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18/09/2019

Tóp. Esp. em Psicologia C


Normal, Patoló gico e Deficiência

Aula 3 (dia 18/09)

Estudos da Deficiência:
Dos Modelos da Cura à Diversidade

Além desse debate entre o modelo social da deficiência e o modelo do


cuidado, há um outro debate que eu gostaria de trazer, que diz respeito à s
controvérsias em torno do conceito mesmo de deficiência. Mais uma vez,
gostaria de fazer referências aqui ao célebre estudo de Canguilhem sobre o
normal e o patológico, para nos ajudar colocar esse problema.
Lembro a vocês do início da aula passada que, para Canguilhem, nã o
seria possível estabelecer uma fronteira rígida entre normal e patológico. Em
outras palavras, a separação entre normal e patológico nã o se daria pelo modo
como a natureza divide o mundo. Pelo contrá rio, a gente teria que fazer
comparecer ao debate a dimensão normativa, o campo dos valores, dos
julgamentos valorativos que emitimos em funçã o dos nossos interesses de
ação no mundo: tudo isso se relaciona com o campo da experiência de pathos,
da conexão com o ambiente, etc.. Isso significa que nem sempre vai haver um
consenso sobre a correlaçã o entre uma determinada atipia, ou anomalia, e o seu
valor patoló gico. Em alguns casos, haverá um consenso maior, como no caso da
oncologia, da cardiologia, etc. Ninguém discorda do valor patológico de um
câncer no estômago, de uma insuficiência cardíaca, etc. Já em outros campos,
como o campo da psicopatologia, por exemplo, o nível de controvérsias em torno
do valor patoló gico das condiçõ es aumenta, a ponto de existir disciplinas que sã o
“anti”, como a antipsiquiatria. Há uma tendência grande a se colocar em
questã o o valor patológico de certas atipias mentais. Um exemplo
contemporâ neo é o caso do autismo: atualmente, existe todo um movimento de
celebraçã o da neurodiversidade, do dia do orgulho autista (dia 18 de junho),
acompanhando em alguns casos de movimentos anticura. “Nã o há que se curar
o que nã o é doença”. Personagens como a célebre autista Temple Grandin, que
ficou conhecida como a Antropóloga em Marte do neurologista Oliver Sacks,

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vêm a pú blico dizer que o autismo nada mais é do que um padrão cognitivo e
afetivo diverso, e nã o uma doença ou mesmo uma deficiência. Por este motivo, o
autismo deveria ser celebrado. Ou seja, esse tipo de caso mostra o quanto a
fronteira entre normal e patoló gico pode adquirir controvérsias, na medida em
que em alguns casos ela depende muito mais de negociações sociais do que da
estrutura natural do mundo.
Quando adentramos o campo das deficiências, a gente pode traçar
paralelos com o campo do normal e do patoló gico. Seria a deficiência um
conceito objetivo, passível de ser estabelecido com base em medidas, ou em
puras descrições da estrutura do mundo? Ou esse conceito estaria também
sujeito à negociação? Em outras palavras, a deficiência constituiria um tipo
natural ou haveria algum nível de construção nesse conceito?

***

Gostaria de abordar essa questã o a partir do tema da surdez. Para o


senso comum e, em larga medida, para o modelo médico, parece ó bvio que a
surdez é um déficit, algo que falta, algo que deveria estar presente em uma
pessoa, mas que nã o comparece. Entretanto, quando nos aproximamos um pouco
mais de coletivos de pessoas surdas, vemos que essa leitura da surdez como
déficit, como deficiência, está longe de ser consensual. Muito pelo contrário!
Há uma disputa interna, entre aqueles que enxergam a surdez como
deficiência e aqueles que a enxergam como cultura e como minoria
linguística. Na ú ltima quinta, por exemplo, no encontro “Acessando uns aos
Outros”, uma professora do INES falou expressamente em uma oficina que, no
Brasil, há duas línguas oficiais: o português e a Libras. O português, falado
pela imensa maioria da população; a Libras dominada por apenas uma
pequena parcela dos brasileiros. Mas na letra da lei, somos um país bilíngue.
Uma chave para se compreender esse debate, do ponto de vista
acadêmico, é a noçã o de “construção social”, muito utilizada no campo das
ciências humanas. Por um lado, se diz que pode haver uma construção social
da surdez como deficiência; por outro lado, se diz que pode haver uma
construção social da surdez como cultura, como identidade pessoal, como

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diversidade. Um autor surdo dos Estudos da Deficiência, chamado Lennard


Davis, chega a afirmar que “a Europa tornou-se surda durante o século
XVIII”. Antes nã o existia a tipificaçã o da surdez como deficiência.
Mas o que significa dizer que a surdez pode ser socialmente
construída como deficiência ou como cultura? Para responder isso, vou fazer
uso de uma distinçã o proposta pelo filó sofo canadense Ian Hacking entre “tipos
indiferentes” e “tipos interativos”.
É pró prio da ação humana produzir classificações, separando o mundo
em classes, ou tipos de coisas: mesas, cadeiras, pessoas, animais, peixes, aves,
etc. No momento em que classificamos um grupo, ou tipo, tendemos a construir
uma descriçã o para quem é aquele tipo, o que é aquele tipo, quais são as
características comuns daquele tipo, etc. Toda atividade científica, ao fazer
uso da linguagem, também estabelece classificações: tipos de rochas, tipos de
astros, espécies, classes, famílias, etc. Hacking, em vá rios de seus trabalhos faz
uma observaçã o interessante: frequentemente, a ciência cria tipos não-
humanos de coisas. Quando ela faz isso, o modo de classificar nã o modifica de
modo algum as propriedades dos entes classificados. Por exemplo, há uma
controvérsia na astronomia sobre se Plutã o deve ser considerado, de fato, um
planeta, ou se na verdade deve ser classificado como satélite, ou seja, nã o se
sabe muito bem a que tipo Plutã o pertence. Porém, Plutão é absolutamente
indiferente ao modo como nó s o classificamos, descrevemos as suas
propriedades, fazemos um discurso sobre sua existência. Neste sentido, Plutã o
pertence a classe dos tipos indiferentes. Entretanto, quando estamos lidando
com as Ciências Humanas, há uma diferença importante. O estabelecimento de
tipos humanos produz descriçõ es de como sã o esses entes, quais sã o as suas
propriedades etc. Ao fazer isso, essas descrições interagem com os sujeitos
classificados e, neste sentido, altera as suas características, comportamentos,
modos de se autodescrever, construir identidade, etc. Afinal de contas, toda
ação humana se dá sob um fundo de descrições. Mundos inteiramente
distintos sã o abertos de acordo com o modo como classificamos sujeitos
humanos.
Sendo assim, quando se diz que há uma construção da surdez como
deficiência, o que se quer dizer é que se construiu uma série de discursos

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médicos, científicos e jurídicos, que levaram a uma descriçã o do fenô meno de


nã o escutar segundo a norma como como um déficit, uma deficiência. A partir
dessas descriçõ es, o nosso olhar para o fenô meno da surdez tende a ser guiado
por essa concepçã o. Isso não é sem consequências: essa descriçã o terá um
impacto direto nas práticas com as quais os sujeitos surdos estã o envolvidos
(instituiçõ es, políticas pú blicas, políticas educacionais), na construção da sua
identidade pessoal (como alguém a quem falta algo), no modo como essas
pessoas vão se comportar e se colocar no mundo; sobretudo no modo como
essas pessoas serão vistas pelo meio social.
Segundo os críticos desse modelo, conceber a surdez como deficiência
traz historicamente a ideia de que é o sujeito surdo quem deve se adaptar ao
universo dos ouvintes: que ele deve fazer de tudo para aprender a leitura
labial, deve treinar-se para conseguir projetar a voz, deve a qualquer custo
tentar se inserir no universo linguístico daqueles que ouvem, deve tentar
fazer tratamentos para atenuar ou eliminar a sua surdez, como o caso dos
implantes cocleares... Todo o esforço caminha, portanto, no sentido das
estratégias de reabilitação e inserçã o dos surdos na comunidade dos ouvintes.
A biotecnologia colocou novas questõ es, como no caso dos implantes cocleares.
Por outro lado, a partir dos anos 1970, na esteira da luta pelos direitos
civis das minorias, como o movimento negro, o movimento feminista e o início
do movimento LGBT (ainda restrito ao movimento gay), grupos de pessoas
surdas se organizaram politicamente para reivindicar direitos a se
redescreverem. Do mesmo modo como o movimento gay pressionou
psiquiatras para deixarem de descrever a homossexualidade como patologia,
e redescrevê-la como diversidade, para reduzir o estigma e o preconceito,
parte do movimento surdo organizado começou uma campanha para pensar a
surdez, não como déficit, deficiência, mas em termos de minoria linguística
e cultura surda. O princípio é que os sujeitos classificados devem ter o direito
de propor como querem ser descritos. É a radicalizaçã o do “nada sobre nó s
sem nó s”.
O modo como se descreve a surdez terá um impacto na definição das
prioridades em relação a esse grupo: pessoas que se definem como
culturalmente surdas nã o se atêm prioritariamente aos cuidados médicos, ou à

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reabilitaçã o e aos serviços de assistência; também nã o têm qualquer


preocupaçã o especial com a autonomia e vivências independentes. Ao invés
disso, sua reivindicação é mais parecida com a das minorias linguísticas: a
campanha dos culturalmente surdos é por aceitação da sua língua e seu uso
mais difundido em escolas, locais de trabalho e em eventos públicos. Em
suma, desejam simplesmente o reconhecimento e aceitação da sua
diversidade, e nã o qualquer espécie de cura. O presidente de uma associaçã o de
surdos escreveu:
“Pessoas surdas sã o estrangeiros vivendo entre pessoas cuja
língua eles nunca puderam aprender”... “Pessoas ouvintes à s
vezes nos chamam de deficientes. Mas a maioria – talvez todas
as pessoas surdas – sentem que sã o mais como um grupo étnico
porque falamos um língua diferente... Também temos nossa
pró pria cultura...”.

Aqueles que imaginam que pessoas surdas sã o indivíduos a quem falta


algo participam da chamada ideologia do capacitismo [ableism]. Esses grupos
de pessoas surdas nã o veem a surdez como falta de algo, mas como uma forma
diversa de estar no mundo, assim como qualquer outra minoria. Por isso, há
inclusive o dia do orgulho surdo (26 de setembro), à exemplo do que acontece
com outros grupos identitá rios.
Logicamente, esse movimento é dividido, nã o é unívoco. Sobretudo
porque existem muitas nuances internas: por exemplo, se você é um surdo
profundo de nascença torna-se muito mais fá cil imaginar-se fazendo parte de
uma comunidade de surdos, com suas regras pró prias, com suas identidades, etc.
por oposiçã o à cultura ouvinte. Isto é, torna-se muito mais fá cil aderir à
construção da surdez como deficiência. Porém, quando a pessoa perde a
audição tardiamente, ou perde a audiçã o em virtude do envelhecimento, a
tendência maior é que ela tenha maior aderência à construção da surdez como
deficiência.

[Gostaria de passar um vídeo para que consigamos ter uma noção mais
precisa de como a questão da construção social da surdez como minoria
linguística e como cultura se dá concretamente] 33’50 a 49’

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 A construçã o da surdez como minoria linguística tem um impacto importante


nas prá ticas em torno dessa condiçã o, ao ponto de em um levantamento se
chegar à conclusã o de que 8 entre 10 surdos de nascença recusariam um
implante para poder escutar.
 A maioria das mulheres gestantes que participam da cultura surda afirmam que
prefeririam que os seus filhos nascessem surdos, para poderem compartilhar
com eles a sua cultura e as suas experiências ú nicas.
 Quando o assunto é deficiência, o tema do aborto e da eugenia sempre vêm à
tona, porque é muito comum que, dentro de uma gestaçã o planejada, quando se
descobre que o feto possui algum tipo de lesã o ou deficiência, se opte pelo
aborto. Dentro do movimento dos surdos isso é um tema permanente, na medida
em que eles nã o se consideram de modo algum como deficitá rios. Abortar um
feto surdo seria tã o absurdo quanto abortar alguém porque ele é negro ou
homossexual em potencial. Essa questã o é muito delicada, porque lida com o
significado e o valor social que damos à s pessoas com deficiência. Militantes do
movimento surdo, invertem a ló gica: “e se pais surdos decidissem abortar
porque se descobriu que o feto nã o seria surdo também?” Talvez o movimento
pela cultura surda consiga convencer a maioria de nó s de que a surdez é uma
variabilidade nã o patoló gica do tipo humano. Mas e o que dizer de outras
condiçõ es: qual é a atitude média da populaçã o em relaçã o a condiçõ es como a
síndrome de Down, ou quando se percebe que o feto nã o tem um membro? Nã o
haveria um maior nú mero de pessoas inclinadas à prá tica do aborto? Enfim,
trata-se de uma delicada questão bioética.
 Por fim, mudar a construçã o pode transforma o estatuto legal do grupo de
problemas sociais. A maioria das pessoas surdas nã o poderiam mais pedir
benefícios para pessoas com deficiência, como cotas. Entretanto, aonde existem
políticas de assistência para as minorias linguísticas, como latinos nos EUA, ou
estrangeiros vindos de ex-colô nias na Europa, as pessoas surdas poderiam
participar.

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