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be Identidade e diferenga: uma introdug¢ao tedrica e conceitual Kathryn Woodward ! Introdugao : Oescritor € radialista Michael Ignatieff contaa seguinte hist6ria, a qual se passa no contexto de um pais dilacerado pela guerra, a antiga lugoslavia: ‘So quatro Foras da manha. Estou no posto de comando da milicia sé:via local, em uma casa de fazenda abandona- da, a250 meiros da linha de frente croata... nio na Bésnia, ras nas zonss de guerra da Grofcia central. O mundo nio est mais olsando, mas toda noite as milicias eroatas © sérvias trocam tirose, is vezes, pesados ataques de bazuca. Esta € uma guerra de cidade pequena. Todo mundo co- nhece todo mundo: eles foram, todos, Xescola juntos; antes da guerra, alguns deles trabalhavam na mesma oficina; namoravam as mesmas garotas. Toda noite, eles se comu- nicam pelo ridio “faixa do cidadio” e trocam insultos tratando-se por seus respectivos nomes. Depois saem dali para tentar s» matar uns aos outros. Estou falando com soldados sérvios —reservistas cansados, de meia-idade, que preferiam estar em casa, na cama. Estou tentando compreender por que vizinhos comecam a se matar uns aos outros. Digo, primeiramente, que nfo consigo distinguir entre sérvios croatas. “O que faz voce: pensarem que sio diferentes? ‘Ohomem com quem estou falando pega um mago de ef ros do bolso de sua jaqueta edqui. “V8 isto? Sio cigarros sérvios. Do otro lado, eles fumam cigarros croatas.” “Mas eles sio, ambos, cigarros, certo?” “Vocés estrangeiros nfo entendem nada” - ele dé de ‘ombros e comeca a limpar a metralhadora Zastovo. Mas a pergunta que eu fiz incomoda-o, de forma que, alguns minutos mais tarde, ele joga a arma no banco ao lado e diz: “Otha, a coisa € assim. Aqueles croatas pensam que sio melhores que nds. Eles pensam que sio europeus finos e tudo o mais. Vou Ihe dizer uma coisa. Somos todos lixo dos Baleds” (Ignatieff, 1994, p. 1-2) Trata-se de uma histéria sobre a guerra e 0 conflito, desenrolada em um cenfrio de turbuléncia social e politica Trata-se também de uma histéria sobre identidades. Nesse cendrio mostram-se duas identidades diferentes, depen- dentes de duas posigdes nacionais separadas, a dos sérvios eados croatas, que sio vistos, aqui, como dois povos claramen- teidentificéveis, aos quais os homens envolvidos supostamente pertencem — pelo menos é assim que eles se véem. Essas identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbélicos pelos quais elas sio representadas. [a representagéo atua simbolicamente para classificar 0 mundo e nossas relagdes no seu interior(Hall, 1997a). Como se poderia utilizar a idéia de represéntagao para analisar a forma comoas identidades sio construfdasnesse caso? Exami- nemos outra vez a historia de Ignatieff.|O que é visto como sendo a mesma coisa e 0 que é visto como sendo diferente nasff duas identidades — a dos sérvios ¢ a dos croatas? Quem é incluido e quem 6 exclufdo? Para quem esté disponivel a identidade nacional sérvia enfatizada nessa hist6ria?, | ‘Trata-se de povos que tém em comum cingiienta anos de unidade politica e econémica, vividos sob o regime de Tito, na nagio-estado da Iugoslavia. Eles partilham o local e diversos aspectos da cultura em suas vidas cotidianas. Mas © argumento do miliciano sérvio é de que os sérvios e os croatas sao totalmente diferentes, até mesmo nos cigarros que famam. A prinefpio, parece nao existir qualquer coisa em comum entre sérvios e croatas, mas em poucos minutos ohomem esté dizendo a Ignatieff que sua maior queixa contra seus inimigos & que os croatas se pensam como sendo melho- res que 0s sérvios, embora, na verdade, “sejam os mesmos": segundo ele, nao ha nenhuma diferenca entre os dois 2 Essa hist6ria mostra que a identidade é relacional. A ntidade sérvia depende, para existr, de algo fora dela: a “Nf saber de outra identidade (eroscia), de uma identidade que ela Q nifo & que difere da identi ia, mas que, entretanto, dade s forece as condigées para que ela exista. A identidade sérvia se distingue por aqulo que ela nao é. Ser um sérvio é ser um “nao-croata’ A identidade 6, assim, marcada pela diferenga. Essa marcagio da diferenga nfo deixa de ter seus pro- blemas. Por um lado, a assergio da diferenca entre sérvios e croatas envolve a negagio de que nio existem quaisquer similaridades entre os dois grupos. O sérvio nega aquilo que ele percebe como sendo a pretensa superioridade ou van- tagem dos croatas, os quais so, todos, reunidos sob 0 guar- da-chuva da identidade nacional croata, constituindo-os, assim, como estrankos € como “outros”. A diferenga é sus- tentada pela excluséo: se voce € sérvio, vocé néio pode ser ‘eroata, e vice-versa. Por outro lado, essa afirmagéo da dife- renga 6 problematica também para o soldado sérvio, No nivel pessoal, ele esti certo de que os croatas nao so melhores que 0s sérvios; na verdade, ele diz que eles so a mesma coisa. Ignatieff observa que essa “mesmidade” é o produto da expe- rigncia vivida e das coisas da vida cotidiana que os sézvios e os croatas tém em comum. Essa disjungio entre a unidade da > } identidade nacional (que enfatiza 0 coletivo “nés somos todos ( sérvios”) ¢ a vida cotidiana cria confusio para o soldado que parece se contradize: ao afirmar uma grande diferenga entre_| 0s sérvios © 08 croatas ¢, 0 mesmo tempo, uma grande simila- ridadle — “somos todos lixo dos Bales” _Aidentidade 6 marcada por meio de simbolos; por exem- plo, . pelos préprios cigarros que sao fumades em cada lado. oO C Existe uma associacio entre a identidade da pessoa e as coisas que uma pessoa usa. O cigarro funciona, assim, neste caso, como um significante importante da diferenca e da identidade e, além disso, como um significante que é, com freqiiéncia, associado com a masculinidade cangio dos Rolling Stones, “Satisfaction”: pode ser um homem porque que eu (tal como na “Bem, ele nao nio fuma os mesmos cigarros [Well he can't be a man ‘cause he doesn't smoke the same cigarettes as me). © homem da milicia sérvia é expl- cito quanto a essa referéncia, mas menos direto quanto a outros significantes da identidade, tais como as associa. gbes com a sofisticacdo da cultura européia (ele fala de “europeus finos”), da qual so, ambos, sérvios e croatas, excluidos, e a inferioridade da cultura balcdnica que & implicitamente, sugerida como sendo sua antitese. estabelece uma outra oposi¢io, Isso pela qual aquilo que a cultura baleanica tem em comum é colocado em contras. te com a cultura de outras partes da Europa. Assim, a. construcao da identidade é tanto simb6lica quanto social. “para alirmar as diferentes identidactes tem causas onseqiiéncias materiais: neste exemplo isso é visivel no conflito entre os grupos em guerra e na turbuléncia e na e desgraca social e econémica que a guerra traz. C_ desgrag que a gi Observe a freqtiéncia com que a identidade nacional é mareada pelo genero. No nosso exemplo, as identidades hacionais produzidas so masculinas e estéo ligadas a con. cepedes militaristas de masculinidade. fazem parte desse cenério, As mulheres néo embora existam, obviamente, outras posigoes nacionais e étnicas que acomodam as mu. theres. Os homens tendem a construir posigdes-de-sujeito para as mulheres tomando a si préprios como ponto de referéncia. A tinica mengio a mulheres, neste caso, é as “garotas” que eles “namoravam”, ou melhor, que foram “namoradas” no passado, antes do surgimento do conflito. 10 CO} identidadeé As mulheres sao os significantes de uma identidade mascu- lina partilhada, mas agora fragmentada e reconstruida, for mando identidades nacionais distintas, opostas. Neste mo- mento hist6rico especffico, as diferencas entre os homens so maiores que quaisquer similaridades, uma vez que o foco esti colocado nas identidades nacionais em conflito. A cada pela diferenga rece que aliu- “) mas diferengas —neste 08 étnicos = si ZomorTmais importantes que outras, especialmente em luga-~ Tes particulares e em momentos particulares vistas. Em outras palavras, a afirmagao das identidades nacio- nais 6 historicamente especifica. Embora se possa remontar as rafzes das identidades nacionais em jogo na antiga Iugos- lavia & histéria das comunidades que existiam no interior daquele territ6rio, o conflito entre elas surge em um mo- mento particular. Nesse sentido, a emergéncia dessas dife- rentes identidades é hist6rica; ela esté localizada em um ponto especifico no tempo. Uma das formas pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicagdes ¢ por meio do apelo a antecedents histéricos. Os sérvios, os bésnios os croatas tentam reafirmar suas identidades, supostamente perdidas, buseando-as no passado, embora, ao fazé-lo, eles possam estar realmente produzindo novas identidades. Por exemplo, os sérviosressuscitaram e redescobriram acultura sérvia dos guerreiros ¢ dos contadores de histérias - os Guslars da Idade Média ~ como um elemento significativo de sua hist6ria, reforgando, por esse meio, suas atuais afir- mag6es de identidade. Como escreve Ignatieff em outro local, “os senhores da guerra sio importantissimos nos Bal- cas; diz-se aos estrang nossa histéria..” e vinte minutos mais tarde ainda estamos ouvindo hist6rias sobre o rei Lazar, os turcos e a batalha de Kosovo” (Ignatieff, 1993, p. 240). A reprodugdo desse pas- sado, nesse ponto, sugere, entretanto, um momento de cris eiros: ‘voces tém que compreender e nfo, como se poderia pensar, que haja algo estabelecido e fixo na construgao da identidade sérvia. Aquilo que parece ser simplesmente um argumento sobre o passado e a reafir- magio de uma verdade hist6rica pode nos dizer mais sobre a nova posigéo-de-sujeito do guerreiro do século XX que est tentando defender e afirmar o sentimento de separagio ede distingao de sua identidade nacional no presente do que sobre aquele suposto passado. Assim, essa redescoberta do passado é parte do processo de construedo da identidade. que esta ocorrendo neste exato momento e que, a0 que parece, é caracterizado por conflito, contestagio e uma possivel crise Esta discussao da identidade nacional na antiga lugos- livia levanta questées que podem ser formuladas de forma mais ampla, para fundamentar uma discussio mais geral sobre a identidade e a diferenga: Por que estamos examinando a questio da identidade neste exato momento? Existe mesmo uma crise da identi- dade? Caso a resposta seja afirmativa: por que isso ocorre? — Por que as pessoas investem em posigées de identida- de? Como se pode explicar esse investimento? a base da discussio sobre essas questdes esté a tensio entre perspectivas essencialistas e perspectivas ndo-essen- cialistas sobre identidade. Uma definigio essencialista da identidade “sérvia” sugeriria que existe um conjunto crista- lino, auténtico, de caracteristicas que todos os sérvios par- tilham e quenao se altera ao longo do tempo. Uma definigao nio-essencialista focalizaria as diferengas, assim como as caracteristicas comuns ou partilhadas, tanto entre os pr6- prios sérvios quanto entre os sérvios e outros grupos étnicos, ‘Uma definic&o nao essencialista prestaria atencdo também as formas pelas quais a definigao daquilo que significa ser um “sérvio” tém mudado ao longo dos séculos. Ao afirmar a primazia de uma identidade — por exemplo, a do sérvio — 12 parece necessério nio apenas colocé-la em oposigao a uma Biitraidentidade que , entio, desvalorizada, mas também eivindicar alguma identidade sérvia “verdadeira’, auténti- fa, que teria permanecido igual ao longo do tempo. Mas Giso 0 que ocorre? A identidade é fixa? Podemos encon- trar uma “verdadeira” identidade? Seja invocando algo que seria inerente 3 pessoa, seja buscando sua “auténti- a fonte na hist6ria, a afirmagio da identidade envolve necessariamente o apelo a alguma qualidade essencial? Existem alternatives, quando se trata de identidade e de diferenca, 2 oposicéo binéria “perspectivas essencialistas ssencialistas”? versus perspectivas nio- Para tratar dessas questdes precisamos de explicagses que possam esclarecer os conceitos centrais envolvidos nessa discussio, bem como de um quadro tedrico que possa nos dar uma compreensio mais ampla dos processos que esto envolvidos na construgio da identidade. Embora es- teja centrada na questio da identidade nacional, a discussio de Michael Ignatieff ilustra diversos dos principais aspec- tos da identidade e da diferenea em geral e sugere como po- demos tratar algumas das quest6es analisadas neste capitulo: 1. Precisamos de conceitualizacées. Para compreender- ‘mos como a identidade funciona, precisamos conceitualiza- Tae dividi-la em sues diferentes dimensées. 2. Com freqiiéneia, a identidade envolve reivindicagées essencialistas sobre quem pertence e quem nao pertence a um determinado grupo identitirio, nas quais a identidade é vista como fixa e imutivel. 3. Algumas vezes essas reivindicagbes esto baseadas na natureza; por exemplo, em algumas versdes da identidade tnica, na “raga” e nas relagdes de parentesco. Mais fre- qiientemente, entretanto, essas reivindicagées esto basea- das em alguma versio essencialista da hist6ria e do passado, 13 OV na qual a hist6ria 6 construfda ou representada como uma verdade imutavel. ( 4:Aidentidade é, na verdade, relacional, e a diferenca ) & estabelecida por uma marcagéio simbélica relativamente a outras identidades (na afirmagio das identidades nacionais, } por exemplo, os sistemas representacionais que marcam a | diferenca podem incluir um uniforme, uma bandeira nacio- nal ou mesmo os cigarros que séo fumados) Le ~_— 5. A identidade esté vinculada também a condigées — sociais © materiais 1 grupo é simbolicamente mar- cado como o inimigo ou como tabu, isso tera efeitos reais porque 0 grupo ser socialmente exclufdo e teri desvan- tagens materiais. Por exemplo, 0 cigarro marca distingdes que esto presentes também nas relagées sociais entre sérvios e croatas. 6. O social e 0 simbélico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles 6 necessario para a constru- fo e a manutengao das identidades. A marcagio simbélica € 0 meio pelo qual damos sentido a priticas e a relagdes sociais, definindo, por exemplo, quem é exclufdo e quem é incluido. & por meio da diferenciagao social que essas classificagdes da diferenca sao “vividas” nas relagées sociais. 7.A conceitualizacao da identidade envolve o exame dos sistemas classificatdrios que mostram como as relagées s0- ciais sao organizadas e divididas; por exemplo, ela é dividida em ao menos dois grupos em oposigio - “nés e cles” “sérvios e croatas”. 8, Algumas diferencas silo marcadas, mas nesse proce algumas diferengas podem ser obscurecidas; por exemplo, a afirmagio da identidade nacional pode omitir diferencas de classe e diferencas de género. so 9, As identidades nao sio unificadas, Pode haver contra- digées no seu interior que tém que ser negociadas; por 4 i" exemplo, o miliciano sérvio parece estar envolvido em uma dificil negociagio ao dizer que 0s sérvios e os croatas sio os mesmos e, ao mesmo tempo, fundamentalmente diferentes Pode haver discrepancias entre o nivel coletivo o nivel individual, tais como as que podem surgir entre as deman- das coletivas da identidade nacional sérviae as experiéncias que os sérvios partilham com os croatas. cotidiana 10. Precisamos, ainda, explicar por que as pessoas assu- mem suas posigées de identidade e se identifica com elas. Por que as pessoas investem nas posigdes que os discursos daidentidade lhes oferecem? O nivel psiquico também deve fazer parte da explicagéo; trata-se de uma dimensio que, juntamente com a simbdlica e a social, 6 necessaria para ‘uma completa conceitualizagio da identidade. Todos esses elementos contribuem para explicar como as identidades sao formadas e mantidas. 4. Por que 0 conceito de identidade é importante? Uma das discusses centrais sobre a identidade concen- tra-se na tensio entre o essencialismo e 0 nao-essencialis- mo. O essencialismo pode fundamentar suas afirmagdes tanto na hist6ria quanto na biologia; por exemplo, certos movimentos politicos podem buscar alguma certeza na afir- magio da identidade apelando seja a “verdade” fixa de um passado partilhado seja a “verdades” biolégicas. O corpo é um dos locais envolvidos no estabelecimento das fronteiras que definem quem nés somos, servindo de fundamento para a identidade — por exemplo, para a identidade sexual. £ necessério, entretanto, reivindicar uma base biol6gica para aidentidade sexual? A maternidade 6 outro exemplo no qual a identidade parece estar biologicamente fundamentada. Por outro lado, os movimentos étnicos ou religiosos ou nacionalistas freqiientemente reivindicam uma cultura ou uma hist6ria comum como o fundamento de sua identidade. 18 O essencialismo assume, assim, diferentes formas, como se demonstrou na discussio sobre a antiga Iugoslivia, E pos- sivel afirmar a identidade 6tnica ou nacional sem reivindicar uma hist6ria que possa ser recuperada para servir de base para uma identidade fixa? Que alternativas existem a estra- tégia de basear a identidade na certeza essencialista? Seré que as identidades sio fluidas e mutantes? Vé-las como fluidas e mutantes € compativel com a sustentagao de um projeto politico? Essas questoes ilustram as tensbes que existem entre as concepgdes construcionistas e as concep- es essencialistas de identidade. Para justificar por que estamos analisando 0 conceito de identidade, precisamos examinar a forma como a identidade se insere no “circuito da cultura’ bem como a forma como a identidade e a diferenga se relacionam com a discussao sobre a representagio (Hall, 1997). Para compreender o que faz da identidade um conceito téo central, precisamos examinar as preocupagées contempordineas com questdes de identidade em diferentes niveis. Na arena global, por exemplo, existem reocupagGes com as identidades nacionais com as identida., des étnicas; em um contexto mais “local”, existem preocupa- Ses com a identidade pessoal como, por exemplo, com as relagées pessoais e com appolitica sexual. Hé uma discussio que sugere que, nas iiltimas décadas, esto ocorrendo mudangas no campo da identidade - mudangas que chegam ao ponto de produzir uma “crise da identidade”, Em quemedida o que est acontecendo hoje no mundo sustenta 0 argumento de que existe uma crise de identidade e o que significa fazer uma tal afirmagio? Isso implica examinar a forma como as identidacles sio formadas € 05 processos que esti0at Envolvidos. Implica também perguntar em que medidaas identidades sfo Tas ou, de forma alternativa, fluidas e cambiantes, Comecaremos a discussao com o lugar da identidade no “circuito da cultura’. 16 LI. Identidade ¢ representacao Por que estamos examinandoaidentidade ea diferenca? ‘Ao examinar sistemas de representagio, é necessdrio anali- ‘ar a relacéo entre cultura e significado (Hall, 1997). S6 podemos compreender 0s significados envolvidos nesses Sistemas se tivermos alguma idéia sobre quais posig6es-de- sujeito eles produzem e como nés, como sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior. Aqui, estaremos tratando de um outro momento do “circuito da cultura”: aquele em ‘que 0 faco se desloca dos sistemas de representagio para as identidades produadas por aqueles sistemas. QA representagio inclui as priticas de significagio ¢ os sistemas simbdlicos por meio dos quais os significados sao pproduzidos, posicionando-nos como sujeito. E por meio dos significados produzidos pelas representagées que damos sentido 2 nossa experiéncia e Aquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbdlicos tornam pos- sivel aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. Arepresentacio, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas ¢ os sistemas simblicos nos quzis ela se baseia fornecem possiveis res- postas as questées: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos ¢ os sistemas de repre- sentacio constroem os lugares a partir dos quais os indivi duos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar Por exemplo, a narrativa das telenovelas ¢ a semidtica da publicidade ajudam a construir certas identidades de géne- ro (Gledhill, 1997; Nixon, 1997). Em momentos particula- res, as promogées de marketing podem construir novas identidades como, por exemplo, o “novo homem das déca- das de 1980 e de 1390, identidades das quais podemos nos apropriar e que podemos reconstruir para nosso uso. A midia nos diz. comodevemos ocupar uma posi¢io-de-sujeito particular ~ 0 adolescente “esperto”, 0 trabalhador em as- censao ou a mae sensivel. Os aniincios s6 serio “eficazes” no seu objetivo de nos vender coisas se tiverem apelo para 0 consumidores e se fornecerem imagens com 0s quais eles possam se identificar. E claro, pois, que a produgio de significados e a produgio das identidades que sio posicionadas nos (€ pelos) sistemas de representagao esto estreitamente vinculadas. O deslocamento, aqui, para uma énfase na identidade 6 um deslocamento de énfase - um deslocamento que muda o foco: da repre- sentagao para as identidades. Q Kenfase na repre papel fagio,¢ o papel-chave da cultura na Snfase na represen /rodugio dos significados que permeiam todas as relagées \\Wixon, 1997). Esse conc: ( Ye sociais levam, assim, au preocupagio com aidentificagao_ to, que descreve o processo pelo qual nos identificamos com os outros, seja pela auséncia de uma consciéncia da diferenga ou da separagao, seja como resultado de supostas similaridades, tem sua origem na psicanilise. A identificagéo é um conceito central na com- preensio que a crianga tem, na fase edipiana, de sua propria situagio como um sujeito sexuado, O conceito de identificagao tem sido retomado, nos Estudos Culturais, mais especifica- mente na teoria do cinema, para explicar a forte ativagao de desejos inconscientes relativamente a pessoas ou a imagens, fazendo com que seja possivel nos vermos na imagem ou na personagem apresentada na tela. Diferentes significados sio produzidos por diferentes sistemas simbélicos, mas esses significados sao contestados e cambiantes. / Pode-se levantar questées sobre 0 poder da repre- sentagio e sobre como e por que alguns significados so preferidos relativamente a outros. Todas as praticas de sig- nificagao que produzem significados envolvem relagdes de poder, incluindo o poder para defini quem é inclufdo e quem é excluido. A cultura molda a identidade ao dar sentido & experiéncia e ao tornar possivel optar, entre as varias iden- P : tidades possi ‘man da Sony (Du G: eis, por um modo eve isle eminilidade loira e distante ou a da mascu- a Be = ¢ sofisticada dos aniincios do Walk- ( y, Hall et alii, 1997). Somos constran- 3g, entretanto, nao apenas pela gama de possibilidades ‘cultura oferece, isto 6, pela variedade de repre: Kentacées simbdlicas, mas também pelas relagies socias. {Como argamenta Jonathan Rutherford, “a identidade marca o encontro de nosso passado com Ses cis, cultural eecondmiea nas quaisvivemos nas com as relagdes econdmicas e politicas de subordinagio ‘e dominacdo” (Rutherford, 1990, p. 19-20) ecem novas formas de se dar 7 Os sistemas simb6licos for Aentido & experiéncia das divisbes e desigualdades sociais e 40s meios pelos quais alguns grupos sio excluidos e estig- izados. As identidades sao contestadas. Este capitulo “omegou com um exemplo de identidades fortemente con- testadas, A discussio sobre identidades sugere a emergén- fia de novas posig5es e de novas identidades, produzidas, micas e sociais cam~ jpor exemplo, em circunstincias econ Diantes. As mudangas mencionadas anteriormente e enfati- zadas no exemplo da antiga Iugoslévia sugerem que pode Thaver uma crise deidentidade? Que mudangas podem estar Scorrendo nos niveis global, local e pessoal, que possam Gustificar 0 uso da palavra “crise”? 2, Existe uma crise de identidade? ‘Quase todo mundo fala agora sobre “identidade”. 4 iden- tidade sé se torna um pooblene: quando esti — apt quando algo que se supde ser fxo, coerente e estivel 6 deslocado pela experiéncia da divida e da incerteza (Mer- ex, 1990, p. 4) “Identidade” © “crise de identidade” so palavras e idéias bastante utilizadas atualmente e parecem ser vistas 19 por socidlogos ¢ teéricos como caracteristicas das socieda. des contemporiineas ou da modernidade tardia. J4 mostra- mos 0 exemplo de uma rea no mundo, a antiga Iugoslévia, na qual se observa o ressurgimento de identidades étnicas nacionais em conflito, fazendo com que as identidades existentes entrassem em colapso. Nesta seco, examinare- mos uma série de diferentes contextos nos quais que sobre identidade e crise d Examinaremos, assim, a globalizagio e os processos associa- dos com mudangas globais, incluindo questées sobre hist6- ria, mudanga social e movimentos politicos. Alguns autores recentes argumentam que as “crises de identidade” sao caracteristicas da modernidade tardia e que sua centralidade atual s6 faz sentido quando vistas no con- texto das transformagées globais que tém sido definidas como caracteristicas da vida contemporinea (Giddens, 1990). Kevin Robins, por exemplo, argumenta que o fend- meno da globalizacéo envolve uma extraordinaria transfor- magio. Segundo ele, as velhas estruturas dos estados e das comunidades nacionais entraram em colapso, cedendo Iu- gara.uma crescente “transnacionalizagio da vida econdmica cultural” (Robins, 1997). A globalizagéo envolve uma interagéo entre fatores econdmicos e culturais, causando mudangas nos padrées de produgio e consumo, as quais, por sua vez, produzem identidades novas e globalizadas. Essas novas identidades, caricaturalmente simbolizadas, as vezes, pelos jovens que comem hambiirgueres do McDonald's e que andam pela rua de Walkman, formam um grupo de “consumidores globais” que podem ser en- contrados em qualquer lugar do mundo e que mal se distin- guementre si, O desenvolvimento global do capitalismo nao 6, obviamente, novo, mas o que caracteriza sua fase mais recente 6 a convergéncia de culturas e estilos de vida nas sociedades que, ao redor do mundo, sio expostas ao seu impacto (Robins, 1991). 20 idade se tornaram centr: alecore reafirmar algumas identidades nacionais €locais Tevar ao surgimento de novas posicGes de identidade ‘As mudancas na economia global tém produzido uma o das demandas ao redor do mundo. Isso ocorre nao s em termos de bens e servigos, mas também de sreados de trabalho. Reine dos trabalhadores nao 6, famente, nova, mas a globalizagio esté estreitamente aaceleragio da migracao. Motivadas pela neces- de econdmica, zs pessoas tém se espalhado pelo globo, forma que “a migracio internacional é parte de uma o transnacisnal que esta remodelando as socieda- ‘a politica ao redor do globo” (Castles e Miller, 1993, |. A migragio tem impactos tanto sobre o pais de origem into sobre o pais de destino. Por exemplo, como resultado ‘proceso de imigragio, muitas cidades européias apre- ‘exemplos de comunidades e culturas diversificadas. , na Gri-Bretanha, muitos desses exemplos, in- ‘comunidades asidticas em Bradford e Leicester, € s de Londres, ‘ais como Brixton, ou em St. Paul's, em tol. A migracéo produz identidades plurais, mas tam- identidades contestadas, em um processo que é carac- do por grandes desigualdades. A migragéo é um 0 caracteristico da desigualdade em termos de de- nvolvimento. Nesse processo, o fator de “expulsiio” dos 0 fator de “atracao” das dades p6s-industriais e tecnologicamente avangadas. movimento global do capital é geralmente muito mais equea mobilidede do trabalho. “\ au CTO AAGLG Lissa dispersio das pessoas a0 redor do globo produz identidades que siio moldadas e localizadas em diferentes lugares e por diferentes lugares. Essas novas identidades podem ser desestabilizadas, mas também desestabilizado. ras] O conceito de didspora (Paul Gilroy, 1997) 6 um dos coficeitos que nos permite compreender algumas dessas identidades — identidades que nao tém uma “patria” e que nao podem ser simplesmente atribuidas a uma tinica fonte, ‘A nogéo de “identidade em crise” também serve para analisar a desestabilizagao que se seguiu ao colapso da ex- Unio Soviética e do bloco comunista do Leste Europeu, causando aafirmagio de novas ¢ renovadas identidades étnicas ea busca por identidades supostamente perdidas. O colapso do comunismo, em 1989, na Europa do Leste e na ex-Unitio Soviética, teve importantes repercussdes no campo das lutas e dos compromissos politicos. O comunismo simplesmente def xava de existir como um ponto de referéncia na definicéo de posigdes politics. Para preencher esse vazio, tém ressurgido’ na Europa Oriental e na ex-Uniao Soviética formas antigas de identificagio étnica, religiosa e nacional. Jana Europa pés-colonial e nos Estados Unidos, tanto ‘os povos que foram colonizados quanto aqueles que os colonizaram tém respondido a diversidade do multicul- turalismo por meio de uma busca renovada de certezas | étnicas. Seja por meio de movimentos religiosos,seja por | meio do exclusivismo cultural, alguns grupos étnicos tém | reagido A sua marginalizagio no interior das sociedades “hospedeiras” pelo apelo a uma enérgica reafirmagio de suas identidades de origem. Essas contestagées esto liga das, em alguns pafses, a afliagbes religiosas, tais como o islamismo na Europa e nos Estados Unidos e 0 catolicisma romano e o protestantismo na Irlanda do Norte. Por outro Jado, os grupos dominantes nessas sociedades também estio «em busca de antigas certezas étnieas — hi, por exemplo, no Le Sethu homulunn & 22 OM IV Iho Unido, uma nostalgia por uma “inglesidade” mais cultu- Thomogénea e, nos Estados Unidos, um movimento Mem retomo aos “velbos bons valores da fama americana [No Reino Unido, os movimentos nacionalistas tém Iuta- afirmar sua identidade por meio da reivindicagao B eva propria lingua, como, por exemplo, no caso do Plaid mu, no Pais de Gales. Ao mesmo tempo que hi a reafir- fo de uma nova “identidade européia”, por meio do fencimento a Unido Européia, travam-se lutas pelo re- Ghecimento de identidades étnicas no interior dos antigos -nagio, tais como a antiga Tlugoslavia. Para lidar com fentagao do presente, algumas comunidades buscam ara um pasado perdido, “ordenado... por lendas ens, por hist6rias de eras de ouro, antigas tradigées, fatos herdicos e destinos dramaticos localizados em pprometidas, cheias de paisagens e locais sagrados...” niels, 1993, p. 5) 1 passado ¢ o presente exercem um importante papel ‘eventos. A contestagao no presente busca justificagao tia criagdo de novas — ¢ futuras — identidades nai indo origens, mitologias e fronteiras do passado. Os is conilitos estio, com freqtiéncia, concentrados nessas feiras, nas quais a identidade nacional é questionada e ifestada. A desesperada produgio de uma cultura sérvia fieada e homoginea, por exemplo, leva & busca de uma Atidade nacional que corresponda a um local que seja sbido como 0 territério ¢ a “terra natal” dos sérvios. JO que se possa argumentar que nao existe nenhuma fidade fixa, sérvia ou croata, que remonte a Idade i (Malcolm, 1994) ¢ que poderia ser agora ressuscita- 4S pessoas envolvidas nesse processo comportam-se Mo se ela existisse e expressam um desejo pela restaura- a unidade dessa comunidade imaginada. Benedict erson (1983) utiliza essa expressao para desenvolver 0 23 argumento de que a identidade nacional é inteiramente dependente da idéia que fazemos dela, Uma vez que nio seria possivel conhecer todas aquelas pessoas que partilham de nossa identidade nacional, devemos ter uma idéia parti- Ihada sobre aquilo que a constitui. A diferenga entre as di- versas identidades nacionais reside, portanto, nas diferentes formas pelas quais elas so imaginadas No mundo contemporaneo, essas “comunidades imagi- nadas” estio sendo contestadas e reconstituidas, A idéia de uma identidade européia, por exemplo, defendida por par- tidos politicos de extrema direita, surgiu, recentemente, como uma reagio A suposta ameaca do “Outro”. Esse “Ou- tro” muito freqtientemente se refere a trabalhadores da Africa do Norte (Marrocos, Tunfsia e Argélia), os quais sio representados como uma ameaga cuja origem estaria no seu suposto fundamentalismo islamico. Essa atitude é, cada vez mais, encontrada nas politicas oficiais de imigragao da Uniao Européia (King, 1995). Podemos vé-la como a proje- gao de uma nova forma daquilo que Edward Said (1978) chamou de “orientalismo” ~a tendéncia da cultura ocidental a produzir um conjunto de pressupostos e representagdes sobre 0 “Oriente” que 0 constréi como uma fonte de fascinagao e perigo, como exético e, ao mesmo tempo, amea- cador. Said argumenta que as representagdes sobre o Orien- te produzem um saber ocidental sobre ele — um fato que diz mais sobre os medos e as ansiedades ocidentais do que sobre a vida no Oriente e na Africa do Norte. As atuais construgGes do Oriente tém se concentrado num suposto fundamentalismo islamico, o qual é construido - “demoni- zado” seria o termo mais apropriado — como a principal e nova ameaga as tradigdes liberais, As mudangas ¢ transformagées globais nas estruturas politicas ¢ econémicas no mundo contemporiineo colocam em relevo as questoes de identidade e as lutas pela afirma- “meio da reivindi fo emanutencio ds identidades nacionais étnicas, Mes- Bee que o passado que as identidades atuais reconstroem ja, sempre, apenas imaginado, ele proporciona alguma Kertera em um clima que € de mudanga, fluidez.e crescente feertera. As identidades em conflito estio localizadas no fnterior de mudangas sociais, politicas e econdmicas, mu- ancas para as quais elas contribuem. As identidades que fo construidas pela cultura sio contestadas sob formas ‘eulares no mundo contemporéneo ~ num mundo que Sepode chamar de p6s-colonial. Este é um perfodo hist6rico ‘caracterizado, entretanto, pelo colapso das velhas certezas fe pelaproducio de novas formas de posicionamento. O que_ ‘€/importante para nossos propdsitos aqui é reconhecer que 4 luta ea contestacio estio concentradas na construgao altural de identidades, tratando-se de um fenémeno que “estf ocorrendo em uma variedade de diferentes cont Enquanto, nos anos 70 e 80, a luta politica era descrita e teorizada em termos de ideologias em conflito, ela se carac- teriza agora, mais provavelmente, pela competigio e pelo conflito entre as diferentes identidades, o que tende a re- forcar o argumento de que existe uma crise de identidade no mundo contemporineo. 2.1, Historias aracteri- 5 conflitos nacionais e étnicos parecem ser zados por tentativas de recuperar € reescrever a hist6ria, ‘como vimos no exemplo da antiga Iugoslavia. A afirmacdo politica das identicades exige alguma forma de autentica- a0, Muito freqiientemente, essa autenticagio é feita por cago da hist6ria do grupo cultural em quest » estara concentrada nas questdes impli- cadas nesse processo. Pode-se perguntar, primeiramente: existe uma verdade historica tinica que possa ser recupera- da? Pensemos sobre o pasado que a indéstria que explora ‘uma suposta heranga inglesa reproduz por meio da venda de mansdes que representariam uma hist6ria passada au- tenticamente inglesa. Pensemos também nas representa- des que a midia faz desse presumido ¢ auténtico passado como, por exemplo, nos filmes baseados nos romances de Jane Austen. Hi um passado inglés auténtico e tinico que possa ser utilizado para sustentar ¢ definir a “inglesidade” como sendo a identidade do final do século XX? A “indis- tria” da heranga parece apresentar apenas uma e tinica versio. Em segundo lugar, qual é a histéria que pesa - a hist6ria de quem? Pode haver diferentes hist6rias. Se exis- tem diferentes versdes do passado, como nés negociamos entre elas? Uma das versdes do pasado é aquela que mostra a Gra-Bretanha como um poder imperial, como um poder que exclui as experiéncias e as historias daqueles povos que a Gra-Bretanha colonizou. Uma histéria alternativa ques- tionaria essa descrigéo, mostrando a diversidade desses grupos étnicos ¢ a pluralidade dessas culturas. Tendo em vista essa pluralidade de posigées, qual heranga histérica teria validade? Ou seriamos levados a uma posigao relativis- ta, na qual todas as diferentes verses teriam uma validade igual, mas separada? Ao celebrar a diferenga, entretanto, nao haveria o risco de obscurecer a comum opressio eco- némica na qual esses grupos estio profundamente envolvi- dos? S.P Mohanty utiliza a oposigio entre “historia” e hhist6rias” para argumentar que a celebracao da diferenga poderia levar a ignorar a natureza estrutural da opressio: A pluralidade , pois, um ideal politico tanto quanto um slogan metodol6gico. Mas hi uma questio ineémoda que precisa ser resolvida, Como podemos negociar entre mi- nha histéria e a sua? Como seria possivel para nés recupe. rar aquilo que temos em comum, no o mito humanista dos atributos humanos que partilharfamos e que suposta- mente nos distinguiriam dos animais, mas, de forma mais nportante, a intersecgio de nossos vi vitios presentes, as inevitavets relagdes entre significado os passadlos e nossos 26 partilhados € significados contestadlos, entre valores € recursos materiais? E preciso afirmar nossas densas pecu- liaridades, nossas diferencas vividas e imaginadas. Mas podemos nos permitir deixar de examinar a questio de como nossas diferencas estio entrelagadas e, na verdade, hierarquicamente organizadas? Podemos nés, em outras palavras, realmente nos permitir ter histériasinteiramente diferentes, podemos nos conceber como vivendo~e tendo vivido ~ em espagos inteiramente heterogéneos e separa- dos? (Mohanty, 1989, p. 13). /‘4s histérias sio realmente contestadas e isso ocorre, Zobretudo, na luta politica pelo reconhecimento das identi ies Em seu ensaio “Identidade cultural e didspora” / (1990), Stuart Hall examina diferentes concepgées de iden- tidade cultural, procurando analisar o processo pelo qual se busca autenticar uma determinada identidade por meio da descoberta de um passado supostamente comum. \0 afirmar ume determinada identidade, podemos bus- car legitimé-la po: referéncia a um suposto e auténtico passado ~ possivelmente um passado glorioso, mas, de qual- quer forma, um pasado que parece “real” — que poderia validar a identidade que reivindicamos. Ao expressar de mandas pela identidade no presente, os movimentos naciona- listas, seja na antiga Uniio Soviética seja na Europa Oriental, ou ainda na Escécia ou no Pafs de Gales, buscam a validagéo do passado em termos de territ6rio, cultura e local. Stuart Hall analisa o conceito de “identidade cultural”, utilizando 0 exem- plo das identidades da didspora negra, baseando-se, empi- ricamente, na representagio cinematografica. Nesse ensaio, Hall toma como seu ponto de partida a questo de quem e o que nds representamos quando fala- mos. Ele argumenia que o sujeito fala, sempre, a partir de uma posigiio hist6rica e cultural especifica. Hall afirma que ha duas formas diferentes de se pensar identidade cultural A primeira reflete a perspectiva jé discutida neste capitulo, na qual uma determinada comunidade busca recuperar a “verdade” sobre seu passado na “unicidade” de un e de uma cultura partilhadas que poderiam, entio, ser re- presentadas, por exemplo, em uma forma cultural como filme, para reforcar e reafirmar a identidade — no caso da inddstria da heranga, a “inglesidade”; no exemplo de Hall, a “caribenhidade”. A segunda concepgio de identidade cultural 6 aquela que a vé como “uma questo tanto de “tornar-se’ quanto de ‘ser™. Isso nfo significa negar que a identidade tenha um passado, mas reconhecer que, a0 rei- vindicé-la, n6s a reconstruimos e que, além disso, o passado sofre uma constante transformaco. Esse pasado é parte de uma “co- munidade imaginada”, uma comunidade de sujei- tos que se apresentam como sendo “nés”. Hall argumenta em favor do reconhecimento da identidade, mas nfo de uma identidade que esteja fixada na rigidez da oposicao binaria, tal como as dicotomigs “nés/eles”, ou “sérvios/croatas”, no exemplo de Ignatieff Ele sugere que, embora seja construf- do por meio da diferenca, o significado nao é fixo, e utiliza, para explicar isso, 0 conceit de, différance de Jacques Derrida. Segundo esse autor, o significado é sempre diferido ou adiado; ele nao é completamente fixo ou completo, de forma que sempre existe algum deslizamento. A posigio de Hall enfatiza a fluidez da identidade. Ao ver a identidade ‘como uma questio de “tomar-se”, aqueles que reivindicam a identidade nao se limitariam a ser posicionados pela identidade: eles seriam capazes de posicionar a si préprios e de reconstruir ¢ transformar as identidades hist6ricas, ‘erdadas de um suposto passaclo comum. historia Gam is 2, Mudangas sociais_) Nio estio ocorrendo mudangas apenas nas escalas glo- bal e nacional e na arena politica. A formagio da identidade ocorre também nos niveis “local” e pessoal. As mudangas glo- 28 pais na economia como, por exemplo, as transformagées nos padrdes de produgao e de consumo ¢ 0 deslocamento do investimento das indistrias de manufatura para o setor de servigos tém um impacto local. Mudangas na estrutura de classe social constituem uma caracteristica dessas mudan- gas globaiselocais. ot J.-L orca, ‘Ascrises globais da identidade tém aver com aquilo.que Emesto Laclau chamou de deslocamento. As sociedades modernas, ele argumenta, nao tém qualquer nticleo ou cen- tro determinado que produza identidades fixas, mas, em vez disso, uma pluralidade de centros. Houve um deslocamento dos centros. Pode-se argumentar que um dos centros que foi deslocado é 0 da classe social, nao a classe como uma simples fungio da organizagio econémica e dos processos de produgao, mas z classe como um determinante de todas as outras relacées sociais: aclasse como a categoria “mestra”, que é como elaé descrita nas anélises marxistas da estrutura social. Laclau argumenta que nao existe mais uma tinica forca, determinante ¢ totalizante, tal como a classe no para- digma marxista, que molde todas as relagGes sociais, mas, em vez disso, uma multiplicidade de centros. Ele sugere nio somente que a luta de classes no é inevitével, mas que nio € mais possfvel argumentar que a emancipagio social esteja nas maos de uma tinica classe. Laclau argumenta que isso tem implicagées positivas porque esse deslocamento indica que ha muitos e diferentes lugares a partir dos quais novas identidades podem emergir e a partir dos quais novos sujeitos podem se expressar (Laclau, 1990, p. 40). As vanta- gens desse deslocamento da classe social podem ser ilustra- das pela relativa diminui¢go da importincia das afiliagdes baseadas na classe, tais como os sindicatos operiirios € 0 surgimento de outras arenas de conflito social, tais como as baseadas no género, na “raca”, na etnia ou na sexualidade. 29 Os individuos vivem no interior de um grande niimero de diferentes instituigées, que constituem aquilo que Pierre Bourdieu chama de “campos sociais”, tais camo as familias, 0 grupos de colegas, as instituigées educacionais, os grupos de trabalho ou partidos politicos. Nos participamos dessas instituigbes ou “campos sociais”, exercendo graus variados de escolhaeautonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade, um espaco ¢ um lugar, bem como ‘um conjunto de recursos simbélicos. Por exemplo, a casa é © espaco no qual muitas pessoas vivem suas identidades familiares. A casa 6 também um dos lugares nos quais somos espectadores das representagées pelas quais a midia produz determinados tipos de identidades ~ por exemplo, por meio da narrativa das telenovelas, dos antincios e das técnicas de venda. Embora possamos nos ver, seguindo 0 senso comum, como sendoa “mesma pessoa” em todos os nossos diferentes encontros e interagées, nio é dificil perceber que somos diferentemente posicionados, em diferentes momentos ¢ em diferentes lugares, de acordo com os diferentes papéis sociais que estamos exercendo (Hall, 1997). Diferentes con- textos sociais fazem com que nos envolvamos em diferentes significados sociais. Consideremos as diferentes “identida- des” envolvidas em diferentes ocasides, tais como participar de uma entrevista de emprego ou de uma reuniio de pais na escola, ir a uma festa ou a um jogo de futebol, ou ir a um centro comercial. Em todas essas situagées, podemos nos sentir, literalmente, como sendo a mesma pessoa, mas nos somos, na verdade, diferentemente posicionados pelas di- ferentes expectativas e restrigGes sociais envolvidas em cada uma dessas diferentes situagées, representando-nos, diante dos outros, de forma diferente em cada um desses contextos. Em um certo sentido, somos posicionados — ¢ também po- sicionamos a nés mesmos ~ de acordo com os “campos s0- ciais” nos quais estamos atuando. 30 Existe, em suma, na vida moderna, uma diversidade de posigBes que nos estio disponiveis -posigGes que podemos Peapar ou nao. Parece dificil separar algumas dessas iden- tidades e estabelecer fronteiras entre clas. Algumas dessas identidades podem, na verdade, ter mudado ao longo do tempo. As formas como representamos a nés m ‘como mulheres, como homens, como pais, como pessoas trabalhadoras—témmudado radicalmente nos diltimos anos ‘Como individuos, podemos passar por experiéncias de frag mentagio nas nossas relagdes pessoais € no nosso trabalho. Essas experiéncias sfo vividas no contexto de mudancas sociais e hist6ricas, tais como mudangas no mercado de trabalho e nos padres de emprego. As identidades e as Jealdades politicas também tém sofrido mudangas: lealda- des tradicionais, beseadas na classe social, cedem lugar & concepcao de escolha de “estilos de vida” e & emergéncia da “politica de identidade”. A etnia e a “raga”, o género, a sexualidade, a idade, a incapacidade fisica, a justiga social e as preocupacées ecolégicas produzem novas formas de identificagio. As relagées familiares também tém mudado, especialmente como impacto das mudangas na estrutura do ‘emprego. Tem havido mudancas também nas priticas de trabalho e na produgio e consumo de bens e servigos. E igualmente notével a emergéncia de novos padrdes de vida doméstica, o que é indicado pelo crescente ntimero de lares chefiados por pais solteiros ou por mies solteiras bem como pelas taxas elevadas de divéreio. As identidades sexuais também esto mudando, tornando-se mais questionadas e ambiguas, sugerindo mudangas e fragmentagdes que po- dem ser descritas em termos de uma crise de identidade, esmos — A complexidade da vida moderna exige que assumamos ferentes identidades, mas essas diferentes identidades podem estar em conflito. Podemos viver, em nossas vidas pessoais, tensGes entre nossas diferentes identidades quan- 3 do aquilo que é exigido por uma identidade interfere egy as exigéncias de uma outra. Um exemplo 6 0 confit tente entre nossa identidade como pai ou mae e nossa tidade como assalariado/a. As demandas de uma interfape com as demandas da outra e, com freqtiéncia, se cont zem, Para ser um “bom pai” ou uma “boa mae”, devemg estar disponiveis para nossos filhos, satisfazendo suas neees sidades, mas nosso empregador também pode exigit noseg total comprometimento. A necessidade de ir a uma reunj de paisna escola do filho ou da filha pode entrar em contfitg com a exigéncia de nosso empregador para que traball mos até mais tarde. Gontexto ou campo cultural tem seus controles ¢ bivas, bem como seu “imaginério”; isto €, suas de prazer € realizacao. Como sugere Lorde, os Osc sobre heterossexualidade e os discursos racis- Pra algumas familias 0 acesso a esse “imaginério frelacio entre o social eo simbélico. F: possivel sjalmente excluidos da forma que Lorde descreve eos simbolicamente marcados como diferentes? social é simbolicamente marcada, As identida- diversas e cambiantes, tanto nos contextos sociais ifs elas sfo vividas quanto nos sistemas simbélicos os quais damos sentido a nossas pr6prias posicdes. disso € 0 surgimento dos chamados “novos fentos sociais”, os quais tem se concentrado em lutas Outros conflitos surgem das tensées entre as expectati vvas e as normas sociais. Por exemplo, espera-se que as mag. - sejam heterossexuais. Identidades diferentes podem se mo da identidade. Eles tém se caracterizado por construidas como “estranhas” ou “desviantes”. Audre Lo gm o apagamento das fronteiras entre o pessoal ¢ © escreve: “Como uma mie ~ feminista socialista, lésbie spara adaptar o slogan ferninista. negra, de 49 anos —de duas eriancas, incluindo um mening e como membro de um casal inter-racial, com muita free novos movimentos sociais”: o pessoal é politico giiéncia vejo-me como pertencendo a um grupo definida) facordo com Jeffrey Weeks, tem havido um como estranho, desviante ou inferior ou simplesmente er rado” (1992, p. 47). Pode parecer que algumas dessas idens tidades se refiram principalmente a aspectos pessoas da vida, tal como a sexualidade, Entretanto, a forma como igPnero, da palitica lésbica e gay, do ambientalismo e da vivemos nossas identidades sexuais ¢ mediada pelos sige politica do HIV ¢ da AIDS (Weeks, 1994, p. 4). nificados culturais sobre a sexualidade que sao produzi= “novos movimentos sociais” emergiram no Oci- dos por meio de sistemas dominantes de representagao, anos 60 €, especialmente, apés 1968, com a Independentemente de como Lorde decida afirmar sua estudantil, o ativismo pacifista e antibélico e as identidade, por exemplo como mie, sua escolha é cons= direitos civis. Eles desafiaram o establishment e trangida pelos discursos dominantes sobre a heterossexuse arquias burocriticas, questionando principalmen- lidade e pela hostilidade freqiientemente vivida por mies oliticas “revisionistas” e “estalinistas” do bloco sovié- lésbicas. Lorde cita uma gama de diferentes contextos nog &s limitagSes da politica liberal ocidental. As lealda- quais sua identidade é construida ou negociada - seria liticas tradicionais, baseadas na classe social, foram melhor dizer “suas identidades’ finadas por movimentos que atravessam as divisbes lativ repensar da politica, sob o impacto dos novos movi- Mentos sociais e da politica de identidade da geragio Dpassada, com suas lutas em torno da raga e da etnia, do 33 de classe e se dirigiam as identidades particulares de sustentadores. Por exemplo, o feminismo se dirigia egna ficamente as mulheres, 0 movimento dos direitos civis q negros as pessoas negras e a politica sexual s peg lésbicas e gays. A politica de identidade era o que defy esses movimentos sociais, mareados por uma preoeup profunda pela identidade: o que ela significa, og o uma espécie de Imente a todas elas, com histories (Jeffreys, 1985), Hos essencialistas da politica de identidade po- los pelas visbes de algumas: ‘das participantes mnentos do Movimento pela Paz, de Greenham feipantes daquela campanha contra os misseis i Gemavam representar as caracteristicas essen Mmininas da preocupagao com o outro mae ‘essa posigiio como um “confor- pessoas que parteacem a um determinado grand Par te ternal que fazpartedaconstrucio do oumarginalizado. Essa identidade torna-se, assim, Pi da mulher, um principio que o feminism fator importante de mobilizacao politica. Essa politi Mionar” (Delmar, 1986, p. 12). De forma similar, envolve a celebragio da singularidade cultural de y Sativa de questionar as afirmagées de que a determinado grupo, bem como a anilise de sua opress F, & i = lado a a Stefi fualidade 6 anormal ou imoral, tem-se apel especie, Pde-seaplar a dentidde,entretani, ded Te comquceslentiadage formas bastante diferentes. vente determinada. Por um lado, a celebrago da singularidade do gr que é a base da solidariedade politica, pode se traduzir é afirmagdes essencialistas. Por exemplo, tomando comob aidentidade eas qualidades singulares das mulheres, a fo lado, alguns dos “novos movimentos sociais”, © movimento das mulheres, tém adotado uma fao-essencialista com respeito 3 identidade. Eles tém gue as identidades sfo fluidas, que elas nao sto fixas, que chs nao estio presas a diferencas que jentes e valeriam para todas as épocas (Weeks, membros dos “novos movimentos sociais” tém do o direito de construir e assumia responsabilida- ‘Préprias identidades. Por exemplo, as mulheres Tutado pelo reconhecimento de sua prépria @ luta no interior do movimento feminista, resistin- |, 20s pressurostos de um movimento de mulheres (na categoria unificada de “mulher” que, implicita- nelui apenas as mulheres brancas (Aziz, 1992). ratismo relativamente aos homens. Existem, obviaments diferentes formas de compreender e definir essa “sir camente dadas da identidade como, por exemplo, a magio de que o papel biolégico das mulheres como mies torna inerentemente mais altruistas e pacificas. Ou pode basear em apelos & historia quando, por exemplo, as m res buscam estabelecer uma historia exclusiva das m res, reivindicando, nos paises de fala inglesa, uma “he tory” (Daly, 1979), que os homens teriam reprimido, Iss : : implicaria, segundo esse argumento, a existéncia de um ins elementos desses movimentos tém questionado, cultura exclusiva das mulheres — haveria, a0 longo da hist6 ente, duas concepgdes que pressupéem 0 caré- via, algo fixo e imutvel na posigio das mulheres que eb primeira estt besenia'na Glasto uM 35 OF 1 Mery gry te Essa concepgao baseia-se na anilise que Marx fez da relagao entre base e superestrutura, na qual as relagées sociais sio vistas como determinadas pela base material da sociedade, argumentando-se, assim, que as posigdes de género podem ser “deduzidas” das posigdes de classe social. Embora essa andlise tenha 0 apelo de uma relativa simplicidade e da énfase na importincia dos fatores econdmicos materiais como determinantes centrais das posigles sociais, as mu- dangas sociais recentes colocam essa visio em questio. Mudangas econdmicas tais como 0 declinio das indtstrias de manufatura pesada e as transformagées na estrutura do mercado de trabalho abalam a propria definigéo de classe operria, a qual, tradicionalmente, supée operérios mascu: Jinos, industriais e de tempo integral. As identidades basea- das na “raga”, no género, na sexnalidade e na incapacidade fisica, por exemplo, atravessam o pertencimento de classe. O reconhecimento da complexidade das divis6es sociais pela politica de identidade, na qual a “raca’”, a etnia e o gé- nero so centrais, tem chamado a atencao para outras divi- s6es sociais, sugerindo que nao é mais suficiente argumen- tar que as identidades podem ser deduzidas da posicéo de classe (especialmente quando essa propria posigio de classe esta mudando) ou que as formas pelas quais elas séo repre- sentadas tém pouco impacto sobre sua definigéo. Como ar- gumenta Kobena Mercer: “Em termos politicos, as identi- dades esto em crise porque as estruturas tradicionais de per- tencimento, baseadas nas relagées de classe, no partido e na nagio-estado tém sido questionadas” (Mercer, 1992, p. 424). A politica de identidade tem a ver com o recrutamento de sujeitos por meio do processo de formacao de identidades. Esse proceso se da tanto pelo apelo as identidades hege- ral ménicas ~ 0 consumidor soberano, 0 cidadio patristico — sténcia dos “novos movimentos sociais”, a0 quanto pela re! colocar em jogo identidades que nao tém sido reconhecidas, 36 que tém sido mantidas “fora da hist6ria” (Rowbotham, 1973) ou que tém ocupado espacos ds margens da sociedade. segundo desifio de alguns dos “novos movimentos sociais” tem consistido em questionar o essencialismo da ide tidade e sua fixider como algo “natural”, isto é como uma categoria biolégica. A politica de identidade nao “é uma luta entre sujeitos naturzis; é uma luta em favor da prépria expres- sio da identidade, na qual permanecem abertas as possibilida- des para valores politicos que podem validar tanto a diversidade quanto a solidariedade” (Weeks, 1994, p. 12). Weeks argumenta que uma das principais contribuigées da politica de identidade tem sido a de construir uma politica da diferenca que subve-te a estabilidade das categorias biol6gicas ea construgio de oposigdes bindrias. Ele argumenta que os “novos movimentos sociais” historicizaram a experiéncia, enfatizando as diferencas entre grupos marginalizados como uma alternativa a “universalidade” da opressio. Isso ilustra duas verses do essencialismo identititio. A primeira findamen‘aa identidade na “verdade” da tradigao e nas raizes da histéria, fazendo um apelo a “realidade” de um passado possivelmente reprimido e obscurecido, no qual a identidade proclamada no presente é revelada como um produto da historia. A segunda esté relacionada a uma categoria “natural”, fixa, na qual a “verdade” esta enraizada na biologia. Cada uma dessas versdes envolve uma crenga na existéncia e na busca de uma identidade verdadeira. essencialismo pode, assim, ser biolégico e natural, ou hist6- rico e cultural. De qualquer modo, 0 que eles tém em comum é uma concep¢io unificada de identidade. 2.4, Sumario da secao 2 Nossa discussio apresentou visdes diferentes e fre- qiientemente contraditérias sobre a identidade. Por um lado, aidentidade é vista como tendo algum niicleo essencial que distinguiria um grupo de outro. Por outro, a identidade & vista como confingente; isto é, como o produto de un tersecgio de diferentes componentes, de discursos politicos e culturais e de historias particulares. A identidade contin- gente coloca problemas para os movimentos sociais em termos de projetos politicos, especialmente ao afirmar a solidariedade daqueles que pertencem aquele movimento especifico, Para nos contrapor as nega¢des sociais dominan- tes de uma determinada identidade, podemos desejar re- cuar, por exemplo, as aparentes certezas do passado, a fim de afirmar a forga de uma identidade coerente e unificada. ‘Como vimos no caso das identidades nacionais e étnicas, & tentador ~ em um mundo cada vez mais fragmentado e em resposta ao colapso de um conjunto determinado de certe- zas — afirmar novas verdades fundamentais e apelar a raizes anteriormente negadas. Assim, em uma politica de identi- dade, o projeto politico deve certamente ser reforgado por algum apelo a solidariedade daqueles que “pertencem” a um grupo oprimido ou marginalizado. A biologia fornece uma das fontes dessa solidariedade; a busca universal, trans- hist6rica, de raizes e lagos culturais fornece uma outra. As identidades séo produzidas em momentos particula- res fo tempo. Na discussao sobre mudangas globais, iden tidades nacionais ¢ étnicas ressurgentes ¢ renegociadas e sobre 0s desafios dos “novos movimentos sociais” ¢ das novas definigdes das identidades pessoais e sexuais, sugeri que as identidades so contingentes, emergindo em mo- mentos hist6ricos particulares. Alguns elementos dos “no- vos movimentos sociais” questionam algumas das ten- déncias a fixagdo das identidades da “raga”, da classe, do género e da sexualidade, subvertendo certezas biolégicas, enquanto outros afirmam a primazia de certas caraiterfsti- cas consideradas essenciais, 38 YP “Argumentei, nesta seco, que a identidade importa por- ue existe uma crise da identidade, globalmente, localmen- 3 pessoalmente e politicamente. Os processos histéricos tidades esto entrando em colapso e novas identidades estio sendo forjadas, muitas vezes por meio da luta e da contes- tacio politica. As dimens6es politicas da identidade tais como se expressam, por exemplo, nos conflitos nacionais e tnicos € no crescimento dos “novos movimentos sociais”, estio fortemente baseadas na construgio da diferenga Como vimos no exemplo de Ignatieff, no infcio deste capitulo, as identidades sao fortemente questionadas. Tam- ém vimos que, muito freqtientemente, elas esto baseadas em uma dicotomia do tipo “nés_¢ eles”. A marcagéio da fe ial no processo de construgio das posigdes identidade. A ciferenga € reproduzida por meio de sistemas Simbélicos (envolvendo até mesmo os cigarros fumados pelos lados em conflito, no exemplo de Ignatiefl). ‘Aantropéloga Mary Douglas argumenta que a mareacéo da diferenga a base da cultura porque as coisas —e as pessoas fmham sentido por meio da atribuicao-dediferentes posigdes em um sistema classificatério (Hall, 1997). Isso nos levaa proxima questio deste capitulo: por meio de quais processos os significados so produzidos e de que forma a diferenca é marcads em relagio a identidade? 3, Como a diferenga é marcada em relagao a iden- tidade? 3.1. Sistemas classifcat6rios As identidades sio fabricadas por meio da marcagéo da diferenca. Essa marcagio da diferenga ocorre tanto por meio de sistemas simbélicos de representagio quanto por meio de formas de exclusio social. A identidade, pois, ndo é 0 39 oposto da diferenga: a identidade depende da diferenca. Nas relagies sociais, essas formas de diferenga—a simbdlica e a social - so estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classificatérios. Um sistema classificat6rio aplica um prinefpio de diferenga a uma populagao de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas caracteristicas) em ao menos dois grupos opostos - nés/eles (por exemplo, servos ¢ croatas); eu/outro. Na argumentacio do socidlogo francés Emile Durkheim, é por meio da organizacio e ordenagio das coisas de acordo ‘com sistemas classificat6rios que o significado é produzido, Os sistemas de classificagio dao ordem a vida social, sendo afirmados nas falas e nos rituais. De acordo com oargumen- to de Durkheim, em As formas elementares da vida religic sa, “sem simbolos, os sentimentos sociais teriam uma existéncia apenas precéria” (Durkheim, 1954/1912, citado em Alexander, 1990). Utilizando a religiio como um modelo de como os processos simbélicos funcionam, ele mostrou que as relagdes sociais so produzidas e reproduzidas por meio de rituais & simbolos, os quais classificam as coisas em dois grupos: as sagradas ¢ as profanas. Nao existe nada inerentemente ou essencialmente “sagrado” nas coisas. Os artefatos ¢ idéias so sagrados apenas porque sio simbolizados © repre- sentados como tais. Ele sugeriu que as representagdes que se encontram nas religiGes “primitivas” ~ tais como os fetiches, as miscaras, os objetos rituais ¢ 0s totémicos—eram considerados sagrados porque corporificavam as normas € 0s valores da sociedade, contribuindo, assim, para unificé-la culturalmente. Segundo Durkheim, se quisermos com- preender os significados partilhados que caracterizam os diferentes aspectos da vida social, temos que examinar como eles sio classificados simbolicamente. Assim, o pio que comido em casa é visto simplesmente como um elemento da vida cotidiana, mas, quando especialmente preparado 40 partido na mesa da comunhao, toma-se sagrado, podendo simbolizar 0 corpo de Cristo. A vida social em geral, argu. mentava Durkheim, é estruturada por essas tensdes entre 0 sagrado € o profano e & por meio de rituais como, por exemplo, as reunides coletivas dos movimentos religiosos ou as refeigdes em comum, que o sentido 6 produzido. E nesses momentos que idéias e valores so cognitivamente apropriados pelos individuos A religio algo ‘eminentemente social. As representagdes religiosas sio representagées coletivas que expressam rea- Indades eoletivas; os rts slo uma manera de agit que ocorre quando os grupos se retinem, sendo destinados a estimular, manter ou recriar certos estados mentais nesses grupos (Durkheim, citado em Bocock e Thompson, 1985, p42) O sagrado, aquilo que “colocado & parte”, é definido marcado como diferente em relagio ao profano. Na verdade, 0 sagrado esti em oposigao ao profiano, excluindo-o inteiramente, As formas pelas quais a cultura estabelece fronteiras e distingue a diferenca sio cruciais para compreender as identidades. A diferenga é aquilo que separa uma identidade da outra, esta- belecendo distingées, freqiientemente na forma de oposigées, como vimos no exemplo da Bésnia, no qual as identidades so construfdas por meio de uma clara oposicao entre “nés” e “eles”. A marcagio da diferenca 6, assim, o componente-chave em qualquer sistema de classificagio. a Cada cultura tem suas préprias e distintivas formas de classificar o mundo E pela construgao de sistemas classifi- cat6rios que a cultura nos propicia os meios pelos quais podemos dar sentido a0 mundo social e construir significa- dos. Hi, entre os membros de uma sociedade, um certo grau de consenso sobre como classificar as coisas a fim de manter alguma ordem social. Esses sistemas partilhados de signifi- cagio sao, na verdade, o que se entende por “cultura”: 4

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