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O NÚMERO DA BESTA E A LITERATURA APOCALÍPTICA (THE NUMBER OF THE


BEAST AND THE APOCALYPTIC LITERATURE)

Conference Paper · October 2007

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Manoel Campos Almeida


Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)
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O NÚMERO DA BESTA E A LITERATURA APOCALÍPTICA

MANOEL DE CAMPOS ALMEIDA

PUCPR

Para Peter Damerow

1.0 Resumo
O número da besta (666) geralmente é apresentado no textos de história da
matemática como um mero exemplo de aplicação da gematria. Essa visão é apenas
parcial, porque não o configura dentro do contexto em que realmente surge, ou seja, o
da literatura apocalíptica, como mostraremos no presente trabalho.
Abstract
The beast number (666) is generally introduced in the mathematics history texts
as a plain example of gematry. This is only part of the truth, because it take no notice
of the context where it appears, that is, inside the apocalyptic literature, as we will
show in the present work.
2.0 Introdução
O número da besta surge no Apocalipse (Revelações) do apóstolo S. João, 13:18,
prenunciando o aparecimento do Anticristo: “Quem é inteligente calcule o número da
Besta, pois é um número de homem: seu número é seiscentos e sessenta e seis.”
Esse número é, provavelmente, o mais famoso e importante dentro da história da
cristandade. Inúmeras versões já lhe foram dadas e continuam a emergir, mesmo no
presente. Não poucas dessas interpretações vaticinaram desgraças, provações,
ocasionando conflagrações, desalentos e convulsões sociais, com graves
conseqüências para a humanidade.
Ao longo da história vários matemáticos se devotaram ao assunto, em um
determinado momento de suas vidas. Mencionaremos apenas alguns.
John Napier, o inventor dos logaritmos, publicou em 1593 um caustico e
amplamente lido ataque à Igreja de Roma, intitulado “Uma descoberta integral das
Revelações de S. João”, no qual propugnava provar que o Papa era o Anticristo e que
o Criador estava disposto a terminar com o mundo entre 1688 e 1700. Esse livro
contou com 21 edições, das quais ao menos dez durante a sua vida. Napier acreditava
sinceramente que sua reputação posterior seria devida a esse livro.
O matemático Michael Stifel, amigo de Lutero, “provou” que as letras do nome
do Papa Leão X (LEO DECIMVS) correspondiam ao número da besta, 666. Em 1528
Lutero conseguiu-lhe um lugar na paróquia de Lochau, onde cometeu o erro de prever
o fim do mundo. Ao se comprovar que estava errado, foi preso e demitido de seu
posto.
Isaac Newton estudou as profecias apocalípticas, dando sua própria interpretação
sobre elas em seu ensaio “Observações sobre as profecias”.
O interesse por esse número é compartilhado não apenas pelos matemáticos mas
também por sua ciência, a matemática. Nas últimas duas décadas houve um
recrudescimento no interesse no mesmo dentro da matemática, talvez incentivado pela
chegada do novo milênio. Vejamos alguns desses desenvolvimentos recentes (α)1 .
Dentro da teoria dos números, notou-se que o número da besta além de ser igual
a soma dos quadrados dos primeiros sete números primos
2 2 + 32 + 5 2 + 7 2 + 112 + 132 + 17 2 = 666 , também é igual à soma dos 36 primeiros
6 x 6 = 36
números inteiros: ∑ i = 666 , ou seja, é igual à soma dos números que figuram em
i =1

uma roda de roleta.


Um número que tenha 666 dígitos é um número do apocalipse. Números do
apocalipse primos são dados por 10 665 + n , para n = 123, 1837, 6409, 7329, 8569,
9663,...
Um número apocalíptico é um número da forma 2n que contenha os dígitos 666.
Os primeiros valores de n que satisfazem ao requerido são n = 157, 192, 218, 229,...
Um número do demônio é um número x no qual os n primeiros dígitos de sua
parte fracionária [frac(x)] somam 666. O número pi (π) é um número do demônio, para
n = 144; também a razão áurea (Φ) o é para n = 146.
O número (10 666 )! é denominado número leviatã, onde 666 é o número da besta
e ! denota o fatorial de um número.
GRATTAN-GUINNESS, em um brilhante artigo (2001) já notava que os
vínculos entre a matemática e o cristianismo ainda não foram ampla e devidamente
estudados. Concordamos integralmente com essa opinião. Embora exista uma vasta

1
Quando algum fato ou documento mencionado no texto do presente trabalho puder ser localizado em
um site específico da Internet, este site será referenciado por letras gregas minúsculas, sendo a data da
consulta e seu endereço indicado nas referências bibliográficas.
literatura marginal ao assunto, ela é, em sua quase totalidade, fantasiosa, especulativa,
sensacionalista e esotérica, vazia de conteúdo científico.
Nessa pseudo-literatura podemos identificar duas principais correntes nos dias
de hoje: na primeira, o autor erige em torno de alguns fatos históricos, bastante ou
pouco conhecidos do público, toda uma trama, com elementos de romance, aventura e
suspense. Reconhece, porém, o caráter fictício da narrativa, geralmente identificando o
que é real (histórico) e o que é de sua lavra. Essas obras devem ser apreciadas pelo
que proporcionam, isto é, entretenimento. Às vezes têm o mérito de chamarem a
atenção do grande público para algum fato histórico obscuro, gerando um interesse
saudável pela história (ver Nota a.).
Já na segunda corrente o autor, com base em alguns fatos históricos, de modo
geral enviesadamente apresentados, pretensamente efetua “descobertas”, decifra
“códigos” e gera “previsões”. É característica dessa corrente que os dados históricos
normalmente sejam distorcidos, ou mostrados parcialmente, trabalhados e moldados
para que se encaixem dentro dos desígnios do autor, em completo desrespeito às
exigências de uma obra científica. Essa corrente é perniciosa, pois induz erroneamente
o público ingênuo a acreditar nela e nas suas “previsões” (ver Nota b.).
Nos textos de história da matemática hoje disponíveis o número da besta é
apresentado como uma aplicação singela da gematria. Esse enfoque é, em nossa
opinião, apenas parcial, pois não leva suficientemente em consideração o contexto em
que esse número surge, isso é, sua aparição dentro do corpus conhecido como
literatura apocalíptica.
O simbolismo envolvido não é devidamente apreciado e isso é sumamente
importante para o esclarecimento da questão. Também o que GRATTAN-GUINNESS
(op.cit.) denomina de inter-relações entre as religiões e a matemática, frisando
oportunamente que foram pouco estudadas, não merece o devido tratamento.
A análise dessas questões é equivalente, acreditamos, ao estudo da
etnomatemática dos apóstolos e de seus discípulos, ou seja, à compreensão da
etnomatemática dos primeiros cristãos.
D’AMBROSIO, considerado o pai intelectual do programa etnomatemática,
denomina de “etnomatemática à matemática a qual é praticada por grupos culturais
identificáveis” (1997, o artigo original é de 1985, p.16). Propõe um amplo
entendimento do conceito de ethnos, de modo a incluir os jargões, códigos, símbolos,
mitos e mesmo modos específicos de raciocínios e inferências desses grupos no estudo
de sua etnomatemática .
A etnomatemática dos primeiros cristãos estava impregnada de misticismo
numérico. A Palestina nessa época era um caldeirão onde fervilhavam várias correntes
de misticismo numérico, tais como o misticismo numérico grego, o gnóstico, o hebreu
(cabala), bem como o misticismo de vários cultos de mistério em voga na época. Seu
misticismo era um amálgama desses. Para melhor compreendê-la, necessitamos
conhecer as origens históricas desse misticismo.
Para efeito do presente trabalho, dividiremos a história da Palestina em: período
aquemênida (539-332 A.C.), período helenístico (332-37A.C.), período romano
(37A.C.-312/476 D.C.).
3.0 Misticismo numérico
3.1 Origens
A propriedade que os números possuem de poderem ser combinados de vários
modos, de se poder escrever cada um de várias maneiras, sugere possuírem algo de
sagrado, induzindo a considerá-los como uma espécie de língua universal, capaz de tudo
expressar. A associação de números com nomes é muito antiga na cultura suméria.
Uma das primeiras manifestações do poder dos números encontra-se no panteão
sumério, onde existe uma hierarquia numérica dos deuses. Ao deus supremo, o deus do
céu An(um), associava-se o número "perfeito", a unidade (base) 60, o que nos permite
inferir a antigüidade deste sistema. A série numérica atribuída aos deuses, que traduz
também sua importância hierárquica dentro do panteão sumério, é a seguinte (cf.
DHORME, 1949; IFRAH,1981, p.310),

An, deus supremo, deus do céu, 60


Enlil, Deus da terra, filho de An, 50
Enki-Ea, o deus das águas, 40
Sin, deus-lua, 30
Shamash, deus-sol 20
Ishtar, deusa-vênus, 15
Nergal 14
Marduk, e também Gibil e Nusku 10
Os mesopotâmios tiveram a idéia de atribuir um valor numérico aos signos de
seu silabário, de modo que todo o nome pudesse ser expresso por um número. A
criptografia denomina correspondências um-a-um entre sinais e numerais de
“substituição cifrada”. Por exemplo, Sargão II (722-705 A.C.), rei da Assíria, por
ocasião da construção do palácio de Khorsabad, procurou criar um elo entre sua
identidade e a muralha que o defendia, fazendo inscrever: "De 16283 cúbitos, o número
de meu nome, eu fiz a medida de sua muralha" (RUTTEN, p.197, grifo nosso). Desse
modo estabeleceram a igualdade nome = número.
O acádico é uma língua semita, juntamente com o hebreu, o árabe, o aramaico, o
fenício, etc. Ele tem três dialetos: o acádico antigo, o assírio e o babilônico. Pode-se
dizer, portanto, que qualquer coisa escrita em babilônico ou assírio está também escrita
em acádico. Os falantes do acádico emprestaram e adaptaram o silabário sumério para a
sua escrita.
Existe um pequeno número de textos, denominados de textos numérico-
silábicos, que estabelecem uma correspondência entre os sinais do silabário (A), o mais
conhecido, com números. Entre esses textos encontram-se os registrados nos tabletes:
W22825+22808, Rm.806, BM 46603+46609, BM 47732+48191, BM 77233, MMA
86.11.364.
Já no terceiro milênio encontramos o aparecimento em textos de valores
numéricos para sílabas, principalmente na ortografia de nome de deuses e de elementos
em nomes pessoais que sejam relacionados a essas divindades. O corpus de inscrições
de Susa proporciona alguns dos mais antigos exemplos encontrados no segundo
milênio. Nas inscrições de Kidinû, ca. 1465 A.C. , aparece o valor 3,20 como o
equivalente numérico de “rei”. Também figuram 15 - 2,30 e 1,20 como equivalentes
numéricos para “direita”, “esquerda” e “trono”, respectivamente. No primeiro milênio
encontramos numerais freqüentemente representando nomes divinos.
Embora seja difícil de identificar o propósito para o qual esses textos numérico-
silábicos foram compilados, bem como o seu uso na prática (praxis) cotidiana do
escriba, eles certamente contribuíram para a preservação e manutenção da tradição de
ensino dos escribas, especialmente nos princípios do primeiro milênio em geral, e no
período Seleucida em particular. A cópia fiel de textos tradicionais era parte integrante
da formação do escriba.
Heródoto conta que os gregos aprenderam a escrever com os fenícios. Os gregos
denominam suas letras de phoinikeia (“coisas fenícias”), e a derivação da letras gregas
do alfabeto fenício é confirmada por uma série de similaridades nos seus nomes, no
modo em que eram escritas e pela sua ordenação, de alpha a tau. A data em que os
gregos derivaram seu alfabeto do alfabeto fenício é ainda hoje objeto de controvérsias.
BERNAL ( ) acredita que isso ocorreu em torno de 1400 A.C., ou mesmo em data
mais recuada, cerca de 1700 A.C., enquanto que NAVEH ( ) sustenta que não pode
ter ocorrido antes de 1100 A.C.. As mais antigas inscrições gregas, rabiscos em
pedaços de cerâmica, datam de 730 A.C., embora os gregos já praticassem a escrita
algum tempo antes.
Como a escrita grega era alfabética, herança dos fenícios, e não silábica, como a
babilônica, o passo natural era associar cada letra a um número, como já os babilônios o
tinham feito, associando cada sílaba a um número. O passo cognitivo é o mesmo:
associar cada signo de sua escrita a um número.
O sistema de numeração milesiano, alfabético ou jônio, surgiu na cidade grega
de Miletus, possivelmente no século VIII A.C., e empregava todas as letras do alfabeto
grego maiúsculo para representar números. Seus exemplos mais antigos são grafites em
vasos do século VI A.C. Após Atenas no século IV A.C. tê-lo adotado, suplantou todos
os outros alfabetos locais então existentes. Posteriormente, as letras minúsculas foram
introduzidas.
No século VI A.C., os gregos desenvolveram um sistema de numeração escrita
de 1 a 24 por meio de letras alfabéticas, conhecido como ático, baseado no princípio
acrofônico, onde a letra inicial da palavra para o número servia como seu numeral.
Nesse sistema os números de um a quatro eram representados por riscos verticais (a
letra grega iota - I) repetidos; para o cinco adotou-se um novo símbolo, a primeira letra
da palavra grega para cinco: pente (Π ou Γ). Para números de seis a nove combinava o
símbolo Γ com riscos unitários verticais: Γ era sete. Para as potências positivas da
base dez, empregava as letras iniciais das palavras correspondentes: ∆ para deka (dez);
H para hekaton (cem); X para khilioi (mil); M para myrioi (dez mil).
Os helenos empregavam, portanto, dois alfabetos na representação de números:
um, o milesiano ou jônio, empregava todas as letras do alfabeto, outro, o ático ou
herodiânico, empregava a letra inicial da palavra para o número como numeral.
Durante a idade helenística (de hellen = grego), após as conquistas de
Alexandre, a língua grega, a koiné, se tornou uma língua internacional, e a idéia
inovadora de usar letras (símbolos de sons) para denotar números, por meio do alfabeto
milesiano, se espalhou pelo Mediterrâneo e pelo Oriente Médio. Esse sistema foi
adotado pelos egípcios, persas, fenícios, árabes e judeus. No Egito, o sistema milesiano
parece ter sido adotado durante o reino de Ptolomeu Filadelfo (246-221 A.C.).
A doutrina do nome, que prega o poder criador da palavra, de que uma coisa
passa a existir somente quando recebe um nome, constituía concepção muito difundida
entre os povos da antigüidade, especialmente entre os mesopotâmios. Também estes
desenvolveram o conceito de que nome = número. Podemos reformular a doutrina do
nome assim: uma coisa passa a existir quando recebe um número = nome. Logo, todas
as coisas que existem têm um número. Ora, isso nada mais é do que a doutrina da escola
pitagórica: "Tudo [todas as coisas que existem] é [tem um] número". Provavelmente
essa é a origem do misticismo numérico desenvolvido pela escola pitagórica, o qual
influenciou profundamente o simbolismo numérico posterior, inclusive a numerologia
moderna.
Denomina-se de gematria, gematria numérica, ou isopsefia (a palavra grega para
gematria) ao sistema criptográfico onde se atribui às letras (de um alfabeto) ou às
sílabas (de um silabário) valores numéricos convencionados.
A palavra isopsefia vem do vocábulo grego isopsephos, onde iso- significa igual
e psephos significa seixo, pois os gregos empregavam seixos (ou calculi, em latim) nos
cálculos com o ábaco, e posteriormente na formação dos números figurados.
A etimologia da palavra gematria é duvidosa. Argüi-se que pode provir da
palavra grega geometria (γεωµετρία), terra-medida, apresentando-se como prova a
evidência do uso da gematria na construção de templos e outros edifícios oficiais, tais
como o Partenon e o templo de Apolo em Didyma. De qualquer forma, seu uso é
aparente na Grécia por volta do século V A.C., embora a idéia geral possa ter sido
bastante difundida ao redor do Mediterrâneo em uma data anterior.
A gematria grega que nos é familiar requer 27 letras para representar três
eneadas (nônuplas) numéricas (1-9, 10-90, 100-900), empregando o sistema alfabético.
Porém, cumpre observar que três letras arcaicas (Digamma-6, Coph-90, Sanpi-900) se
tornaram obsoletas no meio literário e caíram em desuso, mas foram mantidas nos
cômputos numéricos e na gematria grega, pois do contrário não se disporiam das 27
letras necessárias para completar as três eneadas.
Os hebreus também adotaram um sistema de gematria similar. O antigo alfabeto
hebreu era muito parecido com o fenício. O alfabeto hebreu mais recente, cujo uso nos é
familiar na gematria, é denominado de hebreu quadrado; parece ter se originado do
alfabeto aramaico e se consolidado em torno do III-II século A.C. Seus numerais usam as
vinte e duas letras do seu alfabeto, na mesma ordem das do alfabeto fenício, do qual elas
derivam, para representar (de aleph a tet) as primeiras nove unidades, então de yod a
tzzadi, as nove dezenas, e finalmente de qoph a tau , as primeiras quatro centenas. Como
são necessárias 27 letras para a completa representação das três eneadas, aproveitou-se o
fato que cinco letras (kaph, mem, nun, pe, tzzadi) desse alfabeto têm formas duais,
conforme aparecem em posições ou inicial e medial ou final nas suas palavras. Os mais
antigos exemplos do emprego desse sistema surgem nos fins do séc. II A.C. e no início
do séc. I A.C., contemporâneos aproximadamente do período do Macabeus. Antes disso
não são conhecidos achados arqueológicos que comprovem o uso de letras hebraicas
como números. A Tabela I mostra os valores numéricos convencionados para os
alfabetos jônio, maiúsculo e minúsculo, e hebreu quadrado.
O uso do sistema de numerais alfabético grego aliou a cada palavra escrita em um
dos antigos alfabetos, como o grego, o hebreu, o árabe, um valor numérico, desde que o
valor de cada letra podia ser somado até formar um único número, correspondente ao
número da palavra.
A aritmologia pode ser considerada como a filosofia dos poderes e virtudes de
determinados números inteiros. Já a aritmomancia é a prática da adivinhação ou da
previsão por meio da interpretação das propriedades mágicas dos números.
3.2 Misticismo numérico pitagórico
Pitágoras de Samos (570-508 A.C.) e sua escola deram origem ao misticismo
numérico mais antigo que se pode identificar com razoável grau de certeza. Pode-se
afirmar que esse misticismo exerceu extraordinária influência sobre a humanidade, desde
sua origem no século VI A.C. até praticamente os dias de hoje.
Os pitagóricos consideravam "os princípios das matemáticas" (os números) como
os princípios de todas as coisas, materiais ou não. Os números, portanto, davam origem a
todo o mundo material real. Mesmo coisas imateriais, tais como justiça, alma e razão,
originavam-se de "modificações" (combinações?) dos números. Consideravam "os
elementos" do números serem "os elementos" de todas as coisas, os “átomos” do mundo
material real.
O misticismo numérico pitagórico afirmava que: o número um é o gerador de
todos os números e o número da razão; o dois é o primeiro número par, ou feminino, o
número da opinião; três é o primeiro número masculino verdadeiro, o da harmonia,
sendo composto da unidade (1) e da diversidade (2); quatro é o número da justiça ou
retribuição, indicando o ajuste de contas; cinco é o número do casamento, união dos
primeiros números verdadeiramente femininos e masculinos e seis é o número da
criação.
O 10, a tetractys ou década sagrada, representava o número do universo, pois é a
soma de todas as dimensões geométricas. Um ponto (a unidade - 1) gera as dimensões;
dois a reta de dimensão um; três pontos (3) não coplanares determinam um triângulo
com uma área de dimensão dois; quatro pontos (4) não coplanares determinam um
tetraedro com volume de dimensão três; portanto a soma dos números que representam
todas as dimensões dimensões é 1+ 2 + 3 + 4 = 10, o número perfeito.
O número um não era considerado um número para os pitagóricos, mas sim o
princípio gerador de todos os números e, por conseqüência, o princípio gerador de todas
as coisas.
O misticismo numérico grego às vezes é denominado de Cabala Grega. Não
empregaremos essa nomenclatura, porque o termo Cabala é tradicionalmente aplicado
para nominar uma determinada corrente mística de origem hebraica, como veremos na
seqüência, a qual é posterior e sofreu influência do misticismo numérico grego, o que
pode suscitar interpretações incorretas.
3.3 Os neopitagóricos e os neoplatônicos
Com a dispersão da escola pitagórica em 450 A.C., o pitagorismo praticamente
desapareceu da história, exceto por uns poucos remanescentes. Por volta da metade do
século I A.C., ressurgiu o interesse nas idéias de Pitágoras por meio de um movimento
denominado de neopitagórico, que floresceu nos primeiros séculos de nossa era. Sob a
influência de Cícero, Nigidius Figulus (98-45 A.C.), seu amigo, tentou reviver o
pitagorismo em Roma. Outros neopitagóricos de importância foram Philo de Alexandria
(20A.C.- 40 D.C.), um judeu helenizado; Apolônio de Tyana (f.c.50 D.C.), figura algo
charlatanesca, que se considerava reencarnação (avatar) de Pitágoras; Moderatus de
Gades (f. segunda metade do séc.I D.C.), que criticou acerbamente Platão por ter se
apoderado das idéias de Pitágoras se lhe ter dado o devido crédito; Theon de Smirna
(f.c. 125 D.C.), que escreveu um tratado “A matemática útil para compreender Platão”,
o qual sobreviveu; Nicômaco de Gerasa (f.c. 140-150 D.C.), sua obra “Introdução à
Aritmética” é uma de nossas principais fontes sobre a matemática pitagórica, sendo que
sua influência se estendeu pela idade média até a renascença; Numenius de Apamea (f.
160 D.C.), cuja mistura dos pensamentos platônico médio e neopitagórico começa a
transformar esse movimento em neoplatônico.
É muito difícil estabelecer uma diferenciação clara entre os movimentos
neopitagóricos e neoplatônico, em virtude das similitudes e complementaridades dessas
concepções filosóficas.
O movimento neoplatônico se originou no Egito e, embora produto do
pensamento helenístico, foi largamente influenciado pelos ideais religiosos e tendências
místicas do pensamento oriental.
Ammonius Saccas (nasceu em 242 D.C.) é considerado o fundador do
neoplatonismo, embora não tenha deixados obras escritas; Plotino (205-270 D.C.) é
considerado o primeiro sistematizador dessa escola, foi influenciado por Numenius e
discípulo de Ammonius, escreveu 54 tratados, as Eneadas, que sobreviveram. Porfírio
de Tiro (233-303 D.C.), seguidor de Plotino e Iâmblico (morreu c.330), aluno de
Porfírio, escreveram ambos biografias de Pitágoras. Proclus ( 410-485 D.C.) é
considerado o mais sistemático dos platonistas; escreveu vários tratados sobre os
pensamentos de Platão, bem como diversas obras sobre matemática.
Pensadores cristãos, praticamente desde o começo do cristianismo, encontraram
no espiritualismo de Platão um poderoso aliado na defesa da concepção da alma
humana, conceito que os pagãos rejeitavam. Quando as idéias de Plotino começaram a
prevalecer, os pensadores cristãos se aproveitaram disso para suportar a doutrina de que
há um mundo espiritual real, diverso do da matéria. Posteriormente filósofos cristãos,
como Nemésio ( f.c. 450), incorporaram todo o sistema do neoplatonismo de tal maneira
que foi considerado consoante com o dogma cristão. Foi Santo Agostinho (354-430
D.C.), que conhecia os trabalhos de Plotino em uma versão latina, quem se encarregou
de depurá-los, adequando-os ao pensamento cristão.
Um conceito platônico, já presente no Timeus, o do Demiurgo, o do Grande
Artífice ou Fabricante, Arquiteto do Universo, mediador entre Deus, a fonte primeira e
suprema de todas as coisas, e o mundo material, teve importantes conseqüências para as
correntes filosóficas posteriores, principalmente os gnósticos, os quais estudaremos a
seguir. O mundo material foi criado pelo Demiurgo, pois Deus se restringia à sua orbe,
distante das coisas mundanas.
3.4 A Cabala
O termo Cabala (do hebreu Kabbalah, o recebido, o tradicional) é empregado
como um termo técnico para uma doutrina mística ou esotérica concernente a Deus e o
universo. Inicialmente consistia apenas de um conjunto de conhecimentos e tradições
populares, em contraposição à lei escrita (Torah), mas sob a influência dos
neopitagóricos (ou neo-platônicos) e dos gnósticos assumiu um caráter especulativo.
Sua principal característica era que, ao contrário da lei escrita, era reservada apenas a
uns poucos eleitos. Os dois livros que expõem esse sistema são a) o Sefer Yezirah (O
Livro da Criação (ou da Formação), e b) o Zohar.
O Zohar, conhecido como a Bíblia da Cabala, é um tratado compilado na idade
média, portanto não influiu no período que nos interessa, ou seja, próximo da origem da
cristandade. Já o Sepher Yezirah (γ) aufere de maior antiguidade. A data de sua
composição ainda é objeto de controvérsia; alguns atribuem sua autoria ao Rabbi Akiba
(c. 120 D.C.), outros sugerem que foi escrito em torno do ano 200 D.C., ou mesmo mais
tarde. Porém, ao menos parte de seu material pode remontar ao segundo século antes da
era cristã.

Tabela I

O Sefer Yezirah é um tratado curto, que professa ser um monólogo do patriarca


Abraão, no qual, na forma de sentenças oraculares, enumera as trinta e duas formas de
sabedoria pelas quais Deus criou o universo. O espírito de Deus, os três elementos
primordiais (ar, fogo, água), e as seis dimensões do espaço (altura, profundidade, leste,
oeste, norte, sul) formam os Dez Sefirot. O termo Sefirot se origina do substantivo
hebreu “sefirah”, que significa originalmente “número”ou “categoria”.
O ar (ou espírito) produziu a água primal, a qual, por sua vez, foi condensada no
fogo. A água se condensava em neve, e esta em terra. Essa concepção de água primal é
uma concepção Semítica bastante antiga, a do oceano primal, conhecido como Apsu
pelos babilônios. A doutrina dos elementos primais provavelmente é de origem
semítica, sendo posteriormente adaptada e adotada pelos gregos. A teoria dos quatro
elementos (água, ar, terra e fogo) de Empédocles (c.495-435 A.C.) foi a que maior
influência exerceu na história da ciência, resistindo como hipótese de trabalho até o
início do século XVII da nossa era.
Assim como os números de dois a dez são oriundos do número um, os Dez
Sefirot também são oriundos do um, o espírito de Deus. Isso evidencia a influência
pitagórica nessa doutrina, sendo que os dez Sefirot representam a tectractys sagrada. As
vinte e duas letras do alfabeto hebreu produziram o mundo material, são a fundação e a
origem de todas as coisas, bem como os poderes criadores de toda existência e
desenvolvimento. A relação entre as letras e os Dez Sefirot não é claramente definida no
Yezirah. Porém, elas pelo seu “peso” (valor intrínseco), sua combinação e seu
intercâmbio produziram toda a criação. As letras são os instrumentos pelos quais o
mundo real, que consiste em essência e forma, foi produzido a partir dos Sefirot, os
quais são meramente essências sem formas. Enquanto os três elementos primais
constituem a essência das coisas, as vinte e duas letras do alfabeto hebreu constituem a
forma.
A literatura apocalíptica do segundo e primeiro século pré-cristãos já continha os
elementos principais da cabala; de acordo com Josefo (c. 37-100 D.C.) tais escritos
estavam de posse dos essênios, que os guardavam zelosamente. Além da Palestina, a
Alexandria do século primeiro da era cristão, ou provavelmente bem mais cedo, com a
sua complexa ebulição de culturas egípcia, judaica, babilônica e grega, forneceu o solo e
as sementes para que essa filosofia mística, a qual sabia como misturar a sabedoria e os
desatinos dos antigos, emprestando a qualquer prática ou crença supersticiosa um
significado profundo e reverenciado.
A partir do exílio, no século VI antes da nossa era, os hebreus começaram a se
difundir pelo Oriente Médio e ao longo do Mediterrâneo Oriental. No século I A.C.,
calcula-se que havia um milhão de judeus só no Egito (ALEXANDER, p.497); boa
parcela da população de Alexandria era judaica e a maior parte das grandes cidades
registrava a presença de uma colônia judaica e de uma sinagoga. Esses eram conhecidos
como os judeus da dispersão, ou da diáspora, em grego.
3.5 Gnosticismo
Gnosticismo é conhecido como a teoria da salvação pelo conhecimento. Gnosis,
em grego, significa conhecimento. Esse esotérico sistema de teologia e filosofia
representa um dos mais obscuros e complicados problemas na história geral das
religiões. Sua origem antedata a cristandade, suas raízes já foram buscadas na Índia,
Síria, Pérsia, Babilônia e nas religiões de mistério helenísticas, permanecendo na
obscuridade. Originalmente era uma ciência secreta, uma disciplina arcani 2, ensinada
apenas aos iniciados.
Existiu uma multiplicidade de doutrinas gnósticas, cujo estudo vai muito além
dos objetivos do presente trabalho. Vamos nos restringir à exposição de algumas das
suas idéias centrais, bem como de determinadas correntes que interessam ao nosso
propósito.
Quando Ciro conquistou a Babilônia em 539 A.C., duas grandes correntes de
pensamento se fundiram. A idéia da grande luta entre o mal e o bem, idéia central do
mazdeismo iraniano, se uniu com as concepções astrológicas babilônicas, de que os
astros, principalmente os sagrados sete: Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, o Sol, Júpiter e
Saturno, tinham uma influência fatalística nas questões terrenas. Os sete astros,
simbolizados por milênios pelas torres em degraus (zigurates) babilônicas, deixaram de
serem deuses, mas permaneceram como archontes e dynameis, regras e poderes que
eram respeitados pelo homem. Dessa combinação surgiu a crença que a alma humana
deveria passar através das sete esferas planetárias (os sete astros) para atingir a esfera de
Deus. Essa ascensão da alma através das esferas planetárias para o céu além, uma idéia
desconhecida mesmo nas antigas especulações babilônicas, começou a ser concebida
como uma luta entre poderes adversos, o bem e o mal, e se tornou a primeira e
predominante idéia no gnosticismo.
O segundo grande componente do pensamento gnóstico é a mágica, isto é, o
poder de uma mistura de sons, nomes estranhos, gestos e ações produzir efeitos
sobrenaturais desproporcionais às suas causas. Esse componente provavelmente sofreu a
influência da Babilônia e Assíria, pois milhares de tabletes cuneiformes contendo
fórmulas mágicas ali foram encontrados.
Na concepção gnóstica o Demiurgo foi criado por uma série de emanações, as
quais também trouxeram ordem ao caos e ânimo espiritual à matéria sem vida. Essas

2
Disciplina do segredo, como os ensinamentos dos primeiros cristãos eram considerados durante as
épocas de perseguições.
emanações são associadas aos aeons, os poderes criativos do cosmos, os quais na cabala
judaica correspondem aos Sefirot.
Até a descoberta recente dos códices de Nag Hamadi, de treze textos gnósticos
encerrados em um vaso de argila encontrado perto de Nag Hamadi, no Egito, em
dezembro de 1945, as únicas informações relativamente detalhadas sobre as seitas
gnósticas provinha dos escritos dos Pais da Igreja Católica. Durante o acalorado debate
com os gnósticos no segundo e terceiro séculos, Irineu, Hipólito, Tertuliano, Clemente e
Orígenes apresentaram refutações contra os ensinamentos que consideravam heréticos,
definindo no processo pela primeira vez muito do que hoje é considerado doutrina
cristã.
A fase judaica do gnosticismo no primeiro século é conhecida como
Gnosticismo Sethiano, pois seus seguidores acreditavam serem descendentes de Seth, o
terceiro filho de Adão. Também no primeiro século uma figura gnóstica proeminente foi
Simão o Mago, a quem os Pais da Igreja atribuem a origem do gnosticismo cristão,
porém mais conhecido por sua menção no Novo Testamento e por sua disputa com o
apóstolo Pedro. Numa fase posterior encontramos o Gnosticismo Valentiniano, liderado
por Valentinus de Alexandria (110-175 D.C.), que foi responsável por uma importante
síntese do pensamento gnóstico no segundo século.
Outros gnósticos proeminentes foram Basilides (f.c.130 D.C.), Cerinto
(contemporâneo de S. João), Marcion ( f.c.140D.C. ) e Marcus (f.c.150 D.C.).
O misticismo numérico grego desempenhou um papel proeminente no
desenvolvimento das doutrinas gnósticas. Por outro lado, a extremamente próxima
relação então existente entre o gnosticismo e os primeiros cristãos ressalta a influência
gnóstica na introdução desse misticismo no pensamento cristão primitivo.
O sacrossanto caráter de que o número foi investido, do primeiro ao quinto
século da era cristã, parece ter sido o resultado de um gradual porém poderoso influxo
de “disciplinas do mistério” orientais no Império Romano. A vacuidade espiritual do
paganismo oficial romano produziu um vazio, o qual tornou o poderoso misticismo do
oriente particularmente atrativo. Uma divindade após outra fulgurava e desvanecia em
popularidade no panteão romano, até que todas foram eclipsadas, primeiro pelo culto
egípcio de Isis e Osíris, depois pelo mitraismo da Pérsia e, finalmente, pela cristandade.
Irineu (125-203 D.C.), que foi bispo em Lyons no século segundo, escreveu um
tratado em cinco volumes “Contra as Heresias”(β), no qual nos fornece um relato
sobre a teologia do gnóstico Marcus. Marcus considerava as letras do alfabeto grego
conectadas aos aeons; sua interpretação mística do papel do alfabeto grego na criação
do universo é intrigantemente similar à do Sefer Yezirah, onde o alfabeto hebraico
desempenha igual papel. Ele também dividiu o alfabeto em oito grupos gramaticais: sete
vogais (Η,Ω,Α,Ι,Υ,Ε,Ο), oito semi-vogais (Ζ,Λ,Μ,Ν,Ξ,Ρ,Σ,Ψ) e nove consoantes mudas
(Β,Γ,∆,Θ,Κ,Π,Τ,Φ,Χ).
Outro gramático gnóstico, Marsanes, considerava que as letras do alfabeto grego
são “a nomenclatura dos deuses e dos anjos”, e que quando mudavam elas se
submetiam [invocavam] a deuses ocultos “por meio de batidas e tons e silêncios
[pausas] e impulsos” (BARRY, p.112-117). Esse conceito é central na magia
helenistica, como podemos constatar através dos papiros mágicos gregos, onde figuram
longas listas de nomes enigmáticos (voces magicae), combinações de vogais e
permutações de letras. Vários amuletos, pedras gravadas (glíptica), grafites contendo
exemplos dessa magia grega sobreviveram.
Como a letra grega α (alfa) geralmente representava o primeiro princípio, o
simbolismo gnóstico a utilizava como um nome de Jesus. O próprio Jesus parece ter
empregado esse misticismo numérico algumas vezes, como a bíblia registra: “Eu sou o
Alfa e o Omega, o principio e o fim” (Apocalipse 1,8, 21,5 e 22,13); no antigo
testamento Isaias 44,6). Essas passagens foram consideradas pelos primeiros cristãos
como liberatórias do uso do misticismo numérico grego na interpretação da sua própria
fé, dado que o próprio Salvador o usava. Cabe registrar que esse misticismo estava de
tal forma impregnado nos hábitos e costumes da época, que o seu uso não constituía
nada excepcional, sendo perfeitamente compreensível no contexto cultural da época.
Irineu (Contra Heresias, livro I, cap. 15)(β) e Hipólito (Refutações de Todas as
Heresias, VI, 45)(β) nos fornecem a interpretação numérica gnóstica do nome de Jesus:
(grego) ΙΗΣΟΥΣ = 10+8+200+70+400+200= 888. Hipólito (op.cit.,VI, 47) também nos
indica a interpretação gnóstica da palavra AMEM = (grego) AMHN = 1+40+8+50= 99.
A correlação de Cristo, indicado como alfa e ômega, ΑΩ = 1+800 = 801, com a
pomba (grego) ΠΕΡΙ – ΣΤΕΡΑ = (80+5+100+10)+(200+300+5+100+1) = 801 (Irineu,
op. cit, I, 14-16), símbolo da Santíssima Trindade, do Espírito Santo na crença cristã, é
uma ilustração do uso de isopsefia para associar palavras ou frases de igual valor.
Abriremos aqui um pequeno parênteses para tratar das origens da doutrina da
trindade. Pais da Igreja como Clemente e seus discípulos Hipólito e Orígenes, que
viviam nos maiores centros do movimento gnóstico, no século segundo, inevitavelmente
buscavam inspiração nos modelos com estavam em contacto. Na época, uma das mais
espinhosas fraquezas da doutrina, evidenciada pela heresia ariana, que negava a
divindade de Jesus, era o caráter dual da deidade: Deus (Pai) e Deus (Filho).
Muitos gnósticos incorporavam os credos neopitagóricos (cf. Plotino, Iâmblico,
Proclus) sobre a trindade, a tríade mística. Para eles 1 e 2 não eram números, mas
somente princípios ou números potenciais, sendo que 3 era o primeiro número real. Três
representava toda a realidade, não somente sua imagem superficial, e também tinha um
começo (1), meio (2) e fim (3). Por meio da tríade, a unidade (1) e a diversidade (2), que
compõem a tríade (1+2=3), têm sua harmonia restaurada, porque o 3, atuando como
mediador, une os outros dois (1,2) em uma única ordem completa. Desse modo, a ordem
divina tinha um caráter triplo, pois a tríade era a unidade perfeita.
A presença de tríades divinas em todos os credo gnósticos com certeza foi um
fator determinante na criação da doutrina cristã da trindade, porém sua inspiração
última certamente provém do pensamento neopitagórico. Que o Pai e o Filho eram Um
era uma afirmação questionável, tanto em base numérica como filosófica, mas que o
Pai, o Filho e o Espírito Santo eram inquestionavelmente Um era um fato, por virtude
de serem Três!
Muitos dos mais antigos cristãos, incluindo o apóstolo Paulo, não parecem ter
conhecimento dessa doutrina. Por isso as duas citações do Novo Testamento, a primeira
(Mateus 28,18) referente a uma tríade (Pai, Filho e Espírito Santo) e a outra (I João 5,7)
referente à trindade (o espírito, a água e o sangue), são suspeitas de serem interpolações,
especialmente a última. Referências à Trindade somente se tornaram comuns após o
século terceiro, sendo que essa doutrina somente recebeu a aprovação oficial da Igreja
no Concílio de Constantinopla (381 D.C.).
Graças a Hipólito (op.cit., IV,14) temos uma descrição de uma técnica usada na
numerologia gnóstica, conhecida como pythmenes (tronos, ou raízes). Ë equivalente à
regra tradicionalmente conhecida como “regra dos noves”, ou “noves fora”. Quando um
número é dividido por nove, o resto é o mesmo daquele obtido se a soma dos dígitos do
número original é dividida por nove. Os cabalistas hebreus empregavam o pythmenes
sob o nome de aiq beker, também conhecido como Cabala das Nove Câmaras. Hipólito
também menciona a aplicação do pythmenes em um sistema numerológico empregado
pelos egípcios: “...eles calcularam a palavra “Deidade” e encontraram que ela reverte
em uma quíntupla com uma nônupla subtraída” (op.cit., IV,44). A palavra para
divindade em grego e copta é theos, ΘΕΟΣ = 9+5+70+200 = 284, mas
284=2+8+4=14=5+9, ou, de outra maneira, 284 dividido por 9 é 31, com um resto 5.
3.6 Oráculos e Invocações
Um dos mais antigos exemplos de isopsefia conhecidos é descrito pelo pseudo-
Calístenes, que escreveu uma biografia (Vida de Alexandre) no século III A.C. Relata
que um deus apareceu em um sonho a Alexandre, declarando-se seu protetor, e seu
nome seria reconhecido da seguinte forma : “Tome duzentos e some um; então cento e
um, e quatro vezes vinte, e dez; e tome o primeiro número e faça ele o último; e conheça
para sempre que deus eu sou” (BARRY, p.90). É dito que Alexandre interpretou o
sonho como: 200+1+100+1+(4x20)+10+200=592, número que corresponde ao das
letras do deus Grego-egípcio SARAPIS: Σ Α Ρ Α Π Ι Σ =200+1+100+1+80+10+200
=592. O nome Sarapis, ou Serapis, provavelmente é a composição dos nomes de dois
deuses egípcios, Osiris e Apis. O culto de Serapis foi introduzido em Alexandria por
Ptolomeu, o general sucessor de Alexandre no Egito.
Outros exemplos de isopsefia como método pelo qual os deuses podem revelar
segredos à humanidade, podem ser encontrados nos denominados Oráculos Sibilinos.
Na forma em que hoje os possuímos, compõem-se de quinze livros compilados por
judeus ou cristãos entre os séculos II e IV da nossa era. As Sibilas eram profetisas com
uma longa história no mundo grego-romano, já figuravam, por exemplo, nos escritos do
comediante grego Aristófanes (c.447-380 A.C.) e nos do poeta romano Virgílio (70-19
A.C.).
Há citações de Pausanias, Plutarco, Lívio e outros afirmando que livros contendo
essas profecias eram mantidas em Roma, e só eram consultados em tempos de perigo ou
de acontecimentos anormais. Porém o capitólio romano, onde esses livros eram
mantidos, foi destruído pelo fogo no tempo de Sulla (84 A.C.) e novamente no tempo de
Vespasiano (60 D.C.).
Provavelmente só fragmentos restaram desse corpus antigo, que possivelmente
foram incorporados aos livros que hoje possuímos, os quais são um pastiche das
mitologias helenística e romana pagã, de lendas judias, tais como referências ao jardim
do Éden e da torre de Babel, bem como de uma longa lista de imperadores romanos; de
homilias gnósticas e cristãs primitivas e também de escritos escatológicos. Os rituais
associados às profecias, que os antigos romanos podiam ter lido, foram removidos pelos
editores judeus e cristãos.
O Livro V, que provavelmente foi escrito por um judeu egípcio nos fins do I
século da nossa era, aproximadamente contemporâneo, ou mesmo antecessor, do
Apocalipse de S.João, do qual alguns acreditam que pode ter sido o protótipo, é notável
pelas passagens apocalípticas ali contidas. Suas primeiras linhas descrevem, de uma
maneira pseudo-profética, mas obviamente retrospectiva, os imperadores romanos até
Marco Aurélio, seguindo curiosamente a ordem sugerida por Suetônio, o historiador
romano.
Depois dos bebês que a loba tomou como crias, virá um rei [imperador] o primeiro e todos, a primeira letra
de cujo nome irá somar duas vezes dez; ele será vitorioso na guerra; e por seu primeiro sinal ele terá o
número dez; então após ele reinará um que terá a primeira letra como sua inicial; perante ele a Trácia irá
encolher-se, depois a Sicília, então Mênfis, Mênfis se humilhou por falha de seus líderes, e de uma mulher
arrojada, que caiu na onda (sic). Ele dará leis ao povo e trará todos em sujeição, e depois de um longo
tempo seu reinado reverterá para um que terá o número trezentos como sua primeira letra, e o nome bem
conhecido de um rio, cujo domínio irá alcançar os persas e a babilônia: ele os medas com a lança. Então
reinará um cujo nome-letra é o número três; então um cuja inicial é vinte: ele alcançará a maior distância da
maré do oceano, rapidamente viajando com sua companhia Ausoniana. Então um com a letra cinqüenta irá
ser rei, um dragão caído exalará atroz guerra, que levantará a sua mão contra seu próprio povo para matá-
lo, e então espalhará confusão, representando o atleta, auriga, assassino, um homem de muitas ações
doentias; ele cortará através da montanha entre dois mares e os manchará de sangue; ainda ele se
desvanecerá até a destruição; então ele irá retornar, fazendo a si próprio igual a Deus; assim Deus revelará
sua insignificância. Depois dele três reis perecerão cada um na mão do outro; então virá um grande
destruidor de divindades, cujo número setenta cabalmente mostra. Seu filho, revelado pelo número
trezentos, tomará o poder. Após ele virá um tirano devorador, marcado pela letra quatro, e então um homem
venerável, pelo número cinqüenta, mas após ele um que leva o signo inicial de trezentos, um celta, ....(apud
BARRY, p.91-92).

É uma passagem deveras instrutiva para o nosso objetivo, pois exemplifica um


contexto apocalíptico contemporâneo a e talvez conhecido por João. A lenda atribui a
fundação de Roma aos gêmeos Rômulo e Remo, que foram adotados e criados por uma
loba. Após eles, virá o primeiro rei (imperador), cuja primeira letra de seu nome
(sobrenome) somará vinte: K, a inicial de César (KAISAR), vale 20; e por primeiro
sinal (primeira letra- I) de seu nome Julius (IULIUS), vale 10. É interessante notar que
Suetônio adota Julius César como o primeiro rei, o que provavelmente indica que o
editor desse livro provavelmente o adotou como fonte da seqüência de reis. O próximo
“terá a primeira letra como inicial”, apontando para o sucessor de Julio César, Augusto
(ou Otaviano), cuja inicial do nome é A, que derrotou Marco Antônio e Cleópatra, sem
dúvida a “mulher arrojada” mencionada. Então vem Tibério, cujo nome começa com a
letra T, equivalente a 300, e está ligado ao nome do rio Tibre (Tigre). As menções
crípticas a seguir são indicadas pelos valores numéricos 3=G para Gaius; 20=K para
Claudius; e 50=N para Nero.
É importante notar aqui as menções ao caráter doentio de Nero, bem como a
referência à então popular lenda do retorno de Nero após a morte, Nero Redivivus,
quando então conduziria um exército para o oriente; e a menção que ele se igualará à
Deus, ou seja, será um Anticristo, o qual será derrotado pelo Deus verdadeiro.
A noção do herói, líder ou tirano revivido é um arquétipo recorrente na história da
humanidade. Talvez seu mais antigo exemplo seja o de Alexandre o Grande. Como
morreu repentinamente nos confins do império macedônico, lendas se formaram acerca
de sua morte ou não morte, permanecendo em seus súditos a impressão de que
regressaria brevemente. Exemplos mais recentes encontramos nos casos de Frederico I
(o Barba Ruiva), que pereceu nas cruzadas em 1190, distante do seu feudo, gerando
assim a lenda de um Frederico futuro, revivido, o Imperador dos Últimos Dias; e de
Hitler, cujo suicídio em 1945 foi testemunhado por poucos, permanecendo no
inconsciente coletivo a impressão de que o insano retornaria.
Também encontramos aqui a descrição alegórica da Besta de sete cabeças do
Apocalipse (17,3;13,1), sendo que a Besta representava o poder imperial romano e as
sete cabeças os sete imperadores romanos (até Nero). A alegoria da besta como o poder
imperial já estava presente na visão de Daniel. Os “três reis”seguintes são Galba, Otho e
Vitélio. Os imperadores restantes indicados por suas letras gregas iniciais são:
Domiciano (∆=4), Nerva (N=50) e Trajano (T=300), que na realidade não era Celta mas
Espanhol.
No Livro I encontramos menção ao valor numérico do nome de Jesus, como
sendo na ordem de oito centenas, o que certamente coincide com a interpretação
gnóstica: ΙΗΣΟΥΣ = 10+8+200+70+400+200= 888.
Outra forma comum de misticismo numérico grego, além da isopsefia, era o uso
de acrósticos, ou notarichon, no qual as letras iniciais de uma frase ou de uma
passagem formam uma palavra. Talvez o acróstico mais famoso da história seja o que
ocorre no Livro VIII, no qual as letras iniciais dos versos formam: ΙΗΣΟΥΣ ΧΡΙΣΤOΣ
ΘΕΟΥ ΥΙΟΣ ΣΟTΗP (Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador). Santo Agostinho de
Hipona (354-430 D.C.) ressalta que as letras iniciais desse acróstico formam a palavra
grega ΙΧΘΥΣ, que significa peixe, a qual sugeriu ao antigos cristão o uso do peixe
como emblema da cristandade.
Numerosos exemplos do misticismo numérico grego aparecem em um corpus de
papiros greco-romanos conhecido como Papiros Mágicos Greco-Romanos. Contém
uma variedade de hinos, rituais, fórmulas mágicas, invocações, etc., datando do
primeiro ao quinto século da nossa era. Palavras mágicas (voces magicae), como
AKRAKANARBA, da qual deriva a nossa abracadabra, parecem ser simples algaravia.
Também eram populares palíndromos, palavras que podem ser lidas em ambas as
direções, comuns em amuletos, das quais a mais famosa era ABLANAHTHANALBA.
São Jerônimo (342-420 D.C.), o autor da Vulgata, observou que o nome da
divindade solar Mithras/Meithras (MEIΘPAΣ) tinha o valor numérico de 365; o mesmo
valor do nome da divindade gnóstica solar Abrasax (ABPAΣΑΣ=365), conhecido como
senhor do ano de 365 dias, conforme notou Santo Irineu.
3.0 A composição dos livros do Antigo Testamento
A história do povo de Deus, de Abrão até a entrada na terra de Canaã, bem como
a história das origens do mundo e do homem, o que compreende um período de doze a
treze séculos, foi registrada no Pentateuco (a Lei, ou a Torah), entre os séculos X e V
A.C., aproximadamente. O Pentateuco compreende os livros do Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números e o Deuteronômio. As tradições judaica e a cristã sempre
consideraram Moisés como o autor do Pentateuco, daí a expressão Lei Mosaica.
Presentemente a posição doutrinária continua a afirmar que Moisés é o autor
intelectual do Pentateuco, embora conceda que possa ter se servido de colaboradores ou
secretários; e que para se descobrir a intenção dos hagiógrafos3 deve-se levar em conta
os gêneros literários a que pertencem (Dei Verbum, Concílio Vaticano II).
As críticas à posição de Moisés como o autor material do Pentateuco começaram a
surgir pelo fim do século XVI e início do XVII (da nossa era), quando se prestou
atenção às notáveis incongruências literárias evidentes em seus livros. Entre outros
autores, Astruc, médico pessoal de Luis XV, no século XVIII, distinguiu neles a
existência de duas fontes documentárias: uma chamava a Deus de IAHWEH, a outra, de
ELOHIM. Foi, assim, o inventor da denominada Teoria Documentária. Posteriormente,
J. Wellhausen (1844-1918) incorpora essa teoria no estudo da história da religião em
Israel.
H. Gunkel, em 1895, criou o método da história das formas, cujos princípios
são:1.) estuda-se a história das formas literárias e sua inserção na vida (= Sitz im Leben);
2.) usa-se o método comparativo, comparando as formas literárias bíblicas com as de
outras literaturas orientais; 3.) acentua-se o elemento sociológico: a Bíblia é enquadrada
no mundo em que ela surgiu (no seu contexto histórico).

3
Autor dos livros da Bíblia.
I.R. de Vaux é o autor atual que melhor integrou as conclusões da crítica literária
com a crença tradicional de ser Moisés o autor do Pentateuco. O núcleo central do
Pentateuco refere-se à época de formação do povo de Israel, onde, indubitavelmente,
Moisés teve um papel relevante, sendo o líder organizador do povo no campo religioso
e nacional. A crítica literária revela no Pentateuco a presença de várias tradições, ou
documentos, as quais conservadas e transmitidas junto aos vários santuários,
cristalizaram-se paulatinamente em ciclos literários, sob a pressão do ambiente e do
influxo de alguma personalidade importante, como assevera a hipótese da história das
formas.
Vaux reconhece quatro tradições, a saber: 1.) a Javista (J), fixada por escrito no
sul da Palestina, no tempo de Salomão (c.972-933 A.C.); 2.) a Eloísta, ao norte, pouco
posterior à Javista; 3.) a Sacerdotal (P, do alemão Priestercodex = código sacerdotal), do
clero de Jerusalém, durante o exílio babilônico (séc. VI A.C.); essas três primeiras
deram origem aos quatro primeiros livros do Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico e
Números; 4.) a Deuteronomista (D), responsável pelo quinto livro, o Deuteronômio, a
qual teve sua origem no norte, sendo depois levada para Jerusalém (após 722 A.C.),
sendo encontrada no Templo na época de Josias (640-609 A.C.). O estudo comparativo
das literaturas do Oriente antigo no mostra que essas quatro tradições espelham o
ambiente histórico não da época em que foram registradas por escrito, mas sim do
tempo ao qual se referem, ou seja, das origens de Israel.
Cada hagiógrafo reuniu as várias tradições de que dispunha, provindas de um
longo testemunho oral, e elaborou esse material de uma forma bastante própria,
imprimindo-lhe a sua personalidade e suas perspectivas teológicas pessoais, adaptando-
o e atualizando-o às exigências da sua época e dos seus contemporâneos. Dessa forma, o
autor intelectual, o inspirador dos livros do Pentateuco é realmente Moisés, porém cada
autor específico corporificou seu livro, o qual nos oferece uma esplêndida síntese das
várias fontes isoladas de que ele dispunha. Os livros da Bíblia, portanto, convém
ressaltar, não foram escritos por Deus, mas sim inspirados por Ele.
Outro ponto que devemos esclarecer é quanto à falácia que apresenta o hebreu
como uma língua sagrada, divina, empregada por Deus quando “escreveu” os livros da
Bíblia. Para isso, necessitamos recapitular alguns pontos sobre o uso histórico do
hebreu. O hebreu foi comumente falado na Palestina até c. 300 A.C. De 300 A.C. até 70
D.C., não era mais habitualmente empregado, tendo sido substituído pelo aramaico, a
língua de Cristo e dos apóstolos, todavia permanecia importante porque era a língua do
Pentateuco e a do Templo de Jerusalém. O terceiro estágio começa com a destruição do
Templo pelos romanos (c.70 D.C.) e se estende até após a cristianização do império
romano, no séc. IV. Nesse período, o hebreu teve uma importância marginal, pois
embora o templo e a Torah retivessem sua centralidade simbólica, perderam muito de
sua influência política.
Nos textos mais antigos, notadamente no Pentateuco, o hebreu nem ao menos é
mencionado, nem se prescreve seu uso no culto público ou na oração privada. Em toda a
Bíblia hebraica, há uma única passagem onde o hebreu é, pela primeira vez, identificado
como uma língua distinta da de seus vizinhos (Neh.13:23-30). Só isso já basta para
desmistificar o hebreu como uma “língua sagrada”. Esse conceito só surge muito mais
tarde. Uma de suas primeiras aparições, senão a primeira que pode ser identificada,
surge no apócrifo Livro dos Jubileus (ξ), uma imitação do Gênesis, alegadamente
transmitida por um anjo; escrito em hebreu no segundo século antes da nossa era, e que
só sobreviveu inteiramente em uma tradução em etiópico antigo. A passagem diz (Jub.
12:25-27):
“E o Senhor Deus disse para mim [o anjo]: “Abra as orelhas e a boca [de Abrão] para que ele
possa ouvir e falar com sua boca na língua que é revelada porque ela cessou [de ser falada] da boca de
todos os filhos dos homens desde o dia da queda [de Babel ?]”. E eu abri sua boca e suas orelhas e seus
lábios e eu comecei a falar com ele em hebreu, na língua da criação. E ele tomou os livros de seus pais –
e eles eram escritos em hebreu – e copiou-os. E começou a estudá-los. E eu permiti que ele soubesse tudo
que ele era incapaz de compreender.
Isso influenciou alguns escritos rabínicos posteriores, bem como o Sefer Yezirah,
onde o conhecimento de que o universo foi criado por meio da escrita e da língua
hebraica conduziu a complexas especulações sobre as relações entre suas letras, suas
palavras e a realidade física.
Várias obras (Cf. Ap. Abraão (15:7, β,ι); Ap. Zephaniah (8, λ); 2 Cor. 12:4))
mencionam que os anjos falavam em uma linguagem ininteligível pelos homens; o
Livro dos Jubileus afirma que essa língua era o hebreu, e que ele será o idioma dos Fins
dos Dias.
4.0 A Literatura Apocalíptica
A palavra apocalipse provém do verbo grego apokalypto, que significa revelar.
Por isso, o último livro da Bíblia canônica se denomina Apocalipse ou Revelações.
O período que vai de 200 A.C a 100 D.C. foi um dos mais atribulados em toda a
história dos judeus. A voz dos profetas se exaurira há tempos e, ao invés da idade de
ouro que predisseram, sobreveio a derrota, a ocupação e uma violenta perseguição
religiosa. Esses ingredientes propiciaram o surgimento de um novo gênero literário, o
que não seria de se admirar em semelhante período de tensões: a literatura apocalíptica.
O Livro de Daniel, composto na segunda metade do segundo século antes da
nossa era (c, 165 A.C.), pode ser considerado como o mais antigo exemplo de um
apocalipse judaico, o qual inspirou vários outros apocalipses. O elemento apocalíptico,
que já existia nos profetas, por exemplo em Zacarias (1-6) , em Tobias (XII), pode ser
rastreado até as visões de Ezequiel (1-3), as quais talvez formam o protótipo do gênero.
No Novo Testamento encontramos exemplos de episódios apocalípticos em Lucas
(21), Mateus (24-25) e Marcos (13).
É muito difícil se estabelecer uma fronteira entre o gênero apocalíptico e o
profético, do qual de certa forma não é mais que um prolongamento, porém, enquanto
os antigos profetas ouviam as revelações divinas e as transmitiam oralmente, o autor de
um apocalipse recebia suas revelações em forma de visões e as registrava em um livro.
Encontramos uma explicação do mecanismo das visões no Apocalipse de Maria
Madalena (ζ), na passagem onde ela pergunta ao Salvador se o vidente vê por meio da
alma ou do espírito (sic). A resposta do Senhor é:”Ele não vê nem através da alma nem
através do espírito, mas a mente que está entre os dois é o que vê a visão e ela é...”
nesse ponto, frustrantemente, o texto é interrompido, pois as quatro páginas seguintes
não sobreviveram no manuscritos disponíveis. Mas é claro que é a mente, o intelecto,
que é o vetor intermediário das visões.
Essas visões não têm valor por si mesmas, mas sim pelo simbolismo que
encerram. Em um apocalipse quase tudo tem um valor simbólico: os números, as coisas,
as partes do corpo e até mesmo as personagens que entram em cena.
Um símbolo é a representação visível de um objeto ou de uma idéia. No
judaísmo primitivo, era denotado não apenas por um signo, mas também por qualquer
característica da relação mística entre Deus e o homem. Simbolismo pode, para nossos
propósitos, ser considerado como o ato de dotar coisas ou ações externas com um
significado interior, notadamente para a expressão de idéias religiosas.
Na sua descrição da visão, o vidente traduz em símbolos as idéias que lhe foram
sugeridas por Deus, registrando assim coisas, cores, personagens, números simbólicos,
sem se preocupar com a incoerência do todo. Para entendê-lo, seria necessário aprender
sua técnica e retraduzir em idéias os símbolos que ele propõe, senão seus escritos não
passariam de uma algaravia desconexa e ininteligível.
De um modo geral, os apocalipses partilham de algumas características em
comum, entre outras, tais como: a) são revelações de coisas misteriosas, as quais estão
além do conhecimento humano ordinário; b) o desvendamento a sabedoria oculta se dá
através de uma visão ou sonho; c) os portadores das revelações normalmente são os
anjos; d) a principal preocupação desses escritos é com o futuro, o modo como Deus
tratará o homem, bem como seus propósitos últimos; e) o emprego do mistério como
fator preponderante em sua composição, além do uso de figuras fantásticas e de um
simbolismo mistificante; f) a utilização de linguagem simbólica para se referir a certas
pessoas, coisas ou eventos.
Muitas vezes os autores dos apocalipses, para valorizar sua mensagem, escrevem
sob o pseudônimo de alguma eminente personagem veterotestamentária, colocando-se
em um ponto de vista passado, tornando-se assim capazes de “predizer” eventos que
acontecem no presente. Os livros assim escritos recebem a denominação de
pseudoepígrafos.
Os apocalipses são fundamentalmente escatológicos. A escatologia é a doutrina
que trata das últimas coisas (ta eschata - em grego), da consumação dos tempos e da
história.
O apocalipse de S.João é o único representante desse gênero literário incluído
nos livros canônicos da Bíblia, o que induz erroneamente a se considerar que é o único
apocalipse existente. O que é pouco conhecido é que existem outros apocalipses, em um
número relativamente considerável, porém não canônicos.
Os livros da Escrituras são denominados canônicos, isto é, pertencem a um cânon,
ou registro, catálogo, e constituem um conjunto de textos inspirados por Deus, que
determinam a regra da fé cristã, e tal é o sentido de kanon: cana para medir, régua, logo
regra.
A tradução dos livros do Antigo Testamento conhecida como a tradução dos
Septuaginta é a mais antiga, e os judeus fizeram uso dela bem antes do início da era
cristã. Foi primeiramente aceita pelos judeus alexandrinos, posteriormente se
difundindo entre todos os povos que falavam o grego. No tempo de Cristo era
reconhecida como um texto legítimo, e era utilizada na Palestina até mesmo pelos
rabinos. Os apóstolos e os evangelistas a empregaram, emprestando citações dela,
principalmente em relação às profecias. Sua história é bem conhecida: Ptolomeu II
Filadelfo (287-247 A.C.), rei do Egito, queria enriquecer a recém fundada Biblioteca de
Alexandria com uma cópia dos livros sagrados dos judeus, traduzida para o grego, a
koiné, a língua internacional da época. Foram convocados setenta e dois sábios, seis de
cada tribo de Israel, os quais foram isolados na ilha de Pharos, onde trabalharam por
setenta e dois dias nessa tradução. Findo esse prazo, sua obra foi julgada em perfeita
consonância com o original hebreu e o rei ficou altamente satisfeito, entronizando
solenemente o trabalho na Biblioteca.
Entre os livros considerados inspirados existe um grupo de sete livros do Antigo
Testamento, e outros sete do Novo, que são denominados de deuterocanônicos, do
grego deuteros, segundo, como se pertencessem a um segundo cânon, posterior ao
primeiro.
O primeiro, o cânon hebraico, posterior à era cristã, é fruto de uma série de
disputas que se prolongaram desde a queda de Jerusalém em 70 D.C. pelo menos até o
século II D.C. Foi uma época muito difícil para os judeus que, para manter a unidade de
sua fé, procuraram estabelecer um cânon de seus livros sagrados. Esses eram divididos
em Hat-Torah (A Lei); Nebiim (Os Profetas) e wa-Kéthubim (Os Escritos). Os doutores
hebraicos para estabelecer esse cânon se basearam em dois critérios, ao que parece: se o
livro fora escrito na Terra Santa (Palestina) e na língua sagrada (hebraico).
O segundo cânon, o alexandrino, elaborado pelos judeus alexandrinos no século I
D.C., reconhecia como sagrados também os livros deuterocanônicos, que não
compunham o cânon hebraico. A Igreja Católica considerou válido o cânon alexandrino,
no tocante aos livros do Antigo Testamento, outrora usado por Jesus e pelos Apóstolos,
seguindo fielmente a Tradição. Isso foi estabelecido nos Concílios de Hipona (393
D.C.), de Cartago (397 D.C.) e de Constantinopla (692 D.C.). Os Concílios Tridentino
(1546 D.C.) e Vaticano I (1870) consagraram definitivamente o cânon das Sagradas
Escrituras.
Os livros não canônicos recebem a denominação de apócrifos, palavra que se
origina do grego apokryphos, que quer dizer escondido. Modernamente a palavra
apócrifo se revestiu de uma conotação negativa, significando algo não autêntico. Pelo
contrário, muitos dos livros apócrifos são testemunhos contemporâneos ou transmitem
tradições fiéis de fatos ou relatos dos quais nunca teríamos conhecimento de outra
forma, sendo assim fontes preciosas, em certos casos únicas, da história. No presente
trabalho nos limitaremos ao estudo dos apocalipses apócrifos.
O mais antigo documento conhecido sobre os apócrifos, o fragmento de
Muratori, datado do final do séc. II D.C., já menciona que somente os apocalipses de
João e de Pedro, este último com ressalvas, podiam ser lidos nas Igrejas. O elenco mais
extenso de escritos do Novo Testamento considerados apócrifos é o chamado Decreto
Gelasiano, escrito esse que usa o nome do Papa Gelásio (falecido em 496 D.C.),
publicado entre 412 e 532, mas que pode remontar em parte ao séc.III. Enumeram-se
nele sessenta livros rotulados de apócrifos.
Listamos, a seguir, alguns dos principais títulos desse gênero literário4, a
literatura apocalíptica: 1. O Livro de Enoch (Etiópico; partes mais antigas compostas
em cerca de 120 A.C.)(λ); 2. Assunção de Moisés (escrito provavelmente em hebreu no
início da nossa era, c. 4 A.C.-10 D.C.) (θ); 3. O Livro dos Segredos de Enoch (Enoch
Eslavônico; escrito em hebreu provavelmente na primeira metade do séc.I D.C.)(λ); 4.
O Apocalipse de Baruch (preservado inteiro somente em siríaco, escrito provavelmente
no início do séc. II D.C.)(λ); 5. O Apocalipse de Abraão (séc. I-II D.C.)(Testamento de
Abrão;β,ι); 6. Esdras (II ou 4 Ezra, semítico, aparentemente hebreu, composto
aproximadamente no ano 90 D.C.)(β,δ,κ,λ); 7.Os Oráculos Sibilinos (op.cit.)(λ,η); 8.)
Os Testamentos dos Doze Patriarcas (provavelmente um escrito do século I da nossa
era, escrito em hebreu)(λ); 9. a Ascensão de Isaias (séc. II D.C.)(θ); 10.O Apocalipse de
Elias (Elijah, séc. I-IV? D.C.)(λ); 11. O Apocalipse de Sofonias (Zephaniah; séc. I A.C.-
II D.C.)(λ); 12. O Apocalipse de Moisés ou A Vida de Adão e Eva (provavelmente
escrito em hebreu, data incerta)(δ); 13.O Apocalipse de Sedrach (séc. II-V? D.C.)(λ);
14. O Apocalipse de Pedro (grego, contemporâneo do Apocalipse de S. João, c.130
D.C.)(β, δ); 15. O Apocalipse de Paulo (c.380 D.C.?)(δ); 16. O Apocalipse de Maria
Madalena (grego, séc. II D.C.)(ε, ζ); 17. O Apocalipse de Bartolomeu (séc. III-V
D.C.)(grego) (η); 18. O Apocalipse de Adão (séc.I-II D.C.) (δ, ε, λ); 19. O Apocalipse
de James (séc. II-III D.C.)(ε, δ, η); 20. Apocalipse de Maria (da Virgem; séc.IX
D.C.?)(β).
As origens desses apocalipses, se judaicas, cristãs ou gnósticas, ou ainda uma
combinação dessas, ainda hoje são objeto de discussões e controvérsias. Indicaremos
algumas delas: a) judaicas: 1; 2; 3; 4; 5; 6 (4 Ezra); 7 (livros III-V); 13 ; b) cristãs: 7
(Livro II); 9; 14; 15; 16; 17; 19; 20; d) judaicas+cristãs:6; 7 ; 8; 10; 11; 12; e)
gnóstica:18. Algumas dessas obras sofreram influências gnósticas em vários graus, por
exemplo (7;18;19), entre outras.
Ë importante observar que os primeiros cristãos, seguindo a tradição judaica,
consideravam a história dividida em duas eras: a que antecedia e a que sucedia ao

4
Como muitos dos documentos a seguir figuram em mais de um site, indicaremos ao menos um endereço
para consulta, embora os outros sites indicados possam também ser compulsados.
advento triunfante do Messias. A diferença entre as duas correntes, a cristã e a judaica, é
que enquanto os cristãos consideram Cristo como o Messias, os judeus ainda estão a
aguardar por Ele. O Apocalipse de S.João narra que, após a vinda do Messias, “as
almas dos que tinham sido decapitados por causa do testemunho de Jesus e da palavra
de Deus... tornaram à vida e reinaram com Cristo durante mil anos. Os outros mortos
não tornaram à vida antes que se completassem os mil anos.” (Ap.20; 4, 5). No fim
desse período – o Milênio – seguir-se-á a ressurreição geral dos mortos e o Juízo Final.
Essa é origem dos movimentos milenaristas (Nota 1), que prevêem o fim do
mundo no término do milênio. Somente no século V, quando o cristianismo se tornou a
religião oficial do império romano, a desaprovação ao milenarismo se tornaria enfática.
Foi S.Agostinho, em sua obra Cidade de Deus, que propôs que o Apocalipse
deveria ser interpretado como uma alegoria espiritual e, quanto ao milênio, que ele tinha
começado na origem do cristianismo e estava plenamente realizado na Igreja, não
devendo ser interpretado literalmente como um intervalo de tempo; o que constitui a
doutrina ortodoxa cristã ainda hoje vigente quanto ao assunto.
A idéia de que as escrituras continham um significado oculto não é nova. Porém,
no século XII, surgiu uma nova espécie de escatologia, derivada dos apocalipses e dos
Oráculos Sibilinos. Joaquim de Fiore (1145-1202 D.C.), abade e eremita calabrês,
recebeu, entre 1190 e 1195, uma inspiração que lhe revelava um novo sentido escondido
nas escrituras, de imenso valor profético. A sua idéia inovadora era de que os métodos
tradicionais de interpretação das alegorias nelas contidas se aplicariam não apenas para
fins morais e dogmáticos, mas também serviriam para compreender e prever o
desenvolvimento da história. Elaborou então uma interpretação da história como uma
sucessão através de três idades, cada uma presidida por uma das pessoas da Santíssima
Trindade. A primeira idade era a idade do Pai ou da Lei, uma época de terror e servidão;
a segunda idade era a do Filho ou do Evangelho, uma idade de fé e de submissão filial;
a terceira seria a idade do Espírito, uma era de amor, alegria e liberdade.
Suas idéias foram encorajadas por nada menos que três papas, embora fossem
contra a concepção agostiniana de que o reino de Deus já tinha sido realizado sobre a
terra, no momento em que a Igreja nasceu, e que não se poderia esperar outro milênio
A influência de suas idéias pode ser detectada ainda nos dias de hoje como, por
exemplo, na concepção da história de Augusto Comte, com suas três fases sucessivas: a
fase teológica, a fase metafísica e a fase científica. Também na dialética marxista
reconhecemos sua influência, notadamente nas três etapas de sua consecução: o
comunismo primitivo, a sociedade de classes e um comunismo final, que deveria ser o
reino da liberdade e no qual o Estado terá desaparecido. Igualmente a expressão “O
Terceiro Reich”, de triste memória, e que foi cunhada em 1923 pelo publicitário
Moeller Van den Bruck para designar “a nova ordem”, a qual deveria durar um milênio,
ecoa as idéias de Fiore.
5.0 O Apocalipse de S. João
O autor do Apocalipse se autodenomina João e que se encontrava na ilha de
Patmos quando recebeu a revelação (Ap.1:9). Esse João era o apóstolo João, o filho de
Zebedeu, o discípulo amado de Cristo, que tinha sido banido para Patmos no reinado de
Domiciano (de 81 a 96 D.C.), segundo uma tradição registrada na mais antiga História
da Igreja que possuímos, escrita por Eusébio (260-341 D.C.), bispo de Cesaréia, na
Palestina. Patmos é uma de um grupo de pequenas ilhas próximas da costa da Ásia
Menor, situadas a cerca de vinte quilômetros de Éfeso.
Desde a antiguidade a atestação de sua autoria pelo apóstolo João é contestada. A
relação entre o apocalipse e o quarto evangelho tem sido discutida por inúmeros autores,
tanto antigos como modernos, uns negando, outros garantindo sua semelhança mútua.
Já no século segundo a seita herética dos Alogi (contrários à doutrina do verbo, da
palavras: a-logos), não aceitavam nem o Evangelho nem o Apocalipse de João, pois
acreditavam que essas obras tinham sido escritas por um herege de nome Cerinto. Essa
opinião foi compartilhada por alguns poucos pais da igreja, como Caio e Dionísio.
Dionísio, bispo de Alexandria de 247 a 264 D.C., já listava um rol de diferenças
entre eles, como: enquanto o evangelho é anônimo, o escritor do apocalipse prefixa seu
nome; a terminologia característica do evangelho, essencial à doutrina joanística, está
ausente no apocalipse, termos como vida, luz, graça, verdade não figuram no último; no
evangelho o grego é escorreito, enquanto que a linguagem do apocalipse parece a
Dionísio bárbara, desfigurada por erros de sintaxe. Embora os defensores de uma
autoria comum argumentem que essas diferenças se devam às naturezas peculiares de
cada obra (no apocalipse encontramos visões e revelações, já o evangelho é escrito
como um registro histórico), a maioria dos autores atuais considera-os frutos de dois
autores independentes. É certo, porém, que o autor do apocalipse pertenceu ao círculo
dos discípulos de João, sendo herdeiro fiel de parte valiosa dos seus ensinamentos. Isso
pode ser comprovado, entre outros detalhes, pela importância que em ambas as obras se
dá ao termo Logos, o Verbo, a Palavra ( Jo. 1:1; Ap. 19:13; 1 Jo. 1:1). Embora alguns
autores se refiram ao hagiógrafo do apocalipse como João o Presbítero, optaremos por
designá-lo doravante como João de Patmos.
Ë um escrito de circunstância, destinado a robustecer o ânimo e a esperança dos
primeiros cristãos, açoitados que eram por um período de perturbações e violentas
perseguições contra sua igreja nascente.
Em seu estado atual, seu texto apresenta um certo número de duplicações, de
cortes na seqüência das visões e de passagens aparentemente fora de contexto.
Múltiplos argumentos acorrem aos comentadores no intuito de explicar essas anomalias:
compilação de fontes diferentes; deslocamento acidental de certas passagens ou
capítulos; interpolações, espúrias ou não; etc. A parte propriamente profética (Ap. 4-22)
aparentemente é composta por dois apocalipses distintos, escrito pelo mesmo autor em
datas diferentes, e depois compilados em um só texto por uma outra mão.
A datação do apocalipse se baseia na afirmação de Eusébio, cujo mestre, S.
Policarpo, tinha estado entre os discípulos do apóstolo João, de que o seu exílio em
Patmos se deu no décimo quarto ano do reinado de Domiciano, o que nos dá o ano de
95 D.C., data tradicionalmente aceita para a obra, apesar de que sua autoria permaneça
contestada. É aceito, porém, que partes do mesmo já estariam redigidas desde o tempo
de Nero, ou seja, pouco antes de 70 D.C., ou de Vespasiano, que o sucedeu.
Quanto à sua canonicidade, o testemunho mais antigo que possuímos, o fragmento
Muratori, já o menciona como inspirado, porém a polêmica sobre sua inclusão ou não
no cânon foi prolongada. Sobre essa questão Eusébio não se define; o Peshito, a Vulgata
Síria, não o aceita, bem como S. Cirilo de Jerusalém (315-386 D.C.); assim como não
figura na lista de livros canônicos dos sínodos de Laodicéia (325 ?) e no de Gregório
de Nazianzus (381). Até o século V as igrejas da Síria, Capadócia e da Palestina não o
incluíam no cânon das escrituras, prova que não o consideravam obra de um apóstolo.
Lutero descartou-o, bem como Zwinglio e Erasmo. Somente com o concílio de Trento
(1545-1563) foi definitivamente incluído no rol dos livros canônicos.
Toda a literatura apocalíptica se fundamenta em um dualismo ético e
cosmogônico: o Princípio e o Fim; o Bem e o Mal; o Céu e a Terra; Jerusalém e
Babilônia; Ocidente e Oriente; Deus e Satã; o Cordeiro e a Besta; Cristo e o Anticristo;
888 e 666. Esse dualismo, representado pelo embate entre as forças da luz e as das
trevas, também desempenhou um papel preponderante no gnosticismo e no mitraismo,
podendo suas origens serem rastreadas até o zoroastrismo persa. Nos deteremos agora
na análise do papel representado pela Besta do Apocalipse.
6.0 O Anticristo, ou a Besta do Apocalipse
Esse papel maligno é representado no apocalipse por três atores: o dragão (Ap. 12;
3-17), com sete cabeças e dez chifres e, nas cabeças, sete diademas, que aparece no céu
(12:3); a primeira besta, com dez chifres e sete cabeças, sendo que sobre os chifres tinha
dez diademas, que emerge do mar (13;1-8); a segunda besta (13:11-18), com dois
chifres, que surge da terra, também designada como o falso profeta (16:13; 19:20).
Outras menções sobre esse papel aparecem em: 11:7 (a besta que surge do abismo);
17:7-8 (a besta que sobe do abismo, com sete cabeças e dez chifres); 20:7 (Satanás solto
de sua prisão). A besta que emerge do abismo na literatura apocalíptica é normalmente
Satanás, ou Belial. O desempenho de tal papel é quase unanimente atribuído ao que se
costuma denominar de Anticristo, ou Besta do Apocalipse, embora os comentadores
divirjam quanto ao ator que o representa, ou seja, ao versículo que o designa.
Quanto à natureza do Anticristo, as opiniões se dividem: a) é um princípio
demoníaco, porém incorpóreo, não sendo assim nem pessoa nem entidade; b) é uma
pessoa, ou do passado (Nero, Diocleciano, Calígula, etc.), ou do presente, ou do futuro;
c) é uma entidade (o papado, o império romano, etc.), antiga, moderna ou por vir.
O dragão, com segurança, pode ser identificado com o Diabo, ou Satanás,
conforme esclarece o versículo 12: 9 : “Foi precipitado [à terra, por Miguel e seus
anjos] o grande dragão, a antiga serpente, aquele a quem chamam Diabo e Satanás, o
sedutor do mundo inteiro”. Já a primeira besta, a que sobe do mar, um lugar maléfico
segundo a mentalidade hebraica, e recebe seu poder do dragão (Satanás), é uma criatura
híbrida, cujos traços são reminiscências das quatro bestas que representam os sucessivos
impérios do mundo em Daniel 7. Seus diademas e seus chifres (ícones de soberania e
poder), fazem dela a imagem do estado autoritário (o império romano, sendo César seu
representante supremo), inimigo de Deus. O dez chifres são habitualmente interpretados
como os reis vassalos sob a supremacia de Roma. A segunda besta, a que fala com a voz
de Satanás (13:11), é a religião oficial, dominada pelo estado, identificada como o falso
profeta (16:13; 19:20). O dragão e a primeira besta eram uma imitação do Pai e do
Filho, a segunda besta é um arremedo do Espírito; assim, o caráter trinitário dessas
entidades malignas é um simulacro caricatural da Trindade, havendo na realidade um
único papel malévolo, o do Anticristo ou da Besta do Apocalipse.
João de Patmos supõe que a doutrina concernente à vinda do Anticristo já é
conhecida dos seus leitores; muitos exegetas5 acreditam que essa doutrina tornou-se
conhecida na Igreja por meio dos escritos de S. Paulo (2 Ts 2:3-10).
O versículo 13:16-17 reza: “[a segunda besta] Faz também com que todos,
...recebam uma marca na mão direita ou na fronte, para que ninguém possa comprar
ou vender se não tiver a marca, o nome da Besta ou o número do seu nome”. Essa
marca com que todos são assinalados é a imagem (ícone) do imperador, notadamente
nas moedas do reino. Esse parece ser o significado dessa passagem, de que todas as
transações comerciais, sejam compras ou vendas, seriam impossíveis para aqueles que
não tivessem a marca da besta, ou seja, moedas com a efígie do imperador ou com o seu
nome. Contra essa interpretação argüi-se que os judeus no tempo de Cristo não tinham
escrúpulos em manusearem moedas com a efígie de César: “Dai, pois, a César o que é
de César, e a Deus, o que é de Deus” (Mt 22:15-22). Porém cabe lembrar que o horror
dos judeus por imagens de imperadores era devido principalmente à sua repulsa à
idolatria que Calígula tinha adrede anteriormente adotado: o culto ao César Imperador
como divindade. Ele confiscara diversas sinagogas, transformando-as em templos
pagãos nos quais sua estátua era venerada e, absurdo dos absurdos, em 40 D.C.
entronizara uma imagem sua no sacrossantíssimo Templo de Jerusalém! Não à toa
Calígula sempre foi forte candidato à Besta do Apocalipse.
Analisemos agora o versículo 17: 9-11: “[as sete cabeças] São também sete reis,
dos quais cinco já caíram, um existe e o outro ainda não veio, mas quando vier deverá
permanecer pouco tempo. A Besta que existia e não existe mais é ela própria o oitavo e
também um dos sete, mas caminha para a perdição”. As sete cabeças da Besta são sete
imperadores; cinco deles, diz João, já caíram: Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e
Nero. “Um existe”, diz o autor, ou seja: Vespasiano (70-79 D.C., época aproximada da
redação da primeira parte do apocalipse), constituindo-se assim no sexto imperador. O
sétimo “ainda não veio, mas quando vier deverá permanecer pouco tempo”
provavelmente é Tito, que reinou apenas por dois anos (79-81).
O oitavo é Domiciano (81-96). João de Patmos identifica-o como a Besta, porém
acrescenta: “...que existia e não existe mais é ela própria o oitavo e também um dos
sete, mas caminha para a perdição”. Isso soa muito enigmático, de sabor oracular. A
pista para a solução dessa charada é fornecida por um mito popular muito difundido

5
Pessoa que pratica a exegese; exegese é minuciosa interpretação de um texto ou palavra, especialmente
da Bíblia.
nesse tempo. A morte de Nero tinha sido testemunhada por poucos. Principalmente no
extremo do império, no oriente, permaneceu a impressão de que Nero ainda estava
vivo. Testemunho disso encontramos no Livro V dos Oráculos Sibilinos, como já
mencionamos. Desse modo, os contemporâneos de João acreditavam piamente em seu
retorno. Nero ganhara reputação por sua licenciosidade e extrema crueldade; no seu
reinado (de 54 a 68 D.C.) a primeira grande perseguição aos cristãos ocorrera: culpou-
os pelo incêndio que arrasou Roma em 64 D.C. Nessa época, o apóstolo Pedro foi
crucificado de cabeça para baixo e S. Paulo decapitado, ambos em Roma. A segunda
grande perseguição ocorreu sob Domiciano, o que conduziu João a considerá-lo um
segundo Nero, “Nero redivivus”. Desse modo, conta Domiciano como o oitavo e, ao
mesmo tempo, também um dos sete precedentes, a saber Nero.
Essa é a interpretação textual dessa parte do apocalipse, aceita atualmente pela
maioria dos exegetas. Vejamos agora a explicação do número da Besta (Ap 13:18) à luz
da gematria.
7.0 O Affair Nero Reavaliado
A passagem que nos interessa é: “Quem é inteligente calcule o número da
Besta, pois é um número de homem: seu número é seiscentos e sessenta e seis (Ap
13:18).”
Como vimos, no início da era cristão dois alfabetos, o grego e o hebreu,
correlacionavam suas letras a valores numéricos, capacitando-os assim a propiciarem
às palavras por meio deles escritas interpretações pela gematria. Como o Apocalipse
foi originalmente escrito em grego, e no texto o número 666 é Χ Ξ F, ou χ ξ F em
minúsculas, isso no autoriza a argumentar que o alfabeto em que João de Patmos
pensava quando escreveu esse texto era o grego, e primeiramente deveríamos procurar
sua interpretação em palavras desta língua.
Alguns poucos documentos muito antigos consignam 616 ao invés de 666. Duas
explicações são propostas para esse fenômeno: a primeira, já aventada por S.Irineu
(Adversus Haereses,V, 30), afirma que a letra medial xi (csi, 60: Ξ,ξ) foi copiada
erroneamente como iota (10: Ι, ι), tratando-se, portanto, de um erro do copista. É a
mais aceita, tendo-se em vista que a maioria dos documentos registra 666. A segunda
explicação será apresentada mais adiante.
Praticamente desde o surgimento do Apocalipse tem-se procurado quem atenda
ao prescrito nessa passagem. S.Irineu, já no século II, nos proporciona as mais antigas
interpretações que possuímos desse enigmático versículo. No seu livro Adversus
Haereses (V, 30; β) propõe que os Latinos em geral, ou seja, ou romanos, atendam ao
requerido no apocalipse, pois a interpretação pela gematria da palavra grega lateinos
(ΛΑΤΕΙΝOΣ=30+1+300+5+10+50+70+200=666) nos dá o número da besta, 666. Não
satisfeito, sugeriu ainda o nome EVANTHAS e o deus TEITAN (Titã), como
possíveis. candidatos. Ë interessante observar que Irineu admitia apenas o cálculo
gemátrico grego.
Como vimos, o candidato ao título de Besta do Apocalipse mais aceito pelos
exegetas é Nero. Como Porém, seu nome em grego, complementado pelo seu título
CÉSAR (NEPΩN KAEΣAP= 50+5+100+800+50+20+1+5+200+1+100 = 1332) não
soma 666. Há evidências que João de Patmos conhecia algo de hebreu, pelo seu uso de
termos dessa língua, como Armagedon e Abadon. Por isso, tentou-se a transposição do
seu nome para essa língua: NRUN=50+200+6+50=306, QSR=100+60+200= 360,
306+360=666. Essa é a interpretação usual do Número da Besta que figura nos livros
de história da matemática, e é apresentada como exemplo padrão da gematria.
Se o N (nun, 50) final de NRUN for excluído, tem-se então NRU QSR, e valor
do nome passa a ser 616; é o que alguns autores propõem para justificar a escrita 616
ao invés de 666. Porém, essa segunda explicação teve uma aceitação restrita.
Porém, vários comentadores (BARRY, p.145) têm observado que essa
transposição é imperfeita, pois a letra inicial de César deveria ser K=kaph=20 ao
invés de Q=qoph=100, o que forneceria para o nome um valor numérico de 586 e não
666. Além disso, o nome verdadeiro de Nero era Lucius Domitius Ahenobarbus, o
qual não perfaz 666 nem em grego nem em hebreu; somente quando foi adotado pelo
imperador Cláudio, que casara com sua mãe Agripina, é que passou a se chamar Nero
Claudius Caesar Drusus Germanicus. Era um caráter brutal, que raiava a insanidade,
tendo mandado matar a própria mãe em 59 D.C. Suetônio, o historiador romano autor
da Vida dos Doze Césares (início do séc.II D.C.), registra que nas muralhas de Roma
podia-se ler o seguinte grafite: “Conte os valores numéricos das letras do nome de
Nero, e os em “ele matou sua própria mãe”, e você achará que sua soma é a mesma”.
Realmente, se notarmos que Nero (NEPΩN=50+5+100+800+50=1005) equivale
a 1005, e que “ele matou sua própria mãe” (grego I∆IAN MHTEPA AΠEKTEINE =
10+4+10+1+50+40+8+300+5+100+1+1+80+5+20+300+5+10+50+5 = 1005)
igualmente soma 1005, não é de se admirar que seus contemporâneos acreditassem
que a gematria atestava a natureza de seu caráter; isso também comprova que o seu
uso era amplamente disseminado entre o vulgo. Porém, em que pese a maioria das
interpretações textuais
apontarem-no como o candidato mais provável à Besta do Apocalipse, os
cálculos de gematria geralmente apresentados como prova dessa identificação são,
como vimos, pouco convincentes, se levarmos em conta os critérios dessa prática
tradicionalmente aceitos na época.
O segundo candidato mais provável, como mencionamos, era o imperador
Diocleciano ( Diocletian Augustus). Seu nome, quando consideradas somente as letras
que são numerais romanos (em maiúsculas: DIoCLes aVgVstVs =
500+1+100+50+5+5+5 = 666) também somaria 666; todavia, o emprego de numerais
romanos é questionável, pois não era tradição na prática da gematria.
Inumeráveis outros candidatos foram surgindo, como, por exemplo, Antemos,
Iapetus, Gerbert, Maomé, Lutero, Calvino, Luis XIV, Bonaparte, etc. Em um período
turbulento da história da igreja, um papa cognominava seu opositor de Anticristo,
designação que lhe era devolvida em seguida. Em 1584, Peter Bungus, um místico
católico, “demonstrou” que Lutero era o Anticristo, pois o seu nome, em um alfabeto
numeral romano, dava 666: LVTHERNVC = 30+200+100+8+5+80+40+200+3=666.
Em revide, os discípulos de Lutero não demoraram a retrucar o apodo, observando que
os numerais romanos contidos na frase VICARIUS FILII DEI (Vigário do Filho de
Deus), que está na tiara papal, igualmente perfazem 666: VICarIVs fILII De I =
5+1+100+1+5+1+50+1+1+500+1 = 666.
Pela escolha deliberada de um determinado alfabeto, palavra ou nome, bem
como do sistema de gematria a adotar, é possível “deduzir” aproximadamente
qualquer significado que se queira de uma dada palavra, nome ou passagem. A
interpretação depende apenas da criatividade e da fantasia do praticante. É igualmente
óbvio que nenhum valor numérico simbólico pode ser interpretado com um razoável
grau de certeza sem que se tenha uma pista do alfabeto empregado e da intenção do
autor.
Cabe ao autor observar que, dentro do seu conhecimento e compulsando o
corpus apócrifo a que teve acesso, a passagem registrada em Ap 13:19 é única no
contexto da literatura apocalíptica. Como, portanto, não é um traço comum a esse
gênero literário, é válido indagar se a mesma não é apenas uma interpolação posterior
na profecia concernente à Roma. Essa opinião é compartilhada por vários autores,
como por exemplo Toy e Kohler (cf. verbete Book of Revelation, Jewish
Encyclopedia, ν). Nesse caso, 13:19 teria seu valor profético significativamente
diminuído, restando talvez apenas sua importância como um exemplo histórico da
aplicação da gematria. É importante observar que a Igreja Católica nunca avalizou
uma interpretação literal de 13:19, em que pesem as quizílias históricas já
mencionadas.
É provável que a motivação para essa interpolação tenha sido a manutenção do
equilíbrio do dualismo Cristo - Anticristo; como o Cristo era reconhecido na época6
numericamente por 888, optou-se arbitrariamente por 666 para representar o
Anticristo. Portanto, embora essa debatida interpolação possa talvez ter sido inserida
com a melhor das intenções, e contenha possivelmente algum valor profético, sua
interpretação literal deve ser tomada cum grano salis7.
8.0 Alguns Exemplos de Pseudogematria Apocalíptica Moderna
Dentro da pseudogematria apocalíptica moderna, praticamente qualquer trapaça
é válida para justificar as intenções dos “numerólogos”. Vejamos algumas. William
Henry Gates III, o presidente da Microsoft, é conhecido como Bill Gates (III).
Convertendo seu nome em valor numérico, empregando os valores tabulados do ASCII
(American Standard Code for Information Interchange), temos:
BILL GATES 3 : (66+73+76+76)+(71+65+84+69+83)+(3) = 666.
A batota aqui é que o valor do número 3 no ASCII é dado por 51 e não 3. Mas é
interessante a escolha do ASCII como um alfabeto em gematria.
Outra interpretação fantasiosa, envolvendo agora a Internet, a World Wide Web
– WWW, é a seguinte: sua sigla www, quando escrita em letras hebraicas é ‫ווו‬
(VauVauVau); como ‫( ו‬Vau) vale 6, teríamos www = ‫ = ווו‬666, a besta apocalíptica
informática. Aqui o logro é que o valor dado pela gematria para www é 6+6+6=18, não
666, pois a gematria prega que deve-se somar os valores de cada letra, não
simplesmente justapô-los. A mesma explicação se aplica ao exemplo seguinte.
Observou-se que cada um dos nomes do ex-presidente do E.U.A. Ronald Wilson
Reagan tem 6 letras, logo o nome forma 666. Outra tentativa aplicada ao mesmo
presidente envolve a adoção do alfabeto a=101; b=102;...;z=126; e a observação que a
pronúncia fonética do sobrenome desse presidente (REAGAN) é algo como REAGUN,
cujo valor nesse alfabeto é 118+105+101+107+121+114 = 666. Aqui há dois engodos:

6
Jesus: (grego) ΙΗΣΟΥΣ = 10+8+200+70+400+200= 888.
7
Com uma pitada de cautela.
o primeiro, a escolha do alfabeto; o segundo, a opção pouco convincente pela pronúncia
fonética do sobrenome.
Para encerrarmos, uma última interpretação referente ao fundador da “dinastia
Bush”. Empregando-se o mesmo alfabeto aplicado ao Reagan, notou-se que I. G. BUSH
(que foi seu vice-presidente), vale 109+107+102+121+119+108=666, daí a “dinastia
apocalíptica”. Aqui o embuste envolve a escolha das letras do nome. O seu nome
completo verdadeiro é George Herbert Walker Bush, não havendo a inicial I no nome,
nem sendo admissível tomá-la pelo numeral romano I (um, primeiro). O seu filho, o
atual presidente, se chama George Walker Bush, cujo nome também não satisfaz.
9.0 Numerologia Moderna
Os pitagóricos, como mostramos, com sua idéia de que tudo era número, podem
ser considerados como os precursores do misticismo numérico. Os seus sucessores, os
néo-pitagóricos, mais de meio milênio depois, ampliaram e aprofundaram as
propriedades místicas atribuídas aos números inteiros. No transcorrer da idade média, o
misticismo e o simbolismo numérico fervilhavam na Europa, embora idéias inovadoras
sobre o assunto não surgissem.
O misticismo numérico tradicional, grego de origem, associava nomes (pessoas),
palavras ou passagens a números. Com o exemplo do número da besta, vimos como um
caráter maligno (o Anticristo) foi correlacionado a um número (666), o qual,
eventualmente, poderia servir para identificá-lo. Porém, somente nos fins do século
XIX, surgiu a idéia revolucionária de que, além de se associar um número a uma
pessoa, as propriedades místicas desse número influíssem nela. Essa noção conduziu a
muitos adeptos da numerologia moderna a alterarem seus nomes, mudando assim seus
números associados, optando por números/nomes com aspectos benfazejos.
Provavelmente essa idéia surgiu de um paralelo com a astrologia, pois os
astrólogos por muitos séculos vêm correlacionando signos astrológicos às pessoas, e
aplicando propriedades místicas desses signos para elaborar previsões e dar conselhos.
DUDLEY (1997) atribui essa idéia à Josephine Balliet, de Atlantic City, New
Jersey, que considera como a fundadora da numerologia moderna, embora admita que
ela possa ter predecessores.
10.0 Conclusão
Sobre a vinda do Anticristo e de seus sinais, à guisa de conclusão, o melhor
conselho a seguir é o dado por S.Irineu de Lyon no século II, ainda surpreendentemente
válido e atual, que endossamos: “É assim mais acertado, e menos perigoso, aguardar o
cumprimento da profecia do que fazer conjecturas e previsões acerca de qualquer nome
que se possa aventar, visto que muitos nomes podem ser encontrados que possuem o
número mencionado [666]; e esta questão irá, apesar de tudo, permanecer insolúvel”
(Adversus Haereses, V, 30, β).
NOTAS
a.) Dentro dessa corrente destacaremos apenas duas obras: O Nome da Rosa ( ), de Humberto Eco, e o
Código Da Vinci ( ), de Don Brown. O pano de fundo da primeira obra é perpassado pela influência
das diversas heresias milenaristas no vulgo da época em que se passa a ação, bem como não aceitação da
propriedade de bens materiais por parte dos primeiros franciscanos, que pregavam a humildade e a
pobreza, o que ocasionou sérios embates com a cultura materialista então vigente na Igreja. Para melhor
compreensão desse background recomendamos a leitura de COHN (1980). Já na segunda obra, o pano de
fundo envolve tanto alguns conceitos (Fibonacci, criptografia, número de ouro, etc.) verdadeiros, como
entidades, algumas reais (Opus Dei, Templários), outras imaginárias (Priorado), e alguns artefatos
pseudo-históricos, como o “criptex” atribuído à Leonardo, na verdade inexistente. Mistura, portanto,
elementos históricos reais com inventados; embora no início da obra o autor afirme que é um obra de
ficção, mencionando que se baseou em fatos reais, listando uns poucos, no seu desenrolar a ficção e a
realidade estão entretecidas. O perigo reside no fato de que a maioria do seu público leitor não possui um
conhecimento da história sólido e é incapaz, portanto, de separar o joio do trigo, sendo induzida a
acreditar que todos os elementos do enredo são reais. Essas obras, como afirmamos, valem pelo
entretenimento que proporcionam.
b.) Como exemplo dessa corrente selecionamos o best seller O Código da Bíblia ( ), de . Nessa
obra o autor constrói uma teia de conjecturas baseada em um pseudo-código que “descobriu” nos livros
da bíblia hebraica. Considera, pois, o hebraico a língua sagrada. Afirma que os livros da bíblia foram
“escritos por Deus” (p. ), que as letras hebraicas de seus livros contém um “código secreto”, que pode
ser descoberto se selecionarmos em um dado trecho uma letra, pulando na seqüência um número fixo de
letras, então uma outra, e assim por diante, mediante um programa de computador. Essas letras reunidas
formam palavras, nomes, profecias escondidas no “código da bíblia”. O autor demonstra um total
desconhecimento, provavelmente intencional, de como os livros históricos da bíblia foram realmente
compilados, de como o hagiógrafo reuniu, por vezes, várias fontes, acrescentou interpolações, redigindo a
forma final segundo seu estilo. O hebreu, particularmente no Torah, como vimos, nunca foi considerado
uma língua sagrada. Além disso, em qualquer trecho escrito, em qualquer língua, de qualquer autor,
podemos descobrir “significados ocultos” se empregarmos seu “método”, bastando escolhermos o trecho,
o inicio da mensagem, e o salto por que optarmos de forma intencionalmente enviesada.
Desaconselhamos a leitura desse tipo de obra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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B. Sites da Internet

Dada a volatilidade do material disponível na Internet, bem como a mutabilidade de seus endereços, será
indicada, entre parênteses, a data da consulta ao site respectivo.

α) Mathworld (07/jan/05): http://mathworld.wolfram.com


β) Enciclopédia Católica (/05/jan/05): http://www.newadvent.org/cathen/
γ) (/07/jan/05): http://www.webcom.com/hermit/page/sefer.htm
δ)(10/jan./05): http://wesley.nnu.edu/biblical_studies/noncanon/index.htm
ε) The Gnostic Society Library: (12/jan./05):
http://www.gnosis.org/naghamm/nhlcodex.html
ζ) (/12/jan/05): http://www.thenazareneway.com/the_gospel_of_mary_magdalene.htm
η) (/15/jan./05) : http://www.comparative-religion.com/christianity/apocrypha/
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κ) Early Church Fathers (/05/jan./05) : http://ccel.org./fathers2/ANF-08/anf08-106.htm
λ) Early Jewish Writings (/07/Jan.05): http://www.earlyjewishwritings.com/
µ) Early Christian Writings (/05/jan./05) : http://www.earlychristianwritings.com/
ν) Jewish Encyclopedia (/08/jan./05) : http://www.jewishencyclopedia.com/index.jsp
ξ) (09/fev/05): http://www.ccel.org/c/charles/otpseudepig/jubilee/
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