ALAÍDE DE LIRA FERREIRA
375

Figura 3 – registro de óbito de Vitória Bezerra

Fonte: Acervo da Catedral Nossa Senhora da Piedade.


Disponível em: https://www.familysearch.org/pt/.

Vale destacar que esta fonte documental foi encontrada no


site “Family search”, trata-se de uma organização criada pela igre-
ja de Jesus Cristo dos últimos dias. Esta plataforma reúne arquivos
de igrejas de mais de 100 países. Entre esses constam registros da
Catedral Nossa Senhora da Piedade localizada em Cajazeiras-PB.
Na fonte em análise observa-se que em 10 de janeiro de 1969,
às 19 horas faleceu aos 95 anos de idade a professora aposentada
Vitória Bezerra, em decorrência de uma arteriopatia. Conforme a
fonte acima consta que Vitória Bezerra era uma mulher branca e
solteira. Outrossim, verifica-se no documento em análise que esta
deixou bens materiais.
Sendo assim, diante dos indícios da memória da professo-
ra Vitória Bezerra, compreende-se que o magistério garantia sua
subsistência, visto que, era uma mulher solteira, logo, era a única
responsável pela sua sobrevivência, por isso, atuava no ensino pú-
blico, e também em sua escola privada. Nesse sentido, a profissão
de professora foi uma alternativa viável, para a profissionalização
das mulheres. Além disso, permitia que as mulheres vivessem com
dignidade, sem depender necessariamente de um matrimônio.

MEMÓRIAS DO LEGADO EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA


376

CONCLUSÃO

A partir dos indícios da memória de Vitória Bezerra, ve-


rificou-se que durante muitos anos esta dedicou-se a educação
da cidade de Cajazeiras-PB. Atuou no ensino público, primeira-
mente, através de nomeação e, posteriormente, como professo-
ra efetiva. Além do trabalho realizado no ensino público Vitória
Bezerra tinha sua própria escola particular situada na sua resi-
dência. Com base nessas pistas entende-se que a mesma tinha
a profissão de professora como principal meio que garantia sua
sobrevivência, uma vez que, era uma mulher solteira, diferente-
mente, de muitas mulheres de sua época ela era a única respon-
sável pela sua subsistência.
Vitória Bezerra destacou-se no cenário cajazeirense não so-
mente como professora, mas, também como membro de uma re-
vista feminina, infelizmente, não encontramos vestígios de textos
de sua autoria, a única pista que temos consta que ela ocupava a
função de vice tesoureira.
Diante da trajetória educacional desenvolvida na cidade
de Cajazeiras, Vitória Bezerra recebeu várias honrarias, tornan-
do-se patronesse de uma escola municipal. Recentemente tor-
nou-se patronesse da Academia de Letras e Artes de Cajazeiras.
Outrossim, já foi biografada em breves páginas de um livro de
biografias, inclusive, a autora desse livro foi uma das alunas de
Vitória Bezerra.
Portanto, importa salientar que trazer à tona a história des-
sa professora, pode-se constituir uma contribuição importante
para a História da Educação de Cajazeiras, assim como para a his-
tória das mulheres, visto que, cada vez mais estar descortinando-
-se as memórias e histórias das mulheres.

DÉBIA SUÊNIA DA SILVA SOUSA • FLAVIA MORAES CARTAXO • DAGMAR ALAÍDE DE LIRA FERREIRA
377

REFERÊNCIAS

CARTAXO, R. Mulheres do Oeste. Teresina: Halley S.A, 2000.


FERREIRA, S. P. B. P. (2019). In: COISAS DE CAJAZEIRAS. Dispo-
nível em <https://www.coisasdecajazeiras.com.br/dona-vitoria-
-bezerra-em-minha-memoria/> Acesso em: 16 de dezembro 2019.
FLOR DE LIZ. Revista Mensal ilustrada. Officinas Graphicas do Rio
D´O Peixe. Anno 4. Num. 10. Cajazeiras- Parahyba, janeiro de 1931.
GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São
Paulo: Cia. das Letras, 1989.
NUNES, C. (Des) Encantos da modernidade pedagógica. In: LOPES,
E. M. T.et al. (Org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
MOREIRA NETO, M. Patronesse Vitória Bezerra de Mello- (1873-
1969). In: SOARES, Francelino. Patronos e Patronesses. Cajazeiras:
Editora LTDA, 2019.
PERROT, M. Minha história das mulheres. 2.ed.Trad. Angela M. S.
Côrrea. São Paulo: Contexto, 2019.
Acervo da Catedral Nossa Senhora da Piedade. Disponível em:
https://www.familysearch.org/pt/ Acesso em: 21 de Outubro de
2020.

MEMÓRIAS DO LEGADO EDUCACIONAL DE VITÓRIA BEZERRA


378

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS


E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O
PROCESSO DE FEITOS DE SENTIDO
Lucineide Matos Lopes1
Maria Margarete Fernandes de Sousa2

RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o ethos masculino de cre-
dibilidade e identificação projetado por meio dos efeitos imagéticos pro-
duzidos pela imagem do corpo, em anúncios publicitários de perfume.
Para o seu desenvolvimento, apoiamo-nos nos pressupostos teóricos da
Análise de Discurso Semiolinguística de Charaudeau (2010a). Para tratar
sobre a noção de ethos,  seguimos Charaudeau (2013b); para o discurso
publicitário, utilizamos os conceitos aportados por Charaudeau (2009;
2010b). Quanto à metodologia, realizamos uma pesquisa indutiva, do tipo
analítico-discursiva. O corpus compõe-se anúncios os quais serão repre-
sentados, neste estudo, por quatro exemplares. Analisamos as seguintes
categorias:  ethos  de credibilidade e  o ethos  de identificação (CHARAU-
DEAU, 2013a; 2013b) para caracterizar o conjunto de ethé projetado nos
anúncios; os efeitos visados e produzidos (CHARAUDEAU, 2013c) para
investigar os efeitos imagéticos. Como resultados, constatamos que há
uma relação entre o conjunto de ethé projetado nos anúncios e os efeitos
visados e produzidos com a finalidade de reforçar o poder de sedução e
persuasão dos anúncios de perfume.
Palavras-chave:  Ethos masculino. Efeitos imagéticos. Anúncios
publicitários de perfume.

ABSTRACT
This article aims to analyze the male ethos of credibility and
identification projected through the imagery effects produced by the
body image in perfume advertisements. For its development, we support
on the theoretical assumptions of Patrick Charaudeau’s Semiolinguistic
Discourse Analysis (2010a). To address the notion of ethos, we follow
Charaudeau (2013b); for advertising discourse, we used the concepts

LUCINEIDE MATOS LOPES • MARIA MARGARETE FERNANDES DE SOUSA


379

provided by Charaudeau (2009; 2010b). As for the methodological point


of view, we carried out an inductive research, of the analytical-discursive
type. The corpus consists of advertisements which are represented,
in this study, by four copies. We analyzed the following categories:
credibility ethos and identification ethos (CHARAUDEAU, 2013a; 2013b)
to characterize the set of ethé projected in the advertisements; the effects
targeted and effects produced (CHARAUDEAU, 2013c) to investigate the
imagery effects. As results, we found that there is a relationship between
the set of ethé projected in the advertisiments and the targeted effects
and produced with the purpose of reinforcing the power of seduction
and persuasion of perfume advertisements.
Keywords: Male ethos. Imagery effects. Perfume advertisements.

INTRODUÇÃO

Este artigo é um recorte de nossa dissertação “A construção


do ethos masculino em anúncios publicitários de perfume à luz de
uma análise semiolinguística”. Nesta pesquisa, investigamos como
o ethos masculino é construído nos anúncios publicitários de per-
fume considerando as dimensões discursiva, imagética e social.
Para este trabalho, discutimos a construção do ethos masculino,
entretanto nosso foco incide nos efeitos imagéticos.
Nesse sentido, temos como objetivo analisar o ethos mas-
culino de credibilidade e identificação projetado nos anúncios de
perfume e os efeitos imagéticos produzidos pela imagem do cor-
po. Para tanto, as reflexões que partem desse objetivo maior nos
conferem como objetivos específicos: i) Caracterizar o conjunto
de ethé projetado na encenação linguageira que configura o ethos
masculino que se manifesta nos anúncios; ii) Descrever os efeitos
visados e produzidos que contribuem na construção da imagem
fotográfica na relação com o ethos masculino, nos anúncios de
perfume.
O nosso objeto, o ethos masculino, insere-se na sociedade de
consumo que deixa a maioria das pessoas como vítima por levá-

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O PROCESSO DE FEITOS DE SENTIDO


380

-las a comprar coisas de que, muitas vezes, não têm necessidade.


Isto ocorre por meio de um discurso de dominação, pautado no
consumismo que atravessa a publicidade e que não nos deixa re-
fletir sobre essa problemática do consumo. As pessoas são, a todo
instante, assediadas por apelos ao consumo que apregoa sucesso,
felicidade, inclusão nas classes sociais mais abastadas, o que, sabe-
mos, é enganoso.
Dessa forma, nessa sociedade de consumo a masculinidade
modifica-se ao agregar elementos como cuidados com a beleza que
antes era preocupação exclusiva do universo feminino. Essa con-
juntura representa a cenografia para o ethos masculino emergir,
pois o conjunto de ethé projetado nos anúncios de perfume emerge
desse contexto de capitalismo, consumo, sociedade de consumo.
Diante desse contexto atual, justificamos nosso trabalho
pela necessidade de reflexões sobre essas questões a partir de es-
tratégias discursivas, no caso, que visam ao ethos masculino que é
construído por meio da imagem fotográfica para mostrar o poder
do discurso na linguagem. Além disso, apontamos a necessidade
de associar estas questões à compreensão das nuances da lingua-
gem publicitária a partir do gênero anúncio publicitário, gênero
rico em estratégias persuasivas, em especial, a construção do ethos
masculino, tendo como fim, auxiliar os prováveis consumidores à
compreensão de um consumo consciente.
Na seção a seguir, discutimos à respeito dos tipos de ethé de
credibilidade e identificação no discurso publicitário.

OS ETHÉ CREDIBILIDADE E IDENTIFICAÇÃO NO


DISCURSO PUBLICITÁRIO

O público masculino, consumidores de produtos de beleza,


tem crescido, significativamente, nos últimos anos, fato que pode
ser comprovado pela quantidade de produtos de beleza, como hidra-

LUCINEIDE MATOS LOPES • MARIA MARGARETE FERNANDES DE SOUSA


381

tantes, sabonetes, perfumes, oferecidos pelas marcas em geral, que


são destinados aos consumidores masculinos. Essa realidade tem
proporcionado o surgimento de um conjunto de ethé masculino,
resultante das diversas “faces” desses consumidores frente a uma
necessidade que se apresenta: cuidar do corpo para ter ­sucesso.
Do significativo conjunto de ethé identificado por C
­ haraudeau
(2013b), destacamos o conjunto de ethé de credibilidade que o autor
institui para tratar do discurso político que se configura como es-
tratégia discursiva que se liga ao discurso da razão e possibilita a
fabricação de imagens que conduzem a persuasão de um dado pú-
blico, através da interação que se constrói entre o que o sujeito quer
parecer e o que ele é, de fato.
Por outro lado, nos anúncios publicitários, a construção do
ethos não acontece como no discurso político, embora reconhe-
çamos que esse discurso também apela para a credibilidade. Por
isso, diferentemente do discurso político que Charaudeau (2013b)
já identificou, esse conjunto de ethé, na publicidade, é necessário
que seja construído (ou pressuposto). Logo, nos anúncios a credi-
bilidade seria dada também pela imagem do corpo masculino para
que o consumidor acredite que o perfume, no caso, encontra-se as-
sociado àquele corpo.
No entanto, apesar de haver pressuposição, a escolha do
modelo que compõe o anúncio não é por acaso. Em geral, a imagem
do modelo tem algo que reforça a credibilidade ao anúncio, pois
são imagens pensadas para que se acredite que pessoas que usam o
perfume anunciado tem um corpo bem definido, musculoso como
é comum na imagem do anúncio.
Quanto ao ethé de Identificação, segundo tipo pensado por
Charaudeau (2013b) para tratar da construção do ethos no discur-
so político, partimos dos seguintes questionamentos: As especifi-
cidades do ethos de identificação no discurso político podem ser
encontradas no discurso publicitário? Até que ponto o conjunto

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O PROCESSO DE FEITOS DE SENTIDO


382

de ethé de identificação característico do discurso político adé-


qua-se ao discurso publicitário?
Na verdade, a construção do ethos ocorre “em uma relação
triangular entre si, o outro e um terceiro ausente” (­CHARAUDEAU,
2013b, p.137). A noção de terceiro ausente compreende os valores
que se encontram em referência para o sujeito enunciador. Desse
modo, o conjunto de ethé está direcionado ao mesmo tempo para
si mesmo, para o público e para esses valores de referência. Assim,
as imagens são retiradas do afeto social, enquanto que o público
direciona sua identidade para aquele a quem foi levado ao conven-
cimento através de um processo de identificação.
Assim, esses ethé, credibilidade e identificação, são cons-
truídos na publicidade a partir de uma relação de concorrência,
e não de rivalidade, como ocorre no discurso político. No entanto,
embora diferentes, esses discursos aproximam-se por apresenta-
rem em sua constituição a atividade da persuasão e de sedução,
mesmo que o discurso político precise da aprovação coletiva e no
publicitário, o beneficiário é individual. Da mesma forma, há ou-
tro ponto comum, pois os dois convergem em uma visada de inci-
tação a fazer, no entanto, no discurso publicitário há o caráter de
“fazer crer” , que é um “dever crer” em um bem de consumo como
a realização de um sonho
Diante do exposto, faz-se necessário esclarecer como esses
ethé são construídos, o que será apresentado, na próxima seção,
quando tratamos dos procedimentos metodológicos.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Essa pesquisa caracteriza-se como de base qualitativa, do


tipo analítico-discursiva, já que toma como pressuposto teórico-
-metodológico a análise de discurso na perspectiva da Teoria Se-
miolinguística de Charaudeau (2010a). Ele defende que todo sujei-

LUCINEIDE MATOS LOPES • MARIA MARGARETE FERNANDES DE SOUSA


383

to tem como projeto de fala atingir seu parceiro ao produzir um


ato de linguagem. Assim, todo o seu dizer é para alcançar o outro e
isso se faz na interação, portanto, ao interagir seu projeto de dizer
é carregado de intencionalidade.
Quanto ao quadro metodológico, apresenta caráter empíri-
co-dedutivo, pois o pesquisador parte de um material empírico, a
linguagem que se configura verbalmente. Além disso, observa essa
configuração, que passa a ser manipulada para que os recortes se-
jam realizados, ao mesmo tempo em que as categorias conceituais
são determinadas.
No que diz respeito ao universo, trata-se da construção do
ethos masculino a partir do conjunto de ethé que emerge na en-
cenação linguageira e sua relação com os efeitos imagéticos, em
anúncios publicitários de perfume. Os ethé de credibilidade e de
identificação são analisados, tomando parâmetros do discurso po-
lítico para construir o discurso publicitário, a partir das ativida-
des de persuasão e sedução e da visada de incitação a fazer.
Assim, para esse recorte, trabalhamos com quatro exem-
plares de textos de anúncios de perfume de diferentes marcas,
coletados do meio digital. A partir dos 04 (quatro) exemplares,
operamos com as seguintes categorias analíticas: o ethos de cre-
dibilidade, e o ethos de identificação para o tratamento dos dados
referente a caracterização do ethos; os efeitos visados (focalização
e dramatização), e os efeitos produzidos (punctum e studium), para
a análise da imagem fotográfica na relação com o ethos masculino.
Do ponto de vista da semiolinguística, como metodologia
de análise, trabalhamos a partir da correspondência entre os ethé
propostos por Charaudeau (2013b) e os propostos por nós, pois
operamos a construção do ethos considerando a relação triangu-
lar entre o locutor, o interlocutor e um terceiro ausente (valores
de referência).
Na seção que segue, tratamos da análise dos dados.

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O PROCESSO DE FEITOS DE SENTIDO


384

ANÁLISE DO CONJUNTO DE ETHÉ E OS EFEITOS


IMAGÉTICOS

Como sinalizamos, apostamos na construção do ethos


masculino de conquistador, de sedutor e de semideus no discur-
so publicitário. Como já mostramos, esses ethé são construídos
também, haja vista a associação que as marcas fazem, muito re-
correntemente, a personalidades públicas do meio político, artís-
tico, econômico, divulgadas nas mídias, em geral. Com isso, essas
marcas querem levar o provável consumidor a se identificar com
essas personalidades que passam uma imagem de sucesso, felici-
dade, por exemplo.
Para o conjunto de ethé característicos do ethos masculino
que são projetados foi necessário, como explicamos na seção an-
terior, propormos algumas denominações, já que a taxonomia de
ethos de identificação criada por Charaudeau (2013b) para tratar
do discurso político não abarca o ethos masculino nos anúncios
publicitários de perfume, devido a divergências entre o discurso
publicitário e o discurso político. Portanto, ao analisarmos os tex-
tos, caracterizamos os seguintes tipos de ethé: o ethos de conquis-
tador (no anúncio 01); o ethos de sedutor (nos anúncios 02 e 04); o
ethos de semideus (no anúncio 03).
Para melhor compreendermos as características desses
ethé masculinos e sua relação com os efeitos imagéticos, observe-
mos as análises que seguem.

LUCINEIDE MATOS LOPES • MARIA MARGARETE FERNANDES DE SOUSA


385

Anúncio 01 – Latitude Expedition

Anúncio 01 – Latitude Expedition

Fonte: Disponível em https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-


-1073429543-perfume-lattitude- expedition-hinode-identico-ao-invictus-_JM

Neste anúncio, evidencia-se o ethos de conquistador que se


constitui a partir de um imaginário coletivo cuja masculinidade
encontra-se associada à realização de conquistas (materiais e/ou
sentimentais), uma força de explorador, desbravador, que conse-
gue superar dificuldades, atingir seus objetivos, alcançar vitórias,
como sugere a imagem do anúncio a partir do modelo mostrar-se
em um ambiente adverso, mas pronto para enfrentar os perigos,
desafios e poder conquistar tudo o que deseja.
No que se refere aos efeitos imagéticos, foi produzido o efei-
to de descentramento do mundo representado, com o campo de
visão aberto, em direção a um plano de fundo que nos faz ver uma
paisagem com aparência de deserto, por não apresentar vegeta-
ção, solo pedregoso, com cores quentes, que evoca o calor desse
tipo de ambiente. A figura masculina do lado esquerdo do anúncio
encontra-se usando roupas leves, carrega uma mochila e parece
fitar o horizonte a sua frente. Do lado direito, a imagem do perfu-
me associada à cena para “fazer crer” (CHARAUDEAU, 2010b) que
aquele que usa o perfume é corajoso e destemido como o modelo

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O PROCESSO DE FEITOS DE SENTIDO


386

do anúncio, sente-se atraído pela imagem construída e coloca sua


adesão.
Dessa forma, “a representação do mundo, construída por
um determinado modo de representação” (CHARAUDEAU, 2013c,
p.386), ou seja, uma situação de vida que precisa explorar o deser-
to, o desconhecido é a maneira encontrada para produzir o efeito
de focalização no qual o enquadramento do representado, a ima-
gem do corpo e do perfume encontram-se descentralizados. Nesse
contexto, conforme Charaudeau (2013c), essa visão múltipla de
descentramento que opera com a abertura do representado, o cor-
po do modelo e o perfume, faz com que o efeito de dramatização
apresente uma diminuição.
Assim sendo, vale reforçar que o ethos de conquistador é
construído pela linguagem que a instância publicitária constrói
a partir da estratégia de “fazer crer” (CHARAUDEAU, 2010b) que
o sujeito falante usa, e coloca o sujeito receptor em posição de
“dever crer” (CHARAUDEAU, 2010b). Além disso, para levar o in-
terlocutor ao “comportamento de adesão” (CHARAUDEAU, p.137),
apontamos o caráter de promover admiração por desafios.
No próximo anúncio, além de caracterizar o ethos mascu-
lino de sedutor, também pretendemos mostrar sua construção a
partir dos efeitos imagéticos. Assim, por meio do efeito de centra-
mento, focamos no efeito de focalização que compreende a produ-
ção do representado em uma visão única, focalizada, e permite o
aumento do efeito de dramatização (CHARAUDEAU, 2013c). Para
tanto, examinemos o anúncio 02.

LUCINEIDE MATOS LOPES • MARIA MARGARETE FERNANDES DE SOUSA


387

Anúncio 02 – Versace Pour Homme

Fonte: Disponível em: http://perfumedarosanegra. blogspot.com/2009/09/


perfume zz-review-versace-pour-homme-for.html

Este anúncio caracteriza-se por apresentar traços do ethos


de sedutor, como por exemplo, o olhar envolvente e penetrante do
modelo, os traços faciais bem marcados como boca bem delinea-
da, com simetria entre os lábios e nariz, em harmonia com os de-
mais elementos faciais (olhos, sobrancelhas, queixo). Todos esses
elementos integram uma imagem de virilidade, e ao mesmo tempo
confiança que atrai a atenção e reforça o “imaginário” (CHARAU-
DEAU, 2013b) de masculinidade que coloca o homem como amante
perfeito.
No que se refere à imagem fotográfica, o acesso ao mundo
representado é produzido por meio de enquadramento fechado
no rosto do modelo, com campo de visão único, e não múltiplo. O
olhar intenso, impregnante do modelo, em conjunto com os tra-
ços faciais harmônicos que compõem seu rosto produzem o efei-
to de centramento que leva o efeito de dramatização a aumentar

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O PROCESSO DE FEITOS DE SENTIDO


388

(­CHARAUDEAU, 2013b), e com isso, o efeito de sedução surge. As-


sim, a manipulação, no efeito de focalização encontra-se marcada
ao associar o perfume a esse efeito de sedução. Diante disso, cons-
tatamos que os efeitos de focalização e dramatização possuem o
papel de construir a imagem de sedução a qual faz crer que quem
consome o perfume torna-se sedutor como o modelo do anúncio.
Assim, o consumidor tem a sensação de que pode conquistar (se-
duzir) quem quiser.
Desse modo, a diminuição do efeito de dramatização, como
ocorre no anúncio 01 (um), e o aumento desse efeito, como no
anúncio 02 (dois), encontram-se em ralação à abertura e ao fecha-
mento do representado, ao corpo do modelo e ao perfume. Além
disso, o efeito de focalização, ou seja, a maneira como o corpo do
modelo e o perfume são focalizados apresentam-se relacionados
aos ethé de conquistador (anúncio 01) e sedutor (anúncio 02).
Para melhor caracterizar o ethos masculino de semideus e
relacioná-lo ao efeito de punctum na imagem fotográfica, apresen-
tamos o anúncio 03 (três), que bem exemplifica essas questões.

Anúncio 03 – Invictus

Fonte: Disponível em: https://absurdinhus.wordpress.com /2013/12/17/perfume-


-paco-rabanne-lanca-invictus-a-sua-nova-fragrancia-para-homens/

LUCINEIDE MATOS LOPES • MARIA MARGARETE FERNANDES DE SOUSA


389

O anúncio do perfume Invictus exemplifica o tipo de ethos


que denominamos semideus por manifestar os seguintes traços
característicos: figura de aparência perfeita, imagem de homem
forte, musculoso, corpo esbelto, que participa do imaginário de
perfeição corporal dos deuses.
Sobre os efeitos produzidos, a imagem do modelo encon-
tra-se enquadrada da cintura para cima, com o corpo à mostra.
O visível enquadrado, ou seja, o que é dado a ver (CHARAUDEAU,
2013b), apresenta características físicas perfeitas como corpo es-
belto e musculoso, abdômen definido, tatuagens que valorizam a
ideia de perfeição corporal. Essas características sugerem um se-
mideus grego, o “visível não enquadrado” (CHARAUDEAU, 2013c).
Parece encontrar-se em um pódio, e segura uma taça, elementos
associados a ideia de vencedor. A composição se complementa
com nuvens como pano de fundo que reforça a ligação com a ideia
de divindade. Do lado esquerdo do modelo, o perfume em formato
de taça que faz relação com a situação de vitória, de poder em que
se encontra o modelo.
Dessa forma, como “o punctum é uma captação de si” (CHA-
RAUDEAU, 2013c, p. 391), a imagem provoca no sujeito olhante um
sentimento de poder, de vitória, de divino, de semideus, sobrepon-
do-se aos outros. Assim sendo, esse efeito de sentimento associa-
do ao “fenômeno de instantaneidade da foto que remete o repre-
sentado (capturado) à sua própria imanência” (CHARAUDEAU,
2013c, p.392) leva o sujeito olhante ao efeito de sideração, o olhar
paralisado para a imagem “que fala no momento que ela se cala”
(­CHARAUDEAU, 2013c, p.392). Portanto, o efeito de sideração que
ocorre pelo trabalho de interpretação do sujeito receptor é provo-
cado pela imagem fotográfica que, assim, contribui para sua cons-
trução e a do ethos masculino de semideus.
Para caracterizar o ethos masculino em relação com o efei-
to de studium na construção da imagem fotográfica, ou seja, esse
processo de mobilização de imaginários sociais como “atividade

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O PROCESSO DE FEITOS DE SENTIDO


390

de percepção significante sobre o mundo” (CHARAUDEAU, 203b,


p.204) pelo sujeito olhante, exemplificamos, logo a seguir, ao des-
tacar o anúncio 04 (quatro) que evidencia o ethos de sedutor e esse
efeito.

Anúncio 04 – Azzaro

Fonte: Disponível em: https://www.lotusperfumaria.com/-perfume-azzaro-


pour-homme-eau-de-toilette/prod-1997305/

Este anúncio apresenta características que compõem o


ethos masculino de sedutor, por expressar-se pela importância da
conquista. Nesse ethos masculino, seduzir é sua manifestação, que
se apresenta por meio de uma força no olhar que revela a deter-
minação pela sedução, além da estrutura corporal forte e traços
faciais harmônicos e bem definidos. A masculinidade é reforçada
pelo imaginário de natureza sedutora masculina que é reconheci-
da. Portanto, por meio do olhar, a imagem de coragem, de deter-
minação, de força e, ao mesmo tempo, o ar romântico, fazem desse
tipo de ethos uma manifestação importante na construção desse
ethos masculino.
Para analisar a imagem fotográfica, esse anúncio apresenta
em seu enquadramento a imagem de um modelo com um campo
de visão fechado em seu rosto e parte do corpo. Sobressaem-se

LUCINEIDE MATOS LOPES • MARIA MARGARETE FERNANDES DE SOUSA


391

na imagem o formato de seu rosto, sobrancelha bem delineada e


traços faciais em harmonia – olhos, nariz e boca. Outro ponto fo-
calizado é o olhar do modelo, ao mesmo tempo seguro de si e en-
volvente que traz para a cena um ar romântico, de sedução, carac-
terístico do ethos de sedutor. Além disso, o imaginário do homem
sedutor, que tem várias aventuras amorosas é fortalecido e valori-
zado socialmente. Então, “fazer crer” (CHARAUDEAU, 2010b) no
sonho da sedução leva o consumidor a “dever crer” que necessita
consumir o perfume.
Para compor esse ethos masculino de sedutor, a presen-
ça feminina é marcada por um imaginário de submissão que se
evidencia a partir do enquadramento do representado, a modelo
abraçada ao modelo em posição por atrás, de cabeça baixa, com os
cabelos cobrindo seu rosto. Na verdade, essa visão de sua aparên-
cia justifica-se pelo fato de que ela está ali para dar mais destaque
e superioridade à figura masculina. Além disso, sua mão encon-
tra-se fechada por prender à camisa do modelo. Este índice evoca
a imagem da figura feminina a qual tem necessidade desse ideal de
masculinidade que seduz e protege, já que “os eventos mostrados
lembram outros” (CHARAUDEAU, 2013c, p. 393).
Por sua vez, a mão esquerda do modelo encontra-se apoiada
sobre a mão da figura feminina de maneira carinhosa e ao mesmo
tempo firme, que confirma a “imagem-evocação” (CHARAUDEAU,
2013C, p. 393) de segurança, proteção que se apresenta como he-
gemônico em relação ao patriarcado e ao imaginário de sedução.
O enquadramento do perfume do lado esquerdo da imagem, em
tamanho pequeno projeta o ethos masculino de sedutor, imagem
daquele que é amante ideal, protege e oferece segurança à figura
feminina, e materializa-se no perfume Azzaro para levar o possí-
vel comprador a crer que os que usam o perfume são sedutores.
Portanto, a “imagem-evocação” (CHARAUDEAU, 2013c,
p.393) leva o possível consumidor a mobilizar o imaginário de se-
dução que ratifica o poder do patriarcado ao considerar a afirma-

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O PROCESSO DE FEITOS DE SENTIDO


392

ção da masculinidade, pois envolve a figura feminina por meio da


sedução, proteção e segurança. Dessa forma, concluímos que esse
efeito corrobora na construção da imagem fotográfica e do ethos
masculino de sedutor projetado na imagem.
Em suma, para finalizar destacamos que, embora esses ethé
masculino de conquistador, semideus e sedutor predominem em
cada um desses anúncios, nem sempre essas “imagens” são exclu-
dentes. Ao mesmo tempo em que predomina o ethos de sedutor
pode haver ali também o de conquistador, como no anúncio 4. Ob-
servamos que a relação da figura masculina com a feminina sugere
sedução e conquista: a imagem da figura feminina foi conquistada,
atraída, pela figura sedutora masculina.

CONCLUSÃO

Como conclusão, constatamos que a categoria de ethos de


credibilidade conforme pensada para o discurso político não se
ajusta ao discurso publicitário. A construção do ethos de credibi-
lidade nesse discurso encontra-se também na imagem do modelo
escolhido para se associar ao produto. Para classificar o ethos de
masculino de identificação, propomos a seguinte denominação:
ethos de conquistador, de semideus e sedutor.
Verificamos também que os efeitos de focalização, dramati-
zação, punctum e studium apresentam relação com o conjunto de
ethé projetado e auxiliam na construção do ethos masculino para
reforçar a sedução e persuasão e levar o consumidor a compra.
Em fim, destacamos que os resultados deixam evidentes que
os efeitos imagéticos apresentam-se como propriedades discursi-
vas que possuem a finalidade de construir o ethos masculino, nos
anúncios publicitários de perfume. Além disso, pudemos consta-
tar que os ethé de conquistador, sedutor e semideus construídos
a partir dos efeitos visados e produzidos, compõem-se estratégia
discursiva de sedução, própria do discurso publicitário, para ofe-

LUCINEIDE MATOS LOPES • MARIA MARGARETE FERNANDES DE SOUSA


393

recer senão a opção do consumo, seu propósito definido que torna


o consumidor refém, nesses tempos de sociedade de consumo.

REFERÊNCIAS

CHARAUDEAU, Patrick. Il n‟y a pas de societe sans discours pro-


pagandiste. In: OLLIVIER-YANIV, Caroline; RINN, Michael. (org.).
Communication de l’État et gouvernement social. Presses Univer-
sitaires de Grenoble, 2009b. Disponível em:<http://www.patrick
charaudeau.com/Il-n-y-a-pas-desociete-sans.html>. Acesso em:
22 set. 2020.
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso:modos de organiza-
ção. São Paulo: Contexto, 2010a.
CHARAUDEAU, Patrick. O discurso propagandista: uma tipologia.
Tradução MENDES, Emília e MELLO, Judite Ana Aiala de. In: MA-
CEDO, Ida Lúcia.; MELLO, Renato. Análises do Discurso Hoje. v.3.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira 2010, p.57 -58, 2010b.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto,
2013a.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. São Paulo: Contexto,
2013b.
CHARAUDEAU, Patrick. Imagem, mídia e política:construção,
efeitos de sentido, dramatização, ética. In: MENDES, Emília et al
(Org.). Imagem e discurso. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2013c.

ETHOS, ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS E IMAGEM FOTOGRÁFICA: O PROCESSO DE FEITOS DE SENTIDO


394

TRABALHO E PRÁXIS NA
CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA
EMANCIPADORA
Francisco Ernande Arcanjo Silva1
Rosalho da Costa Silva 2

RESUMO
No contexto atual existem diferentes propostas pedagógicas que
desconectam a teoria da prática. A pesquisa emerge do interesse em
apresentar a importância das categorias trabalho e práxis para a cons-
trução de uma pedagogia emancipadora, conforme a experiência do Mo-
vimento Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Objetivou-se por meio
de uma pesquisa bibliográfica, de abordagem qualitativa, identificar a
importância das duas categorias citadas anteriormente na construção
da pedagogia do Movimento. Perguntou-se: que importância tem estas
categorias na construção da pedagogia do MST? Os resultados foram
analisados a luz do método histórico-dialético. O texto ficou dividido nas
seções: introdução, trabalho e formação humana, Pedagogia do Oprimi-
do e Práxis, Pedagogia do MST. Este processo chegou a consideração de
que o trabalho e a práxis são categorias imprescindíveis para a constru-
ção da pedagogia do MST.
Palavras-chave: Trabalho e práxis. Pedagogia do Oprimido. Eman-
cipação Humana

ABSTRACT
In the current context, there are different pedagogical proposals
that disconnect theory from practice. The research emerges from the
interest by presenting the importance of the categories such as work
and praxis in order to construct an emancipatory pedagogy, according
1 Bacharelado em Serviço Social (FATENE), licenciando em Docência em História
(FAEL) especialista em Ensino de Ciências Humanas (IFCE), especialista em Ges-
tão Estratégica na Área Social (FAEL), especialista em Gestão em Saúde (UNILAB).
2 Professor da rede pública, licenciatura em pedagogia (UNIJUI) graduado em geo-
grafia(UVA), mestrando em Educação (UECE), especialista em Estudos Latino Ame-
ricanos(UFJF) e especialista em Cultura Popular e Educação do Campo(UFCA).

FRANCISCO ERNANDE ARCANJO SILVA • ROSALHO DA COSTA SILVA


395

to the experiences from the Movimento dos Sem Terra (MST). This
paper is a bibliographic research, with a qualitative approach aiming to
identify the importance of these two categories into the construction of
this social movement pedagogy. The matter asked was: How important
are these categories inside the MST pedagogy constrution? The results
were analyzed through the view of the historical dialectical method. This
text structure was divided in the following sections: introduction, work
and human formation, social oppressed pedagogy and praxis, the MST
pedagogy . The following process came to conclude that work and praxis
are essential categories for the construction of the MST pedagogy.
Keywords: Work and Praxis. Social Oppressed Pedagogy. Human
Emancipation.

INTRODUÇÃO

A pesquisa “Trabalho e Práxis na Construção de uma Peda-


gogia Emancipadora” emergiu pela observação da atual realidade
em que afloram diferentes práticas pedagógicas que desvinculam
a teoria da prática no sentido da formação voltada á emancipação
do individuo e da sociedade, mas focadas aos interesses da ordem
vigente em que o modo de produção dividido tende a formar o in-
dividuo, também, dividido, por considerar este unilateralmente.
Por isto, nossa justificativa parte da ideia de que faz-se ne-
cessário defender propostas educacionais em que considere o ser
humano em sua totalidade para que possa emancipá-lo. Para isto
urge a necessidade de pedagogias que considera a práxis e o tra-
balho como relevantes, como temos percebido na experiência do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o que nos leva
a perguntar: que importância este Movimento Social tem dado as
estas duas categorias na construção da sua pedagogia?
Nosso objetivo foi identificar como tem se dado a contribui-
ção das categorias trabalho e práxis na construção da pedagogia
do MST como relevantes a emancipação humana? Para isto, uti-

TRABALHO E PRÁXIS NA CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA EMANCIPADORA


396

lizamos de uma abordagem qualitativa por meio de um apanhado


bibliográfico, tendo a contribuição de Manacorda (1992), Freire
(2005) e Caldart (2015). Usamos algumas citações textuais sem
desvinculá-los do todo das obras dos autores no sentido do pen-
samento que defendem quanto ao assunto abordado. No trabalho
“Marx e a Pedagogia Moderna” a questão trabalho e pedagogia é
basilar ao Autor e para o que buscamos. Na obra “Pedagogia do
Oprimido”, a práxis seria como a “espinha dorsal” de sua proposta
pedagógica e bem condizente com nosso objetivo. Por fim, nas ci-
tações de Caldart, há uma clareza quanto às duas categorias para
a pedagogia do MST.
A análise dos resultados deu-se pelo método histórico-
-dialético, devido a sua relevância no tipo de abordagem metodo-
lógica usada na pesquisa. Para Gil (2008, p. 14) a dialética favorece
interpretar a realidade, considerando sua totalidade e dinâmica.
O trabalho, por fim, ficou organizado em quatro seções: Introdu-
ção, o trabalho como necessidade à emancipação da pessoa huma-
na (MANACORDA, 1992), a Pedagogia do Oprimido como uma pro-
posta de práxis educativa (FREIRE, 2005), as categorias trabalho e
práxis na construção da pedagogia do MST (CALDART, 2015).

A RELAÇÃO TRABALHO E EDUCAÇÃO COMO


CONDIÇÃO PARA UMA PRÁXIS DA EMANCIPAÇÃO
HUMANA

A partir de Manacorda(1992) podemos verificar que, em


Marx, o trabalho determinantemente se expressa na atividade re-
gida pela propriedade privada dos meios de produção. Nisto, por
um lado, a separação entre trabalho intelectual e manual tende
influir na formação da pessoa humana tornando-a dividida, alie-
nada e desumanizada. Por outro lado, o trabalho enquanto ativi-
dade vital é capaz de formar o indivíduo para a sua emancipação
de modo totalizante.

FRANCISCO ERNANDE ARCANJO SILVA • ROSALHO DA COSTA SILVA


397

Diferente do que ocorria antes da divisão do trabalho, da


propriedade privada da terra e das maquinas fabris, havia uma
intrínseca relação entre ensino e a atividade. Como atesta Saviani
(2007, p. 155), com a divisão da sociedade em classes ocorre, tam-
bém, a divisão da educação. Tal divisão levou a classe que se apro-
priou do controle dos meios de produção a controlar, também, a
ciência (MANACORDA, 1992, p. 75). Assim, o trabalho dividido car-
rega a condição inevitável de formar a pessoa atrofiada e mutilada
em suas potencialidades, podendo perder totalmente a sua huma-
nidade (MANACORDA, 1992, p. 78).
O trabalho produz deformidade, imbecilidade, cretinismo
no operário, que se torna um objeto estranho e desuma-
no, no qual nenhum dos sentidos existe mais, e que não
apenas não mais tem necessidades humanas, mas em que
também as necessidades animais cessam, pois tornou-se
um ser insensível e sem necessidades.(...) O trabalhador se
apresenta física e mentalmente rebaixado a uma máquina
(inútil contar quantas vezes essa degradação do operário à
máquina reaparece em seguida!), tornado, pela divisão do
trabalho, cada vez mais unilateral e dependente, conside-
rado pela economia política como besta de carga ou peão,
um animal reduzido às mais estritas necessidades corpo-
rais (esta limitação das necessidades ou, ao contrário, sua
expansão, são motivos também constantes (MANACOR-
DA, 1992, p. 78 e 79).

Estas condições do ser humano resultantes do trabalho


dividido ou da propriedade privada é uma questão basilar á pes-
quisa de Marx, bem colocada por Manacorda (1992, p. 78), posto
que da primeira a última obra daquele aparecem temas como a
unilateralidade, contradição entre trabalhador manual e intelec-
tual, trabalhador e não-trabalhador, seguindo um caminho, em-
bora não como continuidade temporal, mas como cientificidade
em aprimoramento. (MANACORDA, 1992, p. 78). Isto nos faz per-
ceber quão é relevante à preocupação do autor com o “fazer uni-

TRABALHO E PRÁXIS NA CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA EMANCIPADORA


398

lateral do humano” em detrimento da formação integral galgada


na ­liberdade.
De outra forma, Manacorda tem a preocupação em apontar
o trabalho em Marx sob um viés positivo, no sentido da atividade
humana como vitalidade, como parte intrínseca, não alienada,
não separada. O trabalho, em sua contradição, apresenta, em si
mesmo, a condição da vida humana. E isto é atestado na materiali-
dade da história, onde deu-se e dar-se a construção da sociedade.
Neste processo o ser humano conscientemente toma a sua ativida-
de como parte intrínseca de seu existir, diferenciando-se, sobre-
tudo, pela consciência, que é também produto social, dos outros
animais, embora sendo inerente a natureza não se confunde com
ela, mas a domina e a utiliza para suprir suas necessidades de for-
ma universal, consciente e voluntariosa ((MANACORDA, 1992, p. 61
e 62). Ainda a respeito disto:
(...) a atividade do homem se apresenta como humanização
da natureza, devir da natureza por mediação do homem, o
qual, agindo de modo voluntário, universal e consciente,
como ser genérico ou indivíduo social, e fazendo de toda
a natureza o seu corpo inorgânico, liberta-se da sujeição
à casualidade, à natureza, à limitação animal, cria uma
totalidade de forças produtivas e delas dispõe para desen-
volver-se onilateralmente (MANACORDA, 1992, p. 61 e 62).

As palavras acima nos fazem afirmar que o trabalho, en-


quanto expressão positiva, dada pela atividade humana, não mais
separado entre o manual do intelectual, é, portanto, capaz de for-
jar uma pedagogia da práxis, posto que possibilita desenvolver
condições relacionais entre a teoria e a prática, entre o saber e o
fazer, de modo a projetar objetivamente uma formação que eman-
cipa a pessoa humana em sua totalidade.
Diante do que foi exposto, fica evidente, com a contribui-
ção de Manacorda, que o ensino ligado ao trabalho é uma neces-
sidade dialeticamente fundamental, quando buscamos defender

FRANCISCO ERNANDE ARCANJO SILVA • ROSALHO DA COSTA SILVA


399

uma pedagogia que se forja na relação teoria-prática em função da


construção do “Reino da Liberdade”(MANACORDA, 1992, p. 68),
um lugar em que a pessoa se desenvolva livre e humanamente. É
possível tal objetivação, uma vez que, contrário a isto, a formação
imposta pelo modo de produção capitalista, em sua divisão, histo-
ricamente, entre mental e manual, tende a impor ao trabalhador
tudo àquilo que o minimiza de suas capacidades.

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO COMO PROPOSTA DE UMA


PRÁXIS EMANCIPADORA

A Pedagogia do Oprimido, humanista e emancipadora, bus-


ca restaurar a intersubjetividade dos seres humanos, incentiva-
do a reflexão sobre a ação nos grupos populares. Para isto, inicia
pela devolução da palavra ao povo, retirando-a do monopólio das
classes dominantes que, historicamente, a usam para manipular
e dominar. Assim, o trabalho pedagógico deve ser um processo de
diálogo entre educadores e educandos, entre a realidade e busca
da ação-reflexão para transformá-la.
A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e
libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro,
em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opres-
são e vão comprometendo-se, na práxis, como a sua trans-
formação; o segundo, em que, transformada a realidade
opressora, esta deixa de ser do oprimido e passa a ser a
pedagogia dos homens em processo permanente de liber-
tação (FREIRE, 2005, p. 46).

Enxergar a realidade da opressão e se engajar no processo


de transformação são um “parto doloroso” no processo de liber-
tação das mulheres e homens que lutam para superar as contra-
dições do sistema vigente. O ser humano que se constrói neste
processo é o sujeito de sua própria libertação. (FREIRE, 2005, p.
38). Para o educador é fundamental que o oprimido se descubra

TRABALHO E PRÁXIS NA CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA EMANCIPADORA


400

opressor no processo de ação e luta, isto é, para uma verdadeira


libertação é necessário à práxis, que corresponde à ação e reflexão
concomitantemente para a atividade transformadora. (CARVA-
LHO E PIO, 2017, p.433).
O pensamento de Freire remete à práxis um sentido de ati-
vidade questionadora, sugestiva, critica e também prática,
pois visualiza a libertação não somente na abstração, mas
em sua objetivação, plasmada nas transformações do ho-
mem com a realidade e entre si. Supera o estado de alienação
e de inércia imposto pelas relações hegemônicas e opresso-
ras do sistema capitalista (CARVALHO E PIO, 2017, p. 435).

A Educação em sua acepção abrangente é própria tessi-


tura dos seres humanos. No capitalismo ocorrem processos de
formação e deformação de mulheres e homens na luta pela sobre-
vivência. Configura-se neste conflito a libertação e opressão das
classes subalternas. (CARVALHO, PIO e MENDES, 2018, p.211).
Na luta pela transformação o povo precisa elaborar o seu
próprio saber para empoderar-se no processo de libertação. Isto é
práxis revolucionaria, pois, nos mostra que a educação deve partir
sempre da realidade e desvelar as injustiças e revelar as saídas que
devem ser sempre coletivas, inventivas e reflexivas.
Esta busca nos leva a surpreender, nela, duas dimensões:
ação e reflexão, de tal forma solidárias, em uma interação
tão radical que sacrificada, ainda que em parte, uma delas,
se ressente, imediatamente, a outra. Não há palavra verda-
deira que não seja práxis, Daí que dizer a palavra verdadei-
ra transformação do mundo. (FREIRE, 2005, p. 89).

A transformação do mundo é práxis revolucionária. Ela não


pode se realizar apenas com discurso ou com ativismo exacerbado
sem uma vinculação com as camadas populares. “Não há revolu-
ção com verbalismo, nem tampouco com ativismo, mas com prá-
xis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a
serem transformadas” (FREIRE, 2005, p. 142).

FRANCISCO ERNANDE ARCANJO SILVA • ROSALHO DA COSTA SILVA


401

Para o mesmo autor, só é realizável mudanças verdadeiras


com uma práxis autêntica que no diálogo como o povo desenvolva
um processo de empoderamento popular, ou seja, onde o povo seja
sujeito da história. “A verdadeira revolução, cedo ou tarde, tem
que inaugurar o diálogo corajoso com as massas. Sua legitimidade
está no diálogo com elas, não no engodo, na mentira. Não pode te-
mer as massas, a sua expressividade, a sua participação efetiva no
poder” (FREIRE, 2005, p. 142).
Paulo Freire (2005) coloca três momentos em que homens
e mulheres se constroem como sujeitos lutadores e construtores
das transformações da sociedade, portanto, como sujeitos eman-
cipados. “Não é no silêncio, que os homens se fazem, mas na pala-
vra, no trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 2005, p. 90).

O TRABALHO E A PRÁXIS NA CONSTRUÇÃO DA


PEDAGOGIA DO MST

O trabalho como se apresenta na experiência do Movimen-


to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST) constitui-se como
uma categoria pilar na constituição identitária do trabalhador
camponês, rompendo a lógica do trabalho dividido. Por isto, for-
ja-se em sua luta uma práxis galgada na transformação da pessoa
para o exercício da cidadania consciente, para a luta política e a
organização coletiva. Logo estamos falando de uma nova pedago-
gia que nasce no encontro relacional entre trabalho e práxis. Duas
categorias que não se confundem, mas que são intrínsecas pela ob-
jetivação peculiar e histórica no MST.
Neste sentido, o MST, ao longo do seu processo histórico,
vem construindo uma Pedagogia- a pedagogia do MST – bem siste-
matizada por militantes intelectuais ligados ao setor da Organiza-
ção, como Roseli Caldart(2015) que pensa o trabalho como basilar
a construção desta pedagogia.

TRABALHO E PRÁXIS NA CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA EMANCIPADORA


402

Na construção da Pedagogia do Movimento assumimos


a perspectiva de Marx (1984, p.50) o lugar do trabalho na
formação humana, como pressuposto para pensar seus
vínculos com a educação: “O trabalho, como criador de
valores de uso, como trabalho útil, é indispensável à exis-
tência do homem, – quaisquer que sejam as formas de
sociedade, – é necessidade natural e eterna de efetivar o
intercâmbio material entre o homem e a natureza e, por-
tanto, de manter a vida humana”. E assumimos também a
concepção desdobrada dessa formulação que se refere à
compreensão do trabalho como matriz primeira ou basi-
lar da constituição do ser humano como ser social e histó-
rico, sujeito de práxis. O trabalho como princípio educa-
tivo é compreendido no seu sentido genérico de atividade
humana criadora, ou como modo de produção da vida.
(CALDART, 2015, p.188)

Embora, Caldart aponte alguns termos que carecem de re-


flexão em nossa pesquisa, como valores de uso e troca, trabalho
como princípio educativo, percebemos que a Pedagogia do MST
apresenta, em seus elementos constitutivos, particularidades
educativas. No caso do trabalho, ele se apresenta como um modo
de produção da vida, por ser a matriz primeira á formação consti-
tutiva do ser humano, coincidindo, portanto, com trabalho positi-
vo que a forma para a onilateralidade como já tratamos em Mana-
corda ( 1992).
Perseguindo este sentido do trabalho como, categoricamen-
te, responsável pela formação existencial do homem e mulher do
campo, temos a práxis social como categoria forjada pela atividade
produtiva e a reflexão em torno da luta e da cultura emancipató-
rias na história do MST.
A centralidade da reflexão pedagogia da Educação do
Campo está na dimensão educativa da práxis social, re-
tomando a reflexão sobre a força formadora do trabalho,
da cultura, da luta social, como matrizes educativas do ser
humano e que não podem deixar de ser intencionalizadas

FRANCISCO ERNANDE ARCANJO SILVA • ROSALHO DA COSTA SILVA


403

como práticas pedagógicas em um projeto educacional


que se pretenda emancipatórios, e por isso mesmo, omni-
lateral (CALDART, 2015, p.189).
Caldart ao apontar a práxis social como necessidade central
á reflexão pedagógica em torno da Educação do Campo, somos le-
vados ao mesmo tempo a dizer que tal categoria não pode ser en-
tendida fora da luta social, além do trabalho e da cultura que Ele
coloca, posto que a luta está na base da formação dos “Sem-terra”.
Esta experiência é fundamental para a constituição do Movimen-
to (CALDART, 2012, p. 327). As Lutas camponesas são sua maior
oportunidade de ensino e aprendizagem. Seus sujeitos que antes
estavam excluídos, sem perspectivas passam, agora, a ser sujeitos
históricos. Por isto, Freire fala que “a pedagogia do oprimido no
fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se em seu processo
de libertação” (FREIRE, 2005, p. 46).
Então, considerando as categorias trabalho e práxis social
como elementos centrais à formação humana no MST verificou
que estes constroem no Movimento, uma pedagogia própria com o
seu jeito de fazer e refletir, levando a marca da Organização, como
parte da sua identidade, cuja construção, desde a sua fundação, a
diferencia de outras organizações de esquerda, bem como de dife-
rentes movimentos.
Tal proposta, não se refere somente às escolas, mas ao pró-
prio Movimento como o maior educador, o sujeito pedagógico de
seus membros. Assim, o MST desenvolve a educação como forma-
ção humana emancipatória em todos os espaços e situações. Por
exemplo, no corte de arame, na montagem de um barraco, quando
se planta em “terra livre”, na reunião e na mobilização. Tal apren-
dizagem tira da exclusão e possibilita dignidade, tornando sujei-
tos históricos e “cidadãos do mundo”.
Tais experiências, dizemos ser práxis pedagógica porque
elas não acontecem desconectadas de uma perspectiva emanci-
padora do ser humano e de uma nova sociedade. além disto, che-

TRABALHO E PRÁXIS NA CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA EMANCIPADORA


404

gamos a uma sistematização categórica que Caldart as identifica


como matrizes pedagógicas: trabalho, luta social, organização so-
cial, cultura e história.
Em nossa síntese de compreensão atual, educar é pôr em
ação organizada, numa determinada direção e conside-
rando o período histórico, as matrizes formadoras que
desdobram, no plano concreto, o trabalho como constitui-
dor do ser humano, confrontando as contradições que as
constituem na realidade concreta. (CALDART, 2015, p.201)
As características apontadas acima nos fazem perceber
uma educação com um processo próprio de formação que eman-
cipa o ser humano por meio de uma sistematização pedagógica de-
senvolvida pelos próprios sujeitos em seu processo de transforma-
ção social, o que nos possibilita perceber aspectos comuns com a
Pedagogia do Oprimido, uma vez que ela se faz concretude na rela-
ção teoria-prática, criativamente apresentando conceito de práxis
vinculado a tradição marxista (CARVALHO E PIO, 2017, p.435). E
mais: “A descoberta da opressão, se não pode ser feita em nível pu-
ramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental, é
que esta não se cinja apenas ativismo, mas esteja associado a sério
empenho de reflexão, para que seja práxis” (FREIRE, 2005, p.53).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Pesquisa buscou verificar aspectos históricos e conceitu-


ais acerca do trabalho e práxis como categorias fundamentais na
construção da pedagogia do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST). Para isto, utilizando de uma pesquisa bibliográ-
fica, com uma abordagem qualitativa a partir de recortes textuais
das obras de Manacorda, no que tange a questão da relação traba-
lho e pedagogia em Marx, em Paulo Freire sobre a Pedagogia do
Oprimido como práxis emancipadora, em Caldart como o traba-
lho e práxis social em relação a construção da pedagogia do MST.

FRANCISCO ERNANDE ARCANJO SILVA • ROSALHO DA COSTA SILVA


405

A partir dos autores e dos resultados, pela a análise do mé-


todo histórico-dialético, consideramos que a categoria trabalho na
experiência de luta e organização do MST, não segue a lógica do
trabalho dividido. A partir disto, nasce a práxis emancipadora
por meio da luta, da cultura, do trabalho, da organização, da histó-
ria constituindo o que chamamos de Pedagogia do MST, de modo
que, pelo percurso de nossa pesquisa, consideramos que sem sem
o trabalho e a práxis enquanto categorias educativas não seria pos-
sível a constituição da pedagógica do Movimento como compro-
metida com as classes populares e a construção da emancipação
humana.

REFERÊNCIAS

CALDART, Rosely. Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo,


Editora Expresão Popular, 2012.
CALDART, Rosely; STEDILE, Miguel; DAROS, Diana (Org.). Desa-
fios do vínculo entre tralho e educação na luta e construção da
Reforma Agrária Popular, in: Os caminhos para transformação da
escola: Agricultura Camponesa, educação politécnica e escolas do
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CARVALHO, Sandra M. G; PIO, Paulo. M. A categoria da práxis em
Pedagogia do Oprimido: sentidos e implicações para a educação
libertadora. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília,
v.98, n.248, p.248-245.2017.
CARVALHO, Sandra; PIO, Paulo; MENDES, Ernandi (Org.). Práxis
em Paulo Freire: significados para a Docência, in: Política Educa-
cional, Docência e Movimentos Sociais no Contexto Neoliberal.
Fortaleza, Ed UECE, 2018
MANACORDA, M. A. História da educação: da Antiguidade aos
nossos dias. Tradução de Gaetano Lo Monaco; Revisão da tradução
Rosa dos Anjos Oliveira e Paolo Nosella – 3. Ed. –São Paulo: Cortez,
1992.

TRABALHO E PRÁXIS NA CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA EMANCIPADORA


406

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Ciência, técnica e arte: o desafio


da pesquisa social. In: _____ (Org.) Pesquisa social: teoria, método
e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 9-29.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 46ª edição. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2005.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: Cartas pedagógicas e ou-
tros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas,
2008. 200 p.
SAVIANI, Dermeval. Trabalho e educação: fundamentos ontológi-
cos e históricos. Revista Brasileira de Educação. v. 12, n. 34, jan./
abr. 2007.

FRANCISCO ERNANDE ARCANJO SILVA • ROSALHO DA COSTA SILVA


407

BRINCANDO E PRODUZINDO
HISTÓRIAS COM SUPORTE DIGITAL
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Maria Auricélia da Silva1
Hanna Almeida Sousa2

RESUMO
Este artigo descreve a utilização de um Recurso Educacional Di-
gital para a produção e ilustração de histórias, por crianças de quatro e
cinco anos de idade, em uma instituição pública de Educação Infantil. Os
objetivos deste trabalho consistiram em: acompanhar a produção tex-
tual com uso de um Recurso Educacional Digital na Educação Infantil;
verificar se a utilização de um recurso digital favorece a produção e ilus-
tração de histórias na Educação Infantil. A abordagem qualitativa de ca-
ráter interpretativo foi adotada para o acompanhamento do trabalho e a
análise dos dados coletados. A utilização de um recurso digital favoreceu
a produção de histórias e ilustrações por crianças da Educação Infantil.
Palavras-chave: Criação de Histórias. Educação Infantil. Recur-
so Educacional Digital.

ABSTRACT
This article describes the use of a Digital Educational Resource
for the production and illustration of stories, by children of four and
five years old, in an institution of Early Childhood Education. The
objectives of this work were: to accompany textual production using a
Digital Educational Resource in Early Childhood Education; to verify if
/ how the use of a digital resource favors the production and illustration
of stories in Early Childhood Education. The qualitative approach of an
1 Pedagoga, doutora em Educação Brasileira/UFC, professora da Unidade Universi-
tária de Educação Infantil Núcleo de Desenvolvimento da Criança/UFC, atualmen-
te exercendo a função de gestora da Unidade. E-mail: auricelia.silva@ufc.br
2 Graduanda em Geografia (Licenciatura)/UFC, bolsista de Extensão do Projeto
Tecnologias Digitais na Educação Infantil: ludicidade e aprendizagem na Unidade
Universitária de Educação Infantil Núcleo de Desenvolvimento da Criança/UFC.
E-mail: hannaalso04@gmail.com

BRINCANDO E PRODUZINDO HISTÓRIAS COM SUPORTE DIGITAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL


408

interpretative character was adopted to monitor the work and analyze


the collected data. The use of a digital resource favored the production of
stories and illustrations by children in Early Childhood Education.
Keywords: Creation of Stories. Child Education. Digital
Educational Resource.

INTRODUÇÃO

As crianças, em suas experiências e contatos com o mundo,


desenvolvem interesse pelas tecnologias digitais presentes em seu
cotidiano e demonstram grande facilidade de utilizá-las. Os recur-
sos digitais podem despertar o interesse das crianças, estimulá-
-las à construção de aprendizagens e favorecer a diversificação
das formas de representação e uso da linguagem, especialmente
na Educação Infantil.
Compreendendo que os diversos recursos tecnológicos
exercem influência sobre o dia a dia e as ações das pessoas, é im-
portante que sejam utilizados no cotidiano escolar no sentido de
favorecer o trabalho com as três formas de conhecimento existen-
tes: oral, escrita e digital (LÉVY, 1993).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação In-
fantil – DCNEI (2010) recomendam que as práticas pedagógicas
na Educação Infantil possibilitem a utilização de recursos tecno-
lógicos, tais como o uso de gravadores, projetores, computadores,
máquinas fotográficas, entre outros. Tal proposta aproxima essas
ferramentas do processo de ensino e aprendizagem, tornando-o
mais lúdico e atrativo, recomendações também presentes na Base
Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018).
Diante dessas recomendações, faz-se necessário inserir
tecnologias digitais nas práticas pedagógicas vivenciadas na Edu-
cação Infantil, a fim de possibilitar múltiplas linguagens e diferen-
tes recursos para que as crianças aprendam e se desenvolvam no
mundo letrado e tecnológico.

MARIA AURICÉLIA DA SILVA • HANNA ALMEIDA SOUSA


409

A partir dessas questões, este trabalho discute a produção e


ilustração de histórias com suporte digital por crianças de quatro
e cinco anos de idade. O objetivo geral desta pesquisa consistiu em
favorecer a produção de textos com suporte digital na Educação
Infantil. Os objetivos específicos foram assim definidos: acompa-
nhar a produção de textos com uso de um recurso digital na Edu-
cação Infantil e verificar se a utilização de um recurso digital favo-
rece a produção de histórias na Educação Infantil.
O locus desta pesquisa foi a Unidade Universitária de Edu-
cação Infantil Núcleo de Desenvolvimento da Criança/UFC, e a
abordagem qualitativa de caráter interpretativo apoiou a análise
dos dados coletados por meio da observação participante.
A realização deste trabalho indicou que o uso de um recurso
digital como suporte ao trabalho pedagógico na Educação Infantil
favoreceu a montagem de cenários, a produção de ilustrações e a
criação de histórias, a partir das ferramentas disponibilizadas no
recurso digital.
A seguir, será apresentada a fundamentação teórica que
ofereceu suporte à realização deste trabalho.

A PRODUÇÃO DE HISTÓRIAS COM SUPORTE DIGITAL


NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Em nossa sociedade, as crianças têm acesso a diversos re-


cursos tecnológicos, pois nasceram na era digital e, em razão dis-
so, demonstram considerável familiaridade com esses dispositi-
vos. Assim, desde a Educação Infantil, primeira etapa da Educação
Básica, convém favorecer o acesso das crianças às tecnologias di-
gitais, para que ampliem suas experiências.
Faz-se necessário dar especial atenção aos aspectos lúdicos
e às interações, quando recursos tecnológicos são utilizados como
apoio pedagógico, pois as práticas pedagógicas desenvolvidas de-
vem priorizar as interações e a brincadeira, eixos norteadores do

BRINCANDO E PRODUZINDO HISTÓRIAS COM SUPORTE DIGITAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL


410

trabalho na Educação Infantil, estabelecidos para garantir a vivên-


cia de amplas experiências propostas nas DCNEI (BRASIL, 2010).
Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o acesso à tec-
nologia é colocado como um aspecto relevante da criação e expres-
são humanas, como também o são as artes, a escrita e a ciência.
No campo de experiências Traços, sons, cores e formas, a BNCC
ressalta a importância da convivência das crianças com diferen-
tes manifestações artísticas, culturais e científicas, na instituição
escolar e fora dela, em âmbito local e universal. Experiências com
formas diversas de expressão e linguagens, de modo que as crian-
ças sejam autoras de produções artísticas e culturais e utilizem
“sons, traços, gestos, danças, mímicas, encenações, canções, dese-
nhos, modelagens, manipulação de diversos materiais e de recur-
sos tecnológicos” (BRASIL, 2018, p. 41).
Outro aspecto recomendado desde a Educação Infantil é o
convívio com diferentes portadores de texto, nos mais diversos
gêneros. As DCNEI orientam que as atividades propostas “possi-
bilitem às crianças experiências de narrativas, de apreciação e in-
teração com a linguagem oral e escrita, e convívio com diferentes
suportes e gêneros textuais orais e escritos” (BRASIL, 2010 p. 25).
Nessa perspectiva, os recursos tecnológicos podem propi-
ciar o contato com as letras do alfabeto e os numerais nos teclados
de desktops, laptops, smart TVs, tablets e smartphones, oportuni-
zando a familiaridade das crianças com esses símbolos gráficos.
Comumente, crianças de até cinco anos de idade ainda não
leem nem escrevem de forma convencional, mas são capazes de
produzir textos, tendo os professores como escribas. Girão e Bran-
dão (2011) enfatizam que o fato de as crianças ainda não saberem
escrever seus textos não significa que não sejam capazes de pro-
duzi-los. O registro das ideias das crianças pode ser feito por um
escriba ou por ela mesma, conforme os conhecimentos de que já
disponha no momento da produção de suas ideias.

MARIA AURICÉLIA DA SILVA • HANNA ALMEIDA SOUSA


411

Esse tipo de atividade alinha-se com a recomendação do


Referencial Curricular para a Educação Infantil, quando enfatiza
a importância do registro das ideias das crianças por um escriba:
“É em atividades desse tipo que elas começam a participar
de um processo de produção de texto escrito, construindo
conhecimento sobre linguagem antes mesmo que saibam
escrever autonomamente” (BRASIL, 1998, p. 146).
A despeito de haver decorrido um período considerável
desde que esse documento foi produzido e divulgado, essa orienta-
ção continua atual porque as crianças vivem em um mundo letra-
do e, por conseguinte, apropriam-se facilmente do código escrito,
pois têm acesso a diversos portadores de texto em seu cotidiano.
Os Indicadores de Qualidade na Educação Infantil fazem
referência à “multiplicidade de experiências e linguagens” a par-
tir das quais é possível observar se “as crianças são incentivadas a
produzir textos mesmo sem saber ler e escrever” (BRASIL, 2009,
p. 43). Esse documento coloca a produção de textos como um dos
índices de qualidade no trabalho pedagógico desenvolvido com
crianças desse nível de escolaridade.
A produção textual desde a Educação Infantil constitui ati-
vidade de extrema importância a ser desenvolvida com as crian-
ças. Os documentos legais e a literatura indicam que o suporte di-
gital pode ser um recurso favorável, pois faz parte do cotidiano das
crianças e se mostra bastante apreciado por elas.
É na tentativa de refletir sobre a produção textual com o
uso de recursos digitais na Educação Infantil que este trabalho se
constitui. Para a continuidade das discussões, será apresentado o
percurso metodológico.

PERCURSO METODOLÓGICO

Para a produção de histórias com as crianças, no período de


2015 a 2019, foi utilizada a abordagem qualitativa de caráter inter-

BRINCANDO E PRODUZINDO HISTÓRIAS COM SUPORTE DIGITAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL


412

pretativo, possibilitando a organização dos dados descritivos me-


diante a interação com as crianças.
A observação participante e o registro das falas das crian-
ças, por meio de fotos e vídeos, foram fundamentais para a com-
preensão das suas escolhas, ideias, ritmos, criatividade e autono-
mia durante a produção das histórias.
Esse tipo de abordagem propõe que “nada é trivial, que tudo
tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabe-
lecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objecto de
estudo” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 49).
O locus da pesquisa foi a Unidade Universitária de Educação
Infantil Núcleo de Desenvolvimento da Criança (UUNDC/UFC). Fo-
ram produzidas cento e nove (109) histórias por crianças de quatro
e cinco anos de idade, nos anos 2015 a 2020.
Nessa instituição, é incentivada a produção de narrativas,
bilhetes, convites e desenhos, além de as crianças terem acesso a
vários gêneros textuais impressos. A partir disso, viabilizar a pro-
dução de histórias por intermédio de um recurso digital foi uma
forma de lhes oferecer diferentes meios capazes de enriquecer
suas experiências e favorecer a produção textual.
Inicialmente, foi necessário criar um ambiente favorável
à realização das atividades, portanto um contato direto das pes-
quisadoras com as crianças, de modo a estabelecer interações
e conhecer seus interesses. As crianças eram convidadas a criar
histórias, individualmente, tendo como suporte a mediação das
pesquisadoras e o Recurso Educacional Digital (RED) Histórias
Fantásticas, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa e Produção de
Ambientes Interativos e Objetos de Aprendizagem (PROATIVA), da
Universidade Federal do Ceará (UFC).
O RED Histórias Fantásticas3 foi desenvolvido para crianças
dos primeiros anos do Ensino Fundamental, que já leem e escre-

3 Disponível em https://proativa.virtual.ufc.br/athena/recursocomputador.html?n=11

MARIA AURICÉLIA DA SILVA • HANNA ALMEIDA SOUSA


413

vem convencionalmente, conforme consta no material didático


disponibilizado aos usuários. Contudo, pelo fato de permitir a pro-
dução de textos e como há uma lacuna em relação à existência des-
se tipo de recurso para a Educação Infantil, a ideia foi utilizá-lo na
produção textual de crianças de quatro e cinco anos. Além disso,
as pesquisadoras ofereceram um ambiente de tranquilidade e res-
peito aos interesses das crianças, procurando fazer uma mediação
adequada e a digitação dos textos produzidos pelas ­crianças.
Na Atividade 1, utilizada por crianças de quatro e cinco
anos, elas eram convidadas a escolher um, dentre os seis cenários
disponíveis (fazenda, praia, circo, floresta, sertão e escola). De-
pois, escolhiam as personagens, os animais e os objetos que fariam
parte do cenário e, então, utilizavam-no para a criação da história.
Eis a tela4 de abertura da atividade 1, por meio da qual as crianças
escolhiam o cenário:

Figura 1 – Tela da atividade 1: escolha dos cenários

Fonte: https://proativa.virtual.ufc.br/athena/
4 Todas as telas do RED Histórias fantásticas são coloridas. Aqui as imagens foram
colocadas em escala de cinza para atender ao formato da publicação.

BRINCANDO E PRODUZINDO HISTÓRIAS COM SUPORTE DIGITAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL


414

A Atividade 2 propõe a criação da história, seguida da pro-


dução de ilustrações, a partir de ferramentas disponibilizadas no
RED Histórias Fantásticas. Essa atividade foi proposta às crianças
de cinco anos, pois requeria maior familiaridade com o mouse, uma
vez que as crianças utilizam desktops para essa atividade. Antes da
produção das ilustrações para suas histórias, cada criança usou o
RED por três vezes para fazer desenhos livres, a fim de se familia-
rizar com o mouse e as possibilidades de desenho disponibilizadas
no RED.
Para a criação de ilustrações, as crianças poderiam usar di-
versos recursos, utilizando o mouse, como pode ser observado na
Figura 2.

Figura 2 – Atividade 2: espaço para criação dos desenhos

Fonte: https://proativa.virtual.ufc.br/athena/

Nos anos 2015 a 2017, as produções eram mais restritas à


atividade 1, mas o interesse e a motivação das crianças pela cria-
ção de histórias e a perspectiva de lhes oferecer mais liberdade e
autonomia em seu processo criativo, suscitaram a ideia de experi-
mentar a atividade 2 com crianças de cinco anos, em 2018 e 2019.
Em 2020, em razão da pandemia, a produção textual foi realizada

MARIA AURICÉLIA DA SILVA • HANNA ALMEIDA SOUSA


415

de forma remota e, por esse motivo, somente a atividade 1 foi pro-


posta às crianças de cinco anos.
Contudo, em se tratando do uso de desktops e mouses, a ati-
vidade 2 poderia tornar-se difícil para as crianças, familiarizadas
com as telas de toque dos smartphones e tablets, que elas utilizam
no cotidiano. Além disso, a proposta dessa atividade era que as
crianças criassem a história antes da produção das ilustrações,
sequência comumente contrária às produções infantis, em que
as crianças criam seus desenhos e, posteriormente, comentam as
ideias contidas em suas representações. De fato, quando acessa-
vam a atividade 2, as crianças demonstravam interesse em dese-
nhar livremente e, só depois, criavam as histórias.
Todo o processo de produção textual que envolvia a escolha
dos cenários, a criação de desenhos e histórias eram livres, mas
as pesquisadoras liam repetidas vezes o texto já produzido para
que as crianças tivessem ideia de como estava sendo construída
a narrativa, perguntavam às crianças o que estava acontecendo
nas cenas produzidas e, somente ao final da produção do texto,
perguntavam como seria o título (ou “nome”) da história que elas
haviam criado. Como a atribuição de título a uma narrativa é algo
que requer grande capacidade de síntese, pode constituir uma ati-
vidade complexa para crianças pequenas.
A produção das histórias de cada grupo de crianças foi orga-
nizada e publicada em formato digital, anualmente. A publicação
foi feita de forma on-line e divulgada para a comunidade escolar, a
fim de valorizar a produção textual das crianças perante os inte-
grantes da UUNDC, os familiares e, ao mesmo tempo, incentivar
a cultura digital no âmbito da unidade escolar. Os livros digitais
produzidos foram intitulados Histórias Fantásticas e publicados
no site Calaméo5, desde o volume 1, em 2015, ao volume 10, em
2020, e podem ser acessados livremente.

5 Volume 1 disponível em https://pt.calameo.com/books/0044587816c4f5b294198.


Para acessar os demais volumes, continuar a busca conforme o volume desejado.

BRINCANDO E PRODUZINDO HISTÓRIAS COM SUPORTE DIGITAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL


416

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A realização deste trabalho revelou que as crianças envol-


vidas demonstraram grande facilidade de usar o computador e o
RED Histórias Fantásticas, o que comprova pesquisas de Prensky
(2001), Sancho (2006) e Kenski (2008) acerca da facilidade com
que crianças e jovens acessam os recursos digitais presentes em
seu cotidiano. As constatações a que esses autores chegaram em
suas pesquisas já indicavam essa familiaridade com os recursos
digitais em um período em que as tecnologias ainda não eram tão
acessíveis como hoje.
A possibilidade de vivenciar experiências de criação e nar-
ração de histórias, bem como a aproximação entre as linguagens
oral e escrita (BRASIL, 2010), certamente ampliou as aprendiza-
gens infantis, além de encorajar as crianças para a livre expressão
e a produção textual desde a Educação Infantil. Em alguns casos,
as crianças ficaram tão envolvidas com a narrativa, que não acha-
ram necessário atribuir títulos às histórias, mesmo reconhecendo
que toda história tem um nome.
Na atividade 1, o cenário Praia foi o mais escolhido pelas
crianças, o que pode ser um indicativo das suas experiências co-
tidianas, por residirem em uma cidade litorânea. Isso também
foi percebido na produção da atividade 2, além dos seguintes as-
suntos: partes do corpo humano, passeios que desejavam realizar,
aventuras, galáxias e planetas, contos de fadas e princesas, ani-
mais, personagens de filmes infantis e brincadeiras infantis.
Além desses aspectos, a utilização do RED Histórias Fantás-
ticas tornou a produção textual uma atividade divertida porque as
crianças usaram o computador e um recurso digital interativo, co-
lorido, com interface amigável e de fácil navegação. A existência de
pequenos textos, que tinham por finalidade orientar a execução da
atividade, foi contornada com a mediação das pesquisadoras, que pro-
curaram tornar o momento da produção textual alegre e convidativo,
para que as crianças se sentissem livres e pudessem criar seus textos.

MARIA AURICÉLIA DA SILVA • HANNA ALMEIDA SOUSA


417

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados obtidos ao longo de um período de seis anos


mostram que as crianças conseguem produzir textos desde a Edu-
cação Infantil, razão pela qual a produção de gêneros textuais deve
ser estimulada já nessa etapa da Educação Básica.
O RED Histórias Fantásticas, como suporte digital para o
desenvolvimento das histórias, oferece uma experiência diferen-
te, pois as crianças passam a ser autoras e ilustradoras das suas
histórias, utilizando outra forma de linguagem e expressão.
Além disso, o recurso digital utilizado é de simples manu-
seio, tem uma interface amigável e favorece a aprendizagem lúdi-
ca, como devem ser as atividades na Educação Infantil.
As crianças necessitam de um escriba/digitador, pois ain-
da não leem nem escrevem convencionalmente. Todavia, esse fato
não inviabiliza nem dificulta a criação de histórias pelas crianças,
desde que o mediador as incentive a realizar as etapas com tran-
quilidade e releia periodicamente o texto já produzido, para que
a criança tenha condições de acrescentar ou retirar elementos e
aperfeiçoar seu texto.
Na atividade 2, as crianças utilizaram as ferramentas de
desenho e ilustração três vezes antes da produção final, a fim de
se familiarizarem com o uso do mouse e dos recursos disponíveis,
pois estavam utilizando um desktop.
A divulgação dos livros digitais teve amplo alcance, foi bem
aceita pela comunidade escolar e não gerou custos à instituição.
As crianças e seus familiares sentiram-se valorizados devido à pu-
blicação dos livros digitais e à repercussão positiva que esse tra-
balho obteve em seu grupo de familiares e amigos, bem como na
unidade escolar.
Diante desses aspectos, constata-se que a utilização do RED
Histórias Fantásticas favoreceu a produção textual na Educação
Infantil e o contato das crianças com os recursos digitais. A des-

BRINCANDO E PRODUZINDO HISTÓRIAS COM SUPORTE DIGITAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL


418

peito de ter sido criado para crianças do Ensino Fundamental, a


atividade 1 pode ser utilizada sem dificuldade por crianças de qua-
tro e cinco anos de idade e a atividade 2 adequa-se, mais especifica-
mente, a crianças a partir de cinco anos. O recurso digital utiliza-
do favorece a ludicidade, a criatividade e a aprendizagem.

REFERÊNCIAS

BOGDAN, R; BIKLEN, S. K. Investigação Qualitativa em Educação.


Porto: Editora Porto, 1994.
BRASIL. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil.
Ministério da Educação e do Desporto, Brasília, 1998.
BRASIL. Indicadores de Qualidade na Educação Infantil. Ministé-
rio da Educação/Secretaria da Educação Básica, Brasília, 2009.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infan-
til. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secre-
taria de Educação Básica – Brasília: MEC, SEB, 2010.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Mi-
nistério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria
de Educação Básica – Brasília: MEC, SEB, 2018.
GIRÃO, F. M. P.; BRANDÃO, A. C. P. Ditando e escrevendo: a produ-
ção de textos na Educação Infantil. In: Brandão, A. C. P. e Rosa, E.
C. S. “Ler e escrever na Educação Infantil” (Org.). Belo Horizonte,
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KENSKI, V. M. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informa-
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LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na
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PRENSKY, M. Digital Natives, Digital Immigrants – Part 1. In: Digital
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SANCHO, J.M. (Org.). Tecnologias para transformar a educação.
Porto Alegre, Artmed, 2006.

MARIA AURICÉLIA DA SILVA • HANNA ALMEIDA SOUSA


Extensão
421

O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-


POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE
CAPITALISTA E DA PANDEMIA
Sandra M. M. Siqueira1
Francisco Pereira2

RESUMO
O objetivo do texto é expor as atividades extensionistas de forma-
ção teórico-política desenvolvidas pelo Laboratório de Estudos e Pesqui-
sas Marxistas (LEMARX-UFBA) no contexto histórico de avanço da crise
estrutural do capitalismo e de crise sanitária da pandemia do coronaví-
rus. Tratamos das formações realizadas no período de junho a outubro
de 2020. As atividades foram direcionadas a trabalhadores, militantes,
docentes e estudantes com o objetivo de contribuir para a compreensão
da teoria revolucionária fundada por Marx e Engels, desenvolvida pelos
marxistas posteriores, no sentido de avançar na organização da classe
trabalhadora e da consciência de classe.
Palavras-chave: LEMARX, Formação marxista, Crise capitalista.

ABSTRACT
The objective of this text is to expose the extension activities
of theoretical and political formation developed by the Laboratory of
Marxist Studies and Research (LEMARX-UFBA) in the historical context
of the advance of the structural crisis of capitalism and the sanitary
crisis of the coronavirus pandemic. We dealt with the formations carried
out from June to October 2020. The activities were aimed at workers,
activists, teachers and students with the aim of contributing to the
understanding of the revolutionary theory founded by Marx and Engels,
developed by later Marxists, in the sense of advancing the organization
of the working class and class consciousness.
Keywords: LEMARX, Marxist formation, Capitalist crisis.

O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA E DA PANDEMIA


422

INTRODUÇÃO

O capitalismo vive uma das piores crises de sua história. É


verdade que as primeiras crises da sociedade burguesa moderna
começaram a se expressar desde a primeira metade do século XIX,
sendo que, até o começo da época imperialista, as crises capitalis-
tas se alternavam com períodos de expansão da economia. Eram,
portanto, crises conjunturais. Dessa forma, registraram-se crises
econômicas em vários momentos da história do capitalismo, da
década de 1820, no século XIX, passando pelo século XX e as pri-
meiras décadas do XXI. Até as suas mortes, os fundadores do mar-
xismo – Marx e Engels – deram contribuições axiais para a análise
crítica das crises econômicas de sua época, isto é, no século XIX,
destacando-se, em particular, as contribuições da obra mais im-
portante da teoria marxista: O Capital (1867), de Marx.
Entretanto, com a instauração da fase imperialista do ca-
pitalismo, o caráter das crises se transformou. O imperialismo –
analisado de maneira rigorosamente científica por V. I. Lênin, em
O imperialismo, fase superior do capitalismo (1916) – foi produto de
transformações ocorridas no final do século XIX e início do XX,
que levaram à substituição do capitalismo liberal-concorrencial
anterior pela fase imperialista, na qual dominam os monopólios
e o capital financeiro – este produto da fusão do capital bancário
com o capital industrial –, caracterizada pelo revolucionário russo
como a época de revoluções, contrarrevoluções e guerras.
Portanto, já não se trata de crises econômicas puramente
conjunturais, mas de uma crise histórica, estrutural, do capital,
cujas crises conjunturais, ao explodirem periodicamente, nada
mais fazem que acumular os elementos de uma crise mais ampla
e profunda, que atinge as bases, os pilares, os fundamentos mes-
mos da sociedade burguesa atual. As crises conjunturais e estru-
tural, entrelaçadas dialeticamente, aprofundam a barbárie social
– guerras, desemprego, miséria, fome, violência, destruição da na-

SANDRA M. M. SIQUEIRA • FRANCISCO PEREIRA


423

tureza, alienação, xenofobia, opressões –, aumentando, por outro


lado, os níveis de exploração da força de trabalho.
A análise desse texto pretende mostrar a relevância da teo-
ria revolucionária marxista para a análise da crise atual e a neces-
sidade da continuidade da formação teórico-política no contexto
de uma crise que se arrasta desde 2008, somada e impulsionada
pela pandemia do coronavírus em todo o mundo. Pretende-se fa-
lar que, mesmo diante da necessidade do distanciamento social,
o Laboratório de Estudos e Pesquisas Marxistas (LEMARX), sedia-
do na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia
(­FACED-UFBA) tem dado continuidade à formação teórico-políti-
ca – ainda que sob a forma virtual –, socializando as obras funda-
mentais do marxismo, como ferramentas para a compreensão da
atual etapa histórica e para a transformação da realidade.

O CARÁTER DA CRISE E A NECESSIDADE DA


FORMAÇÃO MARXISTA

A teoria fundada por Marx e Engels, desenvolvida ao lon-


go do século XX e começos do XXI pelos marxistas – com base na
experiência da luta de classes e do avanço científico-filosófico – é
chamada de Socialismo Científico ou Marxismo. O seu método de
análise da realidade, em sua totalidade e especificidades, chama-
-se materialismo histórico e dialético, uma dialética materialista. O
critério marxista de avaliação do conhecimento em relação à rea-
lidade objetiva é a prática social, o processo histórico.
Marx e o seu companheiro de luta, Engels – em 2020 come-
mora-se, em sua memória, o bicentenário de seu nascimento –, se
esforçaram para dar ao movimento socialista uma concepção de
mundo, de sociedade, da história e dos indivíduos, presente no
conjunto de sua obras, entre elas, a mais importante: O Capital
(1867). Ao longo das várias obras – econômicas, políticas e filosófi-
cas –, Marx e Engels desenvolvem uma teoria científico-filosófica

O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA E DA PANDEMIA


424

que revolucionou a maneira de conceber a história da humanida-


de e a compreensão da própria sociedade burguesa. Superando as
concepções idealistas e mecânicas das correntes de pensamento
anteriores, os fundadores do marxismo possibilitaram à classe
trabalhadora e ao movimento socialista um guia fundamental
para a análise do capitalismo e suas crises.
Articulando a exposição das condições objetivas de sua su-
peração – desenvolvimento das forças produtivas, choque com as
relações de produção, crescente socialização da produção, exis-
tência da classe trabalhadora – e das condições subjetivas – or-
ganização política dos trabalhadores e avanço da consciência de
classe –, Marx e Engels contribuíram para a luta de classe do pro-
letariado no sentido da superação do capitalismo e reorganização
da sociedade em novas bases socialistas.
Lênin, dando continuidade à análise marxista do capitalis-
mo, caracterizou a fase imperialista como de domínio dos mono-
pólios e do capital financeiro. As potências econômicas e políticas
repartem o mundo em esferas de influência. A fase imperialista
é de decomposição do capitalismo. O capitalismo só conseguiu se
levantar da crise na primeira metade do século XX com a Primeira
e Segunda Guerras Mundiais. Ou seja, com a morte de milhões de
pessoas e a destruição em massa de forças produtivas (falências,
desemprego). Abriu-se um período de pós-Guerra, chamado de
Era de Ouro do capitalismo, que, apesar do crescimento econômi-
co e do reconhecimento de direitos sociais pelo chamado “Estado
de bem-estar Social”, em razão do receio de avanço de processos
revolucionários, durou basicamente duas décadas, intercaladas
por crises periódicas, esgotando-se no início da década de 1970,
com o estouro de uma nova crise, seguida por outras, que acumu-
lam e desenvolvem a barbárie social.
Esses elementos de barbárie colocam a necessidade histó-
rica da superação da sociedade burguesa e da construção de outra
sociedade, o socialismo. Não obstante, o fim do capitalismo não

SANDRA M. M. SIQUEIRA • FRANCISCO PEREIRA


425

será um resultado mecânico de suas próprias crises. Elas apenas


expressam a contradição essencial do choque entre as forças pro-
dutivas altamente desenvolvidas e as relações de produção – e da
grande propriedade privada –, base objetiva da luta pelo socialis-
mo. É preciso avançar nas condições subjetivas – organização po-
lítica e consciência de classe –, porque só a classe trabalhadora,
apoiada na maioria explorada e oprimida, é capaz, pela luta de
classes, de sepultar definitivamente a sociedade capitalista.

O LEMARX-UFBA E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA

O LEMARX-UFBA completou 13 anos de existência em 2020.


Sua fundação, em 2007, representou a concretização de um objetivo
colocado por um grupo de docentes, estudantes e militantes de es-
tudar as obras de Marx, Engels e demais continuadores do marxis-
mo, com a finalidade de divulgá-lo entre trabalhadores, militância,
estudantes e docentes, fora e dentro da universidade, contribuindo
com a tarefa de organização da classe trabalhadora e do conjunto
dos oprimidos e de avanço na consciência de classe da necessida-
de histórica de superação do capitalismo e defesa do socialismo.
Nesses 13 anos, o LEMARX realizou estudos da teoria mar-
xista – de Marx, Engels, Lênin, Trotski, Rosa Luxemburgo, entre
outros –, destacando-se os estudos de O Capital, de Marx, além de
formações, cursos – Introdução ao Marxismo, Introdução à Econo-
mia Política –, debates sobre diversos temas e questões relevantes
da luta de classes, publicação de livros, folhetos e textos, além de
atividades de extensão nos movimentos sociais (sem tetos, sem
terras) e sindical. Além disso, o LEMARX tem sido um participante
ativo na luta de classes, apoiando a militância e as organizações de
trabalhadores contra a perseguição e repressão de governos e do
Estado.
Os membros do LEMARX compreendem muito claramente
o papel do coletivo na formação teórico-política, daí o seu empe-

O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA E DA PANDEMIA


426

nho no estudo, assimilação e divulgação rigorosa da teoria marxis-


ta, um trabalho que tem recebido progressivamente o reconheci-
mento não só no Estado da Bahia como no país, sendo citado em
revistas, páginas nas redes sociais, trabalhos de conclusão de cur-
so (TCCs) e demais trabalhos acadêmicos. Seus materiais (livros,
textos) são citados em diversos trabalhos universitários, o que é
parte desse reconhecimento. Portanto, desde a sua origem, o LE-
MARX tem se dedicado firmemente à formação teórico-política da
militância social e da comunidade acadêmica.

A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA EM MEIO À CRISE


CAPITALISTA E A PANDEMIA

A crise capitalista que se arrasta desde 2008, sem indícios


de uma retomada global de crescimento econômico, está hoje en-
trelaçada com uma crise sanitária mundial desencadeada pela
pandemia do coronavírus. Identificada inicialmente na China, o
vírus se propagou a outros continentes e países muito rapidamen-
te. Os governos tiveram de responder com políticas no campo da
saúde e da prevenção à crise pandêmica de grande dimensão, que
já levou à morte quase 2 milhões de pessoas em todo o planeta,
além de mais de 90 milhões de infectados. O Brasil, cujo governo
– o de Jair Bolsonaro – adotou uma política negacionista, em senti-
do oposto às orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS),
conta com mais de 200 mil mortes e mais de 8 milhões de infecta-
dos oficialmente diagnosticados.
Nas condições de pandemia e distanciamento social, o
LEMARX, como toda a Universidade Federal da Bahia (UFBA)
suspendeu as atividades presenciais, respeitando as medidas de
prevenção e distanciamento social recomendadas pela comunida-
de médica e científica. A suspensão ocorreu a partir de março de
2020 e continuará enquanto a UFBA estiver com suas atividades
presenciais suspensas.

SANDRA M. M. SIQUEIRA • FRANCISCO PEREIRA


427

Não obstante, tão logo foi possível, o LEMARX retomou as


suas atividades de formação teórico-política de maneira virtual,
tanto do grupo de estudos do marxismo, quanto das atividades do
Grupo de Estudos da obra de Ângela Davis. Trataremos neste tópi-
co sobre as atividades de formação teórico-política do LEMARX no
período de junho a outubro de 2020. A metodologia utilizada nos
estudos foi a exposição da obra marxista analisada, seguida das in-
tervenções escritas ou orais dos presentes e a discussão.
Para tanto, decidimos iniciar o estudo por meio das obras
de V. I. Lênin, dirigente da Revolução Russa de Outubro de 1917. Lê-
nin é, sem dúvida, o mais importante e influente teórico e dirigen-
te marxista do século XX. No dia 13 de junho realizamos o primeiro
encontro de formação, com a exposição da obra O que fazer?, de Lê-
nin, escrita em 1902. Nesta obra, o revolucionário russo, partindo
da crítica do revisionismo no movimento socialista internacional
– expresso na obra de Eduard Bernstein e consortes – e do econo-
micismo na Rússia, defende a organização política da classe tra-
balhadora em partido, composto por revolucionários dedicados à
causa da emancipação dos explorados e oprimidos e baseado no
princípio do centralismo democrático, que significa a mais ampla
democracia interna e a unidade de ação da militância no exterior,
na luta de classes. O Congresso de 1903 determinou a divisão do
Partido Socialdemocrata russo em bolcheviques e ­mencheviques.
Em 20 de junho fizemos o estudo da obra O Imperialismo,
fase superior do capitalismo, escrito pelo dirigente bolchevique
em 1916. A obra é a mais importante análise marxista sobre a fase
atual do capitalismo, que se desenvolveu no final do século XIX e
começos do século XX, se impondo definitivamente com a Primei-
ra Guerra Mundial, uma guerra imperialista, que fez prevalecer
os interesses do capital financeiro e dos grandes monopólios e a
divisão do mundo em esferas de influência das grandes potências
imperialistas (EUA, Europa). Lênin, partindo das análises de Marx
em O Capital (1867) sobre a concentração e centralização dos ca-

O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA E DA PANDEMIA


428

pitais, que são a base da formação dos monopólios e da crescen-


te socialização da produção – embora a apropriação seja privada
–, mostra como se abre uma nova etapa revolucionária, de tran-
sição para o socialismo, que coloca a questão da revolução – e da
contrarrevolução – em escala mundial como problema central da
humanidade, sob pena de nos afundarmos na barbárie social. Lê-
nin realiza também uma crítica das concepções reformistas e re-
visionistas sobre o capitalismo, que desviam a classe trabalhadora
do caminho revolucionário para a utopia de reformar a sociedade
burguesa em decomposição.
Após um breve intervalo, retomamos o estudo em 25 de ju-
lho com a obra O Estado e a Revolução, escrita por Lênin às vés-
peras da Revolução de Outubro de 1917. A revolução social agora
se colocava como um problema concreto, que se avizinhava e que
precisava ser debatido pela militância socialista para não deixar
se perder uma grande oportunidade. Uma vez mais, Lênin se con-
fronta com as posições teóricas e políticas revisionistas e refor-
mistas no movimento socialista na Segunda Internacional e na
Rússia acerca do problema do Estado. Para tanto, retomando os
clássicos do marxismo – Marx e Engels – e as experiências das re-
voluções de 1848, da Comuna de Paris de 1871 e da revolução russa
de 1905, o dirigente russo bolchevique defende as posições teóri-
co-políticas revolucionárias sobre o Estado e o processo da revo-
lução proletária. Mostra que, essencialmente, o Estado é de classe,
produto do caráter inconciliável dos interesses das classes sociais
fundamentais – no caso do capitalismo, burguesia e proletariado
– para defender as condições de dominação de uma classe social
e seus interesses gerais fundamentais. Para os marxistas, não se
trata de se apossar simplesmente do Estado burguês e utilizá-lo a
serviço da classe trabalhadora, como querem os reformistas de to-
das os matizes, mas de, por meio da luta de classes e da revolução
proletária, derrubar a burguesia, tomar o poder, destruir a máqui-
na de Estado burguês e erguer um Estado operário, sob a base de

SANDRA M. M. SIQUEIRA • FRANCISCO PEREIRA


429

conselhos populares, para reorganizar a economia e a sociedade


sob alicerces socialistas, criando as condições para atingir o obje-
tivo fundamental: uma sociedade comunista, sem classes sociais,
Estado e alienação, na qual os indivíduos possam se desenvolver
plenamente sem as amarras da sociedade de classes.
Dando seguimento à formação, em 1 de agosto discutimos
as obras Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrá-
tica, de 1905 e Teses de Abril, de 1917, ambas também de Lênin. A
primeira, escrita no calor da revolução de 1905, expõe as posições
dos bolcheviques sobre o caráter da revolução em curso e o papel
das classes e partidos. A segunda obra, Teses de Abril, de 1917, ex-
pressa a defesa da revolução socialista, com a passagem do poder
aos sovietes (conselhos populares). Nenhuma ilusão no governo
burguês provisório, todo poder aos sovietes! Eis as palavras de
ordem levantadas pelas Teses de Abril. A experiência mostrou a
Lênin que a classe operária, apoiada no campesinato, poderia to-
mar o poder e estabelecer o seu governo, o seu Estado operário,
realizar as tarefas democráticas e transformá-las em socialistas.
Aproximando-se claramente das teses da Teoria da Revolução
Permanente de Leon Trotski, as Teses de Abril, em meio ao calor
da luta de classes, pavimentam uma linha política efetivamente
revolucionária e arma o Partido Bolchevique para a tomada do
poder em Outubro de 1917.
No dia 8 de agosto discutimos a obra A Revolução Proletá-
ria e o renegado Kautsky, de 1918, na qual Lênin, apoiando-se já na
experiência da tomada do poder pelo proletariado russo, empre-
ende uma crítica mordaz às posições de Karl Kautsky, membro da
socialdemocracia alemã, considerado o maior teórico marxista da
Segunda Internacional. Kautsky se torna cada vez mais um adver-
sário da revolução socialista e dos bolcheviques, adaptando-se ao
reformismo e ao revisionismo, em contraposição às teses marxis-
tas sobre o Estado e a revolução proletária. Lênin o qualifica como
renegado e demonstra os desvios teóricos e políticos de Kautsky,

O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA E DA PANDEMIA


430

que o colocavam em rota de colisão com o governo revolucionário


na Rússia.
Em 15 de agosto, discutimos a obra Esquerdismo, doença in-
fantil do comunismo, de 1920, um conjunto de teses apresentadas
à discussão no congresso da Terceira Internacional, sobre as po-
sições de setores do movimento comunista que defendiam teses
esquerdistas e sectárias sobre partido, sindicatos, participação
em parlamentos e eleições. Lênin apresenta as grandes lições da
experiência do movimento revolucionário e do Partido Bolche-
vique na Rússia, no sentido de educar as novas gerações de mili-
tantes comunistas acerca da estratégia e da tática revolucionária.
Ainda que não se possa afastar o boicote às eleições e parlamentos
em determinadas condições históricas, Lênin se opõe às teses es-
querdistas e sectárias, defendendo a necessidade dos comunistas
intervirem nas eleições burguesas e nos parlamentos de um ponto
de vista revolucionário – não oportunista – na defesa das posições
marxistas sobre o caráter do capitalismo, a sua putrefação, a ne-
cessidade de sua superação e as reivindicações da classe traba-
lhadora. A participação nas eleições e nos parlamentos está, para
Lênin, subordinada à luta de classes, à organização e mobilização
da classe trabalhadora.
No dia 22 de agosto debatemos a obra Materialismo e Empi-
riocriticismo, de 1909, escrita por Lênin. Com a derrota da revo-
lução de 1905, desencadeou-se a contrarrevolução, levada a cabo
pelo regime czarista. A violência reacionária se abateu sobre as
organizações e militância, com mortes, prisões e exílio. A desmo-
ralização tomou conta do movimento socialista, surgindo uma
tendência ao idealismo em matéria filosófica e científica e a de-
fesa do ecletismo. No campo da Física, a crise se manifestava na
incompreensão dos resultados das descobertas científicas sobre a
estrutura da matéria e as formas do movimento da realidade. Den-
tro do próprio Partido Bolchevique havia um setor que defendia
a necessidade de “atualizar” o marxismo a partir de outros siste-

SANDRA M. M. SIQUEIRA • FRANCISCO PEREIRA


431

mas filosóficos, como o kantismo, neokantismo e neopositivismo,


como a filosofia e as análises sobre ciência de Ernst Mach e Avena-
rius. Lênin se coloca na defesa da dialética materialista de Marx
e Engels contra essa tendência do empiriocriticismo, mostrando
sua filiação ao idealismo e às concepções filosóficas pré-marxistas
(Berkeley, Hume, Kant).
Depois do estudo das principais obra de Lênin, passamos
ao debate de algumas das obras mais importantes de Leon Trot-
ski, também revolucionário e dirigente da Revolução de Outubro
de 1917. Em 5 de setembro debatemos a obra Revolução e Contrar-
revolução na Alemanha, livro que agrupa uma série de textos es-
critos pelo dirigente russo no final da década de 1920 e início da
década de 1930, quando da ascensão do nazifascismo na Alema-
nha. A política da Terceira Internacional, dirigida pelo estalinis-
mo, significou uma derrota para a classe operária de dimensões
mundiais. No seu sexto congresso, a Internacional adota uma po-
lítica ultraesquerdista, chamada de Terceiro Período, contra a re-
alização de uma frente única com a socialdemocracia alemã para
combater o avanço de Hitler. Stalin e estalinistas diziam que a
socialdemocracia era a ala moderada do fascismo, o socialfascis-
mo. Com isso, impossibilitavam a realização de uma frente única
das duas maiores organizações operárias. Trotski combateu as
posições da socialdemocracia e do estalinismo, colocando-se na
defesa da frente única como a tática adequada ao enfrentamento
do fascismo e defesa das organizações da classe operária contra a
violência dos bandos de Hitler.
Em 19 de setembro discutimos a obra A Revolução Perma-
nente, também de Trotski. No texto, Trotski generaliza a sua con-
cepção revolucionária com base na experiência das revoluções
de 1905, de 1917, e das revoluções na Alemanha e China. Contra-
riamente ao mecanicismo e etapismo dos mencheviques, ressus-
citado pelo estalinismo, Trotski defendeu o caráter permanente
da revolução, no sentido de que, uma vez no poder, por meio de

O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA E DA PANDEMIA


432

uma revolução vitoriosa, o proletariado não se detém nas tarefas


democráticas, não resolvidas pelas burguesias, como as transfor-
ma em tarefas socialistas, que serão plenamente resolvidas pelo
proletariado, apoiado pela maioria explorada e oprimida. Contra
o “socialismo em um só país”, de Stalin, Trotski defende o caráter
permanente da revolução, que não se detém nos limites de um úni-
co país, mas se projeta no plano internacional. O socialismo em um
só país do estalinismo é uma utopia. O socialismo só pode se impor
mundialmente, porque o capitalismo imperialista é mundial e não
pode coexistir pacificamente com os Estados operários. Ou avança
o socialismo em escala mundial, ou avança a restauração capitalis-
ta nos países nos quais a revolução foi vitoriosa.
Em 3 de outubro debatemos a obra de Trotski intitulada A
Revolução Traída, de 1936. Com a imposição definitiva da fração
de Stalin e do estalinismo no Partido Bolchevique – depois Par-
tido Comunista da União Soviética (PCUS) –, no Estado operário
russo e na Terceira Internacional, também se impôs a política da
“revolução por etapas” e do “socialismo em um só país”. A política
esquerdista do Terceiro Período, que facilitou a subida de Hitler ao
poder em 1933, é substituída em 1935, no Sétimo Congresso da Ter-
ceira Internacional, pela política de Frente Popular, que significa-
va empreender alianças com a burguesia e seus partidos. Trotski
mostrou que, apesar do crescimento econômico e da industriali-
zação, o que se via na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS) era a prevalência, no Partido único dominante e no seio do
Estado, de uma burocracia privilegiada e a ausência de democra-
cia operária, com o esvaziamento dos sovietes. Trotski colocava,
diante dessa realidade, a necessidade de uma revolução política
para afastar a burocracia privilegiada do poder e oxigenar a vida
política com a reorganização dos sovietes. Não se tratava de uma
revolução social, pois as bases materiais criadas pela Revolução de
Outubro ainda estavam de pé. Ou se cumpria essa tarefa, ou o ca-
pitalismo seria restaurado na URSS, por obra do imperialismo ou

SANDRA M. M. SIQUEIRA • FRANCISCO PEREIRA


433

pelas mãos da própria burocracia estalinista. Eis o prognóstico de


Trotski, confirmado pela fim da URSS em 1991.
Em 17 de outubro estudamos a obra O Programa de Transi-
ção, de 1938. Trotski escreveu este documento para servir de pro-
grama para a fundação da Quarta Internacional. Diante da ameaça
da Segunda Guerra Mundial e de novos levantes revolucionários,
era necessário preservar a tradição revolucionária (marxismo) e
constituir uma direção à altura da tarefa de organizar a classe tra-
balhadora e a juventude para a luta de classes pelo socialismo. Em
conjunto com a Teoria da Revolução Permanente, o Programa de
Transição nos fornece não só uma análise da crise do capitalismo,
como um método para a compreensão das transformações do pós-
-Guerra, das experiências revolucionárias posteriores e dos acon-
tecimentos que levaram ao fim da URSS e dos Estados operários
do Leste Europeu. É, portanto, a base programática para a recons-
trução da Quarta Internacional, o Partido Mundial da Revolução
Socialista.
Eis, em síntese, um quadro geral da formação teórico-polí-
tica desenvolvida pelo LEMARX no contexto histórico de crise do
capitalismo e de crise sanitária do coronavírus, cumprindo, dessa
forma, um importante papel na compreensão da realidade atual e
das tarefas colocadas para a classe trabalhadora, a juventude e os
oprimidos.

O BICENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE ENGELS

No dia 28 de novembro de 2020 será comemorado interna-


cionalmente o bicentenário de nascimento de Friedrich Engels.
Como aconteceu na comemoração do bicentenário de Marx, em
2018, comemoraremos essa data central para classe trabalhadora
e para o movimento revolucionário internacional com um debate
sobre a importância de Engels para o marxismo e para a luta pela
emancipação dos trabalhadores e dos oprimidos de todo o planeta.

O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA E DA PANDEMIA


434

Engels não é apenas o companheiro de luta de Marx. Engels


é, junto com Marx, fundador do socialismo científico, do marxis-
mo. É também um dos maiores pensadores que a história da hu-
manidade já produziu. É, outrossim, uma das mais importantes
lideranças socialistas de toda a história do movimento operário.
Por isso, temos de levantar o punho alto e gritar: Viva Engels! Viva
o internacionalismo proletário! Viva o socialismo!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conclusão fundamental da presente experiência extensio-


nista é que a formação político-teórica é essencial para o processo
de divulgação das ideias revolucionárias entre trabalhadores, mi-
litância, docentes e estudantes. Em meio ao aprofundamento da
crise estrutural do capitalismo, cujos elementos de barbárie social
avançam a cada dia em todo o planeta, o conjunto do conhecimen-
to filosófico e científico formulado pelos fundadores do marxismo
e seus continuadores se torna cada vez mais atual.
O LEMARX cumpre esta tarefa ao proporcionar essas ati-
vidades extensionistas, tendo em vista que a tarefa fundamental
na época de decomposição imperialista do capitalismo é avançar
no processo de organização política e da consciência de classe dos
trabalhadores e demais explorados e oprimidos. “Socialismo ou
barbárie!”, uma palavra de ordem tão atual quanto à época em que
foi formulada pela primeira vez. Ou avançamos no caminho da su-
peração do capitalismo ou este avançará no caminho da barbárie
social, com todas as consequências para a humanidade e para a
classe trabalhadora, em particular.

REFERÊNCIAS

LÊNIN, V. I. Que fazer? São Paulo: Martins Fontes, 2006.


LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução. São Paulo: Boitempo, 2017.

SANDRA M. M. SIQUEIRA • FRANCISCO PEREIRA


435

LÊNIN, V. I. Duas táticas da socialdemocracia na revolução demo-


crática. São Paulo: Livramento, s/d.
LÊNIN, V. I. Teses de Abril. São Paulo: Boitempo, 2017.
LÊNIN, V. I. A Revolução proletária e o renegado Kautsky. Coimbra:
Centelha, 1974.
LÊNIN, V. I. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. São Paulo:
Global editora, 1981.
LÊNIN, V. I. Materialismo e Empiriocriticismo. Lisboa: Edições
Avante!, 1982.
LÊNIN, V. I. Imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo:
Expressão Popular, 2012.
TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São
Paulo: Sundermann, 2011.
TROTSKY, Leon. A Revolução Permanente. São Paulo: Expressão
Popular, 2007.
TROTSKY, Leon. A Revolução Traída. São Paulo: Centauro editora,
2007.
TROTSKY, Leon. O programa de transição para a revolução socia-
lista. São Paulo: Sundermann, 2008.

O LEMARX E A FORMAÇÃO TEÓRICO-POLÍTICA NO CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA E DA PANDEMIA


E-mail: imprece@hotmail.com
Tel.: 3055.0102

Este livro, com o formato final de 14cm x 21cm, contém 436 páginas.
O miolo foi impresso em papel Off-Set 75g/m² LD 64cm x 88cm.
A capa foi impressa no papel Cartão Triplex 245g/m² LD 64cm x 88cm.
Tiragem de 300 exemplares.
Impresso no mês de fevereiro de 2021.
Fortaleza-Ceará.

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