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Capitulo II OS TRES FATORES CONSTITUTIVOS O primeiro nucleo de Igreja testemunha que esta “néo somente prossegue a obra dEle [Cristo], mas da continuidade ao proprio Cristo num sentido incomparavelmente mais real do que qualquer instituicao humana possa dar ao seu fundador”. Ja nos inicios a Igreja mostra o seu nexo com Jesus; “ela O representa conforme toda a antiga forca do termo: ela O torna pre- sente de verdade”?™. Abordemos, agora, o triplice fator constitu- tivo do fato cristaéo da forma como este sur- giu fenomenicamente no cenario da histdria. Perguntemo-nos: um contempordaneo das ori- gens do cristianismo que observasse de fora o emergir do fato, indicaria quais elementos para descrevé-lo? Com quais caracteristicas, inevita- velmente, se confrontaria? 1. Uma realidade comunitaria sociologicamente identificavel Em primeiro lugar, o fato cristéo se colocana historia, isto é, a Igreja se apresenta ao observa- dor como comunidade. Esta é a primeira evidén- cia que impressiona quem se aproxima do fato cristao. Lendo os Atos dos Apostolos, que é o pri- meiro documento histdrico sobre a vida crista primitiva, deparamo-nos logo, no segundo capi- tulo, com uma imagem imediata dessa caracte- ristica comunitaria dos cristaos. Eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apdstolos, na comunhfo fraterna, na fracdo do pao e nas oracdes. E todos estavam cheios de temor por causa dos numerosos prodigios e sinais que os apdstolos realizavam. Todos os que abracavam a fé viviam unidos [...]. Diariamente todos frequenta- vam o templo, partiam o pAo [...]. Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E, cada dia, 0 Se- nhor acrescentava ao seu numero mais pessoas que seriam salvas/°%. Também no quarto capitulo dos Atos encon- tra-se uma expressdo que descreve de forma sintética e comovente a natureza comunitaria da primeira cristandade: “A multidao dos fiéis era um s6 coracdo e uma sé alma”!® quinto, um analogo destaque: “Muitos sinais e maravilhas eram realizados entre o povo pelas maos dos apéstolos. Todos os fiéis se reuniam, . E, no dado de fato comunitario, esta primeira caracte- ristica™, Através dos primeiros documentos cristaos, nao se pode deduzir, certamente, que o cristia- nismo fosse vivido exclusivamente como inter- pretacdo interior pessoal, intima, de Deus, que tivesse como caracteristica primaria 0 individu- alismo. De resto, a primariedade da caracteris- tica comunitaria mostra uma ldgica peculiar a quem esta atento para a realidade na qual surgia aquele fenédmeno, realidade e tradicdo por meio das quais o movimento de Deus na histéria chama a atencdo para a dimensdo comunitaria como fundamental. Este primeiro fator nos leva a considerar, de fato, um conceito-base do Antigo Testamento: Israel como povo de Yahweh. Observa De Lubac: O cardter nacional do Reino de Yahweh, que aparentemente contradizia o seu carater universal, impedia, por outro lado, qualquer interpretacdo in- dividualista a seu respeito. Espiritualizado, univer- salizado segundo o proprio anuncio dos profetas, o Judaismo transmite ao Cristianismo a sua concep- cao de uma salvacdo essencialmente social. Se, para a maioria dos fiéis, a Igreja provém sobretudo dos Gentios - Ecclesia ex gentibus -, a ideia da Igreja pro- vém sobretudo dos Judeus!28, com muita unido, no Pértico de Salomdo”®. Este detalhe nos diz, antes de tudo, que os cristaos se reuniam também no templo, como todos os judeus, e acrescenta que costumavam se encontrar “no Pértico de Salomao”. Suponha- mos, entdo, no periodo pascal, quando os judeus espalhados pelo mundo inteiro tentavam, na medida do possivel, ir em peregrinacdo a Jeru- salém, as reacdes de um desses peregrinos que, indo ao templo por dias seguidos, notasse sem- pre o mesmo grupinho de pessoas no portico. No primeiro dia, poderia seguir seu caminho sem curiosidade, talvez também no segundo, mas em certo momento perguntaria a alguém: “Quem sao esses que vejo sempre aqui juntos?”. Ter-lhe-iam respondido: “Sado os seguidores de Jesus de Nazaré”. Pois bem, a Igreja comecou assim, literalmente, a “fazer-se ver” naquele Pértico de SalomAo, a propor aos outros um pri- meiro emergir visivel de si, uma primeira per- cepcdo que n4o se pode deixar de chamar comu- nitaria. Portanto, o primeiro fator com o qual a Igreja demonstrou colocar-se como realidade foi o de ser um grupinho reconhecivel, fendmeno sociologicamente identificavel, um conjunto de pessoas ligadas entre si. Emesmo com o passar dos anos, havera cuidado por parte dos escrito- res cristaos em sublinhar com intensidade este O proprio Jesus, na medida em que era homem, viveu nessa tradicao, e é Ele que propd6e aos Seus discipulos que cheguem a profundi- dade do método que ela torna manifesto, o mé- todo com o qual Deus Se colocouem relagao com ohomem'™. Como observa De Lubac: “Crer em um Deus unico era ao mesmo tempo crer em um Pai comum de todos, unus Deus et Pater omnium. A oracdo ensinada por Cristo proclamava isto desde as primeiras palavras: 0 monoteismo nao podia ser outra coisa sendo uma fraterni- dade”1*°. E De Lubac completa essa observacdo com a espléndida frase de Cipriano: “Sendo que Aquele que habita em nds é unico, por toda parte ele enlaca e estabelece ligacdo entre aque- les que sdo seus, com 0 laco da unidade”*. Portanto, aquele “nés” visivel foi a primeira caracteristica da fisionomia da Igreja que podia ser fotografada por qualquer observador. Deve- mos registrar isto, mesmo que hoje tenhamos facilidade para manifestar uma certa descon- fianca em relacdo a esse dado. Aquele “nos”, aquele estar em grupo, uma realidade socio- logicamente identificavel, pode se transformar num fechamento, num gueto. Porém, viver uma identidade comunitaria crista como um gueto pode ocorrer somente por causa da ignorancia ou da total traicdo a sua origem e ao seu con- tetido real. a) Antiga e nova consciéncia: a escolha de Deus Tentemos, agora, comparar a consciéncia que a antiguidade da Judeia tinha de si mesma e a consciéncia que esses judeus, que se tornaram seguidores de Cristo, tinham do seu grupo. No livro do Exodo, relatando a comunicac4o que Deus faz a Moisés, esta escrito: “Portanto, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha ali- anga, sereis para mim a porcao escolhida dentre todos os povos, porque minha é toda a terra. E vos sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nacdo santa”""“. Este conceito de santo in- dica a relacdo com Deus na medida em que o homem é colocado ao Seu servico. Porém, indica também o primeiro fundamental escandalo que a acao de Deus provoca no homem: a preferén- cia, isto é, aescolha feita por Deus de um detalhe em toda a Sua criacdo que esteja especialmente colocado a Seu servico. De qualquer modo, é impressionante a ana- logia com aquilo que Paulo diz a Tito numa de suas cartas, referindo-se a Jesus: “Ele se entre- gou por nds, para nos resgatar de toda a mal- Em Paulo e em outros escritores do Novo Tes- tamento, que representam as primeiras expres- sdes maduras da experiéncia crista, emerge a certeza de representar a realizacAo do fendmeno do povo judeu, de prolongar a sua realidade tor- nando-a definitivamente verdadeira, de realizar o verdadeiro povo de Yahweh. Aqueles que se reuniam no Portico de Salomao eram o pri- meiro sinal disso. Aquele recém-nascido grupo de pessoas colocava-se como quem, gozando da presenca viva de Cristo, dava continuidade a Sua realidade quase que de maneira fisiolé- gica, soldava-se aquela presenca viva numa con- cretude de envolvimento familiar e cotidiano. Aquele recém-nascido grupo carregava em si a consciéncia de prolongar, alias, de comunicar realizando, a verdade de tudo quanto no An- tigo Testamento formara a histdria de Israel; em suma, a consciéncia de construir o verdadeiro e definitivo povo de Deus no mundo. Desse modo, Tiago, que foi o primeiro chefe da comunidade de Jerusalém, diz em um de seus discursos, citando o profeta Amés: Irmaos, ouvi-me: Simao acaba de nos lembrar como, desde o comeco, Deus Se dignou tomar ho- mens das na¢6es pagas para formar um povo dedi- cado ao Seu Nome. Isso concorda com as palavras dos profetas, pois esta escrito: “Depois disso, eu voltarei e reconstruirei a tenda de Davi que havia dade e purificar para Si um povo que Lhe per- tenca”42, Assim como no Levitico Deus diz: “Estabele- cerei minha morada entre vds e nao vos rejei- tarei. Andarei no meio de vés [...] e vés sereis meu povo”"*, E repete no livro de Ezequiel: “Minha morada estara junto deles. Eu serei o seu Deus e eles serdo 0 meu povo”!!*. Do mesmo modo Paulo, combinando essas duas citacdes e acrescentando outros trechos dos profetas e dos Salmos, numa de suas cartas, faz com que Deus diga: “No meio deles habitarei e andarei; serei o seu Deus, e eles serdo o meu povo. Por isso diz o Senhor: ‘Sai dessas coisas e afastai-vos, nao to- queis em nada de impuro, e eu vos acolherei. E serei para vos um pai e vos sereis meus filhos e filhas”**°, A ideia de pertencer a Deus, de ser propri- edade dEle, que definia a autoconsciéncia do povo judeu, acha-se de novo como contetido da consciéncia daquele grupinho de pessoas, que, no inicio, certamente, nado dava a ideia de um povo: podiam ser cinquenta no Portico de Sa- lomAo, que depois passaram a cem, a mil, mas todos com a nitida consciéncia de que assim como o povo judeu era definido por ser pro- priedade de Deus, também eles eram a propri- edade de Deus, a tal ponto que se apropriavam literalmente das palavras da antiga consciéncia. caido; reconstruirei as ruinas que ficaram e a reer- guerei, a fim de que o restante dos homens procure o Senhor com todas as nacdes que foram consagra- das ao meu Nome. E 0 que dizo Senhor que fez estas coisas, conhecidas ha muito tempo”!27. E dificil para nds imaginar o transtorno mental que foi para um judeu como Tiago anun- ciar que o povo de Deus se realizava entre os pa- gaos. E para os judeus, a repulsa por escutar um outro judeu dizer que Deus tivera 0 cuidado de fazer surgir 0 seu povo entre os pagios, isto é, um povo como o de Israel! Quando Paulo vai pela primeira vez a Co- rinto, grande cidade portuaria do Egeu, pro- vincia romana conhecida por seus comércios e pela devassidao de sua vida social, Deus con- forta o seu apéstolo numa visdo noturna: “Nao tenhas medo; continua a falar e nao te cales, porque eu estou contigo. Ninguém te pora a méo para fazer mal. Nesta cidade ha um povo numeroso que me pertence”*®. Nao podemos deixar de refletir sobre 0 fato de que devia haver em Corinto algumas centenas de cristaéos ou de simpatizantes, naquela que, na época, podia ser considerada uma metropole! Entretanto, os Atos relatam que estava gravada em Paulo, e gravada por iniciativa do proprio Deus, a consci- éncia, embora misturada com tantas compreen- © povo judeu, pelo prdprio fato de uma pessoa nascer em seu meio, dele ela fazia parte, partici- pava de uma unidade étnica escolhida por Deus, uma unidade que se estabeleceu numa historia na qual Deus interviera e que estabelecia fron- teiras. Para os cristaéos, desde o primeirissimo ins- tante em que foi registrada a sua existéncia, o carater étnico da preferéncia de Deus foi to- talmente esvaziado. Esse novo povo, de fato, é formado por aqueles que Deus rene na acei- tacao da vinda de seu Filho. Podem ser de racas diferentes, até inimigos entre si por tra- dicao (pensemos em Jesus com a Samaritana); podem ter ideias e histérias muito diferentes; pode ser uma total estranheza 0 que, até aquele momento, qualifica a sua presenca no mundo, porém, sao povo porque Deus os coloca juntos através da fé em Jesus Cristo. Supera-se, radical- mente, desta forma, qualquer tipo de qualifica- cao nativa ou “carnal” que possa distanciar os seres humanos. Por isso, o fenédmeno cristdo se refere ime- diatamente aquela ideia de “escolha de Deus”, que tinha plasmado Israel e que, por sua vez, formou-o, mas sem nenhuma fronteira carnal, pois a escolha de Deus coincide com a adesdo a fé em Cristo. b) O valor cultural de um novo conceito de verdade Este primeiro fator da vida da Igreja do qual estamos tratando tem também um outro valor cultural preciso. O novo fendmeno que se verificava tinha uma correspondéncia surpreendente com suas raizes: trata-se da imagem que a tradicao semi- tica tinha da verdade. Aqui, a novidade aparece sobretudo para quem possuia como referéncia o mundo greco- latino. Portanto, também para nds, que recebe- mos a heranca desse mundo. Para o mundo oci- dental, qual é a metafora mais facil de se utilizar para indicar a verdade? A luz, a luminosidade do verdadeiro, onde a certeza é baseada na evi- déncia daquilo que se vé. Dessa forma, chama- se a atencdo para aquele aspecto persuasivo da verdade: havendo luz, vemos, é impossivel nao enxergarmos. Por isso é uma evidéncia que coloca em jogo os préprios olhos, a propria ca- pacidade de visdo, e a verdade é objeto de tal po- tencialidade de evidéncia. Por certo, nada disso é para ser rejeitado. O proprio evangelista Joao, com efeito, utilizara a metafora da luz, pois a situacao do cristianismo no mundo tinha che- gado a uma tal evolucdo que ja tinha penetrado na realidade greco-romana, e ja estava pronta a quantitativamente menor - tinha, e a conscién- cia que tinha o povo judeu. Escrevendo aos cristéos galatas, Paulo ex- prime-se deste modo: “Vés todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Vos todos que fos- tes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. O que vale nao é mais ser judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vés sois um sé, em Jesus Cristo. Sendo de Cristo, sois, entao, descendéncia de Abraao, herdeiros segundo a promessa”424. O mesmo conceito Paulo reforca em sua carta aos cristaos de Colossas: “Ai nao se faz distincdo entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, inculto, sel- vagem, escravo e livre, mas Cristo é tudo em todos”!“*. Fala da mesma forma aos cristaos de Corinto: “Todos nés, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num unico Espirito, para formarmos um unico corpo, e todos nds bebemos de um unico Espirito”!2, A revolucao cultural mais profunda, no que diz respeito 4 consciéncia de povo que os pri- meiros documentos cristéos expressam, é que aquele grupo que comecava a crescer, mesmo reconhecendo-se povo, e povo de Deus na tradi- cao de seus pais, afirmava nao se ter formado a partir de uma origem étnica ou de uma uni- dade socioldgica estabelecida por acontecimen- tos histdricos. Eis a clamorosa diferenga: para siveis dificuldades, de que 1a havia 0 seu “povo”, eum povo numeroso. Isso tudo nos ajuda a evidenciar o fato de que em nenhuma época da historia, como naquela, com verdadeira razao pode-se falar em revolu- cao cultural. Esta expressdo se encaixa perfei- tamente nesse momento particular da histdria humana do qual estamos tratando. Néds vive- mos agora as consequéncias daquela revolucdo, mas nunca tomamos a consciéncia adequada de suas origens. De um lado, como ja vimos, o novo fené- meno que estava nascendo fundamentava-se com seguranca na sua tradicdo, ja que brotava diretamente dela; de outro, perturbava as suas bases com uma concepcio diferente sobre a sua identidade. De um lado, realizava o relaciona- mento com Deus através das categorias que Ele mesmo tinha ensinado com a histéria de Is- rael - expressdo pedagdgica do que é o homem e do que quer ser Deus para ele’”; de outro, ja nas origens o fato cristaéo mostrava ao mundo a consciéncia da sua ardente novidade’”°. Existem trés passagens do Novo Testamento que eu gostaria de citar para esclarecer como essa revolucdo agiu na ideia de pertencer a um povo reservado a Yahweh, estabelecendo uma clamorosa diferenca entre a consciéncia de ser a propriedade de Deus, que esse novo povo — S6 em Deus a minha alma tem repouso, porque dele é que me vem a salvacdo! S6 ele é meu rochedo e salvacao, a fortaleza, onde encontro seguranca?2®. Recordemos, por fim, esta magnifica expres- sdo: Mesmo que 0 corpo e 0 corac4o se vao gastando, Deus é0 apoio e o fundamento da minh’alma, é minha parte e minha heranca para sempre!122 Agora gostaria de ressaltar o quanto esta tradicao biblica da imagem da rocha, como me- tafora da verdade, esta radicada numa comple- titude humana maior em relacdo 4 metafora da luz, porque nela esta indicada também uma mo- dalidade mais adequada com a qual a verdade é comunicada, descoberta e acolhida. E isto ndo é uma simples curiosidade de in- terpretacio biblica, pois se Deus escolheu como instrumento da sua comunicacao ao mundo um certo tipo de estrutura humana, correspon- dente a um certo tipo de mentalidade, significa que ha nelas algo pedagogicamente importante para o conhecimento daquilo que Ele quis reve- lar. precisamente, uma afirmacdo de certeza: isto é estavel, Por isso é verdade, é exatamente assim. A estabilidade a que nos referimos nao é ero- dida pelo tempo, a sua duracdo é a prova da verdade. Algo que desafia o tempo na certeza de uma permanéncia coloca-se como expressao do verdadeiro. Ainda na lingua hebraica, existe a mesma raiz para indicar ohomem como um ser mutavel, efémero, e para indicar o conceito de “mentira”. O efémero é mentira, a verdade é per- manéncia. A ideia de mentira nao é usada aqui, necessariamente, em sentido ético, mas no sen- tido exatamente gnosioldgico. Ainda hoje a Igreja utiliza os Salmos para a sua oracao oficial; eles percorrem a tradicao he- braica através de muitos séculos, e neles se en- contram express6es tais como: Eu vos amo, 6 Senhor! Sois minha forca, minha rocha, meu refugio, e Salvador! O meu Deus, sois 0 rochedo que me abriga124. Ou entao: Que vos agrade o cantar dos meus labios ea voz da minha alma; que ela chegue até vs, 6 Senhor, meu Rochedo e Redentor!2>. Ou ainda: Qual é, entéo, o método que emerge dessa metafora da rocha? Santo Tomas dizia, com grande intuito psi- coldgico, que o homem é muito mais persuadido por aquilo que ouve do que por aquilo que vé"“. Para dar-se conta da perspicacia desta observa- cdo, basta refletir um pouco sobre as proéprias atitudes. O homem experimenta uma conviccao mais intensa quando percebe que adere a pa- lavra de um outro, do que quando ele mesmo vé com os prdéprios olhos. Ao aderir a alguém que ele ouve, com efeito, o homem deve apoiar a totalidade da sua pessoa no “tu” de um outro. Enquanto é muito facil para a pessoa colocar em duvida a si mesma, é muito mais dificil lancar a duvida dos proprios “se” e dos proprios “mas” numa presenca estimada e amada. Em um relacionamento entre pessoa e pes- soa entra em jogo a totalidade do eu, entaéo o conhecimento e o amor formam uma unidade, e o gesto de ades&o ao verdadeiro interessa 4 tota- lidade dos fatores que constituem a vida. E isto nao é irracionalismo. De fato, o encon- tro com uma pessoa, na qual se experimenta como verdadeiro aquilo que ela esta comuni- cando, nao é exclusao de postura critica, mas é a imanéncia da postura critica em todo aquele contexto vivo do qual essa postura nao pode ser assumir todas as categorias possiveis de serem assumidas. Na tradicdo biblica, entretanto, a definicdo e a alusdo a verdade usada de modo mais frequente encontra-se numa outra metafora: a “rocha” ou “rochedo”. Os semitas, originaria- mente némades e habitantes dos desertos, eram particularmente sensiveis aquele ponto de refe- réncia que era a grande formacdo rochosa, es- tavel, em relacdo a areia e 4 poeira que o vento levantava e dispersava. Por isso, na historia da consciéncia semitica, a imagem da rocha, a qual se refere a aspiracdo humana por um lugar seguro, algo sdlido, que levasse a estabilidade, portanto 4 Agua, a comida, ao abrigo, a possi- bilidade de construcdo, tinha sido usada para identificar o divino, para esclarecer o que era o divino para o homem: aquilo em que o homem pode apoiar-se, pode construir, pode ter um sig- nificado. O uso dessa metafora revela como 0 método supremo para o conhecimento da verdade, na mentalidade semitica, nao é tanto o ver com os proprios olhos, mas a referéncia a algo se- guro que seja estavel. Com efeito, em hebraico, a palavra “amém” tem a mesma raiz da pala- vra “verdade”, e esta raiz significa exatamente estabilidade, permanéncia. A palavra “amém’ é, Assim, ao nascer, a comunidade crista en- tendia a si mesma como o lugar em que 0 teste- munho se colocava, como o lugar em que a so- lidez da rocha biblica mostrava-se como espaco para a reconstrucdo do humano. c) O termo usado: ecclesia Dei!2® Abordemos agora algumas observacdes sobre a linguagem usada para indicar aquela realidade comunitaria que é o primeiro fator constatavel e, de certa forma, documentado do primeiro emergir cristao. Vimos que o fenédmeno cristdo se apresenta no cenario da histéria como grupo, como comu- nidade. Uma comunidade que exprimia a cons- ciéncia de representar o definitivo atuar-se do povo de Israel. O termo hebraico com o qual se indicava a realidade de Israel como povo de Deus era qahal. Este termo indicava uma realidade feita de muitos individuos, mas unidos, que expri- miam a sua unidade reunindo-se como numa assembleia. Ora, aquele grupo que se reunia pri- meiramente no Portico de Salom4o e que depois, aos poucos, foi crescendo e se multiplicando ja em ambientes gregos, chamava a propria rea- lidade que se reunia de ekklesia. O termo em grego significa literalmente assembleia, reunido qual o homem segue a testemunha da verdade. Eo mesmo processo com o qual a natureza, ex- pressao do Criador, faz com que uma crianca cresca mediante o testemunho da mae e do pai, os quais lhe propdem continuamente o terreno firme sobre o qual caminhar. A esta imagem, portanto, referia-se a pri- meira experiéncia de Igreja, ligando-se intima- mente a concepcio biblica de verdade, pela qual a condicaéo humana para obter uma convic¢ao, sobretudo na medida em que o objeto inda- gado interessa 4 vida e ao destino, nao se baseia tanto no surgimento solitario de uma evidén- cia - como uma luz que atravessa a neblina — mas numa convivéncia segura. E o testemunho, por sua natureza, indica um envolvimento, uma companhia, assim como vimos ser 0 ponto de partida daquela realidade entdo nascente que se chamara Igreja. O Deus vivo é testemunhado por uma rea- lidade viva, o Deus feito homem no mundo é testemunhado, e ndo, antes, feito objeto de uma pesquisa, de uma investigacao critica. Natural- mente, como ja dissemos, 0 reconhecimento de um testemunho ndo exclui a possibilidade de uma evidéncia quando esta acontece. Exclui-a somente quando o “ver” é extrapolado, enten- dido de modo desarticulado de um contexto vivo, de um organismo inteiro. separada — do qual, entao, ela extrai a autentici- dade do seu dinamismo. Aquilo que se vé por meio da evidéncia a que se chega, sozinho, carrega o peso da fragilidade Ultima, que frustra a confianca em si mesmo, a qual pode ser forte no momento da énfase na afirmacao de si, mas esta sujeita a desvanecer. Nao ha nada de mais fragil do que apoiar-se so- mente em si mesmo na busca da verdade. A indicacéo metodolégica que emerge defi- nitivamente da imagem da rocha como imagem de verdade é a solidez da testemunha. A figura da testemunha auténtica implica a adesio de toda a tua pessoa, enquanto que ver com os proprios olhos implica somente uma parte da pessoa. Insistimos na observacdo de que, neste sentido, os dois métodos nao se contradizem: porém, um é mais completo que o outro. A tes- temunha é toda uma personalidade que se joga e, por isso, toda a personalidade de quem escuta é chamada a se jogar com ela: a luminosidade de uma evidéncia representa somente um aspecto da personalidade. O testemunho é uma unidade viva, uma unidade existencial. O Senhor, que fez o mundo e o homem, es- colheu como instrumento para facilitar o nexo entre o homem e a verdade - isto é, Ele mesmo — nado o termo de uma visdo, mas o termo de um abandono, de um amor, processo com o de pessoas. Em um momento em que a partici- pacdo do anuncio da novidade crista chegava a um mundo nao confinado estritamente ao he- braismo, o termo tinha sido tomado tal e qual do léxico helénico, que o utilizava para indicar todo género de agregacdo. Portanto, era uma pa- lavra que indicava realidades normais da vida social, um chamado a se reunir que podia inte- ressar ndo apenas aos cristaos, mas que se podia verificar com finalidades e motivos quaisquer em uma cidade qualquer. Nos Atos dos Apdstolos, por exemplo, quando se narra uma dificuldade encontrada por Paulo na sua pregacdo em Efeso, causada pelos ourives ligados ao templo de Diana - teme- rosos de que o anuncio de Paulo lhes provocasse graves danos -, descreve-se assim uma situa- cao de tumulto: “O tumulto se espalhou pela cidade toda. A multidao se dirigiu em massa ao teatro, arrastando os macedénios Gaio e Aris- tarco, companheiros de Paulo na viagem. Paulo queria ir até a assembleia, mas os discipulos nao o deixaram. [...] Enquanto isso, um gritava uma coisa, outro o contrario, e a confusdo era geral na assembleia. A maioria nem mesmo sabia por- que estava reunida”°. Esta reunido improvi- sada e turbulenta é indicada pelo mesmo autor dos Atos dos Apéstolos com o termo de ekklesia, o idéntico termo que era usado em relacdo 4 reu- Relembremos, a este ponto, o célebre trecho de Mateus no qual Jesus pergunta aos Seus disci- pulos o que pensam as pessoas a respeito dEle e o que eles pensam a respeito da Sua identidade, e Pedro responde: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Respondendo, Jesus lhe disse: “Feliz és tu, Simo, filho de Jonas, porque nao foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que esta no céu”. E acrescenta: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca podera vencé-la”!2?. Fica claro neste contexto que se trata de uma iniciativa em relacdo a Pedro que nao vem dos discipulos: a sugestao é do Pai, e a Igreja é des- crita como sendo construida por Cristo e como sendo Sua, fruto de uma escolha, uma escolha que se insere na grande historia da preferéncia de Deus, que utiliza o método ao qual Deus sem- pre foi fiel. E nos ultimos capitulos do Evangelho de Joao, onde sao relatadas as Ultimas palavras de Jesus aos discipulos e o Seu testamento, a Sua oracdo final, parece que se perceba quase a Sua ansia pela unidade sensivel dos Seus, aqueles a respeito dos quais, voltando-Se ao Pai, disse: “Eram teus e tu os confiaste a mim”!*. Toda a concepcao moral de Jesus se baseia como lei di- namica em uma forca unitiva consequente de uma preferéncia, de uma escolha: “Eu estou no O Senhor Deus, no Seu designio que diz res- peito a todo o mundo, voltado a todo 0 mundo, ja que Ele é o Senhor de todos, propée-Se a todos através da escolha de uma realidade humana particular. Diziamos antes que este método é motivo de escandalo, e o é muito mais para nés hoje, que temos tantas dificuldades para nos darmos conta da linguagem crista auténtica. O conceito de eleicdo, de escolha por parte de Deus, é 0 caso em que se evidencia em nés, de forma mais clamorosa, a distancia de uma com- preensdo; porque nada ha de mais contraditério com o racionalismo no qual somos formados, e com o igualitarismo ou o democratismo que dele sao consequéncias. Todavia, a caracteris- tica da iniciativa que Deus tomou e toma na histéria em relacéo ao homem é exatamente esta: por meio do povo judeu comecou a Se fazer conhecer diretamente, e com 0 mesmo método prosseguiu a Sua obra. De fato, Jesus Cristo, en- viado pelo Pai para salvar o mundo, comunica- Se por meio de algumas pessoas que levam a noticia e a vida que dela deriva. Nao existe nada que afirme e ensine ao homem o carater absoluto do ser de Deus como o fato de que Ele desenvolva no mundo a sua obra por meio da- queles que Ele escolhe, por meio de uma eleicao. Deus ndo esta ligado a nada e Se manifesta exa- tamente no fenédmeno dessa preferéncia eletiva. nido dos cristaos, deixando evidente que este termo se referia, no uso normal da vida civil, ao reunir-se por qualquer motivo. A definicéo da assembleia crista (ekklesia em grego, ecclesia em latim), de qualquer forma, assim como a ideia hebraica da qahal Yahweh, é determinada e completa a sua definicao com o genitivo Dei: ecclesia Dei, a comunidade de Deus. Em que sentido esse genitivo se acrescenta ao termo do léxico comum? Em sentido quer obje- tivo, quer subjetivo: aquele “de Deus” significa, de um lado, e de maneira mais ébvia, que a assembleia tem Deus como contetdo de inte- resse, mas, de outro lado, e é aqui que deve ser identificada a origem da formula, que o proprio Deus retine a comunidade, que é Deus quem reune aqueles que sao “Seus”, segundo a expres- sao muitas vezes usada no Novo Testamento. Assim, ecclesia Dei quer dizer aqueles que sao reunidos por Deus??. Quais as categorias usadas nesta formula bastante original da primeira comunidade crista? Antes de mais nada, a categoria da elei- cao, a qual ja acenamos, da escolha de Deus, que encontramos aqui novamente aplicada ao povo que se vinha formando, aquele povo tao identi- ficavel, mas sem fronteiras etnicamente enten- didas. meu Pai, e vés em mim, e eu em vés”22*; “nao fostes vés que me escolhestes; mas fui eu que vos escolhi e vos designei”™. Tudo corresponde ao método que sempre foi o método de Deus, e a insisténcia quase amargu- rada de Jesus deve levar-nos a pensar que 0 pro- blema dos homens é 0 de resistir 4 logica desse Seu método. Portanto, o proprio termo com o qual as pri- meiras comunidades chamavam 0 seu reunir-se expressava a sua consciéncia de ser a realizacdo das qahal Yahweh justamente no seu viver como assembleia reunida por Deus em Jesus Cristo, sinal de uma escolha que ndo era deles*°. Assim, a ideia hebraica de qahal Yahweh su- cede a ideia final de ecclesia Dei, a comunidade de Deus, os reunidos por Ele. Eimportante notar que a ecclesia Dei nao é uma reuniao popular que mereca ser chamada de assembleia quanto mais for consistente a participacdo: o que constitui a comunidade crista como Igreja nao é o nu- mero, como também nAo é 0 fato puro e simples de se juntarem, mas é o fato de serem pessoas reunidas por Deus, um Deus que retine quem Ele quer e que da a cada um os dons ¢ as res- ponsabilidades que quer. Como salienta Paulo: “Na Igreja, Deus colocou, em primeiro lugar, os apdstolos; em segundo lugar, os profetas; em terceiro lugar, os que tém o dom e a missao de quase que exclusivamente para saudar, quase que uma por uma, as pessoas que pertenciam a comunidade de Roma. Em certo momento diz: “Saudai Prisca e Aquila, colaboradores meus em Cristo Jesus, os quais expuseram a sua propria vida para salvar a minha. Por isso eu lhes sou agradecido; nao somente eu, mas também todas as Igrejas do mundo pagao. Saudaiigualmente a Igreja que se retine na casa deles’”*“°. Do mesmo modo sAo tratadas as grandes co- munidades da Asia Menor e 0 grupinho que se reunia na casa desses amigos, como fica claro nesta outra despedida de uma carta de Paulo: “As Igrejas da Asia vos satidam. Aquila e Prisca, bem com a igreja que se reune na casa deles, satidam-vos efusivamente no Senhor”““. O pe- queno grupo tem o significado da Igreja toda, o grupo particular afetuosamente lembrado neste trecho é sinal do Mistério em funcao do qual o apostolo vive. Por isso, uma simples as- sembleia familiar pode ser citada junto com as grandes comunidades, assim como se lé na carta aos Colossenses: “Saudai, por mim, os ir- maos de Laodiceia, especialmente Ninfa e a igreja que se retine em sua casa. E assim que esta carta for lida na vossa comunidade, fazei que seja lida também na igreja de Laodiceia; e vos também fazei a leitura da carta vinda de Laodiceia”“*. Também aqui: a comunidade dos locou como guardas, para pastorear a Igreja de Deus, que ele adquiriu com o sangue do seu pro- prio Filho”*“2. Isto nos faz lembrar 0 versiculo de um Salmo messianico: “Recordai-vos deste povo que outrora adquiristes”*“*. Ora, o preco do san- gue do Messias era o preco do resgate do povo de Deus, de todo o povo de Deus. Eo tinico gesto de resgate, é entaéo uma tunica Igreja que emerge em todos os lugares onde se encontra‘“+. No seu sentido mais completo, portanto, a expressdo ecclesia Dei representa 0 povo de Deus na sua totalidade, exatamente por ter de se re- ferir, inevitavelmente, ao gesto de Deus, a Sua escolha livre e total. Neste sentido, como afirma De Lubac, a ecclesia “é convocatio antes de ser congregatio”“*. Portanto, nado é por uma soma de comuni- dades que se forma a Igreja total, assim como se concebe no movimento protestante enten- dendo cada uma das comunidades como auté- noma e autdgena; falo do “congregacionalismo”, tentac&o que se percebe presente também hoje na Igreja catélica. Pelo contrario, toda comu- nidade, por menor que possa ser, tirando seu valor da Igreja total, representa-a totalmente, encarna o Mistério daquele chamado que era tao presente na consciéncia dos primeiros cristaos. Nesse sentido, é comovente reler o capitulo final da carta aos Romanos, que Paulo dedica ensinar”"2”, Equivale a dizer: é Deus quem age na Igreja, com a Igreja. Desde sempre Deus es- colhe e retine os Seus. A comunidade nao tem um valor como comunidade senao pela acdo de Deus que “elege” e que faz com que os eleitos fiquem proximos e unidos. d) A Igreja e as “igrejas” O termo Ecclesia é usado nos primeiros do- cumentos cristdéos, muitas vezes no singular. Por exemplo: “A noticia chegou aos ouvidos da Igreja que estava em Jerusalém”!*®. Ou entao: “Levou-o a Antioquia. Passaram um ano in- teiro trabalhando juntos naquela Igreja”’2°. Ou ainda: “Desembarcando em Cesareia, foi saudar a Igreja’?. O mesmo termo, porém, é usado também no plural: “As igrejas [ekklesiai] fortaleciam-se na fé e, de dia para dia, cresciam em numero”. Mas existe uma passagem em que é empre- gada uma forma singular diferente das outras, que nao é simplesmente o fruto de um elenco ou de uma soma. Trata-se da ultima permanén- cia de Paulo na Asia Menor, pouco antes de sua partida para Roma, onde depois seria morto. O texto relata a saudacdo de Paulo aos chefes das comunidades: “Cuidai de v6s mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o Espirito Santo vos co- crentes de Laodiceia é assimilada a um grupo que podia, certamente, nado ser numeroso e que costumava se reunir na casa de uma certa Ninfa. Como explicar a dignidade da companhia daquelas pessoas que se encontravam na casa de Aquila e Prisca, na casa de Ninfa, dignidade pela qual todo o mistério da Igreja se tornava operante e vivo nessa companhia? Aquilo que a Igreja é para os homens de todo o mundo se identifica com 0 comunicar-se de Jesus ao mundo. Neste sentido, o que represen- tam cinco ou seis cristaéos que se reunem numa casa? Representam o mesmo, ou seja, Jesus Cristo que Se comunica ao mundo através da- quele ambito. Entao, o valor dado pelos documentos da primeira cristandade as individuais e diferen- tes experiéncias de comunidade enquanto uni- das aos apdstolos, é o proprio valor da Igreja total, exatamente enquanto exprimem a sua re- alidade profunda e unitaria, que o Senhor faz emergir em experiéncias diferentes. Muitas vezes a consciéncia dessa fonte au- téntica do seu valor esta bem distante dos cristaos. Com efeito, nado raro nos encontramos diante ou de quem busca clareza, seguranca e motivo para agir interpretando redutivamente a propria comunidade-— ou movimento, ou asso- ciacdo particular -, privando-se, assim, da fonte consciéncia vivida por aqueles primeiros cris- taos. Ja mencionamos o fato de que eles tinham consciéncia de si como da atuacdo real, do acon- tecer definitivo daquilo que o povo de Israel, na sua figura histérica, tinha sido profecia. Mesmo em seu restrito ambiente eles tinham conscién- cia de que através da sua companhia iniciava um mundo novo, os novos tempos que veriam representado por eles 0 povo de Israel com 0 seu rosto realizado, portador de salvacgao para a hu- manidade inteira. Estes elementos da consciéncia crista primi- tiva se explicam melhor, porém, em relacao a um outro dado mais sintético e determinante. Do ponto de vista da consciéncia de si que ti- nham as pessoas que se reuniam, a ideia domi- nante era que a sua vida tinha sido movida e transformada por uma acdo suprema indicada como “dom do Espirito”. Quando chegou o dia de Pentecostes, os discipu- los estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam. Entaéo apareceram linguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espirito Santo e co- mecaram a falar em outras linguas, conforme o Es- pirito os inspiraval?. enquanto nela emerge a Igreja total, a qual sem ela nao viveria a concretude histérica. A reflexdo sobre 0 termo ecclesia nos ajudou a compreender o tipo de consciéncia que os pri- meiros cristaos tinham do valor da sua comuni- dade, valor que derivava total e inteiramente da participacao a unica Igreja regida pelos apdsto- los. 2. A comunidade investida por uma “Forca do alto” Ja vimos como os primeiros cristaéos expres- saram nos documentos que chegaram até nds sobre a sua vida, a firme persuasdo de que a realidade do Cristo vivo prendia a vida deles re- dimindo-a, assumindo-a na propria vida e tor- nando-a o mistério de uma companhia unitaria. O que nAo significa, exclusivamente, estar jun- tos fisicamente, ainda que isto tenha um valor ineliminavel. A persuasdo que encontramos nas primeiras comunidades cristas se refere, antes, ao fato de que nao é possivel prescindir da co- munidade, sobretudo e antes de tudo em rela- ¢ao ao modo de conceber a si mesmo. Isto nos leva ao segundo fator constitutivo do fendmeno da Igreja encontrado na documentacdo original. Este fator assinala a dimensao excepcional na unitaria que a alimenta, ou seja, o mistério da Igreja como tal, ou diante de quem, citando a Igreja, a ela se refere como a um superorga- nismo mecanico que nada tem que ver com a re- alidade vivida, com a comunidade concreta que se tem perto, a qual, deste modo, fica incorreta- mente separada da Igreja viva. Sendo assim, o modo para aprender o que é a Igreja total é ir até o fundo na experiéncia eclesial que uma pessoa encontrou, contanto que tal experiéncia tenha os caracteres da ver- dadeira eclesialidade. Por isso, a obediéncia a Igreja total, a dependéncia dela, o articular-se a ela e o reconhecer-se em outros fatores presen- tes no ambito da vida crista sao aspectos que definem a validade do reunir-se. Do contrario, o motivo pelo qual se atribui valor ao proprio reunir-se ndo é o mistério de Jesus Cristo que se comunica a histéria e ao mundo, mas algo que reduziu o seu alcance. De outro lado, a Igreja total pode manifestar-se historicamente somente num emergir provisério, num deter- minado lugar, num certo ambito. Como Jesus Cristo pode ser comunicado em um ambiente sendo através de um grupo de cristaos cons- cientes de pertencer autenticamente 4 mesma Igreja? Sem eles, é como sea Igreja total, naquele ambiente, nao existisse: a Igreja local tem valor Narrado nos Atos dos Apéstolos, esse é 0 re- gistro de um fato fundamental na Igreja primi- tiva, nado no sentido de que, entdo, pela primeira vez comeca a existir a comunidade de Jesus Cristo - como vimos, a comunidade de Cristo ja existia -, mas porque a esséncia dessa comuni- dade se esclarece na sua origem na medida em que é investida por “uma Forca do alto”. Jesus, com efeito, tinha prometido aos Seus uma energia, uma forca nova de compreensao e de consolacdo exatamente enquanto estava para retornar ao Pai: “Eu rogarei ao Pai e ele vos dara outro Defensor, para que permaneca sem- pre convosco”*°, Ou entAo: “Tenho ainda mui- tas coisas a dizer-vos, mas nao sois capazes de as compreender agora. Quando, porém, vier o Es- pirito da Verdade, ele vos conduzira a plena ver- dade”+*+, “Eu enviarei sobre vés aquele que meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na cidade, até que sejais revestidos da Forca do alto”?™’. Vejamos o que implica a consciéncia da cris- tandade primitiva de ser constituida pelo “dom do Espirito” ou pela “For¢a do alto”. a) A consciéncia de um fato que tem o poder de mudar a personalidade Os primeiros cristaos eram bem conscientes de que tudo de novo que acontecia neles e entre ria, assim como tinha sido para Israel. E Paulo conclui o seu pensamento aludindo ao penhor do Espirito, ou seja, ao efetivo inicio da acdo eficaz do Espirito, daquela energia com a qual Jesus Cristo ressuscitado, tendo nas m4os todas as coisas, esta mobilizando toda a realidade em direcéo 4 manifestacdo final da Sua verdade, porque, como diz Paulo no espléndido hino cris- toldgico da carta aos Colossenses, “por causa dele foram criadas todas as coisas [...]. E todas tém nele a sua consisténcia”)®. Pelos testemunhos daqueles primeiros gru- pinhos de cristaos, devemos observar que essa acdo do Espirito, sentida como poténcia e como dom, nao é para personalidades eminentes da comunidade ou para aqueles que nela, particu- larmente, exercem um papel: é para todos os que creem e sao batizados. “Pedro respondeu: ‘Convertei-vos, e cada um de vos seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdao dos vossos pecados. E vos recebe- reis o dom do Espirito Santo. Pois a promessa é para vos e vossos filhos, e para todos aqueles que estado longe, todos aqueles que o Senhor nossos Deus chamar para si’.”**! Também Paulo insis- tira sobre esse dom dispensado a todos aqueles que, libertos por Jesus, adquirem a forca de uma nova dignidade: “Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de isto. Eles se sentiam personalidades diferentes no mundo, na sociedade, diferentes como con- cepcao de si e como forca comunicativa. Na sua segunda carta aos cristaos de Corinto, Paulo usa duas imagens eficazes para definir a realizacao dessa nova personalidade: “E Deus que nos con- firma, a nds e a vos, em nossa adesdo a Cristo, como também é Deus que nos ungiu. Foi ele que nos marcou com 0 seu selo e nos adiantou como penhor o Espirito derramado em nossos cora- cdes”***, Encontramos aqui a imagem da uncdo ou consagracao — que na tradicdo judaica signi- fica: escolhidos para servir a Deus - e aimagem do selo. De um lado, portanto, evidencia-se que a marca, 0 selo impresso na superficie de um objeto, cria uma novidade também do ponto de vista formal, muda a face daquele objeto. Assim, para o homem investido pelo dom do Espirito, verifica-se uma mudanca de rosto, expressdo de uma nova ontologia. Uma mudanca que de- pois, na histéria da Igreja, vira traduzida teold- gica e catequeticamente com as belas palavras “graca sobrenatural”>>. De qualquer maneira, a imagem de Paulo é sinal de uma mudan¢a on- toldgica, porque o selo é uma realidade fisica, transforma a fisionomia daquilo sobre o qual é gravado. Por outro lado, emerge a imagem da uncAo, isto é, da escolha por parte de Deus de quem devera veicular o sentido da histé- uma mulher, nascido sujeito a Lei [...] para que todos recebéssemos a filiacdo adotiva. E por- que sois filhos, Deus enviou aos nossos coracdes o Espirito do seu Filho, que clama: Abba - 6 Pai!”**8, porque “O amor de Deus foi derramado em nossos coracées pelo Espirito Santo que nos foi dado”**. E o evangelista Joao parece que- rer acrescentar na sua primeira carta: “Quem guarda os seus mandamentos permanece com Deus e Deus permanece com ele. Que ele per- manece conosco sabemo-lo pelo Espirito que ele nos dew”**°. Assim, estas frases que se referem ao Espi- rito doado a todos, aparecem como formulas fixas do catecismo cristao primitivo. b) Um inicio de mudanga experimentavel A expressdo que colocamos em destaque na frase de Paulo, “penhor do Espirito”, isto é, ini- cio, garantia ou primicias indica 0 que o cristéo échamado a experimentar e a demonstrar: a au- rora de um novo mundo. Isto faz lembrar também a frase pronunci- ada por Jesus, segundo a qual quem investir toda a propria existéncia em segui-Lo recebera o céntuplo aqui na terra e a vida eterna: “Em ver- dade vos digo, quem tiver deixado casa, irmaos, irmas, mae, pai, filhos, campos, por causa de eles, de excepcional em relacdo a vida de antes, de alvorocante em comparacio a vida que tan- tos outros a sua volta levavam, nao era um fruto da sua adesdo, da sua inteligéncia ou da sua vontade, mas era um dom do Espirito, um dom do alto, uma forca misteriosa pela qual eram in- vestidos!™, Poderiamos dizer que, com estas formulas, era indicada a persuasdo que os primeiros cris- taos tinham de esclarecer a origem de uma personalidade nova que sentiam dentro de si. E é sempre oportuno recordar que aquele “do alto” nao deve ser entendido como uma inves- tidura mecanica e estranha: de fato, em latim, altus tem também o significado de “profundo”. Por isso, afirmar ser investidos por uma Forca do alto equivale a dizer por uma forca que esta na raiz do ser, uma energia com a qual é co- municado o ser. E justo, entdo, afirmar que o contetido de autoconsciéncia nova daquelas pessoas que se sentiam determinadas por uma energia proveniente do alto, coincidia com a forma de uma nova personalidade. Nelas dispa- rou uma personalidade diferente no intimo, no profundo. Uma personalidade se plasma com o qué? Com a consciéncia de sie com o impeto criativo, com a fecundidade. E aqueles primeiros cristaos que nos precederam testemunham exatamente Na linguagem religiosa, a expressio mais adequada dessa capacidade de manifestacdo esta contida na palavra “profecia”. Nos Atos dos Apostolos esta narrado o dis- curso de Pedro apés o acontecimento de Pente- costes: “Esta acontecendo o que foi anunciado pelo profeta Joel: nos ultimos dias, diz o Senhor, derramarei do meu Espirito sobre toda carne, e vossos filhos e filhas profetizarao”?®2. Profeta é aquele que anuncia o sentido do mundo e o valor da vida*™. A forca da profecia é a forca de um conhecimento do real que nao é do homem, mas que vem do alto, assim como esta descrito de modo potente no Antigo Testa- mento quando se narra a vocacaéo profética de Jeremias: Foi-me dirigida a palavra do Senhor dizendo: “Antes de formar-te no ventre materno, eu te co- nheci; antes de saires do seio de tua mae, eu te consagrei e te fiz profeta das nacées”. Disse eu: “Ah! Senhor Deus, eu no sei falar, sou muito novo”. Disse-me o Senhor: “Nao digas que és muito novo; a todos a quem eu te enviar, irds, e tudo que eu te mandar dizer, diras. Nao tenhas medo deles, pois estou contigo para de- fender-te”1®. mim e do Evangelho, recebera cem vezes mais agora, durante esta vida - casa, irm4os, irmas, maes, filhos e campos, com perseguicées - e, no mundo futuro, a vida eterna”!!. Um cristao adulto, razoavel na sua adesao, é chamado a intuir o carater existencial dessa frase, a experimentar 0 inicio do seu alcance. Se o desafio dessa frase do Evangelho nfo é aceito, justifica-se a duvida de que se esteja falando de cristianismo ou de fé de modo abstrato. Os cristéos, com o dom do Espirito, tém a possibilidade de comecar a experimentar a realidade de maneira nova, rica de verdade, carregada de amor. E é exatamente a realidade cotidiana que se transforma, é 0 tempo presente aquele em que se recebe “cem vezes mais”, sAo os tracos normais da existéncia humana que séo mudados: 0 amor entre um homem e uma mu- Ther, a amizade entre os homens, a tensdo da busca, o tempo do estudo, do trabalho. Sem pas- sar por essa experiéncia, fica muito dificil, para nao dizer impossivel, adquirir uma conviccdo capaz de construtividade. E se uma pessoa deixa no implicito o valor desse inicio da acgao do Espirito, ou seja, se nado toma consciéncia dela, nunca se dara conta das potencialidades cultu- rais da sua propria fé, nado alimentara o seu di- namismo critico e operativo. O dom do Espirito tem como éxito tornar manifesto o fato de que a pessoa esta imersa naquele novo fluxo de energia provocado por Jesus, manifesta que se é parte daquele fend- meno novo. Porque 0 dom do Espirito é uma forca que investe os homens que Cristo cha- mou na sua Ecclesia. Ele lhes confere uma nova consisténcia em funcdo da finalidade imediata daquele chamado: a edificacao da comunidade, penhor do mundo novo. Gostaria de observar que somente a nossa mentalidade contemporanea, enfraquecida por séculos de afirmacées desorganizadas a propo- sito do fendmeno humano, pode ver a consis- téncia da personalidade do individuo e a consis- téncia de uma realidade comunitaria como duas coisas que se opdem?*’, c) A capacidade de se declarar frente ao mundo, forca de testemunho e de missao O dom do Espirito comunica a essas novas personalidades um impeto que torna as suas vidas uma capacidade de comunicac¢ao fecunda, comunicacao da novidade que Jesus trouxe ao mundo. Deste modo, tanto o individuo quanto a comunidade sentem-se em condicées de se de- clarar diante do mundo. Essa capacidade de adesido e de confissado de uma nova realidade em ato acontece, comec¢a a acontecer no dia de Pentecostes. E a esse tre- cho do Antigo Testamento parecem fazer eco, em uma maturidade da historia, as mais expli- citas palavras de conforto de Jesus referidas aos tempos da dificuldade e do sofrimento que seus discipulos ainda nao conheciam: “Quando vos conduzirem diante das sinagogas, magistrados e autoridades, nao fiqueis preocupados como ou com que vos defendereis, ou com o que direis. Pois nessa hora o Espirito Santo vos ensinara o que deveis dizer”!®°, Assim sendo, essa maior consisténcia da per- sonalidade e de toda a comunidade, em funcao da manifestacdo ao mundo da novidade trazida por Cristo, para cada pessoa tira a sua linfa vital de uma forca que nao é somente verbal, que nao se detém em simples discursos, mas que in- veste e muda as bases da existéncia a tal ponto que, com razdo, Paulo podera dizer aos tessalo- nicenses: “Sabemos, irmaos amados por Deus, que sois do numero dos eleitos. Porque o nosso evangelho nao chegou até vés somente por meio de palavras, mas também mediante a forca que é o Espirito Santo”!®’, e concluira a mesma carta exortando: “Nao apagueis o Espirito! Nao desprezeis as profecias, mas examinai tudo e guardai o que for bom”?®. lidade, na trepidacdo, na timidez e na confusao das nossas pessoas unidas. Assim, torna-se experimentavel para o homem a aurora daquele mundo novo que a energia com a qual Cristo investe a historia esta construindo. O inicio de tal experiéncia é 0 mi- lagre por meio do qual o homem pede o dom do Espirito, invoca-o, mendiga-o. Invocar o Es- pirito significa pedir aquela luz e aquela forca capazes de tornar experimentavel para nds o Mistério cuja natureza nao vemos. E Jesus disse a respeito de tal pedido: “Ora, se vds que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dara o Espirito Santo aos que o pedirem!”*4. Sendo que podemos sentir-nos incapazes até mesmo da iniciativa e da expressdo de tal pedido, confortem-nos as palavras de Paulo: “Também, o Espirito vem em socorro da nossa fraqueza. Pois nds néo sabemos o que pedir nem como pedir; é o préprio Espirito que inter- cede em nossos favor, com gemidos inefaveis. E aquele que penetra o intimo dos coracées sabe qual é a intencao do Espirito. Pois é sempre se- gundo Deus que o Espirito intercede em favor dos santos”. O alvorecer da vitéria de Cristo, o sinal do milagre continuo, é o humilde e grato reconhe-

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