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LENIO LUIZ STRECK » ANDRE KARAM TRINDADE ORGANIZADORES DIREITO E LITERATURA DA REALIDADE DA FICCAO A FICCAO DA REALIDADE Alexandre Morais da Rosa André Karam Trindade» Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy + Carlos Maria Cércova * Gustavo Oliveira Vieira * Hector Cury Soares Henriete Karam + Jaime Coaguila Valdivia + Jania Maria Lopes Saldanha + José Calvo Gonzélez Jose Luis Bolzan de Morais * Lenio Luiz Streck * Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira + Mauricio Ramires + Miriam Coutinho de Faria Alves* Rafael Tomaz de Oliveira * Sandra Regina Martini Vial- Témis Limberger LIVRO DIGITAL SAO PAULO EDITORA ATLAS S.A. — 2013 O TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE: DO REGNE DE LA LOI AO REINO DOS BRUZUNDANGAS Témis Limberger Hector Cury Soares” 1. INTRODUGAO. Quais as aproximagées possiveis entre 0 autor do “Triste fim de Policarpo ‘Quaresma’ ¢ o principio da legalidade, no caso dos cargos em comissio? Atribuir- -se a Lima Barreto a condigo de artista ¢ simplificar, mais que isso se necessita adjetivé-lo, pois foi um artista militante. Para além de produzir obras estetica- mente vilidas, quetia, sobremancira, produzir material literirio que contivesse um tom revolucionério do ponto de vista social. Sua obra atua como veiculo de conscientizagio ¢ de esclarecimento ao pii- blico, expondo as mazelas da organizagio social brasileira. Tem como marcas: 0 interesse pela realidade brasileira, 0 interior brasileiro ¢ seu atraso, ¢ a busca de ‘uma linguagem simples ¢ coloquial. Tais marcas sio tipicas do pré-modernismo, movimento ainda com as caracteristicas do séc. XIX, de outro, comega a ser preparada a renovacio modernista, que se inicia com a semana de arte moderna (1922). Esse perfodo nao chega a se constituir um movimento literdrio. Em suas obras, Lima Barreto registra o preconceito racial ¢ a discriminagio social do negro e do mulato. Registra a insurreicéo anti-Floriano Peixoto ¢ do go- verno Mal. Hermes da Fonseca. Retrata a paixio por sua cidade, o Rio de Janeiro, sua gente humilde, as figuras da classe média que lutam desesperadamente por + Doutora# Masta em Dveito(erelona/Espanhs). Mase am Otto (UFRGS) rfesiore Tur do Programs de Pos-Gradvagio em Dreito da UNISINOS. Promotor de Juniga BS). + Doutorando em Oveto (UFRGS. Morte em Direto UNISINOS) Professor Asstente da Univesidede Federal do Pampa (UNIPAMPA) Advogado (3) na DIREITO ELITERATURA ascensio social ¢ politicos com sua mania de ostentagio, por seu vazio ¢ ganan- cia. E critico da Republica Velha, da estruturagio patrimonialista ¢ centralizada do Estado brasileiro, que influencia diretamente na formagio da Administracéo Pablica do Brasil. Tornou seu célebre personagem Policarpo Quaresma no Dom Quixote tropical, defensor da cultura brasileira e contrério a importagio de mo- delos culturais e politicos. Em que pese a simples transposigio da arte ao meio juridico, nao se pode perder de vista que, justamente, toda a arte tende a socializar-se, a epocalizar-se ¢ também a institucionalizar-se, representando, neste caso, uma fotografia dos vicios de um perfodo histérico, o qual tem sua continuidade (ainda) hoje. Lima Barreto é atual ao criticar uma sociedade recortada e importada. Talver, essa seja a maior proximidade entre a arte e 0 direito, conforme aproximagio de Cabral de Moncada, “O direito faz af a sua aparicio, tal como em outras manifestagoes do espitito colectivo, como elemento condicionante de disciplina, garantia e di- rectrizes estéticas conquistadas pelos homens”.' Desta forma, o direito incorpora a arte. Esta é uma das misses proprias do artista militante ao perseguit 0 que Aristételes denomina reconhecimento, isto é, “fazer passar da ignorincta ao co- nhecimento, mudando a amizade em édio ou inversamente nas pessoas voltadas 8 infelicidade ou ao inforeinio” * Numa histéria que tem seu infcio em 1893, Policarpo preocupa-se em valori- zar as coisas do Brasil: histéria, geografia, literatura, folclore, misica culminando com sua proposta de adorar o tupi-guarani como lingua oficial. Por outro lado, expoe toda a insuficiéncia (GRBIER,, ainda reflexo do neocolonialismo que reverbera no Brasil. Visionério, ‘como Dom Quixote, Policarpo vé no Brasil o melhor pafs do mundo, a condigéo de possibilidade para o crescimento € desenvolvimento. Niio bastasse esta obra de Lima Barreto, em “Os Bruzundangas”, denuncia, no preficio de 1917, a estrutura patrimonial da Bruzundanga, que @RGD (Gagrantemente contréria & estrutura burocritica estatal do reino da lei. Diz “Conheci na Brucundanga um rapaz (creio que esti nas <>), de rabona de sarja ¢ ares de familiar do Santo Officio, mas tresandando a Comte, senio a 1 MONCADA, La Cabra Foote do Oieto# Do sade. Cota: Coimbra Eira, 204 p. 147.0 ator sda Sacore acerca de prousmicade etre oencrta do omancitas« a excite dor uta (p. 48-107, 2 ARSTOTELES. Ate Retire «Ate Postca, Sho Pal: Dial, 1964p 182. oy © TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE anticlericalismo, que, de uma hora para outra, se fez reitor do Asylo de Engeita- dos, apandilhado com padres frades, depois de ter arranjado um rico casamento coclesiéstico, afim de vér se, com apoio da sotaina e do solidéo, se fazia ministro ‘ou mesmo Manda-Chuva da Repiiblica. Que mayor, no acham?"? E, assim, é que se pretende aproximar tio ricas obras a0 Direito Adminis- trativo. Afinal, é preciso tragar uma critica a0 colonialism que toma conta do Direito Administrativo brasileiro que ignora todo 0 contexto politico, social e cultural da Administragéo Pablica brasileira, ambiente distinto do europeu ¢ do norte-americano. Para tal reflexio, toma-se por base o princ{pio da legalidade as- severado pela doutrina brasileira, um produto francés e sua aplicagio & realidade histérico-social brasileira, no caso dos cargos em comissio. Sera possivel perceber que é preciso repensar a legalidade em terrae brasilis. (Ora, é necessério adequar esse modelo para se formular uma teorizagéo apro- ximada da realidade politico-social. O mister é romper com os diuturnos neoco- lonialismos e, nada melhor, que 0 apoderamento da obra de Lima Barreto para demonstrar isto. A capacidade humana de produzir obras de arte “transcende ¢ transfere para o mundo algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no ser”, no dizer de Hannah Arendt.‘ Esta ligagio entre a obra literéria e um tema vinculado a0 Direito Administrativo intenta desaprisionar do ser, por meio da capacidade e da criatividade do autor expressar em linguagem simples e acessivel, aquilo que dezenas de artigos juridicos seriam incapazes. Destarte, resgatando a meméria ¢ as pequenas revolug6es de Lima Barreto em “Triste fim de Policarpo Quaresma” ¢ em “Os Bruzundangas” pretende-se cmergir a reflexio ¢ a aproximasio de as iticos e socais brasileiros (es- ‘utura estatal brasileira) (do Direito Administrativo) mportado do Direito Francés (século XIX). 2. O SURGIMENTO DA NOVA L{NGUA DO DIREITO... O REGNE DE LA LOI FRANCES (OU JE NE REGRETTE RIEN) A Revolusio Francesa, na anilise de Garcia de Enterria, marca profunda- mente o direito piblico na medida em que estabelece uma nova lingua dos di- 3 BARRETO, Une. Os Buzundongus. Ro de Jane: Jcitro Ribeiro dos Sorts, 192 4 ARENDT, Hamnah. A condigho humana Ro de Janeto: Forense Univers, 200, 45, ns DIREITO E LITERATURA reitos, A velha estrutura social foi rompida em um golpe s6. Em seu lugar, surge uma sociedade com uma imagem fluida, livre ¢ aberta.’ Até entio a ordem pi- blica, marcadamente sustentada numa superioridade ~ que era divina ~ era por séculos e séculos a tinica conhecida, intentava mudar para um, no qual imperasse a igualdade e a liberdade. Uma estrutura sustentada em leis ¢ em atos. Por isso, desde o seu surgimento, a Revolugio Francesa representou uma guerra de pala- vras, um novo desenvolvimento do xico. (ii aaa poder que desaguaré numa nova lingua do Direito. Desde © primeiro momento da Revolugéo Francesa, a Assembleia Consti- tuinte proclama-se dona do poder constituinte, o que a permite ditar uma nova Constituicio; e do poder legislative, o que a habilita a criar les. Isso permite uma reconfiguragio das relagées sociais, a partir das mudangas com a Lei. A declaragio dos Direitos do homem e do Cidadéo é cardeal na proclamacéo de um novo direi- to, extraindo do mundo das ideias para instali-lo como existéncia na ordem social.’ No momento em que se diz que os homens sio livres ¢ iguais, pretende-se dizer que deste momento em diante os homens serio livres... Desta forma, estabelece-se uma nova lingua (do Direito a0 pove)..A presenca de direitos como liberdade ¢ igualda- de, rompe com o passado feudal e de prebendas. Na seara jurfdica, resulta evidente o cuginenn de un no ages do. Na fase anterior, o diteito era formado por privilégios, era um Direito con- suetudindrio, no qual imperavam as relagées de pessoalidade. O responsével por ditar — dizer 0 Direito ~ era o Rei, que justificava seu poder numa predestinagio divina. Para se ter ideia, o grande limite da organizagio piblica era 0 Direito Natural. Estrutura de emolumentos e prebendas eram comuns nesse perfodo. Ao Direito Pablico s6 restava tratar da autoridade e do poder do rei (veneracio, obediéncia e fidelidade dos stiditos). A fidelidade que se aproxima da chamada fides (confianga), isto é, mais que um regime legal (inexistente) as relagées numa “possivel” organizagio administrativa, no periodo pré-revoluciondrio, davam-se por meio da confianga. Dito de outro modo, o fundo das decisées de poder ndo era afetado por limites juridicos. Fica remido tio somente, pela(@RN@EReMNaD principe. Por sua ver, a Revolugio destréi inteiramente com essa constituigo, em seu lugar, coloca que © poder politico é uma autodisposigio da sociedade sobre si 5 ENTERRIA, Eduardo Garcia de Le Lengua de los Derechos Madi: Alana, 1995p. 26 & 14,bd.p 7 td, bid, 100-101 © TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE mesma, por meio de unf{PaetOMBED corporificado na Lei. Uma lei geral ¢ igua- litétia, formulada por um poder legislative. No lugar dos homens (confianga), passam a mandar as leis. Essa ideia esteve presente nos artigos centrais da Decla- ragio de 1789 ¢ encontra seu pleno desenvolvimento na Constituigao de 1791." Desta forma, hd uma explicita consagracio adfREIRBIGAIA” Isto significa dizer que todo o drgio piblico exerce o poder que a Lei definira previamente, na ‘medida fixada pela lei, mediante o procedimento e as condigées que a propria lei estabelece. Sé6 a lei manda, aos agentes administrativos cabe o simples cumpri- ‘mento da mesma. Pela primeira vez na histéria humana, todo o aparato de poder objetiva-se de uma maneira abstrata e mecinica, Por ébvio, SOMEHOHBERE, hou- ve a SBGHUPIGGREHORAHEAAUSRAMINISEMENSD pelos proprios limites da lei. Entretanto, nunca se perdeu a lei como medida. ‘Todavia, na Franca cria-se um regime administrativo que tem como caracte- res centrais um poder administrativo (oriundo do poder executivo), a realizagéo da fungio administrativa ¢ a empresa da gestéo administrativa."” Ao legislative cabe fixar principios gerais ¢ 20 executivo regulamentar com base nesses prin- cipios gerais. Com o passar do tempo nil raga 6 jsentido a ealidaidey com base nas tensbes entrgobersila popular ¢ separacto dos poderesy adquire novos, tragos. Muito se devendo, inclusive, ao‘suigiment do Consélhe de Estado € 2 -abertura a um direito administrative baseado no precedente." ‘Waline! assevera que a Lei n* 16, de 24 de agosto de 1790, dispunha sobre ‘a organizacSo judiciéria e proclamava a separagio das fungées administrativas € judicidrias, que foi reafirmada com o curso da Revolugao Francesa. Houve (202 ‘igo legal expressa aos jutzes, do conhecimento da matéria administrativa. As reclamagées referentes 2 matéria administrativa néo poderiam ser, em nenhum dos casos, encaminhadas aos tribunais. Deveriam ser submetidas a0 rei, chefe da administracéo geral, conforme André de Laubadére.”* O contencioso administra- 18 SEYES, Emmanvel Joseph. A Constunte Burguesa. Que & 0 Tercevo Estado? Ro de Janevo: Lumen uti, 1977, 58. Para compreende a idea de nagio 2 mpordinc da pericpacto do Tercera Estado na eaborarto da Constuigio. 19 Por um Decreto da Assemblela de 9-15 de Ari de 1791, no dorso des moedas devi guar legends Régre dea LoL No eu anverta, «figure do Rei i, bd, 127-128) 10 HAURIOU, Maurice, Pris de choi admintrat et de rot pub Pari: Dalle, 2002p. 7-8 11. © modelo francis de legaliece covesponde a un Estado de Dito de tipo jul, no qual se revtinge o ape! reservado & let forme (e portato 20 Paramart)e se colocam os tribunas no furgho de axe pica! de ‘deena dor cdadios coma o wbivio admanstatvo.C/ CORREIA, Joub Manvel Sérlo. Legace e Autonoma Contatual nos Contratos Administravos Unbox: Amacina, 1987, p $5.40. \WALINE, Marcel. Trt Elsmentave de Droit Adminstrator: Recut Sey, 1952, 9.4. ‘Alera b Lat m7, de 4 de outubro Ge 1790, com » varaariho do texto fia por LAUBADERE, Arc de; ‘VENEZIA, Jen-Cisude: GAUDEMET, Yoo. Manvel de Oot Adminatval 15.04, Port LG.D.. 195, 9.107. Apesar 2 déerenga de rumeracio das ls conortardo-ve com a nota acai) assim ests dupont ra obra don aures, 7 DIREITO E LITERATURA tivo surge, a principio, para limitar a propria administragio internamente. Isso porque a propria Administragéo era responsivel pelo seu controle (consequéncia da separacio da Justica e da Administragio). Por outro lado, o contencioso visa- va, também, uma redugio da legalidade formal em todo o aparato da atuacio da Administragio Pablica. Por contencioso administrativo, segundo a definigio de Hauriou,'* entende- -se 0 conjunto de regras relativas aos litigios organizados que questionam a ativi- dade dos administradores piblicos. O progresso do direito administrativo francés deveu-se & existéncia de um contencioso. Essa instituigéo garantiu o desenvolvi- mento do direito propriamente dito, através das garantias de legalidade criadas, pela importincia do aspecto moral da conduta dos administradores, dando res- paldo as teorias subjetivas. © recurso por excesso de poder é uma criacio jurisprudencial devido ao pré- prio Conselho de Estado, constituindo-se o principal instrumento de controle da legalidade administrativa, consoante André de Laubadere." Devido & criagdo jurisprudencial do recurso por excesso de poder, pode-se organizar a teoria da le- galidade, que significa obrigar @ poder piblico & observincia da lei e da moralida- de administrativa. Opinio diferente tem Bonnard, para quem existe semelhanga entre 08 contenciosos de plena jurisdicio e excesso de poder, pois ambos abrigam a violagio de um direito subjetivo posto em causa. Existe 0 direito subjetivo & legalidade dos atos administrativos, ¢ assim a ofensa a esta legalidade constitui néo somente uma afronta ao direito objetivo, mas também uma infragéo a um direito subjetivo. ‘A posigéo de Bonnard” nunca chegou a fazer escola no diteito francés, cons- tituindo-se em doutrina praticamente isolada. Faz-se a critica dizendo que a di- ferenga entre um ¢ outro é de fundo, jé que nd {RSS POR EREEROIME OME hd a pretensio & restauragio da legalidade, enquanto nol®@elns0 de Plena jUrisdigaS foi violado o préprio direito subjetivo do recorrente, através de um ato do administra- dor, conforme posigées acima descritas de Waline, Berthélemy e Hauriou. Cons- titui-se em requisito para a interposi¢ao do primeiro recurso o simples interesse, enquanto ao segundo ¢ a existéncia de um diteito subjetivo do recorrente que 14 TERRA, Eduardo Gani de Lach cone ls inmate Pode onl deci anaes Pos pod acreconsien,poderes de gobierno, nativs) Machi: Cas, 974 0.19, HAURIOU, Mource. Pris de Dot Administ t de Dot Pubic Général Gnquame éition, Par: Ubraiie de La 17 WALNE, Marcel Manvel Edmentare de Ort Administ Pars Reel Say. 1936, 109. 1” DIREITO ELITERATURA © surge, a principio, para limitar a propria administragéo interna triaprodencial do recuno podlaten de poder, pode galidade, que significa obrigar 0 poder piblico & obse de administrativa. Opinio diferente tem Bonnard, para quem ext entre 0s contenciosos de plena jurisdigéo e excesso de poder, pois ambos cea 2 violagéo de um direito subjetivo posto em causa. Existe 0 dircito subjetivo & legalidade dos atos administrativos, ¢ assim a ofensa a esta legalidade constitui ndo somente uma afronta ao direito objetivo, mas também uma infragéo a um direito subjetivo. ‘A posigao de Bonnard’” nunca chegou a fazer escola no diteito francés, cons- tituindo-se em doutrina praticamente isolada. Faz-se a critica dizendo que a di- ferenga entre um ¢ outro € de fundo, jé que no recurso por excesso de poder hé a pretensio a restauragio da legalidade, enquanto no recurso de plena jurisdi¢ao foi violado o proprio direito subjetivo do recorrente, através de um ato do administra- dor, conforme posigées acima descritas de Waline, Berthélemy e Hauriou. Cons- titui-se em requisito para a interposigio do primeiro recurso o simples interesse, enquanto ao segundo é a existéncia de um direito subjetivo do recorrente que Socitd ds Reeve, 190 p. 791 16 LAUBADERE, op. ct, p. 105-107. A mapeio da volte do recuo por exceso de pod, oF autre fazer wma bie do sn evalu wt 1 de outubro de 1995, 17 WALNE, Marcel Manvel Edmentare de Droit Adminiatil Pars Recuel Sy, 196, 107 a. 0 © TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE se supée atingido. Os efeitos que advém da decisio do contencioso também séo diversos. Assim, somente no caso do iiltimo poder haver condenacéo pecunitia, em favor do recorrente, jé que houve ofensa a0 seu direito, por ato administrativo, ‘a0 paso que ao simples interessado a decisio ndo adquire esta extensio. Mesmo o principio da legalidade no direito francés tem suas caracteristicas prprias, Num primeiro momento, adotou-se uma prevaléncia da soberania po- GREBD despeito da separagio dos poderes, deixando o Administrador Piblico adstrito ’s leis e aos prinefpios gerais do legislador. ‘elaborando suas préprias norma- tizagbes com base, principalmente, nos arrestos do Conselho de Estado francés. (O que se pode observar & que o surgimento do Reino da Lei esté vinculado diretamente & superagio de uma fase pré-revoluciondria na qual impera a vontade do Rei e 0 Direito consuetudinério. Logo, nao havia a garantia de direitos mini- mos aos administrados, pois as relagées eram essencialmente de fundo pessoal, patriarcal ¢ patrimonial. E tao somente com a Revolugao Francesa e 0 apareci- mento do Reino da Lei que garantias como igualdade e liberdade sio averbadas numa declaragio. A soberania passa a ser exercida por uma gama maior de sujei- tos ¢ 0 Parlamento passa a dizer os regramentos 20 Rei. Assim, o passado de predestinagio divina e de jusnaturalismo (sentido am- plo) desmedido é substitufdo por leis humanas advindas do exercicio da sobera- nia popular. Da existéncia da legalidade € corolirio a especializagio das fungées, portanto, é preciso separar as diferentes fungées dos poderes (separagéo dos po- deres), Com isso posto, tem-se a necessidade da organizacéo da Administracéo Piblica, © que possibilita o surgimento — como dito anteriormente ~ do regime administrativo ¢, posteriormente, do Conselho de Estado. Desta forma, hd um contexto histérico-sociolégico que dé um sentido as transformagées que ocorreram no Direito francés e que dio novos caracteres 20 Direito Piblico no ocidente, Néo obstante, com o passar do tempo ~ puderam- -se observar novos sentidos & legalidade estrta & lei ~ sempre se adequando a um ambiente histérico-social. Porém, quase que em perfodo correspondente tem- poralment Ou colocam-se caracteres do Direito Piiblico francés pés-revolugio em uma estrutura feudal, sem o rompimento com esta estrutura. Gera-se uma importagio totalmente inadequada ¢ inadaptivel, dentro das circunstincias histéricas, a0 contexto brasileiro. Com efeito, formulam-se pro- ne DIREITO E LITERATURA blemas relativos & legalidade que estio presentes até os dias de hoje ¢ que foram muito bem criticados por Lima Barreto ~ ainda no perfodo da Reptiblica Velha. Um destes casos sio os @g6SERIEBRIISED, os quais ocupam boa parcela da Ad- Pblica, solapando a legalidade em prol de uma relagio calcada na am, despeito de sua previséo constitucional representa firme oposicio ao sentido anteriormente tratado da legalidade. Contudo, seré visto que estio adequados & realidade hist6rico-social brasileira da constituigéo do Estado bra- sileiro, devendo aos juristas um trabalho de adaptagéo dos discursos importados, aproveitando-se o seu melhor, dentro daquilo que ser chamado adiante de tra- balho de traducio. 3. AGENESE DO BRUZUNDANGA STATE E SUA CONTUMAZ IMPORTACAO (OU NAO EXISTE PECADO DEBAIXO DO EQUADOR) Nio hé evolugio da Franga 20 Brasil, eis 0 erro comum nos levantamentos doutrindrios acerca da legalidade. Em geral, propée-se um levantamento histé- rico sobre o principio da legalidade como se, realmente, houvesse uma evolucéo do instituto do seu surgimento até o Brasil. Néo ha! Na realidade, existe a impor- tagio de determinados institutos juridicos e politicos sem preocupago com sua adequagio & realidade histbrico-social. Sao os “restos” de um colonialismo ainda atual no Brasil. Em relagéo ao Norte (Europa) somos 0 selvagem, na expressio de Boaventura de Sousa Santos, pois somos o lugar da inferioridade. E impossivel uma relagio de alteridade em relagéo ao Sul (pafses em desenvolvimento, perifé- ticos), ele nao é plenamente humano."* valor é apenas de utilidade. Aos periféricas cabe apenas, como irracionais que sio importar e reproduzir, a fim de dar concregio ao aludido valor. Discor- rendo mais acerca da importagio, é plausivel aduzir que basta trasladar algo que, supostamente, é sucesso em um pais de primeiro mundo que funcionard aqui e dard uma guinada em na hist6ria rumo ao desenvolvimento, & redugio da desi- gualdade, enfim, 2 realizagao de todas as promessas contidas na Constituigao da Repiiblica Federativa do Brasil de 1988. Entretanto, é preciso salientar que nao se trata de algo novo, na perspectiva das ciéncias sociais e juridicas. Em primeiro lugar, importa-se a Corte portuguesa SANTOS, Bouventura de Sousa. A gramitic do tempo: para uma now eutura da poltca So Paulo: Coes, 2006, 185-186, © TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE para o Brasil (entio colénia portuguesa) (ANGSHEME|PORga fogs paso IED acossada pela ameaga napoleénica, o que vai influenciar diretamente na formagio do Estado brasileiro. Entéo, surge 0 primeiro importamos um Estado" com pesmi d. Dessa forma, a estrutura do Estado brasileiro (em formagio) adota caracteres tradicionais do Estado portugués. Isto evidencia que © desembarque da familia Real portuguesa no Brasil representa, simbolica- ‘mente, essa importaglo de um Estado centralizado e extremamente burocritico.® ‘Ademais, a heranga da Universidade de Coimbra, que formou por muitos anos a elite brasileira porque, diferente das coldnias espanholas, inexistiam no Brasil universidades. Com a independéncia, vai-se a Corte, mas fica o legado portugués (além, é légico, da assungéo da divida externa portuguesa junto & Inglaterra). Em coutras palavras, o Estado brasileiro ¢ importado, sem nenhuma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. Ao tratar do tema QOBEIMGHIOMEKOARaIR demonstra a franca influéncia desta importacio na formacio das instituigées jurfdicas brasileiras, principalmen- te do RBMEEJURIEIBo que era o responsivel pela manutengio do do reina Lotte © referido autor, os magistrados foram compl: SSeS - GID ycirince QUNNED Ore tree em qu odo sus SNRTD)ccilsva etre (08 diferentes “cargos ptiblicos”, tendo como dpice de sua carreira (aposentadoria) tornar-se Senador. Para se ter uma ideia, no perfodo do Império, existia no Brasil o Conselho de Estado (homBnimo francés ie designa 0 drgio responsivel pela jurisdicso administrativa), que representava apenas parte de um clube, como designa José 19. No dmisto do Dro Adminisvatna, 0 Pefesoe Celio ArconieBardeia de Mello citicaaberamente 2 tendncia brasiera » ooracbo de modelos elicazes em pues cers, sem 0mm ma de adequagbo ts conagéns 29 E5 tad bral, erinenternente um Estado penlco.Apacta bras depencieia do olarabonatirio dot pales erase atnge # Braslero, Reva Disponiel er Ro de Janeiro: Ed. UFRU, Rela: DIREITO E LITERATURA Murilo.® Comegava-se como magistrado (diploma de ensino superior), 0 pré- ximo passo era tornar-se deputado provincial, depois — com ajuda da familia ¢ da imprensa deputado geral. Da deputagio geral, ingressava-se efetivamente no lube e 0 caminho era o ministério, a Presidéncia da Provincia ou o Conselho de Estado. Por fim, a aposentadoria, ou seja, a Senatoria. Nota-se toda a permeabili- dade da estrutura Estatal, a qual devetia ser racionalizada, ao patrimonialismo ¢ 4 pessoalidade. Nao se rompe com a estrutura anterior, perpetua-se. Essa era a principal caracteristica da elite politica imperial, qual seja seu es- treito relacionamento com a burocracia estatal. Evento tipico de paises de capi- talismo retardatério ou frustrado. Tal relagio impediu a superacéo do paradigma dominante, ou seja, diferente da Franga que refuta seu passado na pés-revolucio, em terrae brasilis € repisado 0 passado o que permite a estruturagio ¢ unificagio da clite politica. Destarte, dio-se os primeiros delineamentos ao Estado brasi- Iciro, o que influencia diretamente no modo de fazer da Administragao Pablica brasileira, que ¢, na maioria das yezes, dissonante ao apresentado pela doutrina do Direito Administrativo. ‘Como visto, a estruturacio do Direito Administrativo na Franga tendo como carro chefe o princ{pio da legalidade representa uma linguagem totalmente nova do Di deve ser analisado com uma série de ressalvas, a buscar a contextualizagio histé- rica, sob pena de se incorrer no mito da origem milagrosa.” A proposta do Lima Barreto transformador aproxima-se perfeitamente da reflexio acerca da formagio da Administragio Publica brasileira. Nos “Bruzun- dangas”, hia “nobreza da bruzundanga” (Capitulo II) representada pelos porta- dores de diploma superior com direitos além dos direitos dos outros cidadios. Relata que 0 nobre doutor tem prisio especial, mesmo em se tratando dos crimes, mais repugnantes, néo podendo ser preso como qualquer do povo, a despeito das previsdes constitucionais.* A estrutura de privilégios é denunciada, fazendo a relagdo entre o ntimero de doutores da Buzundanga e os cargos que sio criados 22 1d, p 3. 23 BINEMBOIM, Gusto. Uma toons do Dito Admintrato: deatos Kunden, emocracia# conttucions: laagdo Ro de Janae: Renova 206, p. 9. Usa a exrestbo baad om Prosper Weil Além dso, @ubora uma corso erica adutindo aue w cada ano se ensina que» origer do Oveio Admintatwo a pant a Laide 20 de ple do ano Vil fazendo ume enitaseparako envelagidativo @ execitvo. Como ve» administra w ‘ame acta bis elaboracas pelo lagalatne quando, em verdad, 9 Dito Admntratv # uma corse gbo pretorara (Corsed etal) Asm, 9 exacutvo tem seus Yagrarantos Sitados por conatugso juraprudencal do Conese de Eade. 2 BARRETO, Os Brevadonges, op. ct, 9.83 © TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE para que esses tenham ocupacio: “Tendo crescido immensamente o nimero de doutores, eles, seus Paes, sogros, etc., trataram de reservar o maior mimero de logares do Estado para elles. Capciosamente, os regulamentos da Bruzundanga vio conseguindo esse desideratum’ A transformacio da Administragio Paiblica em espago para avango das rela- ‘96es patrimoniais e manutengio ao longo do tempo, demonstra a forma como © avango da burocratizacéo do Brueundanga State que é 0 Estado imagindrio de Lima Barreto. Contudo, conforme o autor o Bruzundanga nfo fica atrés do Bra- sil, Aquilo que se denomina a Brunzundanga é 0 Estado imaginétio com os vicios da organizacéo Estatal brasileira. Em funcio da colonizagio ibérica (Portugal ¢ Espanha), nao € decisivo ¢ intenso o rompimento com a estrutura feudal, logo, ‘com os privilégios hereditérios. De outra forma, a formacio de Estados coloniza- dos por estes Além disso, a preponderincia do prestigio de caracteres pessoais manteve- -se nas nagées ibéricas. No caso de Portugal, os elementos aristocriticos nao sio alijados ¢ as formas de vida ~ e © modo de fazer Estado ~ tém seu prestigio an- tigo conservado. Tipico das nagées ibéricas se estende &s suas colénias, a falta da racionalizagio da vida, como em algumas nagées protestantes; sua estrutura € mantida por alguma espécie de forga externa o que, modernamente, é chamado de ditadura militar, ‘Também, a colonizagio portuguesa permitit 0 aprofundamento das estru- turas do Estado portugués, em vista da porosidade da colonizacio portuguesa. Diferentemente da colonizacio anglo-saxénica, a qual existia uma distingao entre colonizador ¢ colonizado, a colonizagao lusitana por sua condicio semiperiféri- a tem como caractere a identificagio com 0 colonizado (pois é um colonizado na Europa). O colonizador permite a existéncia de um “outro”, que nfo hi na colonizagio anglo-saxbnica. Isto permite com que os caracteres do Estado portu- .gués sejam incorporados ao incipiente Estado brasileiro. A cestrutura estatal deve conduit & individualidade. Nessa linha de racioci- nio, a Administracéo Piblica deve inspirar-se na burocracia come o fio condutor dessa abertura & individualidade, na qual cada cidadio é apenas um niimero ¢ no uma pessoa ¢ sua rede de relagées fraternais. O individuo deve passar pelo 25 Id, bid, p43. 25 HOLANDA, Sérgio Buarque de, Rates do Bras Séo Paul: Companhia ds Ltrs, 195,38 27 SANTOS, A gamitica do tempo... 0p. p25 DIREITO ELITERATURA processo de adequacio das relagdes familiares (casa) as relag6es individualistas (rua). Entéo, o administrador puiblico ndo pode encontrar num cidadéo um ami- 0, 0 cidadio é um individuo portador de direitos em face da Administragio, em decorréncia de uma lei geral. Em uma relagio pessoal, subverte-se a cidadania as relagbes de pessoalidade, criando-se uma lei particular que dé direitos “especiais” 20 Fulano de'Tal ou ao Senhor X. Em decorréncia, em parte, da heranga ibérica, no Brasil, desde tempos re- motos impera a forma familiar patriarcal. Nao hd uma passagem da casa para a rua, em sentido contrério, a rua torna-se casa ¢ as relagées pessoais tornam-se regra no mundo, Ou seja, as relagbes de familia, de compadrio, da amizade e do parentesco sobrepéem-se & estrutura burocritica do Estado. Por consequéncia estas relagées, a estruturacio estatal deve ser fundada em privilégios, criando-se uma nobreza que tende a dominar. Aquilo que Lima Barreto referenciou como “nobreza doutoral”, diz ele: “A nobreza doutoral,lé (Bruzundangal, esté se fazendo aos poucosirvitante e até sendo herediéria. Querem ver? Quando por Ié andei, ouvi entre rapazes este cur- 10 didlogo: ~ Mas foi T reprovado? — Foi. - Como? Pois se ¢ filho do doutor F?"* © Brucundanga State & responsivel, entio, pela estruturasio desigual e verti- cal do Brasil. Encontra-se mais préximo ao idedrio de identidade ética ¢ lealdade vertical caracteristicos das corporagées de oficio ¢ irmandades religiosas, do que das éticas horizontais que chegaram com 0 adyento do capitalismo ao mundo cocidental e da organizacéo estatl raciona As relagies entre Administragéo Pi blica ¢ cidadios séo chamadas ao nivel das relagGes pessoais quando, deveriam estar estruturadas com base no dominio das relagSes impessoais dadas pelas leis ¢ regulamentagées geras. A pessoalidade nao obstante possa ser exercida por todos em uma sociedade, hierarquiza a sociedade, pois sempre haverd um nivel inferior ¢ nivel superior de relagses, Expressio que resume isso, cunhada por (§IBEHBIGBUR ¢ aperfeicoada por QUEEN. : GUID, eerie ane, bos 28 MATA Robero da. Crnavais Malancos e Hers para uma socoogia do ema basil, Ro de Jaret: Rocz 1997, 9. 193-19, Sobre a lgiidade do larmono “Sabe com quam enh flanda?”, hi o interemanteextudo do ‘Abert Carlos Ameda butcando desverda’o pet do branlers, Utlaase de dados para tanto. bdo um pouco ald, ice. que comprova esa de Roberta de Maza Ver ALMEIDA, Alberto Calon. Cabera do Basie. S50 Plo: Record, 2007 29 BARRETO, Os Brzundanges, op. ct, p69. 3B Id..0d. 6.195 © TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE talidade, generosidade trago definidor do carter do brasileiro. Néo implicam em civilidade, porém em express6es legitimas de um fundo emotivo ainda preso 20s padres humanos de convivio advindos do meio rural e patriarcal."' Para se “con- quistar” algo da Administracio Pablica no Brasil, ndo é suficiente uma regulamen- tagfo, é preciso um fundo emotivo e conquistar a amizade do servidor piiblico, algo inimagindvel nos padrées europeus.* Na pena de Darcy Ribeiro poder-se falar da expressio “cunhadismo”, o qual considera essencial & formacio do povo brasileiro. ‘Trata-se de expressio indigena que consiste no costume de incorporar estranhos & sua comunidade.” Essa incorporacéo no deixa de asseverar a pessoalidade dentro das relagées na sociedade civil, o que reflete na formagéo do Estado. ‘Como 0 Major Quaresma, deve-se fazer um levante pela valorizagao da brasi- lidade. Policarpo Quaresma preocupa-se em valorizar as coisas do Brasil: histéria, geografia, literatura, folclore, mtisica culminando com sua proposta de adotar 0 ‘tupi-guarani como lingua oficial. Contudo, isso no o impede de voltar-se contra a estrutura de privilégios da Repiblica Velha (estrutura atual, ainda). No Sitio do Sossego, a tentativa de encontrar uma solugio para o problema agririo. Acredita que o Brasil é o pais da agticultura. Depara-se com a dura realidade de falta de apoio ao pequeno produtor ¢ as intempéries climaticas e naturais (fata de chuva ataque das sativas). Além da realidade politica local, sustentada nas relagbes de pessoalidade, em outras palavras, nas relagGes de troca de favores, de privatizagio do piiblico. A personagem de Lima Barreto condenou a importagio de modelos politicos, institucionais ¢ culturais europeus, apregoando a constituic4o de sen- tido & brasilidade. princ{pio da legalidade do direito francés & uma dessas importagées, ina- dequadas, ao modelo de Administragéo Ptiblica brasileira. E, como consequéncia da série de lagos pessoais, a figura do “cargo em comissio” aumenta em progres- so geométrica, sendo uma excegio a legalidade & francesa. Cabe, buscar-se a so- lugdo para a adequagio entre o previsto na constituigéo, com base em um sentido 20 principio da legalidade vinculado 3 Constituigéo, mas sem perder de vista os caracteres da Administragéo Publica brasileira. 31 HOUANOA op. ct. p. 147 132 Ver BEZERRA, Marcos Otivio. Conupsso: um estado sobre poder publco « rlagdespessosis no Brasit Rio de Janeiro: Relume-Dumard, 195, Basta letra da apresercagto do ro para compreender © prplo do ater pars ‘aces aos cocamertos pura a fetura de sua daseragho Documeros cue, em prince, Severs tet scan pelo epee pecido, Para slém cto, rata que ape contegui ve aproximar dos vervidores pics com segs uma iceridade com ele ingressow no cube) pemtndo te Marquia a documentot ok uss “Bo devera 133 RIBEIRO, Darcy O povo basa: formasho eo sentido do Bast Sto Paulo: Cia. das Lets, 2006p. 72 ws DIREITO ELITERATURA 4, O PRINCIPIO DA LEGALIDADE MITIGADA: CONTRA OS DISCURSOS DISSOCIADOS DA REALIDADE (OU QUEM FOI? QUEM FOI? QUE FALOU NO BOI VOADOR, MANDA PRENDER ESSE BOI, SEJA ESSE BOI O QUE FOR) Nas segdes anteriores abordou-se, em primeiro lugar, a formacio € contexto histérico do princfpio da legalidade em terras francesas, para a compreensio do seu significado. Num segundo momento, apresentou-se o tratamento do princ!- pio da legalidade ~ quando importado da Franca — em terras brasileiras. Neste momento, interessa o estudo das possibilidades de constituigio de sentido 20 princfpio da legalidade no Direito Administrativo brasileiro, diante dos discursos dissociados da realidade. A partir disso, bucar-se-4 definir os limites aos cargos em comisséo (confianga), para uma maior aproximacio da comunidade politica — enaltecendo a participagio popular — ¢ evitando a preponderincia de critérios de pessoalidade no exercicio da Administrago Piiblica brasileira. Os dois livros de Lima Barreto citados ao decorrer do texto ¢ aproximados da realidade por meio de uma metéfora, permitem melhor explicitar a temética; tratam da questio dos cargos na Administra¢o Publica. Na Bruzundanga “Ngo 4 homem influente que no tenha, pelo menos, trinta parentes occupando car- gos do Estado; nao ha ld politico influente que néo se julgue com direito a deixar para os scus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pens6es pagas pelo Thezouro da Republica’. A atualidade da Bruzundanga ¢ to grande que basta recorrer as folhas dos periddicos brasileiros para se notar a proximidade entre 0 Brunzundanga Sta- te.¢ o Estado brasileiro.” Segundo levantamento da Folha de S. Paulo, Estados, Municipios e Unido promoveram em cinco anos um crescimento dos cargos de confianga (em comissio). O niimero saltou de 470 mil, no inicio de 2004, para 621 mil pessoas agora, um aumento de 32%. Ainda na mesma matéria o jornal constatou que a fatia ocupada pelos cargos em comissio no total de servidores na ativa também aumentou nos tiltimos cinco anos. Isto porque, a velocidade de ctiagéo desse tipo de cargo foi maior que o aumento do total de funcionérios das administragées diretas, que nao incluem estatais e bancos piiblicos. Nos Estados, a fatia ocupada aumentou de 5% para 6%. Para se ter ideia, eram 115 mil cargos 34 BARRETO, Os Brauedenges, op. ct p57 235 FOLMADE SPAULO.Sernay nega que neto ten sido contrat por ato secrete do Sarado. Noicaveiculads om 10/049, Dspanive em: .Aceeo em: TONTAR. 1m © TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE ‘em comissio em 2004 contra 158,8 mil agora (crescimento de 37,4%). O salto de todos os funciondrios na ativa foi de 16% (de 2,3 milhées para 2,66 milhdes). Para contornar essa situacao é preciso ser um otimista incurivel como o Ma- jor Policarpo Quaresma, é preciso identificar os caracteres da identidade cultural brasileira e a partir do modelo consagrado do princfpio da legalidade realizar um trabalho de tradugio que nos permita a formagio de um novo saber do princi- pio da legalidade, para repensar a atuagio da Administracio Péblica no Brasil e, principalmente, quais as possibilidades para lidar com as questées vinculadas aos cargos em comissio. (O trabalho de tradugéo aqui tratado é fruto da leituta de A - (Sines fo soar song dar eth da entai) ‘0 sociblogo portugute, insodu uma refggSMigoingiokigic que o conshisiu 20 pprojeto de pesquisa “a reinvencio da emancipacio social”,” a buscar alternativas a globalizacéo neoliberal. Nesse aspecto, confronta-se com 240 IAMOIERELIED- (GURASTELOATI® tem como obsesséo a ideia de toralidade sob a forma dda ordem; forja-se uma homogeneidade entre 0 todo ¢ as partes € estas no tém existéncia fora da relagio com a totalidade.* De outro modo, as possiveis varia- g6es do movimento indo afetam o todo ¢ sio vistas como particularidades. Essa razio tem como forma mais acabada a dicotomia, tendo em vista que combina simetria com hierarquia. A primeira relagéo entre as partes oculta uma relagio hierarquica. Daf, nio raro dicotomias como conhecimento cientifico/conheci- mento tradicional. Em fungio disso, nio hi nada fora da totalidade que mereca ser inteligivel e nenhuma das partes pode ser pensada fora da relagio com a totalidade. Nessa perspectiva, a razio metonimica é exaustiva (pretensio), em primeiro lugar, ¢ cexisténcia das partes somente se di dentro da totalidade, ou seja, no exemplo, 36 hd conhecimento tradicional dentro do conhecimento cientifico.” © Direito € tomado por cssa razio; no caso, 0 principio da legalidade néo se abre a0 conhe- _cimento tradicional (sociolégico) ficando adstrito 20 preconizado pela doutrina _administrativista que importa 0 modelo francés aos trépicos. 36 FOLHA DE S.PAULO. Cargos de confanga cescom 32% ro pal em cinco anos, Notice veleada em 15/0209 Ciapanivel em: ,Acesso wm 10, 200, 37 SANTOS, A gramitca do tempo... op. ct, p93. 3 id, bid. 97. 3 id, bid, p98. DIREITO E LITERATURA Hi, tradicionalmente, uma prioridade & abordagem ocidental-céntrica do Direito, a despeito da construgio juridica do espago doméstico.* Por conseguin- te, nao hd uma abertura dos espagos tradicionais da legalidade administrativa a0 aporte sociolégico. Com base nesses pressupostos, realiza-se um trabalho de tra- dugao que consiste em dois desafios: encontrar os residuos eurocéntricos do co- lonialismo no direito administrativo ¢ revitalizar as possibilidades histérico-cul- turais constituidas a partir da heranca da organizacio social brasileira. Em outras palavras, conjuga-se a rela¢éo hegeménica (paradigma dominante) a0 que esté além destas relagées, esse duplo movimento com base na sociologia das auséncias (dominio das experiéncias sociais disponiveis) ¢ na sociologia das emergéncias (expansio das experiéncias sociais possiveis).*' Assim, é preciso um novo sentido & pritica judicial, que compreenda a existéncia jurfdico-comunitéria. Uma pritica a implicar em um fundamento axiol6gico critico, transcendendo o homem a um sentido materialmente vinculante em que assuma o projeto responsabilizante de sua prépria humanidade. No caso, ocorre a conjugagio entre o prinefpio da legalidade do direito administrativo francés 8 concepgio de legalidade do direito administrativo brasileiro, para buscar so- lugéo a0 caso dos em comissio. Um trabalho de Poli Pretende-se manter vivo o princ{pio da legalidade no direito brasileiro sem igno- rar 0s aspectos inerentes & organizagio social brasileira. ‘Nesse caso, é necessario estabelecer uma zona de contato entre o modelo euro- céntrico da legalidade com 0 modelo brasileiro. Isto é, ¢ preciso existir uma norma- tizagio para regular a Administragio Piiblica, sob pena de ficarmos & mercé do arbi- trio do administrador. Contudo, a prética cultural brasileira demonstra que hé uma série de aspectos sociolégicos que se opéem frontalmente a legalidade, mormente, 8 contratagéo de funciondrios por concurso piblico, gerando um alto niimero de cargos em comissio (confianga). Nao h4 como romper em favor de um legalismo estrito, seria importar uma concepgio inadequada ao contexto brasileiro. A previsio do cargo em comisséo estd na Constituigao da Republica, no seu artigo 37, inciso II; nao se estabelece um limite para essas nomeagées, permitindo 20 Administrador Piiblico a nomeagio para, via de regra, conformar a politica 4 SANTOS, Bonvertra de Sous. A cis de usb indolete. So Pao: Cortes, 2005, p. 294 41. Id, A gamitn do tempo... op. . 120122 42 NEVES, Anténio Castanea. © Dieito hoe com Ove Sentide? Lisboa nsttute Paget, 2002p. 4.50 oy © TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE partidéria de aliangas ou mesmo para empregar familiares (sentido amplo). Isso demonstra o distanciamento do modelo importado — legalidade estrita ~ e sua descontextualizagio histérica, em fungio dos caracteres préprios da administra- do no Brasil. Abordando os caracteres do constitucionalismo brasileiro, @(RROQDi9g@1R> reconhece os vicios da sociedade brasileira, apontando petspectivas & modemizacéo do Pais, com base no direito constitucional (ordem constitucional). Afirma que a Constituigéo, por ser um documento que legitima © poder, deve estar necessariamente sintonizada com 0 povo e, portanto, em per- manente construgéo.® Disso resulta a importincia ‘ blRscael tec, ‘ qual amplie o leque de participasio. ‘A.ConstienisSo do Brasil portbiing. pctv Dh popclar nas mais diveceas esferas decisérias, devendo 0 Administrador Piblico confrontar suas escolhas. ‘io hé fundamento para seguir sustentando a supremacia da administrasio pi- blica ou a supremacia dos seus atos no Estado Democritico de Dircto, que tem como fim a realizagéo dos direitos das pessoas. Nessa perspectiva, sustenta-se cem dois pilares (macroprineipios): Dessa forma, 0s tradicionais vinculos de legalidade cederam espaco aos novos vinculos de legitimidade para a realizagio do Estado Democritico de Direito. Os tradicionais ¢ necessérios vinculos de legalidade cederam espago para a incluso de novos vinculos de legitimidade — sem os quais néo se viabilizaria a sua carac- terizagio como Estado democritico de Direito: No raciocinio de Moreira Neto, o direto administrativo enfrenta um cimbio paradigmético da modemnidade & pés-modemidade, Desta forma, aquilo que trata- ws dOpiraples exercicio de uma podegLoghetbukdo requer hoje outzoe pertaacuus ou seja, antes bastaria ao Administrador Pablico a investidura legitima; nos parimetros atuais, além da investidura legitima, requer-se o exercicio legitimo ¢ o resultado Originariamente, a participagéo democrética ficava reduzida 4 escolha dos ‘agentes politicos. Na contemporaneidade, na presenga do Estado democritico de Direito ¢ da necessidade do trabalho de tradugio parece fora de diivida que os {43 NETO, Diogo Figueiredo Morera. Aspects Jurkicos do Bras Contemporineo.O Pés Postma Chage ao Bre Inavgura-se um Consstucionalamo de Tanasho, Renata Eatyinca sobre a Relorma do Estado, Sader 6 2008, 7. Daponivel am: , Acgaso em 2009, {44 NETO, Dogo de Figueiredo Mores. Queto pareigmes do Dveito Adminstatio pérmodeeno: legitimidade, fnaidade fica, wesdtado, Belo Morzonte: Foran, 208 ws DIREITO ELITERATURA problemas politicos atuais demandam novas formas de participasio, voltadas a0 controle ¢ fiscalizagio da Administragio Piiblica.* Com efeito, proporciona-se uma maior eficiéncia da Administragio, gerando um maior grau de efetividade social. [A participagao deve ser elemento determinante na formacéo da vontade ad- ministrativa, utilizando-se do plebiscito, do referendo, da audiéncia piblica na cogestio. A vontade manifesta, conjugada com a Constituicéo <{GESEEEBGSTS prevalecer.“ No caso dos Cargos em Comissio, esse & 0 trabalho de traducio possivel. Nese sentido, ao dar abertura a participacéo popular aumenta-se 0 controle sobre os cunhadismos, sobre a cordialidade, sobre o patriarcalismo, sobre 0 pa- trimonialismo da Administragio Pablica brasileira. Os atos de contratagio dos ‘Cargos em Comissio passam a ter controle popular, impedindo essa porosidade cega e desmedida que afronta & legalidade. Por certo néo hé Administragio sem ‘os Cargos em Comissio, mas, por certo também, deve haver limites. Por isso, a constatacéo dos aspectos sociolégicos é fundamental para buscar uma zona con- tato entre o modelo europeu € 0 que ocorre no Brasil, para se fizer um trabalho de tradugio. Nessa perspectiva, sob a ética da Administragio Pablica, hé institutos va- riados de participacio. Poder-se-ia, de forma exemplificativa, falar na coleta de opiniéo, no debate piblico, n Aceso ee 14 2009 4 14,0,p.13. 47 NETO, Diogo de Figuetwdo Morera, MutapSes do Dito Adminstatv. Rio de Jone: Renovt, 200, p05. 10 © TRISTE FIM DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE -se da pesquisa, a legalidade pode ser mitigada com cargos em comissio, por ‘exemplo, mas, em compensagio, 0 espago de participagéo deverd ser maior. No ‘momento em que o individuo identificar-se com sua Administracio nao se terd mais um individuo, contudo um cidadio responsivel pelo resultado de sua Ad- ‘miinistracio ¢ corresponsivel pela legitimidade dos atos dela. ‘Todavia implique em rompimento com o paradigma tradicional de legalida- de importando do direito francés, apresenta-se a medida adequada 20s quadros da vida no Brasil. Como Policarpo Quaresma é preciso ser um visionério para pensar em solugéo & Administragio Piblica no Brasil, como dito pelo Marechal Floriano Peixoto, mas como Quaresma € preciso morrer por um ideal de vida boa, mesmo que & elite unificada, a qual ocupa os quadros da Administracéo Piblica, represente ser visionstio. 5. CONSIDERAGOES FINAIS O entrelagamento do direito com a arte permite adentrar-se a um mundo que é mais bem dito e explicitado pela pena rigorosa do artista. A linguagem do jurista é, muitas vezes, técnica ¢ distante daquilo que possibilitaria uma comu- nicagéo adequada com os destinatirios. Nao ¢ incomum ouvir-se falar sobre que aqueles escrevem acerca do dircito, como se fossem membros de uma seita secre- ‘a, em que apenas os iniciados podem compreender. ‘Quando se encontra obras do folego de Lima Barreto desvela-se de uma forma crua e direta todo um leque de relagées que envolvem politica e direito. O artista militante quer mais, quer que o leitor identifique-se com aquele mundo “fantasioso” das letras ¢ torne a stia obra a condigéo de possibilidade para trans- formagio. Longe de fazer uma revolucio, na sua acepgio mais intima, quer-se de- ‘monstrar a capacidade que uma metéfora a partir de uma obra de arte enseja uma criagéo no direito. Distantes dos grandes movimentos de Direito com literatura, propés-se, de uma mancira simples, a criagao de um plano de um artigo sobre 0 dircito administrativo,” a partir de duas obras de Lima Barreto (O triste fim de Policarpo Quaresma ¢ Brucundangas). {48 Consular CUNHA, Paulo Ferra da. Comunicao w Dito |Calagho Dito & Ate v1] Ponto Alegre: Uva do 208. ‘Advogade, 49 Uke rad das aus do Ata de Peaguia reakuado, no segundo sameste de 208, inevaco pela Pro Dey ‘Ventura, entdo profetora do Prog'ama de Pox Gracgo em Dito da Uriveridicie do Vale do Ro doe Snot UNSINOSIRS, Hoy «Prof. Deity 6 prolestore do Intute de ReagSes lnteracionals da USP mes conus 38 bata por meio do Blog Oveito « Arte isis « Carcatura (retoearte biog lemonde i. am DIREITO E LITERATURA Expés-se 0 exercicio do principio da legalidade sem nenhum fetichismo, sempre intercalando textos das obras de Lima Barreto. Num primeiro momento, apresentou-se o modelo importado e sua importincia no contexto francés; num segundo momento, veio a vez do contexto histérico brasileiro ea tentativa de adequagao do modelo francés. Por fim, com base em conhecimentos de sociolo- gia, tentou-se combinar os dois modelos para a formagio de um modelo de lega- lidade adequado ao contexto brasileiro ¢ adequado para um Estado democritico de Direito. ‘Como visto, 0 carguismo estd presente na pritica cotidianizada dos adminis- tradores piiblicos. Contudo, isso implica em flagrante violagio ao princ{pio da legalidade (dentro das coordenadas francesas). Tanto em Policarpo, quanto em Bruzundangas jé havia a dentincia desta estrutura social brasileira que influen- ciava diretamente na formacdo dos quadros da burocracia. Entretanto, o modelo importado continuou distante da realidade hist6rico-social. Deniincia apés de- niincia, do Império & Repiblica Federativa do Brasil, o problema dos Cargos em ‘Comissio (confianga) persistiram, inclusive com previséo constitucional — toda- via sem estabelecer uma limitagéo. Aabertura do texto constitucional permitiu ao administrador publico refor- «ar a estrutura origindria da formagio do Estado brasileiro. Em outras palavras, (8 cargos continuaram (continua) sendo uma moeda de troca politica ¢ familiar no Brasil. Para combater sugere-se um trabalho de tradugdo entre 0 conhecimen- to do principio da legalidade nos moldes francés aos aspectos notados pela socio- logia da brasilidade, para a formagao de um sentido de principio da legalidade no direito administrativo adequado ao Estado democritico de Direito forjado pela Constituigao Federal de 1988. ‘Desta forma, a solugio encontrada foi um maior controle da Administraci0 Piiblica por meio da participagao popular. Isso permititia a limitagéo ¢ 0 controle dos cargos em comissio adotados pelo administrador piblico. Embora nao seja ‘uma solugio estanque, dé efetividade social a0 principio da legalidade do direito administrativo. Portanto, ao exibir a estrutura estatal brasileira fora do manto magico das importagées da Europa, permite fazer-se uma pequena revolugéo — como queria o artista militante Lima Barreto — atacando as estruturas do principio importado da legalidade e fazendo refletir acerca das possibilidades de se constituir um sen- tido a0 citado princfpio no Brasil.

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